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Homo viator e liturgia: o impacto da

liturgia na identidade do ser humano


caminhante e a Festa Ágape como
modelo
Homo viator and liturgy: the impact of liturgy on the
identity of the walking human being and the Agape
Feast as a model

Homo viator y liturgia: el impacto de la liturgia en


la identidad del ser humano que camina y la Fiesta
Ágape como modelo
* Universidade Metodista de São Paulo.
Jonadab Domingues de Almeida *
Doutorando em Ciências da Religião na
Submetido em: 31-8-2021
Universidade Metodista de São Paulo.
Aceito em: 13-6-2022 jonadab.almeida@metodista.br

RESUMO
Este artigo aborda a maneira como a liturgia impacta o homo viator, este ser em cons-
tante movimento e transformação, no caminho. Considera a liturgia cristã como um
acontecimento delimitado no tempo e no espaço, e como algo constante na caminhada
da vida das pessoas e comunidades, com a perspectiva de que, entre o ponto de origem
e o destino final, o caminho percorrido seja ambiente propício em que o homo viator
celebra liturgicamente a sua fé e vida. Aborda sobre O tempo e o espaço da liturgia, em
relação à identidade do homo viator; sobre O papel formador dos ritos na identidade
do homo viator e a liturgia como caminho; e sobre Modelos e estruturas de culto e sua
influência no homo viator, com apresentação da Festa Ágape, como exemplo de celebra-
ção litúrgica que impacta de forma significativa o ser humano caminhante em sua vida
pessoal e comunitária.
Palavras-chave: Homo viator; liturgia; caminho; tempo; espaço; festa ágape.

ABSTRACT
This article addresses the way in which the liturgy impacts homo viator, this being in
constant movement and transformation, along the way. It considers the Christian liturgy
as an event delimited in time and space, and as something constant in the journey of
people’s and communities’ lives, with the perspective that, between the point of origin
and the final destination, the path taken is a propitious environment in that homo viator
liturgically celebrates his faith and life. It addresses the time and space of the liturgy, in
relation to the identity of homo viator; on The formative role of rites in the identity of
homo viator and the liturgy as a path; and on models and structures of worship and their
influence on homo viator, with the presentation of the Feast of Agape, as an example of
liturgical celebration that significantly impacts the walking human being in his personal
and community life.
Keywords: Homo viator; liturgy; path; time; space; love feast.

Revista Caminhando v. 27, p. 1-26, jan./dez. 2022 • https://doi.org/10.15603/2176-3828/caminhando.v27e022011 1


RESUMEN
Este artículo aborda la forma en que la liturgia impacta al homo viator, estando este en
constante movimiento y transformación, a lo largo del camino. Considera la liturgia cris-
tiana como un acontecimiento delimitado en el tiempo y el espacio, y como algo constante
en el camino de la vida de las personas y comunidades, con la perspectiva de que, entre
el punto de origen y el de destino final, el camino recorrido sea un ámbito propicio en
que el homo viator celebra litúrgicamente su fe y su vida. Aborda el tiempo y el espacio
de la liturgia, en relación con la identidad del homo viator; sobre el papel formativo de
los ritos en la identidad del homo viator y la liturgia como camino; y sobre modelos y
estructuras de culto y su influencia en el homo viator, con la presentación de la Fiesta
del Ágape, como ejemplo de celebración litúrgica que impacta significativamente al ser
humano que camina en su vida personal y comunitaria.
Palabras clave: Homo viator; liturgia; sendero; hora; espacio; fiesta ágape.

A proposta deste breve artigo é investigar a maneira como a liturgia


impacta o homo viator, este caracterizado como “ser humano caminhante”
que está em constante movimento e transformação, inclusive na formação
e conhecimento de sua identidade pessoal e comunitária. O artigo consi-
dera a liturgia como um acontecimento delimitado no tempo e no espaço,
que tem início, meio e fim, mas também, como algo que se faz presente
na vida e na caminhada das pessoas e comunidades, com o sentido de ser
celebrada no cotidiano, no caminho da existência. A perspectiva do ca-
minho aparece em diversas tradições religiosas desde a antiguidade, com
referências significativas na tradição cristã e judaica, descritas na Bíblia,
e em muitas outras obras. Como exemplo, temos o clássico O peregri-
no, de João Bunyan (séc. XVII). A própria estrutura do culto se encaixa
na dinâmica de um caminhar, a partir de um ponto para um propósito
e valorizando cada etapa e cada passo da caminhada. Se o ambiente da
vida humana é compreendido como um caminho, então o culto também
evidencia esta condição.
A liturgia compartilha com o caminho da existência, em uma mesma
estrutura: ela ocorre com a perspectiva de que a partir de um ponto de
origem, rumo a um destino final ou a um propósito, o caminho percorrido
seja tão importante quanto o seu início e o seu destino final. Dessa forma,
a liturgia se torna um ambiente propício em que o homo viator celebra
sua fé em constante diálogo com a vida, razão pela qual é impactado.
Especialmente, o homo viator encontra na liturgia algo para se espelhar,
uma ressonância por meio da qual o caminho é identificado como ambiente
da sua vida e existência do homo viator, um espaço que se desdobra e se
desenvolve entre o ponto de partida celebrado como memória das origens
e início da experiência de fé, e o ponto de chegada celebrado como espe-
rança salvífica e destino final.

2 Homo viator e liturgia: o impacto da liturgia na identidade do ser humano caminhante


e a Festa Ágape como modelo: Jonadab Domingues de ALMEIDA
Estruturado em três partes, o artigo aborda primeiramente sobre o
tempo e o espaço da liturgia, em relação à identidade do homo viator, onde
procura descrever a concepção litúrgica de tempo e espaço, identificando
a evolução e aplicação desses conceitos nas origens e ao longo da história
de formação da identidade cristã. A seguir, aborda sobre o papel formador
dos ritos na identidade do homo viator e a liturgia como caminho, onde
procura descrever o conceito de rito e o papel que exerce na formação da
identidade da pessoa e da própria comunidade, apresentando o conceito
e situando a liturgia como algo que acontece no caminho, que tem ponto
de partida, que tem o próprio caminho e que tem o ponto de chegada com
as expectativas para o futuro. Por último, aborda sobre modelos e estru-
turas de culto e sua influência no homo viator, e apresenta como modelos
diversos acontecimentos litúrgicos descritos na Bíblia, tanto no Primeiro
como no Segundo Testamentos, estes identificados como referência para o
culto cristão na história e na atualidade, com destaque para alguns recursos
e instrumentos utilizados nas celebrações, no esforço de contemplar ao
máximo todo o conteúdo da história da salvação, em relação às origens
e à concretização da fé. Nesta parte final, a Festa Ágape é apresentada
como celebração cristã histórica que, com seus elementos conceituais e
concretos, toca a realidade no tempo presente e impacta o ser humano
caminhante, o homo viator, tanto na relação consigo mesmo e na relação
com o próprio Deus, quanto na relação com a comunidade em que está
inserido e com a comunidade externa com a qual entra em contato e que
também o confronta e o desafia.
Além da bibliografia que referencia este artigo, será feita a citação
e análise de vários textos da Bíblia Sagrada, Edição Revista e Atualiza-
da- RA. O artigo parte do entendimento de que é no caminho que a vida
acontece e é celebrada e que nesse caminho a liturgia é um importante
elemento que dá o tom da caminhada e a caminhada é tão importante que
dá o tom para a celebração litúrgica do homo viator.

O tempo e o espaço da liturgia, em relação à identidade do homo


viator

Quanto ao tempo, a liturgia cristã encontra fundamento nas narrati-


vas da própria história da salvação, esta, marcada pelos grandes acon-
tecimentos da história do povo hebreu, considerados como intervenções
salvíficas de Deus, e que culmina com os relatos sobre a vida de Jesus e as
perspectivas do futuro salvífico na concretização do reino de Deus. Nestas

