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— Luis EsrEvAM OTEMPO DA TRANSFORMACAO Estrutura e Dinamica da Formagao Econémica de Goids GOIANIA 1998 1. APOGEU E DECADENCIA DA MINERAGAO EM Golds descoberta do ouro em Goifs (1722) introduziu no cenario colonial um terceiro “eldorado” depois de Minas Gerais (1696) p51 e Mato Grosso (1719). O territ6rio, até entao ocupado unicamente vt por indigenas (goyases) e quase desconhecido, entrou para a historia Ye como as Minas dos Goyases. Motivos diversos levaram ao inicio da exploragao daquelas minas j& nas primeiras décadas do século XVIII. 9) Inicialmente importa saber quem promoveu, quem realizou a ocupagao e sob que condigdes se deu 0 povoamento da regiao. (PALACIN enumera trés razGes imediatas que levaram ao () descobrimento de tais jazidas. Primeiro, a busca de um caminho . por terra “para substituir a longa e dificil via fluvial para Cuiaba”, 0 (6 1 que era de interesse “vital” para as autoridades lusitanas; segundo, 0 ° “momento psicoldgico” era adequado para a preparagao de uma \deira exploradora em vista das descobertas em Mato Grosso ¢ s rumores da existéncia de ouro no coracao da col6nia, e, por Gltimo, o “momento politico” também era bastante favoravel devido ao desdobramento do territorio das Minas Gerais. Neste sentido, “a criagdo de um novo eixo mineiro seria a melhor resposta”, vindo ao encontro dos interesses da Coroa e dos mineradores afastados das Minas Gerais." s A averiguagio mais detalhada destes aspectos fornece indicagao da origem dos primeiros povoadores de Goids e do cardter da atuagio do Estado portugués no arbitrio dos conflitos coloniais da época. Provavel que a causa geradora para o-descobrimento de “\j\! ‘ouro em Goids tenha sido decorrente da “Guerra dos Emboabas”>, nas Minas Gerais. O violento conflito acarretou significativas conseqiiéncias: por um lado, inspirou a procura de novos 35 K CovehyTO SM [tok ppg - assentamentos por parte dos sobreviventes derrotados, que | go, Consideraram injusta a invasio de suas minas pelos reindis (emboabas); ' {° por outro, Portugal foi obrigado a intervir promovendo seragée? ( Jys('® Bolitico-administrativas © buscando nova acomodacio para os 4)" inineradores expulsos. A insubordinagio e a irreveréncia dos « 0 mineradores nas Minas Gerais, refletidas nos “choques dos primeiros “ .administrativa teve fim a sangrenta luta emboaba. Diante do 0 gp) veerudescimento das paixdes € da gravidade das revoltas, a solugio (AW encontrada foi a cria¢to-de_uma nova capitania no centro, 7 9S emancipando Minas de Sao Paulo. ) ‘Neste ambiente, insuflados pela Coroa, os habitantes de Piratininga inclinaram-se & procura de novas minas. As lendas com : respeito a0 “eldorado” no territ6rio central dos goyases estavam "9, agugadas no espfrito aventureiro dos paulistas ¢ na crenga _ \\_..“metropolitana. Todavia, possibilidades de ganhos reais explicam gf) ‘melhor 0 deslocamento bandeirante para o interior do que a existéncia de um espirito aventureito ou sonho de riquezas yk quiméricas. Para reindis e coloniais, as atividades mineratérias em x@Minas Gerais e Mato Grosso ja haviam comprovado rentabilidade ( Qe concreta e as chances econémicas oferecidas pelo empreendimento. Para o Estado portugués, o empenho em obter novas jazidas encontra explicacdo na tendéncia deficitaria da Balanga Comercial da Metrépole compensada pela extracio do ouro colonial. [Estes eventos hist6ricos tiveram grande importancia na ccupagio do territ6rio goiano. Antes do descobrimento do ouro em inexistia modalidade produtiva no territ6rio que nao fosse a On fcolas ni: Mesmo as pequenas pastagens extensivas de gado surgiram com a mineragao nos primeiros nicleos de assentamento; em 1732 — surpreendendo as autoridades por nao se utilizarem de rota oficial - “as primeiras boiadas para Goids vieram 36 dos currais:do Sto Francisco”. Apesar de a regio haver sido y\UV anteriormente vasculhada por cagadores de indios continuava 2t6 7) a entio isenta da presenca do elemento branco. Os pioneiros foram | coloniais oriundos de Sao Paulo, servidos de escravaria, quepuX’ adentraram o territ6rio depois de expelidos das Minas Gerais pelos AS sKin6is?Como pano de fundo destacou-se a presenca do Estado oo. A) porttigués que, no interesse de angariar novos “descobertos”, incentivou a procura de ouro no planalto central ensejando a ocupagio e © povoamento de Goids. | “Tais foram, em suma, os fatores hist6ricos condicionantes da pioneira ocupacio regional. 40 povoamento de Goids, em funcio da sua enorme extensio territorial, deu-se de forma vagarosa e diversificada. Logo de infcio, >) ¢ com a proliferacao de descobertas aurfferas ao longo de uma ampla ae superficie, a Coroa sentiu necessidade de aproximar-se com seuc \\\ aparato administrativo. As Minas dos Goyases, que até 1749 haviam ah pertencido a capitania de Sao Paulo, obtiveram autonomia em Pender do ano seguinte ¢ uma das primeiras providéncias foi « CX delimitacao oficial do territ6rio; com a intengao explicita de “pory (\)) ordem em Gois, tumultuado com os descobrimentos das aluvides auriferas (jazidas) da regio, foi mandado.... que certamente tera cuidado no delineamento de mapas”. Os limites da capitania de Goids eram bastante vagos no século XVIII ea légica de suas fronteiras esteve vinculada a necessidade de se resguardaras jazidas descobertas. Como as formagées auriferas estivessem disseminadas — distanciadas entre si — 0s limites foram |. demareados pelos grandes rios efetivando-se o represamento politico 0¢ de uma enorme superficie territorial. Basicamente 0 espaco J,\\\ compreendia ao norte as bacias do Tocantins/ Araguaia ¢ a0 sul asc, bacins do Paranafba/Grande e esteve caracterizado pela imensidio \ de terras de planalto e pela condicao de fronteira aberta A penetragao face a auséncia de obstéculos naturais. ‘As divisas “naturais” da capitania — 0s rios ~ menos que marcos de divisio, constitufram pontos de atracao entre as populagdes ribeirinhas. Paulatinamente Goids tornou-se locus de entrelagamento 7 ce convivéncia de comunidades fronteiricas principalmente da Bahia, | Pernambuco, Maranhio, Paré