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INFORMÁTICA NA EDUCAÇÃO: teoria & prática Porto Alegre, v.13, n.1, jan./jun. 2010.

ISSN digital 1982-1654


ISSN impresso 1516-084X

Devires contemporâneos:
mutações do homem, do trabalho e da tecnologia

Contemporary becomings:
mutations of man, work and technology

Resumo:
A partir observação de que o ambiente tecnológico da revo-
lução industrial – com seus fluxos materiais impulsionados
José Mário d’Avila Neves
pelas esteiras fabris e seu regime mecânico-geométrico –
fez emergir a forma do operário como sujeito do trabalho, o
texto problematiza o que está emergindo hoje no ambiente
Tania Mara Galli Fonseca
tecnocientífico da tecnologia digital – com seus fluxos ima-
teriais, sua tendência virtualizante e seu modelo informá- Universidade Federal do Rio Grande do Sul
tico-molecular. O exame do impacto da tecnologia digital
sobre todas as esferas do viver e, em especial, do trabalhar,
revela a emergência de um novo sujeito do trabalho – uma
nova imagem do trabalho na forma do agenciador tecnoa-
fetivo, como o agente híbrido que trabalha na escala mole-
cular das interfaces, onde se organizam as passagens entre
1 Introdução
reinos e onde as singularidades constituintes dos homens e
das coisas se enlaçam num duplo devir.

O
Palavras-chave: Tecnologia Digital. Trabalho. Subjetiva-
ção. Ciência e Civilização. Revolução Tecnológica. que vimos nas últimas décadas não dei-
xa margem para dúvida – efetivamente
Abstract:
Based on the observation that the industrial revolution te- estamos imersos no olho de um furacão
chnological environment – with its material flows propelled chamado revolução tecnocientífica. As novas
by factory conveyor belts and its mechanical-geometrical
regime – made the shape of the manual worker as a subject tecnologias – especialmente com os avanços
at work emerge, this text problematizes what is emerging
in technoscientific environment of digital technology – with
da biotecnologia e da nanotecnologia e com a
its immaterial flows, its virtualizing tendency and its com- difusão do computador e da internet, digita-
puterized molecular model. The analysis on the impact of
digital technology over all spheres of living and, particularly, lizando sistemas e automatizando processos
of working, unveils the emerging of a new subject at work em larga escala – impactaram profundamen-
– a new image of work in the shape of the technoaffective
agent as the hybrid agent that works at the molecular scale te a cultura, o trabalho e todas as demais di-
of interfaces, where the passages between kingdoms and
where the singularities which constitute men and things en- mensões da vida social de forma incontorná-
lace each other in a double becoming. vel. Segundo Santos (2003a, p. 9-10), “[...] a
Keywords: Digital Technology. Work. Subjectivation.
Science and Civilization. Technological Revolution. nossa experiência é crescentemente mediada
[...]” pelas máquinas – talvez seja mais preci-
so dizer, é crescentemente produzida com as
máquinas – e nossa existência cada vez mais
modulada pela aceleração tecnológica:

[...] nos anos 90 a tecnoesfera, a segunda na-


tureza, suplantou de vez a natureza, rompen-
do-se então a concepção puramente utilitária
que tínhamos da tecnologia. Descobrimos que
a potência das máquinas se exerce em todas
as dimensões da vida de um modo muito mais
extenso e intenso do que podíamos imaginar.
NEVES, José Mário d’Avila; FONSECA, Tania Mara Galli. Devi-
(SANTOS, 2003a, p. 9-10)
res Contemporâneos: mutações do homem, do trabalho e da
tecnologia. Informática na Educação: teoria & prática, Porto
Alegre, v. 13, n. 1, p. 75-90, jan./jun. 2010.

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Essas transformações vêm aceleradamen- [...] a Primeira Revolução Industrial foi marcada
pela mecanização. A máquina a vapor proporcio-
te desqualificando a forma de viver e de pen-
nou um aumento na produtividade em relação
sar que emergiu na modernidade: tornando à produção artesanal. Já na Segunda Revolução
obsoletos equipamentos, tecnologias e pro- Industrial a eletricidade marcou os avanços,
permitindo um acelerado crescimento industrial.
cessos, modos de produzir e modos de tra-
Com isso, cresceu a produtividade e foi necessá-
balhar; alterando profundamente nossas re- ria uma nova orientação da ação dos trabalha-
lações com o conhecimento e com a ciência; dores, [...] Assim, começou a ser engendrado o
transformando radicalmente nossa percepção método de administração científica desenvolvido
por Taylor. (PETRÓ, s/d, p. 1)
e experiência do tempo e do espaço; trans-
figurando nossas relações com a natureza;
e instigando o surgimento de novas relações A envergadura dessas transformações
sociais. Para não sucumbir, conforme Santos evidencia que não estávamos mais diante da
(2003a, p. 127), “[...] é preciso correr contra simples técnica do passado, mas que a revolu-
a crescente obsolescência programada que ção industrial avançara em direção a um novo
ondas tecnológicas e a altíssima rotatividade patamar tecnológico, que se caracterizou pela
do capital reservam para pessoas, processos integração e fusão, num mesmo processo, de
e produtos [...]”. diferentes avanços técnicos (conhecimentos
Temos, assim, todas as esferas da vida sob científicos, domínio de materiais, especializa-
o impacto das novas tecnologias, mas talvez ção de procedimentos, habilidades de coor-
seja no mundo do trabalho1 que este impacto denação e planejamento, etc.). Mais profun-
esteja sendo vivenciado de forma mais dra- damente, poderíamos ainda dizer que essas
mática – seja pela importância do trabalho mudanças co-engendram - isto é, instauram
para a subsistência material das pessoas, seja e expressam - uma nova matriz sociotécnica,
pelo seu papel na economia subjetiva do su- uma vez que essas produções técnicas são ex-
jeito contemporâneo2. O mundo do trabalho, pressão de um campo problemático, como nos
como o conhecíamos, está sendo suplanta- mostra Sibilia (2003, p. 11): “Os aparelhos e
do por esta nova realidade tecnológica, que ferramentas exprimem as formas sociais que
passa a liquefazer e redesenhar radicalmente os produzem e lhes dão sentido, formando re-
tudo que vigorou nos últimos dois séculos. des, teias de pensamento, matrizes sociais,
econômicas, políticas, que perpassam o corpo
social inteiro.”
2 Tecnologia e trabalho no mundo A matriz sociotécnica do mundo moderno,
moderno que teve o seu curso inaugurado pela Revo-
lução Industrial, além de fundar-se na nova
forma assumida pela riqueza – a forma do ca-
Cabe dedicarmo-nos a examinar, mesmo pital3 –, assentou-se em potentes e inusitadas
que rapidamente, o mundo do trabalho mo- forças: a força de uma nova ciência, que ga-
derno, que hoje vemos em avançado proces- nhava autonomia em relação à religião e pos-
so de desfazimento. Poderemos, assim, vis- sibilitava ao homem a ambição de domínio da
lumbrar linhas de força e tendências que nos natureza (as antigas ciências dão lugar à biolo-
ajudem a pensar a natureza do acontecimento gia, à economia política, à lingüística); a força
em curso. O mundo do trabalho moderno é da tecnologia mecânica e analógica, que proli-
resultante de uma série de transformações ferava a potência e as habilidades humanas; a
tecnológicas, conforme observa Petró: força do carvão, da eletricidade e do petróleo,
que multiplicavam infinitamente a energia da
tração humana e animal; e a força das tecno-
logias disciplinares e biopolíticas – conforme
análise da sociedade disciplinar, empreendida
1 Nesse sentido, Costa (2003, p. 9) assinala que: “São vi-
síveis as modificações presenciadas na esfera do trabalho, por Foucault –, que ordenava as massas e do-
que tem seu dia-a-dia marcado cada vez mais forte pela
presença dos computadores, da Internet e dos telefones
cilizava os corpos, tornando-os úteis.
celulares”. Esse curso histórico que inventou o mun-
2 Conforme vemos em Guattari e Rolnik (1996, p. 28): “A
produção de subjetividade encontra-se, e com um peso
cada vez maior, no seio daquilo de Marx chama de infra- 3 Cabe assinalar que, para Marx, o capital é, fundamental-
estrutura produtiva”. mente, uma relação social.

