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AT SU ULE Se LU Ce COC Pe ‘12 PRERMCIO Este era um livro de que com certeza eu iria gostar, ela disse-me, ¢ escreveu o seu endereco num papel, o dia ¢ a hora em que eu poderia vir. ‘Dos muitos livros que li na biblioteca, nfo me recordo de ne- nhum que tena sido de grande importancia para o meu trabalho. Bu passava horas a procura de palavras, frases ou pardgrafos que eventualmente me pudessem dar uma linguagem. Eram recortes, retalhos que eu tentava cuidadosamente incluir na minha escrita. Mas este era um trabalho delicado, pois como € que se pode es- crever sobre a negritude, num espaco onde nao ha um tinico livro escrito por autores negrxs? Este princfpio da auséncia, no qual algo que existe é tornado ausente, é uma das bases fundamentais do racismo. As obras de Frantz Fanon existem, mas so ausentes,e por isso deixam de ter cexisténcia real. O existente passa a ausente e deixa assim de exist. ‘Toquei & campainha. Ela abriu e pediu que eu entrasse. Tinha sempre um cigarro na mao e um leve sorriso, doce. Dirigimo-nos a uma sala onde ela fazia as sess6es, eu tinha ido durante um inter valo. A sala tinha um sofé vermelho com uma colcha, uma cadeira funda a cabeceira e uma pequena mesa cheia de livros e papéis, desarrumados. Na parede oposta, centenas de outros livros. N&o ‘inhamos tempo para nos sentat, ela apenas pegou a obra e colo- cova nas minhas maos: “Le”, disse-me. Na capa, o nome Frantz lo Peau noire, masques blancs. -ompanha-me até hoje. Caminhei de volta, a folhear as paginas do livro, que estava, escrito em francés, a lingua materna de Fanon. Li-o sem parat. Re- conheco que ler em francés era quase tao facil para mim como ler em portugués. Apés a ditadura, com a descolonizacao de todos os pafses africanos e com a revolugio em Portugal, era obrigatério nas escolas piiblicas que todas as criangas aprendessem francés € inglés simultaneamente. A educagdo era um dos maiores projec- tos nacionais: “O povo no precisa de armas. © povo prec letras” Essa era a frase mais comum, grandemente inspirada pelos GRADAKILOMBA 18 maiores pensadores decoloniais, como Amflcar Cabral, Patrice Lu- ‘mumba, Aimé Césaire e também Frantz Fanon. Eu tinha um pequeno diciondrio que as vezes me acompa- nhava na leitura. Havia sempre uma ou outra palavra que eu precisava de decifrar. Mas o que era extraordinério na escrita de Fanon, ¢ que nenhum dicionério podia traduzir, era o seu estilo literério, que transbordava em contetido e significado. Eu nunca tinha lido nada assim, tao brilhante e inteligente. Tao audaz. To poderoso. A forca da sua escrita era tal que, enquanto eu lia, 0 ‘meu corpo precisava de voltar & superficie, para um folego de ar. ‘A explosio nao ocorrerd hoje. £ muito cedo... ou tarde demais. Nao chego armado de verdades categéricas. Minha consciéncia nao esta permeada de fulguragOes precipuas. ‘No entanto, com toda a serenidade, acho que seria bom que certas coisas fossem ditas, Essas coisas, eu as direi, nao as gritarei. Pois ha muito o grito saiu da minha vida.! Assim, com apenas 27 anos de idade, Frantz Fanon, nascido em 11925, em Fort-de-France, na Martinica, a terceira maior ilhha das Pequenas Antilhas, no Caribe, ndo longe do Brasil, e ainda hoje ‘um departamento ultramarino francés, comeca a introducao do seu livro Pele negra, mdscaras brancas. Econtinua: Por que escrever esta obra? Ninguém me pediu que o fizesse. ‘Muito menos aqueles a quem ela se dirige. E entao? Entéo respondo calmamente que existem imbecis de- ‘ais neste mundo. , tendo dito isso, compete a mim demonstré-1o? 1 Verp.21 deste volume. 2 Ibid, 14 PREFiCiO Fanon provou-o em 1952. 0 ano em que esta obra foi pt em Paris. Provavelmente, eu tinha nas mos uma dessas edi¢des francesas. Mas sabe-se que no final dos anos 1960 a obra foi tradu- ida em Portugal, no Porto, ¢ de imediato censurada ¢ eliminada do mercado pelos servigos secretos, nao voltando a reaparecer até hoje. A sua circulacdo durou apenas alguns dias - apés ter sido distribuida para leitura, ela foi proibida. No document de censura, lé-se: “O autor € negro, co- | Trate-se duma diatribe contra a civilizagao ocidental, ‘numa pseudodefesa das civilizagées negra, oriental e india. Para proibir®. Com 0 verbo proibir realcado. ‘Se fizermos as contas, depois da sua primeira tradugao em portugués, esta obra desapareceu durante cerca de cinquenta ‘anos. Tornow-se ausente. E, aqui, temos que nos perguntar: como 6 que as palavras escritas neste documento e relat6rio de censura podem permanecer validas durante tanto tempo? Como é que uma obra como esta pode permanecer “proibida” até hoje? O que é que 6 proibido em Frantz Fanon? 0 seu discurso? A sua pele? Ou ambos? (0 autor “negro” e “comunista” que escreve “contra a civiliza- fo ocidental” torna-se proibido exatamente nessa sequéncia de adjetivos, ‘Sem se aperceber, a minha professora de psicandlise segredou- -me, porque de facto se tratava de um segredo. De algo que a ninguém se deve revelar. Algo censurado, proibido, que se oculta a vista e ao conhecimento. Algo que nao deve existir mo mundo da branquitude. Na biblioteca, Frantz Fanon nao exis it eu também nao. Falo de novo sobre existéncia ¢ auséncia. ‘Afinal, eu era a tinica estudante negra em todo o instituto de psicologia clinica e psicandlise, numa cidade recheada de varias geragdes afrodescendentes, e aquela professora notou. Ela notou o principio da auséncia. 