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ensaios interdisciplinares sobre o RENASCIMENTO ITALIANO Alexandre Ragazzi, Patricia D. Meneses, Tamara Quirico (organizadores) EDITORA| UNIFESP 13 A Representacao de Medeia durante os Séculos xvi e xvir: Imagens da Ira entre o Aristotelismo e o Estoicismo* Maria Berbara P oucos personagens mitoldgicos incorporam a quintesséncia da ita melhor do que Medeia. Enfurecida com o marido, que a deixara por outra mulher, Medeia, para vingar-se, matou as duas criangas que tivera com ele. A histéria aparece muitas vezes na literarura antiga: Pindaro menciona-a em sua quarta ode Pitica, e, na segunda metade do sé- culo v a.C., Euripides compée sua célebre tragédia'. Em solo la- tino, 0 mito parece ter despertado ainda maior interesse: Séneca, entre outros, escreve uma tragédia sobre Medeia no século 1 d.C., e Ovidio trata o tema em distintas obras. Na iconografia antiga, Medeia € representada em diferentes meios: ceramicas, gemas, afrescos, ¢, mais tarde, sarcéfagos. Em alguns casos — por exemplo, * Este texto é uma versio traduzida e modificada do artigo” Visual Representations of Medea's Anger in the Barly Modern Period: Rembrandt and Rubens” publicado em: K. Enenkel e A. Traninger (orgs.), Discourses of Anger in the Early Modern Period, Leiden, Brill, 2015, pp. 357-377. 1. A pera foi encenada pela primeira vez em 431 a.C. 257 ela rejuvenesce seu pai, Eson, e consegue, por um engano, matar em uma Anfora atribuida ao pintor de Ixion, produzida em c. 330 Pélias. Jasao ¢ Medeia mudam-se para Corinto, onde tém dois fi- a.C. e atualmente conservada no Louvre —, cla aparece no momento lhos e vivem por dez anos, até que Jasio anuncia que abandonard Medeia para casar-se com a filha do rei local, Creonte. A tragédia de Euripides comega logo depois do casamento de Jasao e Cretisa, filha de Creonte’. O rei, assustado com as ameacas de Medeia, decreta seu exi- de matar as criangas. Tanto Euripides quanto Séneca’ narram aquele que, atualmen- te, consticui o momento mais conhecido do mito ~ isto 6 0 filici- dio —, mas a histéria comega antes. Medeia era a filha do rei Eetes de Célquida, uma regiao distante, a leste do ponto Euxino — isto é o mar Negro. Jasio é o filho do rei Eson, de Iolcos, que havia sido descronado por Pélias. Pélias persuade Jaséo a navegar em busca do velo de ouro, o qual era zelosamente guardado na Célquida. Jasio parte a bordo da nave Argo. Ao chegar 4 Célquida, o rei Hetes exige, como condigio para dar-lhe o velo, que ele realize uma série de di- ficeis tarefas, entre as quais arar um campo com touros que cospem fogo e lutar contra um dragio; para completa-las, Jasao recorre As feitigarias de Medeia, que 0 ajuda. Medeia pretende escapar com Jasao e 0 velo de ouro; para tanto, mata e desmembra 0 corpo do irmao, obrigando o pai a parar para recolher seus membros ¢, assim, lograr a fuga. De volta a Iolcos com Jasio, Medeia continua auxi- liando-o de distintas maneiras por meio de seus poderes magicos: lio, mas ela consegue persuadir Jasio a deix4-la permanecer em Corinto um dia a mais. Pouco depois de receber a visita do rei Egeu de Atenas, que lhe promete exilio, Medeia manifesta seu terrivel plano: assassinar Creonte e Cretisa e, em seguida, os filhos que teve com Jas4o: somente entao, ela clama, a descendéncia de Jasio serd destruida para sempte. Quando o coro lhe pergunta se ela suportaria a morte dos préprios filhos, ela nao hesita em afir- mar que sim. O fato de que, como mie, isso a devastard, em suas préprias palavras, nao vem ao caso‘. Medeia realiza seu plano: os filhos, instruidos por ela, levam a Ctetisa um manto envenenado, o qual mata a ela propria e a seu pai, que tenta ajud4-la. Durante as linhas em que Medeia recebe essa noticia, seus sentimentos nunca sao lineares: ela sente pena dos filhos, tristeza, dor, dio. Em certa altura, quai i ; rhea i » dor, ddio. , quando dei: 2. Ha controvérsias sobre a autoria da Medeia atribuida a Séneca, assim como sobre q eta Soe a relagio entre suas pegas e escritos filoséficos em geral. Seria Iicico supor que suas ‘pecas espelhem seus escritos estoicos? Apesar de diversos estudiosos terem alertado para o perigo de aplicar a losofia de Seneca & sua produsto teatral (cf. G, Braden, Renaissance Tragedy and the Senecan Tradition. Anger’s Privilege, pp. 28 € ss.), no caso particular de Medeia a interpretasio estoica da pesa tornou-se undnime nas tiltimas décadas (cf. Séneca, Medea, p. 11). De acordo com pesquisas recentes, é possivel entender as emogSes de Medeia a partir do ponto de vista estoico segundo 6 qual 0 controle sobre as emogées € necesstiio 20 filésofo. Pode-se perguntar, seguindo a esteira de J, Bloemendal, se a intengio de Séneca teria sido imunizar a audiéncia contra essas emocées descontroladas ao mostrar-lhe suas terriveis consequéncias. Séneca, de fato, ndo & 0 tinico estoico interessado em Medeia (como observado por G. Braden, op. cit:"Epiteto considera Medeia magalophylas, “de grande cora¢4o, mesmo que ela renha demonstrado isso de modo equivocado [Elivio Arriano, Epiteto, 2.1739 e ss.],e cita seus versos em Euripides [1078-1079] sobre a forga irresistivel de set thymos (1.28.7). Crisipo cita as mesmas linhas, € 3, Onnome da noiva de Jasio aparece ora como Crettsa, ora como Glauce nas fontes. diz-se que mencionow a pega com tanta frequéncia que seu tratado ficou conhecido 4. Euripides, Medeia, versos 81t e ss. do texto grego. ‘como’Medeia de Crisipo’ [Didgenes Laércio, 7180]. 5. Idem, ibidem, versos 1040 € ss. as criangas, por um momento muda de ideia: por que haveria de fazer-lhes mal somente para ferir o pai, sofrendo duplamente, assim, pela perda? Medeia proclama repetidamente seu amor pelos filhos. Depois de alguns versos, porém, ela retrocede: de nenhuma maneira seus inimigos vencerao por razées sentimentais’, Nesse ponto, nada pode evitar a tragédia: Medeia assassina os filhos e em seguida es- capa a bordo de uma catruagem alada, presente de seu avd, Hélios, perante um Jasdo em desespero. Na primeira época moderna, houve uma clara disparidade en- tre a representacao de Medeia nas artes visuais e na literatura. Na 258 — Ensaios Interdisciplinares sobre 0 Renascimento Italiano A Representagdo de Medeia durante os Séculos xviexvit.. 259 literatura, ela aparece com frequéncia: Boccaccio a inclui em seu De mulieribus claris; George Buchanan traduz a pega de Euripides 20 latim; Dolce, e depois Corneille, compéem pecas teatrais baseadas nela; Spenser reconta sua histéria em The Faerie Queene, entre mui- tos outros exemplos, Na Antiguidade classica, como anteriormen- te mencionado, Medeia é representada com frequéncia nas artes visuais, assim como nos séculos x1x e xx, quando o mito é revisi- tado por artistas, dramaturgos e cineastas do calibre de Pasolini ou Lars von Trier, Na arte contempordnea, Medeia parece ter personi- ficado simbolos e discursos conectados a diferentes grupos sociais — especialmente em chave feminista. Na literatura antiga, a personalidade de Medeia nao pode ser descrita em branco e preto: é verdade que ela mata os filhos, mas, por outro lado, também possibilita a Jasdo obter o velo de ouro e cura Eson; Séneca enfatiza suas habilidades de feiticeira, mas, por exemplo, [bico, Siménides e Apolénio Rédio contam que, apds a morte, ela se casa com ninguém menos que Aquiles nos Campos Eliseos*. A figura de Medeia, portanto, é complexa’, o que significa que, do ponto de vista tipolégico, nao foi tarefa facil identificd-la com um atributo ou caracteristica determinada. Muitas imagens mitolégicas envolvem a representagio do climax de determinada narrativa; esse é geralmente 0 caso, por exemplo, de metamorfoses (Dafne transformando-se em loureiro, Faetonte despencando da carruagem do sol etc.). Algumas vezes — como no proprio caso de Faetonte — essas imagens funcionam como um exemplum moralizante destinado a impedir que se cometam os mesmos erros daqueles que caem em desgraga. A representacao de episédios mitolégicos violentos — por exemplo, Apolo esfolando 6. As passagens de Ibico e Siménides sio mencioradas por Apolénio em Argonautica 4811-815. 