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\ Capitulo 1 Para uma histéria nova do Servico Social no Brasil José Pauto Netto ‘A exigéncia de abandonar as ilusdes sobre sua condicao € a exi- gencia de abandonar uma condigéo que necessita de ilusdes, K, Marx 2016 marca a passagem dos 80 anos da fundacao da primeira escola de Servico Social no Brasil, ou seja: marca a passagem do octo- gésimo aniversario do Servico Social em terras brasileiras. Certamente havera eventos comemorativos, como sempre ocorre em datas signifi- cativas — e, também certamente, como € da tradicao profissional, tais eventos terao nitido carater celebrativo. FE fato que a categoria profissional tem o que comemorar. Da acao da pioneira escola de Sao Paulo (a atual Faculdade de Servico Social da Pontificia Universidade Catdlica de Sao Paulo) aos dias de hoje, o contingente de assistentes sociais saltou das poucas dezenas que se contavam nos dedos das maos nos anos 1940 para a casa de muitos 50 MARIA LIDLINA DE OLIVEIRA E SILVA (Org milhares (a tiltima estimativa a que tive acesso apontava para a cifra de cerca de 160.000 profis assistentes sociais norte-americanos). Dos cursos que funcionavam no pais no inicio dos anos 1940, menos de meia dtizia, temos hoje mais de tés centenas cgunda metade daquele decénio, tinha-se a nascente articulacao das escolas presentes ao I Congreso Brasileiro de rvigo Social (foram mais outros dois desses eventos até meados dos sionais, massa s6 inferior ao exército de Se, na s anos 1960), atualmente a organizacao da categoria profissional, das agéncias de formagao e do alunado (conjunto CFESS/CRESS, ABEPSS @ ENESSO), esta consolidada e é€ muito atuante, realizando eventos/ congressos com frequéncia regular e registrando expressiva e sustenta- da participagao de assistentes sociais, docentes e estudantes. E é de ressaltar que, pouco mais de 20 anos depois de criada a sua primeira escola, 0s diplomas legais minimos necessdrios ao reconhecimento juridico-formal da profissao ja entravam em vigéncia. Poder-se-ia elencar uma série de outros indicadores que permitem constatar que, em oito décadas de existéncia no Brasil, o Servico Social 1. Este somatério, inflado pela designada educagdo a distancia e assentado especialmente na mercantilizagao privatista da educacao superior (aberta a capitais foraneos), permite supor uma “superproducao” a curto prazo de profissionais que, dadas as projecdes que podem ser feitas sobre o futuro imediato da economia brasileira, enfrentario um mercado de trabalho com remu- neragées extremamente aviltadas (tornando-se também vitimas da precarizagao dos seus vinculos de trabalho € do decorrente multi-emprego). Informagdes sobre 0 mercado privado do ensino superior encontram-se em Sécca e Leal (2009); para andlises sobre a mercantilizacio privatista (cf., entre outros, Chaves 2010); sobre a educagio a distancia (cf. Pereira, em Pereira e Almeida, 2012); a posigao de entidades dos assistentes sociais, principalmente em face da educagdo a dis- Lancia, esté expressa em CHESS (2014) Parece-me que € de apontar para um possivel desdobramento da mercantilizagio aqui refe Fida (que foi elevada a patamar superior com a criagao dos governamentais Prouni/Programa Universidade para Todos ¢ FIES/Fundo de Financiamento Estudantil): a provavel emergéncia de um “mercado de financiamento” — obviamente privado — para estudantes de nivel superior nas instituicoes particulares (algumas delas, j4 hoje, comecam a esbogar alternativas desse genero). ‘A médio prazo, as consequencias dessa previsivel emerge imas para os toma- dores de empréstimos (¢ nao s6 para eles) — veja-se, a propésito, o endividamento assombroso dos estudantes ia serdo onerost os Estados Unidos: em maio de 2012, a divida dos universitarios norte-ameri- anos chegava a um trithdo de délares, divida caracterizada em 2015 por respeitados economistas como “irresgativel” € que tem mobilizado os estudantes em campanhas nacionais pela sua anulacao (essa é uma das palavras de ordem do. movimento Million Student March), SERVIGO SOCIAL NO BRASIL percorreu uma trajetoria exitosa. Lembre-se, por exemplo, de que a sua efetiva insercio no circuito universititio, embora tardia,’ logo propiciou a emergencia da formagao pos-graduada (1972) que, por seu turno e em relativamente pouco tempo, permitiu o surgimento de um acervo documental/bibliografico responsavel por inscrever o campo académi- co-profissional como area de produgdo de conhecimento entre as ciéncias sociais aplicadas (1984).