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EROS E TANATOS O Homem Contra Si Proprio KARL MENNINGER Tradugao de Aypano ARRUDA IBRASA — InstrrurcAo BrasILemra DE Dirusko CULTURAL 8. A. Prefacio Nao é novidade que o mundo esta cheio de ddio, que os homens se destroem entre si e que nossa civilizagao se ergueu das cinzas de povos espoliados e recursos naturais dizimados. No entanto, rela- cionar essa destrutividade, essa evidéncia de uma malignidade es- piritual, conosco, com um instinto, e correlacionar ésse instinto com o benéfico e frutifero instinto associado ao amor, essa foi uma das Ultimas fléres do génio de Freud. Chegamos a entender que, assim como precisa aprender a amar sabiamente, a crianga precisa aprender a odiar desembaracadamente, a voltar tendéncias destrutivas de si propria para inimigos que efetivamente a ameacem e nao para pessoas amistosas e indefesas, que sao as vitimas mais comuns da energia destruidora. E verdade, porém, que no final cada homem mata a si mesmo da maneira que escolhe, depressa ou devagar, mais cedo ou mais tarde. Todos nés sentimos isso, vagamente; existem tantas ocasides para presenciar isso diante de nossos olhos. Os métodos sio inimeros e sao éles que atraem nossa atengio. Alguns interessam a cirurgides, alguns interessam a advogados e sacerdotes, alguns interessam a car- diologistas, alguns interessam a socidlogos. Todos éles devem inte- ressar ao homem que vé a personalidade como uma totalidade e a medicina como meio de curar as nagoes. Creio que nossa, melhor defesa contra a autodestrutividade reside na corajosa aplicagéo da inteligéncia 4 fenomenologia humana. Se essa é a nossa natureza, é melhor que a conhegamos e a conhegamos em tédas as suas protéicas manifestagdes. Ver todas as formas de autodestruigéo do ponto de vista de seus principios dominantes parece ser um progresso légico no sentido da autopreservagao e de uma opiniao unificada sobre a ciéncia médica. Este livro é uma tentativa de sintetizar e levar avante, nessa di- regio, o trabalho iniciado por Ferenczi, Groddeck, Jelliffe, White, Alexander, Simmel e outros, que aplicaram sistematicamente ésses principios ao conhecimento da doenga humana e de todos os ma- logros e capitulagées que nos propomos considerar como formas va- riantes de suicidio. Ninguém melhor do que eu conhece a desigual- dade dos indicios a seguir e a natureza especulativa de parte da teoria, mas, quanto a isso, pego a indulgéncia do leitor, a quem sugiro que ter uma teoria, mesmo falsa, é melhor que atribuir acontecimentos & pura casualidade. Explicagdes de “casualidade” deixam-nos no escuro; uma teoria levard 4 confirmagio ou rejeigao. K. A. M. Indice Prefacio Parte |: 1. Parte Il: 1. 2. 3 Parte Ill: PP eps Parte IV: 1. DESTRUIGAO Eros e Tanatos SUICIDIO O tabu Os motivos Recapitulagao SUICIDIO CRONICO Ascetismo e martirio Invalidez neurética Adiccao ao alcool Comportamento anti-social Psicose SUICIDIO FOCAL Definigées 2. Automutilacées 3. Simulagdo de doengas ou ferimentos ouPp Parte V: . Me 42. 3. Parte VI i 2. Policirurgia . Acidentes propositais Impoténcia e frieza SUICIDIO ORGANICO O conceito de totalidade na medicina O fator psicolégico na doenga organica A escolha do mal menor : RECONSTRUGAO Técnicas clinicas Técnicas sociais 19 27 30 83 89 136 148 169 191 207 209 254 263 280 296 311 319 355 367 399 Parte I: © DESTRUIGAO 1/Eros e ‘Tanatos Por mais que tentemos, é dificil conceber 0 nosso universo em térmos de concérdia; pelo contrario, nés nos defrontamos em todo lugar com as evidéncias de conflito, Amor e édio, produgao e con- sumo, criagio e destruigéo — a constante guerra de tendéncias Opostas parece ser o coragao dinamico do mundo. O homem per- corre a agitada gama de sua vida através dos riscos de doenga e acidente, de feras e bactérias, do poder maligno das férgas da na- tureza e das mios vingativas de seus semelhantes. Contra essas inu- meraveis férgas de destruigéo, a longa e fina linha de defesa pro- porcionada pela inteligéncia cientifica luta incessantemente no es- férgo de impedir a destruigao da humanidade. Nao é de admirar que a atemorizada humanidade se volte ansiosamente para a magia e o mistério, tanto quanto para a ciéncia médica, a procura de protegao. Vézes e vézes nos tltimos anos, as 4guas crescidas do Ohio, do Mississipi e de outros rios derramaram-se sdbre os campos e cidades de dreas populosas, arrastando as casas e jardins, os livros e tesouros, os alimentos e fabricas de milhdes de pessoas. Quase ao mesmo tempo e no mesmo pais, arvores foram mortas pela séca, capim secou sob o sol, gado pereceu de séde e fome; aves e pequenos animais sel- vagens desapareceram e uma crosta pardacenta substituiu a habitual verdura da paisagem. E recentemente a costa do Pacifico foi de novo sacudida por terremotos que destruiram o paciente trabalho de anos, enquanto a costa do Atlantico era varrida por furacdes e tempestades devastadoras. Enquanto essas espetaculares fuirias da Natureza causavam a des- truigao de milhdes de pessoas indefesas, outros milhdes jaziam em hospitais sucumbindo vagarosa ou rapidamente em conseqiiéncia de destruidoras invasées de bactérias, toxinas e cinceres. E, salpicados aqui e acold entre tédas essas misérias, havia acidentes cotidianos 19 que ocorrem nas atividades comuns da vida causando morte e des- truicao em lampejos répidos e inesperados. Seria de esperar que diante désses esmagadores golpes do Des- tino ou da Natureza, o homem se opusesse firmemente a morte e a destruigio em uma fraternidade universal de humanidade sitiada Mas nfo é o que acontece. Quem quer que estude o comportamento de séres humanos nao pode fugir 4 conclusio de que precisamos levar em conta um inimigo dentro das linhas. Torna-se cada vez mais evidente que parte da destruigio que flagela a humanidade é autodestrui¢ao; a extraordinaria propensao do ser humano a aliar-se as férgas externas no ataque contra sua propria existéncia é um dos mais notaveis fendmenos bioldgicos. Homens voam sébre antigas e belas cidades langando bombas ex- plosivas em museus e igrejas, em grandes edificios e em criancinhas. Sao encorajados pelos representantes oficiais de duzentos milhées de outras pessoas, todas as quais contribuem diariamente com im- postos para a frenética fabricagao de instrumentos destinados a di- lacerar, retalhar e estracalhar séres humanos semelhantes a elas, dotados dos mesmos instintos, das mesmas sensagdes, dos mesmos pequenos prazeres e da mesma compreensiao de que a morte vem cedo demais para acabar com essas coisas. Isso € 0 que veria quem examinasse nosso planéta superficialmente, e se olhasse mais de perto a vida de individuos e comunidades veria ainda mais coisas que o deixariam perplexo; veria contendas, ddios e lutas, inutil desperdicio e mesquinha destrutividade. Veria pessoas sacrificando-se para ferir outras e gastando tempo, esférgo e energia para encurtar ésse recesso do oblivio, dolorosamente pequeno, que chamamos de vida. E, mais espantoso que tudo, veria alguns que, como se faltassem outras coisas a destruir, voltam suas armas contra si proprios. Se, como suponho, isso deixaria perplexo um visitante de Marte, certamente deve espantar quem presuma, como talvez todos nds fazemos as vézes, que os séres humanos desejam o que dizem dese- jar: vida, liberdade e felicidade. O médico, por exemplo, faz suas rondas didrias na firme crenga de estar atendendo ao chamado daqueles que desejam prolongar suas vidas e diminuir seus sofrimentos. Chega a dar grande valor a vida e a presumir que sua atitude é universal. Esforga-se tremendamente para salvar a vida de uma unica e insignificante crianca ou de um unico e inutil patriarca. Acredita ingénuamente na verdade absoluta do ditado de que a autopreservagao é a primeira lei da vida. Sente-se um salvador da humanidade, um baluarte contra as hordas da morte. De repente ou talvez gradualmente, desilude-se. Descobre que os pacientes muitas vézes nao querem ficar bons como dizem. Descobre que seus solicitos parentes muitas vézes nao querem que éles fiquem 20 bons. Descobre que seus esforgos sao combatidos, nao sé pela Na- tureza, pelas bactérias e toxinas, mas também por algum diabrete da perversidade dentro do préprio paciente. Um velho professor que eu tive observou certa vez que o médico deve dedicar a maior parte de seus esforgos a impedir que os parentes matem o paciente e depois confiar em Deus — 4s vézes no cirurgiao — para o resto; mas o médico competente realmente faz mais do que isso. Nao sé contém os parentes, mas procura impedir que o paciente faca as coisas que favorecem a doenga e nao a recuperagio. Foram observagdes como essas que levaram a formulagao, por Sigmund Freud, da teoria de um instinto de morte. De acérdo com ésse conceito, existem desde o inicio em todos nés fortes pro- pensGes a autodestruigaéo e essas propensées sé se concretizam em verdadeiro suicidio nos casos excepcionais em que numerosas cir- cunstancias e fatéres se combinam para torné-lo possivel. Contudo, surge esta questao: se um grande impulso para a morte domina todos nés, se no intimo todos nés desejamos morrer, por que tantos de nés lutam contra isso como fazem, por que nem todos nés cometemos suicidio, como aconselharam muitos filésofos? Em certos sentidos, parece mais légico investigar porque alguém vive enfrentando dificuldades, tanto externas como internas, do que provar porque morremos, pois nem tédas as pessoas continuam a viver e tédas conseguem finalmente morrer. Em outras palavras, por que o desejo de viver sempre, mesmo temporariamente, triunfa sobre o desejo de morrer? Freud faz ainda a suposigao de que os instintos de vida e de morte — chamemo-los de tendéncias construtivas e destrutivas da personalidade — esto em constante conflito e interagao, exata- mente como acontece com fércas semelhantes na fisica, quimica e biologia. Criar e destruir, construir e despedagar, ésses sio 0 ana- bolismo e catabolismo da personalidade, nao menos que das células e dos corptisculos — as duas diregdes em que as mesmas energias se exercem, Essas férgas, dirigidas originariamente para dentro e relacionadas com os problemas intimos do eu, o ego, passam a ser finalmente voltadas para fora em diregao a outros objetos. Isso corresponde ao crescimento fisico e ao desenvolvimento da personalidade. Deixar de desenvolver-se, a partir désse ponto, significa voltar incompleta- mente para fora a destrutividade e construtividade