0 principio no qual quem existe deixa de existir. E é com este principio da auséncia que espacos brancos so i GRADAKILOMBA 15 ‘mantidos brancos, que por sua vez tornam a branquitude a norma nacional. A norma ¢ a normalidade, que perigosamente indicam quem pode representar a verdadeira existéncia humana. $6 uma politica de cotas & que pode tornar o ausente existente. A entrega deste livro talvez ndo tenha demorado mais do que seis minutos, ou sete, mas foi um momento que mudou radical ‘mente 0 meu mundo, sem ela o saber. Pois Frantz Fanon tornowse centro de todos os meus trabalhos, tanto literdrios como artisticos, ‘Mas Fanon também cometeu um erro fatal. Na sua obra ele fala do homem como a condicao humana. Por vezes 0 homer sig- nifica “Frantz Fanon’, por vezes “homem negro” e as vezes “ser humano”.O sujeito do seu livro é negro e masculino, Em questo estd o status ontol6gico das mulheres negras. Rumo aum novo humanism... ‘A compreensio entre os homens... [Nossos irmaos de cor... reio em ti, Homem...* ‘Muitos autores defendem que Fanon usa 0 termo homem como “uma qualidade fenomenolégica da humanidade incluindo o ho- ‘mem e as mulheres”. Mas as mulheres negras estdo inclufdas ou exclufdas de Fanon, quando ele escreve “O negro é um homem nnegro...”? Inclufdas ou exclufdas quando ele pergunta “O que quer co homem negro?” Um facto é que quem tem pouco ou nenhum poder € categorizado assim, na auséncia, Na inexisténcia. Enquanto as mulheres brancas podem ter um status oscilante, {sto €, podem ser elas préprias e as outras para os homens bran- 0s: pois no s4o homens, mas séo brancas. O homem negro, que éhomem, mas nao branco, ndo tem acesso ao patriarcado, pois, este € definido pela branquitude e torna-o o outro. A mulher negra, 3 Ibid. 4 Ibid. Grifos da autora. (N.E.] Berlim, 22 de outubro de 2020 aaa Le MASCARAS BRANCAS ai 4 aT 2 Por mais que me exponha ao ressentimento de meus irmaos de cor, direi que o negro nao é um homem. Existe uma zona do ndo ser, uma regio extraordinariamente estéril e drida, uma encosta perfeitamente nua, de onde pode bro- ‘tar uma aparigéo auténtica. Na maior parte dos casos, o negro nao goza da regalia de empreender essa descida ao verdadeiro inferno. (© homem nao € s6 possibilidade de emenda, de negagdo. Se de fato a consciéncia é um ato de transcendéncia, devemos estar igual mente cientes de que essa transcendéncia é assombrada pelo pro- ‘blema do amor e da compreensao. © homem é um sim que vibra com as harmonias obsmicas. Desgarrado, disperso, confuso, conde- nado a ver se dissolverem uma a uma as verdades que elaborou, deve deixar de projetar no mundo uma antinomia que lhe concomitante. (O negro é um homem negro; isto é, em decorréncia de uma série de aberrages afetivas ele se instalou no seio de um universo do qual ser preciso remové-o. © problema tem sua importéncia. Nao almejamos nada menos do que libertar 0 homem de cor de si mesmo, Seguiremos bem len- tamente, pois existem dois campos: 0 branco € o negro. Interpelaremos com tenacidade as duas metafisicas e veremos, ‘que so, amitide, bastante dissolventes. 'Ndo sentiremos nenhum pesar pelos antigos governantes, pelos antigos missionérios, Para nés, quem adora os negros € tao “doente” quanto quem os execra. [No portugues europeu, o cardter pejorativo de “preto” se evidencia com maior nitidez, provavelmente em r220 da experiéncia colonial recente e do com- ‘ponente colonialista do discurso racista do contexto, No portugués brasileiro, pporém, essa carga pejorativa é menos eve ‘ndo ausente, de todo modo faducio optou por no dif homogénea, com excegdes pont specifica exigia explicitacao cescotha original do autor. 1-.] tidos ou destaque entre parénteses da ie 23 Em sentido inverso, o negro que deseja branquear sua raca é ‘40 infeliz quanto aquele que prega 0 dio ao branco. ‘Onegro nao € de jeito nenhum mais amavel que o tcheco,e na verdade 0 que € necessério é libertar o homem. Este livro deveria ter sido escrito hé trés anos... Mas aquela al- ‘ura as verdades nos incendiavam. Hoje elas podem ser ditas sem ardor. Tais verdades nao precisam ser jogadas na cara dos homens. Elas ndo buscam gerar entusiasmo. Desconfiamos do entusiasmo. ‘Toda vez que se viu o entusiasmo eclodir em algum lugar, ele renunciava o fogo, a fome ¢ a miséria... E também o desprezo pelo homem, © entusiasmo € por exceléncia a arma dos impotentes. Aqueles que esquentam o ferro para logo o malhar. Nés gos- tarfamos de esquentar o lombo do homem e partir. Talvez pudés- semos obter 0 seguinte resultado: o Homem mantendo vivo esse fogo por autocombustao. 0 Homem liberto do trampolim constituido pela resistencia alheia, escavando a prépria carne em busca de um sentido. Apenas alguns dos que nos lero serao capazes de desvendar as dificuldades que enfrentamos na redacao desta obra. ‘Num perfodo em que a diivida cética se arraigou no mundo,em ‘que, nas palavras de um bando de canalhas,jé ndo se pode discernir co sensato do absurdo, é dificil descer a um patamar em que as cate- gorias de sensato e absurdo ainda nao s4o empregadas, O branco esta encerrado em sua brancura. Onegro, em sua endéncias desse duplo narcisismo e remete, plicitar as conclusées a serem lidas. 