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Os confrontos de uma disciplina escolar: da histéria sagrada a histéria profana* Circe Maria Fernandes Bittencourt A histéria do ensino de Histéria tem se caracterizado por uma longa trajetéria de confrontos e disputas entre intelectuais ¢ politicos encarregados da organizagao ¢ institucionalizagaéo do saber escolar. O ensino de Histéria nao ¢, entretanto, um caso. excepcional ou nico. A constituigéo ou permanéncia das disciplinas escolares nos diversos curriculos tem sido marcada por uma histéria de tensdes entre &rupos préximos as esferas do poder educacional. Tais confrontos tornam- se inevitéveis pelo poder que as disciplinas escolares exercem na legitimagao de determinados conhecimentos que sio difundidos para amplos setores da sociedade. Este poder das disciplinas escolares é que explica as continuas reformulag6es curriculares e que nos conduziram a algumas consideragdes sobre a especificidade do conhecimento que elaboram. O saber produzido pelas disciplinas escolares tem sido comumente entendido como simples redugdo ou simplificagao do conhecimento erudito € transposto para o ensino formal das escolas, concepg&o que situa a ciéncia de referéncia como o elemento fundamental nas mudangas de contetidos ¢ métodos das diversas disciplinas. As investigagies sobre a histéria das disciplinas, no entanto, tém apontado para dimensdes mais complexas sobre as relagGes entre os dois tipos de conhecimento e sobre a nogao de “disciplina escolar”. Descartamos a concepgao de disciplina escolar como uma mera vulgarizacio do saber erudito e a entendemos como um corpo dinamico de conhecimentos elaborado por especialistas que nao compartilham de maneira pacifica os conteddos, métodos e Pressupostos de uma determinada rea cientifica e em sua construgio atuam grupos muitas vezes heterogéneos e divergentes, gerando conflitos © aliangas. Este conhecimento, por outro lado, vincula-se diretamente com a escola, estabelecendo novas relagGes de saber pela pratica social de seus agentes fundamentais: professores e alunos. Desta forma, as dis- ciplinas escolares tém sido constantemente redefinidas de acordo com compromissos temporfrios que se estabelecem em um contexto educa- * Este artigo bascia-se em partes da tese de doutorado Livro diddtica e conhe- cimento histérico: uma hist6ria do saber escolar, F.F.L.C.H. USP-1993 [Rey Bras de His. [S. Paulo 3, 25706] gp. 193-201 [90g 7 193 cional historicamente determinado ¢ do qual participam diversos setores sociais. ‘A Histéria proposta para o ensino das escolas piblicas brasileiras, desde os primeiros anos do surgimento do Estado nacional, foi objeto de disputas de grupos divergentes que se instalavam junto ao poder educacional. As divergéncias entre as facc®es das classes dominantes, no Ambito do conhecimento hist6rico, foi perceptivel pelo embate travado entre a Hist6ria Sagrada em contraposi¢ao A constituigio de uma Historia laica, de caréter positivista ou cientificista. A Hist6ria escolar constituiu- se em meio & oposigéo entre programas predominantemente humanfsticos de outro voltados para os estudos denominados “cientificos” desempenhava o papel ora de formadora moral, ora de formadora do cidadio polftico, no momento em que o tema da “universalidade” se defrontava com o do “nacionalismo”. Neste artigo limitaremos a analisar a hist6ria do ensino da Historia no momento de sua constitugiio, desvendando os conflitos no nascimento da disciplina, acompanhando a construgZo de uma Hist6ria oficial que deveria ser disseminada pelas escolas secundérias ¢ elementares a partir da formagio do Estado brasileiro até os primeiros anos da instalagio do regime republicano. A HISTORIA NOS PROGRAMAS CURRICULARES O estudo de Histéria para o nivel secundério, antes de se tornar um corpo de conhecimento sistematizado, com objetivos especificos, possivel de ser ensinado ¢ transmitido nas escolas ptiblicas, era um simples anexo ou complemento do latim, disciplina todo-poderosa dentro da concepgao do curriculo “humanistic” ou “literdrio”. Pela versio do ensino confessional, a Hist6ria limitava-se a um contetido integrante do ensino religioso. O ensino de Histéria, no Brasil, passou a ser delineado logo apés a elaboracdo da Constituigdo de 1824 pelos liberais brasileires envolvidos nos debates educacionais. Parte dos intelectuais pretendia construir uma Hist6ria laica, uma espéeie de “ciéncia social” da nagio que se criava sob a dominagao de um Estado independente mas nio desejava abolir os princfpios educativos da Igreja Catélica. Surgiram, assim, propostas para o nivel médio ou secundério, como © projeto do deputado Janudrio da Cunha Barbosa, de 1826, que pretendia criar uma “cadeira de Histéria civil e cronoldgica”, devendo o professor “depois de dar uma nocdo abreviada das idéias morais e religiosas dos povos antigos e de expor os diversos modos por que marcavam ¢ 194 exprimiam a ordem sucessiva dos tempos, expor os fatos mais importantes relatives & sua politica, costumes ¢ usos mais notdveis, de maneira que © seu curso de histéria e cronologia (tivesse) menos em vista o conhecimento dos individuos que 0 das causas que influlram para elevagdo ¢ decadéncia das nagoes e fixar as épocas mais notdveis relativamente & prosperidade e desgragas dos povos”. Em outra proposta, debatida na Assembléia dos Deputados em 1827, que previa a criago de uma escola especial de nivel médio, 0 Colégio de Belas-Artes, existiria um ensino de Histéria subdividido em historia geral profana, historia sagrada e historia do Império do Brasil. O estudo da Hist6ria era concebido de maneira a distinguir nitidamente as duas hist6rias: havia_uma Histéria Sagrada, com seu tempo determinado Por desfgnios divinos, separada mas complementar de uma outra Histéria “profana” ', Com mareos temporais definidos pelo Estado, com datagSes organizadas por uma seqiéncia cronolégica. O ensino de Histéria, pelos primeitos projetos educacionais, era necessidade social ¢ politica, devendo estar presente nas escolas elementares ¢ de nivel médio. Para a escola elementar, nos seus Prim6rdios, entretanto, as propostas curriculares tiveram um cunho mais conciliat6rio com a Igreja, estabelecendo-se uma Histéria civil subordinada & moral religiosa, Os programas curriculares Propostos pelos legisladores de 1827 determinavam que, além dos professores ensinarem a leitura, escrita © rudimentos de aritmética, deveriam preocupar-se em fornecer elementos de moral religiosa, segundo os preceitos da doutrina catélica é introduzir leituras sobre a Constituigdo do Império ¢ a Hist6ria do Brasil. Estas informagdes genéricas ¢ vagas nao sofreram alteracées até meados do século ¢ pouco se sabe como tal Proposta se concretizou nas Precdrias salas de aula do ensino elementar. Os cursos secundérios, preocupaco fundamental do poder politico para a formagio dos quadros burocraticos do Estado, constitufram-se no espago em que efetivamente se estruturou e se colocou em pratica as disciplinas histéricas. © plano de estudos de 1837, que inaugurou o primeiro colégio piiblico brasileiro de nivel secundério, o Colégio Pedro I, incluiu a Hist6ria como disciplina obrigatéria ¢ assim ela se manteve no decorrer do perfodo estudado. Os programas de estudos do Colégio Pedro Il, de 1837 a 1907, nos indicam algumas mudangas que ocoreram com a Histéria. A separagio | MOACYR, Primitivo — A Instrugdo € 0 Império. Rio de Janeiro: Ed. Nacional, 1937, v. 1, p. 565. 