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narrativas, a história da salvação é composta, não somente, por grandes
acontecimentos e realizações, mas, também, por relatos de acontecimentos
e situações comuns do cotidiano da vida das pessoas e comunidades, que
por sua vez são lidas como sinais da presença e cuidado de Deus. Por
causa desse aspecto qualitativo, essas narrativas inspiram e orientam as
celebrações litúrgicas, fenômeno que se pode observar conforme descrito
nas narrativas do Primeiro e Segundo Testamentos da Bíblia Sagrada.1
É importante considerar também, que em tais experiências e eventos,
inicialmente tratados de forma isolada, foram compreendidos como forman-
do um conjunto, no sentido de que as celebrações litúrgicas anunciavam
e celebravam o que se entendia como aspectos essenciais da história da
salvação como um todo. A exemplo do que ocorreu na história do povo
Hebreu, a igreja cristã sistematizou, já nos primeiros séculos de sua exis-
tência, o Calendário Litúrgico Cristão, considerando a celebração das
experiências e eventos da história da salvação marcada nos ciclos e nas
estações do ano, nos dias de um mês e de uma semana, assim como nas
horas e turnos de um dia ou de uma noite.
Como exemplo da observância do tempo na tradição hebraica, temos
as narrativas sobre a instituição do rito da Páscoa, em Êxodo 12.2,3, que
diz: “Este mês vos será o principal dos meses; será o primeiro do ano.
Falai a toda a congregação de Israel, dizendo: Aos dez dias deste mês,
cada um tomará para si um cordeiro, segundo a casa dos pais, um cor-
deiro para cada família” (grifo meu). Verifica-se que a Páscoa judaica é
uma celebração litúrgica anual, demarcada no tempo, que tem mês e dia,
assim como costuma ser realizada em determinada hora ou período do
dia ou turno da noite, e que se repete todos os anos. É o que ocorre com
diversas outras celebrações judaicas e também cristãs, que são demarcadas
no tempo cronológico, tanto as grandes celebrações anuais, como também
outras celebrações pontuais, que têm tempo delimitado naquele mês e dia
do ano, naquela hora ou turno do dia ou da noite, etc.
Dentre diversas narrativas do Primeiro Testamento, citamos uma que
combina a descrição de uma experiência religiosa atribuída ao profeta
Isaías e que está marcada no tempo e no espaço: “No ano da morte do
rei Uzias eu vi o Senhor assentado sobre um alto e sublime trono, e as
abas de suas vestes enchiam o templo” (Is 6.1, grifo meu). A referência
ao ano da morte do rei Uzias e ao ambiente do templo, situam no tempo
e no espaço o acontecimento descrito, como ocorre em diversas outras
narrativas, inclusive do Segundo Testamento. Por exemplo, a narrativa

1
As referências bíblicas seguem: Bíblia Sagrada, 2. ed. rev. e atualizada. Barueri: SSB, 1993.

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e a Festa Ágape como modelo: Jonadab Domingues de ALMEIDA
sobre a ressurreição de Jesus, em Lucas 24.1 e 13, que diz: “Mas, no
primeiro dia da semana, alta madrugada, foram elas ao túmulo, levando
os aromas que haviam preparado”; e “naquele mesmo dia, dois deles es-
tavam de caminho para uma aldeia chamada Emaús, distante de Jerusalém
sessenta estádios” (grifo meu). A narrativa citada, do evangelho de Lucas,
faz referência ao dia da semana e ao local do acontecimento, situando a
experiência narrada no tempo e no espaço. Desta forma as experiências
narradas se caracterizam, não somente como acontecimentos litúrgicos
demarcados no tempo – “ano da morte do rei Uzias”, “primeiro dia da
semana”, em “alta madrugada” – mas, também no espaço – “um alto e
sublime trono”, “enchiam o templo”, “foram elas ao túmulo”, “estavam de
caminho”, “uma aldeia chamada Emaús” (Is 6.1 e Lc 24.1, 13). Ressalta-se
que a forma empregada para indicar o tempo com a referência do “ano da
morte do rei” é a dos mais antigos calendários, que seguem dinastias ou
indivíduos, um modelo bastante utilizado tanto no Antigo como do Novo
Testamentos, o que permite, em boa parte das referências, a localização
mais precisa quanto ao tempo do acontecimento narrado. De acordo com
James F. White, “A auto revelação de Deus acontece dentro do mesmo
curso temporal em que ocorrem os eventos políticos” (1997, p. 37), como
é o caso na narrativa de Isaías e tantas outras.
Desta forma, se observa que acontecimentos marcados no tempo e no
espaço são acontecimentos da vida real das pessoas e comunidades envol-
vidas, razão pela qual o tempo e o espaço são elementos de fundamental
importância nas celebrações litúrgicas religiosas cristãs e judaicas, o que
evidencia a importância do calendário ao longo da história do judaísmo
e do cristianismo.
Ainda quanto à observância do tempo, é preciso ressaltar o domingo
que, como primeiro dia da semana, se reveste de vital importância na tra-
dição cristã quanto à perspectiva do tempo litúrgico, uma vez que marca
um acontecimento considerado principal que é a ressurreição de Jesus,
importante inspiração para o culto cristão realizado semanalmente.
Quanto à perspectiva de temporalidade da liturgia, também se con-
sidera o tempo no qual ela acontece, aquele tempo de duração de uma
celebração específica, como é o caso da celebração matutina ou vespertina
de cada domingo ou de um outro dia da semana. Outro aspecto importante
a ser considerado, além das experiências e eventos da história da salva-
ção, é o dos acontecimentos marcantes na vida das pessoas, das famílias
e das comunidades, estes situados no tempo, tais como aniversários de
nascimento, casamento, morte, um evento na natureza, como a ocorrência

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de uma tempestade, a chegada da chuva depois de um período de grande
estiagem, uma grande colheita, etc. Tais acontecimentos sempre inspiram
celebrações litúrgicas e muitos deles são lembrados com regularidade a
cada ano.
Da mesma forma, quanto ao espaço na relação com o ser humano
caminhante, se pode afirmar que, a liturgia cristã encontra sua referência
nas experiências e na história do povo hebreu, cujos espaços das celebra-
ções litúrgicas eram adaptados de acordo com as circunstâncias da vida.
Para aprofundar o tema, citamos Luiz Carlos Ramos que, ao tratar sobre
o espaço da liturgia, apresenta uma espécie de “linha do tempo” e aponta
diversos relatos de experiências relacionadas ao espaço sagrado das cele-
brações religiosas ao longo da história do povo hebreu, em suas origens,
nas suas peregrinações e no seu estabelecimento como povo sedentário na
Palestina, como registrado nos relatos do Primeiro Testamento da Bíblia
Sagrada (RAMOS, 2011, p. 42-47).
A liturgia cristã também encontra referência na experiência de Jesus
e seus seguidores e seguidoras, como registrado nos escritos do Segundo
Testamento da Bíblia Sagrada, ambiente do surgimento da religião cristã, e
chega aos tempos pós-modernos que vivenciamos com as suas influências,
buscando, adaptando e delimitando o espaço de suas celebrações litúrgicas
conforme as circunstâncias da vida. Neste sentido, Ramos escreve que,
“desde muito cedo na experiência do povo de Deus, conforme registrada
nas Escrituras, houve a preocupação de delimitações e estabelecimento de
áreas nas quais a manifestação do Sagrado é experimentada de maneira
especialmente enfática” (RAMOS, 2011, p. 45-46). A relação com esse
espaço sagrado das celebrações, segundo o autor, acompanha a expectativa
do “amadurecimento da sua fé e espiritualidade, bem como as contingên-
cias sócio-político-geográficas próprias de cada período de sua história”
(RAMOS, 2011, p. 46). E o autor salienta que: “quando nômades, habi-
tantes de tendas, e peregrinos do deserto, construíram o Tabernáculo”, que
era “desmontado e carregado pelos levitas, que tornavam a montá-lo no
novo lugar de destino” (RAMOS, 2011, p. 48), conforme está registrado,
especialmente nos capítulos 25 a 40 do livro de Êxodo, especialmente a
parte que diz: “E me farão um santuário, para que possa habitar no meio
deles” (Êx 25.8). Ramos ressalta que, na experiência com o Tabernáculo,
“YaHWeH passa a habitar em uma tenda muito parecida com a casa do
povo que o adorava, acompanhando-o em sua peregrinação, sempre que se
mudava” (RAMOS, 2011, p. 49). Em outro momento da história, “quando
sedentários, já estabelecidos na Terra Prometida e passam a habitar em