* E que, consolidada a P6s-Graduacao, 0 Servico Social brasileiro passou a incidir sensivelmente no exterior (nomeadamente no Cone Sul latino-americano e em Portugal). Ou, se considere ainda, e esse é um indicador a merecer anilise especifica, a visibilidade social alcangada nacionalmente pela profissao em especial a partir de finais dos anos 1980 — com um até entao inédito e cres- cente protagonismo de varios dos seus sujeitos (individuais e/ou cole- tivos: assistentes sociais, agéncias de formacao e entidades da categoria) na sociedade e no Estado.* Em razao da trajetéria do Servico Social nesses 80 anos de Brasil, resultante dos empenhos dos pioneiros dos anos 1930, continuados pelos seus discipulos das geragGes seguintes e amplamente vitalizados e tansformados nas trés Ultimas décadas do século XX — e tanto mais quanto os esforcos de personalidades que deixaram suas marcas sin- gulares na historia da profissao foram potencializados pelo trabalho coletivo , em razao dessa trajetoria, Os assistentes sociais brasileiros tém motivos suficientes para as celebragdes que, suponho, vao se su- ceder ao longo de 2016. 2. Insercdo que foi, com efeito, « icagdo da cetuncionalizagdo da universidade ope: tada pela ditadura cvil-militar (imposta ao povo brasileiro em 1964) com a tetorma de 1968, como assinalei ha muito — cf, Netto (2015a; 1 ed. 1990) 3. Sobre a Pos-Graduagao em Servico Social no Brasil, cL Carvalho ¢ Silva (Orgs) (2005) e Guerra (2011), 4. Pesquisa elucidativa consistiria na andlise do papel mais recente de profissionais do Ser- Vigo Social na elaboragao/condugao/avaliagao ¢, sobretudo, na legitimacao de politicas puiblicas em macroescala, considerando-se, por exemplo, seu desempenho politico e técnico em ambito nacional a partir do Ministério do Desenvolvimento Social e Combate @ Fome (criado em 2004). MARIA LIDUIRIA DE OLIVEIRA E SILVA MEMORIA E HISTORIA DO SERVICO SOCIAL NO BRASIL Estamos confrontados com os 80 anos de histdria do Servico Social — que, como toda histéria, nao pode ser reduzida, confundida e/ou identificada a meméria (melhor: As memérias) que se tem dela Essa memoria, realmente, nao é o fundamento sobre o qual se deve assentar 0 procedimento qualificado para desvendar e trazer 4 luz ‘0 processo histérico efetivo: a meméria (individual e coletiva, aquela dos sujeitos singulares e aquela de categorias profissionais, grupos classes sociais) € parte constitutiva da historia profissional e incide sobre ela; mas a meméria nao se elabora a partir de parametros logicos e racionais: é uma construcao ideal que recupera vivéncias — no sentido do “vivido" conceptualizado por H. Lefebvre — nao necessariamente filtradas intelectiva e analiticamente. Ha memérias distintas, e até coli- dentes, dos mesmos eventos e processos hist6ricos. Ora, a reconstrugao analitica — suposto da reprodugao tedrica — do processo hist6rico efetivo, na pesquisa da sua génese e do seu desenvolvimento pata al- cangar o seu conhecimento verdadeiro, demanda operacées e procedi- mentos especificos e rigorosos, proprios da ciéncia hist6rica.