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do moderno, e que chegou ao seu ápice com como também para organização das próprias
o taylorismo-fordismo (quando também de- formas de resistência ao processo em curso –
monstrou ter chegado ao seu limite), fez emer- através das organizações sindicais e partidos
gir uma forma social nova, em substituição às operários – e para a conformação das demais
formas do sujeito do trabalho dominantes no instituições da sociedade, que passaram a ser
período pré-revolução industrial – que eram por eles colonizadas. Portanto, da mesma for-
as formas do servo/camponês e do artesão. ma que irrompeu o cidadão como uma nova
Nesse ambiente sociotécnico – com seus flu- forma sociopolítica a partir do século XVIII,
xos materiais e simbólicos impulsionados pelas no século XIX surge o operário como a nova
esteiras fabris e seu regime mecânico-geomé- forma do sujeito do trabalho.
trico – surge uma nova imagem do trabalho na Sibilia (2003) observa que talvez a máqui-
forma do “operário”. O operário emerge como na mais representativa do capitalismo indus-
a nova forma social do sujeito4 do trabalho, trial não seja nenhuma daquelas que ficaram
um novo modo de ser, suplantando as formas marcadas como seus principais emblemas – a
do servo/camponês e do artesão. locomotiva, a máquina a vapor, o automóvel,
Cabe ressaltar que o operário, como uma os teares – mas o relógio. Ele é a melhor ex-
nova forma social, um novo modo de ser, cons- pressão do violento processo de esquadrinha-
titui-se num novo ser, no sentido ontológico, mento do tempo em uma escala cronológica
conforme assinala Costa (2009, p. 27): “Ao isométrica e da imposição da batida e do rit-
inquirirmos os modos do ser ser estamos já mo regular da máquina sobre um homem até
problematizando o ser como é, pois os modos então pautado pelo tempo múltiplo dos ciclos
de ser, ser já são.” Ou seja, o operário não é naturais, fisiológicos e sociais5. Segundo ela
um servo/camponês ou um artesão transfor- (2003, p. 24), o relógio “simboliza como ne-
mado ou deslocado do campo ou da pequena nhum outro as transformações ocorridas na
oficina para dentro de uma linha de produção sociedade ocidental em sua árdua transição
fabril, trata-se da emergência de um novo ser, para o industrialismo e para a lógica discipli-
um ser que não tinha existência antes de ser nar.”
inventado por esse novo jogo de forças. Não foi nem simples nem natural o pro-
O surgimento do operário não significa cesso de composição da forma operário. Pelo
que ele tenha se tornado a forma exclusiva contrário, fez-se necessário a elaboração e
ou mesmo majoritária, mas antes uma ten- colocação em ação de um conjunto de práticas
dência que exercia o poder de transformação e de técnicas minuciosas, articuladas em dife-
e modulação sobre as demais, conforme ob- rentes estratégias de ortopedia social6, con-
servam Hardt e Negri, ao analisar o trabalho forme analisou Foucault em suas pesquisas,
industrial: para inventar o operário produtivo e discipli-
nado e para fixá-lo ao aparelho de produção
capitalista.
Essa forma hegemônica funciona como um vór- A exposição de elementos da trajetória
tice que gradualmente transforma as outras for-
de constituição do mundo moderno, na qual
mas, fazendo-as adotarem suas formas centrais.
[...] Não somente as práticas mecânicas como emerge o operário como a nova figura do su-
também os ritmos de vida do trabalho industrial jeito do trabalho, teve dois importantes ob-
e seu dia de trabalho foram gradualmente trans- jetivos. O primeiro, de analisar as linhas de
formando todas as outras instituições sociais,
como a família, a escola e as forças armadas. forças e tendências que orientaram este pro-
(HARDT; NEGRI, 2005, p. 148) cesso, de forma a buscar indicativos para pen-
sar a natureza da dinâmica de desconstituição

Assim, o trabalho industrial e a forma ope-


5 Segundo Foucault (1991, p. 137) esse processo de im-
rário tornaram-se tão universalmente he-
posição contou com a experiência da congregações reli-
gemônicos que se converteram em referên- giosas, que durante séculos “[...] eram as especialistas do
tempo, grandes técnicos do ritmo e das atividades regu-
cia não só para a organização da produção e lares [...]”.
para regulação geral das relações de trabalho,
6 Cabe destacar que as práticas e estratégias que inven-
tam a figura do operário não pressupõem a direção deste
processo por um sujeito consciente nem um movimento
4 Sujeito na dupla acepção de sujeitado a e de agente da teleológico orientado, pois trata-se, conforme Foucault, da
ação. estratégia sem estrategista.

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desse mundo e do que pode estar em vias de 3 Tecnociência na sociedade de


emergir. O segundo, de testar a potência ana- controle
lítica do esquema empregado, que nos permi-
te perceber que a forma operário que o sujeito
do trabalho assume no mundo moderno não Antes de prosseguirmos, uma ressalva
deve ser compreendida de uma maneira na- ainda deve ser apresentada, para explicitar
turalizada ou essencializada. Trata-se de uma que a análise que será aqui empreendida irá
construção social, uma composição que emer- concentrar-se de forma ainda mais acentuada
ge no encontro das forças daquele homem – no exame das transformações do desenvolvi-
que tinha sido empurrado dos campos para as mento científico e tecnológico, sem que isto
cidades – com o conjunto de forças que cons- signifique desprezo pelos demais aspectos
tituíram a matriz sóciotécnica do mundo mo- que compõem o campo de forças do mundo
derno: a força de uma nova ciência iluminista; do trabalho. Consideramos que este esforço
a força da tecnologia mecânica e analógica; a de delimitação faz-se necessário diante dos
força do carvão, da eletricidade e do petróleo; restritos objetivos deste estudo. De qualquer
e a força das tecnologias disciplinares e biopo- forma, cabe assinalar que o desenvolvimento
líticas, conforme analisamos anteriormente. tecnológico aqui analisado pressupõe sempre
Reconhecida a capacidade interpretativa do o entendimento de que este processo ocorre
esquema e a sua potência de desnaturaliza- no quadro de uma íntima aliança entre a tec-
ção7 dos objetos sociais – neste caso específi- nociência e o capital global, mesmo que este
co, o sujeito do trabalho – cabe explicitar que aspecto não seja referido ao longo do texto. A
este esquema analítico segue o entendimen- esse respeito, seguimos o entendimento ex-
to que Deleuze, apresenta do pensamento de presso por Santos:
Foucault, de evidente inspiração nitzscheana,
de que “[...] toda forma é um composto de Mais importante do que a transformação desta
[cultura] em mercadoria parece ser a ‘virada ci-
forças.” (DELEUZE, 1992, p. 145), conforme
bernética’, que selou a aliança entre o capital e a
também encontramos nesta outra passagem: ciência e a tecnologia, e conferiu à tecnociência
“Eis o princípio geral de Foucault: toda forma a função de motor de uma acumulação que vai
é um composto de relações de forças. Estando tomar todo o mundo existente como matéria-
prima à disposição do trabalho tecnocientífico.
dadas forças, perguntar-se-á então primeira- (SANTOS, 2003b, p. 10-11)
mente com que forças de fora elas entram em
relação e, em seguida, qual a forma resultan-
te.” (DELEUZE, 1988, p. 132) Uma rápida avaliação do que se passa
Validado o esquema analítico e devidamen- neste campo evidencia que, mais do que ci-
te creditada a sua fundamentação ao método ência, trata-se de uma tecnociência, na qual
desenvolvido por Foucault, daremos seqüên- se imbricam saberes, equipamentos, capitais
cia à nossa análise, buscando aplicá-lo à tran- empresariais, agências de fomento, articula-
sição da sociedade industrial para a sociedade dos sob a lógica predominante do mercado. A
pós-industrial, na qual nos encontramos atu- antiga fronteira entre ciência básica e ciência
almente. Neste percurso, seguiremos a me- aplicada praticamente inexiste no interior dos
todologia já legitimada: partindo da caracte- laboratórios e centros de pesquisas financia-
rização das grandes dinâmicas e tendências dos pelas grandes empresas e programas de
em curso, buscaremos identificar as forças desenvolvimento tecnológico nacionais e su-
em jogo nestes macroprocessos e, através da pranacionais.
análise destas forças, tentaremos divisar as Duas áreas destacam-se pela velocidade
formas que estão a emergir. com que lançam no mercado novos produtos e
pelos impactos que estes produtos produzem
sobre o funcionamento da sociedade, a vida
das pessoas e o imaginário social – são elas
a teleinformática e as ciências da saúde, com
relevância especial para as originadas pela
7 Conforme observa Veyne (1998, p. 256 ): “[...] cada
prática, tal como o conjunto da história a faz ser, engendra biotecnologia.
o objeto que lhe corresponde [...] não há objetos naturais,
não há coisas. As coisas, os objetos não são senão correla-
Podemos dizer que temos, através da tec-
tos das práticas [...]”. nologia digital, um processo turbinado de cria-