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e a Festa Ágape como modelo: Jonadab Domingues de ALMEIDA
casas de madeira e alvenaria”, construíram o templo, buscando “o que
há de melhor em termos de edificações humanas da época” (RAMOS,
2011, p. 50). Quando na diáspora,2 as sinagogas eram o espaço sagrado
para aquelas pessoas que desejavam preservar suas tradições religiosas,
para que pudessem celebrar a sua fé e transmiti-la às próximas gerações.
Quando em paz, reuniam‐se em casas, especialmente em espaços desti-
nados às refeições, chamados de cenáculo, de onde surge o conceito de
Oikos-ekklesia: casas-igrejas, como se pode verificar em diversas narrativas
bíblicas sobre a presença de Jesus e seus discípulos e discípulas nas casas
das famílias. Essa nova experiência do espaço sagrado ser localizado nas
casas é reforçada, inclusive, com o fato de que “muitos seguidores de Jesus
foram literalmente, expulsos, excomungados, da Sinagoga (ver Jo 9.34-35)”
(RAMOS, 2011, p. 54). Desta forma, Ramos ressalta que a centralidade
do culto se desloca entre o AT e NT, do templo para a própria comunidade
e afirma que: “Para os cristãos, não mais o templo é o lugar da habitação
da divindade, mas a própria comunidade dos fieis é entendida como lugar
espiritual onde Deus, em Cristo, se faz presente, onde quer que esta esteja
reunida” (RAMOS, 2011, p. 54-55). Neste sentido White afirma que “A
igreja antiga teve que celebrar culto em dependências improvisadas durante
períodos de perseguição”; que “Aparentemente os primeiros cristãos se
reuniam com frequência em casas particulares, geralmente as dos membros
mais abastados da comunidade”; e que “O caráter doméstico desses locais
em casas particulares proporcionava certa hospitalidade e intimidade que
se perderam quando o culto cristão veio a público” (WHITE, 1997, p. 74).
Dentre vários outros espaços identificados, Ramos destaca também a
praça pública e as ruas como palco das ações dos apóstolos, de encontros
e celebrações litúrgicas, assim como as próprias prisões e as catacumbas
que, em tempos de perseguição, “passam a ser a nova ‘sede’ dos cultos”
(2011, p. 57). Em outras palavras, a relação entre o espaço e o sagrado
é dinâmica e depende, tanto do seu contexto como dos seus tempos dis-
tintos. Afinal, transformam-se estes deslocamentos temporais e espaciais
em novos formatos religiosos, novas formas de experimentar o sagrado,
novas formas de organizar os espaços religiosos ou qualificá-los como tais.
O próximo exemplo indica que a dinâmica relacionada ao espaço das
celebrações litúrgicas não precisa ser linear, mas pode passar por revira-
voltas. Uma mudança significativa quanto ao espaço das celebrações dos

2
Diáspora: designa a situação dos judeus que ficaram dispersos em pequenas comunidades em
vários lugares, a partir da destruição da cidade de Jerusalém no ano de 70 d.C., com proibição de
retornar à Palestina.

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cristãos, ocorre na sua aproximação com o Império Romano. A esse respei-
to, Ramos afirma que “em meados do século IV, devido a controvertidos
episódios políticos e místicos do Imperador Constantino, o cristianismo
passou, não só a ser tolerado, mas a ser, enfaticamente, incentivado com o
respaldo do Estado” (2011, p. 58). Com essa nova condição, proporcionada
pela denominada “Paz Constantiniana”, houve necessidade e possibilidade
de adaptação de novos espaços para acolher as grandes assembleias de
cristãos, cujas cerimônias religiosas já não eram comportadas nas casas,
sendo que “o próprio Constantino designou, então, seus arquitetos para a
edificação de novos espaços destinados aos cultos cristãos” (RAMOS, 2011,
p. 59). Assim, são edificadas as chamadas Basílicas, geralmente adapta-
das de espaços forenses ou públicos em geral, como também, mercados
que passam a atender às celebrações litúrgicas cristãs, configurando um
novo momento que tem perdurado até os tempos pós-modernos, mesmo
com muitas mudanças nos formatos das edificações e também nas novas
configurações de denominações cristãs, característica que o cristianismo
compartilha com outras religiões.
Ampliamos agora este foco mais especifico para outras religiões. Para
isso, citamos Mircea Eliade que, ao tratar sobre Homogeneidade espacial
e hierofania, considera que “para o homem religioso, o espaço não é ho-
mogêneo”, que “apresenta roturas, quebras”, que “há porções de espaço
qualitativamente diferentes das outras” (ELIADE, 1986, p. 35). Afirma que
“há, portanto, um espaço sagrado, e por consequência ‘forte’ significativo
– e há outros espaços não-sagrados, e por consequência sem estrutura nem
consistência, em suma: amorfos” (ELIADE, 1986, p. 35). Eliade ressalta
que, “para o homem religioso esta não-homogeneidade espacial traduz-se
pela experiência de uma oposição entre o espaço sagrado – o único que é
real, que existe realmente e tudo o resto, a extensão informe que o cerca”
(1986, p. 35). Desta forma, segundo Eliade, “a revelação do espaço – do
espaço sagrado tem um valor existencial para o homem religioso porque
nada pode começar, nada se pode fazer, sem uma orientação prévia – e
toda a orientação implica a aquisição de um ponto fixo” (1986, p. 36).
Ressalta inclusive a importância do limiar na caracterização do espaço e
que “todo espaço sagrado implica uma hierofania, uma irrupção do sagrado
que tem por resultado o destacar um território no meio cósmico envolvente
e torná-lo qualitativamente diferente” (ELIADE, 1986, p. 40).
Da mesma forma, ao tratar sobre duração profana e tempo sagrado,
Eliade considera que “tal como o espaço, o tempo também não é, para o
homem religioso, nem homogêneo nem contínuo” (1986, p. 81); que “há

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e a Festa Ágape como modelo: Jonadab Domingues de ALMEIDA
intervalos de tempo sagrado, o tempo das festas”; que “há o tempo pro-
fano, a duração temporal ordinária na qual se inscrevem os atos privados
de significação religiosa” (ELIADE, 1986, p. 81). Referindo-se às duas
qualidades do Tempo, “tempo sagrado” e “tempo profano”, afirma que “o
tempo sagrado é pela sua natureza própria, reversível, no sentido em que
é, propriamente falando, um Tempo mítico primordial tornado presente”
(ELIADE, 1986, p. 81) e ressalta o sentido de “reatualização de um evento
sagrado que teve lugar no passado mítico, ‘no começo’”, o que ocorre
em cada “festa religiosa” e em todo o “tempo litúrgico” (ELIADE, 1986,
p. 81). Desta forma, Eliade considera que o “tempo sagrado é indefini-
damente recuperável, indefinidamente repetível” (ELIADE, 1986, p. 82).
Neste sentido, Eliade reforça a necessidade de considerar a importância
do tempo e do espaço na forma em que a liturgia impacta o ser humano
caminhante e celebrante, o que significa situar no tempo e no espaço os
acontecimentos que envolvem e afetam o homo viator, delimitando o que
é sagrado e o que é profano, na sua relação consigo mesmo, com Deus e
com a comunidade da qual faz parte, bem como, com o mundo externo ao
seu redor. Ainda mais, quando a celebração litúrgica, na sua relação com
o tempo sagrado, tem o sentido de “reatualização”, de “recuperação” ou
“repetição” de um evento sagrado, e na sua relação com o espaço sagrado,
tem o sentido de “ponto fixo” que o liga ao evento fundante ou à origem.
A abordagem sobre o espaço das celebrações cristãs, inclusive com
a perspectiva colocada por Ramos, de uma “linha do tempo” e a evolução
verificada de acordo com as circunstâncias da vida desse ser caminhante
que celebra a sua fé nas circunstâncias da vida, enquanto caminha e en-
frenta os desafios do tempo atual, com a referência das experiências fun-
dantes de sua fé e com as perspectivas da concretização em esperança, é
importante e demonstra nitidamente as características do homo viator em
cada uma das configurações do ambiente litúrgico e, especialmente, na sua
relação com as condições de vida das pessoas e do povo que celebra no
caminho e na história, no tempo e no espaço. Neste sentido, a perspectiva
do tempo e do espaço da liturgia reforça a consideração da liturgia cristã
como um caminhar constante e ajuda a perceber o ser humano caminhante,
enquanto este celebra suas experiências que encontram fundamento na
referência de um ponto de partida e na perspectiva de um ponto de che-
gada, com um significativo caminhar constante desde a origem até o seu
ponto final. Isto se justifica pela própria compreensão de que o conteúdo
primeiro do culto cristão é a história da salvação, esta que é contada e
celebrada ciclicamente, com a perspectiva de passado, presente e futuro,

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e que se configura como a história da caminhada do povo de Deus, desde
as suas origens, sua trajetória de lutas, fracassos e superações, até o seu
final, com a espera pelo cumprimento das promessas de concretização do
reino e da História.
Como conteúdo do culto cristão, a história da salvação tem seu iní-
cio apontado nos relatos da criação (no Éden), no passado, e o seu ponto
final nos relatos que apontam as promessas e expectativas da consumação
(na Nova Jerusalém), no futuro, mas com a perspectiva de uma extensa
caminhada que possibilita a construção de uma identidade na história de
vida e experiências de um povo, em meio ao deserto e às circunstâncias
da vida, ao longo da história e no presente. Desta forma, se verifica que o
ser humano celebrante é o ser caminhante que transita entre um e o outro
ponto, situados no tempo e no espaço, do início, no passado, ao seu obje-
tivo final, no futuro, valorizando o caminho ou a trajetória, esta que ocorre
no tempo e no espaço em que o homo viator se encontra no presente.
Portanto, toda a trajetória deste ser caminhante está marcada nas suas
experiências no tempo e no espaço, na memória de suas experiências fun-
dantes e na esperança de concretização das promessas, do Eden ao “novo
céu e nova terra”.
Nesta primeira parte, procuramos discorrer sobre o tempo e o espaço da
liturgia na construção da identidade do homo viator, a partir da compreensão
encontrada nas narrativas bíblicas do Primeiro e Segundo Testamentos, de
que a liturgia celebra a história da salvação, esta que é marcada por aconte-
cimentos desde a sua origem, no passado e no caminho percorrido ao longo
da história, até o presente e com a perspectiva da concretização, no futuro.
Quanto ao espaço, vimos que essa trajetória do homo viator que celebra sua
fé e vida é situada em lugares sagrados, espaços demarcados de acordo com
as circunstâncias da vida, que foram, são ou serão palco de suas celebrações
litúrgicas na caminhada, rumo à concretização. Com Eliade, consideramos a
importância de situar no tempo e no espaço os acontecimentos que envolvem
e afetam o homo viator, delimitando o que é sagrado e o que é profano, na
sua relação consigo mesmo, com Deus, com a comunidade da qual faz parte
e com o mundo ao seu redor.

