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DIRETORIA DE TRATAMENTO DA INFORMAGRO a Slimane, Mio, 964 “ATrraa texemuntal t declan do saber hisérico / Mico Selgnann Siva. Campion, SP: Eder da Unie, 2022 Pércolonilono, 2 Memésa aa are 4 Oulu ~ Hise 4: Nepeionisms, Tilo DD — 3253 Copyright © Mirco Segmnn-Sih Cop © 013 by tora de Uniamp Asopinis hpi conduc eeomendagbesexpeas stele ode tepoalidase do ator nia cceatamece etm vod tor d Uleamp Diets eserradoce pein pals to de 19.2199, pois poi aon pri em sot, Poet do deers ds dios Improve no Bra Foleo dept lp Dice sera ora dh Unica ua Sapo Burg de Hal ‘Campa Unica CEP ryt 39 Campinas ~SP—Bea Tale) ssn 8 ‘wrrotionmicimpsomte~venlxeditoraanicasp be Para Ariani “DA ARS MEMORIAE AOS ESTUDOS DE MEMORIA POS-COLONIAIS™ 2 tdem, p62 2 dem, p63 210 dem, bidem 22 Chakrabarty 2007. 2 Gilroy 2012.1. 2 Iden, pp 135-36 25 dem, ps. 2 Idem, ibid. 2 Idem, ibid. 2 Lem, ps. 2 Idem, p54 ®°Kilomba, 2019, p. 3. | Record agu a obra seminal de Margareth Rago A aventura de contars:feminismos, erita dese invengdes da subjetividade (23) na qual ea também fz wma (eeconstrass0 histévieaa partir da curadoria de sete vozesfemininas. Rago também vai valorzar 4 ‘oraldade e vozes femininas em detrimento do grafocenteismo da mania documental da esctitahistricapostvstaefalocénteca. A verdade de que se trata na obra de Rago & aquela qual Foucault (2001) s refera ao revivero conceit antigo de parshesia,o dizer a verdade sem medo. Trata-se de uma verdade eminentement politica, que fere, provoca e dlesmontao establishment. Quem pratca ess falar franco sabe que a verdade que emiteé também soa propria opindo, que defende com palavras clare ediretas Asim como essas sete mulheres recorreram A prética da escrita de si para tenta se reinventar,costurando suas subjetividades a partic de suas trajtdrias, seus conflts, suas frustagQes e sas ‘itérias, tlizando essa escrta como ferramenta politica, nspiradas plas uta feministas, ‘do mesino modo Margateth a reinscrever esss vivéncas, dando a elas uma acolhida aberiaegenerosa,perfilando-aslado lado, contextualizando esss narrativas,justamente Aestacaoaspecto feministae disruptivodessasexperiéncias. 22 Kilomba, 2019 p82. 2) Kopenawa & Alber, 2015; Krenak, 2019 € 2020, 2st nlemals en Dokument der Kultr, ohne 2ugeich cin slches der Babare 2 sin’ Genjamin, 2010, p. 34: 2020, p. 74) Importantelembrar que essa frase fer parte antes do ‘nsaio de Benjamin sobre “Eduard Fuchs 0 colecionador eo historiador” ("Eduard Fuchs, der Sammler und der Historiker"), de 1937 (Benjamin, 980, p. 47) Benjamin, 2020, pp. 100-101. “Tout cela ne témoigne de la culture sans témoignen, ‘en méme temps, dela barbare” (dem, 2010, pp. 664) * Benjamin penson essa interrupsio da ideia de progresso como uma critica tanto a0 penstmento burgués quanto a0 marxismo. Nos esbogos eversbes de suas ties, emos “Marx afitma que as revolugdessio as locomotivas da histéra do mundo, Mas talvez isso seja totalmente diferente. Talver as revolugSes ejam oacionar do freio de emergencia pela hhumanldade que viaja neste trem” 2020, p.202). Fm 2020/2021, essa consiénca de que locomotiva do progresso se dirige 2 um abismo sb ndo est clara para quem no quet ver. 2'Ndikung 219, p. 64: cf. Sligmann-Silva, 2019 2 O TEMPO DEPOIS DAS CATASTROFES Prometeu: Falay-te disso édoloroso para mim, ‘mas calar-me também me causa muitas does, es Esquilo! Retensiuser @ popeusan varios ke WID do Kove a . cee ence ‘ Gactiok 1 x nebac? ¢ testemunho ¢ um tema que tem despertado a atencio de estudiosos através de diferentes campos do conhecimento. Comegando pela teologia, {que estuda 0 testemunho como afirmacao e revelacéo da fe," passando pelos estudos juridicos (que nas iltimas décadas desenvolveu uma area que, para além das técnicas de entrevista das testemunhas e dos réus, estuda criticamente a propria possibilidade do testemunho),* chegamos a0 campo da psicologia, que estuda 0 tema polémico da recovered memory, abordando o testemunho tanto do ponto de vista comportamental e da narrativa da situacSo traumética,* como da psicologia social, com seus estudos de histérias de vida e de comunidades? A ppsicandlise €toda baseada na situacdo dialdgica da clinica que temo testemunho zno seu centro.’ Além desses campos, nao podemos esquecer do papel central da etnologia, que desenvolveu técnicas de entrevista com os informantes ¢ ‘uma vasta bibliografia sobre a relagdo entre 0 etnélogo e as fontes vivas de suas pesquisas/ 0 mesmo valendo para 0 novo campo da histéria oral e historiografia de um modo geral, que tem debatido sua relagio (tensa) com os testemunhos historicos ¢, 0 longo do século XX, redescobriu-se como filha de ‘Mnemosyne, a Meméria.* Na filosofia otestemunho tem um valor tanto na teoria da percepgo como no estudo dos atos de linguagem testemunhais, entre muitas outras abordagens, inspiradas por autores como Walter Benjamin, Derrida, Lévinas e Paul Ricoeur? Finalmente, na literatura ¢ nos estudos literérios, 0 conceito de testemunho tem servido para repensar virios leitmotive desse vasto campo, como o proprio estatuto do literario, as fronteiras entre a ficcio ¢ 0 factual, a relacao entre literatura e ética etc." © mesmo vale para a teoria das artes ea teoria estéticanna sua constante busca de reflexao sobre os limites de seu rps (oud & ‘O-TEMPO DEPOIS DAS CATASTROFES objeto." No que segue tentarei apresentar algumas dessas quest6es, fosando os estudos literérios. Para introduzir o tema, iniciaremos com uma passageth pelas tragédias gregas. A partir dai tentaremos uma primeira mise au point do que estd em jogo no conceito de testemunho, com auxilio de W. Benjamin, Freud e Benveniste. Apés apresentar em linhas gerais duas grandes dreas-de estudos do ‘conceito nas iltimas décadas, a saber, os estudos sobrea Shoah Bocca 20 testimontio hispano-americano, fecho essa apresentacao com uma reflexo sobre 6 testemunho como uma categoria que pode nos ajudar a pensar uma virada de @)paradigma que vem ocorrendo no campo das artes eda literatura, EUMENIDES OU A CUMPLICIDADE ENTRE A LEI, 0 TESTEMUNHO E 0 ESTADO DE EXCEGAO Iniciemos com uma sintomatica protocena do testemunho, com todo © cuidado que'essa empreitada traz em si. Porque, se é verdade que certas estruturas podem ser vistas - ou simplesmente projetadas ~ nas tragédias, também ndo podemos deixar de lado as diferengas hist6ricas. No que segue destacarei mais essas diferencas, mas antes penetremos na nossa primeira estagao lembrando de algumas passagens de Esquilo, Para tratar da figura do testemunho é conveniente no esquecer de sua_ rrelagio como que umbilical com a cena juridica. Esquilo apresentou o que pode set tratado como o primeiro tribunal “humano”, a sua primeira encenacao, na tragédia Fuménides, a terceira da trilogia que narra a historia dos Atreus. Em Agamemnon, a primeira tragédia desse ciclo, Agamémnon, o pai de Orestes € Blectra, éassassinado por sua esposa, Clitemnestra, com a cumplicidade de seu amante, Egisto; nas Coéforas, Orestes e sua irma, Electra, vingam-se matando a 1mae. Essa pega se fecha com Orestes vendo a imagem das Frias, com seus cabelos de serpentes e sangue correndo de seus olhos, perseguindo-o e clamando por -vinganca Euménidesy a tragédia que nos interessa aqui, abre-se apresentando Orestes depois de muitas viagens, em sua fuga desesperada, quando chega a0 templo de Apolo em Delfos. Nesse momento, de modo significativo, as Farias dormem. Apolo surge e ordena que Hermes, “O condutor”, guie Orestes até o templo de Atena, na Acr6pole, onde ele deverd ser julgado e, assim, selivrar de seu sofrimento, Em seguida, o fantasma de Clitemnestra desperta as Frias eas |A VIRADA TESTEMUNIEAL # DECOLONIAL Do SABER HISTORICO envia atras de Orestes. Atena, apés receber