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Tomaz Tadeu da Silva DOCUMENTOS de IDENTIDADE Uma introdug&o as teorias do curriculo A existéncia de teorias sobre o curri- culo esté identificada com a emergéncia do ‘campo do curriculo como um campo pro- fissional, especializado, de estudos e pes- quisas sobre o curriculo. As professoras 08 professores de todas as épocas ¢ luga- res sempre estiveram envolvidos, de uma forma ou outra, com o curriculo, antes mesmo que o surgimento de uma palavra ecializada como “curriculo” pudesse jgnar aquela parte de suas atividades que hoje conhecemos como “curriculo”. A emergéncia do curriculo como campo de estudos est estreitamente ligada a pro- cessos tais como a formacdo de um corpo de especialistas sobre curriculo, a forma- ‘cio de disciplinas e departamentos ut sitarios sobre curriculo, a institucionalizagao de setores especializados sobre curriculo na burocracia educacional do estado e 0 surgimento de revistas académicas espe- ializadas sobre curriculo. r De certa forma, todas as teorias peda- gogicas e educacionais sio também teorias sobre o curriculo. As diferentes filosofias ‘educacionais e as diferentes pedagogias, em Nascem os “estudos sobre curriculo”. as teorias tradicionais 2 diferentes épocas, bem antes da institucio- nalizago do estudo do curriculo como ‘campo especializado, nao deixaram de fax zer especulagbes sobre o curriculo, mes- mo que nao utilizassem o termo. Mas as teorias educacionais e peda- gOgicas ndo sio, estritamente falando, teorias sobre o curriculo. Ha anteceden- tes, na historia da educacao ocidental moderna, institucionalizada, de preocu- pacdes com a organizacio da atividade educacional e até mesmo de uma aten- gdo consciente 4 questdo do que ensi- nar. A Didactica magna, de Comenius, € um desses exemplos. A propria emer- géncia da palavra curriculum, no sentido que modernamente atribuimos ao ter- mo, esta ligada a preocupagées de or- ganizago e método, como ressaltam as pesquisas de David Hamilton. © termo curriculum, entretanto, no sentido que hoje Ihe damos, s6 passou a ser utiliza- do em paises europeus como Franca, ‘Alemanha, Espanha, Portugal muito re- centemente, sob influéncia da literatu- ra educacional americana. s" E precisamente nessa literatura que termo surge para designar um campo es- pecializado de estudos. Foram talvez as condicées associadas com a institu zacio da educacio de massas que permiti- ram que o campo de estudos do curriculo surgisse, nos Estados Unidos, como um campo profissional especializado. Estio entre essas condicées: a formagio de uma burocracia estatal encarregada dos negd- ios ligados educagio; o estabelecimen- to da educacdo como um objeto préprio de estudo cientifico; a extensdo da educa- So escolarizada em niveis cada vez mais altos a segmentos cada vez maiores da populacio; as preocupacées com a manu- teng&o de uma identidade nacional, como resultado das sucessivas ondas de imigra- lo; 0 processo de crescente industriali- zac4o e urbanizacio. nal E nesse contexto que Bobbitt escre- ve, em 1918, 0 livro que iria ser conside- rado 0 marco no estabelecimento do curriculo como um campo especializado de estudos: The curriculum. © livro de Bobbitt € escrito num momento crucial da historia da educagio estadunidense, num momento em que diferentes forcas econémicas, politicas e culturais procu- ravam moldar os objetivos e as formas da 22 ‘educagéo de massas de acordo com suas diferentes e particulares visdes. E nesse momento que se busca responder ques- tes cruciais sobre as finalidades e os con- tornos da escolarizagio de massas. Quais os objetivos da educacao escolarizada: formar © trabalhador especializado ou proporcionar uma educacao geral, acadé- mica, 4 populagio? O que se deve ensi- nar: as habilidades basicas de escrever, ler e contar; as disciplinas académicas hu- manisticas; as disciplinas cientificas; as habilidades praticas necessdrias para as ocupacées profissionais? Quais as fontes principais do conhecimento a ser ensina- do: © conhecimento académico; as disci- plinas cientificas; os saberes profissionais do mundo ocupacional adulto? © que deve estar no centro do ensino: os sabe- res “objetivos” do conhecimento organi zado ou as percepces e as experiéncias “subjetivas” das criancas e dos jovens? Em termos sociais, quais devem ser as finali- dades da educacio: ajustar as criancas e ‘os jovens a sociedade tal como ela existe ‘ou prepara-los para transformé-la; a pre- paracdo para a economia ou a prepara- do para a democracia? As respostas de Bobbitt eram claramen- te conservadoras, embora sua intervencio ‘Buscasse transformar radicalmente o siste- ‘ma educacional. Bobbitt propunha que a escola funcionasse da mesma forma que fa que 0 sistema educacional fosse ca- de especificar precisamente que resul- dos pretendia obter, que pudesse precisa e formas de mensuragao que issem saber com precisio se eles es objetivos, por sua vez, deveriam se num exame daquelas habilidades ias para exercer com eficiéncia as 3es profissionais da vida adulta. O modelo de Bobbitt estava claramente vol- F ‘tado para a economia, Sua palavra-chave era ian O sistema educacional deveria ser tio eficiente quanto qualquer outra ‘empresa econémica. Bobbitt queria trans- ferir para a escola o modelo de organizacao proposto por Frederick Taylor. Na propos- ta de Bobbitt, a educacio deveria funcionar’ de acordo com os principios da adminis- A orientacio dada por Bobbitt iria constituir uma das vertentes dominantes da educacao estadunidense no restante do 23 século XX. Mas ela iria concorrer com vertentes consideradas mais progressistas, como a liderada por John Dewey, por exemplo. Bem antes de Bobbitt, Dewey tinha escrito, em 1902, um livro que tinha apalavra “curriculo” no titulo, The child and the curriculum, Neste livro, Dewey estava muito mais preocupado com a constru- do da democracia que com o funciona mento da economia. Também em contraste ‘com Bobbitt, ele achava importante levar em considera¢do, no planejamento curri- cular, os interesses © as experiéncias das criangas e jovens. Para Dewey, a educacio nfo era tanto uma preparaco para a vida ocupacional adulta, como um local de vi- véncia e pratica direta de principios democriticos. A influéncia de Dewey, en- tretanto, nao iria se refletir da mesma forma que a de Bobbitt na formacéo do curriculo como campo de estudos. ‘A atracio e influéncia de Bobbitt de- yem-se provavelmente ao fato de que sua, proposta parecia permitir & educacio to! nar-se cientifica, Ni por que dis- cutir abstratamente as finalidades ultimas da educacao: elas estavam dadas pela pro- pria vida ocupacional adulta. Tudo © que era preciso fazer era pesquisar © mapear quais eram as habilidades necessérias para as diversas ocupagées. Com um mapa we vy preciso dessas habilidades, era possivel, entéo, organizar um curriculo que per- mitisse sua aprendizagem. A tarefa do es- pecialista em curriculo consistia, pois, em » fazer o levantamento dessas habilidades, desenvolver curriculos que permitissem_ que essas habilidades fossem desenvol- vidas e, finalmente, plangjar e laborar instrumentos de medigéo que possibili- tassem dizer com precisao se elas foram realmente aprendidas. Na perspectiva de Bobbitt, a questio do curriculo se transforma numa ques- tao de organizacio. O curriculo € sim- plesmente uma mecanica. A atividade supostamente cientifica do especialista em curriculo nao passa de uma atividade burocratica. Nao por acaso que 0 con- ceito central, nessa perspectiva, é “desen- volyimento curricular”, um conceito que iria dominar a literatura estadunidense sobre curriculo até os anos 80. Numa perspectiva que considera que as finali- dades da educacio estao dadas pelas exi- géncias profissionais da vida adulta, o curriculo se resume a uma questio de desenvolvimento, a uma questo técnica. Tal como na industria, € fundamental, na educacio, de acordo com Bobbitt, que se estabelecam padrées. O estabelecimento 24 de padres é tao importante na educacdo quanto, digamos, numa usina de fabrica~ io de acos, pois, de acordo com Bobbitt, “a educacio, tal como a usina de fabrica- io de aco, 6 um processo de moldagem”. © exemplo dado pelo préprio Bobbitt € esclarecedor. Numa oitava série, ilustra ele, algumas criangas realizam adigdes “a um ritmo de 35 combinagdes por minuto”, enquanto outras, “ao lado, adicionam a um. ritmo médio de 105 combinagées por minuto”. Para Bobbitt, o estabelecimento de um padréo permitiria acabar com essa variagio. Nas dltimas décadas, diz ele, os educadores vieram a “perceber que é pos- sivel estabelecer padres definitivos para 98 varios produtos educacionais. A capa- cidade para adicionar a uma velocidade de 65 combinacées por minuto (...) é uma especificagao tio definida quanto a que se pode estabelecer para qualquer aspecto do trabalho da fabrica de acos O modelo de curriculo de Bobbitt iria encontrar sua consolidacao definitiva num livro de Ralph Tyler, publicado em 1949.4) © paradigma estabelecido por Tyler iria dominar 0 campo do curriculo nos Esta dos Unidos, com influéncia em diversos paises, incluindo o Brasil, pelas préximas quatro décadas. Com o livro de Tyler, os estudos sobre curriculo se tornam dect- didamente estabelecidos em torno da idéia de organizacdo_e desenvolvimento. Apesar de admitir a filosofia e a socieda- de como possiveis fontes de objetivos para o curriculo, o paradigma formulado por Tyler centra-se em questées de or- ganizagio e desenvolvimento. Tal como no modelo de Bobbitt, o curriculo & aqui, essencialmente, uma questéo técnica. Vejamos, de forma sintética, 0 modelo proposto por Tyler. A organizacio e 0 desenvolvimento do curriculo deve buscar responder, de acordo com Tyler, quatro questdes ba cas: “I. que objetivos educacionais deve a escola procurar atingir?; 2. que experién- las clas educacionais podem ser ofere que tenham probabilidade de alcangar esses propésitos?; 3. como organizar eficientemente essas experiéncias educa~ cionais?; 4. como podemos ter certeza de que esses objetivos esto sendo alcanga- dos?” As quatro perguntas de Tyler cor- respondem a diviséo tradicional da atividade educacional: “currfculo” (1), “en- sino e instrugio” (2 e 3) e “avaliacao” (4). Em termos estritos, pois, apenas a pr meira questo diz respeito a “curriculo”. 