O papel formador dos ritos na identidade do homo viator e a


liturgia como caminho

Por considerar que a liturgia segue o formato de um caminho e que


ela impacta o homo viator, é importante também aprofundar a compreensão

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e a Festa Ágape como modelo: Jonadab Domingues de ALMEIDA
sobre o papel dos ritos em relação à formação das identidades pessoal e
comunitária. Ao tratar sobre o papel chave de rituais na criação de uma
identidade coletiva, Christoph Wulf, referindo-se à “inescrutabilidade do
sagrado”, “foca no significado de ‘imaginação, ritual e aprendizado mi-
mético’ para o desenvolvimento humano, inclusive do redescobrimento
do corpo e de sensos como da ‘história da alma’” (WULF 2002, apud
RENDERS, 2014). Nessa dinâmica, imaginação e rito se comunicam e
promovem um aprendizado mimético que resulta no desenvolvimento
humano. O rito tem a capacidade de formar e desenvolver o ser humano
caminhante, tanto pelo seu conteúdo e pelo significado de seus gestos,
como pela condição mimética, de repetição e imitação. Neste sentido, Wulf
afirma que “rituais constroem a coerência de grupos sociais sem reduzi-los
aos seus aspectos funcionais por envolverem também aspectos estéticos,
lúdicos e performativos”, e que:

Rituais ordenam a realidade e possibilitam identificações. Eles respondem à capa-


cidade humana de imaginação como representação de uma ausência que possibilita
o aparecimento do novo, tanto em forma da lembrança do passado como em forma
da projeção do futuro. (WULF, 2002, apud RENDERS, 2014).

Destaca-se na afirmação do autor, o valor do rito tanto em “construir


a coerência de grupos sociais”, em “ordenar a realidade”, e em “possibilitar
identificações”, como também, pelos seus “aspectos estéticos, lúdicos e per-
formativos”. Isto se dá pela forma como tais ritos e performances tocam a
imaginação e fazem surgir algo novo, tanto na relação com o passado e com
o futuro, quanto também pela simples repetição e pelo conteúdo que agrega
no presente, enfim, todos são elementos que se encontram em liturgias.
Segundo Wulf, por causa disso, ritos “são como processos ‘de in-
corporação e atribuição de sentido de produtos culturais’; são ‘as formas
mais efetivas de comunicação e interação humana’ e, ‘por meio dos rituais,
comunidades são criadas e as transições dentro e entre elas são organi-
zadas’” (WULF, 2002, p. 53, apud RENDERS, 2014). Essa concepção
o autor aplica de uma forma ampla: “entende-se como rituais ‘liturgias,
cerimônias, celebrações, ritualizações e convenções, os rituais religiosos,
ritos transitórios de passagem em ocasiões como o casamento, nascimento
e morte até os rituais cotidianos de interação’” (WULF, 2002, p.89 apud
RENDERS, 2014). Da mesma forma, Eliade afirma que os ritos de passa-
gem “desempenham um papel considerável na vida do homem religioso”;
e menciona “ritos de passagem de uma classe de idade para outra”, assim
como “rito de passagem no nascimento, no casamento e na morte”, e

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afirma que “em cada um destes casos se trata sempre de uma iniciação,
porque em todo o lado está implicada uma mudança radical de regime
ontológico e de estatuto social” (ELIADE, 1986, p. 192). Eliade também
afirma que “são os ritos que se efetuam imediatamente após o parto que
conferem ao recém-nascido o estatuto de ‘vivo’ propriamente dito”; que
“é somente graças a estes ritos que ele fica integrado na comunidade dos
vivos” (1986, p. 192). Tanto nesse quanto em outros ritos, o que se verifica
é que tem caráter integrador e formador, sendo indispensável na concepção
do homo viator e na forma como ele é impactado pela liturgia. Neste sen-
tido, Renders afirma em relação a Wulf, que ele “rejeita a ideia segundo
a qual, nas sociedades modernas com suas tendências de pressionar em
direção da individualização e da autonomia, ritos se tornariam supérfluos”
(RENDERS, 2014, p. 352). Tal afirmação reforça a ideia de que a força
do rito é insubstituível e indispensável no estabelecimento e transmissão
de valores e conhecimentos em uma sociedade. Renders, referindo-se a
Wulf, ressalta que

Em vez disso, afirma: “Cada mudança ou reforma de instituições e organizações


também requer a transformação de rituais” (p. 90), que são nada menos do que
“performances [...] do corpo” (p. 95). Dessa forma, criam rituais, comunidades e
novas realidades sociais por envolver implicitamente os corpos dos participantes;
encenam hierarquias sociais e estruturas de poder, transcendem o tempo comum e
articulam sentidos como sagrados (p. 102-113). Eles “[...] criam continuidade entre
as tradições, as necessidades atuais e os desafios futuros. Mudando a sua encenação
e significado, criam um equilíbrio entre tradições, ações presentes e necessidades
futuras [...]”. (WULF, 2002, apud RENDERS, 2014, p. 352-353).

Nessa parte é evidenciada a capacidade transcendente dos ritos, que


vão além do tempo comum e “articulam sentidos como sagrados”, pro-
duzindo equilíbrio entre o passado, com a valorização das “tradições”, o
presente, com as suas ações e necessidades, e o futuro com o seus anseios
e expectativas. Tanto em Eliade quanto no diálogo entre Renders e Wulf,
se verifica a importância dos rituais que, como “performances do cor-
po”, “transcendem o tempo comum e articulam sentidos como sagrados”
(WULF, 2002, p. 102-113); também se verifica que “a realização de rituais
não é uma simples atividade repetitiva, mas, um ato criativo e social que
unifica distintos grupos sociais e que produz ordem social, coerência cul-
tural e que é capaz de dominar o potencial da violência social” (WULF,
2002, p.160 apud RENDERS, 2014, p. 353).
Ao refletir sobre a força do rito, como repetição (performance), como
canal de informação, de formação e de transformação, inclusive pela per-

12 Homo viator e liturgia: o impacto da liturgia na identidade do ser humano caminhante


e a Festa Ágape como modelo: Jonadab Domingues de ALMEIDA
formação, reconhecendo a força do mimetismo, a pergunta é sobre como
este ser comporta o homo viator, a partir dos conceitos de rito em Wulf e
Eliade. Desta forma, a reflexão que se faz é sobre o tipo de culto que ajuda
o homo viator, para que ele não se perca, mas seja fortalecido e transfor-
mado, com a possibilidade de viver novos mundos e novos acontecimentos,
sobre a importância do rito como empoderamento para o homo viator.
Desta forma, seguindo o conceito de homo viator apresentado por
Renders em sala de aula (do dia 04/03/2020), como “o ser humano cami-
nhante”, que é “o modelo do empreendedor e quer chegar em um outro
lugar”; que “viaja, caminha, se desloca”, tanto “pela visão do mundo,
pela provisoriedade das circunstâncias da vida” em “um mundo aberto”,
que requer escolhas constantes e contínuas, de “um ser humano aberto,
incompleto, à procura de algo ou alguém; esperançoso/a, e que tem expec-
tativas e horizontes”; de quem “os obstáculos fazem parte do caminho, são
considerados inevitáveis e a sua superação é considerada uma condição
sine qua non para uma viagem bem sucedida”; e “os obstáculos, internos
e externos ao ser humano, representam a imperfeição, a incompletude, o
pecado do mundo e do ser humano, significando que eles sempre estão,
ao mesmo tempo, externo e interno ao ser humano”. Isso ocorre tanto no
“campo da religião, da ética, da política, da educação, da psicologia”.
Significa que a liturgia ou o rito impacto e orienta o homo viator em
sua jornada, ele que é senhor de suas decisões, mas também é influenciado
e forjado em meio às circunstâncias e às dinâmicas da vida que é vivida e
celebrada liturgicamente. Suas decisões são tomadas a partir de sua própria
identidade, e ele também é influenciado pela própria comunidade, com
quem aprende e se desenvolve, enquanto rememora, recapitula e celebra
as histórias de sua origem, enquanto busca compreender o sentido desse
conteúdo e dessa referência no momento presente, ao mesmo tempo que
projeta as suas aspirações para o futuro, tanto o futuro imediato quanto
o futuro em perspectiva da eternidade ou da concretização escatológica.
Ainda sobre a identidade do homo viator, se verifica que ele afeta e é
afetado, que ele tem autonomia e também se submete ao meio e à comu-
nidade em que vive. Ele é um ser humano passivo e ativo, que busca dis-
cernir a vontade de Deus, mas também tem o seu próprio querer. O homo
viator se submete às diretrizes apontadas nas referências de sua origem e na
origem de sua fé, mas também toma decisão à cada passo, certo ou errado,
ele se posiciona. Ele é um ser em viagem, que enfrenta permanentemente
o desconhecido, ao mesmo tempo que é conhecido quando está em casa,
entre os seus, ao mesmo tempo que celebra liturgicamente com as suas