24 Foi unicamente a preocupacao de por fim a um circulo vicioso que orientow nossos esforcos. i fato: os brancos se consideram superiores aos negros. ‘Mais um fato: os negros querem demonstrar aos brancos, custe ‘o que custar, a riqueza de seu pensamento, o poderio equipardvel da sua mente. ‘Como escapar disso? Utilizamos ha pouco o termo narcisismo. De fato, acreditamos que apenas uma interpretacao psican: revelar as anomalias afetivas responsdvels pelo edificio complesual. ‘Trabalhamos para uma lise completa desse universo mérbido. Con- sideramos que um individuo deve se inclinar a assumir o univer salismo inerente a condico humana, E, ao dizermos isso, conten plamos sem distingdo homens como Gobineau ou mulheres como Mayotte Capécia. Mas, para chegar a essa apreenséo, € urgente se livrar de uma série de taras, sequelas da fase infantil. ‘A desgraca do homem, dizia Nietzsche, é ter sido crianga? No ‘entanto, ndo terfamos como esquecer, como dé a entender Char les Odier, que 0 destino do neurstico esté nas maos dele. Por mais penosa que possa nos parecer esta constata¢ao, somos obrigados a fazé-1a: para o negro, existe apenas um destino. Bele é branco. ‘Antes de abrir o caso, algumas coisas precisam ser ditas. A and- lise que realizamos € psicol6gica. Continua a nos parecer evidente, ‘mais adiante:‘A inflicidade que vem a0 homem por ele ter sido uma erianga ‘ese, pois, no fato de que sua liberate Ihe fol primetramente mascarada e de | | t t | | 5 contudo, que a verdadeira desalienacdo do negro requer um reco- nhecimento imediato das realidades econ6micas e sociais. Se hé ‘um complexo de inferioridade, ele resulta de um duplo processo: = econémiico, em primeiro lugar; ~¢,em seguida, por interiorizacdo, ou melhor, por epidermiza- ‘cdo dessa inferioridade. Em reagdo a tendéncia constitucionalizante do final do século xix, Freud, por meio da psicandlise, exigiu que se levasse em conta © fator individual. Ele substituiu uma tese filogenética pela pers- ppectiva ontogenética. Veremos que a alienagao do negro ndo é ‘uma questdo individual. Além da filogenia e da ontogenia, existe a sociogenia. Num certo sentido, em resposta A exortagio de Leconte e Damey,' digamos que se trata, neste caso, de um socio- diagnéstico, Qual é 0 prognéstico? A sociedade, ao contrério dos processos bioquimicos, nao esté ‘imune a influéncia humana. O homem é aquilo que faz.com que a sociedade exista. O prognéstico esta nas maos daqueles que an- seiam abalar as carcomidas fundagdes do edific ‘O negro deve travar a luta nos dois nfveis: visto que eles, em ‘termos histéricos, se condicionam mutuamente, qualquer liberta- do unilateral seré imperfeita, e 0 pior erro seria acreditar numa interdependéncia mecanica entre ambos. Além disso, 0s fatos re- sistem a uma inclinacdo sistemiética desse tipo, como mostraremos. A realidade, ao menos desta vez, exige compreensdo total. Uma solugao deve ser apresentada tanto no nfvel objetivo quanto no subjetivo. Endo adianta vir proclamar com ares de “caranguejo-violinis- ta que o que € necessério é salvar a alma. 3 Maurice Leconte e Alfred Damey, Esai critique des nosographies psychiatr- ‘ques actuelle. Paris: Gaston Doin et Cle., 1949. 4 No original, “crabec'estma-faute”, numa evocaco do autor ao caranguejo da espécie Uca pugilator, tipico de manguezais estudio das zonascosteirasatlan- teas, que, no Caribe de colonizacdo francesa, é chamado de semaja, eémafaute Somente haverd desalienasao genuina na medida em que as, coisas, no sentido mais materialista possivel, tiverem voltado a0 seu lugar. £ de bom-tom introduzir uma obra de psicologia com uma ex- posigdo da perspectiva metodol6gica adotada. Fugiremos & regra. Deixamos os métodos a cos € aos matemséticos. Chega um onto em que os métodos sofrem reabsorcao. Gostariamos de nos situar quanto a isso. Tentaremos descobrir as 3s posigdes adotadas pelo negro diante da civilizacéo branca. Ivagem do mato” nao ser contemplado aqui. & que, para ele, alguns elementos ainda carecem de importancia. ‘Cremos que existe, em virtude da confluéncia entre as racas mento em massa de um complexe psi- coexistencial Ao analisé-lo, almejamos sua destruicéo. Muitos negros nao se reconhecero nas linhas que virdo a seguir. Muitos brancos tampouco. De minha parte, porém, o fato de me sentir alheio ao mundo do esquizofrénico ou do impotente sexual em nada altera a sua realidade, Asatitudes que me proponho descrever so verdadeiras. Depa- reime com elas incontaveis vezes. Entre os estudantes, entre os trabalhadores e entre 0s cafetdes do Pigalle e de Marselha, identifiquei o mesmo componente de neira mais vigorosa possfvel a deplorével libré urdida por séculos de incompreenséo. ma faute (a culpa é minha}, ou ainda de crabe volniste[caranguejo-vio- linistal, por referéncia ao tamanho desproporcional de uma de suas pin¢as em, relasdo 3s outras, dando a impressio de que a move contra o peito num gesto dd peniténca ou realizando a flexio do violinist. No Brasil, por razBes andlogas, ‘os caranguejos do gnero Uen também sko conhecidos como chama-maré.[N-1.] _rmpuineoanace conan ine ita ee AON TTR MRC a A arquitetura do presente trabalho se situa na temporalidade. ‘Todo problema humano exige ser considerado a partir do tempo. 