195 entre Hist6ria ¢ Geografia ocorreu apenas a partir de 1862 ¢ foi pelo Regulamento de 1855 que se introduziu a Histéria do Brasil como disciplina auténoma de Histéria Geral. O ensino da Histéria Geral, predominante quanto ao mimero de anos e tempo destinado ao seu estudo, era compreendide como a Hist6ria profana da humanidade teve de coexistir durante alguns anos com a Histéria Sagrada. Histéria Geral ¢ Hist6ria Sagrada conviveram no currfculo escolar a partir da década de 50, na fase politica da Conciliago, perfodo que alguns historiadores consideram fértil para o avanco da educacéio, mas no qual se percebe com clareza o caréter conservador de que ele era revestido.” Pode-se constatar que nos anos 50 houve, efetivamente, uma maior preocupago com os problemas educacionais, consolidando-se a legislagao escolar, realizando-se reformas nos cursos secundérios ¢ elementares. Os projetos educacionais desse perfodo foram, entretanto, marcados pela acao do grupo conservador fluminense originério de importantes familias produtoras de café, empenhado na manutengSo da escravidio. Na esfera educacional, valorizavam a instrug4o escolar, concebendo-a como meio de manutengao de privilégios, como forma de “ilustrar” parcelas selecionadas da populagio. A escola piblica secundéria passou a ser objeto de criticas, considerando-se que a melhor forma de efetivar o ensino desse n{vel seria pela escola privada. Cabe ressaltar que a escola secundéria sempre foi paga, mesmo a péblica, limitando seu acesso a determinados setores sociais ¢, nessé momento, passou-se a reivindicar a concessio do monopélio sobre este setor aos grupos particulares, situagio que tendia a transformar a escola em instituigfo Incrativa ¢, potencialmente, mais controlada pelas camadas dominantes. Esta concepgfo elitista de educagéo pode ser detectada pelo aparecimento de um mimero. crescente de: projetos que valorizavam a escola privada ¢ o papel moralizante da Igreja na cultura escolar. © conservadorismo educacional € perceptivel pela introdugio da Religiio como matéria obrigatéria no ensino secundério e, sobretudo, pela énfase do curriculo caleado nos estudos Literfrios ¢ de Retérica, climinando disciplinas de cunho mais cientifico existentes no programa inicial do Colégio Pedro II. Nio foi casual que a Reforma de 1853 e os regulamentos de 1855 € 1857 tivessem sido inspirados pela Reforma francesa de 1850, denominada Lei Falloux, responsdvel pela volta da interferéncia religiosa nas decisdes 2Cf. PILETI, Nelson. Evolugio do currfeulo do curso secundério no Brasil. Revista da Faculdade de Educagao. So Paulo, 13 (2):27-72, julJdez, 1987 © HAIDAR, Maria de L. M. — O ensino secundério’ no Império brasileiro. So Paulo: EDUSP/ Grijalbo, 1972. 196. de intelectuais preocupados em transformacdes mais amplas nos setores econémico ¢ politico, Caetano de Campos, por exemplo, ao reformar a Escola Normal de Siio Paulo © as escolas-modelo a ela anexadas, previu 3 graus de ensino para estas dltimas. © 1° grau corresponderia ao ensino primério, seguindo- se a cle o 2° grau, que abrangeria estudos para alunos de 10 aos 15 anos, ¢ um posterior, de 3* grau, dos 15 aos 18 anos. Para esse educador, 0 2 grau seria a continuag&o natural do 1° grau e o 3° grau teria a dupla tarefa de capacitar os jovens para os cursos superiores ¢ de fornecer uma educagao mais geral, incluindo o conhecimento de linguas, filosofia ¢ hist6ria> Caetano de Campos, inspirado em Francis Parker, conferia as ciéncias naturais um lugar privilegiado e predominante na organizacio das matérias que compunham o currfculo. A formagao do pensamento se fazia, segundo ele, pelas ciéncias naturais, inicas com possibilidade de dar os elementos de uma “disciplina mental” ¢ era por csla razio que os modernos pensadores faziam das ciéncias experimentais a base da educagio: “procurar a verdade no mundo concreto ue nos rodeia é, segundo o critério atual, 0 mais itil processo para aprender, pois com esse hébito de investigagdo chega-se & posse das maiores aquisigées intelectuais”.4 As disciplinas escolares, partindo de tais argumentagies, estruturavam-se de modo integral, de forma conectada, de mancira interdependente. A seqiiéncia de estudos de “humanidades” era concebida diferentemente dos programas anteriores, sendo _compostas por disciplinas politicas, fundamentalmente. Eram elas: Educacio Civica, Economia Polftica, Histéria Geral ¢ da Patria e Nogdes de Escrituragio Mercantil. A proposta de Caetano de Campos representava a posigio de educadores que se opunham aos defensores das “humanidades clds- sicas”, segundo os quais Latim, Literatura e Retérica cram as tnicas disciplinas verdadeiramente formadoras da inteligéncia. Os debates travados colocavam as disciplinas “literdrias” em oposigio as “cien- tificas”, que, até entéo, eram consideradas como um mero ensinamento técnico ¢ pritico, estando ausente de seus objetivos as exigéncias de uma formago do “espfrito”, do “intelecto”. Em meio a tais debates que, vale destacar, emergiram em vérios pafses do mundo ocidental, foram se constituindo, de forma mais explicita, as disciplinas escolares. As dis- $ Cf. CAMPOS, Antonio Caetano de. Relatério sobre as escolas de ! ¢ 2 graus gnexas a Escola Normal. S80 Paulo: Tipografia de Vanorden & Cia, 1891, # CAMPOS, Anténio Caetano de op. cit., p. 18. 198 ciplinas escolares surgem, entiio, como um corpo formal de conhecimentos a serem transmitidos, distinguindo-se a disciplina literéria da disciplina cientifica. A partir dessa oposigao, a disciplina escolar comegou a se emancipar da concepcdéo de “uma gindstica intelectual” ¢ passou a configurar-se como uma forma de conhecimento delimitado por objetivos © métodos pedagégicos cujos conteidos se originavam das ciéncias de referéncia.® Em meio a tais disputas, a Histéria permaneceu como uma disciplina importante no curriculo, mas tendo, inevitavelmente de sofrer mutagdes. A Histéria deixou de ser, paulatinamente, uma “matéria” ilustrativa da moral religiosa universal permanente para se transformar em uma disciplina autnoma, encarregada da formagao politica do cidadio nacional. Para os grupos defensores do curriculo “cientifico”, liberais adeptos de uma modernizaggo voltada para a diversificagio da economia, a Histéria desempenharia © papel civilizat6rio mas também deveria se encarregar da constituigao da identidade nacional e da cidadania politica. Dentro destas Perspectivas, a Hist6ria Universal ¢ a Histéria Nacional eram comple- mentares ¢ suficientes. Entretanto, em ambas as propostas curriculares, havia pontos em comum. A Histéria tinha como objetivo auxiliar a compor uma casta de privilegiados brasileiros, inculcando-Ihe os. padrées culturais do mundo ocidental cristo, fazendo com que se identificassem com o mundo exterior civilizado. CONTEUDOS DE HISTORIA SAGRADA A Historia Sagrada era ensinada de forma obrigatoria nas escolas de nivel médio ¢ nas “escolas de primeiras letras” pliblicas durante 0 Império, com excegéo de um curto perfodo, na vig@ncia da reforma de Leéncio de Carvalho, de 1878. A partir do regime republicano, a Historia Sagrada perdeu seu caréter de obrigatoriedade no ensino publica mas permaneceu nas escolas confessionais, que, de forma paradoxal, viveram a fase de sua maior expansio.® * Sobre as disputas entre as disciplinas humanfsticas e as cientificas ver CHERVEL, André. Histéria das disciplinas escolares: reflexdes sobre um campo de pesqui Trad. Teoria & educagdo. Porto Alegre 2:107-118, dez. 1990/jun. 1992 © GARIN, Eugenio — L'éducation de Uhomme moderne, Traduit de V"ftalien, Paris: Fayard, 1968. © Segundo Oscar Beozzo, entre 1880 a 1930 entraram 109 congregagées teligiosas femininas que se tornaram responséveis por uma vasta rede de escolas e colégios no pais. BEOZZO, Oscar — decadéncia e morte, restauragio e multiplicago das Ordens © Congregagées religiosas no Brasil — 1870-1930. In AZZI, Orlando (org) —A vida religiosa no Brasil — enfoques histéricos. Sao Paulo: Paulinas, 1983. 199 ‘A permanéncia desta disciplina ap6s 0 estabelecimento do regime republicano demonstra a fotca da participagio do clero catélico na elaboragao do saber escolar e € significativa para se dimensionar 0 alcance das transformagdes que ocorreram no ensino apés a separacio do Estado e da Igreja catdlica com o advento da Reptblica. Para o estudo dos contedidos de Histéria Sagrada analisamos os programas curticulares paralelamente literatura escolar para que pu- déssemos obter uma viso mais préxima do que efetivamente ocorria em sala de aula. Os manuais escolares sao documentos que permitem situar ‘os contetidos explicitos da disciplina e o método de ensino utilizado nas salas de aula, Pode-se ainda, pelos conteddos apresentados nas obras didaticas, distinguir as concepgGes de Hist6ria apresentados pela Historia Sagrada e a da Histéria Profana que entio se constituia. O contetido de Histéria Sagrada nao estava contido apenas em livros especificos destinados a esse campo de saber. Ele estava disse- minado em diferentes textos escolares, ou seja, nos livros de leitura para ‘© ensino das “primeiras letras” e em compéndios de Hist6ria Universal destinados ao ensino secundério. No ensino primério, inicialmente, a Hist6ria Sagrada cra introduzida no proprio processo de alfabetizagao, estando inserida nas cartilhas ¢ livros de leitura. A medida que a Hist6ria dividia-se em Hist6ria Sagrada, Histéria Universal (ou da Civilizagao) ¢ Histéria do Brasil, houve um aprimoramento na confecgfo de obras especificas do passado cristo, surgindo obras de Histéria Sagrada destinadas especificamente para a infincia ¢ outras para estudos mais avangados, de nfyel secundério. A Histéria Sagrada possuia, diferentemente da Histéria profana, objetivos delimitados com bastante precisio, podendo ser definida como © conjunto de acontecimentos de ordem histérica contidos na Biblia, reunindo as narragdes do Antigo e do Novo Testamento de uma maneira coerente ¢ paranética, ou seja, para fins de exortagio moral.” A cultura histérica acessfvel & maioria da populagao era marcada pelos ensinamentos da Histéria Sagrada, fomecedora de lendas, de dramas € epopéias com her6is que se difundiam pelas festas ¢ cerimOnias reli- giosas. Esta meméria hist6rica passou a ser sistematizada pelos programas escolares ¢, mais detalhadamente, pelos livros didaticos especialmente confeccionados para o ensino institucional, Neles podemos encontrar um plano elaborado sob uma determinada concepgdo pedagégica, buscando uma comunicaggo narrativa adequada a criangas ¢ jovens, O conhecimento 7 Cf. definigo de Pierre ZIND, apud CRUBELIER, Maurice — De I’histoire sainte & Phistoire de France. Les: Cahiers Aubois. Paris, nimero spécial, 1986. 