Orestes ¢as Frias ese informar do conflto, chama 12 jurados para formar o primeiro tribunal que trataria de um hhomicidio, como ela mesma o afirma (E. 900-4 [681-4)). Esse gesto de certo modo apresenta o tribunal como um reflexo do mundo divino, jé que, mais adiante, [Apolo recorda a figura de Ixion,o primeiro assassino, que teria recebido sua purificagio por meio do préprio pai (patér, B. 953s. (71751). Zeus. O resultado do julgamento de Orestes é conhecido: apés o empate, 0 voto de Minerval ‘Atena decide a seu favor. As Furias sfo pacificadas com presentes de Atena, Orestes pode voltar a Argos ser ore. plot da peca apresenta justamente essa pacificagio, esse acordo, ou compromisso, para usar uma expressdo cara a Freud, entre as violentas Farias, representantes dos deuses ctOnicos antigos,a violencia sob a forma feminina e sua justica feita com sangue (arrancando os olhos ou castrando; E, 24456. 187 ss] 336 (25281) que nega a instituigéo do tribunal (E 467 ss. [35985], por outro lado, os deuses olimpicos, representantes da nova ordem ¢ das novas instituigdes. A pega é um largo elogio da instituigao do tribunal do Areépago que era presidido pelo arconte ei. Mais importante ainda, ‘0 compromisso encenado na tragédia néo implica o abandono da violencia e da légica da vinganca; muito pelo contrario,a violencia é reconhecida como parte da estrutura juridica. A tragédia indica de modo inequivoco que, sem o medo e a potencial punicio, nao pode haver sistema juridico, a reveréncia ao governo asleis s6 existe com o terror como garantia. Bis as palavras de Atena: Prestaiatengao a0 que instauro aqui, atenienses, convocados por mim mesma para julgar pela primeira vex um homem, autor de um crime em que foi derramado ‘sangue. A partir deste dia e para todo o sempre o povo que jéteve como ret Egeu teria incumbéncia de manter intactas as normas adotadas neste tribunal na colina de Ares [.]- Sobre esta elevagio digo que a Reveréncia ¢ 0 Temor, seu Irmo, seja durante o dia, sea de noite, evitarda que os cidados cometam crimes, «no set aque eles prefiram aniquilar as leis feitas para seu bem (quem poluir com lodo ou ‘com eflivios turvos as fontes claras nao tera onde beber). Nem opressdo, nem anarguia: eis o lema que os cidadios devem seguir e respeitar. Nao Ihes convém tampouco expulsar da cidade todo o Temor; se nada tiver a temer, que homem ‘cumpeiré aqui seus deveres? (E, 990-30 [681-99)) Podemos let aqui aquilo que j4 foi denominado, por Marcel Mauss ¢ outros autores, ambiguidade do sacro. A tragédia apresenta o rito juridico de reintegragdo daquele que estava proscrito, fora dale, 0 homo sacer, Orestes, que ‘passa pela kdtharsis de seu ser poluido. Nesse ritual “de civilizagao/purificagao”, ‘a ambiguidade é reinstaurada e reafirmada. Na tragédia, ocorre uma reversio. da posicao de Orestes, que pode voltar ao trono apés deixar a condicéo de homo sacer. 0 trono é 0 outro polo da lei que Ihe é ao mesmo tempo externo € interno, Orestes passa, para recordar a diferenca estabelecida por Benveniste, da qualidade de sacer paraa de sanctus: Assim como o banido (sacer) € um fora da lei, orei (sanctus) estd acima desta, A purgacdo de Orestes, ot seja, sua dura vyiagem fugindo das Furias — que, para Apolo, significaria sua longa despoluicio, «,portanto, deveria qualificé-lo para uma reintegragao e uma superaglo de seu banimento -, nio é reconhecida pelas Farias. Para elas, nao existe perdio ou cesquecimento do mal: elas representam a pura forca da meméria do mal (kakén , te mnémones semnai, E. 503 [383)) ¢ do desejo de vinganga. A katharsis tragica ‘das paix6es negativas nao significa, tampouco, sua eliminacio, mas a mise ent scéne delas como uma espécie de memento, As Férias, que sao transformadas por Atena em Euménides, as benévolas, por meio de seu pacto com elas, 530 incorporadas a lei que mantém a logica da espectralidade do