0 ideal seria que o presente sempre servisse para construir 0 futuro. E esse futuro ndo é 0 do cosmos, mas sim o do meu século, do meu pa(s, da minha existéncia. De modo algum devo me propor preparar o mundo que me sucederd. Pertenco irredutivelmente & minha época. IE para ela que devo viver. O futuro deve ser uma construcao constante do homem existente. Essa edificago se vincula ao pre- sente, na medida em que 0 ‘0 algo a ser superado. 0s trés primeiros capt stam do negro moderno. Con- ‘templo o negro atual e tento determinar suas atitudes no mundo bbranco. Os dois tltimos séo dedicados a uma tentativa de explica- 40 psicopatol6gica e filoséfica do existir do negro. ‘A analise é sobretudo regressiva. © quarto e 0 quinto capftulos se situam num plano fundamen- talmente distinto. No quarto capftulo, critico um trabalho’ que a meu ver é peri- 8050. O autor, Octave Mannoni, tem, de resto, consciéncia da am- Diguidade da sua posicdo. Nisso talvez resida um dos méritos de seu testemunho. Ele tentou expor uma situagao. Temos 0 direito de declarar nossa insatisfacdo. Temos o dever de mostrar ao autor em que nos distanciamos dele. ‘© quinto capitulo, que intitulei “A experiéncia vivida do negro’, € importante em mais de um aspecto. Ele mostra o negro con- frontado & sua raca. Ficard evidente que nao hé nada em comum entre 0 negro desse capftulo e aquele que busca se deitar com a branca. Neste tiltimo se percebia 0 desejo de ser branco. Uma sede de vinganga, em todo caso. Ali, pelo contrério, observamos 0s es- forcos desesperados de um negro que se empenha em descobrit 0 sentido da identidade negra. A civilizacao branca e a cultura euro- ppeia impuseram ao negro um desvio existencial. Mostraremos em §5 Octave Mannoni, Psychologie de fa colonisation. Pars: Seuil, 1950. ser dedicado a exp! Pode ser que e desneces- UE Pa Ca tena 32 cextcaordindria. Paul Valéry, que sabia disso, fazia da linguagem “o deus na came esgarrado”* ‘Numa obra ora em preparacdo,? propomo-nos a estudar esse fenémeno. Por enquanto, gostarfamos de mostrar por que 0 negro anti- Ihano, quem quer que seja ele, tem sempre que se confrontar com a linguagem. E mais, ampliamos o alcance da nossa descricao e, para além do antilhano, visamos a todo home colonizado. ‘Todo povo colonizado ~ isto é, todo povo em cujo seio se originou um complexo de inferioridade em decorréncia do sepultamento da riginalitade cultural local - se vé confrontado com a linguagem da nacdo civilizadora, quer dizer, da cultura metropolitana. O coloni- zado tanto mais se evadiré da propria selva quanto mais adotar os var lores culturais da metrépole. Tao mais branco seré quanto mais rejei- ‘ar sua escuridao, sua selva. No exército colonial, e especialmente nos regimentos de fuzileiros senegaleses,’ 0s oficiais nativos séo, antes de mais nada, intérpretes. Servem para transmitir a seus semelhantes as ordens do senhor, gozando eles préprios de certa respeitabilidade. Pars: Gallimard, 1952. [Nossa tradugo sr] spesar de o tema ser retomado diversas veres 20, to citado nao chegou a ser publicado com esse 1 Paul Valéry, "La pythie do verso"Le dieu dans 2 Le Langage et 'agresi longo da obra de Fanon, ‘ftulo, xr] -s sénégalais. 0 terme tirailleur corresponde a unidades ‘unidades de origem senegalesa, mas designa todas as unidades compos ‘as de soldados negros oriuncios das coldnias subsaarlanas no exército colonial, constituindo o principal elemento da chamaca "Forga Né 33 Existe a cidade, existe 0 campo. Existe a capital, existe a pro- vincia, Aparentemente, 0 problema é 0 mesmo. Vejamos um lionés em Paris; ele enaltecerd a calma da sua cidade, a beleza inebriante dos cais do Rédano, 0 esplendor dos plétanos e tantas ‘outras coisas decantadas por pessoas que nada tém a fazer. Se voc€ 0 encontrar ao retomnar de Paris sobretudo se vocé nao conhece a capital, ele entao se esvairé em elogios: a Cidade Luz, 0 Sena, as guinguettes, ver Paris ¢ morter... © processo se repete no caso do martinicano. Primeiro em sua ‘ha: Basse-Pointe, Marigot, Gros-Morne e, do outro lado, a impo- nente Fort-de-France. Depois,e af esté o ponto essencial, fora de sua ilha. O negro que conhece a metrpole é um semideus. Relato aqui, a propésito, um fato que deve ter marcado meus compatrio- tas, Muitos antilhanos, apés uma estada mais ou menos longa na metrépole, retornam para ser consagrados. Em relacdo a eles, 0 nativo, aquele que nunca saiu da toca, o “bitaco”’ adota a forma mais eloquente de ambivaléncia. O negro que por algum tempo viveu na Franga retorna radicalmente transformado. Falando em termos genéticos, dirfamos que seu fenétipo sofre uma me- ‘tamorfose definitiva, absoluta.# Desde antes da partida, 0 que se sente, a se tomar pelo aspecto quase etéreo de seu passo, € que novas foreas foram acionadas. Ao encontrar um amigo ou colega, nao é mais 0 amplo gesto do braco que o anuncia: discretamente, nosso “vindouro” faz uma reveréncia. A voz, normalmente e: dente, deixa intuir um movimento interno pontuado por sus 10s, Pois 0 negro sabe que 1é, na Franca, hé uma ideia que se faz a seu respeito que se aferrard a ele no Havre ou em Marselha: 4 Cabarés populares, geralmente ao ar livre, tipicos dos subsirbios parisienses (wry 5 Termo pejorativo do crioulo martinicano (kréyol maunik) para designar um. ‘camponés sem instrucio. (N.1.] {altava. Elesvoltam lteralmente cheios de si. 4 “Sou matinicano, é a pimeia vez que venho a Fanca’y ele sabe ‘que aquilo que os poetas chamam de “arrulho divino” (entenda-se, © crioulo) nao passa de um meio-termo entre o peti francés.