You are on page 1of 8
a ae 8stico ede uma sintomatologia que no tinham apenas valor ca Feusriosmaade doe de deta, ivaldandg enti prandet ranscri¢do da loucura em doenga mental, que tinha sido er 7 desde o séeulo XVit'eacnbade no séclo XIX 80 empreens- csedicaiagdo Ga Toucurn vores dete questionemen. to primordial do poder na pratia ant-paguisiries, A spose ees tsines despiguatieacte que me parses eae tr nalse quanto pscofasmocbloga pode ser medioe rela ap Be ambas relevam preferencialmente de uma medicalizagao excessiva da iouesra Eno mest ratte se encanta ana cage a crentuaitberagdo da loucurs em feageer a ee oaerooieme de poder-saber que é 0 conhecimento. E possivel que a produgao da vers dade da loucura possa se efetuar em formas que no sejam as da rela. cio de connecimente? Probema fete dite rages as dare ‘2s lugar numa uiopa De Bitola soloee eee gee 38 fem Uias a propane Go papel do medico, do mei rena ene tuto do conhecimento, no trabalho de despsiquiatrizagao, 128 von SOBRE A PRISAO Magazine Littéraire: Uma das preocupagées de seu livro é denunciar as lacunas dos estudos historicos. Vocé observa, por exemplo, que ninguém fez a histéria do exame. Ninguém pensou nisto, mas im- pensdvel que ninguém tenha pensado. Michel Foucault: Os historiadores, como 08 fildsofos € os historiado- res da literatura, estavam habituados a uma histéria das sumidades. ‘Mas hoje, diferentemente dos outros, aceitam mais facilmente traba- Ihar sobre um material ‘“ndo nobre”. A emergéncia deste material plebeu na historia j4 data bem de uns cinquenta anos. Temos assim menos dificuldades em lidar com os historiadores. Vocé no ouvira jamais um historiador dizer o que disse em uma revista incrivel, Rai- ‘son Présente, alguém, cujo nome no importa, a propésito de Buffon ede Ricardo: Foucault se ocupa apenas de mediocres. M.L.: Quando voc estuda a prisio, lamenta, ao que parece, a ausén- cia de material, por exemplo de monografias sobre esta ou aquela Prisio, ‘M.F.: Atualmente retoma-se muito a monografia, mas a monografia tomada menos como 0 estude de um objeto particular do que como uma tentativa de fazer vir novamente 4 tona os pontos em que um 129 tipo de discurso se produziu e se formou. O que seria hoje um estude sobre uma priséo ou sobre um hospital psiquidtrico? Fez-se centenag deles no século XIX, sobretudo acerca dos hospitais, estudando-se ¢ historia das instituigdes, a cronologia dos diretores, etc. Hoje, fazer a historia monogréfica de um hospital consistiria em fazer emergir o arquivo deste hospital no movimento mesmo de sua formacdo, come lum discurso se constituindo ¢ se confundindo com 0 movimento mesmo do hospital, com as instituigdes, alterando-as, reformand as, Tentar-sc-ia reconstituir a imbricacdo’ do discurso no provesso, na hhistéria. Um pouco na linha do que Faye fez com relagio 40 discurso totalitario. ‘A constituigéo de um corpus coloca um problems para minhas pesquisas, mas um problema sem divida diferente do da pesquisa linguistica, por exemplo. Quando queremos fazer um estudo linguis- tico, ou um estudo de mito, vemo-nos obrigados a escolher um cor. pus. a definir este corpus ea estabelecer seus critérios de constituigao. ‘No'dominio muito mais vago que estudo, o corpus € num certo sent do indefinido: nao se chegard jamais a constituir o conjunto de di cursos formulados sobre a loucura, mesmo limitando-nos a uma épo- ca ea um pais determinados. No caso da prisio nao haveria sentido ‘em limitarmo-nos aos discursos formulados sobre a prisio. Ha