200 histrico servia para uma catequese, coma um método mais agradével para apreender a moral cristi. A difusio da Histéria Santa era feita, inicialmente ¢ paralelamente, pela oralidade das pregagdes dos padres, pelo visual das imagens das igrejas ¢ gestos das ceriménias religiosas. No plano do ensino, o livro escolar complementava a estratégia da Igreja, na preser- vago © divulgac&o crescente de seus ensinamentos ¢ de sua moral. Nos livros de leitura, textos especialmente elaborados para os primeiros passos do processo de alfabetizagao, encontramos varios trechos extrafdos da Biblia, narrando episédios de exortagio moral. No Segundo Livro de Leitura, por exemplo, texto escrito por um dos mais famosos educadores ¢ autor de livros diddticos do século passado, o bardo de Macatibas, no capitulo “Criag@o do mundo”, encontramos 10 péginas sobre episédios biblicos narrados com uma linguagem simplificada e bastante resumida. Landelino Rocha, outro autor da literatura infantil escolar do perfodo, em seu Segundo Livro de Leitura, dedicou 12 capftulos & vida de Jesus, além de outros tantos resumos das pardbolas do Novo Testamento, tais como o “Bom Samaritano”, 0 “Fariseu e 0 Publicano”.® Os livros didéticos especfficos de Histéria Sagrada eram, majoritariamente, tradugdes de textos europeus, produzidos por clérigos. Eram obras isentas da autorizagéo civil, cuja divulgagio dependia exclusivamente das autoridades eclesidsticas das Provincias. Os catélogos das editoras indicaram que v4rias obras de Histéria Sagrada foram reeditadas por muitos anos, como 0 caso do Catecismo histérico em compéndio resumindo a histéria sagrada e doutrina cristé de Fleury Cujas primeiras edigdes traduzidas para o portugués sio de 1820 e estava incluido na listagem de livros escolares mais vendidos no final do século XIX, em plena fase republicana® A Historia Sagrada, € importante lembrar, também estava presente nos curriculos das escolas confessionais protestantes que comegavam a se difundir em algumas das regides brasileiras no final do século XIX. Estas escolas, muitas vezes consideradas ¢ citadas como importantes centros de inovagdes pedagégicas, como o caso da Escola Americana de Sao Paulo, ndo parecem, entretanto, que tivessem aperfeigoado métodos ou conteddos nesta disciplina, em particular. Os textos de Hist6ria Sagrada, para catélicos ou protestantes, possufam objetivos morais definidos com muita preciséo e limitavam 0 * Ver BORGES, Abilio Cesar ( barfio de Macadbas). Segundo livro de leitura para uso da infancia. Paris: Aillaud, 1867 © ROCHA, Landelino- Segundo livro de leitura para uso da inféncia brasileira. Recife: J. W. Medeiros, 1877 ° Utilizamos principalmente os catélogos das editoras E & H. Laemmert, Francisco Alves & Cia, Garnier, da F. Briguiet & Cia. e da FT. 201 ler-escrever a um papel de auxiliar da meméria2° Os alunos liam os textos de Hist6ria Sagrada para rememorar ¢ no para descobrir algo novo, para se aperfeicoarem moralmente © nao para se informarem. O indice das matérias dos livros de Historia Sagrada demonstra com bastante preciso a concepgio de tempo hist6rico, expresso em uma cronologia definida em épocas para o Antigo Testamento ¢ perfodos para a “ ‘ia de Nosso Senhor Jesus Cristo”. Nestas obras pode-se identificar a importéncia do cristianismo para a difustio de uma concepgao de tempo, combinando-se a triade temporal: o tempo ciclico da liturgia associado As estagdes do ano ¢ A vida agricola de colheitas ¢ plantagées provenientes do calendério pagio, 0 tempo cronolégico, neutro, constante © homogéneo, medido matematicamente em semanas, meses ¢ anos € 0 tempo linear teleolégico ou tempo escatoldgica, direcionador do futuro da humanidade. O espago era demarcado — patses ¢ regides cristis. O restante era um espago pagio, sem necessidade de registros, © objetivo da Historia Sagrada ¢ a concepgio de tempo que divulgava foram registrados com bastante evidéncia pela literatura didatica: “B uma imperdodvel falta ignorarmos a histéria da nossa religiao santa, ¢ por qué? Porque essa histéria forma a base de todo 0 edificio cristio, e como bem se disse, mais nos confirmamos em nossas crengas quando as vemos. ilu- minadas com todo o esplendor da divinidade desde o bergo do mundo: porque esta histéria é a mais antiga, a mais auténtica; ¢ a mais sublime, a mais instrutiva de quantas hé sobre a terra: a hist6ria dos feitos de Deus na criagio ¢ salvagio da humanidade. £ preciso sabe-la.”* Era uma histéria trangiiila, com um caminho seguro, construfda como uma narrativa. As épocas da Histria Santa eram articuladas por acontecimentos maiores, cuja importfncia era indiscutfvel, dentro de uma quadro cronolégico preciso — “Histéria primitiva desde Addo até Abrado — do ano 4.000 até cerca de 2.000 antes de Cristo”.™* Os fatos eram selecionados de maneira a priorizar os religiosos, vindo em seqiiéncia os principais acontecimentos politicos e militares. Os herdis eram valorizados 19 Sobre a questio da importincia do cristianismo na difusio de uma concepedo de tempo, ver LE GOFF, Jacques- Histoire et mémoire. Paris: Gallimard, 1986. COSTA, D. Anténio de Macedo. Resumo da histéria biblica ou narrativa do Velho e Novo Testamento, Nova York: Carlos & Nicolau Benziger & Cin., 1891. Idem, p. 1. 202 pelas virtudes morais, pela piedade, caridade e sobretudo pela fé “no verdadeiro Deus”. A Historia Sagrada teve seus acontecimentos construfdos segundo uma “espécie de trilogia”. Primeiramente uma longa preparac4o que se inicia com os patriarcas, seguindo-se os tortuosos eventos do éxodo até a instalagio do povo de Deus na Terra Santa, a experincia monérquica em que se destacaram David e Salomio, a queda de Jerusalém e os profetas anunciadores do Messias. A segunda parte desta Histéria é a vida de Jesus Cristo, quando a Histéria Sagrada revela “seu sentido” ¢ a terceira parte corresponde a uma Historia da Igreja que “existird até o fim dos séculos”. A visio hist6rica predominante que se divulgou por intermédio do ensino escolar durante o século XIX, foi a cristé. Esta versio historica, entretanto, foi sempre alvo de polémicas, com opositores que buscavam introduzir uma histéria profana capaz de inserir na futura geragZo de politicos e da elite econémica, os valores da modernizagao. CONFRONTOS ENTRE HISTORIA SAGRADA E HISTORIA DA CIVILIZACAO A versio difundida pela Histéria Sagrada sobre a humanidade, seu poder e seu destino, foi constantemente disputada, em especial no ensino secundario, pela versio defendida pela Hist6ria Civil. Houve perfodos de tréguas mas também houve momentos em que a conciliagio foi imposs{vel. Parte significativa dos intelectuais e educadores brasileiros encar- regados da elaboragio e organizagio do ensino de Histéria, optou pelos franceses, adaptando programas ¢ traduzindo livros diddticos. Assim, desde os primérdios da criagio da escola publica secundaria, introduziu- se o estudo de Histéria Geral, segundo a visio da Franga. Um livro didético, 0 Nouveau manuel du baccalauréat des lettres de Vitor Duruy, escrito de acordo com o curriculo francés de 1852, originério da lei Falloux, foi o texto que fundamentou o programa instituido no Colégio Pedro II, que servia de modelo para os demais cursos secun- dérios, das provincias brasileiras. Era um programa marcado por uma politica conservadora do Império francés, como j4 foi assinalado an- teriormente, que desejava frear as idéias socialistas divulgadas em 1848. A Hist6ria ¢ seu ensino haviam tido um periodo auspicioso na década anterior, uma verdadeira “primeira idade de ouro” quando a politica foi dominada pela presenga de célebres historiadores, como Guizot ¢ Thiers, além da atuagZo de Michelet na chefia dos Arquivos Nacionais, con- ferindo A Histéria um lugar proeminente na configuragio ¢ legitimagio do 203 poder que se estabelecia. No secundério, a Historia projetave-se, tomando- se uma disciplina de “primeira ordem”.!3 Na década de 50, Victor Dutuy tentava assegurar a permanéncia da Histéria no curriculo escolar apesar das criticas que entéo ocorriam quanto aos seus objetivos e papel na formagao da juventude. Michelet havia sido expulso do Collége de France e a Histéria passava a ser considerada como “matéria subversiva”. A obra de Duruy expressava uma forma conciliatéria entre as duas tendéncias, Era uma “histéria ecuménica a meio-termo de Guizot (que) esbarrava @ sua direita na tradigdo reaciondria, possuida pela idéia de politizacao dos espiritos jovens, e & sua esquerda nos dois intérpretes democrdticos da histéria nacional ¢ européia: Michelet e Edgar Guinet.”