dirigida para o eu, com que nés — por hipétese — nascemos. Em lugar de com- bater seus inimigos, tais pessoas combatem (destroem) a si prdprias; em lugar de amar amigos, musica ou a construgéo de uma casa, tais pessoas sé amam a si préprias. (Odio e amor sao os represen- tantes emocionais das tendéncias destrutivas e construtivas.) Toda- via, ninguém se desenvolve tao completamente a ponto de livrar-se 21 inteiramente de tendéncias autodestrutivas; de fato, pode-se dizer que os fenémenos da vida, 0 comportamento peculiar a diferentes individuos, expressam a resultante désses fatéres colidentes. Uma espécie de equilibrio, com freqiiéncia muito instavel, é conseguida e mantida até ser perturbada por novos acontecimentos no ambiente, que causam uma rearrumagao com resultado talvez muito diferente. Com base nisso podemos compreender como é possivel que algu- mas pessoas se matem rapidamente, algumas se matem vagarosa- mente e algumas nao se matem, que algumas contribuam para sua propria morte e outras resistam valente e brilhantemente contra ataques externos a sua vida, diante dos quais seus semelhantes teriam logo sucumbido. Tao grande parte disso, porém, ocorre automatica e inconscientemente, que parece 4 primeira vista tarefa impossivel dissecar os pormenores de determinado acérdo ou acomodagio entre os instintos de vida e de morte. E precisamente por essa razio que a introdugao da técnica psicanalitica de investigagao nos proporciona um conhecimento inteiramente névo do processo através do esclareci- mento de seus pormenores. Permite-nos reconhecer como adiamento da morte é as vézes comprado pelo instinto de vida por alto prego. A natureza désse prémio pago pelo adiamento da morte é muito varidvel tanto em grau como em espécie(1). Em alguns casos as condigées sio extremamente estreitas e limitadas, em outros sio mais liberais. Sao ésses prémios, essas acomodagées entre os instintos de vida e de morte, como as observamos nos séres humanos, que constituem a matéria déste livro. E, por assim dizer, uma investi- gagao sébre o prego de viver — “o alto custo de vida” — como disse um de meus colegas. Quando uma doninha ou uma marta rdi sua propria perna a fim de escapar de uma armadilha, faz isso, até onde podemos julgar, (1) Ferenczi propds ésse desenvolvimento da teoria de Freud em noté- vel trabalho intitulado O Problema de Aceitagdo de Idéias Desagraddveis; Avangos no Conhecimento da Nogéo de Realidade (Further Contributions to the Theory and Technique of Psychoanalysis, Londres, Hogarth Press, 1926.) Alexander descreveu minuciosamente 0 mecanismo: “Do momento do nascimento em diante”, escreveu éle, “o organismo encontra continuamen- te a dolorosa experiéncia de que 0 mundo nfo est’ mais modelado tio exa- tamente para suas necessidades subjetivas quanto o estava o titero ma- terno. Quanto mais independente a crianga se torna, porém, mais aprende que o caminho do prazer segue através da persisténcia, rentincia e sofri- mento, Enquanto durante o perfodo de sugacdo s6 precisa suportar re- mincia sob a forma passiva de fome, aprende mais tarde que muitas vézes tem de procurar sofimento ativamente a fim de obter prazer. E essa procura ativa de sofrimento por motivos tdticos, que muitas vézes nos pa- rece tao paradoxal, é caracteristica do ego em’ suas relacdes com a reali- dade e o superego.” — Alexander, Franz: The Need for Punishment and tho Death Instinct, The International Journal of Psychoanalysis, 1929, Vol. X, p. 260. 22 consciente e deliberadamente, aceitando, por assim dizer, a plena responsabilidade da autodestruigao autopieservadora. Alguns indi- viduos humanos, obrigados a sacrificios semelhantes para preser- vacio de sua prépria vida, também aceitam a responsabilidade e defendem seu ato com as razdes légicas que conseguem encontrar, as vézes corretas, muitas vézes falsas, mas geralmente bem plausiveis. Entre éles se incluem aquéles cujo suicidio parece perfeitamente razoavel, por exemplo, o homem idoso que esta morrendo de dolo- roso cancer e quietamente toma veneno. Contudo, entre éles se incluem também suicidios atenuados como os que sao representados por ascetismo, martirio e muitos processos cirtirgicos. Em outros casos, o individuo aceita a responsabilidade da auto- destruicao de ma vontade e sé em parte, nao fazendo a menor ten- tativa para explicd-la ou defendé-la, de modo que os atos parecem sem propésito, como por exemplo o lento arruinar de uma vida pelo alcoolismo erénico ou morfinomania. ~~~ Ainda outros existem que no aceitam a menor responsabilidade pela autodestruigio; a responsabilidade é por éles projetada sébre o Destino, inimizade ou circunstincia; vé-se isso em alguns supostos acidentes, que com freqiiéncia sio de natureza inconscientemente intencional. Finalmente, ha um quarto grupo no qual o ego do individuo nao aceita responsabilidade pela autodestruigéo nem faz a menor ten- tativa de explica-la ou defendé-la. Neste caso, a autodestruigio é tedricamente representada por certas doengas fisicas. Em todos ésses o impulso autodestrutivo estd implicito ou expli- cito. Visto assim em série, prende nossa atengao e reclama que examinemos analiticamente os varios meios pelos quais homens pra- ticam suicidio, 4s vézes sem o saber. Foi ésse estudo analitico que eu tentei. PLANO DO LIVRO O plano déste livro é o seguinte. Encetaremos em primeiro lugar a discussfio daqueles malogros na tentativa de acomodagao descritos acima, dos quais resulta uma morte imediata, mais ou menos volun- taria — em outras palavras, suicidio. Tentaremos descobrir que motivos subjacentes determinam essa escolha, porque em alguns in- dividuos o desejo de morrer vence tio completamente o desejo de viver e o faz com a plena cooperagio da inteligéncia consciente. Ao mesmo tempo, tentaremos indicar em que medida essas tendén- cias podem ser reconhecidas antes de tio desastroso resultado. Examinaremos depois varias formas das acomodagées melhor su- cedidas, nas quais o impulso de destruir o préprio eu parece diluir-se 2s ou desviar-se, de modo que a morte é adiada, pelo menos, embora com dispéndio indevidamente grande sob a forma de sofrimento, malégro ou privagao. Interessar-nos-emos tanto em descobrir porque tais individuos nao cometem logo suicidio, como em saber porque sio tao fortemente impelidos na direcao de autoferimento e auto- restrigao. Isso nos levaré a consideragio de numerosas formas de autodes- truigéo — formas abortivas, formas desfiguradas, formas crénicas — todos aquéles malogros na vida que parecem estar diretamente re- lacionados com evidentes equivocos e desgovernos da parte do in- dividuo, mais que com inevitdveis acidentes do destino e da reali- dade. Nisso se inclui grande numero de pessoas que demonstram _nio serem capazes de suportar o sucesso, que se saem bem em tudo menos em obter sucesso, e aquéle ntimero ainda maior dos que parecem falhar em tudo exceto na consumagiio do fracasso. E, finalmente, consideraremos até que ponto e por que meios 6 possivel arbitrariamente desviar essas malignas tendéncias autodes- trutivas e evitar os desastres e sacrificios através dos quais elas sao contidas esponténeamente e nesses varios graus. Isso envolve a con- sideragao das técnicas a que podemos recorrer para reforgar os ins- tintos de vida em sua defesa contra as tendéncias destrutivas, com © propésito nao apenas de prevenir suicidio em sua forma crua e imediata, mas também de enfrentar o problema mais amplo de diminuir os casos de vida prejudicada e de acomodagoes exorbitante- mente onerosas na luta entre vida e morte. A primeira parte déste livro é, portanto, uma andlise dos motivos mais profundos de suicidio, isto é, suicidio no sentido comumente aceito. A parte seguinte consideraré as formas crénicas de suicidio nas quais 0 efeito é difuso. A terceira parte considerara o tipo mais focalizado de autodestruigao. A quarta parte tratard de uma extensao da teoria de autodestruigéo ao problema da doenga fisica, extensaio que deve ser considerada, por enquanto, em grande parte hipotética. A parte final tratard das técnicas existentes para combate a auto- destruigao e é, por isso, intitulada “Reconstrugio”. a4 Parte Il: SUICIDIO 1/O Tabu ¥ Ha certos assuntos a cujo respeito muitas vézes falamos em tom de brincadeira, como que para evitar a necessidade de discuti-los séria- mente. O suicidio é um déles. Tao grande é o tabu sébre suicidio que algumas pessoas nao dizem a palavra, alguns jornais nao publi- cam noticias déle e mesmo cientistas tém-no evitado como objeto de pesquisa. Nao é de admirar que meu amigo e conselheiro ficasse alarmado diante da meia duzia de titulos sugeridos para o manuserito déste livro. Todos éles envolviam ésse sombrio tema, um tema capaz de repelir os préprios leitores que mais apreciariam as conclusées finais da anilise. Como ja sugeri, chegaremos 4 conclusio final de que ha muitos meios pelos quais a vontade de viver pode triunfar sobre “o desejo de morrer, muitos recursos para libertar-se da autodestruigao, mas antes de analisd-los precisamos examinar o lamentavel fato de que homens se matam e que imitar o avestruz em nada diminui essa realidade. No decorrer dos uiltimos vinte e quatro minutos, em algum lugar dos Estados Unidos um homem matou-se. Isso acontece cérca de sessenta vézes por dia, em todos os dias; 22.000 vézes por ano. Isso s6 nos Estados Unidos; a freqiiéncia é duas vézes maior em alguns paises europeus. Em téda parte é mais fregiiente que o homicidio. Em tais circunstancias, seria de esperar que houvesse amplo in- terésse pelo assunto, que estivessem em andamento muitos estudos € pesquisas, que nossas publicagdes médicas contivessem artigos e nossas bibliotecas livros sobre a matéria. Nao é 0 que acontece. Ha romances, pegas e Iendas em abundancia que envolvem suicidio — suicidio em fantasia. No entanto, é surpreendentemente pequena a literatura cientifiea que trata disso. Essa, penso eu, é outra indicagao do tabu que esta ligado ao assunto — um tabu relacionado com 27 emogoes fortemente reprimidas. As pessoas nao gostam de pensar séria e concretamente no suicidio. De fato, meu prdéprio interésse por ésse assunto nasceu de meu espanto e curiosidade diante das operagées désse tabu em relagio a parentes de alguns de meus pacientes. O que aconteceu foi isto: pacientes confiados a nossos cuidados no fundo de uma depressio temporaria na qual ameagavam suicidar-se comegavam a melhorar e logo depois