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ção e destruição de mundos8. Vemos, assim, do espaço (anytime, anywhere, telepresença);


esta revolução tecnológica germinando novas novas formas de controle (câmeras, rastrea-
formas de vida – novas formas de sociabilida- mento de comunicações, satélites, controle de
de, de ação social e de produção de si –, ou compras e da navegação na internet), novas
seja, operando maciçamente como vetores de velocidades e exigências. Assim, vive-se sob o
constituição de novas formas de subjetivação, signo da desestabilização9, num processo que
conforme assinala Guattari: é vivenciado como um turbilhão no qual o su-
jeito sente-se engolfado – softwares, máqui-
[...] as máquinas tecnológicas de informação e nas, saberes, técnicas estão submetidos a um
comunicação operam no núcleo da subjetividade
veloz processo de obsolescência, que chega a
humana, não apenas no seio das suas memórias,
da sua inteligência, mas também da sua sensibi- atingir o próprio homem.
lidade, dos seus afetos, dos seus fantasmas in- Na dinâmica de colonização do espaço so-
conscientes. (GUATTARI, 1992, p. 14) cial pelas novas tecnologias, um objeto desta-
ca-se como um alvo especial – o corpo huma-
Os produtos, recursos e possibilidades dis- no, conforme observa Sibilia:
ponibilizados pelas novas tecnologias, rapida-
mente integram-se ao funcionamento social, Afastados da lógica mecânica e investidos pelo
novo regime digital, os corpos contemporâneos
formando matrizes sociais, econômicas e po-
se apresentam como sistemas de processamen-
líticas, atravessando as redes de sociabilidade to de dados, códigos, perfis cifrados, feixes de
e produzindo novas formas de estar no mundo informações. [...] inserido na esteira digital, ele
e, conseqüentemente, novos sentidos para a se torna permeável, projetável, programável.
(SIBILIA, 2003, p.19)
vida e para o que é compreendido como o vi-
ver. São novas formas de perceber o mundo,
de trabalhar, de estudar, de amar, de viver, A natureza, tal como concebida até o sécu-
ou seja, uma nova subjetividade está sendo lo passado, está em acelerado movimento de
aceleradamente gestada nesse ambiente pela reconfiguração, sendo intensivamente revol-
radicalidade das mudanças impostas pela vida e agitada pela ação humana – tanto pelo
tecnociência. Mudanças que alteram profun- avanço exacerbado do processo de transfor-
damente procedimentos, ritmos e lógicas de mação e degradação ambiental (efeito estufa,
como se conduz a existência: re-cortando o extinção de espécies, destruição de ecossis-
território social em novos segmentos, fluxos temas), quanto pela possibilidade da criação
e conexões; provocando novas utilizações do de novas espécies de seres vivos, através da
tempo (na qual o tempo perde seus interstí- engenharia genética (clonagem, transgênicos,
cios e flui contínuo e ondulante); fomentando terapias genéticas) e da produção de híbridos
novas terapias e métodos preventivos para da qual participa o próprio homem (próte-
cuidar da saúde e gestar a reprodução da es- ses, cirurgias plásticas, composições insólitas
pécie; instigando novas técnicas para remo- como os biochips ou wetchips).
delamento do corpo e novos fármacos para o A dicotomia entre vida e morte começa a
controle do espírito. ser abalada, emergindo uma zona cinzenta
Essas transformações também trazem onde antes tínhamos uma linha bem definida
consigo um outro campo de produção de – a morte passa a ser uma questão de grau,
sentidos: um novo universo de significados conforme evidenciam as categorias jurídicas
e operações (como formatar, linkar, reprodu- gestadas nas últimas décadas: morte cere-
ção ilimitada, e-mail, banco de dados, simula- bral, zona de morte, suficientemente morto,
ção); novas definições sobre o que seja saúde grau de reversibilidade, etc. Assim, Santos
e doença; uma nova percepção do tempo e (2003a) observa que o próprio campo jurídico
encontra-se desconcertado pelas dificuldades

8 Lévy (1996, p. 149-150) analisa este processo nos


seguintes termos: “A força e a velocidade da virtualização
contemporânea são tão grandes que exilam as pessoas de 9 Na nova era do capitalismo turbinado, temos, segundo
seus próprios saberes, expulsam-nas de sua identidade, Rolnik (s/d, p 2.), “[...] a desestabilização exacerbada de
de sua profissão, de seu país. As pessoas são empurra- um lado e, de outro, a persistência da referência identitária,
das nas estradas, amontoam-se nos barcos, acotovelam-se acenando com o perigo de se virar um nada, caso não se
nos aeroportos. Outros, mais numerosos ainda, verdadeiros consiga produzir um perfil requerido para gravitar em al-
imigrados da subjetividade, são forçados a um nomadismo guma órbita do mercado. A combinação desses dois fatores
interior”. faz com que os vazios de sentido sejam insuportáveis.”

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de distinguir as pessoas das coisas, do animal tema de ser; [...] a informação é a fórmula da
e da máquina. individuação, fórmula que não pode preexistir
A penetração da racionalidade tecnológica a esta individuação [...]”11, sendo, portanto, su-
em todas as esferas da vida, criando a tecno- ficiente a definição da memória humana como
esfera como o novo ambiente do ser humano, um organismo sociotécnico extra-somático,
traz consigo o esmaecimento da tradicional como definida por Clot (2006), para caracteri-
fronteira entre natureza e cultura e a sus- zar a condição híbrida do humano.
peição sobre a definição do humano que se Bruno Latour (1994) propõe a desconsti-
assentava nesta diferença. Neste sentido, ob- tuição do processo de secção radical entre o
serva Santos (2003a, p. 270): “[...] agora, as mundo das coisas – ciências, natureza, técni-
relações de implicação e de hibridação entre ca – e o mundo dos homens – relações sociais,
homens, máquinas, seres vivos e seres inani- subjetividade – em duas zonas ontológicas in-
mados são tantas e de tamanha envergadura teiramente distintas, pois, segundo ele:
que a própria natureza humana parece posta
radicalmente em questão [...]”. Quando surgiam apenas algumas bombas de
vácuo, ainda era possível classificá-las em dois
Encontramos em Clot (2006) uma definição
arquivos, o das leis naturais e os das representa-
da memória humana como um organismo so- ções políticas, mas quando nos vemos invadidos
ciotécnico extra-somático, na qual evidencia- por embriões congelados, sistemas especialistas,
se a sua natureza profundamente hibridizada: máquinas digitais, robôs munidos de sensores,
milho híbrido, bancos de dados, psicotrópicos
“[...] ele [homem] pôs sua memória fora de liberados de forma controlada, baleias equipa-
si num dispositivo extra-somático. Por isso, das com rádios-sondas, sintetizadores de genes,
transpondo os limites de seu próprio organis- analisadores de audiência, etc; quando nossos
jornais diários desdobram todos estes monstros
mo, ela se tornou o organismo sociotécnico ao longo de páginas, e nenhuma destas quimeras
que hoje conhecemos.” (CLOT, 2006, p. 78). sente-se confortável nem do lado dos objetos,
Apesar desta importante e perspicaz definição nem do lado dos sujeitos, nem no meio, então é
preciso fazer algo. (LATOUR, 1994, p. 53)
apontar para a nova ontologia do humano su-
gerida por Santos, o autor (2006, p. 109) ainda
mantém “[...] a idéia de relações assimétricas Na seqüência desta passagem, ele ainda
entre o sujeito e seus instrumentos.”, assim pergunta provocativamente: “[...] como classi-
argumentando: ficar o buraco de ozônio, o aquecimento global
do planeta? Eles são humanos? Sim, humanos
Porque o homem não é uma memória. Vê-lo pois são nossa obra. São naturais? Sim, na-
nesses termos consiste em isolar, no interior da
turais porque não foram feitos por nós.” (LA-
atividade de pensamento, processos puramente
cognitivos, separados, em acréscimo a essa ati- TOUR, 1994, p. 54) Assim, ele assevera que
vidade. Trata-se de uma neutralização da ação vivemos um “[...] curto-circuito entre a natu-
que identifica os desígnios em ação na vida men- reza, de um lado, e as massas humanas, de
tal com as operações de cálculo complexo efetu-
adas por um computador. (CLOT, 2006, p. 109) outro.” (LATOUR, 1994, p. 54). Na mesma li-
nha, Costa observa que:

E não se associando ao projeto de uma an- Findamos deste modo, com a estrutura dual que
ordena ao mundo segundo uma relação confliti-
tropologia simétrica10, como proposto por Latour
va de oposição entre natureza e não-natureza,
(1994). Neste ponto, nos aliamos plenamente erigindo uma série de pares os quais estriam
ao projeto da antropologia simétrica, pois pen- simetricamente nosso mundo ocidental: natura
samos, com Simondon (2003, p. 109-110), que versus cultura, natural versus artificial, natural
versus contingente, natural versus inventado,
“[...] a informação é um início de individuação, animal versus homem, homem versus deus.
uma exigência de individuação, nunca é uma (COSTA, 2009, p 34)
coisa dada; [...] ela supõe tensão de um sis-

10 Segundo Latour (1994, p. 95), para que a antropologia


se torne simétrica: “É preciso que a antropologia absorva 11 Encontramos também em Santos (2003a, p. 87) esta
aquilo que Michel Callon chama de princípio de simetria leitura ontológica da informação em Simondon: “Gregory
generalizada: o antroplólogo deve estar situado no ponto Bateson definiu informação como ‘a diferença que faz difer-
médio, de onde pode acompanhar, ao mesmo tempo, a ença’; na concepção de Gilbert Simondon, ela é o germe que
atribuição de propriedades não humanas e de propriedades opera a passagem da dimensão virtual da realidade para a
humanas [...]”, pois é nesse ponto médio que os híbridos, sua dimensão atual, possibilitando a individuação tanto da
os quase-objetos e quase-sujeitos proliferam. matéria quanto dos seres vivos e do objeto técnico.”

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Esmaecidas as fronteiras entre natureza e máquinas como nossas adversárias e rivais.”


cultura, entre humano e não-humano, entre (FONSECA, 2008, p. 509)
vivo e não vivo, finalmente se evidencia que Nesta nova realidade, observa Sibilia:
não é mais possível pretender definir uma es-
sência humana, uma essência que defina o que Vai perdendo força a velha lógica serial, mecâ-
nica, descontínua, fechada, esquadrinhada, geo-
consiste o ser do humano, ou, que diga a verda-
métrica, progressiva e analógica das sociedades
de do ser12 humano, e que, por definição, fos- disciplinares, vencidas pelas novas modalidades
se sempre idêntica a si mesma, independente digitais, contínuas, fluidas, ondulatórias, aber-
do tempo e dos seus acidentes. Se não pode- tas, mutantes, flexíveis, autodeformantes. (SI-
BILIA, 2003, p. 29)
mos fechá-lo definitivamente, se não podemos
determiná-lo com uma forma estável, isto não
quer dizer que o humano não tenha nenhuma Podemos dizer que, através destas novas
forma, mas que esta forma é sempre provisó- modalidades, impõe-se uma nova formação
ria, uma composição híbrida, rizomática, uma social, definida por Deleuze (1992) como a So-
heterogênese aberta – conforme Latour (1994, ciedade de Controle, que produz uma discipli-
p. 136): “O humano está [...] na troca contí- narização intensiva – não mais de fora para
nua das formas”. Igualmente, não cabe mais dentro (das instituições para o indivíduo) e em
pensar em termos de evolução natural – de espaços segmentares (escola, família, fábrica,
acordo com Santos (2003a, p. 296) “[...] os pa- etc.), mas molecularizada, dispersa, distribuí-
leoantropólogos, estudando as conexões entre da por todo o espaço social.
a biologia e o comportamento adquirido, falam Deleuze (1992) destaca a íntima associação
na natureza tecno-orgânica da evolução huma- entre o novo patamar tecnológico e o novo regi-
na, como se a história da técnica implicasse me de poder, que velozmente penetra pelos ca-
numa evolução pós-evolucionista.”. pilares e frestas da antiga sociedade disciplinar
O próprio pensamento não pode mais ser e instaura uma nova lógica. Segundo ele:
concebido como exclusivamente humano,
pois, como assinala Parente, cada vez mais É fácil fazer corresponder a cada sociedade cer-
tos tipos de máquina, não porque as máquinas
se efetua como um “[...] processo contínuo de
sejam determinantes, mas porque elas expri-
delegação e distribuição das atividades cogni- mem as formas sociais capazes de lhes darem
tivas que formam uma rede com os diversos nascimento e utilizá-las. As antigas sociedades
dispositivos não-humanos.” (PARENTE, 2004, de soberania manejavam máquinas simples, ala-
vancas, roldanas, relógios; mas as sociedades
p. 103). Lévy desenvolve esta concepção atra- disciplinares recentes tinham por equipamento
vés do conceito de ecologia cognitiva, no qual máquinas energéticas, com o perigo passivo da
defende “[...] a idéia de um coletivo pensan- entropia e o perigo ativo da sabotagem; as so-
ciedades de controle operam por máquinas de
te homem-coisas, coletivo dinâmico povoado uma terceira espécie, máquinas de informática
por singularidades atuantes e subjetivida- e computadores, cujo perigo passivo é a inter-
des mutantes [...]”(LÉVY, 1993, p. 11), como ferência, e, o ativo, a pirataria e a introdução de
vírus. Não é uma evolução tecnológica sem ser,
“[...] coletividades pensantes homens-coisas,
mais profundamente, uma mutação do capitalis-
transgredindo as fronteiras tradicionais das mo. (DELEUZE, 1992, p. 223)
espécies e reinos.”(LÉVY, 1993, p. 133). As-
sim, o autor propõe “[...] uma metodologia
adequada para prevenir dualismos maciços Hard e Negri (2001), também observam a
que tantas vezes nos dispensaram de pensar intrínseca relação entre a tecnologia informa-
e, particularmente, de pensar o pensamento: cional e os sistemas de dominação na socieda-
espírito e matéria, sujeito e objeto, homem de de controle, como vemos no seguinte frag-
e técnica, indivíduo e sociedade, etc.” (LÉVY, mento: “O poder agora é exercido mediante
1993, p. 134). Fonseca também reforça a ne- máquinas que organizam diretamente o cére-
cessidade de superarmos os dualismos, na bro (em sistemas de comunicação, redes de
compreensão do amálgama dos humanos com informação, etc.) e os corpos (em sistemas de
a tecnologia: “Somos todos ciborgues e vive- bem-estar, atividades monitoradas, etc.) [...]”
mos o ocaso das concepções que tomavam as (HARDT; NEGRI, 2001, p. 42). Da mesma for-
ma, Lazzarato correlaciona a emergência da
12 Conforme define Hegel (apud MORA, 1982, p.137): “A
sociedade de controle e o desenvolvimento
essência é a verdade do ser”. tecnocientífico: “A sociedade de controle exer-