™ Duray nio excluiu a Hist6ria Sagrada do ensino, mas estava separada da Histéria Nacional e da Histéria Universal profana, fundada na triade Antiguidade, Idade Média e Tempos Modernos. © citado livro de Duruy foi traduzido para a lingua portuguesa por um professor do Colégio Pedro II e esta obra permaneceu como base do ensino histérico durante mais de trinta anos. Surgiram alguns autores nacionais que buscaram produzir textos, segundo eles, mais préximos da realidade escolar brasileira, retirando os excessos de “enredos de Brunegildas e Fredegundas”, de “merovingeos e carolingeos”, como as publicagGes diddticas de Justiniano José da Rocha, mas, na pritica, nenhum autor nacional conseguiu abafar o ufanismo hist6rico francés que centrava na Franga as luzes do mundo civilizado cristao.!® ‘Assim, os franceses permaneceram como o principal suporte pedagégico para as escolas piblicas secundérias, marcando os perfodos € a selegao dos contetidos que eram exigidos para os exames de ingresso nos cursos superiores. Na Histéria Universal, ditada e construfda dentro dos parametros dos franceses, nao havia lugar para 0 continente americano e 0 Brasil nfo era sequer mencionado no espaco hist6rico elaborado, mesmo quando descreviam “as grandes descobertas portuguesas”. Depois dessa fase relativamente conciliatéria, a década de 80 do século passado correspondeu ao momento de luta pela emancipacdo dos pressupostos histéricos divinos da cultura escolar. A divisio da Historia em perfodos ¢ a definigio dos seus marcos comegaram a separar os historiadores. A Histéria profana havia criado, desde a Renascenga, a Idade Média como oposigéo aos tempos que “renasciam”, aa Tempo Modemo. Victor Duruy reforgou esta divisio, 13 Cf. FURBT, F. Q nascimento da histéria. In FURET, F. (org) A oficina da historia, Trad. Adriano D. Rodrigues. Lisboa: Gradiva, s.d., pp. 109-135. 14 Idem, p. 125. 6 Justiniano José da Rocha escreveu dois livros didéticos em 1860 — Histdria Antiga € Idade Média (2 vol) tendo ele mesmo se encarregado da publicagto. 204 compondo, em seu manual, um perfodo extenso que abrangia a Historia Antiga, a Idade Média e os Tempos Modernos. A inovagdo maior desse historiador foi, entretanto, a introdugio de uma Histéria Contemporanea, cujo marco inicial era o Congresso de Viena, em 1815. A partir da segunda metade do século XIX criava-se paula~ tinamente, entre os historiadores, a idéia de uma divisdo entre perfodo “moderno” e perfodo “contemporineo”. O mundo industrial que se espalhava pela Europa e América era incorporado e passava a se expressar na produgao escolar como uma necessidade de iluminar e explicar as transformagOes répidas das “sociedades modernas”. O tempo da moder- nizagao era incorporado pela literatura didética: “Na moderna sociedade, na qual, como diz Babinet, cada decénio corresponde a um século dos priscos anais, na época do vapor e da eletricidade, deixar no olvido um pertodo de cingiienta anos, como 0 fizeram todos os autores de compéndios de histéria, era por certo grave erro, que primeiro reconheceu em Franca o ilustrado Duruy, quando fez com que Napoledo Il ordenasse dar a referida matéria nos colégios € liceus imperiais”.¥® - A preocupagio com a modernizagao, concebida como as mudangas introduzidas pela industrializagao ¢ urbanizagao, obrigou os historiadores a definir outra periodizagao para tais transformagdes temporais. Histo- tiadores conservadores ¢ mais tradiconais, assim como os liberais adeptos do cientificismo, concordavam sobre este ponto. Concordavam igualmente sobre 0 papel do Estado € sua atuaco politica capaz de acelerar ou refrear as transformagSes hist6ricas, As divergéncias surgiram quanto ao fato politico fundamental desencadeador das mudangas. E tais discordancias esto expressas com bastante clareza nas produgées didaticas da época. Para os monarquistas, a escolha recafa na queda de Napoledo e o restabelecimento de uma ordem mondrquica liberal. Para os liberais tepublicanos era a Revolugao Francesa. O livro de Max Fleiuss, Elementos de Histéria Contempordnea, produzido em plena fase republicana brasileira mas que, intencionalmente, foi delicado aos monarquistas mais famosos da época, Affonso Celso ¢ Antonio Nogueira, tem como capitulo inicial a Santa Alianga, com o subtitulo significative — “a Restauragdo Monérquica”. A agio da Santa Alianga representava para os historiadores dessa tendéncia a forma de terminar com.todas as tentativas de trans- formagées mais radicias provocadas pela Revolugio Francesa e pela politica de Napoledo I, incluindo a série de guerras contra © poder absolutista europeu. © RESUMO de histéria contemporanea desde 1815 até 1865 por um professor, Rio de Janeiro: B. L. Garnier, 1866, 205 Na visio republicana defendida pelo famoso historiador francés, Charles Seignobos, ao contrério, era a Revolug&o Francesa o marco inicial do Perfodo Contemporaneo. Seignobos havia dividido, com precisio, os perfodos histéricos em suas obras didéticas, separando em trés volumes a Hist6ria Antiga (Oriente, Grécia e Roma) ¢ reunindo a Idade Média, os Tempos Modernos ¢ © Periodo Contemporfneo em um tinico livro.!7 Os marcos definidos por Seignobos, sob o regime republicano francés, acabaram tornando-se os novos modelos também por parte dos republicanos brasileiros. A Histéria estruturada para os cursos se- cundérios do historiador francés marcou fortemente a producio didatica nacional e conseqilentemente seu ensino. O tema “civilizagéo e pro- gresso” foi incorporado sem grandes contestagGes pela elite nacional. A maioria dos livros de Histéria da Civilizagdo escritos por brasileiros assumiu esta verso francesa ¢ o discurso dos pafses imperialistas e, utilizava os mesmos argumentos para justificar a dominac&o européia sobre nés: “A EXPANSAO DA CIVILIZACAO EUROPEIA Desde a antigiiidade 0 desenvolvimento da civilizagto se mede pelo progresso as vezes lento mas continuo das nagées cristés da Europa. Povoam elas, atualmente, toda @ América ¢ a Oceania; acabam de partithar a Africa e disputam a Asia. Esta expansdo prodigiosa, lentamente preparada nos séculos anteriores, teve no século XIX como causa principal as “exploragées cientificas” A aceitagio dos paradigmas de Scignobos por parte de his- toriadores brasileiros explica-se por varias razGes. Uma delas é mais evidente. Sendo 0 programa de Hist6ria da Civilizagao destinado a um grupo minoritério de estudantes, os futuros dirigentes da nago, o discurso do historiador francés era pertinente porque incorporava o Brasil no tempo do progresso, localizando-o no lugar “cotreto” ¢ no papel histérico que deveria desempenhar. A Histéria da Civilizagdo de Charles Seignobos insistia sobre a incorporagao incontestfvel dos modos de vida, de divisio 17 livro didétioos de Charles Seignobos adotado nas escolas brasileiras foi Histoire de la civilisation au Moyen Age et dans’ le temps Modernes. Paris: Masson & Cie., 1886 que foi mais tarde traduzido pela editora Francisco Alves. 18 SA E BENEVIDES, José E. C. de Hist6ria da civilizagéo. 3° ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1912. 