parentes procuravam retird-los, ignorando completamente nossa adverténcia de que era cedo demais, que ainda havia perigo de suicidio, Freqiientemente ridicularizavam a idéia de que tal coisa pudesse ser praticada por sew parente, insistiam que éle estava apenas blefando, que estava momentaneamente desesperado, que nao falava sério, que nao faria aquilo e assim por diante. Alguns dias ou se- manas depois, os jornais publicavam a noticia da morte de nosso ex-paciente por enforcamento, tiro ou afogamento. Tenho um grande arquivo cheio désses recortes e, présa a éles, a adverténcia textual feita aos impetuosos parentes. Por exemplo, um bom amigo meu, que estava sendo tratado du- yante uma depressao, foi acordado, tirado da cama e retirado do hospital no meio da noite por uma parenta contra quem sentia hostilidade, mas a quem era obrigado a obedecer. Advertimos essa parenta que era extrema imprudéncia retirar o paciente, que no fundo de sua depressio éle poderia praticar suicidio; 0 préprio paciente odiava deixar o hospital e implorou para que o deixassem ficar. Foi levado por essa parenta de um lugar para outro e final- mente para casa, a fim de 14 recuperar a satide sob os cuidados dela; pouco tempo depois se matou. Era um cientista, um homem com- petente, um homem de futuro. Vi isso acontecer com tanta freqiiéncia que me interessei pelo problema de saber porque as pessoas nao consideravam o suicidio como uma realidade e evitd-lo como sua responsabilidade. Nés, médicos, que tao arduamente trabalhamos para salvar vidas que as vézes nao nos parecem dignas de ser salvas, deveriamos também ter certa responsabilidade pela salvagio dessas vidas que muitas vézes oferecem tantas promessas e que sao destruidas, por assim dizer, em um momento de impulsivo mau julgamento, um momento de determinada incompreensao, como a de Romeu quando encon- trou Julieta adormecida e pensou que ela estivesse morta. Contudo, nao podemos fazer isso sdzinhos. Esforgamo-nos por conquistar a cooperacao dos parentes para evitar a concretizagio de um suicidio potencial e os parentes deviam — se séo humanos — levar a sério tais adverténcias e agir de acérdo com elas. O fato é que o suicidio continua a atrair muito menos atengao do que sua seriedade e sua prevaléncia parecem justificar. 28 O assunto é grande demais para ser tratado amplamente em um unico livro. Nao tentarei apresentar os aspectos histdricos, estatis- ticos, sociolégicos ou clinicos do suicidio, mas darei énfase ao exame dos fatéres psicolégicos inconscientes (e por isso geralmente des- curados). The Encyclopaedia Britannica, Hasting’s Encyclopaedia of Religion and Ethics e livros de referéncias semelhantes estao re- pletos de interessantes relatos sébre as varias técnicas, atitudes, con- seqiiéncias e interpretagdes do suicidio. Muitos déles mudam com a passagem do tempo e diferem grandemente nos varios paises. Estu- dos estatisticos interessaram numerosos escritores, particularmente autoridades em seguros de vida, embora a maioria dessas estatisticas tenha uma margem de érro reconhecidamente grande. Até onde vao, as estatisticas indicam que nos povos civilizados o suicidio é muito mais comum entre homens, embora mulheres tentem suici- dar-se com mais freqiiéncia do que homens. Nos homens a fre- quéncia de suicidio varia em proporgao direta a idade; é duas vézes mais freqiiente entre homens de 40 anos do que entre homens de 20 anos. Nao existe tal variagio entre mulheres. O suicidio é mais freqiiente na primavera do que em qualquer outra estagao, mais “freqiiente entre solteiros do que entre casados, mais comum nas areas urbanas do que nas rurais, mais freqiiente em tempo de paz do que em tempo de guerra e mais comum entre protestantes do que entre catélicos(1). Louis I. Dublin e Bessie Bunze] deram-nos um bom levantamento geral do assunto,(?) incluindo alguns dados histéricos, antropolégi- cos, psicolégicos e estatisticos. Exames clinicos de suicidio foram raros e em geral muito insatisfatérios. Ruth Shonle Cavan escreveu um dos primeiros estudos psicolégicos da era moderna(*); artigos ocasionais apareceram em publicagdes médicas com titulos como Tipos Diagnédsticos Diferenciais de Suicidio(*), Suicidio e Doenga Mental (5) e Suicidio, Possibilidades de Prevengao pelo Reconheci- mento Precoce de Alguns Sinais de Perigo(*). Em geral, porém, 0 suicidio atraiu surpreendentemente pouca atengao dos médicos. (1) Para um vivido e popular resumo de estatisticas © teorias, ver Be- ware of Loneliness, de Davidson, Henry A., Coronet, marco de 1937. (2) Dublin, Louis I, e Bunzel, Bessie — To Be or Not to Be! A Study of Suicide, Harrison Smith e Robert Haas, 1933. (8) Cavan, Ruth Shonle — Suicide, University of Chicago Press, 1927, (4) Zilboong, Gregory — Differential Diagnostic Types of Suicide, Ar- chives of Neurology and Psychiatry, 1936, Vol. XXXV, pp. 270-91. (5) Jameison, Gerald R, — Suicide and Mental Disease, Archives of Neu- tology and Psychiatry, 1936, Vol. XXXVI, p. 1. (8) Fairbank, Ruth — Suicide, Possibilities of Prevention by Early Re- cognition of Some Danger Signals, Journal of the American Medical Asso- ciation, Vol, XCVIII, pp. 1711-14. Ver também 0 recente estudo de Merrill Moore, Cases of Attempted Suicide in a General Hospital, The New En- gland Journal of Medicine, agdsto de 1937, pp. 291-303. 29 Poder-se-ia esperar alguma coisa dos psicanalistas, cujo interésse pelos tabus resulta do conhecimento dos podéres psicolégicos da re- pressao. Todavia, mesmo éles sé contribuiram com pouco. Para sermos justos, porém, devemos aerescentar que, embora 0 ato de suicidio propriamente dito no tenha sido completamente investigado por éles, a intengfo de praticar suicidio foi objeto de muito estudo da parte de Freud, Abraham, Alexander e outros. No proximo ca- pitulo, seguiremos suas pegadas e entraremos no tabu que envolve © assunto e nas repressées ainda mais fortes que protegem os motivos seeretos que parecem convergir no sentido de induzir ao ato de 2/ Os Motivos A primeira vista, parece gratuito oferecer uma explicagio do sui- cidio, Na mente popular, o suicidio néo é um enigma. Explicagdes faceis podem ser lidas com monétona invariabilidade nos jornais digrios, nos relatérios de seguros de vida, nos atestados de dbito e em levantamentos estatisticos. O suicidio, de acérdo com essas fontes, é conseqiiéneia simples e légica de doenga, desinimo, re- veses financeiros, humilhagio, frustragio ou amor nfo eorrespon- dido. O que mais espanta no é serem essas explicagdes apresen- tadas continuamente, mas serem aceitas tio prontamente e sem dis- cussio em um mundo no qual tanto a ciéneia como a experiéneia cotidiana confirmam que 0 dbvio nao merece confianga. Nao existe tal credulidade ou falta de curiosidade, por exemplo, com relagio aos motivos do homicidio. Publicam-se milhares de histérias de mistério, de crime e de detetive, nas quais a explicagao dbvia é pers- crutada com sutil persisténcia pelo detetive herdi. E. significativo que nessas histdrias quase nunca se procura a explicagéo de um suicidio, mas a de um homicidio, A mais ligeira reflexio é suficiente para conveneer qualquer um de que explicagées tio simples quanto as mencionadas anterior- mente nfo explicam coisa alguma. A anilise popular do suicidio poderia ser reduzida a seguinte formula: “O suicidio é uma fuga de uma situagio de vida intole- rivel. Se a situagio é externa, visivel, o suicidio é corajoso; se a luta 6 interna, invisivel, 0 suicidio 6 loucura.” Esta concepgd 30 da autodestruicéo como uma fuga da realidade, da doenca, da des- graca, da pobreza ou de coisas semelhantes é sedutora devido a stia simplicidade. Equipara-se a outras fugas, como tirar férias ou gelebrar feriados, dormir, vaguear em delirio ou recorrer & em- briaguez. Contudo, existe uma diferenga essencial entre essas fugas, que tém tédas elas a natureza de substitutos tempordrios, e 0 suicidio, que nao é temporario. Nao se pode substituir alguma coisa por nada, como refletia Hamlet em seu célebre soliléquio. Pode-se considera axiomatico que a mente humena nao é capaz de con- ceber a inexisténcia e, porlanto, por mais agnéstica ou eética que a pessoa que cogita de suicidio possa acreditar ser, seu ato trai sua crenga em alguma espécie de vida futura mais tolerdvel que a vida presente. Por si s6 isso nfo é prova de que o suicida jé tenha comegado a aceitar a irrealidade em lugar da realidade de maneira irracional, pois a crenga na vida futura 6 aceita por milhdes de ‘pessoas € constitui o aspecto essencial de muitas religides. Embora seja rejeitada intelectualmente por muitos cientistas e outros, emo- cionalmente a expectativa de uma vida futura, ou melhor, de uma vida continua, é inerente ao inconsciente de todos nés. No incons- ciente nés ainda somos animais e nao ha razdo para acreditar que ‘animais temam a morte; em nés, humanos, é nossa int “que “torna todos nés covard ‘A anélise popular esbocada anteriormente se aproximaria mais da verdade, portanto, se fosse articulada de modo a dizer que o suicidio é uma tentativa de fuga de uma situagio de vida into- Ierdvel. Isso chamaria mais vivamente nossa atengio para sua irracionalidade e para o poder exercido em tais individuos pela fantasia. Deixaria ainda sem correcio o érro que existe na presun- cio implicita de que provém inteiramente de fora as forgas que induzem a fuga. O comportamento nunca é determinado apenas por forcas externas; ha impulsos de dentro, cujo ajustamento & realidade externa cria necessariamente pressées e tensdes que podem ser muito dolorosas, mas tolerdveis, exeeto para alguns. Poderiam ser reunidos intimeros exemplos da historia e dos registros clinicos cientifieos para mostrar que, para algumas pessoas, nenhuma rea- lidade, por mais terrivel que seja, é insuportével. Isso porque sabemos que o individuo, em certa medida, sempre cria seu proprio ambiente e assim o suicida ajuda de alguma ma- neira a eriar a propria coisa da qual foge através do suicidio. Por- tanto, para explicarmos 0 ato dinimicamente, somos forgados a pro- curar uma explicagio para o desejo de colocar-se em uma situacio da qual nao se possa fugir, a nio ser pelo suicidio. Em outras pa- lavras, se, para seus proprios propésitos inconscientes, a pessoa encontra na realidade externa uma aparente justificagéo para auto- 31 destruigao, os propésitos inconscientes tém maior significagio na compreensao do suicidio do que circunstancias externas