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ce seu poder graças às tecnologias de ação ser o foco central da análise, no qual encon-
à distância da imagem, do som e das infor- tramos um conjunto de tendências complexo
mações [...]” (LAZZARATO, 2006, p. 85). Por- e, muitas vezes, contraditórias, isto é espe-
tanto, as transformações do regime de poder, cialmente evidente.
que rapidamente examinamos neste artigo, Conforme examinamos, com os avanços
estão intimamente relacionadas com o fantás- das revoluções tecnológicas da era industrial
tico avanço tecnocientífico contemporâneo, tivemos o afastamento do trabalhador do cen-
sendo este avanço a sua condição de possibi- tro das funções de execução da produção – as
lidade. Isso não poderia ser diferente, pois, se máquinas, as ferramentas e as novas formas
a história mostra que as diferentes formações de energia assumiram o papel central na mo-
sociais sempre estiveram associadas às suas vimentação da produção. Mas não tínhamos ai
respectivas bases tecnológicas, na atual so- um processo de desvalorização absoluta do ele-
ciedade do conhecimento esta relação faz-se mento humano na esfera produtiva, pois o des-
ainda mais crítica. locamento do trabalhador do centro das tarefas
Cabe destacar que nossa avaliação de que de execução gerou uma especialização ainda
o desenvolvimento tecnológico contemporâ- maior nas funções estratégicas de controle e
neo é condição de possibilidade para a ins- planejamento, na coordenação de processos
tauração da sociedade de controle não nos entre máquinas e equipamentos e na execução
associa a uma posição de antagonismo em de movimentos complexos, pois sua capacida-
relação à tecnologia, que podemos chamar de de de armazenar, processar e transmitir infor-
tecnofóbica, como algumas que temos encon- mações era, naquele contexto, insuperável.
trado no debate. Consideramos que este de- Hoje estamos diante de uma nova ten-
senvolvimento também abre um novo campo dência, na qual estas capacidades, até pouco
de possibilidades, para além do atual regime consideradas exclusividades humanas, estão
de dominação. Nesse sentido, seguimos com cada vez mais sendo compartilhadas, e mes-
Guattari que, a esse respeito, assinala ser mo suplantadas, por máquinas e sistemas in-
teligentes de processamento de informação.
[...] preciso evitar qualquer ilusão progressista Esta nova concorrência entre o trabalhador e
ou qualquer visão sistematicamente pessimis-
a máquina no âmbito de funções até recen-
ta. A produção maquínica de subjetividade pode
trabalhar tanto para o melhor como para o pior. temente privativas do humano, tem conseqü-
[...] tudo depende de como for sua articulação ências que ultrapassam as questões práticas
com os agenciamentos coletivos de enunciação. do emprego – o que não significa que mini-
(GUATTARI, 1992, p. 15)
mizemos a importâncias destas – e adentram
o campo da cultura, dos valores e do sentido
E com Fonseca (2008), que apresenta uma do trabalho. Diante dela, vemos configurada
compreensão que aponta para uma perspec- uma das formas como atualmente se expressa
tiva ético-estética da relação humano-máqui- o embaralhamento dos territórios ontológicos
nas, aplicada à relação trabalho/tecnologia: até pouco tempo bem delimitados.
A mobilização intensiva, pelo trabalho, de
[...]sustentamos a posição de que não somos processos de hibridização homem, natureza e
simplesmente dominados pelos objetos técnicos,
tecnologia reiteram a exigência de uma com-
podendo, ao invés disso, fabricar (nos) e produ-
zir (nos) objetos e, ao mesmo tempo, a nós mes- preensão que ultrapasse as dicotomias ho-
mos. Portanto, a técnica não é feita apenas de mem/natureza, humano/não-humano em tro-
matéria: ela é feita de um conjunto de matéria e ca de uma visão, como propõe Latour (1994),
de pessoas, cuja geometria muda conforme ela
funciona ou não. (FONSECA, 2008, p.512) pelo meio, a partir dos híbridos, pelo que se
passa no entrecruzamento.
Vemos, nessa perspectiva pelo meio, que não
4 Trabalho na sociedade de
apenas o homem faz o seu objeto, mas ambos
controle
fazem-se no mesmo processo. Buscando desta-
car a importância do impacto das coisas e do seu
A natureza rizomática deste processo im- processo de produção sobre o ser do homem,
pede-nos de buscar o delineamento de ten- Latour (1994) lamenta a estreiteza do pensa-
dências lineares, contínuas e bem definidas. mento que não percebe o efeito recíproco entre
No campo do trabalho, que passará agora a o homem e a técnica, o sujeito e o artefato:

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Possuímos centenas de mitos contando como o mina catacrese centrípeta ou subjetiva).


sujeito (ou o coletivo, ou a intersubjetividade, ou
Fonseca (2008) caracteriza como duração
as epistemes) construiu o objeto [...] Não temos,
entretanto, nada para nos contar o outro aspec- maquínica os processos implicados no que
to da história: como o objeto faz o sujeito. (LA- Clot denomina de catacrese técnica e catacre-
TOUR, 1994, p. 81)
se subjetiva, através do qual homem e máqui-
na afetam-se reciprocamente:
No campo do trabalho, Clot (2006) analisou
como o trabalhador também é feito e efeito, No caso das situações de trabalho que envolvem
máquinas informatizadas, para dar conta de
como também é co-produzido pelo artefato,
acessar ao movente das máquinas, àquilo que
pelo gênero13 ou pela técnica no momento escapa às posições definidas, inclusive, pela pro-
que ele os incorpora como instrumento14 ou gramação, parece-nos pertinente pensar que o
modo de ação. Podemos colocar, nos termos trabalhador implica-se subjetiva e cognitivamen-
te numa duração maquínica, instaurando uma
propostos por esse autor, que temos tanto um espécie de plano de imanência com as máqui-
processo de subjetivização, ou seja, “[...] uma nas de onde extrai forças para produzir-se nesse
mobilização da atividade pela subjetividade processo, também a si mesmo, diferentemente.
(FONSECA, 2008, p. 511)
[...]” (CLOT, 2006, p. 181) do trabalhador –
quando há um desvio dos usos dos objetos –;
quanto um processo que ele denomina de sub- Os processos de hibridização não mistu-
jetivação, que é a “[...] mobilização inversa da ram apenas zonas ontológicas distintas, com
subjetividade pela atividade [...] (CLOT, 2006, elementos inumanos e elementos humanos,
p. 181), no momento que o sujeito “[...] remo- como também misturam tempos e épocas.
biliza suas invariantes subjetivas para enfren- Vemos isso especialmente nos diferentes pro-
tar as solicitações do presente.” (CLOT, 2006, cessos de trabalho, onde encontramos, cada
p. 183), numa espécie de trabalho sobre si. vez mais, uma furadeira elétrica com tecno-
Assim, não é apenas o artefato, o gênero logia de 40 anos atrás a par com um martelo
ou a técnica que mudam ao assumirem a con- que tem uma base tecnológica multimilenar;
dição de instrumento ou serem apropriados uma tinta de última geração com proteção
num estilo; o trabalhador também, ao incor- aos raios ultravioleta aplicada com um pincel
porar uma nova técnica, gênero ou artefato de pêlo animal, com tecnologia de mais de 3
como ferramenta ou modo de operação, tam- mil anos; o uso de telefones celulares no tra-
bém se torna outro de si mesmo. Clot (2006) balho de coordenação de catadores de papel
examinou com precisão o processo de subver- que usam veículos de tração humana. Assim,
são ativa, através dos quais os trabalhadores segundo Latour (1994, p. 74): “Em um quadro
reinventam os usos de procedimentos e fer- deste tipo, nossas ações são enfim reconheci-
ramentas (que ele denomina catacrese técni- das como politemporais.”
ca ou centrífuga15), dando-lhes uma segunda A velocidade dos processos de mudança
vida, ao mesmo tempo em que reinventam-se tecnológica é um importante fator a determi-
a si mesmos, mobilizam em si afetos, ener- nar a ampliação da coexistência de múltiplas
gias, saberes, experiências (a esta, ele deno- temporalidades. A expansão da politemporali-
dade poderia abrir um amplo leque de possi-
bilidades criativas nos campos cada vez mais
13 Conforme define Clot (2006, p. 42): “O interposto social hibridizados do trabalho, da cultura e da natu-
do gênero é um corpo de avaliações comuns que regulam reza; mas a forma como ela é apropriada pela
a atividade pessoal de maneira tácita. Quase ousaríamos
escrever que é a ‘alma social’ da atividade [...] [e ainda] dinâmica do capitalismo mundial integrado, na
[...] sistema aberto de regras impessoais não escritas que
precisa definição de Guattari e Rolnik (1996),
definem, num meio dado, o uso dos objetos e o intercâm-
bio das pessoas: uma forma de rascunho social que esboça tem implicado, predominantemente, em de-
as relações dos homens entre si para agir sobre o mundo
[...]”.
sestabilização social, insegurança e angústia.
O impacto desse permanente e acelerado
14 Clot (2006) analisa que o artefato, a ferramenta formal,
precisa ser apropriada pelo trabalhador para que se torne processo de mudança tecnológica sobre os
instrumento real, ferramenta em ato.
gêneros profissionais16 – que são interpostos
15 Analisando a catacrese técnica clássica, Clot (2006, p.
181) observa que: “A função do conjunto das ferramentas se
vê afetada por uma atividade de reconcepção ou de recriação
de técnicas cujo uso é deslocado ou subvertido. Chamamos 16 Clot (2006, p. 49) define o genero como “[...] uma
de catacrese essa atribuição de novas funções às ferramen- segunda memória [...] objetiva e impessoal, que confere
tas, esse uso desviado de uma ferramenta [...]”. uma dada forma à atividade em situação: maneira de com-