206 de trabalho, de processos de industrializagio e urbanizagio que se processava em todos os lugares, da Ocenia a América Latina. A disseminagdo da modernizagZo era um fato histérico ¢ cada pais devia se submeter @ realidade do “progresso civilizatério”. Para as cleites brasileiras, 0 idedrio divulgado por Seignobos representava seus desejos, seus sonhos. Pais com “vocacdo” para agricultura de exportacdo, inserido no mundo do comércio internacional, deveria ter um papel definido no concerto das nagdes que buscavam “se aperfeigoar”, no contexto do modelo civilizatério do ocidente europeu. O Brasil possufa um destino, um lugar ¢ caminhava no tempo da mo- dernizag4o, junto aos demais povos europeus, confirmando-se a ideologia do “pafs do futuro”. Deveria apenas seguir a trilha esbogada pela Europa. Assim, a questio sobre o marco fundador do mundo con- temporaneo foi sendo esquecida. Revolugaio Francesa ou Santa Alianga confundiam-se porque o mais importante era a insergio do Brasil no mundo civilizado: “Somos irresistivelmente levados a considerar nica verdadeira a civilizagio européia, que é a nossa, ¢ a esperar que ela absorva ou rechace as suas rivais. J4 tem invadido a Asia, onde, gragas & sua benéfica agao, a Pérsia e a India esto rejuvenescidas e a China e 0 Japao comegam a abrir- se & influéncia da cultura moderna. O proprio continente africano nfo escapa a esta fecunda iniciagdo, nem tampouco © longinquo arquipélogo oceanico, chamado pela Inglaterra, pela Holanda ¢ pela Franca ao convivio da civilizagio européia,”!? A Histéria deveria ser estudada, pelo programa pedagégico organizado por Seignobos, dentro de uma trajetéria onde 0 Tempo Moderno, da era tecnolégica ¢ do progresso construfdo pelos europeus, s¢ tornasse inevitdvel e, a explicagéo do presente e do futuro encontrava~ se no percurso histérico cuja origem remontava ao Tempo Antigo, porque todos os povos predestinados ao sucesso da modernidade possufam uma origem comum, “transmitidos a todos os pafses cristios". Nesta versio, cada pais moderno existia desde tempos remotos, com seu destino tragado a partir da Antigilidade. Da negagao da Histéria Sagrada baseada nos fundamentos da fé crista, criou-se uma Histéria Profana segundo os pressupostos dos ‘? Idem, p. 560. 207 iluministas que procuravam evidenciar a racionalidade do homem como 0 fundamento da Histéria da Humanidade e cujo agente principal era o Estado. Paradoxalmente, Seignobos estabeleceu um outro tempo evolutivo impossfvel de ser violado. Havia uma predestinagio do povo europeu, da raga branca cristi, originéria da Grécia e de Roma, que determinava os tumos de todos os povos. Negava-se a Idade Média, “tempo das trevas” ¢ tempo da Igreja recuperando a Antigiiidade como origem, raiz da civilizacao. A Antigitidade integrava os estudos escolares, organizando o tempo seqiiencial, partindo das origens da civilizagio até seu estégio atual. O cardter dos Tempos Modernos, da modemnizagia que abarcava a Histéria Contempordanea, nas obras ¢ programas didéticos, nao visava destruir os valores do Tempo Antigo, preservando o estudo das “obras classicas”, justificando a manuten¢Zo dos curriculos das “humanidades”. Mantinha-se o latim ¢ autores classicos. A Antiguidade era ensinada nao apenas nas aulas de Histéria mas pela literatura ¢ estudos de lingua estrangeita modema ov “mortas”. A versao histérica de Seignobos, apesar de predominante na vida escolar brasileira, teve, no entanto, opositores. Do grupo de intelectuais brasileiros ligados & educagio que discordava de tal abordagem histérica destacou-se Manuel Bomfim ¢ 0 grupo ligado & Escola de Recife, dentre eles Joao Ribeiro, Silvio Romero Capistrano de Abreu, todos professores do Colégio Pedro II. Manuel Bomfim, ao assumir o 0 cargo de Diretor da Intrugio Piiblica do Distrito Federal, no inicio da fase republicana, preocupou-se em transformar os programas curriculares e 0 discurso pedagégico das obras diditicas, tentando introduzir o conhecimento histérico do continente americano no curriculo oficial. Estabeleceu um programa de Histéria da América para as Escolas Normais cariocas, instituindo concurso para a produgio de textos diditicos sobre ternas de Histéria da América. Estas tentativas, entretanto, tiveram um alcance limitado, notadamente nas questées referentes ao ensino da Histéria americana. A linha diviséria mais marcante foi a que se estabeleceu entre Histéria Universal e Histéria da Civilizagfo. Estudar Histéria Universal significava optar por uma versdo mais tradicional, dominada pela viséo da Igreja Catélica este foi o sentido do ensino das escolas confessionais. Para as escolas piblicas secunddrias a tendéncia foi a de se conhecer a versio civil e¢ laica da Histéria da Civilizagio que se fundava na linha positivista, Nas duas versées, entretanto estava tragado com nitidez, 0 objetivo maior do ensino de Histéria: introduzir ¢ identificar os jovens da elite brasileira com 0 mundo civilizado moderno e capitalista. O NASCIMENTO DE UMA HISTORIA NACIONAL A introdugdo do ensino de Histéria do Brasil no curso secundétio Ocorreu a partir das anos cinquenta do século passado. Para as escolas Primérias, divididas em dois nfveis (1° e 2° graus) passou a haver um ensino mais sistematico de Histéria nacional a partir dos anos sessenta. O ntimero crescente de compéndios de Histéria do Brasil editados, sobre- tudo, a partir da década de sessenta do século XIX comprova a incorpo- ragdo dessa area do conhecimento histérico na cultura escolar do periodo, tanto para as escolas secundarias quanto para o ensino elementar, A partir da andlise dos primeiros compéndios de Histéria produzidos por militares na época regencial, podemos identificar um es- forgo dos autores no sentido de selecionar os acontecimentos con- siderados histéricos e, principalmente, de ordené-los em perfodos enca- deados e coerentes. Uma das questdes bdsicas para a construgo do ensino de Histéria do Brasil residia na ordenagia do tempo cronolégico. Autores de curriculos ¢ de livros hesitavam e se desentendiam diante da elaboracio de uma cronologia que deveria ser estruturada por uma datagao minuciosa, de ordem quantitativa ou aritmética, uma cronologia baseada em uma periodizago delimitada por épocas bem organizadas, semelhantes a Hist6ria Sagrada. A construgdo da Histéria Profana da Nagao enfrentava © problema de estruturar e articular os periodos para estabelecer a nocdo de um tempo histérico onde o sujeito principal era o Estado Nacional. Retiraram dos ensinamentos da Histéria Sagrada, elencando a sucessio de reis, as Iutas contra estrangeiros, ordenando os fatos para se chegar ao grande “evento”, a “Independéncia” © a “Constituigéo do Estado Nacional”. A Independéncia e o Estado monérquico conduziriam o Brasil ao seu destino, ao surgimento de uma “grande nagao”. Dentro desse objetivo, o discurso diddtico enfatizava o tempo futuro. O Brasil era 0 “pais do futuro”, um pafs predestinado a ser brilhante pela grandiosidade do territ6rio ¢ pelas imensas riquezas de seu solo. Constrnir o tempo histérico da nagdo nao era, no entanto, uma tarefa consensual. © Epitome Cronoldgico da Histéria do Brasil é, por exemplo, um desfilar de datas, iniciando por 1500, vindo em seguida 1503 € assim sucessivamente, finalizando 0 texto em 1840 depois de apresentar 349 paginas repletas de informagSes administrativas, especialmente criagfo de vilas ¢ cidades,2° % Cf, MOURA, Caetano Lopes de — Epftome cronolégico da histéria do Brasil, Para uso da mocidade brasileira. Paris: Aillaud, Moulon & Cie., 1360. ’ 209 Joaquim Mannel de Macedo, professor de Histéria do Colégio Pedro I, autor de obras de Histéria e Geografia, optou por uma cronologia baseada “na Histéria Geral do Brasil do Sr. Varnhagen, que espe- cialmente em verificagao de fatos ¢ datas é a melhor de quantas até hoje estudado” > Macedo dividiu o trabalho em trinta e nove ligdes, fixadas por datas, sendo as trés iitimas compostas como {ndice cronolégico. Toda a obra foi composta de maneira a fazer o aluno fixar a cronologia, apresentando, ao final de cada ligo, “quadros sinéticas” com eventos considerados como fundamentais ¢ suas respectivas datas. Joaquim Maria de Lacerda, em sua Pequena Histéria do Brasil por Perguntas e Respostas para Uso da Infancia Brasileira, separou a Historia do Brasil em seis perfodos: “L® Perfodo — Desde 0 seu descobrimento até 0 dom{nio espanol (1500-1580); 2° Perfodo — O Brasil debaixo do dominio espanhol (1580- 1640); 3° Periodo — Desde a restauragdo de Portugal até a che- gada da familia real ao Brasil (1640-1808); 4° Perfodo — Desde a chegada da familia real até a independéncia do Brasil (1808-1822); 5* Perfodo — Reinado de D. Pedro I (1822-1831); 6 Perfodo — Reinado de D-Pedro I." O autor inspirou-se nos padrées da Hist6ria Sagrada, esforcando- se por dar uma ordem qualitativa a0 tempo histérico, estipulando perfodos com certo rigor, no sentido de configurar uma Histéria secular da Nagao. © princfpio de seleg’o dos fatos de um perfodo cra determinado por eventos politicos, destacando os monarcas € suas guerras de dominagao. Esta divisio, que havia sido esbogada por Abreu ¢ Lima, autor de um dos primeiros livros didéticos de Histéria do Brasil, de 1844, tornou-se a predominante. Organizava-se 0 tempo profano seguindo os pressupostos do tempo sistematizado pela Histéria Sagrada. E interessante notar que dois dos mais importantes autores de livros didéticos de Histéria para o ensino primério eram padres. O mais conhecido deles foi o cOnego Fernandes Pinheiro, 0 autor preferido da editora B., L. Garnier. Este professor do Colégio Pedro II foi quem melhor 2. MACEDO, Joaquim Manuel de — Ligdes de histéria do Brasil para uso das escolas de instrugdo primdria. Rio de Janeiro: Garnier, 1875. % LACERDA, Joaquim Maria de — Pequena histéria do Brasil por perguntas e respostas para uso da inféncia brasileira. Rio de Janeiro: Garnier, 1887. 