igual- mente aqueles que vém da prisdo: as decisdes, os regulamentos que sdo elementos constituintes da prisio, 0 funcionamento mesmo da Prisdo, que possui suas estratégias, seus discursos ndo formulados, suas asticias que finalmente ndo sdo de ninguém, mas que so no en- tanto vividas, assegurando 0 funcionamento e a permsnencia da ins- tituigdio. E tudo isto que € preciso ao mesmo tempo recolher e fazer parecer. E 0 trabalho, em minha maneira de entender, consiste an- tes em fazer aparecer estes discursos em suas conexdes estratégicas do que constitui-los excluindo outros discursos. M.L-: Voce determina, na histéria da repressio, um momento cen- tral: a passagem da punigdo a vigilancia, M.F.: Sim. O momento em que se pereebeu ser, segundo a economia do poder, mais eficaz e mais rentvel vigiar que punir. Este momento corresponde 4 formacio, ao mesmo tempo rapida e lenta, no século XVII e no fim do fim do XIX, de um novo tipo de exercicio do po- der. Todos conhecem as grandes transformagdes, os reajustes institu- csionais que implicaram a mudanga de regime politico, a maneira pela qual as delegacdes de poder no Apice do sistema estatal foram modi- 130 fieadas. Mas quando penso na mecanica do poder, penso em sua for- znia capilsr de existiz, no ponto em que o poder encontra o nivel dos individuos, atinge seus corpos, vem se inserir em seus gestos, suas ati- udes, seus discursos, sua aprendizagem, sua vida quotidiana, O sé Gul XVIII encontrou um regime por assim dizer sindptico de poder, Ge seu exercicio no corpo social, € ndo soére 0 corpo social. A mu- Ganga de poder oficial esteve ligads a este processo, mas através de Gecalagens. Trata-se de uma mudanca de estrutura fundamental que permitiv a realizagZo, com uma ceria coeréncia, desta modificagdo fos pequenos exercicios do poder, Tambem é verdade que foi a cons tituigdo deste novo poder microseépico, capilar, que levou o corpo social a expulsar elementos como a corte © o personagem do rei, A mitologia do soberano nao era mais possivel a partir do momento em ue uma certa forma de poder se exercia no corpo social..O soberano tornavarse entdo um personagem fantastico, a0 mesmo tempo mons- truoso ¢ arcaico. Hé assim correlagdo entre os dois processos, mas nio umu cor- relacio absoluta, Houve na Inglaterra as mesmas modificagdes de poder capilar que na Franca, Mas ld 0 personagem do rei, por exem- plo, foi desiocado para fungdes de representagao, em ver de ser elimi- nado. Assim no se pode dizer que a mudanga, go nivel do poder ca- pilar, ésteja absolutamente ligada as mudangas institucionais a nivel das formas centralizadas do Estado. M.L.: Voce mostra que a partir do momento em que a prisio se eons- tituiu sob a forma de vigildacia, secretou seu préprio alimento, isto é, a delingiiéncia. M.F: Minha hipétese é que a prisio esteve, desde sua origem, ligada ‘a um_projeto de transformagao dos individuos. Habitualmente se acredita que a prisdo era uma espécie de depdsito de criminosos, de- posito cujos inconvenientes se teriam constatado por seu funciona mento, de tal forma que se teria dito ser necessario reformar as pric sGes, fazer delas um instrumento de transformacdo dos individuos. Isto ndo 6 verdade: os textos, os programas, as declaragées de inten- ‘sdo esto ai para mostrar. Desde 0 comego a prisdo devia ser um ins- trumento tio aperfeigoado quando a escola, a caserna ou o hospital, € agir com precisio sobre os individuos. O fracasso foi imediato e re gistrado quase ao mesmo tempo que o préprio