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sociais essenciais ao desenvolvimento dos frimento e de agravos à saúde – como segui-


processos de trabalho – é um dos aspecto damente encontramos nas organizações que
deste processo que merece ser problematiza- passam por esses processos.
do. Se, conforme assinala Clot, a exploração Duas importantes tendências, que estão
de um novo aparato “[...] afeta a atividade em intimamente relacionadas entre si e ao ace-
termos de seu gênero. [e] [...] revoluciona, lerado processo de transformação da plata-
com diversos resultados, as regras coletivas forma tecnológica do trabalho, ainda devem
da profissão [...]” (CLOT, 2006, p. 31), é irrefu- ser ressaltadas, pois dizem respeito à perda
tável que são imensos os impactos produzidos da hegemonia do trabalho de tipo industrial.
pelas radicais inovações tecnológicas e seus A primeira, é relativa à expansão do setor de
correspondentes redesenhos de processos e serviços, como setor da economia que mais
procedimentos. cresce, e que se caracteriza por ser mais a
A esse respeito, Clot (2006, p. 47-48) ana- produção de relação, do que a produção de um
lisa que “A negligência do gênero [...] é sem- bem (um objeto), e na qual a intervenção do
pre o início de um desregramento da ação in- consumidor é cada vez mais integrada ao pró-
dividual.”, e que prio processo. Assim, neste processo predo-
minam a plasticidade, a permanente evolução
[...] o gênero nunca é simplesmente perturba- e o denominado trabalho vivo. Como exem-
do pela introdução de uma nova técnica [...] Ao
plos, podemos citar os serviços de assistência
contrário, ele pode permitir assimilá-la se sua
flexibilidade for respeitada. Mas se o coletivo à saúde e à educação, pois neles produção e
de trabalho é simultaneamente privado de suas consumo efetivam-se no mesmo momento –
capacidades de ‘digestão’, tem sua cultura pro- temos, aqui, o trabalho vivo sendo produzido
fissional ‘desordenada’ e se vir obrigado a re-
construir precipitadamente todos os seus enti- no mesmo momento em que é consumido.
memas17 sociais, o gênero fragilizado se torna A segunda, refere-se à substituição, a par-
‘quebradiço’ a ponto de ser às vezes rejeitado. tir das últimas décadas do século XX, do pa-
(CLOT, 2006, p. 48)
radigma industrial pelo paradigma do traba-
lho imaterial – um trabalho que cria produtos
A partir dessa compreensão, é possível de- imateriais, como a informação, a comunica-
preender que a forma como a velocidade das ção, uma relação ou uma reação emocional.
mudanças tecnológicas tem sido apropriada ao Para Hardt e Negri (2005) podemos conceber
processo de trabalho – sem a margem de ne- o trabalho imaterial em duas formas funda-
gociação e flexibilidade, nem o tempo neces- mentais. Como trabalho intelectual ou lingüís-
sário ao processo de “digestão” referido por tico – geralmente tarefas simbólicas e analíti-
Clot, como ocorre na maioria das vezes – faz cas voltadas à solução de problemas. Segundo
com que essas mudanças coloquem-se como eles, “Esse tipo de trabalho imaterial produz
um obstáculo à sua assimilação e tornem-se idéias, símbolos, códigos, textos, formas lin-
um empecilho à transformação, consolidação güísticas, imagens e outros produtos do gê-
e transmissão da memória impessoal acumu- nero.” (HARDT; NEGRI, 2005, p. 149) E como
lada na forma dos gêneros. Produz-se, assim, trabalho afetivo, que produz ou manipula afe-
um desequilíbrio entre as dinâmicas de con- tos, como satisfação, sensação de bem-estar,
servação e renovação18 dessa memória, res- de segurança, excitação. Segundo os autores:
tando um quadro de insegurança, de angústia “Podemos identificar o trabalho afetivo, por
e desestabilização, com sérios impactos em exemplo, no trabalho de assessores jurídicos,
termos de produtividade, de acidentes, de so- comissários de bordo e atendentes de lancho-
nete (serviço com sorriso).” (HARDT; NEGRI,
2005, p. 149).
portar-se, maneiras de exprimir-se, maneiras de começar
uma atividade e de acabá-la, maneiras de conduzí-la efica-
Hardt e Negri (2005) ainda nos apresen-
zmente a seu objetivo contando com os outros.,”. tam algumas importantes ponderações. A
17 Premissas e pressupostos que ficam subentendidos. primeira, é de que a maioria dos postos de
18 Dinâmicas destacadas por Clot (2006, p. 80): “[...] a trabalho combina essas duas formas de tra-
função psicológica do trabalho residiria ao mesmo tempo balho imaterial – como vemos no trabalho de
no patrimônio que ele fixa e na atividade (conjunta e di-
vidida) exigida pela conservação e pela renovação desse comunicação, que é uma operação lingüística
patrimônio. Sua função psicológica é uma função vital: si-
e intelectual que tem um componente afeti-
multaneamente atividade de conservação e transmissão e
atividade de invenção e de renovação.” vo importante, pois não apenas transmite in-

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formações, mas também as torna atraentes, ma industrial o operário produzia basicamente


excitantes, desejáveis. A segunda, é que o no horário em que estava na fábrica, no novo
trabalho imaterial quase sempre se mistura paradigma, no qual a produção é a resolução
com formas materiais de trabalho – como os de um problema, a criação de uma idéia ou
trabalhadores da saúde, que, ao lado de tare- a consolidação de uma relação, o tempo de
fas afetivas, cognitivas e lingüísticas, também trabalho não fica mais restrito ao horário for-
realizam procedimentos materiais, como troca mal do contrato com a empresa, pois além do
de curativos, auxílio na higiene de pacientes, horário ficar flexível, o trabalhador leva para
administração de medicamentos, etc. A tercei- casa as questões e problemas que estão ao
ra é que, na medida em que sempre mobiliza seu encargo. Com o desenvolvimento das tec-
corpos e cérebros, o trabalho imaterial sem- nologias de conexão permanente (internet de
pre tem um componente material. Por isso, alta velocidade, telefonia celular, pagers, etc.)
eles assinalam que “O que é imaterial é o seu que proporcionam a comunicação e a possi-
produto. [...] Talvez fosse melhor entender a bilidade do sujeito trabalhar em qualquer ho-
nova forma hegemônica como ‘trabalho bio- rário e lugar, temos uma situação que parece
político’, ou seja, trabalho que cria não apenas tender a uma dinâmica de hiperaceleração e
bens materiais, mas também relações e, em invasão do espaço e do tempo da vida privada
última análise, a própria vida social.” (HARDT; pelo trabalho.
NEGRI, 2005, p. 150) Essa dinâmica tende a gerar o que pode-
É importante ressalvar que a hegemonia mos chamar de uma sobrecarga ou esgota-
do trabalho imaterial não significa a extinção mento moral, já que o dano mais significativo
do trabalho material. Pelo contrário, o traba- não é o causado pela sobrecarga de trabalho
lho imaterial continua sendo quantitativamente em si, mas pela percepção de quebra da reci-
minoritário no trabalho global, mas, da mesma procidade que cada sujeito espera ao consen-
forma que vimos em relação ao processo de tir empregar-se a si mesmo no trabalho. Te-
hegemonização do trabalho industrial sobre as mos, com isso, graves conseqüências, entre as
demais formas ao longo dos séculos XIX e XX, quais cabe destacar o ressentimento diante do
há um processo de colonização. A forma hege- sentimento de injustiça, segundo analisa Clot
mônica passa a ser paradigma operacional e (2006, p. 72): “Na realidade, o ressentimento
referência de valor, como vemos na imposição instala-se não em virtude do fato de que o
que obriga as outras formas de trabalho e a trabalho requer demais dos sujeitos, mas an-
própria sociedade a se informatizar, a tornar- tes porque não lhes dá ou não lhes restitui
se inteligente, veloz, eficiente19, conectada, co- o suficiente.” O que provoca um processo de
municativa, afetiva. Ou seja, estamos tratando desvitalização geral, com conseqüências ne-
de uma tendência, uma linha de produção da fastas que invadem as outras esferas da vida
realidade, um vetor de atualização, uma cente- dos trabalhadores.
lha de futuro que convoca o presente. Neste sentido, Clot (2006, p. 73) observa
Um efeito cada vez mais visível do pre- que: “Ele [o trabalho] é objeto de uma nova
domínio do paradigma do trabalho imaterial, exigência de auto-realização que passa gran-
no quadro de intensificação do trabalho e au- de parte de sua vitalidade aos momentos ex-
mento da pressão por resultados20, pode ser traprofissionais do ciclo de vida.” Mas, quando
observado na tendência a uma divisão cada o trabalho torna-se um campo de ressenti-
vez mais indefinida entre o horário de traba- mento, todos os demais campos de investi-
lho e o tempo de lazer. Enquanto no paradig- mento subjetivo são atingidos, pois o trabalho
é o “[...] ‘fusível’ na corrente de trocas que o
sujeito tem com o mundo dos outros e o seu
19 Hardt e Negri (2005) destacam a acelerada introdução próprio.” (CLOT, 2006, p. 73)
de tecnologia na produção agrícola, como as inovações bi- O processo de hegemonização do para-
ológicas e bioquímicas, o uso de estufas e iluminação ar-
tificial, a agricultura sem solo, o tratamento de sementes, digma do trabalho imaterial sobre a organi-
entre outros.
zação da produção também está produzindo
20 Que Clot (2006, p. 16) chama de “[...] tirania do curto uma transformação do antigo modelo linear
prazo.” e que, segundo ele, pode ter conseqüências signifi-
cativas para a saúde, pois “[...] trata-se de uma mobiliza- da linha de montagem para a disseminação de
ção integral da pessoa que é exigida para que ela se encar-
inúmeras e indeterminadas relações em rede,
regue de conciliar o inconciliável: regularidade, velocidade,
qualidade, segurança.”. na qual a informação, a comunicação e a co-