210 elaborou o amélgama entre o tempo sagrado e o do poder civil, re- presentado pelo Estado mondrquico. © cOnego Joaquim Caetano Fernandes Pinheiro pertencia a0 quadro de sécios do Instituto Histérico e Geogréfico ¢ era, sobretudo, um fervoroso monarquista situado proximo ao poder, tendo sido nomeado, pouco antes de morrer, Cronista do Império. Os planos dos seus livros didaticos de Hist6ria correspondem a uma adaptagio da Hist6ria Sagrada & Historia do Brasil, sclecionando os fatos nacionais de acordo com a l6gica do tempo transcendental, um tempo de uma nagdo predestinada que segue © caminho tragado pela ordem divina ¢ cuja manifestagio no Ptesente era cvidente: uma monarquia esclarecida pela moral da Igreja Catélica. Na seqiiéncia cronolégica organizada pelo c6nego Fernandes Pinheiro, dividida em “ligdes”, 0 Descobrimento do Brasil, por exemplo, era conseqiiéncia da expansio da fé crista, destacando, com detalhes, as cerimdnias religiosas ¢ béngaos das autoridades eclesidsticas na partida de Pedro Alvares Cabral ¢ na celebragdo da 1* missa em terras brasileiras, momento em que “mostraram-se os indigenas estupefatos, ajoelhando-se como os portugueses ¢ imitando-os em todos seus atos de devogéa” 23 Para este historiador, a diferenga basica entre os civilizados ¢ os selvagens residia na ignoréncia dos dltimos quanto aos ensinamentos dos Evangelhos. A missiéo dos portugueses era a de levar a “verdadeira fé” para os indigenas, destacando a figura dos jesuftas mas valorizando como © grande heréi do proceso de colonizacio, o bispo Sardinha, devorado pelos selvagens em meio a um verdadeiro martirio. O cénego Femandes Pinheiro, fiel representante da Igreja oficial do século XIX, ao se referir a obra dos jesuftas, valorizou o servic da catequese apenas nos primérdios da colonizagao. No capftulo “Sublevagéo das missdes do Uruguai”, os jesuftas representaram © papel dos vildes que incitaram os indios a0 combate, ensinando-Ihes 0 manejo das armas ¢ foram os responsaveis pela total destruigéo das Missdes sulinas, fato que justificava as medidas do ministro Pombal para suprimir a ordem religiosa em Portugal e nas colénias. A expanséo dos portugueses © as invasdes de estrangeiros em territérios americanos foram interpretadas como parte de um movimento religioso de alcance internacional. A Franca Antértica representou a tentativa do calvinismo de se estabelecer e se expandir nas novas terras descobertas pelos europeus. A invasio dos holandeses era apresentada também como uma manifestagdo da ago. calvinista atuando em alianga com HEIRO, J. C. Fernandes. Episddios da histéria pdtria contados a inféncia. io de Janeiro: Garnier, 1860, 211 ‘8 judeus contra © catolicismo. Mauricio de Nassau foi um personagem que merecia ser prestigiado pelos alunos pela prodigalidade em conceder liberdade de culto, sem perseguigio aos catélicos. Na efetivagio de uma Histéria profana, 0 cénego Fernandes esforgou-se por fotalecer e legitimar a monarquia brasileira, dignificando a figura dos chefes politicos. Os reis, representantes maiores de uma Histéria secular, eram bons e justos ou se destacavam como excelentes militares. Néo eram jamais apresentados de forma negative: “A piedosa rainha que ent&o se sentava no trono portugués ndo confirmou a sentenca; seus desejos eram poupar a todos a pena capital, mas seus consetheiros thes fizeram ver que, em virtude das leis do reino, ndo podia ser agraciado 0 cabega ou principal réu da conspiragao, ¢ sendo o alferes Joaquim José da Silva Xavier o tinico que como tal devera ser considerado, por ndo haver mostrado arrependimento, ufanando-se do seu crime, era também o tinico que, para exemplo, cumpria fosse supliciado.”*4 © espago brasileiro era entendido como o “Império” tal qual ele se constituira no século XIX. O territério nio foi conquistado. O Brasil sempre existiu, demarcado desde 0 momento da “descoberta” ¢ confirmado pelas “expedig6es exploradoras” que passaram a denominar de “Terra de Santa Cruz a todo o pais.” Na composigio de uma hist6ria nacional baseada na Hist6ria sagrada, importava apenas 0 poder real ¢ a administragdo que se exerceu no espago territorial aparentemente criado de forma atemporal ¢ predestinado pelo poder divino. “NACIONALISMOS” A construgio da Histéria do Brasil teye que enfrentar outros problemas, sendo objeto de disputas entre os diferentes setores da intelectualidade do final do século. Nos primérdios da eta republicana, criticava-se com bastante veeméncia a falta de um espirito nacionalista no ensino brasileiro. O educador José Verissimo afirmava que os textos ¢ as aulas, tais como cram. realizados, eram incapazes de despertar qualquer tipo de sentimento nacional.?5 SA E MENEZES, Estécio de — Histéria do Brasil contada aos meninos. Rio de Janeiro: B.L. Garnier, 1870, Este é um pseudénimo do cénego Fernandes Pinheiro. % José Verissimo ironizava o ensino da Hist6ria pdtria que, pelos currfculos ¢ compéndios, servia para despertar os sentimentos nacionais como se tratasse da histéria do Congo. In VERISSIMO, José — A educagdo nacional. Paré: Tavares Cardoso & Cia., 1870. 212 A orftica ao ensino de Historia do Brasil ocorria exatamente no momento em que esta disciplina escolar passava a se constituir internacionalmente como a drea destinada a servir como formadora da cidadania e da moral cfvica, passando a tornar-se obrigatdria para as geragGes escolares. Os avangos da Histéria no campo cientifico reforgaram seu processo de laicizagao, conferindo-Ihe novo status. Surgiram compéndios empenhados na valorizago do “sentimento nacional” que marcaram a fase de superagio de uma Histéria ligada ao sagrado. Os manuais passaram a se destacar pelo tom nacionalista, claramente ideolégico, associado, contraditoriamente, ao cientificismo baseado em princfpios de rigor e objetividade. A Hist6ria do Brasil, até a década de oitenta do século passado, limitara-se a criar um tipo de nacionalismo onde aliavam-se Estado-Nagio © exclufa-se 0 povo. A partir do final dos anos setenta, com os avangos do processo abolicionista, retomou-se 0 discurso sobre democracia, renascendo alguns princfpios da Revolugéo Francesa ¢ tomou-se urgente equacionar a triade Estado-Nagiio-povo. As exigéncias econémicas ¢ politicas criavam diferentes projetos os discursos didAticos expressam com bastante clareza os ideais liberais de parte significativa das elites. Os grupos liberais concordes com 0. cerceamento do voto ao analfabeto e, portanto, em principio, adeptos da disseminagao da alfabetizagao, situavam a escola como instituigao privilegiada na constituigio da cidadania. Nesta fase, estendia-se o conceito de cidadania a todos os brasileiros, independente de sua condigéo de trabalho, mas era uma cidadania “ilustrada”. Cidadao brasileiro era apenas quem dominava a leitura e a escrita, A aboligiio do sistema escravagista de trabalho nao assegurava, desta: forma, a transformagao do ex-escravo ¢ da maioria dos trabalhadores, em cidadao. Neste contexto, a Histéria escolar tinha como missdo aliar-se ao ensino do civismo, encarregando-se da formagio moral do cidadao, em substituiga0 parcial da moral religiosa cristi. Este foi o perfodo da consolidagao da Histéria como sustentéculo da “pedagogia do cidadio”. A moral religiosa deveria ser suplantada ou estar submetida & moral cfvica. Surge entio a obrigatoriedade da Histéria nacional nos diferentes curriculos escolares, especialmente no ensino elementar. Os novos programas curriculares © respectivas produges didaticas emergiram, sobretudo, das regides onde o processo de modernizagio ocorria de forma mais acelerada, com a expansio da economia cafeeita exigindo uma mao-de-obra livre, com a chegada de imigrantes e em éreas nas quais 0 processo de urbanizacao era mais intenso. S40 Paulo ¢ Rio de Janeiro foram o “locus” das propostas mais inovadoras no campo educacional, incluindo-se inovagdes na producdo da literatura escolar. A 213 Hist6ria nacional passou a ser inclufda em livros de leitura dedicados ao processo de alfabetizagéo, surgindo lendas, contos que recuperavam tradig6es locais.26 Os historiadores sediados no Rio de Janeiro, muitos deles originérios de outras regibes do Brasil, caracterizaram-se em produzir textos escolares sob a perspectiva mais unitéria ¢ centralizada, buscando a configurago de uma Histéria nacional, ¢ desenvolver um espirito de “amor a patria”, evitando regionalismos. Em Sao Paulo, ao contrério, com o advento da Repiiblica ¢ as mudangas das elites politicas no centro do poder, apareceu uma Hist6ria regional ufanista. Nos programas escolares de instrugdo priméria, durante © Império, havia propostas de hist6rias regionais mas sem uma correspondente produgao