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memórias, com o sentido de atualização para a sua realidade atual e com
a esperança de um futuro, de uma concretização.
O impacto da liturgia no homo viator se verifica ainda mais quan-
do se considera a concepção e aplicação do termo para descrever o que
acontece no culto e a etimologia do termo “leitourgia (leitos [adjetivo de
laós] = povo + ergon = trabalho, esforço)” (RAMOS, 2011, p.33), que
originalmente designava a obra ou serviço de um indivíduo em favor do
povo, do bairro, da cidade ou do Estado ou de uma divindade. Um termo
com origem secular, mas com o sentido de “serviço religioso” (2011, p.
33-34). O termo grego liturgia, como verbo, substantivo ou adjetivo, ao
lado de outros termos empregados no Segundo Testamento e na versão
grega do Primeiro Testamento, é utilizado para designar o serviço reli-
gioso realizado pelo povo ou por pessoas relacionadas ao ofício religioso.
Ainda sobre a concepção do termo liturgia, Ramos afirma que “é o serviço
comunitário celebrado pelo povo de Deus por meio da adoração à Trindade
e da solidariedade aos da família da fé, bem como a toda a comunidade
humana”; que “o culto é o encontro maravilhoso do Eterno com o efêmero,
do Infinito com o finito, do Santíssimo com o pecador redimido”; e que “a
liturgia é um diálogo interativo e efetivo entre Deus e os seres humanos
e destes entre si, no contexto celebrativo da fé, na forma de um serviço
comunal – comunitário e comunicacional – porque e prestado por todos e
para todos (RAMOS, 2011, p. 38-39). De acordo com essa compreensão,
“serviço”, “encontro” e “diálogo” são palavras-chave na concepção do
termo liturgia e do culto cristão, concebidos como serviço comunitário,
encontro celebrativo e dialogo interativo, que têm impacto significativo no
homo viator, este ser caminhante que celebra sua fé e sua vida, em serviço,
diálogo e no encontro com Deus, consigo mesmo, com a comunidade dos
seus e perante a comunidade externa. Este ser que está constantemente
buscando melhor compreensão e melhor relação consigo mesmo, com Deus
e com a própria comunidade, tanto a comunidade interna onde ele vive,
como também a comunidade externa, com quem ele entra em contato à
medida em que caminha e encontra na prática litúrgica um significativo
instrumento de fortalecimento, de afirmação e, até, de transformação de
sua identidade e propósito.
Assim, concluímos que sim, o ser humano é homo viator porque está
sempre em trânsito, como que vocacionado a ir sempre além, a descobrir
novos sentidos e valores, um ser em construção em um mundo também
em construção, não acabado. Verificamos que sim, a liturgia impacta este
ser humano caminhante, porque é celebração da vida e na vida, porque se

14 Homo viator e liturgia: o impacto da liturgia na identidade do ser humano caminhante


e a Festa Ágape como modelo: Jonadab Domingues de ALMEIDA
fundamenta no passado, encontra sentido no presente e se projeta para o
futuro, porque acontece no caminho. Isso ocorre porque o rito, ou seja, a
liturgia das cerimônias e celebrações, têm a capacidade de pôr ordem e dar
sentido à própria existência e configuração da comunidade, possibilitando
a construção de sua identidade, tanto naquilo que ela aparenta, quanto na-
quilo que ela representa. Essa concepção aponta o rito ou a liturgia como
indispensável para o ser humano celebrante e caminhante, tanto na sua
capacidade organizativa, quanto construtiva e formativa.

Modelos e estruturas de culto cristão e sua influência no homo


viator

Após discorrer sobre o tempo e o espaço da liturgia em relação à


identidade do homo viator, sobre o papel formador dos ritos na identidade
do homo viator e a liturgia como caminho, nesta última parte, a proposta
é apresentar alguns modelos de celebrações, cujas estruturas influenciam
o homo viator.
Iniciaremos pelo modelo encontrado na experiência narrada no livro
de Neemias (8.1-12) e outro modelo encontrado no livro de Isaías (6.1-8),
ambos do Primeiro Testamento; depois, destacaremos o modelo encontrado
na experiência narrada no evangelho de Lucas (24.13-35; 36-49), Segundo
Testamento; e, por último, o modelo encontrado na celebração da Festa
Ápape, importante celebração da tradição cristã e metodista.
Ao verificar os modelos e estruturas do culto, se pretende averiguar a
configuração da liturgia cristã como um caminhar que pode ser identificado
a partir da ordem de suas partes, com começo meio e fim, em uma relação
com o passado, presente e futuro, tanto na realização do culto público,
que tem data e hora no calendário, quanto na perspectiva da própria vida
do povo que segue e serve a Deus. Para isso, se considera que o culto
cristão encontra suas bases na memória de acontecimentos do passado, na
atualização e busca de seu sentido no presente e na expectativa e espera
pela concretização no futuro.
Ao tratar sobre modelos bíblicos e históricos de ordem para o culto, Ra-
mos indica que “na Bíblia Hebraica há muitas indicações, umas mais, outras
menos explícitas, de diferentes práticas litúrgicas” (RAMOS, 2011, p. 19).
O primeiro modelo, indicado por Ramos como “um bom exem-
plo” (2011, p. 19), é o descrito nas narrativas de Neemias 8.1-12, 3 que
descreve a experiência do povo hebreu, quando de volta à palestina,

3
Bíblia Sagrada, versão Revista e atualizada, SBB.

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enquanto retomavam suas vidas na reconstrução dos muros da cidade
de Jerusalém e de suas casas em suas cidades, no cultivo da terra e na
luta pela superação de suas perdas no tempo do Exílio: “Em chegando o
sétimo mês, e estando os filhos de Israel na suas cidades, todo o povo se
ajuntou como um só homem, na praça, diante da Porta das Águas” (Ne
8.1a). A descrição incluída aqui e a sua sequência sugere uma estrutura
organizada a partir de alguns elementos muito importantes, tais como:
A reunião do povo na praça, como se fosse uma só pessoa; a leitura do
Livro da Lei, que foi trazido, aberto, lido, explicado e compreendido; a
adoração, através das aclamações e da postura de se colocar em pé, de
levantar as mãos e se inclinar até encostar o rosto na terra; a edificação
através das explicações da leitura do Livro da Lei; a chamada feita pelos
agentes religiosos (sacerdote, escriba e levitas) e pelo governador, para
um posicionamento do povo que chorava, de se levantar, parar de chorar,
se alegrar, comer, beber e repartir.
O segundo modelo, este indicado por Ramos como “um dos modelos
mais significativos”, é encontrado na narrativa de Isaías 6.1-8. Ramos
ressalta que que “a estrutura oferecida por esta passagem forneceu a base
para a liturgia de várias igrejas reformadas e, particularmente, a Igreja
Metodista, aqui no Brasil: adoração – confissão (individual e comunitária)
– edificação e dedicação” (2011, p. 19-20). A estrutura identificada na nar-
rativa bíblica de Isaías também é encontrada em diversas outras passagens
da Escritura, mesmo que não tão explícita. Essa estrutura ressalta a ideia
que diante da experiência do encontro e a percepção da grandeza e santi-
dade de Deus, o ser humano se quebranta e reconhece sua imperfeição e
pecado, é tratado, perdoado e purificado por Deus, tem a experiência de
ouvir a Deus e responde dedicando-se para o seu serviço em amor.
Como terceiro modelo, este do Segundo Testamento, temos a narrativa
de Lucas 24.13-35 e 36-49, que apresenta importante referência litúrgica
e indica uma forma diferente de estrutura do Culto Cristão, especialmen-
te utilizada por Igrejas Católicas e por algumas Igrejas Protestantes, por
exemplo, a Igreja Evangélica de Confissão Luterana – IECLB. Ramos
ressalta que “o capítulo 24 do Evangelho de Lucas repete sistematicamente
uma mesma estrutura: Encontro – Serviço da Palavra – Serviço da Mesa –
Envio” (RAMOS, 2011, p. 20). Se verifica que a estrutura das experiências
narradas nessa parte do capítulo 24 de Lucas, especialmente a primeira
parte, de 13 a 35, ressalta a experiência da liturgia como caminho e o ser
humano caminhante que experimenta o encontro com Deus, na partilha
da vida, da palavra, do pão e do testemunho.