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operação estabelecem os novos parâmetros serva que a flexibilidade e a variabilidade


operacionais do sistema e definem a nova to-
pologia do trabalho. Cabe assinalar que o mo- [...] até então concebidas como obstáculos a con-
tornar por parte da organização taylorista foram
delo da rede consolida-se como mais uma ten-
consideradas recursos exigíveis e reivindicadas
dência contemporânea não apenas no campo aos ‘operadores’ da nova ‘fluidez industrial’. Aí
do trabalho, pois apresenta avançado estado onde era proibida a iniciativa, ei-la obrigatória
de difusão como paradigma operacional e ex- sob a forma de uma solicitação sistemática da
mobilização pessoal e coletiva. A prescrição da
plicativo para todas as demais esferas da vida atividade se transforma em prescrição da subje-
social, conforme assinala Parente: tividade. (CLOT, 2006, p. 15)

As redes tornaram-se ao mesmo tempo uma es-


pécie de paradigma e de personagem principal
Portanto, no novo paradigma – que hoje se
das mudanças em curso justo no momento em
que as tecnologias de comunicação e de infor- impõe – as organizações não buscam mais ex-
mação passam a exercer um papel estruturante trair do trabalhador a sua força. Enquanto as
na nova ordem mundial. A sociedade, o capi- organizações objetivavam extrair a força ne-
tal, o mercado, o trabalho, a arte, a guerra são,
hoje, definidos em termos de rede. (PARENTE, cessária para mover a produção, tinham o seu
2004, p. 92) foco no corpo dos trabalhadores (a produção
de um corpo dócil e disciplinado, como exami-
nado por Foucault) e sua tecnologia gerencial
Relacionado à topologia da rede, devemos (hierarquia, controle, separação pensar/exe-
destacar outra tendência central associada ao cutar) direcionada à obtenção de disciplina e
paradigma da produção imaterial, que é a im- de obediência22, pois se tratava de domesticar
portância de relações íntimas de cooperação, e fazer o corpo operar (o operário). Agora, o
colaboração e comunicação no processo pro- objetivo é se apropriar da alma – das produ-
dutivo. A tal ponto este aspecto está interna- ções do espírito humano: conhecimento, cria-
lizado, que a capacidade de trabalho em equi- tividade, inteligência, engajamento subjetivo,
pe e cooperação é exigida como um requisito responsabilidade. Essas novas tendências
básico em qualquer processo de seleção para jogam papeis contraditórios, pois, ao mes-
emprego, como um reconhecimento do papel mo tempo em que a cooperação, a flexibili-
de “interface cognitiva” que cada trabalhador zação e a formação constante empoderam o
exerce na organização do trabalho. Mesmo trabalhador, enriquecem o conteúdo da suas
quando trabalha num espaço isolado, o papel atividades e amplificam as possibilidades de
de interface assume uma relevância cada vez resistência e subversão, também colocam-se
maior, como observa Clot (2006) a respeito do como um aperfeiçoamento da rede de captura
condutor de trem, que apesar trabalhar sozi- do trabalhador e de suas potências, segundo a
nho na cabina, é ponto de intersecção, “[...] é lógica molecular da sociedade de controle.
o intercambiador e o condensador da ativida- Nesse sentido, ao analisar a transição
de alheia.” (CLOT, 2006, p. 112) do fordismo ao pós-fordismo, Negri e Hardt
Na nova topologia, os processos caracte- (2001) observam que não se trata mais de
rizam-se pela intensificação das exigências fazer um corpo trabalhar, mas sim de fazer
de plasticidade e de adaptação à mudança, trabalha a uma, pois, segundo estes auto-
de investimento afetivo, de comportamento res, não é mais possível pensar a produção
pró-social, de cooperação e de formação pro- das riquezas e de conhecimento sem passar
fissional constante, o que, além de acarretar pela produção de subjetividade23, de forma
uma sobrecarga subjetiva21, praticamente ex- que as organizações estão colocadas diante
tinguiu a separação entre tempo de trabalho do desafio de inventar novas tecnologias de
e tempo de formação. Ao analisar a passagem gestão, pois controle, disciplina e obediência
do taylorismo para o contexto atual, Clot ob- não geram conhecimento, sensibilidade afe-

22 Conforme Silva (2004, p. 64) “[...] uma tecnologia dis-


21 Clot (2006, p. 72) destaca que as atuais transformações ciplinar forjada pela visibilidade permanente imposta aos
do trabalho produzem uma sobrecarga subjetiva: “Não se mais diferentes espaços de confinamento [...]”.
deve, por exemplo, subestimar o alcance das transforma-
ções que se produzem na indústria e sobretudo no setor de 23 Parente (2004, p. 108) também assinala que para
serviços [...] Elas caminham no sentido de uma convocação Deleuze e Guattari o trabalho “[...] se tornava cada vez
maior e mais sistemática da subjetividade no trabalho [...]” mais produção de subjetividade [...]”.