e Minas Gerais. O territ6rio foi se transformando em amostra das fronteiras internas da col6nia, i evidenciando diversidade de populag6es e acarretando divergéncias nos interesses sub-regionais. Uma das mais significativas dificuldades da coroa lusitana foi o controle das safdas e entradas naquelas minas. (%% Em vista disto, suas vias de escoamento ~mesmo antes da separagio «da capitania de Sao Paulo ~ foram restritas a um tinico caminho: a (Q\\\ “antiga rota das bandeiras de Sao Paulo posteriormente consagrada i NNO? como a “picada de Gods". Esta rota vinha de Sao Paulo, seguia pela Vila de Jundiaf, Jaguary e Mogy do Campo até atingir o sul de Gois. i on ‘Até mesmo a utilizagao dos “caminhos fluviais” ao norte da capitania 17 fi objeto de proibsio régia. A devisio favoreceu 0 comércio exclusivo de Goids com Sao Paulo, pois, oficialmente s6 poder-se-ia © atingir aBahia, Cuiabs e Minas Gerais através de um longo percurso até o Registro de Jaguary. Dado que a exportacio do ouro goiano e a importacio de produtos pela capitania realizavam-se sob estrito controle fiscal, os carregamentos eram bastante onerados nesta rota oficial. Todavia, em fungio da dimensio gigantesca da superficie goiana e do espagamento das jazidas, 0 contrabando tornou-se atividade costumeira. FERREIRA DE SALLES resgatou epis6dios de entrada de boiadas, fazendas secas e escravos, vindos da Bahia e Minas | Gerais através de caminhos proibidos, onde os responsaveis foram | “exemplarmente punidos”.” Assim, em decorréncia de sua geografia, |\\Goitspossibilicou, desde os primértios,aemergéncia de conflitants 00" SShteresses. A enorme superficie territorial -encurralada entre rios— acarretou dificuldades para a administracéo principalmente em fungao do distanciamento entre suas formag6es minerais. | (Os primeiros arraiais do ouro foram erigidos no centro-sul of) 4a capitania tendo sido descobertos entre 1725 ¢ 1731. A partir de «© entio surgiram minas ladeando 0 rio Tocantins ¢ a sucesso de Ay descobertas a0 norte prosseguiu até a metade do século quando YY «NN tnineradores da Bahia, Pari, Maranhao e Piaut estabeleceram-se ma | Ky 38 1) A localizacio dos arraiais em Goi, na metade do século XVII, estendia-se por quase todo 0 territ6rio. Oficialmente foram delimitados e nomeados, 20 norte os julgados de Sao Jodo da Palma, ‘Arraias, Natividade, Trafras e Cavalcante; ao sul os de Vila Boa (capital), Meia Ponte, Santa Cruz, Santa Luzia, Pilar e Crixés. Os ‘ikimos constitufram 0 plo hegeménico da capitania: estiveram ais proximos das decis6es administrativas, comportaram atividades urbanas mais intensas e se aproximaram mais de um “conglomerado” devido ao menor distanciamento das jazidas e a maior densidade populacional. Na extremidade sul, bem naconfluéncia das capitanias de Mato Grosso e Minas Gerais, situavam-se as minas do)» Desemboque. Por este local, aparentemente apartado da prépria() \l) capitania e situado entre 0 vale do Paranafba e as barrancas do vor Grande, eruzava a “picada de Goids”ligando a capitenia goiana a) Sio Paulo. Servindo de ponto de passagem eestadia para mineradores, (j\ Desemboque, apesar de pertencer a Goids, veio a florescer nesta condigao de fronteira entre as trés capitanias."* \ ‘A populacio colonial na época, por contingéncia da atividade, tendia a ser ndmade. Todavia, na metade do século XVIIL os arraiais em Goids apresentavam-se em consolidagéo encontravam-se na abrangéncia das respectivas jazidas. Ao todo, 0» contingente demogréfico da capitania representava no maximo \\)) 35.000 pessoas, das quais 16.800 escravos se contados através do censo de capitagio.” Evidentemente tal populagéo tendia a nao se /()\ apresentarestével. Contudo, depois de mais de trinta anos de seguida extracio, os mineradores pareciam aquietar-se razoavelmente em funcio da inexisténcia de “novos descobertos” como sugere o assentamento dos diversos arraiais, Pode-se captar uma certa vida urbana através das sélidas construgées piblicas erigidas na capital (Vila Boa) e em alguns aglomerados{ Embora as cifras sejam imprecisas, houve consideravel crescimento demogréfico em Goids ~~ apartir da segunda metade do século. A populacio atingiu cerca de 60.000 pessoas na década as0)ndicando que o territ6rio, apesar de ralamente ocupado, consolidara sua primeira etapa de assenta- mento definitivo. ., 39 Com relagio 4 produgio de ouro, comparando com 0 rendimento fisico de Minas Gerais, a capitania goiana nao foi expressiva. O ano de 1753 marcou o auge das extragdes consubstan- ciando-se, dai por diante, gradual queda no rendimento (tabela 01). ‘Nos dados da producio de ouro na colénia, Goids contribuiu com ‘menos de um quarto do volume encontrado em Minas Gerais que, mesmo em plena decadéncia sustentava niveis relativamente altos de extracio, Interessante observar que houve sincronia no auge da exploragio e no movimento descendente de producéo das trés capitanias do ouro. Certamente em fungio do esgotamento dos aluvides e do caréter da organizacio produtiva escravista utilizada na exploracio geral de todas as jazidas. A ___Tabela 01 - PRODUGAO DE OURO NA COLONIA BRASILEIRA (Em Kx.) “Quinguénios [Minas Gerais | Golds | Mato Grosso | Média Anval 1700-1705 | _1.470 1.470 1706-1710 | 4410 4410 17u-i7Is_| 6380 6580 1716-1720__| 6380 6580 172-1725 7.000 0 7.600 1726-1729, | _7.500 1.000 8500 1730-1734 | _7.500 1.000 500 9.000 1735-1739 [10637 2,000 1.500 1437 1745-1749 | 972 000 | 1.100 14812 1750-1754 | 8780 5.880 1.100 15560 1755-1759 8.016 3.500 | 41.100 12.616 1760-1764 | 7399 2.500 600 10.499 1765-1769 | 6.659 2.500 600 9759 i774 | 6.179 2,000 00 8779 175-179 | 5318 2000 400 a8 1780-1764 | 4.884 1.000 400 6286 1785-1789 [3.511 1.000 400 ion 1790-1794 | _ 3.360 750 400 1795-1799 | 3.249 750 400 40 in rato i, Seacurva da extragio de ouro, a partir da metade do século XVIML, teve tendéncia negativa, obviamente o comportamento da arrecadacio dos impostos sobre o produto obedeceu a mesma configuracio. A propésito, em Goids, apesar de diversas tentativas, nio se estabeleceu uma cota anual para 0 quinto, que seria em torno de 16 arrobas conforme frustrada intencdo das