* A burguesia nas Antillas no faz uso do criouk no contato com os domésticos. Na escola, 0 jovem mart aprende a desprezar o patod. Fala-se de crioulismos. Algumas famt- lias chegam a proibir o uso do crioulo e as mdes tratam seus filhos de “tibandes” quando dele se utilizam:? 17 No original, Je suis Matiniquais, c'est la pemi® fois que e viens en Fance, ex do ere atribuida aos falantes nativos dos crioulos caribe- 8 Etimologicamente com forte carga pejorativa racial, petitégre ou pitindgue ‘io nomes atribuldos a um pidgin de superstrato frances utilizado entre meados {0 século xix e meados do século xx em algumas col6nias francesas,sobretudo na Africa Ocidental, preponderantemente na comunicacao entre soldados nat iis brancos. Por extensio de sentido, o termo era empregado para se antes simplificadas com o intuito de fcilitar a comunicagio ia hierarquia racial. Muito de seu vocabulétrio fo ab- sorvido da terminologia néutica francesa. Sua documentagao ¢ precériae foi realizada em grande medida por Maurice Delafosse, administrador colonial que _atuou na Africa Ocidental e que ofereceu uma descrigdo morfol6gicaesintética 1s corridas, estacando como seus tragos marcantes alguns .9se morfoldgicos comuns aos crioulos caribenhos:supressio cexelusivamente com 0 “pas”; auséncia de flex4o por io do artigo ou aglutinacdo deste ao substanti ‘comparatfs de plus de 60 langues ou dialectes paris a la régions lmitrophes ‘9 Tendo como traduc remete aos grupos de criancas que ‘pedagos menores de cana que escapavam dos fardos atados pelas canavieiras. anon pre rear dest ua expresso em cro par reper ‘ uso da lingua pelas criangas. Cf: David Mi em Max Sih ), Frantz Fanon’ Black disciplinary Essays (Manchester: Manchester Uni 35 ‘Minha mée querendo um flho memorando Sea vossa tarefa de histéria ndo estiver decorada do ireis& missa no domingo com vossos trajes domingueiros Esse menino serd a vergonha do nosso nome esse menino serd nosso Deus nos acuda Calai a boca ‘Jé ndo vos disse que deveis falar francés ‘francés da Franca ‘francés do frances ‘francés francés ‘sim, é preciso que eu me policie em minha elocucio, pois é em parte por ela que serei julgado... Com grande desdém, dirdo de mim: nem sequer sabe falar francés, Num grupo de jovens antilhanos, aquele que se exprime bem, ‘que possui o dom{nio da lingua, inspira extraordindrio temor; € preciso tomar cuidado com ele, é um quase branco. Na Franca se diz: falar como um livro. Na Martinica: falar como um branco. O negro, chegando & Franca, insurgese contra 0 mito do max 10 Léon-Gontran Damas, “Hoquet’, em Pigments. Paris: Présence Afticaine, 1962 [Paris: Guy Lévis Mano, 1937). 36 Recentemente, um colega nos contou esta historia. Um mar tinicano, chegando ao Havre, adentrou um café. Com plena con- fianca, disparou: “Garrrgom, uma gawafa de ceveja!”." O que temos af € uma verdadeira intoxicacdo. Cioso de ndo se conformar a imagem do “negro que come os eres’, fizera destes um bom estoque, mas se descuidou ao aquinhoar o seu esforco. 1H um fen6meno psicolégico que consiste em acreditar numa abertura do mundo na medida em que as fronteiras se rompem. O negto, prisioneiro em sua ilha, perdido em meio a uma atmosfera sem 0 menor escape, peroebe esse apelo da Europa como um res- piradouro. Pois,€ preciso que se diga, Césaire foi magnfnimo — em seu Diairo de um retorno ao pats natal. Essa cidade, Fort de-France, é realmente rasteira, encalhada. L4, naquelas ladeiras ensolaradas, “essa cidade achatada — exposta, insensata, inerte, sem flego sob 0 seu fardo geométrico de cruzes recomecando eternamente, indécil a sua sorte, muda, contrariada de todas as maneiras, incapaz de crescer segundo a seiva dessa terra, tolhida, rofda, reduzida, em ruptura de fauna ¢ de flora”? ‘A descrigio que Césaire faz dela nao é nada postica. £ com- preens{vel, pois, que o negro, diante do antincio de sua insercao na Franga (como se costuma dizer de alguém que faz sua “inserao no mundo”), se regozije e decida mudar. De resto, sem que haja te matizaco, ele muda de estrutura independentemente de qualquer atitude reflexiva. Existe na Inglaterra um centro dirigido por [Innes Hope] Pearse e [George Scott] Williamson; é o Centro Peckham. Os autores demonstraram que ocorre nas pessoas casadas uma altera- ¢4o bioquimica e, ao que tudo indica, teriam detectado a presenca ‘11 "Garrrgont un vé de ble" no original, marcando as alteragGes na prontincia 4a frase *Gargon, un verre de bigre!. Na grafia contemporanea dos crioulos caribenhos, 0 fonema correspondente ao ere duplo é grafado com w no inf cio de uma sflaba e tende a ser suprimido ou a se tomnar acentuago aguda da vogal anterior. (¥.1.] 42 Aimé Césaire, Didrio de wm retorno ao pais natal [1936], trad. Lilian Pestre de Almeida, Séo Paulo: Edusp,2012, p11. 