passado em seu elemento terrorifico. Isso também ¢ importante para o que segue. ‘Mas vejamos 0 que ocorre no julgamento de Orestes destacando arecorréncia dos termos que evocam o testemunho, 0 termo-chave que nos interessa aqui. ‘Atena chama os jurados diante da divisio aparentemente irreconcilidvel dos dois partidos (B, 6188s. [47098]: situagdo arquetipica da cena do tribunal e das tragédias, como depois Euripides a exploraria. © julgamento depende da instituigo do testemunho. Assim, 0 coro das Farias diz.que vai se apresentar como testemunha contra Orestes para vingé-lo: se um mortal ns mostra suas mos imaculadas, nunca 0 ating noes rancor {rds esa vida cra pasar sent de todos sofrimento. Ma quando win dlr igual a est ocala suas mos ehsanguentades,chegamos para protger Sita lehman [adie Contre 5 lnc, «nou apesttands nplactvets, para cobra he divide de sang! ane. (5088) Em seguida, Orestes recorda que ainda existia a rede com que Clitemnestra ‘matara seu marido como um testemunho (ou prova) do crime (unt loutrén exemarturei phonon, B. 605 [46i)) 0 que faz lembrar a passagem em Coéforas |AVIRADA TESTEMUNHLAL E DECOLONIAL DO sapER misTORICO .» #7 Oe 7 Set OS (293 toro) quando Orestes mostra a roupa do pai manchada de sangue e perfurada pelo punhal de Bgisto como um testemunho [ou “prova certa”, ‘martirei] do crime. Atena, ao abrir o tribunal, observa que cada partido deve trazer suas testemunhas (marturia) e provas (tekméria) para evidenciar suas respectivas causas (E. 645 [485851]}: Aristételes, ¢m sua Retérica, reservou ‘um local especial para os tekméria, as provas ou sinais que evidenciam os enthymemes ou argumentos retdricos. Eles funcionam segundo uma légica da evidéncia metonimica, como se fossem partes ou rastros do evento. Em. seguida, na Euménides, Apolo se apresenta como testemunha e advogado de Orestes (kai marturésin élthon; E. 752 [576]). Nessa qualidade ele também ‘assume para sia culpa do assassinato de Clitemnestra, assim como afirma ja ter purificado (katharsios) Orestes. No interrogatorio a que as Frias submetem ‘Orestes ~ de um modo que, em que pesem as diferencas, nada deixa a desejar quando comparado a um interrogatério em um tribunal de hoje em dia - elas, perguntam se ele havia sido convencido por alguém a cometer o homicidio. A resposta é: “Foi este deus que agora é minha testemunha” (marturei de mois E. 775 |s94))- Pouco depois, ele afirma estar confiante na ajuda de seu pai (“Tenho € em meu pai; ele me ajudard”; E. 779 [598]). Nesse didlogo, Esquilo introduz ‘um argumento central na disputa que desdobra essa légica “patrilinear”: Orestes reconhece ser 0 assassino, mas nega que tenha sido injusto. Afinal, ele nao teria matado um parente ao matar a me. Nesse ponto ele pede que Apolo o apoie com seu testemunho (“depoimento”, marturéson; E. 793 [609]).* deus, afirmando falar em nome do pai (patér, £. 808 [618]) Zeus, primeiro critica 0 modo como Clitemnestra matou'o grande heréi, Agamemnon, que foi assim assassinado por uma mulher e de maneira nada heroica, paraem seguida introduzir seu argumento principal: [Aquele que se costuma chamar de filho nao é gerado pela mie ela somente & a nutriz do germe nela semeado; de fato 0 eriador & 0 homem que fecunda; ela, como uma estranha [xendi xené,estranha para um estranho], apenas salvaguarda fo nascituro quando os deuses no 0 atingem. (B. 868ss.[658ss,) Aqui, Apolo chama ninguém menos que Atena — a juizal - como prova e testemunha de sua argumentaedo a favor de Orestes. pipe ype sp oh pa a Nae ee (Oferecer-te-ei uma prova cabal [tekmérion] de que alguém pode se pai sem haver sie, Bis uma testemunha (martus] aqui, perto de nds~ P Zeus olimpico ~, que ndo cresceu nas trevas do ventre materno, (E8748. [66255] 3; filha do soberano resultado desse argumento, que mais uma vez sela a alianga dos novos

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