7% CE.S.1. Johnston, introdugao a J. J, Clauss e S. I. Johnston (orgs.), Medea. Essays on Medea in Myth, Literature, Philosophy and Art, p.6. A complexidade do personagem, em Euripides, levou D. L. Page a afirmar que, nessa pega, “pela primeira vez no teatro grego, o poder do drama jaz antes nos personagens do que nas ages. As emogoes de ‘Media so muito mais emocionantes do que a sta vinganga (.]" (idem, ibidem, p.14)- 260 — Ensaios Interdisciplinares sobre 0 Renascimento Italiano Marsias — pode, igualmente, funcionar como uma adverténcia, No caso de Medeia, porém, ha uma aparente contradi¢io, pois, apesar de 0 mais famoso episédio de sua histéria ser o filicidio, 0 préprio momento em que ela mata os filhos quase nuncz é representado depois da Antiguidade’. Por outro lado, nem na literatura, nem nas artes visuais, Medeia aparece sendo punida; contrariamente a herofnas como Dido ou Antigona, nem mesmo sua morte é repre- sentada, enquanto sua feliz vida péstuma é mencionada, por exem- plo, pelos supracitados [bico e Siménides. Em todos os aspectos, Medeia triunfa. Ao final da cragédia de Euripides, seu carro alado aparece no mesmo espago cénico destinado aos deuses. Na primeira época moderna, Medeia é representada em dife- rentes momentos da vida, Em meados do Quinhentos, ela aparece em uma gravura de Bernard Salomon (1557) das Metamorfoses de Ovidio no momento em que rejuvenesce Eson, o pai de Jasdo®. Essa imagem serviria como modelo para similares em muitas outras edi- goes italianas e alemas de Ovidio — por exemplo, a ilustrada por Antonio Tempesta, que, sem ser uma cépia dela, repete seus prin- cipais motivos. Medeia aparece como uma mulher jovem, seminua e com 0 cabelo solto, preparando a pogao magica que ird curar Eson. Eson esta deitado no chao, e, atras dele, vé-se um altar rodeado por sete tochas. No sétimo livro das Metamorfoses, de fato, Ovidio descreve longamente esse ritual, assim como os poderes magicos de Medeia. Significativamente, porém, ele nao narra o filicidio. A mesma cena aparece, por exemplo, na tela Medeia e Jasdo de Girolamo Macchietti, pintada em principios dos anos 1570 para 0 studiolo de Francisco 1 no Palazzo Vecchio, em Florenga®. Nessas imagens, Medeia é figurada como alguém que da a vida, ao invés de 8. Uma excegio é um desenho de Poussin atualmente conservado na British Royal Collection. 9. A gravura tem importantes predecessores, como uma edigdo latiaa das Metamorfases publicada por Tusculani (Benacum, Alexandri Paganini (Alexandrus Paganinus], 1526), € atuualmente conservada na Bibliotheque Nationale de France. 10. Cf.M. Rinehart,"A Document for the Studiolo of Francesco em M. Barasch ¢ L. Freeman Sandler (orgs.), Art the Ape of Nature. Studies in Honcr of H. W. Janson. A Representacao de Medeia durante os Séculos xvi e xvi. 261 tird-la — muito embora elementos pictéricos, como os tons notur- nos, contribuam para criar uma atmosfera misteriosa e assustadora. Do ponto de vista da representacio da ira, ela surge diretamen- te, se ndo em todas, ao menos na imensa maioria das representagdes literarias de Medeia. Nao ha divida de que ela age sob seu efeito, como também nao ha dtivida de que tem razées para sentir-se ira- da. Seu conflito interno é claro — nao necessariamente entre amor pelas criangas e édio do marido, mas entre a compreensio do fato de que estA prestes a cometer um crime moralmente inaceitdvel e sua propria ira. Segundo Aristételes, a ira nao é, necessariamente, uma emo- 40 negativa. Se mantida sob controle, a