* Ha indicagoes de que, em perfodo recente, ademais de alguns esforcos j4 empreendidos a partir dos anos 1970, verifica-se, em varios 5. Entendo a concepcao de ciéncia histéica tal como a formula Kofler (2010); ef, ainda Schaft (1995) — autores que nao reduzem a historia ao conhecimento do passado; os marnstas tem «lateza, desde as formulagdes metodologicas do *jovem” Luikécs (2003), que 0 presente como histriaconstitui um problema central para 0 pensamento burgués. E desnecessirio dizer que a concepgdo de ciéncia histérica aqui assumida (¢, logo, de conhe- cimento da verdade histrica)colide frontalmente com as teorias pés-modernas, quer aquelas que reduzem a reproducao te6rica de historia a “narrativas’, indistintas até mesmo em face da ficgio — cf, Hutcheon (1988) e White (1992) —, quer aquelas, inteiramente compativeis ¢ inclusive ‘complementares a essas, que retram da verdade qualquer estatuto de objetividade, consideran- do-a uma retrica — cf, Santos (2000); esse autor, prestigiadissimo também no Servigo Social brasileiro, escreve 3p. 96 da obra cada que. para o “conhecimento emancipatsrio pés-modemo", ‘a verdade € ret6rica, uma pausa mitica (sic) numa batalha argumentativa continua e intermin- vel travada entre vatios discursos de verdade’ SERVICO SOCIAL NO BRASIL pontos do pais, um empenho em recuperar e preservar a memoria do Servi¢o Social, com o registro (e, em muitos casos, com a publicitagao) de depoimentos de profissionais de distintas geracées e diferenciadas insergdes na estrutura ocupacional.’ Pelas mais diversas r. ZOes, enten- do que cabe estimular essas iniciativas, uma vez que 0 acervo assim acumulado havera de ser uma fonte de relevaficia — se tratado ade- quadamente — para a reconstrugao analitica de que resultarao historias da profissao. Nesse caso, como no da producio da memoria, trata-se mesmo de historias (no plural): a exposicio do processo hist6rico do Servico Social variara (no Brasil e em qualquer outro espaco nacional)’ con- forme os quadros tedrico-metodol6gicos de referéncia dos pesquisado- tes e, também, conforme os recursos documentais dados e as técnicas empregadas para seu exame. E mais: de quadros teérico-metodologicos muito semelhantes (e, no limite, dos mesmos quadros) podem derivar reconstrucées analiticas diferentes, uma vez que a pesquisa histérica é também interpretacdo, que varia ainda segundo a qualificagao do pes- quisador, a riqueza da sua bagagem cultural, a sua imaginacao histo- rica etc.' Porém, desta pluralidade de historias (que, no seu confronto, podem contribuir para indicar lacunas e dilemas a merecer tratamento mais atento) nao se conclua, relativisticamente, que todas sao igual- mente valiosas; ha aquelas que apreendem a essencialidade do proces- SO a que remetem e aquelas que dele tomam aspectos laterais ou epi- 6. Um exemplo dentre varios: na PUC-SP, Myriam Veras Baptista, mestra de geragoes de assistentes sociais, pelo menos desde 0 inicio dos anos 1990, preocupowse com a recolha de depoimentos de profissionais do 7. Apenas urés exemplos dessa variacdo na analise do processo historico do Sevvigo Social: ‘obras de Lubove (1977), Leiby (1978) e Ehren. Ro caso norte-americano, faga-se 0 cotejo entre reich (1985); no caso francés, entre os trabalhos de Verdes-Leroux (1978) e Rater-Garcette (1996); no caso argentino, comparem-se os estudos de Alay6n (1992), Patta (2002) © Oliva (2008) Veja-se, ainda, tal variagao nas contribuigoes a obra dirigida por Jovelin (2008) 8. Considerem-se, por exemplo, as teorias do Brasil formuladas por Caio Prado Jr e Nelson Werneck Sodré. Nio se pense, é claro, a imaginagao histérica como a “narrativa ficcional” suposta por alguns pés-modernos — ela deve ser aproximada a imaginacdo socioldgica tematizada por C, W. Mills (1968) 5a [MARIA LIDUINA DE OLVERA E SILVA dérmicos, aquelas que 0 reconstroem substantiva e verazmente e¢ aquelas que tergiversam suas dimensoes estruturais’ — ¢ a verdade que extraem do processo hist ico nao € problema a ser equacionado por um eventual juizo “consensuado” no interior de “comunidades cienti- ficas”, mas a ser posto em questao mediante exames documentais, confrontos criticos e pelas lutas e praticas sociais que tendencialmente decorrem daquele processo ou a ele se vinculem. Pelo que até aqui se explicitou nessas poucas linhas, deve ficar claro também que entre meméria e reconstru¢ao analitica de processos historicos hé relades de dupla via: a primeira, ademais de incidir nos processos hist6ricos efetivos, pode rebater — desde