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' FOLHA macancw\ Basin eee FOLHA EXPLICA ConsetHo Epitoriat Alcino Leite Neto Ana Luisa Astiz Antonio Manuel Teixeira Mendes Arthur Nestrovski Carlos Heitor Cony Gilson Schwartz Marcelo Coelho Marcelo Leite Otavio Frias Filho Paula Cesarino Costa RACISMO NO BRASIL LILIA MORITZ SCHWARCZ PUBLIFOLHA 001 Publifolha ~ Divisdo de PublicagSes da Empresa Folha da Manha Ltda | © 2001 Lilia Moritz Schwarcz | Todos 05 diveitos reservados. Nenhuma parte desta publicagdo pode ser reproduzida, ‘arguivada ou transmitida de nenhuma forma ou por nenhum meio sem permissdo expressa fe por escrito car Publifolha ~ Divisao de Publicagées da Empresa Folha da Manhd Ltda, Editor Arthur Nestrovski Assisténcia editorial Paula Nascimento Verano Copae Silvia Ribeiro to grafico Coordenagio de produgdo grafico Marcio Soares Assisténcia de producdo grifica Soraia Pauli Scarpa Revisgo Mario Vilelo Editoragéo eletrénico Picture studio & fatolito Dados intemacionais de Catalogasao no Publicasdo (CIP) (Camara Brasileira do Livro, SE Brasil) Schwarcz, Lila Mowitz Racism no Braeil la Mori Schworcs. . Sé0 Paula Publitelne, 2001 ~ (Falha explica) Bibliogratia, ISBN 85-7402-317-5 1. Racismo - Bras. Titulo. I. Seti. 01-3894 cDD-305.800981 indices pora catatogo sistematico: 1) Brasil - Racismo : Sociologia 305 800981 PUBLIFOLHA Divistio de Publicogées do Grupo Folha ‘Av. Dr. Vieira de Carvatho, 49, 11° andar, CEP 01210-010, Sao Paulo, SP Tel : (11) 3351-6341 /6342/6343/6344 ~ Site. www.publifolha.com br Os litores interessadios em fazer sugest0es podem escrever para Publfolha no endere 1, enviar um fax para (11) 3351-6330 ou um e-mail pda publifolha@publifolha cor by SUMARIO INTRODUGAO: “DA COR DO BRONZE NOVO" .. 1. RAGA COMO NEGOCIACAO ..... 2. FALANDO DE HISTORIA: SER PEGA, SER COISA. 3. FRAGIL DEMOCRACIA: NA DANGA DOS NUMEROS.. 4. NOMES, CORES E CONFUSAO . wa RAGA COMO OUTRO .. 75 6. FECHANDO OU ABRINDO ESSA HISTORIA .. RIBLIOGRAFIA ... INTRODUGAO: “DA COR DO BRONZE NOVO” ma feita o Sol cobrira os trés manos de uma escaminha de suor e Macunaima se lembrou de tomar banho. Porém no rio era impossivel por causa das piranhas vo- razes que de quando em quando na luta pra pegar um naco da irma espedacada pulavam aos cachos para fora d@agua metro e mais. Entao Macunaima enxergou numa lapa bem no meio do rio uma cova cheia d’4gua. E a cova era que nem a marca dum pé de gigante. Abicaram. O herdi depois de muitos gritos por catsit do frio da 4gua entrou na cova ¢ se lavou inteirinho, Mas a agua era encantada porque aquele buraco 1a lapa era marca do pezo de Sumé, do tempo que at dava pregando 0 Evangelho de Jesus pra indiada brasi leira. Quando o heréi saiu do banho estava branes louro de olhos azuizinhos, agua lavara o pretuine (ele {...]. Nem bem Jigué percebeu o milagre, se atirou fia rca do pezio de Sumé. Porém a agua ja estava nih € por mais que figtl ma to suja do pretume do herdi Introdugdo 9 esttegasse feito maluco atirando agua para todos os lados s6 conseguia ficar da cor do bronze novo [...]. Maanape entio é que foi se lavar, mas Jigué esborrifara toda a 4gua encantada para fora da cova. Tinha s6 um bocado 14 no fundo e Maanape conseguiu molhar sé a palma dos pés e das maos. Por isso ficou negro bem filho dos Tapanbumas. S6 que as palmas das mios e dos pés dele so vermelhas por terem se limpado na agua santa [...]. E estava lindissimo no Sol da lapa os trés manos um louro, um vermelho, outro negro, de pé bem erguidos e nus [...].”