autoridades. LA maior concentragio aurifera esteve localizada em torno dos Pirineus)e da serra Dourada} bem na drea central do territério goiano onde foram erguidos os povoados mais consistentes. As A, jazidas, descobertas 20 acaso, foram exploradas por processos / ler tg U Rcaneniralonns historiograia‘colonial Bt que as autoridades nao se preocupavam com a técnica de produgao, | mas tao somente com o fruto das arrecadacées de impostos. Em’ '¢ (\ Goiés, praticou-se a mineragao de cascalho — mais facilitada que hy aberttitlsealhos-nos nioires outrituragio de'rochas sornandaa@@® exploragdo meramente superficial. A mineragao de morro quase nao\\ foi praticada na regido, 0 que ndo ocorreu em Minas Gerais. Os sitios auriferos foram trabalhados apenas na superficie e as rochas continuaram praticamente intactas em Goiés. Dizia-se na época que “o mineiro mais ignorante de Minas sabia mais de mineragao que 0 mais sabio de Goids, e o mais ignorante de Goids conhecia melhor seu oficio que o primeiro de Mato Grosso”. A economia aurifera goiana foi bastante modesta com © relagi & de Minas Gerais nao somente com referncia 20 rendimento © fisi ibém em termos demograficos, de prospeccao do metal ~ isico mas taml rmos demograficos, de prospece: ede adensamento das jazidas, Todavia guardou particularidades que), serao evidenciadas a seguir. Asatividades produtivas em Gois, apesar da “especializa- gio” do empreendimento minerat6rio, ndo se restringiram extragio do metal. O grande distanciamento e a decorrente dificuldade de abastecimentofizeram com que lavourse pecuiacoexstsem com a extracio metalifera servindo de amortecedores para as crises No i inicio dos trabalhos inexistia preocupacio imediata com a lavoura oY - mesmo que existisse a producéo agricola nio se daria de imediato. oN Conforme testemunhou ANTONIL, a fome grassava em torno dos 4 wwe | \ \ « empreendimentos minerat6rios.”" Como a esperanca dos pioneiros era 0 rapido enriquecimento e o breve retorno ao litoral, pagavam alto preco pelos géneros alimenticios. Com o tempo, entretanto, foram sendo implantados sitios de lavoura a0 derredor das formacées aurfferas. Em Goids, de acordo com documento de 1756, havia, na €poca, “uma média de 500 rosséiros (sic) no territério”.” A criagio de gado, por sua vez, aparentemente ndo constituia interesse primordial dos mineradores € plantel ficou espalhado pelos campos ~ distanciado das jazidas — predominantemente ao norte da capitani Lavoura e pecuatia nao representavam grande significado econémico em termos de complemento de renda para a populagio goiana. Os empreendimentos agropecudrios de maior escala eram 7 serenciados pelos prOprios mineradores que deslocavam parte de A, suaescravaria para tis atividades. Porém, lavoura e pecudria jé faziam parte de um amplo esquema que possibilitava a subsisténcia dos moradores. Conforme mencionado anteriormente, a populagio cresceu a partir da metade do século evoluindo de cerca de 35.000 Para 60.000 em 1783. Neste mesmo perfodo, contraditoriamente, a extrago aurifera estava em franca decadéncia. Embora o rendimento- homem e a produgio diminuissem constantemente, a imigragio assumia sentido inverso. Certamente a relativa decadéncia mineira explica esta tendéncia, ou seja, a imigracdo originou-se substancial- mente de Minas Gerais. ZEMELLA corroborou que, coma decadéncia da producio aurifera em Minas, “muitos preferiram emigrar para outras capitanias”.” Porém, o negécio aurifero em criseea populacao crescendo apontam que lavoura e pecuéria forneciam possibilidade de exploragao nio somente complementar mas de pura sobrevivéncia i! ae em Gois. Tanto que o perfodo de mais intensa produgao agropastoril acontece entre 1763 ¢ 1785 de acordo com o rendimento dos Dizimos (ye Entradas da capitania. Dentro do periodo citado, nos anos de og mW 1771 a 1773, Goids atinge 40% da producio agropastoril de Minas — Gerais, coma produgao total de 249:133$330, Neste triénio, “Minas } dag ferais decresce de seu nivel habitual, rendendo a sua produgio | if h 629:640$000 numa defasagem iniciada em 1769”. Tais evidéncias sugerem que o aumento da populagéo em Goids, em plena 42 diminuigéo da atividade aurffera, obteve na exploragio agropecusria uma atividade de sustentagio. A propésito, 0 depoimento de Alencastre no tempo de Luis da Cunha Menezes (1778-1783) foi bastante significativo: “as tendéncias todas da populagdo se iam dirigindo para a lavoura, e para a inddstria pastoril ... os quais procuravam cémodas localidades para fundarem_ estabelecimentos de lavoura e criacio.”* Tanto que os precos dos produtos bésicos alimentares sofreram queda paulatina na regido como sera visto adiante. Antes, porém, levando-se em conta o “perfodo de apogeu” do ouro em Goids, cabem algumas consideragées quanto as possibilidades de acumulagéo mercantil regional. De modo geral, 0 mecanismo do exclusiva metropolitano nega, em tese, qualquer oportunidade de substancial acumulacdo na colénia. Se a propria metrépole portuguesa estava presa a acordos bilaterais de comércio com a Inglaterra - que tolhiam sua autonomia ~a coldnia encontrava-se em piores condicées. De modo especifico, porém, a mineragio, ao engendrar um circuito inter-regional de comércio no seio do préprio territério, inaugurou possibilidades de negociagdes internas. Inclusive, tais negociag6es foram, para alguns, “incentivadas” pela prOpria metrOpole e favoreceram a génese de um capital mercantil no interior colonial. O exclusivo metropolitano “nao conseguira barrar o surgimento de circuitos internos de mercadorias, e até mesmo os incentivard na medida que aumentam a extragao do produto éureo e representam novas fontes de taxacio”.” Se a acumulacio maior dava-se via entreposto lusitano — mercadorias e ouro a oferta de alguns géneros alimenticios basicos para a populagio mineradora ~ servindo de suporte a atividade ., principal -nio impedia tal processo, pelo contrério, proporcionava sua continuidade. Contudo, em termos de acumulacio interna, as possibilidades devem ser relativizadas em alguns aspectos. De um lado, Portugal dependia da extragio aurifera em suas relagdes