25 E precisamente a esta questio que Tyler dedica a maior parte de seu livro. Tyler identifica trés fontes nas quais se devem buscar os objetivos da educacio, afirman- do que cada uma delas deve ser igualmen- te levada em consideracdo:(i) estudos sobre os préprios aprendizes( 2estudos sobre a vida contemporanea fora da edu- cacao;(3))sugest6es dos especialistas das diferentes disciplinas. Aqui, Tyler expan- de 0 modelo de Bobbitt, ao incluir duas fontes que nio eram contempladas por Bobbitt: a psicologia e as disciplinas acadé- micas. A segunda fonte é uma demonstra- do de certa continuidade relativamente a0 modelo de Bobbitt. Essas fontes gerariam, entretanto, um niimero excessivo de objetivos, os quais poderiam, além disso, ser mutuamente contraditérios. Para consertar essa situa- fo, Tyler sugere submeté-los a duas es- pécies de “filtros”: a filosofia social e educacional com a qual a escola esta com- prometida ea psicologia da aprendizagem. Tyler insiste na afirmacao de que os objetivos devem ser claramente definidos ¢ estabelecidos. Os objetivos devem ser formulados em termos de comportamen- to explicito. Essa orientagio comporta- mentalistairia se radicalizar,alids, nos anos 60, com o revigoramento de uma tendén- cia fortemente tecnicista na educagio estadunidense, representada, sobretudo, por um livro de Robert Mager, Andlise de objetivos, também influente no Brasil na mesma época. E apenas através dessa for- mulacio precisa, detalhada e comporta- mental dos objetivos que se pode __ Tesponder as outras perguntas que cons- tiem 0 paradigma de Tyler. A decisio sobre quais experiéncias devem ser pro piciadas € 5 e sobre como organizé-las de de- * pende dessa especificacao precisa dos objetivos. Da mesma forma, & impossivel avaliar, como adiantava Bobbitt, sem que se estabelecesse com preciséo quais so os padres de referéncia E interessante observar que tanto os modelos mais tecnoeraticos, como os de Bobbitt e Tyler /quanto os modelos mais _ progressistas de curriculo, como o de Dewey. que emergiram no inicio do sé- culo XX, nos Estados Unidos, constituiam, de certa forma, uma reacao ao curriculo classico, humanista, que havia domina- do a educacao secundaria desde sua ins- titucionalizagio. Como se sabe, esse curriculo era herdeiro do curriculo das iberais” que, vindo da se estabelecera na 26 educacéo universitaria da Idade Média do Renascimento, na forma dos chama- dos trivium (gramatica, retérica, dialética) quadrivium (astronomia, geometria, m sica, aritmética). Obviamente, © curricu- lo classico humanista tinha implicitamente uma “teoria” do curriculo. Basicamente, nesse modelo, o objetivo era introduzir os estudantes a0 repertrio das grandes obras literérias e artisticas das herancas classicas grega é latina, incluindo 0 domi nio das respectivas linguas. Supostamen- te, essas obras encarnavam as melhores realizagbes e os mais altos ideais do espi- rito humano. O conhecimento dessas obras ndo estava separado do objetivo de formar um homem (sim, o macho da es- pécie) que encarnasse esses ideais. Cada um dos modelos curriculares contemporaneos, 0 tecnocritico @ © pro- gressista, ataca o modelo humanista por um flanco. © tecnocratico destacava a abs tragio ea suposta inutilidade — paraa vida moderna e para as atividades laborais — das habilidades e conhecimentos cultiva- dos polo curriculo ctéssico. O latim eo grego — e suas respectivas literaturas — pouco serviam como preparagio para o trabalho da vida profissional contemporanea. Nao se aceitava, aqui, nem mesmo os arguen- tos que no século XIX tinham sido de- senvolvidos pela perspectiva do “exerci cio mental”, segundoa quala aprendizagem de matérias como o latim, por exemplo, servia para exercitar os “musculos men- tais", de uma forma que podia se aplicar a outros contetidos. O modelo progressis- ‘a, sobretudo aquele “centrado na crian- sa”, atacaya o curriculo clissico por seu distanciamento dos interesses e das ex- periéncias das criangas e dos jovens. Por estar centrado nas matérias classicas, 0 curriculo humanista simplesmente des- considerava a psicologia infantil, Ambas as es sé puderam surgir, obvia~ mente, no contexto da ampliacao da es- colarizagao de massas, sobretudo da escolarizagio secundaria que era 0 foco do curriculo clissico humanista. O curriculo cléssico s6 pode sobreviver no contexto de uma escolarizagao secundaria de aces- 'so restrito a classe dominante. A demo- cratizagio da escolarizagao secundaria significou também o fim do curriculo hu- manista classico. Os modelos mais tradicionais de cur- riculo, tanto os técnicos quanto os pro- gressistas de base psicolégica, por sua vez, 6 iriam ser definitivamente contestados, nos Estados Unidos, a partir dos anos 70, 27 com o chamado movimento de “recon- ceptualizagio do curriculo”. Mas ‘esta & uma outra historia. Leituras HAMILTON, David. "Sobre as origens dos termos classe e curriculum”. Teoria e educagéo, 6, 1992: p33. KLIEBARD, Herbert M. “Os principios de Tyler”. In Rosemary G. Messick, Lyra Paixio e Lilia da R. Bastos (org.). Curricula: andlise e debate. Rio: Zabar, 1980: p.39-52. KUIEBARD, Herbert M. “Burocracia ¢ teoria do cur- riculo”. In Rosemary G, Messick, Lyra Paixio Lilia da R. Bastos (org.). Curiculo: anise e debo- te, Rio: Zahar, 1980: p.107-126, MOREIRA, Antonio F. B. € SILVA, Tomaz T. da. “Sociologia e teoria critica do curriculo: uma introdusao”. In Antonio F. B. Moreira e Tomaz T. da Silva (orgs). Curriculo, sociedade e cultura. So Paulo: Cortez, 1999: p.7-38. TYLER, Ralph W. Princpios bésicos de curculo € ensi no. Porto Alegre: Globo, 1974. Now 'Para no sobrecarregar 0 texto, as fontes de todas as citages extio listadas 20 final do livre, na secio “Referéncias bibliogrifcas” Como sabemos, a década de 60 foi uma década de grandes agitages e trans- -formacées. Os movimentos de indepen- déncia das antigas colonias européias; os protestos estudantis na Franca e em va- rios outros paises; a continuagio do mo- vimento dos direitos civis nos Estados Unidos; os protestos contra a guerra do Vietna; os movimentos de contracultura; ‘9 movimento feminista; a liberagio sexual; as lutas contra a ditadura militar no Bra- sil: sio apenas alguns dos importantes moyimentos sociais ¢ culturais que carac- ‘terizaram os anos 60. Nao por coincidén- cia foi também nessa década que surgiram livros, ensaios, teorizacdes que colocavam ‘em xeque © pensamento e a estrutura ‘educacional tradicionais. E compreensivel que as pessoas en- volvidas em revisar esses movimentos ‘tendam a reivindicar 2 precedéncia para jeles movimentos iniciados em seu rio pals. Assim, para a literatura edu- ‘ional estadunidense, a renovacao da ‘zagio sobre curriculo parece ter sido lusividade do chamado "movimento de \ceptualizagio”. Da mesma forma, @ Onde a critica comes. ideologia, reprodug4o, resisténcia 29 literatura inglesa reinvidica prioridade para a chamada “nova sociologia da educacéo”, um movimento identificado com 0 socié- logo inglés Michael Young. Uma revisio brasileira nao deixaria de assinalar o im- portance papel da obra de Paulo Freire, enquanto os franceses certamente nao deixariam de destacar © papel dos ensaios fundamentais de Althusser, Bourdieu e Passeron, Baudelot e Establet. Uma avalia- go mais equilibrada argumentaria, entre- tanto, que o movimento de renovacéo da teoria educacional que iria abalar a teoria educacional tradicional, tendo influéncia no apenas teérica, mas inspirando verda- deiras revolugées nas préprias experién- cias educacionais, “explodiu" em varios locais ao mesmo tempo. As teorias criticas do curriculo efetu- am uma completa inversao nos fundamen- tos das teorias tradicionais. Como vimos, 05 modelos tradicionais, como o de Tyler, por exemplo, no estavam absolutamente preocupados em fazer qualquer tipo de questionamento mais radical relativamen- te aos arranjos educacionais existentes, as formas dominantes de conhecimento ou, de modo mais geral, a forma social domi- nante. Ao tomar © status quo como refe- réncia desejivel, as teorias tradicionais se concentravam, pois, nas formas de orga- nizagdo e elaboracao do curriculo. Os modelos tradicionais de curriculo restrin- giam-se & atividade técnica de como fazer 0 curriculo. As teorias criticas sobre o cur- riculo, em contraste, comegam por co- locar em questio precisamente os pressupostos dos presentes arranjos so- Ciais e educacionals. As teorias criticas des- confiam do status quo, responsabilizando-o pelas desigualdades ¢ injusticas socials. As teorias tradicionais eram teorias de aceita- Gio, ajuste e adaptacio. As teorias criticas sio teorias de desconfianca, questionamen- to e transformacio radical. Para as teorias criticas © importante néo & desenvolver técnicas de como fazer 0 curriculo, mas desenvolver conceitos que nos permitam compreender © que o curriculo faz. E preciso fazer uma distingio, inicial- mente, entre, de um lado, as teorizacdes criticas mais gerais como, por exemplo, © importante ensaio de Althusser sobre a ideologia ou © livro conjunto de Bour- dieu e Passeron, A reprodugdo, e, de ou- tro, aquelas teorizages centradas de forma mais localizada em questdes de 30 curriculo, como, por exemplo, a “nova sociologia da educagio” ou 0 “movimen- to de reconceptualizacao” da teoria cur- ricular. E importante, de qualquer forma, revisar também aquelas teorias criticas mais gerais sobre educacdo pela influén- cia que teriam sobre 0 desenvolvimento da teoria critica do curriculo, Poderiamos comecar por uma breve cronologia dos marcos fundamentais tanto da teoria edu- cacional critica mais geral quanto da teo- ria critica sobre 0 curriculo: 1970 - Paulo Freire, A pedagogia do oprimido 1970 — Louis Althusser, A ideologia ¢ os aparelhos ideolégicas de estado 1970 - Pierre Bourdieu e Jean-Claude Passeron, A reproducdo 1971 — Baudelot e Establet, L'école capi- taliste en France 1971 = Basil Bernstein, Class, codes and control, v. | 1971 - Michael Young, Knowledge and control new directions for the socio- logy of education 1976 - Samuel Bowles e Herbert Gintis, Schooling in capitalist America 1976 - William Pinar ¢ Madeleine Gru- met, Toward a poor curriculum 1979 — Michael Apple, ideologia e curricula © agora famoso ensaio do filésofo francés Louis Althusser, A ideologia e os ‘aparelhos ideolégicos de Estado, iria for- necer as bases para as criticas marxistas da educacao que se seguiriam. Particu- larmente, Althusser, nesse ensaio, iria fazer a importante conexdo entre edu- cacio ¢ ideologia que seria central as subseqiientes teorizacées criticas da educacao e do curriculo baseadas na analise marxista da sociedade. A referén- cia que Althusser faz 4 educagao neste breve ensaio é bastante suméria. Essen- cialmente, argumenta Althusser, 2 per- manéncia da sociedade capitalista depende da reproducio de seus com- ponentes propriamente econdmicos (forga de trabalho, meios de producio) e da reproducio de seus componentes ideoldgicos. Além da continuidade das condigées de sua produgéo material, a sociedade capitalista ndo se sustentaria se no houvesse mecanismos ¢ instituicbes encarregadas de garantir que o status quo nao fosse contestado. Isso pode ser obti- do através da forca ou do convencimen- to, da represso ou da ideologia. O primeiro mecanismo esta a cargo dos aparelhos re- pressivos de estado (a policia, 0 judiciério); ‘© segundo é responsabilidade dos apa- 3 relhos ideoldgicos de estado (a religiéo, a midia, a escola, a familia). Na primeira parte do ensaio, Althusser dé, implicitamente, uma definigéo bastan- te simples de ideologia. A ideologia é cons- titulda por aquelas crencas que nos levam a aceitar as estruturas sociais (capitalistas) existentes como boas e desejaveis. Essa definigdo é substancialmente modificada na segunda parte do ensaio, na qual o concei- to de ideologia se torna bastante mais com- plexo, mas esta 6 uma outra discussio. A produgio e a disseminacao da ideologia € feita, como vimos, pelos aparelhos ideo- logicos de estado, entre os quais se situa, de modo privilegiado, na argumentacéo de Althusser, justamente a escola. A es- cola constitui-se num aparelho ideolégico central porque, afirma Althusser, atinge praticamente toda a populacdo por um periodo prolongado de tempo. Como a escola transmite a ideologia? Acescola atua ideologicamente através de_ seu curriculo, seja de uma forma mais reta, através das matérias mais suscetivels 20 transporte de crencas explicitas sobre a desejabilidade das estruturas sociais exis- tentes, como Estudos Sociais, Historia, Geografia, por exemplo; seja de uma for- ma mais indireta, através de disciplinas mais “técnicas”, como Ciéncias e Mate- matica. Além disso, a ideologia atua de forma discriminatéria: ela inclina as pes- soas das classes subordinadas a submis- so e & obediéncia, enquanto as pessoas das classes dominantes aprendem a co- mandar e a controlar. Essa diferenciagéo 6 garantida pelos mecanismos seletivos que fazem com que as criancas das clas- ses dominadas sejam expelidas da escola antes de chegarem aqueles niveis onde se aprendem os habitos e habilidades pro- prios das classes dominantes. ‘A problematica central da anélise mar- xista da educagio e da escola consiste, como mostra o exemplo de Althusser, em buscar estabelecer qual € a ligagio entre a escola ea economia, entre a edu- cagio e a producao. Uma vez que, na ana~ lise marxista, a economia e a producio esto no centro da dinamica social, qual € © papel da educagéo e da escola nesse processo? Como a escola e a educagio contribuem para que a sociedade conti- nue sendo capitalista, para que a socie- dade continue sendo dividida entre capitalistas (proprietarios dos meios de producio), de um lado, e trabalhadores (proprietarios unicamente de sua capaci- dade de trabalho), de outro? Althusser 32 nos deu, como vimos, um tipo de res- po: fo da sociedade capitalista ao transmitir, através das matérias escolares, as crencas que nos fazem ver os arranjos sociais exis- tentes como bons e desejaveis. Baudelot ¢ Establet, num livro também agora clissi- co, A escola capitalista na Franca, iriam desenvolver, em detalhes, a tese althus- seriana. Caberia, entretanto, a dois eco- nomistas estadunidenses, Samuel Bowles e Herbert Gintis, fornecer uma respos- ta um pouco diferente aquela pergunta central sobre as conexGes entre produ- so e educacéo. :.a escola contribui para a reprodu- Em seu livro, A escola capitalista na ‘América, Bowles e Gintis introduzem 0 conceito de correspondéncia para esta- belecer a natureza da conexio entre es- cola e produc, Como vimos, Althusser enfatizava © papel do contetido das maté- rias escolares na transmissio da ideologia capitalista, embora a definicao de ideolo- gia que ele dava na segunda parte de seu ensaio (a ideclogia como prdtica) apontas- se para a possibilidade de uma outra utili- zagio desse conceito. Em contraste com essa énfase no contetido, Bowles e Gintis enfatizam a aprendizagem, através da vi- véncia das relagdes sociais da escola, das atitudes necessarias para se qualificar ‘como um bom trabalhador capitalista. As relagGes sociais do local de trabalho cap talista exigem certas atitudes por parte do trabalhador: obediéncia a ordens, pon- tualidade, assiduidade, confiabilidade, no caso do trabalhador subordinado; capa- cidade de comandar, de formular planos, de se conduzir de forma auténoma, no caso dos trabalhadores situados nos ni- veis mais altos da escala ocupacional. Como, no esquema de Bowles e Gintis, a escola garante que essas atitudes sejam incorporadas 4 psique do estudante, ou seja, do futuro trabalhador? A escola contribui para esse processo nao propriamente através do contetido explicito de seu curriculo, mas ao espe- Ihar, no seu funcionamento, as relacdes sociais do local de trabalho. As escolas di- rigidas aos trabalhadores subordinados tendem a privilegiar relagdes sociais nas quais, a0 praticar papéis subordinados, os estudantes aprendem a subordinagio. Em contraste, as escolas dirigidas aos trabalha- dores dos escal6es superiores da escala ‘ocupacional tendem a favorecer relacées sociais nas quais os estudantes tm a opor- ‘tunidade de praticar atitudes de comando e autonomia. E, pois, através de uma cor- respondéncia entre as relagdes sociais da 33 escola e as relagées sociais do local de trabalho que a educacéo contribui para a reproducio das relacées sociais de producio da sociedade capitalista. Tra- ta-se de um processo bidirecional. Num primeiro movimento, a escola é um re- flexo da economia capitalista ou, mais es- pecificamente, do local de trabalho capitalista. Esse reflexo, por sua vez, ga- rante que, num segundo movimento, de retorno, © local de trabalho capitalista receba justamente aquele tipo de traba- thador de que necessita. Accritica da escola capitalista, nesse es- tagio inicial, no ficaria limitada, entretan- to, A analise marxista. Os sociélogos franceses Pierre Bourdieu e Jean-Claude Passeron iriam desenvolver uma critica da educacio que, embora centrada no con- ceito de “reproducdo”, afastava-se da and- lise marxista em varios aspectos. Além do conceito de “reprodugio”, a analise de Bourdieu e Passeron desenvolvia-se atra~ vés de conceitos que eram devedores, ‘embora apenas metaforicamente, de con- ceitos econémicos. Mas, contrariamente Aanilise marxista, o funcionamento da es- cola e das instituigées culturais nio é deduzido do funcionamento da economia. Bourdieu e Passeron véem, entretanto, 0 funcionamento da escola e da cultura através de metiforas econémicas. Nessa andlise, a cultura ndo depende da econo- mia: a cultura funciona como uma econo- mia, como demonstra, por exemplo, 2 utilizagio do conceito de “capita! cultural”. Para Bourdieu e Passeron, a dinamica da reproducio social esta centrada no pro- cesso de reproducao cultural. E através da reprodugéo da cultura dominante que @ reproducio mais ampla da sociedade fica garantida. A cultura que tem prestigio € valor social é justamente a cultura das clas- ses dominantes: seus valores, seus gostos, seus costumes, seus habitos, seus modos de se comportar, de agir. Na medida em que essa cultura tem valor em termos so- ciais; na medida em que ela vale alguma coi sa; na medida em que ela faz com que a pessoa que a possui obtenha vantagens materiais e simbélicas, ela se constitui como capital cultural. Esse capital cultural existe em diversos estados. Ela pode se manifes- tar em estado objetivado: as obras de arte, as obras literarias, as obras teatrais etc. A cultura pode existir também sob a forma de titulos, certificados ¢ diplomas: é pital cultural institucionalizado. Finalmen- te, 0 capital cultural manifesta-se de forma incorporada, introjetada, internalizada. Nessa tiltima forma ele se confunde com © habitus, precisamente © termo utilizado oc 34 por Bourdieu e Passeron para se referir as estruturas sociais € culturais que se tor- nam internalizadas. © dominio simbélico, que € 0 dominio por exceléncia da cultura, da significagio, atua através de um ardiloso mecanismo. Ele adquire sua forga precisamente ao de- finir a cultura dominante como sendo @ cultura. Os valores, os habitos costumes, os comportamentos da classe dominante so aqueles que sao considerados como constituindo a cultura. Os valores ¢ habi- tos de outras classes podem ser qualquer outra coisa, mas nio sio a cultura. Agora 6 que vem o truque. A eficacia dessa defi- nicéo da cultura dominante como sendo a cultura depende de uma importante ope- racio. Para que essa definicao alcance sua maxima eficacia € necessério que ela nao apareca como tal, que ela nfo apareca jus- tamente como 0 que ela 6, como uma de- finicdo arbitréria, como uma definigae que ro tem qualquer base objetiva, como uma dofinicZo que esté baseada apenas na forca (agora propriamente econémica) da clas- se dominante. E essa for¢a original que permite que a classe dominante possa de- finir sua cultura como a cultura, mas nes- se mesmo ato de definicdo oculta-se a forca que torna possivel que ela possa im- por essa definicao arbitraria, Ha, portanto, aqui, dois processos em_funcionamento: de um lado, a imposicéo e, de outro, a ocultagao de que se trata de uma imposi- do, que aparece, entéo, como natural. E a esse duplo mecanismo que Bourdieu e Passeron chamam de dupla violéncia do proceso de dominagao cultural. Agora, onde entram a escola e a edu- cagéo nesse processo? Em Bourdieu € Passeron, contrariamente a outras an ses criticas, a escola nao atua pela incul- ‘cago da cultura dominante as criancas e jovens das classes dominadas, mas, ao ‘contrério, por um mecanismo que acaba por funcionar como um mecanismo de ‘exclusio. O curriculo da escola esté ba- do na cultura dominante: ele se ex- sa na linguagem dominante, ele é mitido através do cédigo cultural inante. As criancas das classes domi- podem facilmente compreender cédigo, pois durante toda sua vida estiveram imersas, 0 tempo todo, cédigo. Esse cédigo € natural para se sentem a vontade no clima e afetivo construido por esse E 0 seu ambiente nativo. Em para as criangas e jovens das dominadas, esse cédigo € sim- indecifravel. Eles ndo sabem se trata. Esse cédigo funciona 35 ‘como uma linguagem estrangeira: é incom- preensivel, A vivéncia familiar das crian- gas @ jovens das classes dominadas nao os acostumou a esse cédigo, que Ihes aparece como algo estranho e alheio. O resultado 6 que as criancas e jovens das classes dominantes so bem-sucedidas na escola, o que Ihes permite 0 acesso aos graus superiores do sistema educacional. As criancas @ jovens das classes domina- das, em troca, sé podem encarar 0 fra- asso, ficando pelo caminho. As criancas e jovens das classes dominantes véem seu capital cultural reconhecido € fortalecido. As criangas ¢ jovens das classes domina- das tém sua cultura nativa desvalorizada, 20 mesmo tempo que seu capital cultural, jf inicialmente baixo ou nulo, néo sofre qualquer aumento ou valorizagio. Com- pleta-se o ciclo da reprodugao cultural. essencialmente através dessa reproducéo cultural, por sua vez, que as classes sociais se mantém tal como existe, garantindo © processo de reprodugao social. Em geral, tem-se deduzido da andlise de Bourdieu ¢ Passeron (e, particularmen- te, das anilises individuais de Bourdieu) uma pedagogia e um curriculo que, em oposicao ao curriculo baseado na cultura dominante, se centrariam nas culturas dominadas. Trata-se, provavelmente, de um mal-entendido. Sua andlise néo nos diz que a cultura dominante é indesejével e que a cultura dominada seria, em troca, desejivel. Dizer que a classe dominante define arbitrariamente sua cultura como desejavel ndo é a mesma coisa que dizer que a cultura dominada é que € desejével. © que Bourdieu e Passeron propdem, atra~ vés do conceito de pedagogia racional, quo as criancas das classes dominadas te- nham uma educago que !hes possibilite ter — na escola — a mesma imersio du- radoura na cultura dominante que faz parte — na familia — da experiéncia das crian- cas das classes dominantes. Fundamental ‘mente, sua proposta pedagdgica consiste ‘em advogar uma pedagogia e um curriculo que reproduzam, na escola, para as crian- gas das classes dominadas, aquelas condi- Bes que apenas as criancas das classes dominantes tém na familia. Em seu conjunto, esses textos formam a base da teoria educacional critica que iria se desenvolver nos anos seguintes. Eles podem ter sido amplamente criticados € questionados na exploséo da literatura cri- tica ocorrida nos anos 70 € 80, sobretudo por seu suposto determinismo econémi- co, mas, depois deles, a teoria curricular seria radicalmente modificada. A teorizacéo cur- ricular recente ainda vive desse legado. 