aparente- mente simples e inevitaveis. Isso é muito bem apresentado por numerosos romancistas que descreveram a maneira como o homem que finalmente pratica sui- cidio comega sua autodestruigaéo muito tempo antes(*). O titulo de um désses romances(*) é derivado de uma lenda famosa, da qual esta é uma versio: Um servo procurou amedrontado seu senhor dizendo que féra ameagado pela Morte, com quem esbarrara na praca do mercado, e por isso desejava ir 0 mais depressa possivel para Samarra, onde a Morte nao o encontraria. O senhor deixou-o ir e dirigiu-se depois para, a praca do mercado. La, vendo a Morte, perguntou-lhe porque ameagara o servo. Ao que a Morte respondeu que nao féra uma ameaga, mas um gesto de surprésa por ver em Bagda o homem com quem tinha um encontro mareado para aquela noite em Samarra. A histéria tem sido atribuida a cérca de cingiienta origens, se- gundo Alexander Woolcott, inclusive a Longfellow, Voltaire e Cocteau, e tem sem dtvida origem muito antiga, segundo acredita Woolcott. Isso indica que a idéia de que a pessoa tem inexora- velmente um encontro marcado com a morte, embora ostensiva- mente se empenhe em fugir dela, é intuitivamente reconhecida como fenémeno comum da experiéncia humana, seja a férga propulsora em direcao 4 morte projetada sébre o Destino ou reconhecida como impulso auténomo. Todos nés sabemos agora que nao se pode confiar em motivos conscientes para explicar o comportamento humano. Ha muitos casos em que os motivos nao podem ser confessados, nao podem ser inter- pretados e, ainda mais pertinentemente, nao séo no minimo grau reconhecidos pela prépria pessoa. A psicandlise permite-nos em um caso particular vencer ésses obstaculos porque nos da acesso aos motivos inconscientes. Portanto, é através dessa fonte de estudo que podemos transformar a aparente irracionalidade do suicidio ou sua inadequada explicagio em algo inteligivel. As observagées jé se acumularam a tal ponto que isso pode ser feito, imperfeitamente sem duvida, mas pelo menos em esbogo. Sao essas conclusées que tenho o propésito de expor ao leitor de maneira sistematica. Para isso, porém, precisamos antes eliminar a ingénua nogao de que o suicidio é um ato simples e reconhecer que do ponto de vista psicolégico € muito complexo, independente- mente do que possa parecer. De fato, um obstaculo consideravel ao estudo do suicidio é a presungao popular de suas ligagées causais (7) Ver, por exemplo, Thomas Mann — Death in Venice, Knopf, 1925. (8) O Hara, John Appointment in Samarra, Harcourt, Brace, 1934, 32 simples. Se fdsse tdo simples, éste livro nfo teria a menor just fieagio, mas por outro lado suicidio seria infinitamente may comum. Anunciase um dia que um homem rico suicidou. Descobre-se que seus investimentos falharam, mas sua morte proporciona vul- toso seguro a sua familia, que sem isso ficaria desamparada, O problema e sua solugio parecem entio bastante simples e dbvios. Um homem enfrentou corajosamente a ruina de maneira a bene- ficiar seus dependentes. Mas por que comegariamos nossas interpretagdes sdmente neste ponto adiantado da vida de tal homem, o ponto em que éle perde sua riqueza?(*). Nao deveriamos procurar descobrir como éle che- gou a perdé-la? E, ainda mais pertinentemente, nio deveriamos indagar como éle ganhara, por que fora levado a juntar dinheiro e que meios empregara para satisfazer sua compulsio, que sent mentos de culpa inconscientes ¢ talvez também conscientes estavam associados a ela e que sacrificios e penas sua aquisigo custara a @e e sua familia? Além disso, mesmo aquéles que ganharam di- nheiro e o perderam na vasta maioria dos casos nfo se mataram, de modo que ainda nao sabemos quais foram os motives mais pro- fundos désse homem para tal ato determinado. Tudo quanto po- demos realmente ver em tal easo € como se torna dificil e com- plexo 0 problema assim que langamos um olhar mais que super- ficial sobre as circunstancias. Ou tomemos um exemplo representative como o do caixa do banco de uma cidade pequena, individuo quieto, amistoso, mere- cedor da confianca geral, conhecido de quase todos os membros da comunidade. Certa tarde, depois de encerrado o expediente do banco, éle se fechou em seu eseritério com um revélver e foi encon- trado morto na manhi seguinte. Descobriu-se posteriormente um deficit em seus livros ¢ ficou provado que éle se apropriara indé- bitamente de milhares de délares dos fundos do banco. Seus amigos durante algum tempo recusaram acreditar que fdsse possivel um homem tio conhecido e digno de confianga ter feito isso; final mente, porém, a opinifo geral foi que éle de repente se tornara (®) Existe uma nogio predominante de que a perda de dinheiro é causa comum, de suicidio e Goenga mental. Isso fol decmentido muitas vézes, mas persiste apesar disso. Meu irmio ¢ Leona Chidester examinaram estatisti- ‘eas © casos individuais a fim de mostrar que prejuizos financeiros, reais ou ImaginGrios, representaram porcentagem muito pequena do mimero total de fatéres que precipitaram doenca mental ¢ mesmo quando isso ocorreu foi menos froqiicnte durante a grande depressio financeira (1931-1934) do quo durante épocas melhores. Menninger, W. C., ¢ Chidester, Leona, The Role of Financial Loss in the Precipitation of Mental Illness, Journal of the American Medical Association, 6 de maio de 1932, p. 1.398. BS irracional, cedera a irresistivel tentagio e depois sucumbira ao remorso, do qual o suicidio fora a seqiiéneia apropriada, embora tragica. Algumas semanas mais tarde, porém, surgiu um névo angulo. Revelou-se que o homem tivera “um caso” com uma mulher, A explicago de seu suicidio que fora tao simples ficou entao atra- palhada; era preciso reabrir a questo © encontrar nova solucio. “f essa entéo a verdadeira explicagio do caso”, disse a gente da cidade. “Quando um homem casado e com filhos, sdbrio © respei- tavel, se envolve em um caso imoral logo esquece tudo sdbre a honra.” Outra versio foi esta: “Ele simplesmente precisava tirar dinheiro para manter a mulher. Foi ela quem realmente o matou.” Observadores mais ponderados, porém, cortamente investigariam a verdadeira significagio de um complicado caso sexual dessa espécie na vida de um homem que parecia normalmente ajustado, pelo menos para saber porque tal fascinagio o teria tornado incapaz de resistir & tentagio financeira. S6 alguns de seus amigos mais intimos sabiam que suas relagdes com sua espésa haviam sido muito infe- lizes e s6 seu médico sabia que durante vinte anos de vida con- jugal os dois haviam sido continentes devido a frieza da espdsa. “No fundo foi culpa de sua espisa”, diziam ésses poucos. “Ela sempre foi fria ¢ sem simpatia.” Contudo, nao ¢ evidente que isso ainda nao explica téda a questio — curso da tragédia? “Por que se casara éle com tal mulher? Nao poderia ter modificado as reages emocionais dela? Por que continuara a viver com ela durante vinte anos?” Entao alguém que tivesse conhecido ésse homem quando crianga poderia ter erguido sua voz: “Oh, mas yoeé no conheceu a mie déle! Exa também uma mulher fria e dura, mais interessada por dinheiro do que pelos filhos. Nao é de admirar que éle tenha sido incapaz de fazer uma escolha matrimonial mais inteligente ou de lidar com a espésa de maneira mais competente e satisfatdria. Sim, se voo8 tivesse conhecido a mie déle. . .” Levamos agora a corrente causal bem para tras da explicacio simples que parecia tio evidente aos conterraneos do homem. Vemos como era errénea ¢ superficial a explicagio inicial. Néo devemos presumir que o simples fato de estender os elos da cadeia elucide mais plenamente os motivos. O que faz é mostrar como 0 ato parece diferente a luz de cada indicio adicional, mas ainda dispo- amos apenas dos dados mais dbvios e externos. Nossa histéria esta um pouco mais completa que a dada pelo jornal, mas ainda nao explica porque a vida désse homem precisou ser tio crescentemente mal sucedida e porque éle precisou terminé-la com suicidio. Tudo quanto podemos ver 6 que ésse homem comecou a suicidar muito 34 tempo antes de tomar o revolver na mao e muito tempo antes de tirar o dinheiro do banco. Ainda nao sabemos porque éle nao foi capaz de mobilizar seus instintos de vida com mais éxito contra essas tendéncias destrutivas que o dominaram. Temos razio, porém, para presumir que éste método de lidar com a vida é determinado por alguma variagio, anormalidade ou fraqueza inerente a0 individuo ou pela aceleracio ou poderoso reférco das tendéncias destrutivas da personalidade durante o pe- riodo de formaggo da vida, Em qualquer dos casos, & evidente que as tendéncias autoderrotadoras surgem muito cedo na vida do individuo e influenciam fortemente todo 0 curso de seu desen- volvimento de maneira a obscurecer e finalmente vencer o benigno instinto de vida. Essa opinigo sébre suicidio afasta completamente os ingénuos julgamentos quanto & sua “bravura” ou “irracionalidade” e todas as explicagdes causais que aparecem nos resumos estatisticos e coisas semelhantes(), Psicoldgicamente, repito, 0 suicidio é um ato muito complexo e néo um simples, incidental e isolado ato de impulsao, légico ou inexplicdvel. A anilise de seus motives torna-se dificil n&o s6 devido 4 inseguranca dos motives conscientes e dbvios, mas especialmente pelo fato de um suicidio consumado ficar fora do alcance de estudo e (como veremos mais adiante) 0 malégro em conseguir éxito — mesmo no suicidio — tender a expressar com precisao a resultante matemitica de desejos componentes — cons- cientes e inconscientes — atuando como vetores. Se o homem descrito anteriormente ainda estivesse vivo e disposto a ser objeto de investigagio, poderiamos analisar as primeiras influéncias e experiéneias, ¢ determinar que tendéncias especificas causaram sua ruina. Este é um ponto importante porque é perfeitamente légico per- guntar como se pode falar em motivos de suicidio quando a pessoa estd morta e portanto nao pode ser psicanalisada. A resposta 6 sim- ples, porém. Foram feitos estudos psicanaliticos de muitas pessoas que tentaram o suicidio de maneira decidida e realistica, s6 tendo sido salvas devido a descoberta acidental por amigos, parentes ou (29) Anteriormente, mesmo os mais cientificos relatos de suicidio faziam essas ingénuas presungdes e 0 ato era atribuido com simples finalidade a lg an gyal ec canalsar: gel y scging mo quando ainda ha tendéncia a relacionar “fatdres precipitantes”, “fatores rrimarios” ¢ “fatdres secundirios”, © entre