ira, de acordo com ele, estimula a justia e motiva a busca pela vitéria em todo tipo de contenda, Para Séneca, por outro lado, uma vez que a ira é “do- mada’, isto é uma vez que ela passa a ser controlada por outras instancias psicoldgicas, deixa de ser ira, pois, caracteristicamente, nao pode ser controlada pela razdo. Essa disputa torna-se clara na anilise das ages de Medeia, Em Séneca, sua histéria é, po- tencialmente, a de todos aqueles que amam, pois ninguém que sucumba as paixées esté livre de cometer atos vis: “Se procuras saber que limite has-de impor ao teu édio, 6 desditosa, copia o teu amor™, Para Aristoteles, é possivel amar e set virtuoso; para Séneca, porém, nao ha paixao erética capaz de frear seus préprios excessos. As paixdes tornam o homem dependente de algo que lhe é externo, e que, portanto, nao pode controlar, Em sua tragédia, Séneca explora magistralmente esse atgumento ao demonstrar, a partir do exemplo de Medeia, como 0 amor descontrolado pode levar a ira, e como esta, por sua vez, é mais poderosa do que qual- quer moralidade. Para Aristételes, por outro lado, a auséncia de ira é um vicio tao grande quanto seu excesso; o homem moralmente correto é nao aquele que nunca se sente irado, mas, antes, aquele cuja ira € pro- ut. Séneca, Medeia, verso 397, p. 62 (na tradusao de A. A. Alves de Sousa). 262 — Ensaios Interdisciplinares sobre o Renascimento Italiano porcional a ofensa’, A ira descontrolada leva a irascibilidade, mas sua total auséncia, 4 frouxidao. Os estoicos, como se disse, pensam de modo diferente: todas as paixdes, inclusive a ita, sio nocivas 4 virtude e devem ser totalmente erradicadas. O filésofo estoico Crisipo, contrariamente a Platao, acreditava na unidade da alma, ¢ ndo na sua diviséo em uma parte racional e outra irracional. Em seu artigo “Medea Among the Philosophers’, John M. Dillon mostra que estoicos e platénicos mantiveram igualmente uma dis- cussdo acalorada a respeito de Medeia: platénicos, como Galeno, consideravam-na uma manifestagao da divisio da alma, enquanto estoicos, como Crisipo, argumentavam que, apesar de Medeia ter procurado culpar a ira por suas acées, estas foram, nao obstante, suas: de um ponto de vista estoico, apesar de quaisquer adversi- dades, deve prevalecer a serenidade'. A pega de Euripides ofereceu material precioso para essas dis- cuss6es. Poucas passagens literdrias podiam expressar melhor a com- preensao de Medeia de sua propria ira — e suas consequéncias ~ do que 08 versos 1078-1080 da tragédia grega: “Compreendo bem o cri- me que vou perpetrar, mas mais potente do que meu juizo é minha ira, que é causa dos maiores males para os mortais’. De acordo com Crisipo — que cita expressamente essa passagem —, aalma de Medeia nao esta dividida aqui; ela simplesmente reconhece a subjugacao da tazio pela paixio’. Em fins do século 1 d.C., Epiteto utiliza a mesma passagem para demonstrar que nao é possivel realizar nenhum ato a menos que, em seu conjunto, acredite-se ser ele a melhor alternativa’. 12. Cf. Aristéreles, Etica a Nicémaco, liveo rv, cap. 5: “Louva-se 0 homem que se encoleriza justificadamente com coisas ou pessoas e, além disso, como deve, na devida ocasio e durante o tempo devido” 3, J. M. Dillon, “Medea among the Philosophers’, em J. J. Clauss e S. I. Johnston (orgs.), op. cit. 14, Sobrea relagio entre Euripides e Séneca, cf. G. Braden, op. cit, pp. 33 ¢ ss. Para uma anilise comparativa entre as pecas, cf. S. Oblander, Dramatic Suspense in Euripides and Seneca’s Medea. 