36 Leituras ALTHUSSER, Louis. Aparethos ideoldgicas de Estado. Rio: Graal.1983. BOURDIEU, Pierre e PASSERON, Jean-Claude. ‘A reprodugdo. Rio: Francisco Alvez, 1975, BOURDIEU, Pierre. Excritos de educagdo. Petropolis: Vozes, 1999. (Organizacio de Maria Alice No- gucira e Afranio Catani) BOWLES, Samuel e GINTIS, Herbert, La insuuccin escolar en la América copitalista. México: Siglo Xi, 1981, SILVA, Tomaz Tadeu da.0 que produz eo que reproduz ‘em educagdo, Porto Alegre: Artes Médicas, 1992. A critica neomarxist: O inicio da critica neomarxista as teo- rias tradicionais do curriculo e ao papel ideolégico do curriculo esté fortemente identifiado com 0 pensamento de Michael Apple. Trabalhos anteriores, como os de Althusser e Bourdieu, por exemplo, ti- nham estabelecido as bases de uma critica radical a educacdo liberal, mas néo tinham propriamente tomado como foco de seu questionamento o curriculo € © conheci mento escolar. Apple aproveita-se dessas criticas e de outras tradig6es da teoriza- 40 social critica mais ampla (Raymond Williams, por exemplo), para elaborar uma anilise critica do curriculo que iria ser muito influente nas décadas seguintes. Apple toma como ponto de partida os elementos centrais da critica marxista da sociedade. A dindmica da sociedade capi- talista gira em torno da dominagéo de classe, da dominagao dos que detém o con- trole da propriedade dos recursos mate- riais sobre aqueles que possuem apenas sua fora de trabalho. Essa caracteristica da organizagao da economia na sociedade capitalista afeta tudo aquilo que ocorre em 45 ‘a de Michael Appie outras esferas sociais, como a educacio a cultura, por exemplo. Hé, pois, uma rela~ Gao estrutural entre economia e educacéo, entre economia e cultura. Nos cermos da terminologia introduzida por autores como Bernstein e Bourdieu, ha um vinculo en- tre reprodugio cultural e reproducéo so- cial. Mais especificamente, hd uma clara conexio entre a forma como a economia est organizada e a forma como o curricu- lo esta organizado. Para Apple, entretanto, essa ligaco néo € uma ligacdo de determinacao simples e direta. A preocupagio em evitar uma con- cepcéo mecanicista e determinista dos vinculos entre producio e educacao ja estava presente em seu primeiro livro, Ideologia e curriculo, publicado pela primei- ra vez nos Estados Unidos em 1979, mas ela iria se tornar ainda mais forte nos seus livros posteriores, Basicamente, para ele, nao 6 suficiente postular um vinculo en- tre, de um lado, as estruturas econdm cas e sociais mais amplas e, de outro, a educacio e 0 curriculo. Esse vinculo & mediado por processos que ocorrem no campo da educacio e do curriculo © que sao ai ativamente produzidos. Ele é me- diado pela acio humana. Aquilo que ocor- re na educagao e no curriculo no pode ser simplesmente deduzido do funciona: mento da economia. E essa preocupacio que leva Apple a recorrer ao conceito de hegemonia, tal ‘como formulado por Antonio Gramsci e desenvolvido por Raymond Williams, E co conceito de hegemonia que permite ver © campo social como um campo contes- tado, como um campo onde os grupos dominantes se véem obrigados a recor- rer a um esforco permanente de conven- cimento ideolégico para manter sua dominacio. E precisamente através des- se esforco de convencimento que a do- minagéo econédmica se transforma em hegemonia cultural. Esse convencimento atinge sua maxima eficdcia quando se transforma em senso comum, quando se naturaliza. © campo cultural nao é um sim- ples refiexo da economia: ele tem a sua propria dinamica, As estruturas econé- micas ndo sfo suficientes para garantir a consciéncia; a consciéncia precisa ser conquistada em seu proprio campo E com esses elementos, acrescidos de elementos tomados de empréstimo a autores como Pierre Bourdieu, Basil 46 Bernstein e Michael Young, que Michael Apple vai colocar 0 curriculo no cen- tro das teorias educacionais criticas. Con- trapondo-se as perspectivas tradicionais sobre curriculo, Apple vé 0 curriculo em termos estruturais © relacionais. © curriculo esté estreitamente relaciona- do as estruturas econémicas @ sociais mais amplas. © curriculo néo é um cor- po neutro, inocente e desinteressado de conhecimentos. Contrariamente ao que supde 0 modelo de Tyler, por exemplo, © curriculo néo é organizado através de um processo de selecéo que recorre as fontes imparciais da filosofia ou dos valo- res supostamente consensuais da socie- dade. © conhecimento corperificado no curriculo é um conhecimento particular. A selecio que constitui 0 curriculo € © resultado de um processo que reflete os interesses particulares das classes e gru- pos dominantes. Na anélise de Apple, a preocupacio nao é com a validade epistemologica do conhecimento corporificade no curricu- Jo. A questo no é saber qual conhecimen- to é verdadeiro, mas qual conhecimento considerado verdadeiro. A preocupagio € ‘com as formas pelas quais certos conhe- cimentos so considerados como legiti- mos, em detrimento de outros, vistos como ilegitimos. Nos modelos tradicio- nais, o conhecimento existente € toma- do como dado, como inquestionavel. Se existe algum questionamento, ele no vai além de critérios epistemolégicos estrei- tos de verdade e falsidade. Como conse- qliéncia, os modelos técnicos de curriculo limitam-se A questéo do “como” organi- zar © curriculo. Na perspectiva politica postulada por Apple, a questéo importan- te € a0 invés disso, a questio do “por qué”. Por que esses conhecimentos e néo outros? Por que esse conhecimento é considerado importante e ndo outros? E para evitar que esse “por que” seja res- pondido simplesmente por critérios de verdade e falsidade, 6 extremamente im- portante perguntar: “trata-se do conhe- cimento de quem?”. Quais interesses guiaram a selecao desse conhecimento particular? Quais séo as relacdes de po- der envolvidas no processo de selecio que resultou nesse curriculo particular?) No que concerne ao papel do curriculo no processo de reproducio cultural e so- cial, essa critica inicial do curriculo esteve freqiientemente dividida entre duas énfa- ses, De um lado, estavam aquelas criticas que enfatizavam o papel do chamado “cur- riculo oculto” nessa reprodugio. E 0 caso, ar por exemplo, de Bowles e Gintis, que chamaram a atencao para o papel exerci- do pelas relagdes sociais da escola no pro- cesso de reproducio social. E 0 caso também de Bernstein, que centrou sua analise menos naquilo que é transmitido e mais na forma como é transmitido. De outro, situam-se aquelas criticas que de- ram mais importancia ao curriculo expli- ito, oficial, ao “conteiido” do curriculo, Pode-se dizer que este foi o caso de Althusser, a0 menos na primeira parte de seu ensaio sobre a ideologia e os apa- relhos ideolégicos de estado. Apple pro- cura realizar uma anélise que dé igual importincia aos dois aspectos do curri- culo, embora se possa notar uma énfase ligeiramente maior no seu contetido ex- plicito, naquilo que ele chama de “curr: Gulo oficial”. Ele considera necessério ‘examinar tanto aquilo que ele chama de “regularidades do cotidiano escolar” quanto © curriculo explicito; tanto o ensi no implicito de normas, valores e dispo: Oes quanto os pressupostos ideolégicos € epistemolégicos das disciplinas que cons- tituem o curriculo oficial. Como boa parte da literatura sociolé- gica critica sobre curriculo desse periodo inicial, Apple colocava uma grande énfase, em Ideologia e curriculo, no processo que a escola exerce na distribuigéo do conheci- mento oficial. A suposicao é de que a es- cola simplesmente transmite e distribui o conhecimento que é produzido em algum outro lugar. Apple, entretanto, concede um papel igualmente importante a escola como produtora de conhecimento, sobre- tudo daquilo que ele chama de “conhe mento técnico”. © “conhecimento técnico” relaciona-se diretamente com a estrutura 0 funcionamento da sociedade capita- lista, uma vez que se trata de conheci- mento relevante para a economia ea producio. Obviamente, essa produgio se da principalmente nos niveis superiores do sistema educacional, isto é, na universi- dade. Mas na medida em que os requisitos de entrada na universidade pressionam os curriculos dos outros niveis educacionais, esses curriculos refletem a mesma énfa- se no “conhecimento técnico”. E esse tipo de conhecimento que acaba sendo visto como tendo prestfgio, em detri- mento de outras formas de conhecimen- to, como © conhecimento estético & artistico, por exemplo. Trata-se de mais um dos mecanismos pelos quais 0 cur- riculo se liga com o processo de repro- dugfo cultural e social. 40 Em seu primeiro livro, Ideologia e cur- riculo, Apple, em consonancia com 0 pa- radigma marxista adotado, enfatizava as rrelagdes sociais de classe, embora admi- tindo, talvez secundariamente, a impor- tancia das relagdes de género e raga no processo de reprodugio cultural e social exercido pelo curriculo. A importancia atribuida a essas diferentes dinamicas iria se tornar mais equilibrada nos livros pos- teriores. © que se manteria, entretanto, era uma comum preocupac’o com o poder. © que torna sua anilise “politica” & precisamente essa centralidade atribui- da as relacées de poder. Curriculo ¢ po- der — essa é a equacao basica que estrutura a critica do curriculo desenvol- vida por Apple. A questio basica é a da conexo entre, de um lado, a producio, distribuicéo e consumo dos recursos materiais, econdmicos e, de outro, a pro- dugio, distribuicao e consumo de recur- sos simbélicos como a cultura, © conhecimento, a educagio € o curriculo. Como vimos, jé em seu primeiro livro Apple procurava construir uma perspec- tiva de andlise critica do curriculo que incluisse as mediacdes, as contradicoes ambigilidades do processo de reprodu- ¢8o cultural e social. Entretanto, apenas com 0 desenvolvimento posterior da te- orizagao critica 6 que as contradicées e resisténcias iriam ganhar um papel mais destacado. Ao dar énfase ao conceito de hegemonia, Apple chama atencao para o fato de que a reprodugio social nao é um processo tranqlilo © garantido. As pes- soas precisam ser convencidas da dese- jabilidade e legitimidade dos arranjos sociais existentes. Mas esse convencimen- to no se dé sem oposicao, conflito e re- sisténcia. E precisamente esse carater conflagrado que caracteriza um campo cultural como o do curriculo. Como uma luta em torno de valores, significados propésitos sociais, 0 campo social e cul- tural 6 feito ndo apenas de imposigao & dominio, mas também de resisténcia e oposi¢ao. A descrigio do curriculo como sendo também um campo de resisténcia est apenas esbosada em Ideologia © cur- riculo. Ela seria reforgada posteriormente por influéncia, principalmente, da pesquisa de Paul Willis relatada no livro Aprenden- do a ser trabalhador. Em suma, na perspectiva de Apple, 0 curriculo néo pode ser compreendido — e transformado — se nao fizermos per- guntas fundamentais sobre suas conex6es com relagées de poder. Como as formas 49 de divisio da sociedade afetam 0 curricu- lo? Como a forma como o curriculo pro- cessa 0 conhecimento e as pessoas contribui, por sua vez, para reproduzir aquela divisio? Qual conhecimento — de quem — ¢ privilegiado no curriculo? Quais grupos se beneficiam e quais grupos so prejudicados pela forma como o curricu- lo esta organizado? Como se formam re- sisténcias e oposic6es ao curriculo oficial? Ao enfatizar essas questées, Michael Apple contribui, de forma importante, para poli- tizar a teorizacio sobre curriculo. Leituras APPLE, Michael, Ideologia e curriculo. Sao Paulo: Brasiliense, 1982. APPLE, Michael. “Vendo a educagao de forma relacional: classe e cultura na sociologia do Educagéo e realidade, conhecimento escolar’ 11(1), 1986: p.19-34, ‘APPLE, Michael. “Curriculo e poder”. Educacdo realdade, 14(2), 1989: p.46-57. ‘APPLE, Michael. Educacdo e poder. Porto Alegre: Artes Médicas, 1989 MOREIRA, Antonio Flavio B. A contribuigio de Michael Apple para o desenvolvimento de uma teoria curricular critica no Brasil. Férum educa- ional, 1989, 13 (4), p.17-30. O curriculo como politica cultural: Henry Giroux Entre os autores que, nos Estados Unidos, ajudaram a desenvolver uma te- orizagio critica sobre curriculo, destaca- se, sem divida, a figura de Henry Giroux. Embora iniciando um pouco mais tarde do que Michael Apple, Giroux contribuiu de forma decisiva para tragar os contor- nos de uma teorizagio critica que iria, depois, florescer de modo talvez ines- perado. Tal como fizemos com Michael Apple, vamos nos restringir aqui a fazer uma sintese das teorizagées e conceitos desenvolvidos em sua primeira fase, Giroux tem se voltado, desde entio, para temati- cas e direcées que algumas vezes pare- cem um tanto distantes daquelas nas quais se concentrava inicialmente, nisso diferindo bastante de Apple. Nos seus ltimos livros, Giroux tem se preocupa- do cada vez mais com a problematica da cultura popular tal como se apresenta no cinema, na musica e na televisio. Embora sempre em conexdo com a questio pe- dagégica e curricular, suas anélises pare- cem ter se tornado crescentemente mais culturais do que propriamente educacio- nais. Além disso, seus tltimos escritos corporam, embora de forma limitada e contida, as recentes contribuicées do pés-modernismo e do pés-estruturalismo. Asintese que se segue baseia-se, pois, nos seus primeiros livros: Ideology, culture, and the process of schooling (1981) © Theory and resistance in education (1983). Tal como ocorreu com outros auto- rres dessa fase inicial, também a critica de Giroux esteve centrada, nesse momen- to, numa reacdo as