que tratada critica- mente — na reconstrucao analitica; e essa, por seu turno, uma vez exposta de modo adequado e tornada publica, pode refratar-se nas (re) elaboracées da memoria. Vale dizer: se a meméria pode subsidiar a reconstrugao historica, esta pode fomentar um redimensionamento da memoria. Contudo, mesmo na sua interacao, elas — meméria e historia — nao se identificam na sua génese e, menos ainda, no seu desenvolvimen- to e na sua significagao/funcionalidade para o evolver da profissao. Como observei, nos anos mais recentes, uma aten¢éo maior vem sendo dedicada a meméria do Servico Social no Brasil — tendéncia que, e também o sublinhei, deve ser estimulada. No que tange a histéria do Servico Social em nosso pais, a mim me parece — e posso, ainda que nao o creia, estar lavrando em erro — que se verificam, designadamen- te desde meados dos anos 1990, dois movimentos distintos e assimé- tricos: (1) cresce visivelmente o quantitativo de estudos localizados e particulares acerca da fundacao de escolas e cursos, de areas de inter- vencao profissional, de instituicdes/organizacoes demandantes de as- sistentes sociais, de eventos significativos etc.; (2) sao praticamente inexistentes os estudos que visam a elaboracao de abordagens abrangen- tes, inclusivas, do Servico Social no Brasil como um todo." 9. Compare-se o trato marxiano do golpe de Estado de Luis Bonaparte (Marx, 2011a) com as reflexdes sobre o mesmo exaradas por Tocqueville (1991). 10. Como 0 demonstram varios indicadores, dos quais é muito relevante (mas nem de longe o tinico: vejam-se também os diversos periédicos vinculados aos cursos de Pos-Graduaci. SERVIGO SOCIAL NO BRASIL videntemente, nao ha que esperar ou propor quaisquer equali- zacao € simetria no desenvolvimento desses dois niveis, 0 dos estudos _historicos localizados/particulares e 0 dos ensaios de totalizacao para uma visdo da historia do Servico Social em escala nacional; a distingao “entre esses niveis ¢ a sua assimetria nao sao, em si, fenomenos anoma- los. Na realidade, tais niveis de elaboracao tém dinamicas préprias, se “complementam e se retroalimentam (até independentemente das perspectivas tedrico-metodolégicas que os sustentam): uma documen- tac4o expressiva no quadro de estudos histéricos localizados/particu- lares € fonte muito importante para uma histéria abrangente do Servi- co Social no pais; e uma historia abrangente, nacional, propicia uma linha interpretativa que oferece elementos fundamentais para que estu- dos hist6ricos localizados/particulares ganhem uma significacao social e profissional que transcenda os seus limites. O fendmeno que a mim me parece muito perceptivel nos dias correntes refere-se ao diferencial de actimulo constatavel nesses dois niveis: o crescimento quantitativo dos estudos localizados/particulares € exponencialmente maior que os ensaios de totalizacao hist6rica; se, apesar do crescimento dos estudos localizados/particulares nos anos mais recentes, muito haja a fazer no seu ambito, hd ainda muitissimo mais por fazer no ambito da histéria inclusiva do Servigo Social no pais. Se essa observacao for pertinente, esta se configurando entre nds um preo- cupante quadro de hipertrofia de estudos localizados/particulares e de atrofia das abordagens histéricas abrangentes e macroscopicas. A histéria competentemente nacional do nosso Servico Social tem © seu ponto de partida no trabalho que Carvalho redigiu, com lama- moto, h4 mais de 30 anos (lamamoto e Carvalho, 1983) — mas estou convencido de que essa obra seminal permanece, até hoje, enquanto empreendimento de andlise histérica, sem continuidade entre nés."' Para além de anais de congressos/seminarios/encontros, de livros e outras publicagSes da drea, como a revista Servigo Social & Sociedade, ha décadas editada pela Cortez, em Sao Paulo) 0 Banco de teses da CAPES/MEC. 11 Relagdes sociais e Servigo Social no Brasil & um raro sucesso editorial. Entretanto, ndo se produziu nenhum outro texto com as mesmas caracteristicas do ensaio redigido por R. de Carvalho