7 de determinados horm6nios no marido de uma mulher gestante. Seria igualmente interessante — e por certo haveré quem possa se encarregar disso - investigar os desequilfbrios humorais bruscos dos negros quando chegam a Franca. Ou simplesmente estudar, por meio de exames, as modificacdes ocorridas entre o seu psiquismo de antes da partida e o de um més apés seu estabelecimento na Franca. Existe um drama naquilo que se convencionou chamar de cigncias humanas. Deve-se postular uma realidade humana pa- rao e descrever suas modalidades psiquicas, considerando ape- nas suas imperfeicdes, ou serd que nao se deve buscar incansavel- mente uma compreensio concreta e sempre nova do homem? Quando lemos que a partir dos 29 anos o homem no é mais capaz de amar, que é preciso esperar até os 49 para que ressurja sua afetividade, sentimos faltar-nos chao. $6 se escapa disso com a condicao expressa de formular bem o problema, pois todas essas descobertas, todas essas pesquisas tendem a uma tinica coisa: fazer com que o homem reconheca que ele nao é nada, absoluta- mente nada, ¢ que precisa dar cabo desse narcisismo que o leva a se sentir diferente dos outros “animais”. (0 que ali ocorre no é nem mais nem menos que a capitulacao do homem, Em suma, agarro 0 meu narcisismo com as maos e repudio a abjecéo daqueles que querem fazer do homem um mecanismo. Se ‘o debate ndo for capaz de se abrir para o plano filos6fico, isto é, 0 do requisito fundante da realidade humana, consinto em levé-lo a0 da psicanalise, isto é, das “falhas”,no sentido em que se diz que ‘um motor tem falhas. ‘O negro que ingressa na Franca muda porque, para ele, a me- tr6pole representa o tabernéculo; muda nao apenas porque foi de Ié que Ihe vieram Montesquieu, Rousseau e Voltaire, mas por que € de ld que Ihe vém os médicos, os chefes de departamento, 0s incontaveis pequenos potentados ~ do primeiro-sargento “com quinze anos de servigo” a0 guarda nascido em Panissiéres. HA uma espécie de feitigo remoto, e aquele que partiré dentro de uma semana com destino & metrépole cria em torno de si um , Marselha, Sorbonne, Pi- galle representa pedras angulares. Ele parte e a amputacao de desaparece a medida que ganha contomnos 0 costado do Fle lé sua poténcia, sua mutacéo, nos olhos daqueles que 0 acompanharam: “Adeus, madras, adeus,fular...." ‘Agora que 0 conduzimos ao porto, deixemos que navegue, vol- taremos a vélo. Por ora, vamos ao encontro de um dos que retor- nam, 0 “desembarcado”, desde o seu primeiro contato, se afirma; 36 responde em francés e muitas vezes deixa de entender o crioulo. Em relacao a isso, o folclore nos proporciona uma ilustracao. De- pois de passar alguns meses na Franca, um camponés retorna para junto dos seus. Percebendo um implemento agricola, pergunta a0 j, velho camponés a-quem-nao-se-engana: “Como se chama ess » Como tinica resposta, seu pai Ihe larga a ferramenta em dos pés,¢ a amnésia desaparece. Uma terapéutica singular. Eis, portanto, um desembarcado. Nao entende mais 0 patoé, fala da Opera, que ele possivelmente s6 avistou de longe, mas acima de ‘tudo adota uma atitude critica em relacao aos compatriotas, Diante do acontecimento mais corriqueiro, age como se fosse especial. Fle éaquele que sabe. ldentifica-se por sua linguagem. Na Savane, onde se retinem 0s jovens de Fort-de-France, 0 espetdculo é significativo: a palavra de imediato é dada ao desembarcado. Assim que acabam 1s aulas do liceu e das escolas, eles se retinem na Savane. Parece que hé uma poesia pr ine, Imaginem um espaco de duzentos metros de comprimento por quarenta de largura, deli- ‘mitado nas laterais por tamarindeiros carunchados, em cima pelo jimenso monumento aos mortos, de uma patria grata a seus filhos, ce embaixo pelo Hotel Central; um espaco torturado de calgamento irregular, de cascalho que rola sob 0s pés, ¢, cercados por isso tudo, 43 Alusio a tradicional canglo guadalupense “Adieu foulard, adieu madras” (adyé foula”), na qual uma jovern pranteia a despedida do namorado branco ‘que adeixou. A composicio original é de +770,com autoria atribufda a Frangois- -Claude-Amour de Boulllé, governador de Guadalupe entre 1769 1772. [8-7] freeones ere saa 39 andando para cima e para baixo, trezentos ou quatrocentos jovens que se abordam, se aturam, no, nunca se atu ee abordan ram, e se despedem. —Tudo bem. E voce? —Tudo bem. E assim seguimos por cinquenta anos. Sim, essa cidade est la- ™mentavelmente encalhada. Essa vida também. Eles se encontram e conversam. E se o desembarcado rapida- ‘mente faz uso da palavra, & que se esperava por isso. Primeiro na forma: 0 menor erto é percebido e desnudado, e em menos de 48 horas toda Fort-de-France jé esta sabendo. Nao se perdoa a quem ostenta superioridade que falhe em set plo: “Nao me foi dado ver na Fran ido. $6 the resta uma alternativa: ‘morrer no pelourinho. Pois nao seré esquecido; casado, sua mulher saberd que é com a histéria da pessoa que se casa, e seus filhos tero uma anedota a confrontar e a superar. De onde vem essa alteracéo da personalidade? De onde vem esse novo modo de ser? Todo idioma é uma forma de pensar, diziam Da- mourette ¢ Pichon. E, para o negro recém-desembarcado, a adociio de uma linguagem diferente daquela da coletividade que o viu nas- cerrevela um deslocamento, uma clivagem. O professor Westermann, em The African To-day, escreveu que existe um sentimento de infe- rrioridade dos negros que ¢ experimentado sobretudo pelos evoluidos © que eles incessantemente se esforcam para controlar. A maneira Toupas europeias, sejam elas trapos ou a moda mais recente; usar _méveis europeus ¢ formas europeias de trato social; adornar a lingua nativa com expresses europeias; usar frases empoladas ao falar ou escrever uma lingua europeia: tudo isso contribui para uma sensagao de igualdade com o europeu e suas realizagies”" 14 Diedrich Hermann Westermann, The African To cay and To-morrow [ P H , 18 To-day and To-morrow [1934]. Lon- don: International Institute of Aftican Languages & Cultures, 1948, p.163.