internacionais. Todavia, interessava ao reino nao ‘unicamente 0 ouro mas 0 méximo possivel de vantagens que pudesse L-angariar. Neste sentido, a Coroa desenvolvera mecanismos que levaram 20 limite a exploragio colonial: além de impostos diretos 43 cobrados pela utilizagao do solo — quinto e capitagio — servira-se do sistema monetério, criando uma moeda colonial. “As moedas coloniais tinham os mesmos valores nominais das chamadas pecas nacionais ou metropolitanas, mas continham 10% a menos de ouro ou de prata e por vezes a prépria Casa da Moeda falsificava-as, diminuindo-lhes ainda mais 0 peso." Através do artificio a metrépole angariava uma remessa adicional disfarcada de mais de 10% de ouro sob a forma monetéria. No engenhoso sistema de troca apropriava-se de outra parcela do excedente da economia mineratéria €, por que nao dizer, de parte dos ganhos das negociacées internas. De outro lado, o processo de mercantilizagio interna deve ser ainda relativizado - em termos regionais - por dois motivos. Primeiro, porque o comércio de muares esteve centralizado em pracas maiores ~como Sio Paulo ~ privilegiando as negociagées nelas. Minas Genais teve sua criagio prépria dispensando importagées e inclusive exportando muares para a Bahia.” Em Gois, ao contrério, era dificil encontrar animais de carga fora do tempo da seca, época em que chegavam de Sio Paulo ou se encontravam de passagem para Mato Grosso." Segundo, porque nas minas mais distanciadas — face a0 custo elevado de transporte — lavoura e pecuéria foram exploradas como atividades complementares obrigando mineradores 20 deslocamento de parte da forca de trabalho para rodizio no setor.! Sendo assim, apesar dos efeitos positives do comércio interno na col6nia, a retencdo de excedentes nas proprias regides deve ser averiguada caso a caso. @° _ Com relacio a Goids os indicios apontam que o minerador THE Esteve foriemente voltado também para 0 eultivo agropecuirio, “yl aratando-se de importante especificidade regional na economia ¢ Mil mineratéria. yy quo (A qualidade das terras goianas, em sua quase totalidade, 7) Possibilita seu aproveitamento agropecuério sem maiores restricées, pois apenas 14,5% do territério nao tem aptidao natural para 0 cultivo. Principalmente a drea sul da superficie goiana ostenta ~potencial altamente produtivo, pois as melhores terras do pais ee omnes faixa transversal que parte do litoral abrangendo PAs Your “4 Pv S40 Paulo, Parand e avancando no sentido noroeste pelo Triangulo, Sul de Goids e Mato Grosso. Neste sentido, a aptidio ea qualidade da terra podem ter sido fortes condicionantes na dinamica da produgao agricola ainda na economia minerat6ria. Por outro lado, 6/7 6 grande dstanciamento das minas eas decorrents dificuldades de 0» f-~ chasecimento, certamente incentivaram a exploragio agropecuaria, to ddesde os primérdios. A febre dos pregos alimenticios na colénia ~ soma miveracdo havi sido impressionante: o fiji subira 220%, “YO © agticar 300%, 0 milho 1.300% e a farinha aumentara cinco vezes 0 )) yf! preco do alqueite. O prego da carne bovina quase triplicara ¢ ol touciaho subira 500% a arroba’ Outros indcios de que o minerador (> em Goids aproximou-se de agente produtor de alimentos serao alinhados no decorrer do texto. Antes, porém, deve-se prosseguir com a averiguacéo das possibilidades de acumulagio mercantil na regiao. © comércio acompanhava de perto os empreendimentos inerat6rios. O nivel da vitalidade mereantil media-se na razio direta da produgio do ouro e do ajuntamento demogrifico proporcionado pela atividade. Dado que em Goigs, tanto a extragio do metal como 6 contingente populacional foram modestos com relagio a Minas Gerais assim também se comportaram as negociag6es mercantis. No interior do territério o comércio era feito através de lojas e de vendas ~ secos e molhados ~ e sua expansio se dava em fungio da Validea dos armiais e do monrante'delouto em circalaginO. 0 i niimero de casas comerciais no século XVIII foi eae ant sensivelmente. Em 1783 capitania contava com 74 lojas de fazendas (|) secas, 33 vendas de molhados e 300 tabernas. Nestas iltimas | \\\, negociavamse bebidas utilidades mais elementares como carne eW grios de cultivo local, A caracteristica deste némero relativamente expressivo de “taberneiros” foi a dificuldade de obter maiores rendimentos; serviam — no cotidiano ~ a populacio mineradora sobrevivendo de vendas a crédito e aguardo de colheitas para recebimento)O montante girado era modesto e nio dispunham do capital necessirio.* Além do mais, os pregos dos alimentos basicos baizaram sensivelmente em Gois ap6s a metade do século, embora 45 oscilassem temporariamente em fungio de colheitas e entressafras. O boi, 0 feijdo e o milho cafram constantemente de precos no perfodo de 1736 a 1786. Na suposicao de que os escravos produziam para sua prépria subsisténcia mesmo que nao o suficiente —tais pequenos comerciantes estiveram sujeitos ao rendimento das catas de “faiscadores”, ou seja, dependentes de uma populagéo ambulante ¢ sem producio estavel. Portanto, a possibilidade de acumulagio ‘mercantil deve ter sido incipiente no ambito deste circuito comercial. ‘A outra modalidade de comércio interno era feita através das lojas. A existéncia de 74 lojas de fazendas secas e apenas 33 de molhados sugere que objetos importados faziam parte da vida normal da populacao. Entretanto, os comerciantes preferiam inscrever seu estabelecimento na categoria de loja e no na de venda, como ser adiante mencionado. Além do mais, as lojas podiam negociar também comestiveis — até uma quarta parte do valor total - tornando a distingao entre loja e venda obscura e dando lugar a uma mera casufstica, Mesmo considerando que 0 grosso do giro de tais lojas fosse de manufaturas importadas, os pregos, dada a distancia, eram bastante majorados na etapa final. Como se tratava de géneros importados, os ganhos substanciais ~ na intermediacao — ficavam com os comerciantes da metrOpole ou do litoral, Desta forma, a0 comerciante lojista goiano parecia também nao existir folga o bastante para propiciar acumulagao mercantil. Em suma, na atividade comercial interna pouco ou quase nada restava de excedente no territério das minas goianas. Grande parte do comércio era feita em consignagao por caréncia de capital s6lido que amparasse os negocios. ‘Mesmo nas Minas Gerais quase tudo era vendido “fiado”, reduzindo © capital de giro dos estabelecimentos a termos de faléncia ~ “fim comum a todos os comerciantes de Minas”.” i (Com relagao as lavras, por sua vez, a situacéo nao foi (1 diferente, Os empreendimentos mineradores caracterizaramse pela {@ ‘alta utilizagéo de mao de obra escrava; comparando-se 0 escravo ~ i sch atividade mercantil—a um “bem de capital” as lavras apresentaram ( (J alta relacio “capital-produro”.