projeto. Desde 1820 se constata que a prisio, longe de transformar os cri te honesta, serve apenas para fabricar novos criminosos ou pata a afundé-los ainda mais na criminaidade. Foi entfo que hou sempre nos mecanismos de poder, uma utlizagdo estrategien dageny gue era um inconveniente, A prisio fabrica dciingdentea: mus ea Lnqientes sG0 uicis tanto no dominio econdmice comme no ponies Os delingientes se-vem para alguma coisa, Por exemplo, no prowess que se pode tirar da exploragio do prazer sexual « istaureghe oe seculo XIX, do grande edifier da prosttuicdo, x6 foi posnivel grace, a0s delingdentes que permiiram a artculagto entie 6 prose seat Guotidiano e custoso e a capitalizaglo, Outro éxemplo: todos ssbem que Napoledo II tomou o poder st2sas au grupo constituldo, 20 menos em seu nivel mais bare For detains oe Sores eet mencs se nel malt Bano, 6s operirias do século XIX sentiam em telagdo soe delingtene, Bata compreender que estes eram utizados Conta cls nay utes politioas © sociais, em misses de vieldncia, de iniiragdo, para int pedir ou furar groves, ete stor paral M.L.: Em suma,o§ americanos ndo foram, no séeulo XX, os prime ‘os @ uilizar a Mafia para este ginero de trabalho, °° M.F.: Nao, absolutamente, M.L.; Havia também 0 problema do trabalho penal: 5 at enal: 08 operérios te- Imigm uma concorréncia, um trabalho a prego baixo ue teria arrur nado seu saldrio ML; Tae as eum prgunto so tebslo penal dof on a eceamen pe game Be taba penal no foi ors cae atatmgnaient Mo portant par 0 ncionamento a Corton eats emi moe see ieee Sxagerar: os castigos do século XVIII eram de grande selvageria, rare rsa acts bm come plgcampcrn, pelosi Ea een clas cena een teson Apart dg moment ire cance Os na mot de cla poplar une gue inne cer ema aus srunentn fl aon (A pace a ores Serna, ue oka incu fe pada ata Sl Scament 8 oy n86 aque 132 vr zendo-a trabalhar, como proteger esta riqueza? Evidentemente por uma moral rigorosa: dai esta formidavel ofensiva de moralizagdo que incidiu sobre a populago do século XIX. Veja as formidaveis cam- panbas de cristianizagao junto acs operdrios que tiveram lugar nesta, Ghoca, Foi absolutamente necessdrio constituir 0 povo como um su- jeito moral, portanto separando-o da delingiiéncia, portanto sepa- fando nitidamente o grupo de delingientes, mostrando-os como pe- rigosos ndo apenas para 0s ricos, mas também para os pobres, mos- trando-os carrogados de todos os vicios e responsaveis pelos maiores perigos. Donde o nascimento da literatura policial e da importancia, ros jornais, das paginas policiais, das horriveis narrativas de crimes M.L.: Vocé mostra que as classes pobres eam as principais vitimas da delingéncia M.F.: E que quanto mais eram vitimas da delingliéncia, mais dela ti- nham medo. M,L.; No entanto era nestas classes que se recrutava a delingbéncia. M.F.: Sim, ¢ a prisio foi o grande instrumento de recrutamento, A partir do momento que alguém entrava na prisdo se acionava um me- Canismo que o tornava infame, e quando safa, nfo podia fazer nada sendo voltar a ser delinglente, Caja necessariamente no sistema que dele fazia um proxeneta, um policial ou um aleagllete. A prisio pro- fissionalizave, Em lugar de haver, como no século XVIII, estes ban- dos ndmades que percorriam o campo e que freqdentemenite eram de grande selvageria, existe, a partir daquele momento, este meio delin- QUente bem fechado, bem infiltrado pela policia, meio essencialmen- te urbano e que é de uma utilidade politica ¢ econdmica nao negli- gencidvel