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tiva, criatividade, inteligência coletiva, enga- res, hoje transformados em códigos,


jamento subjetivo. Vemos expressos, nessa mas também abrindo um novo campo
transição do fordismo para o pós-fordismo para estratégias virais de resistência e
que acabamos de delinear, a passagem das subversão;
formas sociais da sociedade disciplinar para a
sociedade do controle. • as forças desencadeadas pela tecno-
logia digital e pela biotecnologia: com
sua infinita aptidão para a produção de
5 Que forma está a emergir neste híbridos e automatização de processos
novo campo de forças? e suas promessas fáusticas de virtua-
lização total do corpo e superação da
morte, diluindo as fronteiras entre o
Com um imenso poder de síntese, Deleuze humano e o não humano, engendrando
nos interroga sobre a questão fulcral dos pro- novas relações com o tempo e o espa-
cessos em andamento: ço, mas também gerando um acelerado
processo de precarização das relações
Foi preciso que a biologia saltasse para a biolo- de trabalho e de degradação de gêne-
gia molecular, ou que a vida dispersa se reunisse
ros e de culturas profissionais;
no código genético. Foi preciso que o trabalho
dispersado se reunisse nas máquinas de tercei-
ra geração, cibernéticas ou informáticas. Quais • a força de hegemonização do trabalho
seriam as forças em jogo, com quais forças as imaterial e a expansão do setor de ser-
forças do homem entrariam em relação?. (DE-
LEUZE, 1988, p. 141) viços: com sua dinâmica contraditória,
que por um lado esgota moralmente e
desvitaliza o trabalhador, mas por ou-
Para Santos (2003a), com este questiona- tro vinga-se do taylorismo e permite
mento Deleuze apontava que os antigos refe- reinstalar o pensamento, a criação e a
renciais já estavam em avançado estado de produção de subjetividade no centro do
desarticulação. Segundo ele (2003a, p. 293), processo de trabalho;
“[...] toda essa desordem que afeta a vida, o
trabalho, a linguagem e desorganiza seus li- • a força das redes, como um novo pa-
mites conhecidos passa a ser vista como par- radigma operacional e explicativo: que
te do movimento constitutivo da nova relação potencializa as formas moleculares de
de forças [...]”. captura e de controle e permite a co-
O questionamento de Deleuze prepara o ordenação da produção mundialmen-
desfecho deste rápido ensaio, reconduzindo te distribuída, mas também instala as
nossa linha de problematização para seu eixo relações de cooperação, colaboração
central. Assim, para finalizar, procuraremos e comunicação no centro do processo
sumariar as principais tendências apresenta- produtivo, que fomentam a proliferação
das como constitutivas do campo de forças do de alianças que empoderam os traba-
presente e apontar para o que, no nosso en- lhadores.
tender, é a forma do sujeito do trabalho que
hoje se encontra em gest(aç)ão. O trabalhador que se encontra com estas
A nova matriz sociotécnica contemporâ- novas forças também não é mais o mesmo do
nea, fundada no casamento intensivo da tec- tempo da revolução industrial e do taylorismo.
nociência com o capital, tem seus vetores de Hoje, temos uma massa trabalhadora escola-
singularização delineados por novas e poten- rizada e tecnicamente preparada, que domina
tes forças: processos de produção, opera com sistemas
digitais, tem uma experiência de vida predo-
• a força das tecnologias de dominação minantemente urbana, tem grande mobilidade
da sociedade de controle: com sua ge- territorial e está conectada à malha dos meios
ometria variável e formas de controle de comunicação, ou seja, habitantes plenos da
em meio aberto, gerando uma ilimita- rede sociotécnica contemporânea.
da capacidade de rastreamento e mo- Mattoso (1995) observa algumas das princi-
dulação dos indivíduos e trabalhado- pais características do novo sujeito do trabalho

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no sistema integrado de produção flexível: dustrial? Se hoje o trabalho se processa numa


rede que conecta humanos, computadores
Neste sentido, apontaria, inclusive, para a figu- interligados, fontes de energia, livros, institui-
ra de um novo trabalhador, mais escolarizado,
ções de ensino e pesquisa, gêneros de situa-
participativo e polivalente (em contraposição aos
trabalhadores especializados, parcelizados, des- ção profissional, sistemas de escrita, culturas
qualificados da produção fordista) e até mesmo de ofício– artefatos das mais variadas épocas;
portadores de uma revalorização da ética e da se, nesta rede, os componentes humanos es-
utopia do trabalho. (MATTOSO, 1995, p. 71)
tão intimamente conectados aos componentes
técnicos, semióticos, zoológicos, botânicos; se
Nesta sucinta caracterização da nova forma o sujeito do trabalho agencia um número li-
que está assumindo o sujeito do trabalho, en- mitado de entidades e forças humanas e não
contramos a ressignificação de alguns traços humanas – como animais, leveduras, dese-
que compunham a figura dos antigos artesões jos, minerais, afetos, plantas, rios, pigmentos,
e camponeses, como a polivalência (multitare- imagens, correntes marinhas, vento, carvão,
fa), a capacidade de iniciativa (participação), a elétrons, máquinas, gases – num complexo
valorização da ética do trabalho; com a dife- acoplamento sociotécnico24, nada mais preciso
rença de que estes executavam diretamente do que definir este sujeito como um agencia-
as tarefas e moviam o processo produtivo, en- dor tecnoafetivo.
quanto o novo trabalhador desenvolve o exer- Cabe assinalar que, enquanto a forma ope-
cício destes traços nas atividades de contro- rário levou séculos para ser gestada, vemos
le e de coordenação de múltiplos sistemas e o agenciador tecnoafetivo emergir no curto
processos, ou seja, mais como uma interface, espaço de algumas décadas. Esta forma está
como um processador de informação, do que sendo inventada no novo tempo criado pela
um executor. revolução tecnocientífica – um tempo deno-
Compreensão similar encontramos em La- minado de tempo real25 que obsoletiza uten-
zzarato e Negri (2001), que observam que sílios, equipamentos e subjetividades de for-
com o fim do operário fordista surge um ope- ma dramática. Assim, a tecnociência criou
rário caracterizado pelo conceito de interface: o tempo da transição, coagindo a acelerada
“Interface entre diferentes funções, entre as emergência de novas mutações e descartan-
diversas equipes, entre os níveis da hierarquia do à margem os inservíveis, os obsoletizados.
etc.” (LAZZARATO; NEGRI, 2001, p. 25), ou
seja, um trabalho que define-se pelas funções O conjunto das tendências que apresenta-
de controle, de gestão da informação e pela mos nesta pesquisa permite evidenciar que
capacidade de decisão “[...] que pedem o in- está em gestação uma nova forma para o su-
vestimento na subjetividade [...]”(LAZZARA- jeito do trabalho – o agenciador tecnoafetivo –
TO; NEGRI, 2001, p. 25). como o agente híbrido que trabalha na escala
Com base no que foi exposto até aqui, po- molecular das interfaces, lá onde se organizam
demos concluir que estamos diante de uma as passagens entre reinos, lá onde os micro-
nova configuração de forças e que esta nova fluxos são desviados, acelerados, transforma-
configuração compõe uma nova matriz socio- dos, as representações traduzidas, lá onde se
técnica. Seguindo a pista apontada por La- produzem múltiplos afetos e desejos, lá onde
tour (1994, p. 135) quando observa que: “São as singularidades constituintes dos homens e
suas alianças e suas trocas, como um todo, das coisas se enlaçam num duplo devir.
que definem o antropos. Uma boa definição Temos, assim, uma nova configuração de
para ele [homem] seria a de permutador ou forças e uma nova forma para o sujeito do
recombinador de morfismos.”, temos uma boa trabalho, que, ao mesmo tempo em que im-
indicação para delinearmos a imagem da nova plicam uma intensificação do trabalho com a
forma do sujeito do trabalho contemporânea –
o trabalhador como permutador de processos,
como conversor de informações, como inter- 24 Este é o finito-ilimitado caracterizado por Deleuze (1988,
p. 141), no qual temos uma “[...] situação de força em que
face entre sistemas. um número finito de componentes produz uma diversidade
Enfim, que forma está emergindo no aco- praticamente ilimitada de combinações [...]”.

plamento das forças do trabalhador contempo- 25 Como expusemos anteriormente: um tempo sem inter-
râneo com o novo ambiente de forças pós-in- stícios, contínuo e ondulante.

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invasão da esfera privada, um aumento da como criação – o trabalho como invenção e


angústia diante do risco da obsolescência e criação de possíveis – e poder viabilizar a su-
do descarte, uma diluição dos referenciais peração das formas tradicionais de gestão e
comuns e dos gêneros profissionais, também da sua razão instrumental, abrindo a opor-
apontam para a possibilidade do trabalho vir tunidade para uma nova perspectiva para as
a ganhar plena potência como expressão e relações entre trabalho e subjetividade.

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Recebido em novembro de 2009.


Aprovado para publicação em dezembro de 2009.

José Mário d’Avila Neves


Psicólogo, Mestre em Psicologia Social pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) – Porto Alegre-RS/Brasil, Dou-
torando em Informática na Educação na UFRGS, autor do livro A Face Oculta da Organização da Editora da UFRGS e SULINA.
Email: jmario.neves@gmail.com.
Tania Mara Galli Fonseca
Psicóloga, professora dos programas de Pós-graduação em Psicologia Social e Institucional e de Informática na Educação da
Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) – Porto Alegre-RS/Brasil, Brasil.
Email: tfonseca@via-rs.net.

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