* Neste sentido, a produgéo por escravo q° sh manter-se a niveis suportaveis para garantia da rentabilidade x ae % ae ¢ mesmo sobrevivencia do empreendimento. Nao obstante, a produtividade do cativo foi baixa e a produgao modesta em Gois. Em termos quantitativos, a produtividade esteve aquém da média /p das 200 gramas aventada por Roberto Simonsen para o minerador em toda a colénia. Nos primeiros vinte e cinco anos de mineragio esteve acima da média; nos setenta anos restantes, a produgio média de ouro por escravo-ano na capitania foi bastante incipiente. \ ‘As lavras operavam a custos cada vez mais elevados, ainda mais pelo fato de parte da escravaria estar voltada também para atividades complementares. O adiantamento de capital em escravos, a vida curta deles aliada a baixa produtividade nas minas fatalmente conduziram empreendimentos insolvéncia e faléncia. Se alguns tiveram ganhos substanciais — que permitiram sua sobrevida durante longo tempo — tiveram custos e gastos considerdveis se se considerar 08 altos impostos o dispéndio com mercadorias importadas, Como no caso de Minas Gerais, o ouro beneficiow nao 0 minerador maso grande comerciante engendrando ilusoria prosperidade nas minzs. Um grande comerciante (Padre Guilherme Pompeu de Almeida) “enriqueceu extraordinariamente sem jamais ter visitado o territ6rio de mineracio e limitando-se a ser o fornecedor dos mineradores, a quem expedia tropas sobre tropas, conduzindo viveres, ferragens, panos, armas, pélvora, produtos quimicos etc., boiadas sobre varas de porcos etc.” (Ao lado do alto custo dos escravos, o minerador padecia do 77 ge preco dos instrumentos de trabalho. O ferro, por exemplo, custava 3$800 em Portugal, em Minas subia a 19$200 e em Goids icant ( F 28$800 © quintal. Na verdade, em toda a colénia houve brutal 4 encarecimento da vida. ANTONIL constatou a tendéncia altista dos precos nas minas, inclusive percebendo que subiram exorbitante- mente em toda a colénia em decorréncia da febre mineratéria.” SIMONSEN também retratou o “mal estar econémico” que se estendia a toda a colénia com o encarecimento da vida. Baseado em ‘Taunay, registrou “altas enormes” de precos principalmente nos wn produtos basicos alimentares."' | ‘A andlise de acumulagao mercantil no ambito da colénia, em Gois em particular, nao poderia ser estendida mais em fungio 47 do perigo deutilizagio de categorias anacrénicas externas ao ambiente Soco-econémico da época. Evidentemente os homens do século XVIII nao estavam agarrados a uma mentalidade racional contébil. FERREIRA DE SALLES, que sistematizou andlise contabil de algumas sociedades de mineragao em Goiés, concluiu que “descuidados no planejamento de suas emprests, 08 resultados dos negécios eram Sempre iregulares e os edlewlos incorretos. Avessos as inovagbes téenicas, apegavam-se a um empirismo conservador, talvez. 0 tesponsivel pelos lncros reduzidos".® Nao & demas frisar que conceitos como “lucro”, “prejuizo” e “empresa” devem ser questionados e determinados historicamente e nao tomados como regra geral ou dados naturais. Com freqincia, aandlise historica tem cometido simplificagdes tornando o momento colonial “arremedo primério da racionalidade capitalista, traduzida na utilizagio do rétulo ‘pré-capitalista’ ou entio na mentalidade econémica moderna, como equivalente & contemporanea, fazendo do passado mera ficgio do presente” HIRSCHMAN, talvez deforma exagerada, também desenvolveu a idéia de que ganhar dinheiro ¢ comerciar, nos séculos XVII e XVIII, nado podem ser vistos na concepcio moderna posto que mais se aproximaram de “atividades inoventes e doux”.* (© que impeliu o branco europeu para a at rinerat6ria, em um ambiente hostil e desconhecido, foi a procura do ouro, ou seja, da riqueza. Todos eram filhotes do mercantilismo, buscando ganhos no comércio, no comando de escravos, na pilhagem, no contrabando e mesmo na sorte. Porém, tudo indica que esta busca de ganhos reais esteve desprovida do sentido da racionalidade ¢ fundada numa espécie de c6digo de status da época. Em Goids, 0 () _ caeoria de loja do que ma de venda,“apesar de esta tr menos 48 imposto € gozar do privilégio de uma negra livre de capitagio, Explicava maliciosamente o (governador) Conde dos Arcos: preferem set tidos como mercadores que como vendilhies, mesmo que fosse & custa da bolsa”.° Esta peculiar mentalidade esteve presente em todas as instancias da vida sécio-econémica regional. Se, de um lado, mineradores ¢ comerciantes foram astros na faganha do ouro, de outro, o aparelhamento administrativo deu sentido ¢ légica a0 ambiente, pois tudo ocorria sob os olhos controladores da coroa lusitana. No territério goiano, distanciado léguas e léguas do litoral, © punho do soberano portugués mostrava-se presente ¢ eficaz. Mesmo em se tratando deamenidades cotidianas, o poder de decisio era extremamente centralizado e executado ~ inacreditavelmente ~ pelo proprio Rei de Portugal. Os governadores e demais autoridades rio passavam de meros executores da vontade régia. Contudo, a vvida social escapava pelos poros da organizagio: uma massa fluruante de pessoas, sem ocupacio definida, gravitava pelos caminhos e arraiais sobrevivendo de migalhas que as minas proporcionavam; um sem néimero de moradores em sitios e rocas, Com seus poucos escravos, espalharam-se irregularmente pela extensa drea territorial ¢, na sua condicio de alavanca do processo, 0 elemento negro desempenhou importante papel sendo, neste