ser curt © grosso” carecemos — hoje, quando estudos particular: localizados }4 oferecem elementos significativos de que lamamoto « Camalho. ao tempo de sta pesqttisa, nao dispuse am — de uma hi tna (dle histénas) do Servigo Social no Brasil que nos oferega(m), com © Tigor ¢ a preciso possiveis, o inteito processo dos 80 anos que em 2016 se comemoram, UMA HISTORIA NOVA TRABALHO COLETIVO Parece-me clarissima a urgéncia de uma historia nova (de historias novas) “ do Servigo Social, desenvolvendo, estendendo e revisando a pesquisa historica exposta por Raul de Carvalho, cobrindo o efetivo processo historico da profiss4o nos seus 80 anos no Brasil (melhor: ao longo do seculo XX). Nao ha nenhum texto disponivel que ofereca aos estudantes'’ — e nao s6 a eles, mas também a profissionais e aos novos docentes, sem mencionar 0 publico potencial de Profissionais e pes- quisadores de areas afins — uma visio hist6rica articulada e abrangen- (relembro que o meu Ditadura ¢ Servigo Social. [Netto, 2015] limita-se basicamente 4 analise da producao documental/bibliogratica do petiodo 1965-1985 € Ademais, Carvalho sua contextualizagao historica) 40 voltou a contribuir com o debate do Servigo Social, ao contratio de la mamoto, que continuou produzindo muito encontram se, em varios passos do sew trabalho. Posterior, elementos pestinentes a elucidacao da historia profissional mais recente (ct, p. ex lamamoto, 2007) 12. Note se que me refiro a uma ( 04 varias) historia(s) nova(s), sem temissao necessaria 40s padres da nova historia sobte esta, ef Dosse (1992) 13. Chama a minha atengao 0 fato de a colecao “Hibliotec «1 Hasica de Servigo Social”, im- te iniciativa da Cortez Fditora, ja com quase na decada de existéncia, nao apresentar até hoje umn volume que tematize a historia do nosso Servigo Social Por outra parte, mesmo sem contar cor 86 posso me valer neste passo de ina pesquisa especitica sobre o tema — de fato, npressoes que decorrem da minha experiencia docente —, atrevo-me a observar que parcela nao desprezivel de estudantes (endo s6 de graduacao) apresen- ta um espantoso desconhecimento de momentos cruciais dessa historia, SERVICO SOCIAL NO BRASIL s te, de fato genética e sistematica, do Servico Social em nosso pais de 1936 A entrada do século XX1."" Uma tal historia (e, daqui em diante, Para nao me repetir, nado voltarei a indicar a sua mais que posstvel pluralidade — as historias — embora sempre a considere), nas circunstancias atuais, dificilmente sera tarefa de/para um pesquisador individual: havera de ser, com efeito, uma tarefa coletiva, trabalho de equipe.'® Existem as condi¢oes objetivas necessrias, nos dias correntes, para coletivamente projetar, implementar e levar a cabo esta tarefa: condicées intelectuais (pense-se no plantel de pesquisadores, alguns muito reco- nhecidos, com que conta hoje a profissio), condicées institucionais (especialmente os espacos académicos da Pés-Graduagao, com seus programas podendo/devendo desenvolver projetos integrados) e con- dices interinstitucionais (levem-se em conta as articulacdes j4 operantes entre universidades, 0 conjunto CFESS/CRESS, a ABEPSS). Ademais, somam-se outros componentes favoraveis — por exemplo, o fato de intmeros pesquisadores da area do Servico Social terem rompido com a endogenia tradicional da sua formacao, abrindo 0 caminho para ‘consolidar uma fecunda interlocugaéo com docentes e pesquisadores de areas afins'® ou, ainda, a grande mobilidade de docentes e pesquisa- dores em escala nacional, que propicia (além de um intercambio de ideias e de experiéncias muito vivo) uma nova percep¢ao, mais inten- sa, das particularidades regionais do pais." 14. £ de se supor que a demanda de uma tal visao historica nao entusiasme particularmen: te aos docentes/assistentes sociais abrigados sob o enorme guarda-chuva das teorias pos-moder- 10, a referencia ja feita a “ensaios de totalizagao” thes causa os atrepios proprios qualquer reconstrugao analitica em ma nas — no mi 4 quem associa totalidade a “totalitarismo” € pensa ¢ etanarrativa™ roescala da historia é uma anacronica principio, a possibilidade de um (ou dois) pesquisador(es) to- jermo, No entanto, afiguira-se-me bem mais viavel 15. Nao esta exclufda, en a peito a tarefa e a levar(en mar(ei aba © éxito do abalho em equipe 16. Penso que a elaboragao da historia do Seryigo Social cabe a assistentes sociais — mas a colaboragdo/consultoria/assessoria de outros cientistas sociais, em especial historiadores, deve ser Fequisitada, e a interlocugao mencionada facta esta tequisigae. 