perspectivas empiri- cas e técnicas sobre curriculo entéo dominantes. Utilizando-se de conceitos desenvolvidos pelos autores da Escola de Frankfurt (Adorno, Horkheimer, Marcuse), Giroux ataca a racionalidade técnica e utilitaria, bem como o positivismo das perspectivas dominantes sobre curricu- lo. Na andlise de Giroux, as perspectivas dominantes, ao se concentrarem em cri- térios de eficiéncia e racionalidade buro- cratica, debxavam de levar em consideracao © cariter histérico, ético e politico das ages humanas e sociais e, particularmen- te, no caso do curriculo, do conhecimen- to. Como resultado desse apagamento do carter social e histérico do conhecimen- to, as teorias tradicionais sobre curriculo, assim como © préprio curriculo, contri- buem para a reproducio das desigualda- des e das injusticas sociais. © desenvolvimento das teorias criti- cas sobre curriculo, como vimos, esteve estreitamente ligado — em contrapos Gao a0 empiricismo e ao pragmatismo vulgar das perspectivas tradicionais — & utilizagao da teoria social critica mais am- pla, Giroux foi, entretanto, talvez um dos poucos autores a se utilizar, nessa fase, dos insights tedricos dos investigadores da Escola de Frankfurt. Giroux se inclinava, esse momento, para uma posicéo que era claramente tributaria do marxismo, mas ele queria evitar, ao mesmo tempo, uma identificagéo com a rigidez econo- micista de certos enfoques marxistas. A producio teérica da Escola de Frankfurt, com sua énfase na dindmica cultural e na critica da razo iluminista e da racional dade técnica, ajustava-se perfeitamente a esse objetivo. A Escola de Frankfurt for- necia uma critica 4 epistemologia implici ta na racionalidade técnica que podia ser prontamente aplicada @ critica tanto das perspectivas dominantes sobre curricu- lo quanto ao préprio curriculo existente. 52 No momento em que Giroux come- gaa escrever jé estavam em circulacéo as teorizagées que teriam, depois, tanta in- fluéncia sobre a teoria educacional critica: 2 critica da ideologia de Althusser; a critica cultural de Bourdieu e Passeron; o princi- pio da correspondéncia de Bowles e Gin- tis. Giroux, tal como Apple, nao estava satisfeito com a rigidez estrutural e com as conseqiiéncias pessimistas dessas teo- rizag6es. Seu trabalho inicial iria se con- centrar, em boa parte, no desenvolvimento de uma cuidadosa critica dessas perspec- tivas, bem como no esboco de alternati- vas que pudessem superar aquilo que ele via como falhas e omisses dessas teorias. Assim, por exemplo, ele criticava Bowles ¢ Gintis pelo carter mecanicista e deter- minista de seu principio da correspondén- cia que no deixava nenhum espaco para a mediacao e a acao humanas. Nesse mo- delo, aquilo que ocorria na escola ¢ no curriculo estava determinado, de antemao, pelo que acontecia na economia e na pro- dugdo. Por outro lado, a teorizacio que Bourdieu e Passeron faziam do proceso de reprodugio cultural e social dava um peso excessivo @ dominagio e @ cultura dominante, em detrimento das culturas dominadas e de processos de resisténcia. Giroux é igualmente critico, entre- tanto, daquelas vertentes da critica educacional que se inspiravam mais na fenomenologia e nos modelos interpre- tativos de teorizacio social do que nos diversos estruturalismos. Como descre- vinoutro capitulo, uma das correntes do movimento de reconceptualizacao da teorizagao curricular, nos Estados Uni- dos, estava centrada no estudo fenome- nolégico das compreensées que as préprias pessoas que participa da cena educacional tém de seus atos e significa- dos. Na Inglaterra, uma parte importan- te da chamada “nova sociologia da educagdo” também estava preocupada em desenvolver andlises que levassem em conta as formas pelas quais estudan- tes e docentes desenvolvem, através de processos de negociagéo, seus préprios significados sobre © conhecimento, o curriculo e a vida educacional em geral. © que estava em jogo, na pespectiva dessas andlises, era a construcao social desses significados pelos préprios agen- tes no espaco da escola e do curriculo. Giroux critica essas andlises por nio da- rem suficiente ou nenhuma atencao as conex6es entre, de um lado, as formas como essas construcées se desenvol- em no espaco restrito da escola e do curriculo e, de outro, as relacdes sociais mais amplas de controle e poder. E no conceito de resisténcia, entre- tanto, que Giroux vai buscar as bases para desenvolver uma teorizagio critica, mas alternativa, sobre a pedagogia e © curri- culo. Giroux esteve preocupado, nessa fase inicial, em apresentar uma alterna- tiva que superasse 0 pessimismo e o imobilismo sugeridos pelas teorias da reproducio. Ele ja fala aqui numa “peda- g0gia da possibilidade” — um conceito que vai se tornar central as teorizagées de sua fase intermediaria. Contra a dominacao la das estruturas econémicas e sociais sugeridas pelo nucleo “duro” das teorias criticas da reproducdo, Giroux sugere que existem mediages e aces no nivel da escola e do curriculo que podem traba- thar contra os designios do poder e do controle. A vida social em geral e a peda- gogia € 0 curriculo em particular no sio feitos apenas de dominacao e controle. Deve haver um lugar para a oposico ea resisténcia, para a rebelifo e a subversio. Como outros autores, Giroux é ampla- mente influenciado, nesse aspecto, pela pesquisa do sociélogo inglés, Paul Willis. Ex- aluno do importante Centre for Contem- porary Cultural Studies, da Universidade Birmingham, Paul Willis iria se tornar co- nhecido pela pesquisa relatada no livro ‘Aprendendo a ser trabalhador. Também insatisfeito com © determinismo econé- mico das teorias da reprodugio, Willis quer saber 0 que leva jovens de classe operaria a voluntariamente escolher empregos de classe operaria. Para isso, Willis acompanha um grupo de jovens de classe operdria de uma escola secundaria em suas atividades tanto na escola quan- to no trabalho. Basicamente, o que Willis argumenta € que © encaminhamento des- ses jovens para ocupac6es de classe ope- raria nfo € 0 simples resultado passivo de uma lei econémica ou social. Essa des- tinagSo é ativamente criada na prépria cultura juvenil operéria, através, sobretu- do, da celebracdo, nessa cultura, de uma masculinidade fortemente associada com a cultura operaria do chao de fabrica. In- felizmente, 0 resultado final 6 0 mesmo, mas 0 que Willis vislumbra ai, nessa cul- tura, 6 um momento e um espaco de cria- do aut6noma e ativa que poderia ser explorado para uma resisténcia mais po- liticamente informada. E essa possibilidade da resisténcia que Giroux vai desenvolver em seus primei: ros trabalhos. Ele acredita que € possi- vel canalizar 0 potencial de resisténcia 34 demonstrado por estudantes e professo- res para desenvolver uma pedagogia e um curriculo que tenham um contetido cla- ramente politico e que seja critico das crencas e dos arranjos sociais dominan- tes, Ao menos nessa fase, Giroux com- preende © curriculo fundamentalmente através dos conceitos de emancipacio ¢ libertagio. Novamente, sob forte influén- cia dos tedricos da Escola de Frankfurt, ele vé 0 processo de emancipagio como um dos objetivos de uma ago social po- litizada. E através de um processo peda- _gOgico que permita ds pessoas se tornarem conscientes do papel de controle e po- der exercido pelas instituicées e pelas estruturas sociais que elas podem se tor- nar emancipadas ou libertadas de seu poder e controle, Trés conceitos sio centrais a essa con- cepcéo emancipadora ou libertadora do curriculo e da pedagogia: esfera publica, intelectual transformador, voz. Tomando de empréstimo a Habermas 0 conceito de “esfera publica”, Giroux argumenta que a escola € 0 curriculo devem funcio- nar como uma “esfera publica democra- tica’. A escola e o curriculo devem ser locais onde os estudantes tenham a opor- tunidade de exercer as habilidades de- mocraticas da discussao e da participagao, de questionamento dos pressupostos do senso comum da vida social. Por outro lado, os professores e as professoras nio podem ser vistos como técnicos ou bu- rocratas, mas como pessoas ativamente envolvidas nas atividades da critica e do questionamento, a servigo do proceso de emancipacao ¢ libertacio. Tomando como base a nogio de “intelectual orgi- nico” de Gramsci, Giroux vé os profes- sores as professoras como “intelectuais transformadores”. Finalmente, 0 concei- to de “voz”, que Giroux desenvolveria na fase intermedidria de sua obra, aponta para anecessidade de construgéo de um espa- 0 onde os anseios, os desejos ¢ os pensa- mentos dos estudantes e das estudantes possam ser ouvidos e atentamente consi- derados. Através do conceito de “voz”, Giroux concede um papel ativo a sua par- ticipagio — um papel que contesta as re- lagdes de poder através das quais essa voz tem sido, em geral, suprimida. Ha uma reconhecida influéncia de Paulo Freire na obra de Henry Giroux. Por um lado, a concepcao libertadora de educagéo de Paulo Freire e sua nocio de acio cultural forneciam-lhe as bases para o desenvolvimento de um curricu- lo e de uma pedagogia que apontavam para 55 possibilidades que estavam ausentes nas te- orias criticas da reprodugéo entéo predo- minantes. Por outro lado, embora Paulo Freire salientasse a importincia da parti- cipacdo das pessoas envolvidas no ato pedagégico na construao de seus pré- prios significados, de sua prépria cultura, ele ndo deixava de enfatizar também as estreitas conexées entre a pedagogia e a politica, entre a educacéo e o poder. A critica que Freire faz da “educagao ban- céria” e sua concepcio do conhecimen- to como um ato ativo e dialético também combinavam com os esforgos de Giroux em desenvolver uma perspectiva de cur- riculo que contestasse os modelos técni- cos entao dominantes. Para sintetizar: numa tendéncia que iria ganhar mais impulso posteriormen- te, Giroux vé a pedagogia e o curriculo através da nocao de “politica cultural”. O curriculo envolve a construgio de signi- ficados e valores culturais. O curriculo ndo esti simplesmente envolvido com a transmissdo de “fatos” e conhecimentos “objetivos”. O curriculo é um local onde, ativamente, se produzem e se criam sig- nificados sociais. Esses significados, entre- tanto, ndo sio simplesmente significados que se situam no nivel da consciéncia pessoal ou individual. Eles esto estreita- mente ligados a relagdes sociais de poder e desigualdade, Trata-se de significados ‘em disputa, de significados que séo im- postos, mas também contestados. Na visio de Giroux, ha pouca diferenca en- tre, de um lado, © campo da pedagogia e do curriculo e, de outro, 0 campo da cultura. O que esta em jogo, em ambos, 6 uma politica cultural. Leituras GIROUX, Henry. Escola critica e poltica cultural. Sao Paulo: Cortez, 1987. GIROUX, Henry. Pedagogia radical Subsidios. Sto Paulo: Cortez, 1983. GIROUX, Henry. Teoria critica ¢ resisténcia em edu- cocdo. Petrépolis: Vozes, 1986. 56 Pedagogia do oprimido versus pedagogia dos contetidos Parece evidente que Paulo Freire néo desenvolveu uma teorizacao especifica sobre curriculo. Em sua obra, entretan- to, como ocorre com outras teorias pe- dagégicas, ele discute questées que estio relacionadas com aquelas que comumen- te esto associadas com teorias mais pro- priamente curriculares, Pode-se dizer que seu esforco de teorizacdo consiste, 20 menos em parte, em responder 4 ques- to curricular fundamental: “o que ensi- nar?”