periodo da mineracio, tratado com a costumeira brutalidade.”” Os indfgenas, que nao haviam sido ainda dizimados ou escravizados, eram capturados e “administrados” em aldeias implantadas pelas autoridades. A mineracio foi aberta a participagdo de homens destituidos de maiores recursos, mas impossibilitava a eles grandes oportunidades de ascencao social. Levando-se em conta a organizacio e as peculiaridades da economia aurifera em Goids, que futuro poder-seia antever para a regio? Conforme mencionado, grande parte da populagio estava voltada para subsisténcia na agropecuaria, Sendossim, tudo indica que, mesmo que ndo se esgotassem as azidas ea producao continuasse namédia—dada a mesma técnica de extragio eas relagdes de trabalho ~o plantel de escravos, em vista da auséncia de novas descobertas, seria renovado concomitantemente com o desgaste dos instrumentos 49 de trabalho ea populacao aumentaria em fungao de seu crescimento vegetativo ¢/ou de imigragées. O aumento gradual da populagéo redundaria em exploragao agropecudria de subsisténcia - face a caréncia de novos estimulos - ¢ 0 circuito inter-regional de mercadorias conservar-se-ia no patamar costumeiro. O grande problema do minerador seria a aquisigao de novos escravos a reposigio do desgaste dos instrumentos de trabalho. Dado 0 baixo rendimento homem-produto, evidente que o empreendimento s6 poderia prosperar se a jazida fosse crescentemente abundante e de facil extracio. No caso, se a produgio estancasse na média - mesmo sem 0 esgotamento dos aluvides — sua derrocada seria questio de tempo. Nao é por outra razio que a corrida atrés de novos “descobertos” foi uma constante, assim como o abandono de minas de parco rendimento. Por outro lado, pode-se antever que, com esgotamento dos aluvides a economia de subsisténcia seria acelerada. ‘Temporariamente haveria um fluxo maior de compra e venda de escravos entre as minas e conseqiientemente certa transumAncia humana. Porém, o grosso da populac’o que nao conhecia outro modus vivendi, mormente depois de quase um século na atividade, encontrava-se mal ou bem instalado nos esparsos micleos do interior. Por conseguinte, nao teria para onde ir, tendo que socorrer-se da agropecudria de subsisténcia e, neste caso, o circuito inter-regional de mercadorias estaria fatalmente condenado. Em nenhuma das hipéteses o futuro prometia ser brilhante ypara a capitania em termos de desenvolvimento mercantil. Na verdade, 0 entrave crucial da economia aurifera nio estava no 0 ie Af “esgotamento das minas. Encontrava-se no escravismo. A estrutura escravista impediu diversificagao econdmica fornecendo resposta a fliversas questdes. Por primeiro, o regime escravista bloqueou “de baixos rendimentos e caréter eminentemente predatério. O \\ctescimento da atividade se deu em fungio da agregacao de fatores, x possibilidades de inversGes tecnolégicas e conduziu a uma economia & ve forma extensiva e através da dilapidacao da natureza. Em segundo lugar, as relacdes escravistas, além de limitar do mercado interno, WN cree © surgimento de tenses sociais que pudessem conduzira v ay 50 transformagées sécio-econémicas. No caso de ruina de um empreendimento baseado no trabalho cativo perdem aqueles que tém maiores capitais investidos em escravos: liberta-se parte dos mesmos devido ao alto custo de manutencio e utiliza-se parte em atividades complementares e mesmo suntuosidade. O sistema pode perder sua vitalidade que tendéncia serd a de conservar sua estrutura. O escravismo sobrevive e passa a exibir mais importancia como base de uma organizacéo de poder do que realmente como forma de organizagio produtiva. \WNo diltimo quartel do século XVIII, tanto a mineragao em, Lot of Gois como nas demais regides auriferas da colénia brasileira estavam Y= em franca decadéncia. Conforme reiterou PRADO JUNIOR, “a PON mineracio sofre 0 seu colapso final” pois tinham-se “esgotado (| © praticamente todos os depésitos auriferos superficiais em toda a vasta rea em que ocorreram”.** Como resultante, a medida em que 0 sistema atrofiava, perdendo vitalidade, a populagio tendia a > desagregar-se em economia de subsisténcia. FURTADO afirmou que! “em nenhuma parte do continente americano houve um caso de involugao tao ripida e tao completa de um sistema econdmico constituido por populagio principalmente de origem européia”.” Evidente que os autores acima estavam pensando no grande empreendimento aurifero das Minas Gerais. Em Gois, o “colapso final” da mineracio nao foi inesperado — pois jé se anunciara a partir da metade do século XVIII - tampouco sébito pois perdurou por mais de meio século. Também nio se poderia garantir que a populacio goiana fosse “principalmente de origem européia” como serd evidenciado através da composicéo demografica regional. ‘A queda do rendimento nas minas goianas prolongou-se de forma vagarosa mas constante. A partir de 1778 a baixa na producio foi alarmante, embora a diminuigio do rendimento-homem j4 se insinuasse desde décadas anteriores. Em 1779, pela primeira vez 0 quinto nao alcangou as quinze arrobas ¢ dai por diante foi decaindo irrecuperavelmente. No final do século, 0 quinto oscilaya em torno de 6 arrobas quando uma falsa euforia alimentou, mais uma vez, o sonho dos mineradores em Goids: em plena decadéncia, 51 | q ’ vs a partir de 1809, explorou-se febrilmente minas em Anicuns, localidade bem préxima da capital. As mais animadoras esperancas foram depositadas no empreendimento, Contudo, foram tio apidamente desfeitas que, em 1820a mineragio em Anicuns consistia apenas vaga lembranga e o quinto nao atingiu sequer uma arroba na -capitania.|A. possibilidade de extragio de ouro continuou a existir em Goi e esporadicamente cobriu todo o século XIX, no entanto, ‘como atividade relevante a labareda aurifera havia se extinguido. 