15, CE£.J.M. Dillon, op. cit, p. 212 16. Idem, ibidem, p. 15. O autor indica como essa passagem de Euripides chegou a ser parodiada por alguns escrivores durante os primeitos séculos d2pois de Cristo. A Representagéo de Medeia durante os Séculos xvre xvi. 263 De acordo com 0 fildsofo, porém, nao se deve reprovar Medeia, mas compadecé-la, pois ela foi enganada por si prépria’. A compreensao racional de suas paixdes est4 igualmente em linha com o tratado De Ira, de Séneca, no qual o filésofo expli- ca como os animais, privados de razio, sio incapazes de sentir-se irados". A razao e as paixdes, segundo o filésofo, nao habitam em provincias separadas, mas consistem em oscilagées da mente para melhor ou para pior®. As paixées ndo diferem das faculdades ra- cionais humanas, mas elas tém o poder de transformé-las. Por essa razdo, o melhor que se pode fazer é resistir a elas desde o principio. Do ponto de vista estoico, Medeia tomou uma resolugio ao assassinar os filhos, e este é um ato racional de sua alma. A questao da tomada de decisao é central para o desenvolwi- mento da iconografia de Medeia na Antiguidade. Uma das mais famosas representag6es antigas suas é a assim chamada Medeia de ‘Timémaco (ver Figura 1), um afresco produzido no periodo flavia- no e encontrado na Casa dei Dioscori, em Pompeia, e que foi prova- velmente realizado a partir da obra perdida de Timémaco. Medeia é representada de acordo com Euripides, durante 0 mondlogo que antecede o filicidio. Nessa passagem, como vimos, ela muda de ideia por um momento, cedendo ao amor pelas criangas, somente para em seguida retomar seu plano de vinganga. Em um quarto simples, construfdo a partir de formas geométricas e cores discretas, Medeia olha com pena os filhos enquanto eles brincam inocentemente sob a supervisao do tutor. Sua expressdo facial denota uma tensao profinda; tla Inca consigo mesma, tendo em mos avadaga ainda! abaixada. O artista revela com enorme inteligéncia a indecisio de Medeia ao estabelecer uma linha que, caindo exatamente sobre sua cabega, separa uma Area mais clara de outra, mais escura, Lessing 1 Bpiteto, Discurses, 128.7. 18. Séneca, De Ira, 1, 3. 19. Idem, ibidem, 1,8. 20. Plinio, o Velho (Histéria Natural, 7126, 35.126), afirma gue o proprio Jilio César possufa a obra original, a qual ladeava uma representagio de Ajax. 264 — Ensaios Interdisciplinares sobre o Renascimento Italiano adorava essa obra, a qual considerava um perfeito exemplo de repre- sentagao do instante fecundo*. Outro aftesco, este em Herculano, representa 0 mesmo momento da tragédia (ver Figura 2). Tudo nessa imagem — do olhar angustiado de Medeia ao entrelacamento nervo- so de seus dedos — parece querer enfatizar seu conflito, movendo 0 observador 4 compaixao. Epiteto, como dito anteriormente, afirmou que Medeia deve ser antes compadecida do que odiada; o fato de sua alma ter se afascado da verdade nao é sua culpa, e devemos estar, mais que irados, apiedados, pois ela foi enganada por si mesma. Se o relato de Plinio é veridico, Jiilio César Ppagou oito talentos pelas imagens de Timémaco representando Medeia e Ajax — um pre- go altissimo — e colocou-os no templo de Venus Genetrix, Tanto 0 seu Prego quanto a colocagio demonstram que essas obras eram tidas em alta estima, Timémaco ~ se é ele, realmente, 0 autor do protéti- Po — conseguiu expressar visualmente o processo interno de tomada de decisao de Medeia, enquanto, ao mesmo tempo, desperta a com- paixao do observador ao colocar-lhe diante dos olkos as vitimas de um destino que, sabemos, jé esta selado. Nao é possivel saber até que Ponto Timémaco ¢ os outros artistas romanos que figuraram Medeia conheciam os debates filoséficos mencionados anteriormente, mas é provavel que, na segunda metade do século ra.C.,a discussio estoica sobre a ética da tomada de decisdo tenha contribuido para o interesse de César pelas obras e para o seu sucesso™. Essas leituras confrontantes de Medeia, sua decisio e sua ira, parecem ter chegado até a primeira época moderna. Em 1648, Rembrandt produziu uma gravura chamada Medeia, ou o Casamento de Jasdo e Cretisa (ver Figura 3). No ano anterior, a tragédia Medeia, composta por Jan Six, amigo de Rembrandt ¢ mecenas, foi encenada em Amsterda. A gravura foi reproduzida no frontispicio da tragédia, apesar de 0 momente escolhido por Rembrande nao ser tratado na pea, A obra de Rembrande tem afi- a. CEK.Gutzwiller,"Seeing Thought; Timomachus’ Medea and Eephrastic Epigram’, American Journal of Philology, vol. 125, n. 3, 2004. 