éles relacionar unidades como fadiga”, “dificuldades financeiras”, “solidio”, “desejo de atencio”, “maus métodos de estudo” e “casos amorosos”. Recente estudo (Raphael, Power e Berridge — The Question of Suicide as a Problem in College Mental Hy- giene, American Journal of Orthopsychiatry, snc de 1937, pp. 1-14) contém tabelas incluindo mais de 150 désses “fatéres”, cada um deéles apli- cado a um caso individual. Esses so sintomas, no fatires, 35 policia antes que o gas ou o veneno tivesse exercido plenamente seus efeitos(!), Além disso, alguns pacientes cometeriam suicidio durante seu tratamento se nfo fossem as medidas preventivas ado- tadas pelos médicos e enfermeiras. Os motivos désses individuos sio empiricamente conhecidos por nés. Finalmente, tendéncias ao suicidio, incompletas, mas claramente definidas, aparecem no de- correr do tratamento psicanalitico de muitos pacientes. E uma combinagio dos resultados de observagio psiquidtrica e psicanali- tica em todas essas oportunidades de pesquisa, feitas nfo s6 pelo autor, mas também por muitos predecessores e contemporaneos, que constitui a base do que se segue. TRES COMPONENTES DO ATO SUICIDA Nao é dificil deseobrir no ato de suicidio a existéncia de varios elementos. Antes de tudo é um homicidio. Na lingua alema é literalmente 0 homicidio de si proprio (Selbstmord) e em todos os equivalentes filolgicos mais antigos a idéia de homicidio esta impli- cita. Todavia, o suicidio ¢ também um homicidio por si proprio. E uma morte na qual estio combinados em uma s6 pessoa 0 assassino eo assassinado. Sabemos que os motivos de homicidio variam enormemente e 0 mesmo acontece com os motivos do desejo de ser assassinado, o que 6 uma questio inteiramente diferente e nao tio absurda quanto possa parecer. Isso porque, havendo no suicidio um eu que se submete ao homicidio e parece desejoso de fazéo, (41) Ocasionalmente as vitimas de suicidio reconhecem © confessam al- guns dos motivos inconscientes que induzem ao ato, durante o intervalo en- tre a execucéo do ato ¢ 0 momento da morte. Isso & particularmente vi- vido em casos como os representados pelos seguintes recortes de publicagées: MATOU-SE QUANDO SONHAVA Viveu apenas o suficiente para explicar o estranho disparo ROSEBURG, Oregon, 13 de marco AP) — Um tito de revélver disparado durante um sonho, segundo informou aqui a policia estadual, matou Phillip Pozoldt, proprietério na remota regiio de Diamond Rock. Ouvindo um tiro, a sra, Louis Neiderheiser foi até o quarto de Pezoldt em sua cabana e encontrou-o agonizante, segundo relatou as autoridades. Disse que éle contou arquejante que estava sonhando, tirou um revélver debaixo de seu travesseiro e disparou-o contra si préprio, Topeka Daily Capital, 14 de marco de 1935. Em Staunton, Vancouver, Arthur Fournier adormeceu em um énibus, sonhou que estava dormindo em um navio que afundava. Ainda adormedi- do, levantou-se e gritou: “Ble esti afundando! Saltem para salvar suas vidas!” Nao sendo tolo para permanecer em um navio que afundava, Ar- thur Fourier saltou pela janela e morreu, Time, 9 de novembro de 1931 36 devemos procurar os motivos dessa estranha submissao. Se o leitor imaginar uma cena de batalha, na qual um homem ferido esta sofrendo muito e implora que o matem, compreenderd prontamente que os sentimentos do homicida seriam muito diferentes, conforme fésse éle amigo ou inimigo do homem feriao; os do homeni que deseja ser assassinado, isto é, ser livrado de sua agonia, seriam iguais em ambos os casos. Em muitos suicidios ¢ perfeitamente evidente que um désses elementos é mais forte que o outro. Vemos pessoas que querem morrer, mas nfo séo capazes de dar o passo contra si préprias; jogam-se diante de trens ou, como o rei Saul e Brutus, rogam a seus escudeiros que as matem. Por fim, provavelmente nenhum suicidio é consumado a menos que — além de seu desejo de matar e de ser morta — a pessoa suicida deseje também morrer. Paradoxalmente, muitos suicidas, apesar da violéncia do ataque contra si proprios e apesar da corres- pondente rendigio, nio parecem muito ansiosos por morrer. Todo interno de hospital j4 lidou na enfermaria de emergéncia com can- didatos a suicidio que Ihe imploram para que salve suas vidas. O fato de morrer e ser morto atingirem o mesmo fim no que se refere @ extingéo pessoal leva o individuo de mentalidade pratica fa pensar: “Se uma pessoa desoja matarse ou se se sente tao mal em relagio a alguma coisa que esté disposta a ser morta, certa- mente também deve desejar morrer.” Todavia, o exemplo dado ha pouco 6 apenas uma das muitas indicagdes de que tal ndo acon- tece. Matar ou ser morto envolve fatéres de violéncia, enquanto morrer se relaciona com a entrega da vida e felicidade da pessoa. Uma discussio mais completa désses dois elementos serd apresen- tada mais adiante. No momento, é suficiente acentuar que na tentativa de suicidio o desejo de morrer pode estar ou nio estar presente ou pode estar presente em grau muito varidvel, o mesmo podendo acontecer com os outros desejos mencionados. Resumindo, portanto, o suicidio deve ser considerado como uma espécie peculiar de morte que envolve trés elementos internos: 0 elemento de morrer, 0 elemento de matar e o elemento de ser morto. Cada um déles exige andlise separada. Cada um déles é um ato para o qual existem motivos, inconscientes e conscientes. Os ultimos sio em geral bastante evidentes; os motivos incons- cientes serio agora nosso principal objeto de consideragio. 1. O DESEJO DE MATAR O instinto destrutivo que dorme até mesmo no coracio da crian- cinha comega a tornar-se aparente como agressividade dirigida 37 externamente acompanhada de raiva quase desde o momento do nascimento. Experiéneias feitas por psicdlogos de comportamento(!*) e observagdes de analistas de criangas(™) tornaram claro além de qualquer dtivida que contrariar ou ameacar contrariar o bebé, por mais névo que seja, provoca intenso ressentimento e protesto. Nao precisamos de experimentagao para mostrar que 0 mesmo acontece com. adultos("*), A perturbagao do conférto pré-natal da crianga pelo violento ato do nascimento é a primeira dessas contrariedades(*), “~Wiais concretamente aparentes sio as reagées da crianga & apro- ximagao de um rival ¢ & ameaga de privagao de satisfagées como amamentagio. Essas ameacas vigorosamente enfrentadas por ataque provocam de pronto os impulsos agressivos (antes auto-absorvidos). Em esséncia, 0 objeto do ataque ¢ a destruigao do intruso. Ligados a isso ha sentimentos de ressentimento e de médo médo de represilia e de outras conseqiiéneias. O resultado liquido é 0 desejo de eliminar a fonte da ameaga de privagio, do objeto do médo. (Pode haver subseqiientemente médo de conseqiiéncias provenientes de outros setores.) Eliminar, afastar, aniquilar sio todos sinénimos eufemisticos de destruir. Tais desejos, na linguagem pratica mais especializada do adulto civilizado, representam simplesmente o desejo de matar — nao em seus aspectos sadisticos agradaveis, mas em seus primitivos propésitos autodefensivos. Comumente, é claro, exceto na sociedade incivilizada de selvagens, criminosos e psicdticos, ésse desejo é ini- bido. E inibido por numerosos fatéres, externos e internos, que discutiremos pormenorizadamente mais tarde. O mais poderoso désses dissuasores é um impulso neutralizador, que resulta igual- mente da vida instintual do individuo. As agressoes sio atenuadas (22) Watson, J. B. — Psychology from the Standpoint of a Behaviorist, Lippincott, 1924, 18) Klein, Melanie — The Psychoanalysis of Children, Norton, 1932. (24) Contudo, s6 recentemente a psicologia investigou esta questfio de maneira experimental e quantitativa. Ver, por exemplo, Dembo, T., Der ‘Arger als Dimamisches Problem, Untersunchungen zur Handlungs und Afjekt- prvchologie, Vol. X, organizado por K. Lewin, Psychologische Forschung, lim, 1931, Vol. XV, pp, 1-144; Lewin, K., A Dynamic Theory of Per- sonalitk, McGraw-Hill, 1935; Brown, J. F., The Modified Dembo Technique, Bulletin of the Menninger Clinic, julho de 1937; Watson, J. B., e Watson, Rosalie Rayner, citados em Watson, op. cit. Rosenzweig, S., A Test for Types of Reaction to Frustration American Journal of Orthopsychiatry ou- tubro de 1935, pp, 395-403. ~ (35) A importancia do trauma do nascimento apontada pela primeira vez por Freud e depois desenvolvida ao ponto de énfase excessiva por Rank é ( variadamente interpretada; hi pouca diivida, porém, de que ela estabelece © padréo para tddas as ansiedades de frustracio subseqiientes, como as que \\ se relacionam com a desmama, o afastamento dos pais, etc. 38 pela mistura de sentimentos positivos; 0 édio, como vimos, torn se amor, de maneira mais ou menos completa. O intruso passa a Ser um sujeito nio muito ruim, com quem Vale a pena negociar, mais tarde cooperar e mesmo aliarse. O leitor pode pensar em numerosos exemplos disso: 0s gregos ¢ os romanos, os saxdes € 05 normandos, os indios americans e os colonizadores e numerosos exemplos pessoais do inimigo declarado que se torna amigo cordial. Isso nem sempre acontece, naturalmente; as vézes a hostilidade é grande demais para ser vencida e as vézes é de tio curta duragio que nao conseguimos sequer lembrar de ter tido outra coisa além dos mais benignos sentimentos em relagio ao individuo desde o inicio(?). Trata-se de um principio acentuado por Freud, a saber, que a hostilidade em geral abre caminho para 0 contato com novos objetos, que 0 quente manto do amor cobre depois aos poucos como ‘vegetagio que progressivamente reveste uma encosta pedregosa. Se os impulsos destrutives, o desejo de matar, sejam dirigidos para fora ou voltados para o cu, forem suficientemente neutrali- zados de modo a desaparecerem completamente por tras das evi: déncias de sentimentos positivos construtivos, o resultado nao sera mais destruigéo ou homieidio, mas construgio e eriagao, a formagio de vida e nao a eliminagio de vida. Nesse sentido, a procriagao, 0 ato do coito, é a antitese polar do homicidio. Construtividade e cria- tividade podem ser dirigidas, naturalmente, para outra forma além dessa forma biolégica imediata. E em deferéncia velha moral que sustentava que quanto mais primitive um processo, “mais baixo” era, ésses “desvios para cima” foram chamados de sublimagées. Um desvio ou deslocamento lateral — por exemplo, matar um veado em lugar de um membro da familia — nfo 6, estritamente falando, uma sublimagdo, embora &s véres assim o chamemos. Se a infusao do elemento erstico, do “instinto de vida”, nao é suficientemente forte para neutralizar as tendéncias destrutivas, pode ainda assim alterar consideravelmente seu caréter, de modo que a destruigio, embora ainda seja o objetivo e a realizagao, se torna menos completa e executada menos diretamente. Pode haver uma alternagio de propésitos; vé-se isso nas mudancas de disposi¢ao ¢ sentimento entre amantes, amigos e inimigos. A gente imagina poder observé-lo nas ondas alternadas de crueldade ¢ compaixao demons- tradas por um gato em relacio ao camundongo capturado ou por alguns pais em relago a seus filhos. Todavia, em sua forma mais (28) Um cuidadoso estudo da importincia dos motivos inconscientes que determina o desejo de matar, a escolha da pessoa morta e o método em- pregado para maté-la, e da confissio final do crime 6 encontrado em The Unknown Murderer de Theodor Reik, Londres, 1936 (tradugio inglésa da dra. Katherine Jones). 