. Em sua preocupagio com a questio epistemolégica fundamental ("“o que sig- nifica conhecer?"), Paulo Freire desen- volveu uma obra que tem implicacdes importantes para a teoriza¢io sobre o curriculo. Além disso, & conhecida sua influéncia sobre as teorizagdes de auto- rres e autoras mais diretamente ligados 20 desenvolvimento de perspectivas mais propriamente curriculares. Aqui, como fizemos com outros au- tores, vamos nos restringir aos seus li- vros iniciais, particularmente Educacdo como prética da liberdade (1967) e Peda- gogia do oprimido (1970). Na verdade, é 0 57 livro Pedagogia do oprimido que melhor representa o pensamento pelo qual ele iria se tornar internacionalmente conhe- cido e reconhecido. Educagdo como prati- ca da liberdade est ainda muito ligado ao pensamento da chamada “ideologia do desenvolvimento” que caracterizava 0 pensamento de esquerda da época. Em seu primeiro livro, a palavra-chave 6, pre- cisamente, “desenvolvimento”. No se- gundo, a centralidade do conceito de “desenvolvimento” 6 deslocada pelo de “revolucio”. Além disso, os elementos propriamente pedagégicos do pensamen- to de Freire estéo ai pouco desenvolvi- dos: metade do livro é dedicada a uma analise da formacdo social brasileira. Pedagogia do oprimide, por outro lado, difere, em aspectos fundamentais, das ou- tras teorizag6es que iriam constituir as bases de uma teoria educacional critica (Althusser, Bourdieu e Passeron, Bowles e Gintis). Em primeiro lugar, diferentemen- te daquelas teorizac6es, sua andlise deve muito mais a filosofia do que a sociologia e a economia politica. E verdade que a anélise que Freire faz da formagio social brasileira na primeira parte de Educacdo como pratica da liberdade & profundamen- te histérica e sociolégica. Jé a anilise que Freire faz do processo de dominacio em Pedagogia do oprimido esta baseada numa dialética hegeliana das relagées entre se- nhor e servo, ampliada e modificada pela leitura do “primeiro Marx’, do marxismo humanista de Erich Fromm, da fenomeno- logia existencialista e crista e de criticos do processo de dominagio colonial (Memmi, Fanon). © foco est, aqui, muito menos na dominagéo como um reflexo das relagées econémicas € muito mais na dindmica pro- pria do processo de dominacio. Em segundo lugar, as criticas sociolé- gicas da educacZo tomam como base a estrutura e © funcionamento da educa cio institucionalizada nos paises desen- volvidos. Esta implicita na andlise de Freire, por sua vez, uma critica 4 escola tradicio- nal, mas sua preocupacdo esta voltada para o desenvolvimento da educacéo de adultos em paises subordinados na ordem mundial, Na verdade, em Pedagogia do oprimido, Freire adia a transformacao da educacio formal para depois da revolu- cio. Pode-se dizer ainda que 0s concei- tos humanistas utilizados por Freire em sua andlise estdo claramente ausentes de analises mais estruturalistas da educacao. Nao se pode imaginar Althusser ou Bourdieu ¢ Passeron falando, como faz Freire em Pedogogia do oprimido e em li- vros posteriores, de “amor”, “fé nos ho- mens”, “esperanga” ou “humildade”. Finalmente, a teorizacao de Freire € claramente pedagégica, na medida em que ele nao se limita a analisar como sdo a edu- caGio e a pedagogia existentes, mas apre- senta uma teoria bastante elaborada de como elas devem ser. Essas diferencas refletem-se inclusive nos titulos dos res- pectivos livros: enquanto o de Freire res- salta 0 termo “pedagogia”, 0 livro de Bowles e Gintis, por exemplo, sugere uma. analise da escola na sociedade capitalista estadunidense, e o de Baudelot e Establet propée-se, claramente, a analisar a “es- cola capitalista na Franca”. A critica de Freire ao curriculo exis- tente esta sintetizada no conceito de “educagio bancéria”. A educacéo bancé- ria expressa uma visdéo epistemoldgica que concebe 0 conhecimento como sen- do constituido de informacées e de fatos a serem simplesmente transferidos do professor para © aluno. © conhecimento se confunde com um ato de depésito — bancério. Nessa concep¢io, 0 conheci- mento é algo que existe fora e indepen- dentemente das pessoas envolvidas no ato pedagégico. Refletindo aqui a critica mais cientificista ligada a “ideologia do de- senvolvimento”, bem como as criticas & escola tradicional feitas pelos idedlogos da “Escola Nova”, Freire ataca o cardter ver- balista, narrativo, dissertativo do curriculo tradicional, Na sua énfase excessiva num yerbalismo vazio, oco, 0 conhecimento expresso no curriculo tradicional esta profundamente desligado da situacio exis tencial das pessoas envolvidas no ato de conhecer. Na concepcdo bancaria da edu- cacao, 0 educador exerce sempre um papel ativo, enquanto 0 educando esta mitado a uma recepgio passiva. Através do conceito de “educacio problematizadora”, Freire busca desenvol- ver uma concepgio que possa se consti- tuir numa alternativa a concepedo bancéria que ele critica. Na base dessa “educacéo problematizadora” esta uma compreen- so radicalmente diferente do que sig- nifica “conhecer”. Aqui, a perspectiva de Freire é claramente fenomenoldgica. Para ele, conhecimento é sempre conheci mento de alguma coisa. Isso significa que nao existe uma separacdo entre o ato de so conhecer e aquilo que se conhece. Utili- zando 0 conceito fenomenolégico de “‘in- tengio”, 0 conhecimento, para Freire, & sempre “intencionado”, isto é esta sem- pre dirigido para alguma coisa. © mundo, pois, ndo existe a nao ser | como “mundo para nés", como mundo | para a nossa consciéncia. Freire esta aqui longe das concepgdes pés-estruturalistas recentes que concebem o conhecimen- to como estreitamente relacionado com suas formas de representagio no texto e no discurso. A representacao implicada na perspectiva de Freire é a do mundo na consciéncia. O ato de conhecer en- volve fundamentalmente 0 tornar “pre- sente” o mundo para a consciéncia, © ato de conhecer nao 6, entretanto, para Freire, um ato isolado, individual. Conhecer envolve intercomunicagio, in- tersubjetividade. Essa intercomunicacao 6 mediada pelos objetos a serem conhe- cidos. Na concepgio de Freire, é através dessa intercomunicacio que os homens mutuamente se educam, intermediados pelo mundo cognoscivel. E essa intersub- jetividade do conhecimento que permite a Freire conceber o ato pedagégico como um ato dialégico. A educacao bancaria torna desnecessario o didlogo, na medida ceenemmmemmamnan = enum, ome ates ‘em que apenas © educador exerce algum papel ativo relativamente ao conhecimen- to, Se conhecer é uma questio de depé- sito ¢ acumulagio de informagées e fatos, © educando é concebido em termos de falta, de caréncia, de,ignorancia, relativa- mente aqueles fatos e aquelas informacdes. © curriculo ea pedagogia se resurnem 20 papel de preenchimento daquela carén- cia. Em vez do diélogo, ha aqui uma co- municago unilateral. Na perspectiva da educacao problematizadora, ao invés dis- so, todos os sujeitos estdo ativamente envolvidos no ato de conhecimento. O mundo — 0 objeto a ser conhecido — nao é simplesmente “comunicado”; 0 ato pedagégico nao consiste em simplesmen- te “comunicar © mundo”. Em vez disso, educador e educandos criam, dialogicar mente, um conhecimento_do mundo. E sobre essas bases que Freire vai desenvolver seu famoso “método”. Ele nio se limita a criticar 0 curriculo implicito no conceito de “educacéo bancéria”. Freire fornece, ja em Pedagogia do oprimido, ins- trugdes detalhadas de como desenvolver um curriculo que seja a expressio de sua concepgéo de “educacéo problematiza- dora”. E curioso observar que Freire uti liza nesse livro expresses e conceitos 60 bastante tradicionais, tais como “contei- dos” e “contetidos programaticos”, para falar sobre curriculo. Ele esta bem cons- ciente, entretanto, da necessidade do desenvolvimento de um curriculo que esteja de acordo com sua concepgio de educagiéo ¢ pedagogia. A diferenga relati- vamente as perspectivas tradicionais de curriculo esta na forma como se cons- troem esses “contetidos programaticos”” Pode-se comparar, nesse aspecto, © método sugerido por Paulo Freire, com ‘0s métodos seguides por modelos mais tradicionais, como o de Tyler, por exem- plo. Tyler sugeria estudos sobre os apren- dizes e sobre a vida ocupacional adulta bem como a opinido dos especialistas das diferentes disciplinas como fontes para o desenvolvimento de objetivos educacio- nais, tudo isso filtrado pela filosofia © pela psicologia educacionais. Na perspectiva de Freire, é a propria experiéncia dos edu- candos que se torna a fonte primaria de busca dos “temas significativos” ou “temas geradores” que vio constituir © “contet- do programatico” do curriculo dos pro- gramas de educagio de adultos. Freire nao nega © papel dos especialistas que, inter disciplinarmente, deve organizar esses temas em unidades programaticas, mas © “contetido” & sempre resultado de uma pesquisa no universo experiencial dos pré- prios educandos, os quais sfo também ati- vamente envolvides nessa pesquisa. Contrariamente a representagéo que comumente se faz, Paulo Freire concede uma importncia central, em seu “méto- do”, ao papel tanto dos especialistas nas diversas disciplinas, aos quais cabe, ao fi- nal, elaborar os “temas significativos” e fa- zer 0 que ele chama de “codificacio”, quanto aos educadores diretamente en- volvides nas atividades pedagdgicas. Ao menos em Pedagogia do oprimido, Paulo Freire acredita que © “contetido progra- matico da educacio nao é uma doagio ou imposigio, mas a devolugo organiza- da, sistematizada e acrescentada ao povo daqueles elementos que este Ihe entre- gou em forma desestruturada”. O que ele destaca € a participagio dos educandos nas varias etapas da construgdo desse “curriculo programatico”. Numa opera- cio visivelmente curricular, ele fala em escolha do “contetido programatico”, que deve ser feita em conjunto pelo educa- dor e pelos educandos. Esse contetido programatico deve ser buscado, con- juntamente, naquela realidade, naquele mundo que, segundo Freire, constitui 0 6 objeto do conhecimento intersubjetivo. Vimos que a epistemologia que funda menta a perspectiva curricular de Freire esté centrada numa visio fenomenolégi- ca do ato de conhecer como “conscién- cia de alguma coisa”. E essa consciéncia, que inclui a consciéncia ndo apenas das coisas e das préprias atividades, mas tam- bém a conscigncia de si mesmo, que distingue © ser humano dos animais. E igualmente central 4 sua epistemologia, entretanto, aquilo que ele chama de “con- ceito antropolégico de cultura”. Isso sig- nifica entender a cultura, em oposico 4 natureza, como criacdo e produgéo hu- mana. Nessa concepcio de cultura, nio se faz uma distingio entre cultura eru tae cultura popular, entre “alta” e “bai: xa” cultura. A cultura ndo é definida por qualquer critério estético ou filoséfico. A cultura € simplesmente o resultado de qualquer trabalho humano. Nesse senti- do, faz mais sentido falar nfo em “cultu- ra”, mas em “culturas”. © desenvolvimento dessa nogéo de cultura tem importantes implicacdes cur- riculares, Embora Freire nao desenvolva esse tema, 0 curriculo tradicional — humanista, classico — que dominou a educacéo dos grupos dominantes por um [ longo tempo, esta baseado precisamen- te numa definigéo da cultura como o conjunto das obras de “exceléncia” pro- duzidas no campo das artes visuais, da literatura, da misica, do teatro. Mesmo que implicitamente, essa critica do con- ceito de cultura permite a Paulo Freire desenvolver uma perspectiva curricular que, antecipando-se @ influéncia poste- rior dos Estudos Culturais, apaga as fron- teiras entre cultura erudita e cultura popular, Essa ampliaco do que constitui cultura permite que se veja a chamada “cultura popular” como um conhecimen- to que legitimamente deve fazer parte do curriculo. Se Paulo Freire se antecipou, de certa forma, 4 definiggo cultural do curriculo que iria caracterizar depois a influéncia dos Estudos Culturais sobre os estudos cur- riculares, pode-se dizer também que ele inicia 0 que se poderia chamar, no pre- sente contexto, de uma pedagogia pés- colonialista ou, quem sabe, de uma perspectiva pés-colonialista sobre curri- culo. Como se sabe, a perspectiva pés- colonialista, desenvolvida sobretudo nos estudos literarios, busca problematizar as relagdes de poder entre os paises que, na situaco anterior, eram colonizadores fe aqueles que eram colonizados. Essa 62 perspectiva