2, Idem, ibidem, p. 360. A Representagao de Medeia durante os Séculos xvie xvit.. 265 nidades conceituais notaveis com a tradicdo de Timémaco, mesmo que 0 momento que os artistas escolheram representar nado seja o mesmo. Em uma atmosfera marcada por fortes contrastes de luzes e sombras, Medeia aparece em uma rea escura em primeiro plano, A direita da composi¢ao, segurando uma adaga e 0 que parece set 0 manto envenenado que destinou a Cretisa. A esquerda, celebra-se 0 casamento de Jasao e Cretisa no interior de uma igreja contempora- nea. Medeia, assistindo solitaria a alegre celebragao, transforma-se em uma figura patética, levando o observador a compadecé-la, de acordo com a leitura empatica de Epiteto. Esse sentimento é enfa- tizado pela quatrina que se lé sob a gravura: “Cretisa ¢ Jasao, aqui, celebram seus votos. Medeia, esposa de Jasao, injustamente aban- donada, lamenta-se, enquanto o desejo de vinganga vai nascendo. O infidelidade, que alto é 0 seu prego” Ja foi notado que nenhuma das dramatizagées — incluindo a de Jan Six — da historia de Medeia anteriores a 1670 inclui a cena do casamento de Jasio e Cretisa. De acordo com Sergiusz Michalski, a cortina suspendida de um ponto sobre a arcada indica que 0 ca- samento foi encenado como vertooning, ou tableau vivant, entre o segundo € 0 terceiro ato. Esse tipo de tableaux vivants encenados entre atos e revelados por cortinas suspensas tinha por objetivo, frequentemente, sintetizar os principais aspectos morais da pega, os quais, nesse caso, telacionar-se-iam a ideia segundo a qual as terriveis agdes de Medeia foram precipitadas pelo casamento ilicito de Jasao, assim como a peripateia, isto é, 0 momento de viragem que anuncia que a felicidade de Jasao ¢ Cretisa logo sera destruida pela desgraca. A forga do neoestoicismo na Holanda durante o século xvi &bem conhecida; no teatro, sua influéncia é particularmente mar- cante", Enfatizar 0 momento em que Jasao se casa, assim como a 23. S.Michalski,"Rembrandt and the Church Interiors of the Delft School’, Artibus et Historiae, vol. 23, n. 46, 2002, p. 191. 24. C£.M.A.Schenkeveld, Dutch Literature in the Age of Rembrandt: Themes and Ideas, Pp: 64 ¢ 85, 266 — Ensaios Interdisciplinares sobre o Renascimento Italiano transformagao interna de Medeia, poderia ser uma resposta A cir- culagao de ideias neoestoicas na sociedade holandesa contempo- ranea a Rembrandt, Os contrastes potentes de luzes e sombras — também presentes nos frescos de Pompeia e Herculano — nao apenas sublinham o pathos dramatico da situagio, mas também apontam para a dualidade dos sentimentos de Medeia ~ ira, com- paixdo — e do observador. Actedito que a fonte literéria de Rembrandt é 0 décimo segun- do poema das Heroides de Ovidio, no qual Medeia lamenta-se pela infidelidade de Jasao. Ela comega sua epistola recordando tudo 0 que havia feito por ele e como sua desgraca comega justamente no momento em que o vé pela primeira vez. Medeia recorda, doloro- samente, como precisou assistir ao casamento de Jasdo e Cretisa: Cumprindo a ordem, saf da casa acompanhada dos dois filhos e daquele que me segue sempre: 0 amor por ti. Chegou subitamente aos nossos ouvidos © canto de Himeneu, ¢ cintilam as lampadas pelo foge inflamado, e a lauta entoa os cantos do Himeneu para vds, mas, para mim, cantos mais lastimosos do que os que s4o entoados em um enterro. Tive muito medo e até entio nio pensava que era téo grande o crime; contudo, o peito inteiro estava gelado. A multidao se precipita e grita“Himen, Himeneu’, frequentemente; quanto mais prdximo esse canto estava, tanto pior era para mim’. Na parte final da