39 conheeida a crotizagao pareial da crueldade aparece como sadismo — a ebuligao de prazer consciente no ato de destruigio. Tao desagradavel é éste fenémeno em suas manifestagdes mais cruas que a primeira vista parece dificil acreditar que possa repre- sentar alguma melhora. Tende-se a pensar que a erotizagio da erueldade aumenta ao invés de diminuir sua viruléncia. 0 homem que bate em um cavalo e dé demonstragio de prazer sensual ao fazé-lo desperta em nés maior ressentimento que o homem que, mesmo por raiva e sem outra razio boa, mata a tiro seu cavalo. Pensamos no primeiro como estimulado a sua maior crueldade pelo que chamamos de sexualidade pervertida ¢ anormal. E nisso esta- mos certos em parte. Sua sexualidade é pervertida por ser par- cial(!"); se fésse completa, impedi-lo-ia nfo s6 de matar o cavalo, mas também de bater néle. © homem que mata logo seu cavalo pode parecer mais humano, mas a ldgica obriga-nos a considerélo menos civilizado e mais destrutivo até mesmo que o chicoteador sadico, Isso se torna imediatamente evidente se substituirmos o cavalo por uma crianga. O homem que mata seu filho por irritagio ou por qualquer causa é considerado pela sociedade como digno de morte, A erotizagio parcial da agressividade incontrolavel désse homem poderia ter substituido o homicidio por um lascivo agoita- mento da crianga, que poderia levalo & cadeia ou ao asilo, mas certamente nao seria um crime capital. Um pouco mais de erotizagio e 0 que chamamos de sadismo funde-se naquelas bondades severas e ostensivas que caracterizam muitos mestres-escola, juizes e outras pessoas com autoridade, os quais aplicam amorosamente o que asseguram a sua vitima “ferix- me mais do que a vocé”. Isso nem sempre é punigio. Pode ser uma insisténcia compulsiva em favor da regra e do ritual em nome de um elevado ideal — lei, educagio, religiio ou formagio do carater. A hipocrisia disso em geral absolutamente nao é reconhe- cida por seus autores, mas é reconhecida por suas vitimas. A destrutividade voltada contra o eu pode ser erotizada parcial ou completamente. As vézes ésse prazer em torturar-se, do qual falaremos de névo na proxima segio, parece aumentar as motivagées (27) Técnicamente, esta é uma explicagao incompleta, No sadismo nao hf apenas uma erotizagio insuficiente, mas hi uma fusio incompleta das tendéncias instintuais, e a tendéncia erdtica fica ligada ao ato e nio ao objeto. Por exemplo, o acoitamento prdpriamente dito, independendo em parte de qual cavalo, crianga ou mulher é agoitado, torna-se erotizado, tor- na-se um fim em lugar de um meio. Isso implica em certo aumento no narcisismo, pois o ato & sempre mais estreitamente ligado ao sujeito (seu autor) do que ao objeto, Téda essa questo ainda esta, porém, envélta em considerivel obscuridade, mas a formulagéo ‘cima servirh. ace propéstos déste texto. 40 de autodestruigio. Realmente, devemos lembrar-nos de que éle sempre representa uma graga salvadora — insuficiente, é claro, mas bastante para mudar a cér e a aparéncia, seno efetivamente contrariar a destrutividade total do ato. Freqiientemente se vé como, depois de tal provocagio, a maré vazante da agressividade s6 & impedida de efetuar o suicidio ime- diato pela mais valente e persistente luta por parte dos impulsos eroticos. As vézes em uma série de episédios pode-se ver os ultimos perdendo terreno e 0 suicidio efetivo ocorre finalmente. Um caso désses eu ja relatei antes (o do caixa que deu um desfalque). Em outras ocasides, o instinto de vida parece predominar um pouco sobre as tendéncias destrutivas e segue-se uma série de episédios nos quais ha decrescente malignidade. Por exemplo, um homem que eu conheci ficou com tanta raiva de seu irmio que cogitou conscientemente de mata-lo; conteve-se, porém, nao apenas devido A lei c outras conseqiiéncias, mas porque, por causa de sua mie, sentia profunda obrigagio protetora em relagio a seu irmio. Ficou com tanto remorso ao contemplar o que considerava como seus desejos criminosos que féz varias tentativas de suicidio, tédas as quais falharam completamente. Por motivos que nio Ihe eram inteiramente claros, comecou depois a dirigir seu carro com impru- dente abandono que parecia certamente levar a um resultado desas- troso. Contudo, apesar de varios acidentes graves, nfo foi morto. Em seguida, concebeu a idéia de expor-se a alguma doenga que o matasse e deliberadamente tentou contrair sifilis por meio de reps tidas exposigdes. Contudo, s6 conseguiu apanhar gonorréia, de cujo tratamento se descurou completamente. Voltou-se entao para o alcool em uma série de bebedeiras. Apesar de tudo isso, continuou até ésse tempo a gozar das boas gragas de sua espésa e seu empregador, ambos os quais conheciam tio bem suas virtudes que nio se deixavam cegar por seu inexplicdvel com- portamento. Todavia, conseguiu depois brigar com ambos e perdeu sua posigao, provocando deliberadamente discussdes com seu empre- gador e exasperando sua espésa até o ponto de divércio com decla- rages de que nfo a amava. Longa e variada como é esta lista de agressées dirigidas contra si proprio, pode-se ver que representa uma série de intensidade decrescente. O suicidio real foi evitado. Foram evitadas também as conseqiiéneias graves da maioria dos outros episédios; logo o homem arranjou outro emprégo e a espésa voltou para sua com- panhia. Uma fusio mais completa de impulsoe construtivos e destrutivos resulta naquele apégo positive a objetos do ambiente que cons- titui a vida amorosa normal, evidenciada pela capacidade de discri- minagio entre verdadeiros inimigos e verdadeiros amigos, entre 41 as coisas que devem ser odiadas e destruidas no interésse do bem pessoal e publico, e as coisas que devem ser amadas. Crescimento da personalidade, educagao, capacidade social e poder criativo sé se tornam possiveis quando essas agressdes sao cada vez mais diri- gidas para fora e nao para dentro, focalizadas sobre objetos apro- priados de ataque e completamente neutralizadas pelo amor quando tais objetos sao desejaveis. Dessa maneira o auto-amor e o auto- édio, o narcisismo primdrio e a autodestrutividade primaria sio tirados de sua preocupagao primitiva com o eu e proveitosamente investidos no mundo exterior. Em certas circunstancias, porém, ocorre um rompimento em tao confortavel e satisfatéria distribuigio de energia. O amor e ddio bem investidos desprendem-se de seus objetos de apégo e exigem reinvestimento. Até certo ponto, é claro, isso acontece constante- mente, em especial nos anos em que somos mais jovens e mais ativos. Em varias condigées, porém, sao necessdrios repentinos reinvestimentos de grandes quantidades de energia — resultando situagdes dramaticas que provocam uma interrupgio forgada do ajustamento anteriormente confortavel. Ou entio pode ser encon- trada crescente dificuldade para manter um reajustamento aparen- temente satisfatério. E facil imaginar quais acontecimentos repen- tinos produzem essa necessidade de reajustamento: a morte de uma pessoa amada ou, nesse sentido, a morte de uma pessoa odiada, a repentina diminuigao de oportunidades de trabalho, a perda de um emprégo, uma falsa acusagio ou incriminagio — tudo, enfim, que torne de repente necessdrio reinvestir amor e particularmente édio pela repentina interrup¢io ou ameaga de interrupgao de investi- mentos estabelecidos. Mais tarde tratarei com mais pormenores da natureza especifica désses acontecimentos precipitantes. No mo- mento, estamos interessados no que acontece ao fluxo interrompido de amor e édio assim repentina e forgadamente sélto de suas amarras exteriores. Na pessoa normal, vale dizer na maioria das pessoas, depois de um periodo tempordrio de dor e ansiedade, ha um gradual reinves- timento em novos objetos. Em certos individuos, porém, cujas peculiaridades predisponentes discutiremos mais tarde, isso nao ocorre — nao pode ocorrer. Pelo contrario, os lagos de amor e édio, antes fundidos, sio entao privados de seu objeto, ficam separados e ambos voltam a seu ponto de origem — o préprio indi- viduo. Mais uma vez entéo, como no comégo, os impulsos agres- sivos ou destrutivos tomam a dianteira seguidos mais ou menos de perto pelos impulsos eréticos. Se a distancia é muito grande, os impulsos destrutivos atingem seu alvo — a destruigio. Na medida em que as tendéncias construtivas alcangam e neutralizam seus 42 predecessores inclinados para a morte, o efeito suicida ¢ desviado, adiado ou completamente contornado. Em outras palavras, a teoria de suicidio 6 que o desejo de matar, inesperadamente privado de certas oportunidades ou objetos exter- nos de satisfagio inconsciente, pode voltar-se para a pessoa de “quem deseja” e ser executado como suicidio. Essa teoria corres- pondera aos fatos se (a) for possivel mostrar que existe efetivamente um reflexo das tendéncias destrutivas sdbre o proprio individuo de modo que o eu seja tratado como se fésse um objeto externo; se (b) fér provado em exame que pessoas propensas a suicidio so altamente ambivalentes em scus apegos a objetos, isto é, disfarcam com seus apegos positives conscientes grandes e mal dominadas quantidades de hostilidade inconsciente (0 desejo de matar); e se (c) em tais individuos 0 suicidio fér efetivamente precipitado por ocasides de repentina interrupgio nos apegos a objeto, correspon- dentes as que foram sugerides ha pouco('*). Aplicaremos ésses trés testes pela ordem, considerando primeiro a questio de saber se é possivel a um individuo tratar a si proprio