17. Essa mobilidade nao € fenomeno recente — registra-se, pelo menos, desde a década de ja nao € apenas a sua maior escala: € 0 fato, a meu 1960. Mas o que hoje Ihe da outta relevan MARIA LDUINA DE OUVEIRA E SILVA (Org 38 REQUISIGOES DA/PARA A HISTORIA NOVA historia nova do Servico Social no Bra Quer-me parecer que uma cial uma requisicao tanto ircunstancias atuais, politico-profissional, vale dizer, referi e sendo esta apenas uma hipo- indo em equi- sil ¢, especialmente nas ¢ stritamente académica quanto daa direcao social da profissio. Penso — tese ainda nao provada, posso também aqui estar lavrande au voco — que a perceptivel atrofia no ambito da reconstruao analitica (abrangente, inclusiva) da historia do nosso Serviso Social desde, pelo menos, duas décadas, pode relacionar-se a uma inflexdo na sua direcao social. Detenhamo-nos, mesmo rapidamente, nestes dois pontos (alias obviamente interligados). No que toca ao primeiro ponto, €é meridianamente claro que uma nova histéria do Servico Social no Brasil nao sera tao somente a me- diacao necessdria para 0 conhecimento apenas do passado. Na mais estrita fidelidade ao seu objeto real,'* ela visa a reproducao ideal (teo- rica) do processo hist6rico efetivo da profissio — a sua funcionalidade social nasa emergencia € no seu desenvolvimento, a sua incorporacao de ideias e praticas surgidas noutros espacos, a sua relacéo com as ~Giencias socials e humanas, as tendéncias € as colisOes proprias do seu movimento, o evolver do seu publico-alvo e dos seus objetos de inter- vencio, as formas da sua reproducao, as suas bases tanto sociais quanto | ideopoliticas ¢ tedrico-metodolégicas e as alteracdes delas, a sua inser- cao na divisdo social e técnica do trabalho, a extracao social dos seus sujeitos e seus percursos posteriores, a construcao da sua autoimagem ver positivo e devido a viria ordem de causas (entre as quais o crescimento quantitativo, claro que posterior aos anos 1960, de cursos de Servico Social no sistema universitario piblico), de estar rompida a anterior centralidade de Sao Paulo e do Rio de Janeiro, Com efeito, jd & bem visivel um *policentrismo" no ambito do Servco Social brasileiro, com 0 protagonismo em ex. pansio de universidades de diferentes regides do pats. 18. Ou, no que um marxista designaria, no processo de pesquisa, como “fidelidade do st jeito a0 objeto” f ‘SERVIGO SOCIAL NO BRASIL e as modalidades pelas quais buscou e encontrou a sua legitimagao ‘social. Vé-se, pois, que uma tal reproducao tem que articular a dina- mica propria da constituicao profi com a dinamica da sociedade bras contextualidade em face da qual sional (o seu movimento interno) leira que Ihe 6 contemporanea (a a profissio se expressa como uma resposta especifica e especializada a demandas que nao sao postas por ela mesma). Para atender a tais exigéncias, colocadas pela natureza hist6rica do Servico Social, supde-se, entre outros Tequisitos, que o pesquisador (ou 0 coletivo de pesquisadores) opere com um quadro de referencias rico e amplo, que envolve 0 dominio de categorias tedrico-sociais ba- silares (aptas a apreender a dinamica societéria macroscépica, mobili- zada pelas lutas sociais, primordialmente as lutas de classes) e também um seguro controle da cultura conexa ao Servico Social (das suas protoformas a sua institucionalizacao).!” Nao se configura, aqui, obvia- mente, 0 caso de um conjunto aprioristico, preconcebido, de ideias/ formulas a inserir, a forca e desde o exterior, no tratamento do objeto 19, Remeto, novamente, a matriz