epistola, porém, o sofrimento de Medeia transforma-se em ira e desejo de vinganga. A quatrina sob a gra- vura de Rembrandt sublinha o sentido da carta de Medeia nas Heroides: a infidelidade de Jasio perturbou suas emogées de tal maneira que a forcou a cometer um crime. Por outro lado, foi sua abertura ao amor que a tornou vulnerdvel a paixdes descontrola- das; Medeia transforma-se em vitima de suas préptias emogoes, e, nesse sentido, exemplifica o mal que pode advir da falta de con- trole sobre si e do excessivo amor. 25. Ovidio, Heroides, versos 135-144 (tradugio de L. de S. Lopes, Medeia amans: Elementos Elegiacos na Heroide x1r de Ovidio). A Representagéo de Medeia durante os Séculos xvie xvi. 267 As Heroides parecem ter sido a fonte literdria de uma pin- tura holandesa contemporanea. Trata-se da Medeia de Paulus Bor, atualmente conservada no Metropolitan Museum of Art. Produzida, assim como a gravura de Rembrandt, em c. 1640, a pin- tura representa uma melancélica Medeia descansando o rosto na mao direita enquanto, com a esquerda, segura uma varinha magica cujos poderes jé nao tém como lhe setvir. Algumas décadas antes disso, Rubens produziu um tipo mui- to diferente de Medeia (ver Figura 4): no verso de um desenho representando trés grupos de apéstolos durante a Ultima Ceia, © artista esbogou trés vezes Medeia carregando os cadaveres dos filhos. Todos os esbogos a figuram em movimento, o cabelo solto € esvoacante, enquanto arrasta os corpos mortos das criangas. A expresso facial de Medeia pode ser vista duas vezes; 4 esquerda, ela aparece mais contida, enquanto, a direita, abre violentamente a boca em um grito de ira. No esbogo da esquerda uma faca aparece presa ainda ao corpo de uma das ctiangas, acentuando o pathos violento da composig4o, O artista procurou enfatizar a indiferenga de Medeia pelos filhos, os quais arrasta como objetos; 0 esbogo do meio mostra 0 quao cuidadosamente Rubens estudou as posigdes dos personagens. A inscrigdo do desenho, na qual se lé a frase “Medeia, olhando para tras para Cretisa em chamas e para Jasdo, como que perseguindo’, mostra que Rubens pensou em represen- tar 0 contraste entre sua raivosa express4o ao olhar para seus ini- migos e seu sangue-frio relativamente 4 morte das criangas. Nessa imagem, mais talvez do que em qualquer outra durante a primeira época moderna, Medeia aparece como a personificagao da ira e da vitéria do ddio sobre o amor, 26, Rubens realizou um segundo desenho de Medeia, 0 qual se encontra atualmente no Boymans-van Beuningen Museum de Roterda. Ele finalizou ambos os desenhos, mais provavelmente, durante os primeitos anos de sua estadia na Ieélia (c. 1600-1608). Particularmente no caso do desenho de Roterda, o artista pode ter utilizado um modelo antigo — por exemplo, o sarcéfago de Medeia em Ancona, ou o do Palazzo Ducale de Mantua, Cf, N. Dacos, “Rubens in Italia. Le Mostre del Quadricentenario’, Prospettiva, 18, 1979, p. 71 268 — Ensaios Interdisciplinares sobre 0 Renascimento Italiano ‘Também nesse caso o artista poderia ter concebido sua obra sob a influéncia de ideias neoestoicas, A relagio entre Rubens ¢ Lipsius mereceu uma enorme aten¢ao ao longo das ultimas décadas”. O irmao do pintor, Philip, estudou com Lipsius, e Rubens 0 repre- senta, entre outras obras, em sua tela Quatro Fildsofos, produzida na mesma época em que os desenhos de Medeia. Nessa pintura Lipsius é representado sob 0 busto de Séneca, ensinando; entre os estudantes conta-se, além do préprio pintor edo humanista Jan van der Wouwer, 0 irmao de Rubens*, Entre 1612 e 1613 0 artista produ- ziu, ainda, uma Morte de Séneca, representando o momento em que 0 filésofo se suicida. De acordo com Morford, nesses anos 0 artista encontrava-se preocupado com 0 conccito estoico de apatheia, isso 6 a independéncia das paixdes ¢ de eventos e objetos externos*. A vivida representagao da ira de