como objeto externo, freqiientemente identificado eom 0 préprio objeto para o qual cram dirigidos seu amor e ddio, e particular- mente seu desejo inconsciente de matar. Sabemos pelas fantasias de pacientes adultos, pelos sonhos, sen- sagdes, lembrangas ¢ atos repetitivos e padrées de comportamento, que no inconsciente, nas camadas infantis primitivas da mente, 6 possivel encarar 0 proprio corpo como nio sendo parte da gente e 6 também possivel tratar 0 proprio corpo como se incluisse o corpo de alguma outra pessoa. Este ultimo fato chamamos de identificagao(!) ou, mais precisamente, de introjectio, porque a pessoa identifieada parece ser introjetada no eu. Assim uma mae que sente vieariamente 0 prazer de sua filha ao ir para o colégio, por exemplo, faz isso pelo processo psicoldgico de identificar-se com a filha, isto é, estar dentro, fora e em torno da filha. O homem que ama leva figuradamente sua namorada para dentro de si. Por isso, todo tratamento que deseje dar 4 outra pessoa pode entiio ser realizado — logicamente — sobre si proprio, Essa volta de sentimentos hostis contra o eu, quando tal introjegao ¢ feita (muitas vézes inconscientemente), tem assim uma utilidade psicolégica. FE. © conhecido estratagema de “dar um pontapé no gato” usando a si proprio ( préprio corpo) como gato. (38) Nao hé necessidade de mostrar que essa forma de autodestrutivi- dade 6 uma expresso direta de tendéncia instintual primitiva; essa é uma hipétese de Freud que no pode no momento ser verificada, mas que se ajusta bem aos fatos e ainda nao sofreu contradigao, (1) Em psicandlise chamamos de “identificacio” 0 sentimento em re- lagio a uma pessoa como se ela fdsse outra pessoa e de “introjecio” 9 identificagio de outra pessoa com o eu, 43 Por exemplo, eu jogava gélfe as vézes com um amigo muito irascivel mas decente, que em geral era sensivel ao mais ligeiro barulho ou perturbagéo quando estava dando uma tacada. Seu caddy certa ocasifio teve o infortinio de sofrer um acesso de solugos que aborrecia cada vez mais meu amigo. Este conseguiu contro- lar-se quase até o final do jégo, quando estava tentando uma tacada muito dificil e o tenso siléncio foi interrompido pelos intiteis esforgos do caddy para conter seu diafragma. Meu amigo endireitou-se rapidamente, com as feigdes contraidas de raiva, e ia explodir em palavrées quando algumas jogadoras suas conhecidas, deixando o tee vizinho, passaram perto de nés. Meu amigo conteve suas pa- lavras instantaneamente, mas em um gesto de furiosa exasperagio, girou o taco em um largo arco, ao final do qual a ponta do taco, bateu em seu proprio tornozelo com férga suficiente para provocar um uivo de dor e fazer com que éle fésse manquejando para a sede do clube. Pouco tempo depois li no jornal a noticia de um homem que de fato quebrara a perna de maneira exatamente igual. Nao é claro neste caso que o desejo do homem de golpear o caddy foi descarregado contra si préprio como substituto? Algumas pessoas percebem imediatamente a verdade intuitiva dessa declaragio, mas para outras a coisa inteira parece fantistica. “Foi apenas um acidente”, dirao elas. “Ele perdeu o contréle na raiva e aconteceu do taco atingi-lo. Como vocé sabe que era essa sua intengao?” Ha numerosas razées para que pensemos assim. Em primeiro lugar, as vézes as vitimas nos dizem isso se Ihes perguntarmos. O mal é que em geral elas também nio sabem. Podemos com fre- qiiéncia deduzir isso das circunstincias que cercam o fato. Todo homem nota, por exemplo, que tem maior tendéncia a cortar-se quando faz a barba se esté zangado com alguém e freqiientemente se ouve homens dizerem: “Hoje de manha eu descarreguei em mim mesmo.” Uma amiga minha, espésa de um médico em cuja casa eu estava hospedado, ficou muito zangada com sua empregada por preparar mal o jantar; contudo, a fim de evitar uma cena, pagou a empregada e despediu-a sem dizer nada, mas entrou na sala de estar carregada de emogio e jogou-se na poltrona de onde se levan- tara apenas poucos momentos antes. Na poltrona havia deixado sua tesoura, que entao penetrou em sua coxa até uma polegada mais ou menos. Minha amiga saltou da poltrona e, em sua dor e exasperagaio, exclamou: “Foi tudo culpa da empregada!” Por mais ilégico que parega ésse raciocinio, era, em certo sentido, absoluta- mente verdadeiro. Freqiientemente se 1é no jornal (por exemplo, no que tenho nas mos ao escrever isto) que um rapaz, repreendido por seu pai devido a alguma pequena negligéncia, se enforcou no celeiro poucas 44 horas depois. Estamos acostumados com intuitiva preciséo a explicar tais agdes com base em vinganca. Todo leitor poder lembrar-se de casos semelhantes em sua infancia, que provocaram sentimentos semelhantes, mas felizmente foram satisfeitos em imaginagio, nfo em acdo. Imaginamos como nossos pais ficariam tristes por nos terem maltratado como haviam feito. Mas ésse rapaz foi mais longe. Seu édio era tio grande que éle se mostrou disposto a sacrificar « propria vida para dar-lhe vasio. E claro que seu ato feriu o pai, mas nao tanto quanto feriu a éle proprio. Deve ter sido a seu pai que éle realmente desejava matar. Sabemos que alguns rapazes matam seus pais em circunstancias idénticas, mas evidentemente ase rapaz niio podia fazer tal coisa; talvez amasse demais o pai para maté-lo, talvez o temesse demais; talvez temesse as circuns- tncias; seja como for, nao podia fazer tal coisa, O que podia fazer era matar o pai que existia dentro de si préprio, técnicamente, o pai introjetado, Todo menino introjeta seu préprio pai em certa medida durante os anos que passam enquanto éle esta crescendo; provavelmente muitos homens que estéo lendo isto sio capazes de reconhecer conscientemente que Ievam seu pai consigo no cora No pensamento primitivo do inconsciente isso nao é mera figura de retérica. Ha poucos anos encontrei no jornal esta noticia tipica: PERDAS NA DOLSA CAUSAM sUICIDIO Deixando um bilhete no qual indicava que perdas na bélsa de titulos 0 deixaram na miséria, A. B, C., de 32 anos, aviador da Guerra Mundial, pos térmo & vida com veneno, ontem, em um quarto do Hotel M. Uma arrumadeira encontrou o corpo algumas horas depois de sua morte. Perto déle havia um copo e o vidro que continha 0 veneno, Um post scrip- tum em um bilhete que deixou para sua irma, sta. D. E. T., com ende- réco no Hotel G., em Nova York, explicava o motivo de seu gesto. Dizia: “Dei tudo quanto tinha aos corretores na rua esta manhé.” Chicago Herald and Examiner, 17 de novembro de 1930, A interpretagio que seria comumente dada a tal noticia pelo leitor ocasional ou pelo moralistico escritor de editoriais provavel- mente seria que o jogo na bélsa de titulos arruina algumas pessoas e que algumas delas “nao sio capazes de suportar isso” Explicagées assim faceis tém exatamente aquelas deficiéncias que discutimos antes. Sio excessivamente simples e banais. Nio levam em conta os violentos conflitos emocionais que se travam no coragao da vitima. Naturalmente, sem outros detalhes além dos mencio- nados na noticia do jornal, nfo podemos saber quais foram éles, mas a tiltima frase nos dd uma pista significativa. Sugere forte- 45 mente contra quem se inflamou o édio désse homem. Nao é uma mera explicacao; é uma rancorosa acusagao. Quase se pode ouvir essa vitima dizer: “Como fui tolo!” Por mais verdadeiro que isso seja, devemos lembrar-nos de que tolos nao se matam. Sao mais capazes de matar aquéles que os fizeram de tolo. Desconfio, de fato tenho quase certeza, com base em minha expe- riéncia clinica, que ésse homem identificou o corretor consigo mes- mo e matando-se estava na realidade pretendendo matar simbilica- mente o corretor. Disse isso a um amigo meu que riu da idéia. “Posso entender”, disse éle, “que ésse sujeito talvez desejasse um pouco ser corretor pois estava tio interessado na bélsa de titulos e posso entender como éle talvez tenha odiado o corretor, mas se queria matar o corretor, por que nao o matou?” Neste caso particular, nao sei porque éle nao matou o corretor diretamente e nao indiretamente. Isso sé poderia ser apurado apés horas de paciente investigagao sébre todas as complicagdes da vida mental désse homem. Mas meu amigo era um individuo intelec- tualmente honesto. Algumas semanas depois, trouxe-me o seguinte recorte, datado realmente de poucas semanas antes da data do pri- meiro recorte: CLIENTE MATA CORRETOR E POE TERMO A PROPRIA VIDA FILADELFIA, Pensilvinia, 10 de outubro (AP) — G.H.J., de 32 anos, membro de uma familia de ‘projecio social e funcionrio de confianca de C: Co, corretores de titulos, fot morto a tiros hoje nos escritérios da Com- panhia por um ex-cliente, que em seguida disparou a arma contra si pré- prio, morrendo posteriormente no hospital. Foi alvejado trés vézes quando falava com o ex-cliente... Chicago Tribune, 11 de outubro de 1930. “Encontrei isto”, disse meu amigo, “e estou agora um pouco mais inelinado a acreditar em sua explicagio. Como vé, éste sujeito matou mesmo o corretor! De acérdo com sua teoria, acho que éle o matou duas vézes.” Meu amigo presumiu que eu estava meramente teorizando, por- que nfo esta familiarizado com a literatura psicanalitica. Os exem- plos que dei so, é claro, absolutamente inconvincentes para quem deseje prova cientifica. Nao os apresento como prova, mas apenas como exemplos existentes do que acontece e de como éles se ajustam com precisio explicagao oferecida. Seria possivel reunir estatis- ticas para mostrar a mesma coisa — isto é, que os indices de sui- cidio e homicidio mostram uma relacao inversa constante. Nos paises catélicos ha em geral indice mais alto de homicidio e indice ‘mais baixo de suicidio. Todavia, mesmo estatisticas nao provam 46 nossa tese. A prova realmente depende de paciente investigagio de exemplos que ficam sob nossa observagio durante o tratamento de individuos que estéo estudando intensivamente seus prdprios motivos. Citarei alguns désses exemplos clinicos mais adiante. Consideremos agora mais minuciosamente a pergunta feita por meu cético amigo: Por que ésses individuos que fervem de raiva nao matam a outra pessoa? Por que njo atacam o verdadeiro objeto de seu édio ao invés de descarregar seu édio sébre alguém ou alguma outra coisa de maneira indireta? Numerosas razées evidentes por si mesmas ocorrem 4 mente. Por exemplo, a resisténcia oferecida pela realidade pode ser grande demais — o objeto atacado pode ser mais poderoso que o atacante. Ou ent&o o ataque a um