16 Homo viator e liturgia: o impacto da liturgia na identidade do ser humano caminhante


e a Festa Ágape como modelo: Jonadab Domingues de ALMEIDA
Apesar das diferenças de estrutura e nomenclatura das partes do culto
descrito nas referências de Neemias e de Isaías, no Primeiro Testamento,
e de Lucas, no Segundo Testamento da Bíblia, ao lado de tantas outras,
essas referências indicam a ideia de um caminho sendo percorrido, a par-
tir de uma tradição preestabelecida, em contato com o presente e com a
perspectiva do que vem depois, até o destino final. A experiência narrada
em Isaías, embora de cunho pessoal e ambientada no templo, indicam
conexão com a vida da comunidade na relação com o passado, presente e
futuro, apontando desafios concretos na caminhada, especialmente quan-
to Isaías diz “sou homem de lábio impuros, habito no meio de um ovo
de impuros lábios...” (6.5b). Já a narrativa das experiências em Lucas
24.13-35, deixa muito claro que há um ponto de partida (Jerusalém), há
um caminho muito significativo que ocupa a maior parte da narrativa, há
a casa onde a experiência continua como se fosse parte do caminho e a
volta para Jerusalém, esta identificada como o lugar de outro encontro,
agora com a comunidade, e lugar do testemunho. A sequência na narrativa
de Lucas, agora nos versículos 36-49, embora se dê toda no ambiente da
casa, repete a mesma estrutura, ou seja, Encontro, Palavra, Mesa/Pão e
Saída para o serviço.
Em outras palavras, se verifica que o culto cristão tem o seu ponto
de partida, tem o caminho e tem um destino; se verifica também que, tão
importante quanto o ponto de partida, onde estão fincadas as bases da fé
que é celebrada no culto, e o destino final, onde está firmada a esperança
salvífica, se considera o próprio caminho como de valor indescritível,
porque é onde a vida acontece, onde os encontros dão sentido à caminhada
da fé em busca da concretização das promessas, tanto no futuro próximo
quanto no futuro longínquo e, até, escatológico.
Ainda quanto à estrutura do culto cristão, ao explanar a compreensão
de que a liturgia se organiza em “uma tríplice estrutura, caracterizada pela
ação efetiva das três pessoas da Trindade divina: Pai, Filho e Espírito
Santo”, Ramos explica que o culto se estrutura, basicamente, da seguinte
forma: Teológica – Deus o Pai: Invocação, Adoração, Confissão; Cristoló-
gica – Deus o Filho: Perdão, Pregação, Santa Ceia; Pneumatológica – Deus
o Espírito Santo: Consolação, Consagração e Envio (RAMOS, 2011, p.
112). Desta forma, o homo viator, que também se configura em três par-
tes, como corpo, alma e espírito, se relaciona com Deus a partir de sua
expressão nas três pessoas da Trindade divina, relação que é caracterizada
na caminhada, entre as experiências da adoração, confissão, edificação e
dedicação, conforme a estrutura do segundo modelo apresentado. Portanto,

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as partes que estruturam o culto cristão não podem ser negligenciadas, para
que o mesmo não descaracterizado, sob pena de interromper a caminhada
que precisa de cada etapa rumo ao seu destino.
Considerando que a celebração litúrgica é realizada no caminhar,
também é importante mencionar que o uso de determinadas ferramentas
contribui para que o culto cristão seja, ao mesmo tempo, memória, atua-
lização e esperança. Dentre essas ferramentas, o Calendário Litúrgico
Cristão, que foi sistematizado pela Igreja Cristã ainda nos primeiros sé-
culos, com o objetivo de ajudar na celebração da História da Salvação,
o que ocorre ciclicamente, no decorrer de um ano, marcando os tempos
extraordinários, como é o caso do Natal e da Páscoa, e também os tem-
pos comuns, que marcam a presença e ação de Deus no cotidiano da vida
das pessoas e comunidades. Outro instrumento importante, o Lecionário
Comum, contempla as leituras bíblicas a serem feitas diariamente e, prin-
cipalmente, as de cada Domingo, também com a perspectiva da celebração
de toda a História da Salvação, contemplando os eventos marcados no
Calendário Litúrgico Cristão, tanto os extraordinários quanto os ordiná-
rios, com o cuidado de contemplar, mesmo que panoramicamente, toda
a Escritura Sagrada do Primeiro e do Segundo Testamentos. Uma versão
revisada do Lecionário Comum, de 1992, é adotada também por diversas
Igrejas Protestantes, dentre elas a Igreja Metodista. Da mesma forma, os
Hinários e Cancioneiros, tanto os que são identificados com a tradição
histórica, quanto os contemporâneos, também colaboram com as dinâmicas
e com o conteúdo do culto cristão na sua relação com os referenciais do
passado, com as demandas do presente e com as perspectivas do futuro.
Também o conhecimento e a própria identificação dos/as celebrantes do
culto quanto à realidade da vida das pessoas e da comunidade, suas dores,
seus anseios, suas conquistas, realizações e aspirações, são considerados
importante e instrumento balizador para que os objetivos do culto cristão
sejam alcançados ou vislumbrados. Esse conhecimento da realidade da
vida das pessoas e da comunidade se dá através do acompanhamento pelos
jornais e revistas, através da convivência e relacionamento com as pessoas,
também através da participação em organizações da própria comunidade
externa à congregação local, e podem ser utilizados como instrumentos que
ajudam no esforço de produzir fortalecimento e transformação na vida das
pessoas e da própria comunidade que celebra o culto, tarefa primordial da
pastoral. Desta forma, se verifica que a liturgia encaminha o ser humano,
que a sua dinâmica e seu conteúdo podem promover desenvolvimento e
transformação, tanto na perspectiva de sua relação com Deus, consigo

18 Homo viator e liturgia: o impacto da liturgia na identidade do ser humano caminhante


e a Festa Ágape como modelo: Jonadab Domingues de ALMEIDA
mesmo, com a própria comunidade em que está inserido e também na
relação com o mundo todo.
A partir da estrutura dos modelos apresentados para o culto cristão
como um caminhar constante, é importante destacar a atitude do povo pe-
regrino que se apresenta diante de Deus para adorá‐lo, com a integralidade
do ser – corpo, alma e espírito. Significa que corporeidade, espiritualidade,
intelectualidade e sensibilidade, caracterizam a integralidade do ser que
cultua a Deus, evocando suas memórias e as raízes da sua fé, localizadas
no passado longínquo e próximo; buscando o sentido e atualização de sua
fé nas lutas e realizações do tempo presente e vislumbrando a esperança de
concretização das promessas de um reino de amor e justiça. Neste sentido,
se valoriza a integralidade do ser que cultua a partir da ação criativa da
comunidade de fé, com o cuidado de que tudo seja feito com ordem e de-
cência, mas também com alegria e com arte (Sl 33.3). Além das expressões
de arte, como a dança, a literatura, a arquitetura, a escultura, a pintura,
a música e o cinema, os próprios elementos da natureza, água, fogo, ar
e terra, e os órgãos do sentido humano, audição, visão, olfato, paladar e
tato, quando encontram lugar no culto, dão vida e potencializam o poder
de influência da celebração litúrgica ou do culto cristão. Isso corresponde a
um culto em que a arte e a criatividade são empregadas, através de gestos
significativos, tais como, processional e recessional, reunir‐se, ficar em pé,
sentar‐se, ajoelhar‐se, erguer as mãos, erguer os olhos, fechar os olhos,
abraçar, imposição de mãos, unção, vestição, beijo da paz, etc., (RAMOS,
2011, p. 113); um culto que é capaz de impactar o homo viator. Neste
sentido, Ramos ressalta como verdadeira arte litúrgica, o culto estruturado

em torno da partilha do Pão e partilha da Palavra; do qual todos possam participar


de corpo e alma, em espírito e em verdade, com o coração e o entendimento, com
alegria e com arte; de tal maneira que envolva integralmente o ser humano e estabe-
leça um diálogo efetivo e afetivo entre Deus e o seu povo. (RAMOS, 2011, p. 145).