que inaugurou o trato adequado (0 que ndo quer dizer concluso, ¢ menos ainda exaustivo) da historia do Servigo Social no Brasil — em Relagdes sociais ¢ Servgo Social no Brasil, a apresentagio da anélise hist6rica por Carvalho segue-se a explicitacio da elaboracao te6rica por lamamoto € essa ordenacao expositiva, a meu juizo, nao ¢ acidental Ou aleatoria: sao as referéncias te6ricas formuladas por lamamoto que orientam/sustentam a econstrugao analitica da historia posta por Carvalho. Assim, como esclarecem os autores na |) abertura do livro, se a responsabilidade final pela redacdojexposigao das partes tedrica historica foi individualizada, a investigacdo de que resultou a obra se fez efetivamente em trabalho a dois — ambos os pesquisadores basicamente compartilhavam um mesmo quadro de referencia teo- Fico-metodolégico (ainda que oriundos de formagdes profissionais dist Suas singularidades intelectuais) as e sem prejuizo de | Com o recurso a experiéncia de pesquisa objetivada em Relagies sociais ¢ Servigo Social no Brasil, volto a questao de uma histéria nova a ser elaborada coletivamente. Uma equipe de pes Guisadores que eventualmente venha a assumir al tatefa necessita, 4 partida, de compartilhar ~ como lamamoto e Carvalho — um mesmo qua Precisamente porque nao é pensavel a vigencia de um tinico quadro de refere dolégico no universo profissional do Servico Social, torna-se realista pe Saliente-se que € inegavel a possibilidade de que equipes co diferentes posturas tedrico-metodoldgicas possam contribuir p. -nte inegavel o risco de produzire 10 de referencia (worico- metodologico; & teorico-meto- sar-se em historias novas, 18 por pesquisadores com 4.0 conhecimento da historia aes fortemente viciadas Profissional, mas ¢ igual Pelo ecletismo. MARIA LIDUINA, DE OLIVEIRA E SIVA (Org, pesquisado: antes, sto elementos heuristicos ja acumulados que, testa- dos em face do objeto, fornecem (ou nao) o suficiente instrument de analise — claro que, nessa consideragio, estao fora de cogitacio investigagdes que se restringem a recolha/ordenagao de dados factuais) empiticos ou que, angelical ¢/ou ineptamente, fagam tabula rasa do acervo jd existente. : Dois paragrafos acima, anotei que a historia nore do Servico Soc ial (€ essa € uma caracteristica de toda historia qualificada) sera mais que uma mediacao sem a qual nao se conhecera o Passado da Profissao — conhecimento que é 0 seu objetivo precipuo. E fato que, na Possivel € necessaria historia nova, a reconstrucao analitica do processo efetivo da constituicao e do evolver do Servico Social operar-se-4 a partir de um estagio do seu desenvolvimento em que tendéncias contidas em sua génese e em momentos anteriores do movimento da profissao se explicitaram plenamente e/ou se atrofiaram; Por isso, 0 pesquisador situar-se-4 num patamar que lhe oferece a vantagem de poder identi- ficar com clareza as tendéncias mais estruturais — e sabemos, numa Otica determinada da ciéncia hist6rica, radicalmente antipositivista, que S40 08 estagios de maior desenvolvimento (mais complexos) que es- clarecem os de desenvolvimento mais incipiente (menos complexos)”. E nao sé: a referencialidade teorico-metodolégica do pesquisador, se este é de fato qualificado, recolherd os avancos analiticos atuais”, Ora, ademais dos requisitos ja arrolados precedentemente para proceder a investigacao historica do Servico Social, esta particular insergao (num estdgio mais complexo da histéria da Profissao e da sociedade na qual ele se inscreve e com um arsenal heuristico mais avan¢ado) do pesqui- sador condiciona a sua interpretagao do d lesenvolvimento da profissio em face dos dilemas contemporaneos e de alternativas futuras. Em sintese ee 20. Acerca desta problem: ‘te pelo pai da dialética moderna: “A Coma de Minerva s6 levanta voo ao entardeces" (Hegel, 1998, p. 88) — puansana, de 1857, sobre a natureza das categorias e sea desenvolvimen 79-86). tia — aludida plasticame + cf. a classica passagem. to (Marx, 2011b, esp. p. a, absolu- SERVICO SOCIAL NO BRAS) apertada: a nova historia do Servigo Social, tacita ou explicitamente reproduzira idealmente (teoricamente) 6 movimento da profissao to mando partido frente ao seu presente e também detectando/esbocando _algo do seu devir’? — igualmente, por essa razao, nenhuma historia é “neutra”, “imparcial” ou “inocente” ou tem por objeto exclusivo 0 pas- sado. Aqui se pde o segundo ponto sobre o qual cabe refletir e que possui, mais além de suas implicacdes tedrico-académicas, uma dimen- sao politico-profissional que diz respeito a diregdo social da profissao. PROJETO ETICO-POLITICO E ATROFIA DA RECONSTRUGAO HISTORICA A historia nova que € imperativo elaborar justifica-se, penso, sem maiores debates do ponto de vista tedrico-académico — dada a indis- cutivel necessidade de aprofundar o conhecimento do passado da profissao e de recuperd-lo nos seus Momentos mais proximos e mesmo contemporaneos (0 proceso vivido por ela no tiltimo quartel do sé- culo XX e na primeira década do século XX1). Mas é preciso assinalar que a historia nova se vé exigida, nos dias atuais, pela urgéncia de, sobre novas bases, revisar/consolidar (ou negat/reverter) a direcao social que ganhou forga e larga ponderagao no universo profissional nas duas Ultimas décadas do séeulo XX. Nao é possivel resgatar, neste artigo compulsoriamente breve, como 10 social em questao se engendrou no Servigo Social brasileiro a direg 4 sua funda Relugies sociais ¢ Servigo Soctal no Brasil: nessa ob oto) expressa, sein deixar margei a dhividas, uma posigde di 22 Volto, mais ur mentagao (0 ensaio de I do Servico Social brasileiro e suas possibilidades ¢ limites, de Carvalho) traz incorporada essa posigav; € tal posicao revela-se historica, mesmo se examinada sem a leitura da elaboragao teorico ‘A posicio assumida na obra tem tudo a ver com a direcdo social que as vanguardas profissionais defenderam nos anos 1980 ¢ incidiu, posterior € ponderavelmente, na constituigao do que ficou comhecido como o projet ético-politico do Servico Social brasileiro — que sera tangenciado a seguir. 1 reconstrugao historica (0 ensaio a andlise especificamente codologica que a precede. (cua analise profiinda, alits, cabera a possivel nova historia)’ Basta aqui recordar que, respondende a conjuntura da crise da ditadura oy) militar instaurada em 1964 € ao proceso de democratizagao que o Brasil experimentou entre o fim dos anos 1970 ¢ meados dos anos, 1980.28 o Servign Social viveu uma extraordinaria efervescéncia. () niverso profissional passou por tim notavel aggiornamento: © monope, lio exercide por décadas- pelo. conservadorismo foi amplamente vulne rabilizado, criticou-se com frontalidade a falsa e puramente formal assepsia ideolégica exibida pela profissao, organismos profissionais foram redimensionados, expressivos segmentos da categoria profissional vincularam-se a movimentos sociais populares, instituigdes académicas © profissionais passaram a dialogar e a interagir mais vivamente com setores progressistas do Servi¢o Social latino-americano,”* reformulou-se 23. Ha documentagao acessivel acerca da diregdo social configurada no projeto ético-politico, 24, Sobre esta conjuntura, cf Netto (2014, caps. 3 € 4), Um dos primeiros sinais vis is dessa efervescéncia foi o II Congresso Brasileiro de Assistentes Sociais, realizado em So Paulo, em 1979 — cf. WV. AA. (2009) e CFESS (2012). 26, 0 didlogo com o Servico Social latino-americano, esbocado em meados dos anos 1960, viu-se praticamente interrompido ao final desta década; sua retomada, nas novas condigdes . NETTO, L. E. Oconservadorismo classico: elementos de caracterizagao e critica. Sao Paulo: Cortez, 2011. SERVIGO SOCIAL NO BRASIL NETTO. J. P. Assistencialismo e regressividade profissional no Servi¢o Social. Intervencdo Social, Lisboa, Universidade Lusiada, n. 41, 1. sem 2013 Pequena historia da ditadura brasileira (1964-1985). Sao Paulo Cortez, 2014. Ditadura e Servigo Social: uma analise do Servigo Social no Brasil pds-64. Sao Paulo: Cortez, 2015a. —__—. 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