inimigo pode ser inibido por varios fatéres internos, principalmente o médo. Ha, antes de tudo, o médo das conseqiiéncias, um médo inteligente e justificavel. Natu- ralmente a pessoa teme o castigo de ir para a penitencidria ou para a férca. Existem, porém, outros médos que sao ainda mais dissua- sivos do que ésse; por exemplo, o médo que tem origem na cons- ciéncia. Provavelmente alguns de nés cometeriam muitos crimes se pudessem escapar impunes, mas por outro lado ninguém pode escapar inteiramente de sua consciéncia e em alguns casos ela é tremendamente poderosa. Sem divida, € possivel fazer negécio com a consciéncia, de tal modo que alguns individuos incapazes de furtar um niquel da companhia de bondes podem enganar seu competidor em centenas de délares sem o menor remorso. Um indi- viduo assim, como o personagem da fabula de Esopo que poupou as cobras e matou as minhocas, talvez nao hesitasse em cometer homicidio (no que tange a sua consciéncia) se lhe fésse permitido fazer uma ligeira expiagio em algum outro sentido. O fato, porém, é que a consciéncia é um forte dissuasor e um juiz severo. Muitos homens, s6 por ésse motivo, acham mais facil matar sua vitima indiretamente, isto é, atacando a si préprios — como o credor ja- ponés que se matou diante da porta de seu devedor. Existem, porém, outros médos além do médo das conseqiiéncias e da consciéncia. Um désses médos que mina a férga do impulso agressivo pela intimidagio é 0 médo de intengao hostil na outra pessoa, um médo que amplia além da realidade o perigo do adver- sdrio. A pessoa com freqiiéncia percebe no intimo que superestima o poder ou a maldade do inimigo, porque esta falsamente atribuindo ao inimigo algo do édio que sé ela sente. Um pouco disso serve como excitagéo, mas 0 excesso serve como intimidacio. A intimi- dagio precisa de um desvio do objetivo e, em conseqiiéncia, é alguma outra pessoa ou, mais convenientemente, 0 eu, que suporta 0 péso do ataque. 47 Finalmente, a nao execugio de uma agressio direta pode ser resultado de enfraquecimento pela mistura de elementos eréticos. Quer isso dizer simplesmente que achamos dificil demais matar alguém que amamos. Amor e édio sempre atuam simultaneamente, embora as proporgdes possam variar. Ja expliquei que o principio psicolégico fundamental é que o amor tende a seguir o ddio e neu- tralizé-lo, assim como os venenos de um rio sio gradualmente puri- ficados pelo oxigénio do ar. Conseqiientemente, se o ddio, isto é, a destrutividade, nao se mostra suficientemente expedito ou pode- Toso em sua agao, é obstado, frustrado pelo desenvolvimento dessa infusio erdtica. Com freqiiéncia se vé isso em guerras, particular- mente em guerras demoradas, e em lugar nenhum mais claramente que no registro biblico do conflito entre os judeus e os filisteus, onde a constante ansiedade dos lideres espirituais de Israel era cau- sada pela possibilidade de serem estabelecidas relagées amistosas, intercambiados costumes e depostas as armas. Sansao, como protd- tipo dos israelitas, lutou valentemente até quando o elemento eré- tico, isto é, sua afeigao pelos filisteus, por um déles em particular, minou sua férca de maneira tornada diagramaticamente clara pela conhecida histéria. Passamos assim da aplicagéo do teste de introjecio psicolégica para a consideracao de dois outros testes, o do cardter da persona- lidade de individuos fortemente dados a introjegio e o da natu- reza dos acontecimentos que a precipitam. Dificilmente podemos separd-los, mas vamos tentar. O que ha de caracteristico em ntimero muito grande de suicidios 6 a aparente impropriedade do agente precipitante. Ja vimos que éstes acontecimentos precipitantes nfo podem ser considerados por seu valor aparente, mas examinemos alguns déles. Uma méca matouse porque ficou deprimida depois de cortar seus cabelos; um homem matou-se porque foi obrigado a deixar de jogar gélfe; uma mulher suicidow-se depois de perder dois trens; um menino pés térmo & propria vida porque seu candrio morreu. Essa lista poderia ser estendida até 0 infinito. Todo leitor serd capaz de pen- sar em alguns exemplos(2°). Nesses casos, os cabelos, o gélfe e 0 canério tinham um valor exagerado, de modo que quando foram perdidos ou quando houve ameaga de serem perdidos, o recuo dos lagos emocionais cortados foi (#0) Alguns dos exemplos acima foram tirados de nossos préprios arqui- vos. Outros sio mencionados em um artigo intitulado New Reasons for Suicide, Current Opinion, junho de 1923, e 728. O caso seguinte foi noticiado em Time, 7 de dezembro de 1936: Em Nadrljan, 0 camponés Jovan Bata, de 60 anos, comprou sua primeira vaca, Uma semana depois encontrou o animal morto em seu estibulo. “Nao posso suportar essa perda”, escreveu o camponés Bata antes de enforcar-se em uma viga. 48 fatal. Todavia, por que existem superestimagées tio extravagante- mente exageradas e avaliagdes tao extravagantemente erradas? Nac podemos por de lado a questio dizendo que eram pessoas tolas; precisamos saber porque sua tolice se expressou dessa maneira par- ticular, se quisermos compreender porque tendéncias agressivas podem voltar-se para o eu. Observagao clinica estabeleceu que tais individuos sio emocional- mente ou psicologicamente imaturos no sentido de nunca terem ido além dos métodos infantis de amar e ser amado. A crianga ama com a béca; o desenvolvimento normal supée que em consideravel medida ela substitui isso por outros modos de amar e receber amor. Assim como a crianga de peito se ressente da desmama e acha que est sendo tomado dela algo que tem o direito de possuir, as pessoas predominantemente infantis e “orais” em seu desenvolvi- mento de personalidade nfo sio capazes de suportar contrariedade. Portanto, nao é realmente exagerado dizer que para tais individuos os objetos supervalorizados nos casos hd pouco mencionados — os cabelos, o gélfe, o candrio etc. — sio equivalente ao seio da mie. A crianga sente que morrerd se o tirarem dela, como certamente aconteceria se nada fésse dado para substitui-lo. Mas nfo é s6 isso. Ela sente raiva da pessoa que a privou do seio. Um estudo da vida de fantasia de eriangas, como foi feito, por exemplo, por Melanie Klein(**), ¢ 0 estudo dos costumes de tribos selvagens, como foi feito por Roheim (?#) e outros, indicam sem diivida que sugar 0 seio nfio esti muito distante de canibalismo e que a crianga, se pudesse, be- beria nao apenas o leite, mas também o seio e a mie inteira. Faria isso em parte pela mesma razio do homem que matou a galinha dos ovos de ouro, isto é, seu insacidvel e imperativo desejo. Contudo, motivo igualmente forte é o hostil, ja discutido algumas paginas atras, que se reflete no fato da crianga morder o mamilo quando a mie tenta retirar o seio. Para acreditar nisso, basta pensar como um e&o age quando alguém ‘tenta tomar-lhe 0 oso; certamente nio hesitaria em morder a mio que lhe di comida. Morder é apenas 0 primeiro passo de devorar que os selvagens realmente executam. Quando nos lembramos que no calendério do tempo os séres huma- nos “civilizados” estio apenas alguns segundos distantes dos cani- bais e alguns minutos distantes das feras, nfio nos surpreendemos ao descobrir que no inconsciente 0 canibalismo ainda nio esta extinto. Milhées de devotos cristaos comemoram a morte de seu lider a fre- qiientes intervalos durante 0 ano por uma ceriménia na qual é TAY Klein, op. cit (22) Roheim, Geza, Social Anthropology: A Psychoanalytic Study in Anthropology and a History of Australian Totemism, Boni and Liveright, 1926, 49 claramente anunciado pelo pastor que a congregagao vai comer o corpo e beber o sangue de seu lider. Mesmo apés Calvino ter vencido sua discussio com a igreja organizada, na qual sustentava que o pao nao era realmente o corpo de Cristo, foi claramente reco- thecido que éle simboliza 0 corpo de Cristo. Tedlogos provavelmente negariam que ésse canibalismo simbélico tenha contetido agressivo. E certamente um método simples, primitivo e biologicamente diri- gido de indicar amor, mas ao mesmo tempo comer 0 corpo de outra pessoa pode ser também uma expressiio de édio, como por exemplo, nas fantasias infantis representadas por histérias de fadas como Jack, 0 Gigante Assassino, 0 Homem de Gengibre e Chapéuzinha Vermelho (na qual o lébo se disfarga como avé e procura comer a menina). Ambas as signifieagoes estio provavelmente implicitas no ato, diferindo quanto as proporgdes em circunstancias diferentes. Tive alguma dificuldade para tornar clara a base dessa atitude oral porque parece provavel que a introjecdo ¢ uma técnica psicopa- tologica favorita dos individuos que nunca abandonaram suas pro- pensées orais infantis. Talvez isso devido em parte ao fato da intro- jecdo ser 0 eqiiivalente psicolégico de comer outra pessoa. Uma das fontes de nosso conhecimento désses caracteres de per- sonalidade oral é a doenga conhecida como melancolia. Em sua forma mais tipica é causada pela perda de uma pessoa amada. A pessoa normal reage durante algum tempo com sofrimento, isto é, sente-se como se algo belo e desejavel no mundo tivesse sido tomado dela deixando a vida mais pobre com sua perda. O tempo cura tais ferimentos, porém; a cada dia o sofrimento do luto torna-se menor. Na melancolia, porém, a perda de um ente amado, nio ne- cessariamente pela morte, de fato com mais freqiiéncia pelo aban- dono, resulta em uma espécie diferente de reacgio. Ha a mesma afli- ao e tristeza, mas com contetido diferente que se torna maior e nao menor. Nao é 0 mundo que parece pobre e vazio, é alguma coisa dentro do préprio individuo. Ele se queixa de sentir-se sem valor, miserével e desgracado. Com freqiiéncia diz que nfo deviam dei- xé-lo viver e pede para ser levado 4’ prisio ou & forca. E claro que odeia a si préprio. Pode-se ver (agora que o caminho foi apontado por Freud, Abraham e Ferenczi) que tal individuo odeia a si prdprio sé um pouco mais do que ama a si proprio. Apesar de falar que nio tem o menor valor, exige daqueles que o cercam desmedida quantidade de atengaio, simpatia, ansiedade e cuidado. Mas ésse amor e édio que dirige entio para si proprio de maneira tio desorganizada e in- frutifera so voltados contra éle préprio por uma razio muito clara. Estavam antes investidos no objeto de amor perdido, s6 que entéo 0 édio era inconsciente. Quando o objeto de amor é perdido, suas emogées ficam, por assim dizer, estendendo-se para o espago sem 50

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