! Nos idos de 1928, Mario de Andrade recontou, 4 sua maneira, a famosa fabula das trés ragas Depois de terent sido tio iguais, os irmaos acabavam ganhando as cores das “gentes locais”, por conta de um milagre da natureza ou de um atributo de nJo se sabe quem. Nesse “is, porém, a narrativa surgia em meio a uma série de HULLS aventuras e desventuras de Macunaima, esse her6i ‘i nenhum carater”, De toda maneira, no conjunto do livro, destacava-se uma intengao de incorporar cultu- Hy nao letradas — indigenas, caipiras, sertanejos, negros, iulitos, eafizos e brancos —, cujo resultado era menos Unis analise das ragas e mais uma sintese das culturas lo- ois Afinal.a formula “herdi de nossa gente’’ veio substi- Hr Cxpressio anterior — “herdi de nossa Taga” —, numa shins demonstragio de como o romance dialogava com © Petmamento social de sua época e buscava se contrapor 1 ersio pessinista, de finais do século 19, que entendeu J eeigehacae como uma espécie de macula nacional. Masse essa G uma histéria famosa e dileta, nao Je de set Ginbem, uma “versio”, Uma versio que 10 Racisnro ne Brasil remete a outra estrutura maior, que, de alguma ma- neira, vem repensando a nagao a partir da raga, as ve- ves nomeada em fungdo da cor. Pode-se atirmar, sem. medo de errar, que, na maioria das vezes em que ofi- cialmente se falou sobre esse pais, o critério racial foi acionado: ora como elogio, ora como demérito e ver- gonha. No entanto, assim como se sabe que 0 nacio- nalismo é, no limite, uma invengao, é preciso deixar claro, também, que nao se trata de um discurso mera- mente aleatério. O fato é que nfo se manipula no vazio e que, apesar de muitas vezes pragmaticos, os rituais, cones € representagdes nacionais dificilmente se impdem de forma apenas exterior. Entender as marcas simb6licas do poder politico significa perceber como € possivel descobrir intencionalidade na cultura politica, mas tam- bém atentar para 0 fortalecimento de um imaginirio nacional, que buscou raizes nos ditos populares e em certa maneira particular de entender a cor e a raga. Estamos diante, portanto, de representagSes que, além de estarem ancoradas na estrutura socioeconémica mais imediata, sao partilhadas coletivamente, mesmo que reapropriadas segundo padres nem sempre idénticos. E mais: nesse processo, a composi¢do mestigada da populacao sempre pareceu chamar atengio. E por isso mesmo que este livro procuraré acom- panhar a trajetoria do conceito “raga” em nossa histé- ria particular, sem abrir mao de pensar 0 momento presente e seus desafios.” No primeiro capitulo,“Raga Como Negociacio”, 0 leitor sera convidado a viajar sma formulagao original, mas representa, em alguns pontos Jelimitados, uma nova investida na discussio iniciada no ensaio de minha autoria m Branco, Muito Pelo Cont 10 Brot, v A (Sto Paulo: Companhia das Let Pste texto guard do no livro Historia da , 1998) rio” public Nem | Introdugdo 11 pelos diferentes caminhos que o termo percorreu en- tre nds: desde meados do século 16 até os anos 1930 € depois até o contexto atual, 0 conceito ganhou visées variadas, que oscilaram entre as leituras mais romanti- cas ¢ as teorias detratoras. Na seqiiéncia —“Falando de Historia: Ser Pega, Ser Coisa” —, vai-se procurar anali- sar o impacto da escravidio brasileira na estrutura lo- cal e o perfil basicamente conservador do movimento abolicionista brasileiro. Nao se pretende, porém, limitar o problema ao passado. Ao contrario, a forma atual e particular que a questo racial assume aqui serd o tema de dois outros capitulos. Em “Fragil Democracia: na Dancga dos Nt- meros”, interpretaremos os dados da demografia cen- sitaria, que vém comprovando a existéncia de um apartheid social velado no pais. Ja em “Nomes, Cores e Confusio”, a idéia é lidar com cenfrios paralelos: a “raga social” (que faz com que as pessoas “embran- quegam ou empretegam”, conforme a situacgao social e mesmo econdmica) e © uso escorregadio da cor, que transforma raga em efeito passageiro, ou tema para a exclu nomeagao. Para complicar ainda mais, no capitulo 5, “Raca Como Outro”, estaremos diante dessa modalidade original de preconceito; um pre- conceito alterativo que localiza no préximo, ou no vizinho ao lado, a discriminacio. Concluimos com “Fechando ou Abrindo Essa Histéria”, j4 que ““ninguém é de ferro”. Questdes des- se tipo sio melhores para pensar do que para resolver: vale mais incomodar e provocar do que estar A cata de receitas faceis e prontas, ou pocdes magicas que anun- ciem o final derradeiro do problema. No que se refere ao tema racial, estamos bem longe de um “E viveram felizes para sempre”. 