Desta forma, o culto do homo viator é celebrado na caminhada da


vida e, para que tenha a referência cristã, deve ser organizado a partir
dos referenciais da Bíblia e da História da Salvação, firmando suas bases
no passado – a memória, na teologia e na história, para se ligar as expe-
riências fundantes aos acontecimentos e à realidade do tempo presente
– a atualização, e na práxis pastoral, com as perspectivas em relação ao
futuro – a esperança.
Finalmente, ainda sobre modelos e estruturas de culto cristão e sua
influência no homo viator, com a compreensão da liturgia que acontece no

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caminho entre a memória, a atualização e a esperança salvífica, passamos a
apresentar um quarto modelo, este identificado na celebração cristã deno-
minada Festa Ágape ou Festa do Amor. Trata-se de uma importante cele-
bração da tradição cristã descoberta e celebrada nas origens do movimento
wesleyano e metodista, como parte desse caminho da própria História
da Salvação, como oportunidade de encontro em gratidão, fraternidade e
solidariedade no culto cristão.
No artigo Celebrando a Aliança de Deus conosco (parte I): Da Ága-
pe da Igreja Primitiva até as Festas de Amor no Metodismo Wesleyano,
Renders afirma que “a Ágape incluiu então, na sua forma mais completa,
uma refeição comunitária, a mesa do Senhor e a edificação apostólica”;
que “a Ágape integral não foi somente bem integrada na igreja, mas a
Ágape também constituiu a igreja”; e que “todos os conceitos litúrgicos
contemporâneos partiram do culto da forma da Ágape plena, cuja forma
integral desafia qualquer liturgia confessional, e se entende como com-
plementação, mas não como complemento” (RENDERS, 2000, p.10). Tal
concepção reforça a ideia de que a Festa Ágape oferece um bom modelo
de celebração que impacta o homo viator.
No propósito de verificar se na Festa Ágape ou Festa do Amor o homo
viator encontra o seu caminho, antes mesmo de abordar sobre o seu rito,
recorremos à breve descrição da história dessa celebração encontrada no
livro de Ritual de Celebrações e Cerimônias da Igreja Metodista, quando
apresenta: “Uma palavra sobre a Festa do Amor ou Ágape”, e afirma que:

A celebração da Festa do Amor ou Ágape pertence à mais autêntica tradição cristão


e metodista. São reuniões de testemunhos nas quais os membros da igreja têm a
oportunidade de orar, cantar e narrar as suas experiências na caminhada cristã, par-
tilhando, ao mesmo tempo, no espírito de fraternidade de um alimento comum (pão e
água). No Journal, encontramos, desde 1739, muitas referências à realização da Festa
do Amor nas sociedades fundadas por Wesley (IGREJA METODISTA, 2018, p. 34).

Identificada como parte da “mais autentica tradição cristã e metodista”,


é apresentada como reunião de testemunho, em que diversos elementos do
culto cristão encontram lugar, como é o caso da oração, os cânticos, tendo
como parte central a partilha do pão e água, como “alimento comum”. Inclui
a indicação de que John Wesley, um dos líderes fundadores do movimento
que se tornou a Igreja Metodista, faz referência a esta celebração nas socie-
dades metodistas, como “Festa do Amor”. No documento também consta a
declaração de Wesley sobre o significado da festa: “O verdadeiro desígnio
de uma Festa do Amor é uma conversação familiar, na qual cada homem,

20 Homo viator e liturgia: o impacto da liturgia na identidade do ser humano caminhante


e a Festa Ágape como modelo: Jonadab Domingues de ALMEIDA
sim, e mulher, têm liberdade para falar tudo quanto possa ser para a glória
de Deus” (Journal, em 19/07/1761 apud IGREJA METODISTA, 2018, p.
34). Uma “conversação familiar” em que todos/as, “homens e mulheres” têm
liberdade para falar”. Também indica a referência à celebração na epístola
de Judas no Novo Testamento, mesmo que com indicação de dificuldade
semelhante à descrita na epístola aos Coríntios, mas confirmando a prática:
“Estes homens são como rochas submersas, em vossas festas de fraternidade
(do grego, agapal), banqueteando-se juntos sem qualquer recato...” (Jd 1.12;
cf. 1 Co 11.17-22). Uma celebração que se destaca como refeição comunitá-
ria, antes associada à Ceia do Senhor, mas que “...aos poucos, constituiu-se
numa cerimônia separada, na qual a comunidade cristã reafirmava o seu
amor mútuo, o apoio fraternal e a consolação em tempos de dificuldades” (p.
34). Destaque, também, para a indicação de que “durante as perseguições,
desenvolveu-se a prática de celebrar o Ágape na prisão, junto com as tes-
temunhas cristãs condenadas à morte” (p. 34). Quanto à prática na história
da Igreja Cristã, o documento ressalta que:

Infelizmente, esse costume caiu em desuso no século IV, em parte devido a irregu-
laridades em sua prática, em parte por causa da crescente valorização da Ceia do
Senhor. Apesar disso, alguns elementos dessa celebração, como a distribuição de
pão após a liturgia, persistiram nas Igrejas Orientais até os dias de hoje. Foi, pro-
vavelmente, a partir dessas comunidades que a Festa do Amor chegou à Europa e
continuou com os seguidores de John Huss (c. 1373-1415) na Morávia. Ao imigrarem
para a Alemanha, os morávios mantiveram essa prática, reintroduzida formalmente
pelo Conde Zinzendorf, em 1727. Wesley tomou conhecimento e participou, pela
primeira vez, da celebração da Festa do Amor, exatamente junto dos colonos ale-
mães que se estabeleceram nas colônias inglesas da América do Norte, durante a
sua atividade missionaria na Geórgia. Mais tarde, após a experiência de Aldersgate,
ele visitou a comunidade dos morávios, na Alemanha, onde partilhou, mais de uma
vez, da comunhão revivida no Ágape. Desde então, João Wesley revestiu a Festa do
Amor de singular importância a ponto de essa festa se tornar prática corrente entre o
povo chamado metodista até, pelo menos, os primeiros decênios do século XIX. Por
certo tempo esquecida, ela tem sido novamente, valorizada em nossos dias. (IGREJA
METODISTA, 2018, P. 34-35).

Como o documento citado afirma em outra parte, uma celebração


significativa da mais autêntica tradição cristã, com a qual John Wesley
entrou em contato por várias vezes, nas suas estadas com os morávios
alemães e a introduziu no movimento metodista, onde ela tornou-se uma
prática corrente até a primeira parte do século XIX. Uma celebração que,
mesmo tendo sido esquecida por certo tempo, é incluída na legislação da
Igreja Metodista na edição de 1971, com artigos os 204 e 205 que descre-

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vem a concepção da celebração como “reuniões de testemunho ou ‘Festa
do Amor’ em que os membros da Igreja, reunidos em espírito fraternal,
tomam água, comem pão, oram, cantam, e narram suas experiências da
vida cristã” e o artigo 206 em que é apresentada a descrição de “uma or-
dem a seguir na Festa do Amor” (IGREJA METODISTA, 1971, p. 127).
As edições seguintes do Cânones da Igreja Metodista, dedicam apenas
um artigo na parte que trata do culto nas normas do ritual, para afirmar a
realização da Festa do Amor ou Ágape, não mais incluindo no Cânones
a descrição do seu rito. A edição do Ritual de 2001, 2005 e 2018 é que
vai apresentar o breve histórico apresentado aqui no artigo e a descrição
do rito da celebração, inclusive com incentivo a realização da celebração
nas comunidades metodistas.
Ressalta-se que a celebração da Festa Ágape ou Festa do Amor
encontra suas referências já nos relatos do Novo Testamento da Bíblia,
respaldando-se também em várias narrativas inclusive do Primeiro Testa-
mento, como se pode ver no próprio Rito. Renders classificou “os textos
orientadores do NT” como “distinguidos em quatro grupos: “textos que
falam com grande probabilidade de uma Ágape plena, incluindo a comida
comunitária, Mesa do Senhor, e educação cristã”; “textos que não falam
explicitamente de uma Ágape plena”; “textos que falam de refeições co-
munitárias oferecidas pelos ou para os gentios”; “textos dos evangelhos
que deixam transparecer parcialmente a prática de refeições das comu-
nidades dos seus autores: As refeições com pecadores”; “os milagres de
alimentação”; “as parábolas de festa”; “a Páscoa com os discípulos”; “as
refeições com o Jesus ressuscitado” (RENDERS, 2000, p.10). Além das
significativas referencias nos textos do Novo Testamento, também se con-
sidera que foi marcante na experiência de John Wesley, muito celebrada
por um período, vindo a cair no esquecimento em outro e que vem sendo
retomada aos poucos em diversas denominações cristãs.
Por ser uma celebração que se encarna na realidade humana e na co-
munhão com Deus, estruturada em 04 partes importantes, a Festa Ágape é
a celebração escolhida para ilustrar e enriquecer este trabalho. Contempla
uma primeira parte com celebração de abertura, a segunda parte com a
celebração da palavra, a terceira parte com celebração do ágape e a quarta
parte com celebração do compromisso. Sua estrutura é muito próxima da es-
trutura identificada aqui neste artigo sobre a descrição da liturgia do encontro
de Jesus com seus discípulos: Liturgia de entrada para o encontro, liturgia
da Palavra, liturgia da Mesa e liturgia de saída para o serviço (cf. Lucas
24.13-35 e 36-49), reforçando a ideia da celebração litúrgica no caminho.