M.L.: Voc# observa, com razdo, que o trabalho penal tem a particu- latidade de ndo servir para nada’ Qual é entdo seu papel na economia geral? M.F.: Em sua concepedo primitiva o trabalho penal nao é o aprendi- zado deste ou daquele oficio, mas o aprendizado da propria virtude do trabalho, Trabalhar sem objetivo, trabalhar por frabalhar, deve- tia dar aos individuos a forma ideal do trabalhador. Talvez uma qui- mera, mas que havia sido perfeitamente programads ¢ definida pelos quakers na América (constituigéo das workhouses) ¢ pelos holande- ses. Posteriormente, a partir dos anos 1835-1840, tornou-se claro que 133 fo se procurava reeducar os delingtientes, tornd-los virtuosos, mas sim agrupé-los num meio bem definido, rotulado, que pudesse ser uma arma com fins econdmicos ou politicos. O problema entio nag efa ensinar-lhes alguma coisa, mas a0 contririo, no hes ensinar nada para se estar bem seguro de que nada poderao fazer saindo da prisdo, O cardter de inutilidade do trabalho penal que esti no come- 60 ligado a um projeto preciso, serve agora a uma ouira estratégia, M.L.: N&o pensa vocé que hoje, ¢ isto € um fendmeno marcante, se passa novamente do plano da delingiiéncia ao plano da infragio, do ilegalismo, fazendo-se assim o caminho inverso do feito no século XVII MF: Creio, efetivamente, que a grande intolerancia da populagio com respeito ao delingiente, que a moral e a politica do séeulo XIX hhaviam tentado instaurar, esté se desintegrando. Aceitam-se cada vez mais certas formas de ilegalismo, de irregularidades. Nao apenas aquelas que outrora eram aceitas ou toleradas, como as irregularida- des fiscais ou financeiras com as quais a burguesia conviveu e mante- ve as melhores relagdes, mas esta irregularidede que consiste, por exemplo, em roubar um objeto numa loja M.L.: Mas ndo foi porque as primeiras irregularidades fiscais ¢ fi- nanceiras chegaram ao conhecimento de todos que o instrumento ge- ral em relagdo 4s “‘pequenas irregularidades" se modificou. Ha al- gum tempo uma estatistica do jornal Le Monde comparava 0 dano ‘econdmico considerdvel das primeiras ¢ os poucos meses ou anos de prisio que hes correspondiam, a0 pequeno dano econémico das se- gundas (até mesmo as irregularidades Violentas como os assaltos) © 0 niimero considerdvel de anos de prisio que estes valeram a seus auto- res, E 0 artigo manifesta um sentimento escandslizado diante desta disparidade. M.F.: Fsta éuma questo delicada e que é atualmente objeto de dis- cussio nos grupos de antigos delingilentes. E bem verdade que na cconsciéncia das pessoas, mas também no sistema econdmico atual, uma certa margem de ilegalismo se revela no custosa e perfeitamen- te toleravel, Na América sabe-se que o assalto & um risco permanente corrido pelas grandes lojas. Calcula-se aproximadamente quanto cle usta ¢ percebe-se que 0 custo de uma vigilancia ¢ de uma protecdo eficazes seré muito alto, ¢ portanto ndo rentavel. Deixa-se, entio, roubar. O seguro cobre, Tudo isto faz parte do sistema, 134 Frente a este ilegalismo, que atualmente parece se difundir, se esid diante de uma colocagdo em questio da linha de separagao entre infrago tolerdvel, e tolerada, ¢ delingiéncia infamante, ou se est diante de uma simples distensio do sistema que, dando-se conta de sua solidez, pode aceitar dentro de seus limites algo que enfim ndo 0 ‘compromete? ‘fia também, sem divida, uma modificasdo na relacio que as pessoas mantém com a riqueza, A burguesia nfo tem mais em rela- G40 4 riqueza esta ligagio