(N-T:] 0 Com referéncia a outros trabalhos e a nossas observacdes pes- jostarfamos de tentar demonstrar por que 0 negro se po- de maneira tdo caracteristica diante da Iingua europeia. Lembremos mais uma vez que as conclusdes a que chegaremos se aplicam s Antilhas francesas; ndo ignoramos, todavia, que os mesmos comportamentos so encontrados no seio de qualquer nha sido colonizada. felizmente ainda conhego, camaradas originarios, do Congo que se dizem antilhanos; soube, ¢ sei nos que se ofendem se os tomam por senega- ano € mais “evoluido” que o negro da Africa: se est mais perto do branco; ¢ essa diferenca existe ndo apenas nas ruas e nas avenidas, mas também na buro- ‘no exército. Qualquer antithano que tenha feito 0 servigo ‘em um regimento de fuzileitos conhece esta situacao des- concertante: de um lado, os europeus, oriundos das velhas cold- nias ou origin io outro, os fuzileiros. Isso me faz lembrar ‘de um dia em que, em pleno combate, a meta era dar cabo de um vvezes os senegaleses receberam vezes foram rechacados. Entéo um babs nao entravam em a¢éo."* Em ‘momentos como esse, ndo se sabe mais se alguém é foubab ou nativo. Apesar disso, para muitos antilhanos, essa situagao nao 45 Velhas coldnias colonies) € a expresso adotada para indicar 0s territ6rios colonials do assim chamado Primeiro Império Colonial frances, ‘que se estendew de , excetuando-se érabe béxberes, Por extensio, é empregado ‘também para aludir a estrangeitos e a africanos que adotam habitos euro- 41 percebida como desconcertante, mas, pelo contrério, como algo perfeitamente normal. $6 faltava essa, equiparar-nos a negros! Os originarios desprezam os fuzileiros e o antithano reina sobre toda essa negrada como senhor inconteste. Como caso extremo, relato ‘um fato que € no mfnimo cOmico: recentemente, conversei com ‘um martinicano que me contou, indignado, que alguns guadalu- ppenses se faziam passar por gente nossa. Mas, acrescentou, logo se percebe 0 erro, eles sao mais selvagens que ns; que fique claro: eles estéo mais distantes do branco. Dizem que 0 negro adora os alabres;” e quando eu, pessoalmente, pronuncio “palabres?, ima- gino um grupo de criancas cheias de alegria, langando ao mundo chamados despropositados, rouquidos; criangas em plena brinca- deira, na medida em que a brincadeira pode ser concebida como iniciacao a vida. O negro ama os palabres, e nao é nada longo 0 ca- minho que leva a esta nova proposic&o: 0 negro € s6 uma crianga. Os psicanalistas encontram aqui um campo fértil,e logo se deixa escapar o termo oralidade. ‘Mas devemos ir além. © problema da linguagem é crucial de- mais para que se pretenda apresenté-lo na fntegra. Os notéveis estudos de Piaget nos ensinaram a distinguir os estégios em seu surgimento e os de Gelb e Goldstein nos mostraram que a fun¢ao da linguagem se distribui em escal6es, em graus. Aqui, o que nos interessa é 0 homem negro em face da lingua francesa, Queremos ‘compreender por que o antilhano gosta de falar francés. Jean-Paul Sartre, em sua introducdo a Anthologie de la poésie négre et malgache,}* diz-nos que 0 poeta negro se voltard contra 117 Otermo corresponderia a *palavrério” ou “palr’Por referéncia is socieda- des tradicionais africanas, assume o sentido de reunides ou assemiblelas onde ‘8m lugar processos consuetudindrios de instrugdo ou deliberagéo, de caréter pparlamentar ou judicial. Termo derivado do espanhol, é comum de dois géne- Pars: UF, 1988. 2 a lingua francesa, mas isso é enganoso em relacdo aos poetas an- tithanos. Nisso, alids, somos da mesma opiniao que Michel Leis, que hé pouco teve ocasiio de escrever a respeito do crioulo: Lingua popular que, até hoje, todos conhecem mals ou menos, mas que 56.08 analfabetos falam em detrimento do francés, o crioulo parece jé fadado a entrar, mais cedo ou mals tarde, em regime de sobrevivencia, ‘quando a instrugéo (por mais lentos que sejam seus avangos,entravados pelo niimero demasiado restrto de estabeleciment jares em toda parte, pela pemtiria em matéria de acesso puiblico a leitura e pelo nivel ‘com frequéncia demasiado baixo da vida material) tiver se diftndido de ‘modo suficientemente amplo nas camaclas desfavorecidas da populagao. Eo autor acrescenta: Para os poetas que contemplo aqui, nao se trata de modo nenhum de se tornar “antihano” ~ no registro do pitoresco do Felibrige -, util- zando uma linguagem hipotecada e, ainda por cima, desprovida de britho exterior, quaisquer que possam ser suas qualidades intrinsecas, ‘mas sim de afirmar a integridade da prépria pessoa em face de bran- 0s imbuidos dos plores preconceitos raciais € cujo orgulho se revela cada vez mais injustificado.” Por mais que exista um Gilbert Gratiant que escreve em patod, ¢ preciso reconhecer que se trata de algo raro. Acrescent is, ‘que 0 valor poético dessas criacdes é bastante question outro lado, existem verdadeiras obras traduzidas do wolof ou do fala, e acompanhamos com muito interesse os estudos de linguis- tica de Cheikh Anta Diop. 136 Assoclagdo fundada em 1854 com 0 intuito de codifcar, reservar e pro- ‘mover a lingua oecitana e difundir a cultura provengal.