22 Homo viator e liturgia: o impacto da liturgia na identidade do ser humano caminhante


e a Festa Ágape como modelo: Jonadab Domingues de ALMEIDA
A íntegra do rito da Festa Ágape, encontrada no livro de Ritual
de Celebrações e Cerimônias (IGREJA METODISTA, 2018, p. 35/39),
com interessantes elementos de expressão da comunidade em cada par-
te destacada da abertura, palavra, da celebração propriamente dita e do
compromisso, palavras de acolhimento e afirmação de fé, com orações es-
pontâneas e escritas, cânticos de louvor, leituras bíblicas, reflexão pastoral
sobre o significado da celebração, ofertório dos elementos – pão e água,
o momento de partilha do pão e da água, os testemunhos como partilha
da vida, o compromisso que é expressado na oração final de despedida.
O que se verifica na expressão de todos esses elementos utilizados para
a celebração, desde as explicações, afirmações de fé, leituras bíblicas,
orações, até a partilha do pão e da água com os testemunhos e a dedica-
ção em compromisso de serviço a Deus e ao próximo, a celebração da
Festa Ágape coloca as pessoas e a comunidade em contato com a vida,
em perspectiva de gratidão, fraternidade, solidariedade e compromisso de
testemunho. A própria justificativa do esforço para retomar esta celebração
na vida da Igreja, de “contribuir para a expressão na liturgia da vida e
na vida da liturgia, daquela comunhão fraternal à qual o amor de Cristo
nos constrange” (IGREJA METODISTA, 2018, p. 35), se configura em
elemento que reforça o valor da celebração.
A descrição como “liturgia da vida e na vida da liturgia” nos diz
muito quanto ao seu impacto no homo viator. Impacta porque coloca
o ser humano caminhante em contato com elementos fundamentais da
vida: o alimento - pão e água, a fraternidade, a solidariedade, a partilha,
a própria vida. Tudo no ambiente de uma celebração comunitária que se
abre às experiências de vida das pessoas e da comunidade celebrante, com
ênfase na gratidão, na fraternidade, na solidariedade, o que se materializa
ao redor da mesa abastecida com pão e água, elementos vitais que devem
ser de acesso irrestrito a qualquer pessoa.
Nas palavras de Renders, “os/as participantes desta mesa eram ‘iguais’
e anteciparam as condições da nova terra e do novo céu” (2000, p.10).
A partilha de pão e água no ápice da celebração coloca as pessoas em
condição de igualdade, onde não há espaço para ostentação, orgulho, me-
nosprezo ou baixa autoestima. O Pão que antes estava disseminado pelos
campos, que foi juntado e amassado para formar uma mesma massa, agora
é repartido, assim como a vida é partilhada em forma de testemunhos,
ofertório e solidariedade.
Ao se achegar para prestar culto a Deus, reconhecendo suas dádivas,
reconhecendo a importância das demais pessoas com quem partilha a vida,

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e com a oportunidade de oferecer algo em benefício do seu próximo, o
ser humano caminhante é impactado e impacta a própria liturgia da qual
participa. A importância desse encontro celebrativo se dá também porque
proporciona a partilha da vida, através de relatos ou testemunho sobre as
experiências vivenciadas no cuidado de Deus e da própria comunidade que
celebra. A celebração se completa com a expressão de solidariedade para com
as pessoas da própria comunidade e com a comunidade externa, através de
doações de alimentos a serem enviados e entregues às pessoas necessitadas.

Considerações finais

Espera-se ter alcançado o objetivo de verificar o impacto da liturgia


na identidade do ser humano caminhante, uma vez que, na primeira parte,
abordamos sobre o tempo e o espaço da liturgia em relação à identidade
do homo viator. Sobre o tempo da liturgia, consideramos a compreensão
encontrada nas narrativas bíblicas do Primeiro e Segundo Testamentos,
de que a liturgia celebra a história da salvação, esta que é marcada por
acontecimentos desde a sua origem, no passado, e no caminho percorrido
ao longo da história, até o presente e com a perspectiva da concretiza-
ção, no futuro. Quanto ao espaço da liturgia, consideramos a trajetória
do homo viator que celebra sua fé, a qual é situada em lugares sagrados,
espaços demarcados de acordo com as circunstâncias da vida, que foram,
são ou serão palco de suas celebrações litúrgicas na caminhada rumo à
concretização. Vimos a importância de situar no tempo e no espaço os
acontecimentos que envolvem e afetam o homo viator, delimitando o que
é sagrado e o que é profano, na sua relação consigo mesmo, com Deus,
com a comunidade da qual faz parte e com o mundo ao seu redor.
Na segunda parte, sobre o papel formador dos ritos na identidade do
homo viator e a liturgia como caminho, verificamos que sim, o ser humano
como homo viator, por estar sempre em trânsito, como que vocacionado
a ir sempre além, a descobrir novos sentidos e valores, um ser em cons-
trução em um mundo também em construção; que a liturgia impacta este
ser humano caminhante, porque é celebração da vida e na vida, porque
se fundamenta no passado, encontra sentido no presente e se projeta para
o futuro, porque acontece no caminho. Isso ocorre porque o rito, ou seja,
a liturgia das cerimônias e celebrações, têm a capacidade de pôr ordem
e dar sentido à própria existência e configuração da comunidade, possi-
bilitando a construção de sua identidade, tanto naquilo que ela aparenta,
quanto naquilo que ela representa, uma concepção que aponta o rito ou a
liturgia como indispensável para o ser humano celebrante e caminhante.

24 Homo viator e liturgia: o impacto da liturgia na identidade do ser humano caminhante


e a Festa Ágape como modelo: Jonadab Domingues de ALMEIDA
Na última parte, quanto aos modelos e estruturas de culto e sua influ-
ência no homo viator, analisamos quatro modelos de celebração litúrgica.
Destes, três modelos que se destacam nas narrativas bíblicas, sendo dois do
Primeiro Testamento – de Neemias 8.1-12 e de Isaías 6.1-8, e um modelo do
Segundo Testamento, do Evangelho de Lucas 24.13-35, 36-49; e, também
analisamos o modelo da Festa Ágape ou Festa do Amor, uma celebração
da tradição cristã. Concluímos que, tanto os modelos bíblicos quanto o
modelo da Festa Ágape, impactam o homo viator. No caso da Festa Ágape,
porque coloca o homo viator em contato com elementos fundamentais da
vida: o alimento - pão e água, a fraternidade, a solidariedade, a partilha, a
própria vida; porque acontece como celebração comunitária que se abre às
experiências de vida das pessoas e da comunidade celebrante, com ênfase na
gratidão, na fraternidade, na solidariedade, ao redor da mesa abastecida com
pão e água, elementos vitais que devem ser de acesso irrestrito a qualquer
pessoa, uma verdadeira “liturgia da vida e na vida da liturgia”.
Finalmente, se conclui que a liturgia não é um fim em si mesmo,
porque sempre se abre com perspectivas novas, de transformação, de for-
talecimento, de formação da identidade pessoal e comunitária. A liturgia
vai sempre além, quando as pessoas que celebram dispõem suas vidas e
seus recursos para oferecer a quem tem necessidade, em partilha e solida-
riedade, enquanto adoram a Deus Pai, Filho e Espírito Santo.
Desta forma, se espera que quem trabalha com a preparação e realiza-
ção de liturgia, acredite que ela tem poder de impactar a pessoa e a própria
comunidade, promovendo a justiça, a misericórdia, a fraternidade e a fé,
porque ela é celebração no caminho, porque as pessoas que dela participam
dão continuidade ao que estavam vivendo, se abrem para fortalecimento
e transformação, ao mesmo tempo que, ao saírem dali, dão continuidade
à celebração litúrgica e à própria vida, tudo isso na caminhada rumo à
concretização da esperança salvífica.
Espera-se, com essa pesquisa, ter alcançado o objetivo de provocar
a reflexão e contribuir para o aprimoramento da compreensão da liturgia
cristã que acontece no caminho e que impacta o ser humano celebrante e
caminhante, o homo viator.

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e a Festa Ágape como modelo: Jonadab Domingues de ALMEIDA

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