de propriedade que possuia no século XIX. ‘A riqueza no é mais aquilo que se possui, mas aquilo de que se ex- trai lucto. A aceleragio no fluxo da riqueza, suas capacidades cada vez maiores de circulagio, o abandono do entesouramento, a pratica do endividamento, a diminuigio da parte de bens fundidrios na for- tuna, fazem com que o roubo ndo apareca aos othos das pessoas com algo mais escandaloso que a escroqueria ou que a fraude fiscal. MLL: Hé também uma cutra modificagio: o discurso sobre a delin- qiéncia, simples condenagdo no século XIX (‘ele rouba porque & mau"), torna-se hoje uma explicagao (“ele rouba porque & pobre” € também “é mais grave roubar quando se € rico do que quando se € pobre). M.F:: Sim, hi isto e se fosse apenas isto poderiamos nos sentir segu~ 10s € otimnistas, Mas ser4 que nao existe, misturado a isto, um discur- 50 explicativo que, ele proprio, comporta um certo niimero de peri- g0? Lle rouba porque é pobre, mnas voce sabe muito bem que nem to- Gos os pobres roubam, Assim, para que ele roube é preciso que haja hele algo que nfo ande muito bem. Este algo ¢ seu cardter, seu psi- Quismo, sua educaglo, seu inconsciente, seu desejo. Assim o deline Giiente ¢ submetido a uma tecnologia penal, a da prisio, ¢ a uma tec- Rologia médica, que se ndo € do asilo, é ao menos o da assisténcia pelas pessoas responsaveis. M.L.; Entretanto a ligagdo que vocé faz entre técnica e repressiio pe- nal ¢ médica ameaga escandalizar algumas pessoas. MF; Hi quinze anos atras se chegava a fazer escindalo ao dizer coi- sas como esas, Observei que mesmo hoje os psiquiatras jamais me perdoaram a Histéria da Loucura. Hi quinze dias recebi ainda uma carta de injurias, Mas penso que este género de andlise, mesmo que ainda possa ferir alguém, sobretudo os psiquiatras que arrastam a tanto tempo sua mé-conscigncia, ¢ hoje melhor admitido. 135 air a ss 8 sea: a UAT ae RRR ee M.L-: Voce mostra que o sistema médico sempre foi auxiliar do siste- ma penal, mesmo hoje em que 0 psiquiatra colabora com 0 juiz, com o tribunal ¢ com a prisdo, Com relagdo a certos médicos mais jovens, que tentaram se afastar désies compromissos, esta andlise é taivez in: justa, MF: Talvez. Alias, em Vigiar e Punireu apenas trago algumas indi- cagdes preliminares. Preparo atualmente um trabalho sobre as peri- Gias psiquidtricas em assuntos penais. Publicarei processos, alguns remontando a0 século XIX, mas também outros mais contempori- neos, que séo verdadeiramente estupefantes. M.L.: Voeé distingue duas delingdéncias: a que acaba na policia ea ‘que se dilui na estética, Vidocg € Lacenaire. MF: Parei minha anlise nos anos 1840, que aliés me parecem mui to significativos. E nesta época que se inicia a longa concubinagem entre a policia ¢ a delinguéneia. Fez-se 0 primeiro balanco do fracas- so da prisio: sabe-se que a prisio no reforma, mas fabrica a delin~ Qlincia e 0s delingtlentes. E este o momento em que s¢ percebe os beneficios que se pode tirar desta fabricagao. Estes delinquentes po- dem servir para aiguma coisa, pelo menos para vigiar os delingtien- tes. Vidocq € um caso caracteristico disto. Ele vem do século XVIII, do periodo revolucionario ¢ imperial em que foi contrabandista, um pouco proxeneta, desertor. Ele fazia parte destes ndmades que per- corriam as cidades, os campos, 08 exércitos, que circulavam, Velho estilo de criminalidade. Depois cle foi absorvido pelo sistema. Foi para um campo de trabalhos forgados, de onde saiu alcagticte, tor- nnou-se policial e finalmente chefe