procura privilegiar a perspec- tiva epistemol6gica dos povos dominados, sobretudo da forma como se manifesta em sua literatura. Ao se concentrar na perspectiva de grupos dominados em paises da América Latina e, mais tarde, nos paises que se tornavam independentes do dominio portugués, Paulo Freire anteci- pa, na pedagogia e no curriculo, alguns dos temas que iriam, depois, se tornar centrais a teoria pés-colonialista. A perspectiva de Freire era, ja em Pedagogia do oprimido, cla- ramente pés-colonialista, sobretudo em sua insisténcia no posicionamento episte- mologicamente privilegiado dos grupos dominades: por estarem em posic¢go do- minada na estrutura que divide a socieda- de entre dominantes e dominados, esses grupos tinham um conhecimento da do- mina&o que os grupos dominantes nao podiam ter. Numa era em que o tema do “multiculturalism” ganha tanta centralida- de, essa dimensio da obra de Paulo Freire pode talvez servir de inspiraco para o de- senvolvimento de um curriculo pés-colo- nialista que responda as novas condicbes de dominagao que caracterizam a “nova ordem mundial”, © predominio de Paulo Freire no cam- po educacional brasileiro seria contesta- do, no inicio dos anos 80, pela chamada “pedagogia histérico-critica” ou “pedago- gia critico-social dos contetidos”, desen- volvida por Dermeval Saviani. Tal como Freire, Saviani ndo pretendia estar elabo- rando propriamente uma teoria do cur- riculo, mas sua teorizacéo focaliza quest6es que pertencem legitimamente 20 campo dos estudos curriculares. Em oposicao a Paulo Freire, Saviani faz uma nitida separagéo entre educagio e politi- ca, Para ele, uma pritica educacional que no consiga se distinguir da politica per- de sua especificidade. A educagéo torna- se politica apenas na medida em que ela permite que as classes subordinadas se apropriem do conhecimento que ela transmite como um instrumento cultu- ral que seré utilizado na luta politica mais ampla. Assim, para Saviani, a tarefa de uma pedagogia critica consiste em transmitir aqueles conhecimentos universais que so considerados como patriménio da humanidade e nao dos grupos sociais que deles se apropriaram. Saviani critica tan- to as pedagogias ativas mais liberais quan- to a pedagogia libertadora freireana por enfatizarem no a aquisigio do conheci- mento mas os métodos de sua aquisigao. Ha, na teorizacao de Saviani, uma evi- dente ligacio entre conhecimento e po- der. Essa ligagio limita-se, entretanto, a 83 enfatizar 0 papel do conhecimento na aquisicio e fortalecimento do poder das classes subordinadas. Neste sentido, a pedagogia de Saviani aparece como a tni- ca, dentre as pedagogias criticas, a deixar de ver qualquer conexéo intrinseca en- tre conhecimento e poder. Para Saviani, ‘© conhecimento 6 0 outro do poder. A anélise de Saviani no se alinha nem mes- mo com as anélises marxistas, dominan- tes na época, que enfatizavam o caréter necessariamente distorcido — ideolégico — do conhecimento, de modo geral, e do conhecimento escolar, de modo par- ticular, No contexto das teorias pés- estruturalistas mais recentes, que assinalam, seguindo Foucault, um nexo necessirio entre saber e poder, a teori- zagao curricular de Saviani parece visivelmente deslocada. No limite, exce- tuando-se uma evidente intengio criti- ca, 6 dificil ver como a teoria curricular da chamada “pedagogia dos contetidos” possa se distinguir de teorias mais tradi- cionais do curriculo. Na sua oposicio pedagogia libertadora freireana, ela cum- priu, entretanto, um importante papel nos debates no interior do campo cri tico do curriculo. Embora sua influéncia tenha, ultimamente, diminuido, ela con- tinua, inegavelmente, importante. Leituras FREIRE, Paulo, Agdo cultural para « liberdade. Rio: Paz e Terra, 1976. FREIRE, Paulo. Educagdo como pritica da liberdade. Rio: Paz e Terra, 1967. FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. Rio: Paz e Te ra, 1970. GADOTTI, Moacir. Paulo Freire. Uma biobibliografic. Sio Paulo: Cortez/Instituto Paulo Freire, 1996. MOREIRA, Antonio Flavio B. Currculos e programas ro Brasi, Campinas: Papirus, 1990 SAVIANI, Dermeval. Escola e democracia, S20 Paulo: CorteziAutores Asociados, 1983. eae 64 Quem escondeu o curriculo oculto? Embora nao constitua propriamente uma teoria, a nocao de “curriculo ocul- to” exerceu uma forte e estranha atra- Gio em quase todas as perspectivas criticas iniciais sobre curriculo, A nocéo de curriculo oculto estava implicita, por exemplo, na anilise que Bowles e Gintis fizeram da escola capitalista americana. Aqui, através do “principio da correspon- déncia”, eram as relages sociais na esco- la, mais do que seu conteudo explicito, que eram responsiveis pela socializacio de criancas e jovens nas normas e atitu- des necessarias para uma boa adaptacio as exigéncias do trabalho capitalista. Mes- mo que nao diretamente relacionada a ‘escola, a nocio de ideologia desenvolvida por Althusser na segunda parte de seu famoso ensaio, A ideologia e os aparelhos ideolégicos de estado, apontava, de certa forma, para uma nogio que tinha caracte- risticas similares as que eram atribuidas 20 “curriculo oculto”. Como lembramos, Althusser fornecia uma definicio de ide- ‘ologia que destacava sua dimensao prati- ca, material, A ideologia, nessa definicio, 7 expressava-se mais através de rituals, ges- tos e praticas corporais do que através de manifestacoes verbais, “Aprendia-se” a ideologia através dessas praticas: uma de- finigdo que se aproxima bastante da defi- nigo de curriculo oculto, Na teorizacdo de Bernstein, por exemplo, é através da estrutura do curriculo e da pedagogia que se aprendem os cédigos de classe. Mas claro que © conesito de curriculo oculto se estendeu para muito além desses exem- plos, sendo utilizado por praticamente toda perspectiva critica de curriculo em seu periode inicial. Apesar dessa utilizagio critica, 0 con- ceito tem sua origem no campo mais con- servador da sociologia funcionalista. O. conceito foi talvez utilizado pela primeira vez por Philip Jackson, em 1968, no livro Life in classrooms, Nas palavras de Jackson, “os grandes grupos, a utilizacéo do elogio e do poder que se combinam para dar um sabor distinto a vida de sala de aula coletivamente formam um curriculo ocul- to, que cada estudante (e cada professor) deve dominar se quiser se dar bem na escola”, Caberia a Robert Dreeben, num livro intitulado On what is learned in scho- ol, ampliar e desenvolver essa definicao funcionalista de “curriculo oculto”. Esses autores funcionalistas ja destacavam a determinagio estrutural do curriculo oculto. Eram as caracteristicas estrutu- rais da sala de aula e da situacio de ensi- no, mais do que o seu contetido explicito, que “ensinavam” certas coisas: as relacdes de autoridade, a organizacio espacial, a distribuiggo do tempo, os padrées de re- compensa € castigo. © que iria distinguir a utilizacao funcio- nalista do conceito daquela feita pelas pers- pectivas criticas seria, essencialmente, a desejabilidade ou no dos comportamen- tos que eram ensinados, de forma implici- ta através do curriculo oculto, Nessa visio, 0s comportamentos assim ensinados eram funcionalmente necessirios para o bom fun- cionamento da sociedade e, portanto, de- sejaveis. Na analise de Dreeben, por exemplo, a escola, através do tratamento impessoal que, em contraste com a familia, cla proporciona, ensina a nocdo de univer- salismo necessaria ao perfeito funciona- mento das sociedades “avangadas”. Em direcSo contraria, nas andlises criticas, as atitudes € comportamentos transmitidos através do curriculo oculto so vistos torcao: dos genuinos objetivos da educacio, na medida em que moldam as criancas @ jo- vens para se adaptar as injustas estrutu- ras da sociedade capitalista. O exemplo mais claro é talvez o da andlise de Bowles e Gintis. Aqui, a escola, através da cor- respondéncia entre as relacdes sociais que ela enfatiza e as relagdes sociais predo- minantes no local de trabalho, ensina as criangas e jovens das classes subordina- das como se conformar as exigéncias de seu papel subalterno nas relagdes sociais de produgio. como indesejaveis, como uma Mas 0 que 6, afinal, 0 curriculo ocul- to! © curriculo oculto & constituido por todos aqueles aspectos do ambiente es- colar que, sem fazer parte do currriculo oficial, explicito, contribuem, de forma implicita, para aprendizagens socials rele~ vantes. Precisamos especificar melhor, pois, quais so esses aspectos © quais $80 essas aprendizagens. Em outras palavras, precisamos saber “o que” se aprende no curriculo oculto e através de quais “mei- os”. Para a perspectiva critica, o que se aprende no curriculo oculto sé funda- mentalmente atitudes, comportamentos, valores e orientacées que permitem que criangas e jovens se ajustem da forma mais conveniente as estruturas e as pau tas de funcionamento, consideradas in- justas e antidemocraticas e, portanto, indesejaveis, da sociedade capitalista. Entre outras coisas, 0 curriculo oculto ensina, em geral, 0 conformismo, a obe- diéncia, o individualismo. Em particular, as criancas das classes operdrias apren- dem as atitudes préprias ao seu papel de subordinagio, enquanto as criancas das classes proprietarias aprendem os tracos sociais apropriados ao seu papel de dominacdo. Numa perspectiva mais ampla, aprendem-se, através do curri- culo oculto, atitudes e valores prépri- os de outras esferas sociais, como, por ‘exemplo, aqueles ligados @ nacionalida- de. Mais recentemente, nas anilises que consideram também as dimensoes do género, da sexualidade ou da raca, aprende-se, no curriculo eculto, como ser homem ou mulher, como ser hete- rossexual ou homossexual, bem como 2 identificagdo com uma determinada raga ou etnia ‘Agora, quais sio os elementos que, no ‘ambiente escolar, contribuem para essas 2prendizagens? Como ja vimos, uma das fontes do curriculo oculto é constituida ie) pelas relacdes sociais da escola: as rela- Ges entre professores e alunos, entre a administragéo e os alunos, entre alunos € alunos. A organizagio do espaco escolar & outro dos componentes estruturais através dos quais as criancas e jovens aprendem certos comportamentos soci- ais: © espaco rigidamente organizado da sala de aula tradicional ensina certas coi- sas; 0 espago frouxamente estruturado da sala de aula mais aberta ensina outro tipo de coisas. Algo ocorre com o ensino do tempo, através do qual se aprende a pontualidade, 0 controle do tempo, a d visio do tempo em unidades discretas, um tempo para cada tarefa etc. O curr culo oculto ensina, ainda, através de ri- tuais, regras, regulamentos, normas. Aprende-se também através das diversas divisdes e categorizagées explicitas ou implicitas préprias da experiéncia esco- lar: entre os mais “capazes” e os menos “capazes”, entre meninos e meninas, en- tre um curriculo académico e um curri- culo profissional. Finalmente, importante saber © que fazer com um curriculo oculto quando encontrarmos um. Na teorizagao critica, anocio de curriculo oculto implica, como vimos, na possibilidade de termos um momento de iluminacao e lucidez, no qual identificamos uma determinada situacao como constituindo uma instancia de curri- culo oculto. A idéia 6 que uma anélise base- ada nesse conceito permite nos tornarmos conscientes de alguma coisa que até ento estava oculta para nossa consciéncia, A coisa toda consiste, claro, em desocultar 0 cur culo oaulto, Parte de sua eficacia reside pre- “Gisamente nessa sua natureza oculta. O que est implicito na nogao de curriculo ocul- to 6 a nogao de que se conseguirmos de- soculté-lo, ele se tornara menos eficaz, ele deixar’ de ter os efeitos que tem pela dni ca razio de ser oculto, Supostamente, essa consciéncia que vai perr ciente do curriculo oculto significa, de al- guma forma, desarma-lo. guma forma, Cesarms- ‘Obviamente, o conceito de “curricu- lo oculto” cumpriu um papel importante no desenvolvimento de uma perspectiva critica sobre 0 curriculo. Ele expressa uma operacao fundamental da anilise so- ciol6gica, que consiste em descrever os processos sociais que moldam nossa sub- jetividade como que por detras de nos- sas costas, sem nosso conhecimento consciente, Ele condensa uma preocupa- cao sociolégica permanente com os processos “invisiveis”, com os processos que esto ocultos na compreensio co- mum que temos da vida cotidiana, Nisso reside, talvez, precisamente sua atracio A nnogio de “curriculo oculto” constitula, assim, um instrumento analitico de pe- netracdo na opacidade da vida cotidiana da sala de aula. Ele como que tornava re- pentinamente transparente aquilo que normalmente aparecia como opaco. “Yoild, agora eu vejo...”