1. RACA COMO NEGOCIACAO aca, no Brasil, sempre deu muito o que falar. Antes mesmo de o Brazil ter vira- R do Brasil, quando era ainda uma “Amé- rica portuguesa”, em pleno século 16, esse territério ja foi representado a partir de sua natureza e de seus nativos. Nos primeiros tratados deseritivos, nas narrativas de viagem, na imagina- gio dos exploradores, reiterava-se uma mesma t6- pica das visdes do paraiso.* Em contraste com 0 cenario familiar, que retratava paisagens gélidas e homens famintos, surgia essa primavera constante das terras recém-encontradas, essa plenitude logo anotada como uma copia do Eden. Tudo parecia ser dom de Deus, uma sedugdo do maravilhoso, ilusao original a ler of livros de Sergio Pt Paraiso (1969), ¢ de Laura de Mello ¢ Visto a, 1486) Raga Como Negoviago 45 partilhada pelos povoadores da América hispanica e da portuguesa. Nesse “Jardim do mundo”, misturavam-se mitos diversos, que falavam da fecundidade, da matura¢io e do crescimento dadivoso desse ditoso mundo rural. Além do mais, encantavam-se os observadores com a temperatura comedida desta provincia de Santa Cruz, de tal maneira que nunca se sentia frio nem quentura excessivos, De fato, a descoberta da América parece ter sido 0 feito mais grandioso da histéria moderna ocidental, que se abria para esses novos territ6rios, maravilhosos mias assustadores; tudo isso numa época em que era bem melhor “ouvir” do que “ver”, e ainda melhor “ouvir dizer”. Por isso mesmo, desde cedo as narrati- vas de viagem aliaram fantasia e realidade e buscaram na América e em sua natureza aquilo que previamen- te imaginavam: um deslocamento do mito do Paraiso ‘Terrestre, agora instalado em pleno oceano Atlantico. No entanto, se a natureza brasileira foi constan- temente edenizada e lembrou o paraiso (por oposigio 4 terra amesquinhada do Velho Mundo), 0 retrato pa~ rece ter sido um tanto diverso com relagio As “gentes locais”. Por mais que as imagens negativas no tives- sem 0 impacto das intimeras visdes edénicas inspira- das pelas novas terras, 0 certo é que fantasias sobre esses nativos locais aproximavam-se de um antiparatso, ou até do inferno. Essa humanidade diversa, que lem- brava o negro dos escravos africanos e 0 amarelo dos povos indigenas, que praticava o canibalismo e a feiti- caria e agia com lascivia, devia ser condenada. Assim, se os insetos irritantes, as cobras imensas, as chuvaradas e 0 calor por vezes infernal causavam perplexidade;j4 os homens geravam reptidio e pediam delagao. Dessa maneira, em territérios portugueses do t 16 Racisno no Brasil Novo Mundo parece ter predominado a versio mais essimista do debate travado entre pensadores € teo- ogos quinhentistas, que viram nos indios espécies bestializadas, contrapostas 4 idealizacdo de Las Casas: ai estava outra humanidade, fantastica e ao mesmo ten1- bo monstruosa.* _Gandavo, por exemplo, um edenizador da natu- reza por exceléncia, discorreu longamente sobre essa “multidio de barbaros gentios que semeou a natureza ‘or toda essa terra do Brasil”. Povos sem F L,R — sem f€, nem lei, nem rei —, eis a representacio primeira desses “naturais”, caracterizados a partir da “falta”. Descrevendo-os como “atrevidos, sem crenga na alma, vingativos, desonestos e dados a sensualidade”’, 0 co- onizador estabelecia uma disting¢do fundamental en- tre a terra e seus homens. A edenizacio, de um lado; 0 inferno, de outro.> Mas Gandavo nio era voz tinica. Praticas como © canibalismo, a poligamia, o politeismo e a nudez habitual enchiam os relatos dos primeiros viajantes curiosos que estiveram no “Novo Mundo” e aqui en- contraram essa anti-humanidade, coberta de pecados: além dos concubinatos, os vicios da carne,a cobica e a preguica definiam esses seres diferentes e um tanto monstruosos. as Casas miscen em 1474, provavelmente em Sevilha, ¢ seriam, siio da "© fret Bartolomé morren em 1566, aturais” da Am Madri. Defendeu a te 2 que o al qual cordeiros. Dizia ele, na Brevissina R deus criow todas essas g mn malicia, mui tes ¢ mui fidis a ‘a wravada umildes ¢ inoce nit