de seguranca. E cle é, simbotica- mente, 0 primeiro grande delinguente que foi utilizado como delin- qliente pelo aparelho de poder. ‘Quanto 2 Lacenaire, ele € 0 sinal de um outro fendmeno, dife- rente, mas ligado ao primeito. O fendmeno do interesse estetico, lite= ratio, que se comeca a atribuir a0 crime, a heroificacao estética do crime, Até o século XVIII os crimes eram heroificados apenas de duas manciras: de um modo literério quando s¢ tratava dos crimes de tum rei, ou de um modo popular que se encontra nos canards, os fo thetins que contam as aventuras de Mandrin ou de um famoso assas- sino. Dois géneros que absolutamente no se comunicam. Por volta de 1840 surge o heréi criminoso, herdi porque crimi- oso, que nao é nem aristocrata, nem popular. A burguesia se dé agora seus prdprios herdis criminosos. E neste mesmo momento que 36 se constitui este corte entre os criminosos ¢ as classes populares: © Criminoso nao deve ser um heréi popular, mas um inimigo das clas- ses pobres. A burguesia, por seu lado, produ uma estética em que 0 crime ndo é mais popular, mas uma destas belas artes de cuja realiza- ‘Gio ela € tinica capaz. Lacenaire € 0 tipo deste novo criminoso. E de drigem burguesa ou pequeno burguesa. Seus pais fizeram maus nego- ios, mas ele foi bem educado, foi ao colegio, sabe ler e escrever. Isto the permitiu desempenhar em seu meio um papel de lider. A maneira com que fala dos outros delingllentes é caracteristica: sio animais es- tipides, covardes e desajeitados. Ele, Lacenaire, era o cérebro liicido ¢ trio. Cénstitui-se assim 0 novo heréi que apresenta todos os signos e todas as garamtias da burguesia. Isto vai nos levar a Gaboriau e a0 romance policial, no qual 0 eriminoso é sempre proveniente da bur- guesia, No romance policial ndo se vé jamais o criminoso popular. O Griminoso € sempre inteligente, mantendo com a policia uma espécie de jogo em mesmo pé de igualdade. O divertido € que Lacenaire, na realidade, era lamentivel, ridiculo ¢ desajeitado. Ele sempre havia sonhado em matar, mas no o conseguia fazer. A tinica coisa que sa- bia fazer era, no Bois de Boulogne, chantageat os homossexuais que seduzia. O dnico crime que havia cometido se dera sobre um vel ‘nho com que havia feito algumas porcarias na prisio. E foi por um trig que Lacenaire ndo foi assassinado por seus companheiros de de- tengo em La Force j& que estes Ihc acusavam, sem diivida com pro- priedade, de ser um aleaglete. M.L.: Voe? diz que os delinglentes sdo diteis, mas no se pode pensar que a delingiigncia faz parte mais da natureza das coisas do que da necessidade politico-econémica? Porque se poderia pensar que, para uma sociedade industrial, a delingliéncia ¢ uma mdo-de-obra menos rentével que a mdo-de-obra operaria. M.F.: Por voita dos anos 1840 0 desemprego 0 sub-emprego sdo uma das condigdes da economia, Havia mao-de-obra para dar e ven- der. Mas pensar que a delingléncia faz parte da ordem das coisas. também faz parte, sem divida da inteligncia cinica do pensamento burgués do século XIX. Seria preciso ser tdo ingénuo quanto Baude- laire para imaginar que a burguesia é tola e pudica. Ela é inteligentee cinica, Basta apenas ler 0 que ela dizia de si mesmae, ainda melhor, 0 que dizia dos outros. A sociedade sem delingéncia foi um sonho do século XVIII que depois acabou. A delingOéncia era por demais util Para que se pudesse sonhar com algo tdo tolo e perigoso como uma Sociedade sem delinqéncia, Sem delingiléncia ndo hé policia. © que 137

You might also like