. Nesse sentido, 0 conceito continua sendo importante, ape- sar do predominio de um pés-estrutura- lismo que enfatiza mais a ‘Visibibilidade” do texto e do discurso que a “invisibil dade” das relagées sociais. © conceito tornou-se, entretanto, crescentemente desgastado, o que, talvez, explique seu declinio na anilise educacio- nal critica, Houve provavelmente uma certa trivializagéo do conceito. Algumas analises limitavam-se a “cagar” instdncias do curriculo oculto por toda parte, num esforco de catalogacio, esquecendo-se de suas conexdes com processos ¢ relagées sociais mais amplos. Por outro lado, a desconfianca crescente das perspec criticas com as determinagées estrutu- ais, em detrimento da resisténcia das pessoas € grupos, tornou 0 conceito, com S suas conotagées fortemente estruturais, praticamente irrecuperdvel para a andlise critica. Se as caracteristicas estruturais do curriculo oculto eram tao determinantes, nao haveria muito a fazer para transfor- milo, © participio passado — “oculto” — que adjetivava a palavra “curriculo” in- dicava que 0 ato de ocultagio era resul- tado de uma agio impessoal, abstrata, estrutural. Ninguém, precisamente, era responsavel por ter escondido © curri culo oculto. © que tinha constituido sua forca acabara por decretar seu enfraque- cimento como um conceito importante da teorizacdo critica sobre curriculo. Fi- nalmente, numa era neoliberal de afirma- io explicita da subjetividade e dos valores do capitalismo, nao existe mais muita coi- oculta no currfculo. Com a ascensio liberal, o curriculo tornou-se assumi- fente capitalista. ME, Jurjo T. El curriculum ocuto, Madrid: ta, 1995, Tomaz T. da. “A economia politica do curri- ‘oculto”. In Tomaz T.da Silva. O que produz “que reproduz em educacdo. Porto Alegre: Médicas, 1992. Diferenca e identidade: o curriculo multiculturalista Tornou-se lugar-comum destacar a diversidade das formas culturais do mun- do contemporaneo. £ um fato paradoxal, entretanto, que essa suposta diversidade conyiva com fenémenos igualmente sur- preendentes de homogeneizagao cultu- ral. Ao mesmo tempo que se tornam visiveis manifestagdes e expressées cul- turais de grupos dominados, observa-se © predominio de formas culturais produ- zidas e yeiculadas pelos meios de comu- nicagéo de massa, nas quais aparecem de forma destacada as produgées culturais estadunidenses. Vejam-se, por exemplo, as vinhetas intituladas “sons e imagens de...”, veiculadas pela CNN, a poderosa rede estadunidense de TV a cabo, nas quais se apresentam, a cada vez, de for- ma sintética, supostos aspectos de diver- sas culturas nacionais. A “diversidade” cultural é, aqui, fabricada por ui poderosos instrumentos de homogenei- zagio, Trata-se de um exemplo claro do carater ambiguo dos processos culturais pés-modernos. O exemplo também ser- ve para mostrar que nfo se pode separar questdes culturais de questdes de poder. as E nesse contexto que devemos anali- sar as conexées entre curriculo e multicul- turalismo. © chamado “multiculturalismo” &um fendmeno que, claramente, tem sua origem nos paises dominantes do Norte. © mutticulturalismo, tal como a cultura contemporanea, é fundamentalmente ambiguo. Por um lado, 0 multicultural mo & um movimento legitimo de reivin- dicacio dos grupos culturais dominados no interior daqueles paises para terem suas formas culturais reconhecidas e re~ presentadas na cultura nacional. © multi- culturalismo pode ser visto, entretanto, ‘também como uma solugdo para 0s “pro- blemas” que a presenca de grupos raciais € étnicos coloca, no interior daqueles paises, para a cultura nacional dominan- te. De uma forma ou de outra, 0 multi- culturalismo no pode ser separado das relagdes de poder que, antes de mais nada, obrigaram essas diferentes culturas raciais, étnicas e nacionais a viverem no mesmo espaco. Afinal, a atracéo que mo- vimenta os enormes fluxos migratérios em directo aos paises ricos ndo pode ser separada das relacdes de exploracéo que sio responsaveis pelos profundos des- niveis entre as nag6es do mundo. Os di- zeres de uma camiseta vestida por um imigrante num metré de Londres, embo- ra se refiram mais especificamente ape- nas as relacdes de exploragao coloniais, ‘expressam bem essa conexio: “Nés es- tamos aqui porque vocés estiveram a”. Apesar dessa ambigilidade ou, quem sabe, exatamente por causa dessa ambigtli- dade, 0 multiculturalismo representa um importante instrumento de luta politica. O multiculturalismo transfere para o terreno politico uma compreenséo da diversidade cultural que esteve restrita, durante muito tempo, a campos especializados como o da ‘Antropologia. Embora a propria Antropo- logia nao deixasse de criar suas proprias relag6es de saber-poder, ela contribuiu para tornar aceitavel a idéia de que ndo se pode estabelecer uma hierarquia entre as cultu- ras humanas, de que todas as culturas sio epistemolégica e antropologicamente equi- yalentes. Ndo é possivel estabelecer ne- nhum critério transcendente pelo qual uma determinada cultura possa ser julgada su- perior a outra. E essa compreenséo antropolégica da cultura que fundamenta, de certa forma, grande parte do atual impulso 86 multiculturalista. Nessa visfo, as diversas culturas seriam o resultado das diferen- tes formas pelas quais os variados grupos humanos, submetidos a diferentes con- digdes ambientais e histéricas, realizam 0 potencial criativo que seria uma caracte- ristica comum de todo ser humano. As diferengas culturais sertam apenas a ma- nifestago superficial de caracteristicas humanas mais profundas. Os diferentes grupos culturais se tornariam igualados por sua comum humanidade. Essa perspectiva est na base daquilo que se poderia chamar de um “multicul- turalismo liberal” ou “humanista”. E em nome dessa humanidade comum que esse tipo de multiculturalismo apela para © respelto, a tolerancia e a convivéncia pacifica entre as diferentes culturas. Deve- se tolerar e respeitar a diferenca porque sob a aparente diferenca hé uma mesma humanidade. Essa visio liberal ou humanista de mul- ticulturalismo € questionada por perspec- tivas que se poderiam caracterizar como mais politicas ou criticas. Nestas perspec- tivas, as diferencas culturais nao podem ser concebidas separadamente de rela- Oes de poder. A referéncia do multi- culturalismo liberal a uma humanidade comum é rejeitada por fazer apelo a uma esséncia, a um elemento transcendente, a uma caracteristica fora da sociedade e da historia. Na perspectiva critica ndo & apenas a diferenca que é resultado de relagdes de poder, mas a prépria defini- 0 daquilo que pode ser definido como “human”. A perspectiva critica de multicultu- ralismo esta dividida, por sua vez, entre uma conceps&o pés-estruturalista e uma concepgio que se poderia chamar de “materialista”. Para a concep¢o pés-es- truturalista, a diferenca é essencialmen- te um processo linguistico e discursivo, A diferenca nao pode ser concebida fora dos processes linguisticos de significacao. A diferenga néo é uma caracteristica na- tural: ela € discursivamente produzida. Além disso, a diferenca € sempre uma relagdo: nao se pode ser “diferente” de forma absoluta; é-se diferente relativa- mente a alguma outra coisa, considera da precisamente como “néo-diferente”. Mas essa “outra coisa” nao é nenhum re- ferente absoluto, que exista fora do pro- cesso discursivo de significacio: essa “outra coisa”, 0 “nao-diferente”, também 6 faz sentido, s6 existe, na “relacdo de diferenca” que a opée ao “diferente”. Na 87 medida em que é uma relagio social, proceso de significacéo que produza “di- ferenca” se dé em conexio com relag6es de poder. Séo as relacdes de poder que fazem com que a “diferenga” adquira um sinal, que © “diferente” seja avaliado ne- gativamente relativamente a0 “ndo-dife- rente”. Inversamente, se ha sinal, se um dos termos da diferenca é avaliado posi- tivamente (0 “nio-diferente”) e 0 outro, negativamente (0 “diferente”), € porque ha poder. Essa visio pés-estruturalista da dife- renga pode ser criticada, entretanto, por seu excessivo textualismo, por sua énfa- se em processos discursivos de produ- do da diferenca. Uma perspectiva mais “materialista”, em geral inspirada no mar- xismo, enfatiza, em troca, os processos stitucionais, econémicos, estruturais que estariam na base da produgéo dos processos de discriminagéo e desigualda- de baseados na diferenca cultural. Assim, por exemplo, a andlise do racismo ndo pode ficar limitada a processos exclusi vamente discursivos, mas deve examinar também (ou talvez principalmente) as estruturas institucionais e econdmicas que estio em sua base. O racismo néo pode ser eliminado simplesmente através do combate a expressées lingliisticas ra- cistas, mas deve incluir também o com- bate A discriminagdo racial no emprego, na educagio, na satide. ‘Quais as implicacdes curriculares des- sas diferentes vis6es de multiculturalismo? Nos Estados Unidos, 0 multiculturalismo originou-se exatamente como uma ques- to educacional ou curricular. Os grupos culturais subordinados — as mulheres, os negros, as mulheres e os homens homos- iciaram uma forte critica aquilo que consideravam como o cénon literé~ rio, estético e cientifico do curriculo uni- versitario tradicional. Eles caracterizavam esse cinon como a expressio do privilé- gio da cultura branca, masculina, européia, heterossexual. © canon do curriculo uni- versitario fazia passar por “cultura comum” uma cultura bastante particular — a cul- tura do grupo culturalmente e socialmen- te dominante. Na perspectiva dos grupos culturais dominados, 0 curriculo universi- tario deveria incluir uma amostra que fos- se mais representativa das contribuicoes das diversas culturas subordinadas. sexuais — Embora as varias perspectivas multi- culturalistas aceitem esse principio mini- mo comum, elas divergem, entretanto, em aspectos importantes. A perspectiva liberal ou humanista enfatiza um curricu- lo multiculturalista baseado nas idéias de tolerdncia, respeito e convivéncia harmo- niosa entre as culturas. Da perspectiva mais critica, entretanto, essas nogées del- xariam intactas as relac6es de poder que estio na base da producio da diferenca. Apesar de seu impulso aparentemente generoso, a idéia de tolerdncia, por exem- plo, implica também uma certa superio- ridade por parte de quem mostra “tolerancia”. Por outro lado, a nogao de “respeito” implica um certo essencialis- mo cultural, pelo qual as diferencas cul- turais so vistas como fixas, como ja definitivamente estabelecidas, restando apenas “respeité-las”. Do ponto de vista mais critico, as diferencas estio sendo constantemente produzidas e reprodu- zidas através de relagdes de poder. As diferencas nfo devem ser simplesmente respeitadas ou toleradas. Na medida em que elas esto sendo constantemente fei- tase refeitas, o que se deve focalizar sio precisamente as relagées de poder que presidem sua producio. Um curriculo inspirado nessa concep¢ao nao se limita~ ria, pois, a ensinar a tolerancia e o resp to, por mais desejével que isso possa parecer, mas insistiria, em vez disso, numa

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