1 Importa que a capitania foi palco de uma lenta transmuta- sfo produtiva onde o extrativismo foi sendo vagarosamente substituido pela lavoura e pecusria de subsisténcia, tendéncia que vinha se anunciando mesmo antes do esgotamento das minas. Mineragéo-lavoura-pecudria constituiu, desde o inicio, um “complexo” interdependente, Tas atividades foram complementares ea produgio de géneros alimenticios indispensével para continuidade da extragio eeabastecimento dosarraiais. Com o gradativo esgotamento das jaicas houve significative aumento de exploragdes rurais evidenciando ‘mudanca no cardter de exploragio destas atividades e produzindo- ©“ se, desta feita, quase que unicamente para a prdpria subsisténcia. § CA maioria dos habitantes plantava para 0 autoconsumo e (A pouguissimos produtos eram enviados para fora da regio. Em 1804, cue Mapa da Produgio de Gois constaram algodio, agicar, fumo, \\Y’couros, café, trigo, aguardente, reses, marmeladas, porcos, arroz feijZ0 como produtos origindrios da atividade rural. Alguns deles, embora em pequena escala, eram colocados no comércio inter. regional. FERREIRA DE SALLES citou a passagem de 1074 arrobas de agticar e 1552 medidas de aguardente pelo Registro de Mogi das Cruzesem 1801 procedentes de Goifs.® O viajante SAINT HILAIRE, em 1819, visitou uma fazenda no sul de Goids que vendia agticar e aguardente em mercados locais “reservando” o algodio para venda no Rio de Janeiro. Porém, como reconheceu o viajante, tratavase de uma fazenda que constitufa excecio no territério de Goids.5! Nas primeiras décadas do século XIX, consta que Goids exportou agticar, aguardente e outros géneros para Mato Grosso, entretanto, os dados Precdrios nao permitem avaliagZo real do vulto da produgao e do comércio goianos no limiar do século XIX. ) 52 ‘A transigio entre as atividades mineratoria e agropecuaria ay) pode ser captada pelo aumento do nimero deestabeletimentos ura of na regido, Em 1756 havia, em Goiés, 500 sitios de lavoura: em 1796, \ 2 ts sitios com rogas estabelecidas somavam 1.647 e, em 1828, foram\| \ detectados 2.380 aproximadamente. Neste periodo de32 anos houve on tum crescimento de 733 nticleos de lavoura, correspondendo aquase( \ 70% de aumento3? O mimero de engenhocas e engenhos também foi crescente no periodo e a pecuaria extensiva ganhou maior vulto ma decadéncia das jazidas: em 1796 havia 522 fazendas de gado na regido e, em 1828 atingiram 702 estabelecimentos. : Onorte de Goids destoava do sul com relagio modilidade ge) produtiva. Nos ulgados do sul, em 1796, havia 1,189 sitios de lavoura (py, ce nos julgados do norte apenas 458. Ja em 1828, 0 sul apresentava i € 1.476 sitios e 0 norte 910 totalizando as mencionadas 2.380 rocas, as Com telagio pecuiria a situagio foi oposta: nos julgados do sul avia em 1796, apenas 121 fazendas de gado contra 401 fazendas no ¢ «_ norte, Em 1828, no sul, havia 156 fazendas e, no norte, 546 " estabelecimentos, Sendo as jazidas-aurfferas do norte menos expressivas, 0 declinio se dera mais rapidamente naquela fragio setentrional ¢ a pecudria extensiva fora precocemente fomentada haqueles recantos. © ouro do norte da capitania nunca fora) abundante: desde 1754 producéo goiana nortista nio mais excedera sequer a metade da extracio aurffera do centro-sul, Por esta razdo, 0 pastoreio foi mais caracterstico do norte de Goids eas fazendas do sul, na época, produziam pouco gado. } (CO préprio governo, com desaparecimento do ouro, incentivou a atividade agropecuaria com isencio de dizimos, suspensao de medidas que proibiam a navegacao fluvial e revogagio < doalvaré que ndo permitia ainstalagio de manufaturas na capitania, Entretanto, Goids experimentou, nos primeiros anos do século XIX, uma etapa decadente em termos de comércio. “Em 1823, as importagdes goianasrepresentavam menos do que 50% do seu valor em 1806”. ) | No processo de decadéncia, detectou-secertatransumancia yw interna da populagéode Goi. Tstemunhou Saint Hilaire ques com 9) oly ‘ ruina da mineragao, os moradores foram abandonando os “niicleos \ 33 as urbanos” em diego ao campo, ruralizando a vida social na maior Parte do territério. Com a populacio enfronhada nos campos, na Primeira metade do século XIX encontraram-se rufnas de antigas ovoagées, casas abandonadas e igrejas “caindo aos pedacos”. Neste estado de regressio, as relagbes monetérias involufram drasticamente: Sem condig6es de pagar os impostos, escrevia Saint Hilaire na época de sua viagem, “os colonos abandonavam suas habitagées, retitavam. Se para os desertos,e ai perdiam até os elementos de civilizacdo, as idéias religiosas, o hibito das uniées legitimas, o conhecimente da moeda, e 0 uso do sal”, \. ‘Todavia, mesmo no quadro decadente da mineragéo, a fransumincia) demografica para fora de Goids nio foi relevante, confirmando-a hipstese de que, depois de décadas no interior, as geragdes perderam os vinculos e atrativos com o litoral da colénia. Em 1783 calculava-se em Goids cerca de 60.000 habitantes, Se antes, em 1750, havia cerca de 35.000 moradores, a populacio havia crescido significativamente. Entretanto, 0 censo de 1804 delegou para a capitania apenas 50.365 habitantes evidenciando diminuigao de cerca de 20% do contingente. Apesar desta involucio, 0 grosso da Populagio nao tinha para onde ir, mormente depois de longo tempo na mesma atividade e lugar. Tanto que, em 1804 quase a metade dos * habitantes continuava concentrada em Vila Boa, Meia Ponte Trafras, ” 0s trés julgados maiores da regiao, No sul de Goias, a vida urbana, ¢m pelo menos dois aglomerados, nao foi arruinada com a ruralizago demogrifica. Vila Boa, na condigio de centro administrativo e sede do funcionalismo reteve grande parte de seus cidadios e sustentou algumas atividades comereiaislocais, Meia Ponte} por sua ver, gozava de posicio privilegiada no entroncamento das vias de comunicagdo inter-regionais. Conforme registrou CAPISTRANO DE ABREU, Meia Ponte, além de ponto de intersecgio da rota Sao Paulo-Gois, tinha acesso aos caminhos, ao leste, para Minas Gerais via Santa Luziae Paracatu; para Pernambuco, via norte de Goids ¢ também para o extremo osste em diregao a Cuiabd.