de obras escolares. No final do século ¢ inicio do século XX, os novos estados, sob a dtica federativa, com suas fronteiras delimitadas sobretudo pelas disputas das oligarquias locais, buscaram pela Geografia Histéria legitimar sua condigao “independente”” e suas “fronteiras naturais”. Passou-se a construir tradigdes especificas para os “paulistas”, os “gatichos”, os “mineiros”, destacando as constribuigdes de cada regiéo para a “grandeza” da nacao, Mas a questio do nacionalismo dividia os intelectuais. As obras dos autores provenientes do setor militar mostravam a necessidade de um conhecimento da “patria”, com uma delineagao do “corpo” da Nacio em seus aspectos fisicos, em suas tradigdes © Iutas de conquistas, mas percebiam o “povo” como uma entidade separada das elites. O povo brasileiro era formado basicamente por mestigos que resistiam a se submeter a civilizagdo. Era uma visfo nacionalista que se curvava diante das andlises de cunho racista dos europeus. O niicleo desta postura “europeizante reverente” residia no Ministério das Relacdes Exteriores, em tomo do Barfo do Rio Branco.” O famoso ministro deixou uma obra didtica de Hist6ria do Brasil na qual explicitava sua concepgio de sociedade e suas divisdes hierarquizadas. Suas simpatias estavam direcionadas para a aristocracia, para os grandes “personagens” de “boa estirpe”. Deles provinham todas as transformages, incluindo a prépria aboli¢do dos escravos. Bis um trecho significative: “Um grande niimero de fazendeiros, entre os quais todos os membros da familia Prado, comecaram a libertar seus escravos, e esse movimento de generosidade estendeu-se pelo pats inteiro”.°8 % Destacam-se nessa literatura escolar as obras de Olavo Bilac e Coelho Neto, de Roméo Puigari, de Hildrio Ribeiro e de Julia Lopes de Almeida. 2 Ver anélise sobre a questio nacional do perfodo na obra de SEVCHENKO, Nicolau. Literatura como misséo: tensdes socials ¢ criag&o cultural na Primeira Repiiblica. Sao Paulo: Brasiliense, 1983. % BARAO DO RIO BRANCO. Histéria do Brasil. S80 Paulo: Livraria Teixeira, 1894. 214 Este grupo de intelectuais esmerou-se na divulgagio de um nacionalismo entendide como um amor ao bem comum, de congragamento, de festejar as belezas ¢ as riquezas de uma jovem nagdo que se abria para © mundo. Mas, contraditoriamente & admiragio que expressavam pelo mundo civilizado de além-mar, temiam os avangos do imperialismo que podia tomar o Brasil alvo de ambigées da expansio territorial européia. Aceitavam a dominagio econémica ¢ cultural, mas receavam qualquer perda territorial ou de areas que concebiam como soberania nacional Rio Branco alertou para esse perigo que ameagava a naco ¢ outros © seguiram nessa crenga. Os intelectuais que mais se destacaram na divulgagao escolar da defesa de uma “pétria em perigo” foram Olavo Bilac © Coelho Neto. Nos livros escolares de ambos, era flagrante a difuséo do militarismo e da importancia histérica do setor militar como necessidade de salvaguarda da pétria, do territério, da unidade nacional.2° Diferentemente dessa interpretagao, a questo nacional sofreu Outras interpretagdes de intelectuais que buscavam a identidade © a especificidade do Brasil diante das demais nagdes. Buscava-se identificar uma originalidade nacional capaz de assegurar igualdade de condigdes para a constitui¢go das diversas sociedades modemas, envolvendo influéncias € assimilag6es recfprocas, impedindo-se uma subordinagio aos ditames dos pafses central Os intelectuais que forjaram este tipo peculiar de nacionalismo eram representantes de um sctor mais progressista das elites, aglutinando-se em tomo do cientificismo da Escola de Recife, destacando-se as figuras de Sflvio Romero ¢ Joao Ribeiro. Defendiam e concebiam o nacionalismo como busca de uma identidade, como meio de reconhecimento da especificidade da populagio e da cultura brasileira. O povo nio era impecilho ao projeto civilizatério mas o elemento constituinte de uma forma Particularizada de civilizagZo que nio era e nem poderia ser 0 espelho do modelo europeu. O ensino de Histéria do Brasil tinha como objetivo principal sitar o Brasil no mundo civilizado, delimitando suas espe- cificidades e projetando para as futuras geragdes a idéia de um futuro independente € novo mas solidério ao conjunto da humanidade: “Queremos formar aqui a mansdo democrdtica do congra- gamento, ndo dos deserdados da Europa somente, mas dos deserdados de todo 0 mundo, e, pela reunido, pela igualdade de todos, formar o ovo do porvir, o tipo novo, que nao é oriundo do exclusivismo europeu, ou africano, ou asidtico, ou americano, o tipo novo que hd de ser a ® Ver principalmente BILAC, Olavo e COELHO NETO — Contos pdtrios. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1904. 215 mais perfeita encarnagdo do cosmopolitismo”, escreveu Silvio Romero em seu livro de Histéria dedicado as classes de ensino elementar.° Silvio Romero incorporou em seu texto didatico de Histéria, estudos antropolégicos para travar um combate contra © racismo ¢ o exclusivismo difundido pela literatura hist6rica proveniente da Europa ilustrada e incorporada com serenidade pelas nossas elites econémicas e parte dos intelectuais que se encarregavam de criar e perpetuar nas escolas 0 ideério civilizat6rio branco. Insistiu na impossibilidade de simplificar a questéo racial divulgada pelos livros europeus, demonstrando a falsidade em se conceber a humanidade come uma diviséo de trés ragas “puras”: “ndo é tudo; os prdprios trés troncos principais de nosso pove jd eram resultado de diversos cruzamentos especiais”. 1 Um companheiro de Sflvio Romero na divulgagao dessa concepgio de Histéria foi Joo Ribeiro, professor de Histéria no Colégio Pedro II ¢ © maior concorrente na venda de livros escolares do cénego Fernandes Pinheiro. Os trabalhos de Histéria de Jodo Ribeiro tiveram infcio apés sua estadia na Alemanha, onde permaneceu por dois anos, “comissionado pelo govern” para conhecer o§ cursos superiores das dreas humanas, A concep¢ao de Histéria do professor sergipano foi, assim, marcada pelos alemies, contrariando a tendéncia predominante da escola historiogréfica francesa. Segundo este estudioso, para se entender a Histéria de uma nago era necessario o estudo da formagao de sua populacio, retomando as idéias de Von Martius em seu artigo Como se deve escrever a hist6ria do Brasil.* No livro Histéria do Brasil, de Joao Ribeiro, a grande inovagiio correspondeu a introdugdo do estudo dos elementos formadores da populaco brasileira, destacando “o cruzar das trés ragas” como a particularidade essencial da hist6ria brasileira. Nessa obra h4 uma critica aos demais manuais escolares quanto A excessiva importincia que conferem a agio dos governadores € militares, esquecendo-se dos aspectos sociais ¢ da especificidade dos diversos agentes na conquista do territério: “O Brasil, o que ele é, deriva do colono, do jesufta e do mameluco, da agdo dos indios e dos escravos negros. Esses © ROMERO, Stl A historia do Brasil -ensinada pela biografia de seus herdis. Rio de Janeiro: Livraria Classica de Alves, 1890. 2) fdem, op. cit. p. 21. 2 MARTIUS, Carlos Frederico von. Como se deve escrever a histéria do Brasil. Revista trimestral do Instituto Historico € Geogrdfico Brasileiro, Rio de Janeiro, 24, jan, 1845. 216 foram os que descobriram as minas, instituiram a criagéo de gado e a agricultura, catequizaram longinquas tribos, levande assim a circulagéo da vida por toda a parte até 25 iltimos confins” 38 Jo&o Ribeiro criou um tépico central — a Formagdo do Brasil, subdividido em uma Histéria comum e uma Historia local. Esta parte do trabalho correspondeu a um esforgo do autor em situar as diversas temporalidades dos diferentes grupos populacionais e formas de povoamento diferenciadas das regides brasileiras, tema que foi retomado alguns anos mais tarde por Capistrano de Abreu. O espago brasileiro n&io era mostrado como preexistente ou predestinado mas como um territério conquistado em meio As lutas internas frente ao ocupante primitivo ¢ contra outros grupos de novos ocupadores. Na claborago de uma Histéria laica, criticava a Igreja sem omitir seu papel de destaque na disseminagéo da “civilizagio”. Considerava os jesuftas verdadeiros heréis, como responsdveis isolados na defesa de princfpios morais que asseguraram uma certa dignidade humana diante da decomposicao cultural que ocorreu no processo de colonizagao, mas n&o poupou a atitude passiva da Igreja diante da escravidao negra: “(...) s¢ podemos juntar o nome do Padre Vieira e de outros jesuftas a histéria da escravidéo vermelha — quase ndo temos que registrar qualquer movimento de indignagdo contra a escraviddo dos negros”. Criticou as justificativas da escravidéo negra como um castigo predestinado “ & raga de Cam e um beneficio feito 4 multidéo irreligiosa perdida para a fé e para a civilizagao” apregoada por tedlogos catélicos. Contrariamente as descrigdes apresentadas pelo cGnego sobre o episddio do descobrimento do Brasil, Joio Ribeiro enfatizou os interesses econémicos que presidiram 0 processo de expansio portuguesa, incluindo a atrago inicial pouco significativa das terras brasileiras para 0 comércio da época, limitando-se 4 extragio do pau-brasil. Diferentemente também de Fernandes Pinheiro, a submissio dos indios ao cristianismo n&o correspondeu a um ato espontineo mas sim a uma série de episédios de confrontos culturais, conforme a descriggo que fez da famosa J* missa, na qual os indios, “espantados, assistiam as % RIBEIRO, Joio. Histéria do Brasil. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1900, p. 17, Grifos do autor. Idem, op. cit, p. 244. 217 ceriménias do culto examinando as vestes insdlitas dos portugueses ¢ a grande cruz de madeira que ajudaram a erguer ao pé do altar.”** Por intermédio de professores, programas ¢ livros escolares, a Hist6ria do Brasil surgia em meio a polémicas entre os defensores de idéias diversas sobre a nagdo ¢ o projeto politico a ser perseguido pelas futures geragées, A Histéria do Brasil, como disciplina escolar aut0noma, possuia verses quanto & periodizago dos eventos constitutivos da Nagao, assim como dos principais agentes construtores da Nagao brasileira. HISTORIA DOS SANTOS OU DE “HEROIS NACIONAIS"? No processo de construgao de uma Histéria nacional civil, havia a necessidade de se criar herdis profanos, personagens que deveriam permanecer na meméria coletiva como exemplos, em substituigao aos heréis sagrados biblicos ou figuras de santos. A formacao de um sentimento nacionalista que passou a ser reforgado no final do século XIX com a instaurago do regime republicano, aliada & concepgo de Historia como “mestra” da vida, foi responsdvel pela criagdio de personagens histéricos que deveriam servir como modelo de cidadania, exemplares de virtudes cfvicas ¢ que serviriam igualmente como simbolos fundadores da nacionalidade. Nesse sentido, houve um esforgo de educadores de diversas tendéncias, na composicgo de galerias de “brasileiros ou brasileiras ilustres”, cujos feitos deveriam ser conhecidos e divulgados pela escola ¢ em especial pela Histéria. A construgio de uma Hist6ria brasileira sedimentada em herdis foi igualmente uma adaptagéo da Histéria Sagrada que se esmerara em difundir didaticamente a vida de santos, mértires e principalmente a vida de Jesus Cristo desde 0 seu nascimento. A ago dos herdis correspondia, por outro lado, a uma tradigao cultural fundada em narrativas caracte- risticas das histérias transmitidas oralmente pela sociedade da época. Tratava-se de uma sociedade que se comunicava pela oralidade, onde criangas, jovens, adultos e velhos memorizavam histérias narradas em serdes, em conversas a0 pé do fogo. Parte dessa forma de comunicagao deveria se manter no processo do ensino escolar, onde a memorizacao era a base do aprendizado e a palavra do professor era 0 principal instrumento pedagdgico. Os episddios histricos transmitidos pela escola no 3% RIBEIRO, Jofo. Histéria do Brasil — edigdo para as escolas primdrias. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1900, p. 8. 218 poderiam, assim, deixar de ter personagens cujos feitos mereciam ser lembrados e guardados na mem6ria coletiva. Inicialmente h4 uma substitui¢ao dos heréis biblicos por histérias de reis e administradores, na tentativa de identificar os construtores da histéria da Nagtio. Assim, ao lado de herdis mitolégicos, comegou a surgir © “heréi da pétria”, preocupando-se os educadores em compor biografias que pudessem abarcar uma Histéria da unidade do tertitério, de um passado comum marcado pela divisio dos wés grandes periodos histéricos da nacdo: conquistas territoriais, independéncia nacional ¢ formagio do Estado Nacional. O historiador Norberto da Silva, na década de sessenta, acreditava que “nagdo de ontem, o Brasil jd escreve a sua histéria, j4 tem os seus heréis, que enumeram gloriosas batalhas, que apontam os lugares de suas vitérias, jé possui a sua literatura, ao principio pdlida cépia, depois elegante imitagao, e por fim donosa originalidade; j4 conta com seus artistas, de ndo pequena nomeada, jd mostra seus homens cientificos com sua reputagGo européia, jd apresenta uma triplice pléiade de oradores que honram o piilpito, que enobrecem a tribuna parlamentar, abrilhantam a cadeira judicidria; jd se honra seus estadistas, jd se Bloreia de ver suas princesas adornando 0 solo das cortes da velha Europa; (...)"® A Breve noticia de alguns brasileiros ilustres, de Joaquim Maria de Lacerda, ficou repleta de figuras politicas, chefes militares, homens de “Jetras”, poetas ¢ clérigos da alta hierarquia eclesidstica. A biografia dos heréis nacionais de Sflvio Romero teve como critérios de selegdo 0 “tato da critica cientifica..., 0 valor de um museu que (...) dd-nos os especimens-tipos de nossa humanidade americana”, 0 que © levou a destacar um niimero. relativamente pequeno de politicos ¢ exaltando mais 0s artistas ¢ cientistas.°7 © regionalismo dos autores apareceu sem hesitagio na escolha dos herdis ou herofnas. O mineiro Norberto da Silva enalteceu as heroinas da “conjuragio mineira”, Marflia de Dirceu ¢ Barbara Heliodora, a infeliz esposa de Igndcio José de Alvarenga Peixoto, enquanto Salvador H. de Albuquerque destacou as lutas “patridticas” dos pernambucanos Vidal de Negreiros, Antonio Felipe Camaréo ¢ Henrique Dias. As divisdes internas ¢ regionais dificultaram a escolha de herdis nacionais, reinando incertezas quanto ao papel histérico de cada personagem para © conjunto 3% SILVA, J. Norberto. Brasileiras célebres. Rio de Joneiro: B.L. Garnier, 1862. S7ROMERO, Silvio. op. cit., p.10. 219 da nagio. Tiradentes era inicialmente exclufdo do rol de “brasileiro ilustre”, figurando como um lider de uma revolta local, de Minas Gerais, € sua morte no o credenciava, durante o Império, como um representante do espfrito de libertagZo nacional. A configuragio de Tiradentes como o principal de nossos herdis ocorreu na fase republicana, A consagrago do inconfidente minciro se fez em meio a confrontos com os nordestinos, desejosos de construir 0 mito em toro de um dos seus revolucionfrios de 1817. Para garantir a unanimidade de aceitag&o de Tiradentes, houve a transformagéo de um inconfidente mal-sucedido em mértir, associando-o a figura de Jesus Cristo: “(..) 08 julzes compreenderam e resolveram que a comutagdo néo alcancasse Tiradentes, que foi execurado no dia 21 de abril de 1792, em uma das pracas da cidade, achando-se toda a guarnigdo posta na rua. (...) Quando 0 carrasco the pediu perdao e vestiu-lhe a alva, exclamou ele com a maior severidade: Oh! meu amigo! Deixe-me beijar-the as méos ¢ 0s pés; também o nosso redentor morreu por nos!” E, a partir de entio, Tiradentes passou a ser representado de forma semelhante a Jesus Cristo. Herdis profanos confundiam-se com herdéis sagrados. Assim, no alvorecer do periodo republicano, 0 ensino de Histéria da Civilizagao ou a do Brasi estava disseminado pelas escolas secundérias € primérias, sendo que as dissidéncias intemas nfo impediram que os dois grupos “nacionalistas” fossem unanimes quanto & institucionalizagao da Hist6ria profana na escola. Esta disposi¢io néo impediu, no entanto, a continuidade do ensino da Hist6ria Sagrada europeizante na vida escolar, como comprovam as reedigdes. continuas dos livros até meados do século atual ¢ © crescimento de escolas confessionais, especialmente para o ensino feminino. As diferentes visdes do passado também nao apagaram uma ques- Go que possuiam em comum: persistia, entre professores e educadotes, 0 mito do Brasil como 0 “pais do futuro”. % FREIRE, Felisberto. Histéria do Brasil. Rio de Janeiro: Livraria Classica de Alves, 1896. Grifos meus. 220 RESUMO Este artigo trata do nasci- mento do ensino de Histéria nas escolas piblicas brasileiras do século MIX, Apresenta as disputas entre os intelectuais para impor um conheci- mento histérico leigo no espago edu- cacional dominade pela Igreja Caté- ica. Segue-se um levantamento dos confrontos entre as diferentes visbes sobre a historia nacional e como ela devia ser divulgada pela escola. ABSTRACTS This article deals with the bisth of the history teaching at the public brazilian school in the XIX century. It shows the disputes among intelectuals to impose a secular history eknowledge in @ space dominated by the Catholic church, Then the diferents visions about the nacional history and how it should be discussed in the public school. 221

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