Medeia, nesse sentido, poderia prover 0 perfeito exemplo do que uma alma em desequilibrio é capaz, se se permite depender tanto de coisas que ndo podem ser controladas. Medeia, novamente, serve como exemplum — nao porque seja ela propria punida, mas porque inocentes perecem, Para concluit, a resposta 4 questao de como Medeia é repre- sentada nas artes visuais durante a primeira época moderna nao & univoca. Ela pode aparecer nado sé como uma representagdo quase arquetfpica da ira, de acordo com a tipologia de Hordcio na Ars Poetica — Sit Medea ferox invitaque [Que Medeia seja feroz e inven- civel] —, mas também como o campo de batalha de sentimentos como pena e ira. Ilustragdes das Metamorfoses de Ovidio, por outro lado, enfatizam seus poderes magicos e feitos memordveis, ainda que elementos como tons noturnos, simbolos de feiticaria, e em alguns casos até mesmo deménios alados, sirvam para criar uma 27. Cf. especialmente M. P.O. Morford, Stoics and Neostoics: Rubens and the Circle of Lipsius, cap. 6. © livro foi resenhado diversas vezes ¢ despertou importantes discusses no campo da recepgao do estoicismo durante a primeira época moderna. 28. CES, Sebastian, Emblemdtica e Historia del Arte, pp. 261-262. 29. Deacordo com M. P.O. Morford (0p. cit, p.193),a morte da filha, em 1623, ¢, pouco depois, em 1626, da esposa, levou Rubens a admitir que nao era capaz de suportar estoicamente esse tipo de acontecimento. A Representacéo de Medeia durante os Séculos xvre xvi. 269 atmosfera aterradora. Uma das maiores dificuldades relacionadas A anilise de representagdes iconogréficas de Medeia é a diversidade do seu carder. Como apontado por Sarah Johnston, alguns perso- nagens mitolégicos conectam-se a certo ato ou episddio; outros, a um tipo ou qualidade (Ulisses, por exemplo, vive muitas aventu- ras, mas em todas elas esto presentes sua astiicia e perseveranga)”. Medeia, por sua vez, personifica atributos e caracteristicas diferen- tes, e, em alguns casos, mesmo opostos; ela pode ser representada como a feiticeira das Metamorfoses de Ovidio; a esposa abandonada que deve ser antes compadecida que odiada, ou, ainda, a arena na qual pelejam sentimentos contrdrios. Nao resta dtivida de que ela tenha sido um dos personagens favoritos de estoicos e neoestoicos, e de que haja importantes pa- ralelos entre De Ira ea Medeia de Séneca. Na primeira época mo- derna, Medeia parece ter sido representada com frequéncia em contextos permeados pela circulagao de discussdes neoestoicas, sobretudo nos Paises Baixos. As agées de Medeia, independentemente do perfodo ou meio, sempre parecem guiadas pela ira, e esse sentimento, apesar de pos- siveis consideragées sobre suas causas, sempre é condenado; o modo pelo qual ele é interpretado, porém, pode servir como fio condutor para a compreensao de percepgoes sobre a ira em distintos contex- tos histéricos. Referéncias Bibliogrdficas Anistoretes. Etica a Nicémaco. Trad, Leonel Vallandro ¢ Gerd Bornheim da versao inglesa de W. D. Ross. In: _. Os Pensadores. Sao Paulo, Nova Cultural, 1973. Braven, Gordon, Renaissance Tragedy and the Senecan Tradition. Anger’s Privilege. 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Afresco. Museo Archeologico Nazionale, Népoles. Figura 2. Medeia, perfodo flaviano (segunda metade do século 1 d.C.). Afresco. Museo Archeologico Nazionale, Népoles. 272 Ensaios Interdisciplinares sobre o Renascimento Italiano A Representagio de Medeia durante os Séculos xvteXvite 273 Figura 4. Rubens, Trés Desenhos para Medeia e Seus Filhos, c. 160¢-1608, Desenho em pena e tinta marrom. J. Paul Getty Museum, Los Angeles. Figura 3. Rembrandt, Medeia, ou 0 Casamento de Jasdo ¢ Cretisa, 1648, Gravura. Colegio privada. 274 — Ensaios Interdisciplinares sobre o Renascimento Italiano A Representagio de Medeia durante os Séculos xvte xvtte. 275

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