** Com efeito, Meia Ponte, apesar da decadéncia da mineragio, conservou fisionomia urbana, tanto ue, em 1830 foi sede do primeiro jornal publicado com regularidade durante varios anos em Goiés. H TOMMGPACER Yer nl 54 A composigao da populagao, no inicio do século XIX, . Hides qh a eotklkde earning ale age mestigagem. “Pretos ¢ pardos” somavam quase a totalidade do ¢ contingente (85,95%) e os “brancos” minoria (14,05%). Neste quadro W fica patente a forte dose de contribuigdo do sangue africano e indigena ({\ nna amostra demogréfica. Na condicio de “livres”, por sua vez, \ estavam 62,26% dos habitantes e, na de “escravos” 37, 74% do total. ¢ int t Tudo indica que, no vagaroso esgotamento da mineracio ; grande nimero de escravos teve sua liberdade “consentida”. CANO percebeu, analisando 0 caso de Minas Gerais, que a libertagao do escravo era consentida (e nao conseguida) porque 0 mesmo passava a constituir oneroso encargo na decadéncia da mineragio, Em suas palavras, “sucateava-se compulsoriamente a ‘maquina’. Em Goi, PALACIN referenda quadro similar registrando que “na capitagao de 1745, os egros forros, que pagaram capitagio, foram 120, quandoo > niimero de escravos chegava a 11.000, ou seja, pouco mais de 1,0%. No recenseamento de 1804, 6s negros livres eram em ntimero deZ(-/” 7.936, ou 28,0% do total de pretos”.®” A progressio de mulatos » ¢ também foi bastante substancial e a auséncia de mulheres brancas proporcionou mestigagem em grande escala. Em 1804, os mulatos em Gois somavam 15.452,)ou seja, mais de 50,0% da populagzo livre. Por seu lado; pretos livres e mulatos constitufam 77,0% da populagio livre, As poucas familias brancas — de posse ~ que sobreviveram 4 ruina econdmica concentravam-se nos nticleos mais adiantados da capitania e no norte “havia lugares em que nao se encontrava um s6 branco”. Ao elemento negro restou, dentro de a suas limitadas oportunidades, parcas formas de organizacio,// reunindo-se regularmente em confrarias e fundando igrejas em quase (2! “ todos os arraiais e vilas.¥ O arrefecimento da atividade mercantil em Goiés amenizou o tratamento ao escravo, Tornou-se necessério poupar-lhe a vida pois a aquisicao de novos cativos tornava-se dificil ~ea rigidez costumeira nos tratos foi afrouxada, De qualquer forma, ‘ contingente de escravos em Gois foi bastante modesto em relagéo 4 Minas Gerais: mesmo na época de auge da mineragio, como sera abordado, nao atingiu sequer 20,000 elementos. 55 ek a paul 4 J 2% Depois de espotada a febre da extragio aurfera em Gods, Wo alvorecer do século XIX evidenciou o resultado de um longo perfodo colonial para a regio. Uma das herancas mais significativas foi a delimitagéo do territ6rio aglomerando politicamente uma superficie imensa, alongada de sul a nary dificuldades de penetragio. A capitania assemelhou-se a um mosaico desarticulado, voltado para fora de si mesmo, em decorréncia de sua peculiar posigio geogrificae da diversidade de “lhas” de populagdes em seu territ6ro.| Os caminhos abertos na era colonial - mesmo que desativados ou raramente utilizados—constituiram um rascunho para vias potencizis. Na parte sul, 0 julgado de Meia Ponte encontrou-se privilegiado neste sentido pois nascera no entroncamento das estradas que davam 20 norte da capitania e na rota que ligava a Sao Paulo e a0 Rio de Janeiro. Ao norte, restou a possibilidade de navegagio pela bacia do Tocantins e Araguaia e a nordeste alguns caminhos entrosavam populacdes da Bahia, Piaui e Maranho com ade Goi. Outro legado colonial foi a estrutura fundidria que se ae (1) conformou em Goiis através da posse. Se mesmo nas éreas da colonia 4) ligadas grande lavouraa posse era comum, nas demais regides havia V. a possibilidade de ocupagéo independentemente de qualquer formalidade, Diante da imensidio do territ6rio de Gois nao tinha a Coroa quaisquer condigdes de exercer um controle eetivo sobre a apropriacio do solo. “Assim, chegou-se ao fim do per‘odo colonial com dois tracos fundamentalmente marcantes na estrutura agraria: o latifindio ¢ a posse, nao raramente interligados. Para o interior a posse era uma tealidade irrefurével”.* Em Goids, conforme apontam documentos, as fazendas de criacéo estiveram assentadas em sesmatias de uma Iégua por trés em quadra. A ocupagio das terras de lavoura ecriacao se fazia por concessao de sesmarias mas 0 lavrador independente, sem preocupacao com titulos de propriedade, apoderava-se delas & margem da lei. Em termos demogrificos restou o povoamento de Goids. [Apesar de ralo ~ cerca de 50,000 pessoas no territério ~ constituiu impulso de expansio demogréfica que se antecipou quase dois séculos a0 processo nacional de penetragio para o interior. O ouro 56 proporcionou esta antecipagio historica permitindo a implantacio de estruturas na regido em termos de populagdo, pequenos aglomeradas urbanos e concentragées ruras. Q 1 process de rualizaco e isolamento na decadéncia da wy \ rineragio, de acordo com vigjants,instigou um sentimento de}. 74 sanctame mont” inebriando os habitanes. A transmutagio del itrequietosaventureiros das minas em desolados matutos do interior levou tempo e acarretou profundas conseqiiéncias psicoldgicas; 0 sentimento de fracasso resultou numa apatiae tristeza aparentement ‘ sem qualquer esforco de superacio, interpretacao que sera sen abordada, Chamava aatengio na época o fato de que, contentamento ) ¢ disposigio jamais se véem nos tristes goianos.” | Estas interpretagées de mentalidade do homem goiano serao retomadas na proxima secio. Por ora, importa reter que 0 esctavismo ~ responsével por uma nio diversficagio da economia mninerat6ria ~impediu o surgimento de tensGes sociais que pudessem levar a transformacées. A economia do ouro poderia ter sido dinmica e criativa se fosse efetivada sobre outra base de relagdes produtivas e as reagées seguramente teriam sido diversas: “na AAustrdlia, rés quartos de século depois, o desemprego causado pelo colapso da producio de ouro constituiu o ponto de partida da politica protecionista que tornou possivel a precoce. industrializagio daquele m6 pais”. De qualquer forma, do comedido esplendor da mineracéo em Gois pouco restava no século XIX. “As igrejas ofereciam um \ aspecto desolador. Os arraiais mostravam decadéncia. As relagdes comerciais, na base da produgio mineira, estavam quase extintas. Vivia-se f'a experiéncia agrétia e 0 surto criador”. 37

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