(v.7-] 20 Michel Leris, “Martinique, Guadeloupe, Hai” Les Temps Madernes,n. 52, 1950,.1347. 4B Nao hd nada equipardvel nas Antilhas. A lingua falada oficial- mente € o francés; os professores monitoram de perto as criangas para que 0 crioulo ndo seja utilizado, Nao trataremos aqui das ra- z6es invocadas. Ao que parece, 0 problema seria 0 s An tilhas, como na Bretanha, existe um dialeto e existe a lingua francesa. ‘Mas isso & enganoso, pois os bretdes no se consideram inferiores 0s franceses. Os bretdes nao foram civilizados pelo branco. Recusando-nos a multiplicar os elementos, incorremos no risco de no definir nosso foco; ora, é importante dizer ao negro que a atitude de ruptura nunca salvou ninguém; e se € verdade que devo me libertar daquele que me sufoca, porque realmente nao consigo respirar, permanece a evidéncia de que é insalubre enxertar num substrato fisiol6gico (dificuldade mecénica de respiragdo) um ele- ‘mento psicoldgico (impossibitidade de expansao). © que isso implica? Basicamente o seguinte: quando um an- tilhano bacharel em filosofia opta por nao disputar uma vaga de docente, tendo em vista sua cor, digo que a filosofia nunca salvou ninguém. Quando um outro insiste em me provar que os negros 40 tdo inteligentes quanto os brancos, digo: tampouco a inteligén- cia nunca salvou ninguém, e isso é verdade, pois, se é em nome da inteligencia e da filosofia que se proclama a igualdade dos homens, é também em nome delas que se decide pelo exterminio desses ‘mesmos homens. Antes de prosseguir, parece-nos necessério dizer algumas coisas. Falo aqui, por um lado, de negtos alienados (mistificados) e, por ‘outro, de brancos ndo menos alienados (mistificadores e mistifica- dos). Se existe um Sartre ou um Verdier, o cardeal, para dizer que © escandalo da questo negra jd perdura h demasiado tempo, 86 se pode concluir pela normalidade de sua atitude. Também “preconceito de cor” é uma idiotice, uma iniqui- dade que deve ser erradicada. im seu Orfeu negro: “O que esperaveis que acontecesse, quando tirastes a mordaca que tapava estas bocas 4 negras? Que vos entoariam louvores? Estas cabesas que vossos pais haviam dobrado pela forca até 0 cho, pens reerguessem, que lerfeis a adoracao em seus olhos Nao sei, mas digo que aquele que buscar em meus coisa além de um questionamento incessante deverd perder a viséo; nem reconhecimento nem. solto um grande grito, de modo algum ele ser4 negro. Nao, da perspectiva adotada aqui, no existe questao negra. Ou pelo menos, se existe, os brancos s6 se interessam por ela por mero acaso. £ uma hist6ria que se passa nna escuridao e sera necessdrio que o sol que transumo ilumine os cantos mais recOnditos. ( dr. Henry Laing Gordon, médico do Mathari Mental Hospi- tal,em Nairébi, escreveu num artigo para 0 East African Medical Journal em 1943: "Um exame altamente técnico de uma série de ‘cem cérebros de nativos normais encontrou indicadores, tanto a olho nu como em microscépicos, de uma nova infer bral inerente. Em termos quantitativos, acrescenta vioridade chega a 14,8%” (citado por Sir Alan Bums) Disseram que 0 negro conecta 0 macaco ao homem; ao homem branco, obviamente; e é apenas na pégina 120 que Sir Alan Burns ‘conclui: “Nao podemos, portanto, considerar cientificamente con- sagrada a teoria de que o homem negro seria inferior ao homem branco ou de que derivaria de uma estirpe distinta” Seria fécil, ademais, demonstrar o absurdo de proposicées como: “Nos termos da Escritura, a separa¢do das racas branca e negra se estenderé a0 céu como na terra, ¢ 0s nativos que forem acolhidos no Reino dos (Céus se verdo conduzidos separadamente para algumas dessas mo- radas do Pai as quais Novo Testamento faz men¢ao”. Ou entao: ‘24 “Orfeu negro", em Reflexdes sobre 0 rad. Jac Guinsburg. $80 Eten particulier le probléme “Somos 0 povo escolhido, veja a cor das nossas peles, outros sio negros ou amarelos em razdo dos seuis pecados” Sim, como se vé, invocando a humanidade, o sentimento de dignidade, o amor e a caridade, seria fécil provar ou obter 0 reco- nhecimento de que o negro ¢ equipardvel ao branco. Mas nosso objetivo é bem diverso: 0 que queremos é ajudar o negro a se libertar do arsenal complexual que brotou do seio da situacao co- lonial. Louis:Thomas Achille, professor do Lycée du Parc, em Lyon, mencionou numa conferéncia uma aventura pessoal. Aventura essa universalmente conhecida. Raros s40 0s negros residentes na Franca que nao a tenham vivido. Sendo catélico, ele se juntou a ‘uma peregrinacdo de estudantes. Um padre, ao notar aquele mo- reno em seu grupo, disse-Ihe: “Voce sair Grande Savana por qué e vir junto nés?”” O interpelado respondeu com toda a cortesia e ‘quem se constrangeu na hist6ria nao foi o jovem desertor das sa- vvanas. Muito se riu desse quiproqué e a peregrinacao prosseguiu. ‘Mas, se nos detivéssemos nisso, verfamos que o fato de o padre se ‘comunicar em petitnégre convida a algumas consideracées: 1.“Conhego bem os negros; com eles, é preciso se exprimir de- vagar, falar da sua terra; saber lidar com eles, essa é a questo. Veja bem...” Nao estamos exagerando: dirigindo-se a um negro, o branco se comporta exatamente como um aduito diante de um menino e

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