as esp fa, sem astticia, us senhor ia, que defendia a escravidio para 0s riamente, advogando a idéia de onto erudito jurista Juan Ginés de Sepilu iniltov amerieanos, Las Casas posicionou-se cont jus os natives possinfam alma e de que sua catequizagio era possivel Gamdive, pAB-53, Raga Como Negctagio 17 Foi 0 jesuita italiano Antonil, no século 18, quem melhor caracterizou a funcio desta “colénia-purga- tério”: extirpar pecados, purificando as almas. O Bra- sil representaria uma espécie de transigio entre a terra da escravidao e do pecado (localizados na Africa) eo Céu: espaco de libertagdo por exceléncia. Na sua fa- mosa formulacao —“o Brasil é 0 inferno dos negros, purgatorio dos brancos e paraiso dos mulatos e das mulatas’”® —, ficava sintetizada certa estrutura do siste- ma, uma vez que, diante dessa populacao “demoniza- da”, a colonizacao e a catequese eram entendidas e representadas como provas de benfeitoria, agSes valo- rizadas em outra ordem divina. E facto que novas vertentes de pensamento desco- briram nessas populagées outras verdades e encontra- ram 0 contraponto positivo ao mau selvagem, barbaro e animalesco. Thevet, na Cosmologia Universal, afirma que os selvagens teriam nogées definidas do bem e do mal. Léry avanga ainda mais nesse tipo de concep¢io ao descobrir “sensatez” em tais homens Foi tomando por base o relato de Léris que Montaigne concebeu seu ensaio “Os Canibais”, em 1580. Pautado pelas guerras de religido, que assolavam a Europa no século 16, 0 filésofo francés fez de seu texto um exercicio de relatividade, quando encontrou mais logica na maneira com que os tupinambs reali- zavam a guerra do que nos habitos ocidentais. Em alguns momentos do texto, o pensador desabafa: “Mas, voltando ao assunto, nao vejo nada de barbaro ou sel- vagem no que dizem daqueles povos; e, na verdade, cada qual considera barbaro 0 que nao pratica em sua Antonil, p. 160. Léry, v. Tp.81. 18 Ravcismo no Brasil terra... Por certo em relagio a nés sio realmente sel- vagens, pois entre suas maneiras e as nossas hé tao gran- de diferenca que ou 0 sao ou o somos nés”.* Por detras das palavras de Montaigne, fica evidente de que ma- neira a alteridade apresentada por esses homens pu- nha em xeque as proprias certezas arraigadas do momento. Ali4s, bem no final do ensaio, num sinal de desespero ou de resignagSo, cle conclui: “Tudo isso é, em verdade, interessante, mas, que diabo, essa gente nio usa calga!” EM PLENO SECULO 18, UM OLHAR CURIOSO Muitas sio as interpretagdes possiveis desse pequeno texto e de seu desfecho. No nosso caso, porém, im- porta mais sublinhar a construgao de uma representa- cio mais laudatéria dessas gentes, que encontra acolhida futura nas teses de J.-J. Rousseau sobre o “bom selva- gem”. Tal qual uma idealizagdo por contraposicio, 0 nativo americano (¢ em especial sul-americano) su gia no Discurso Sobre a Origen ¢ 0 Fundamento da D gualdade Entre Homens (1775) como um modelo, melhor para pensar a civilizagaio ocidental do que sua propria natureza. O “bom selvagem” representava, alids, um exemplo de humanidade ainda ndo-conspurcada, pur em sua esséncia e positividade. Em passos largos e desajeitados, alcangamos asin | 0 século 18, quando a questio da diferenga entre ov Montag gne, p. 101-5. Ibid, p. 106, Raga Como Negociagie 19 homens é retomada, tendo como referéncia o“homem americano”. Mais uma vez, porém, as posigdes nao fo- ram univocas. De um lado, afirmava-se um tipo de pos- tura que advogava o voluntarismo iluminista ¢ a idéia de “perfectibilidade humana’ —a capacidade que qual- quer ser humano tem de chegar a virtude ou mesmo de nega-la —, sem dtvida um dos maiores legados dos ideais da Revolugao Francesa, Ao mesmo tempo, Humboldt, com suas viagens, nao s6 restituia o “senti- mento de natureza” e sua visdo positiva da flora america- na, como se opunha as teses mais detratoras que negavain ios indigenas “a capacidade de civilizagio”."" De outro lado, nesse mesmo contexto, tomam {orga correntes mais pessimistas, que anunciam uma visio negativa acerca desses povos e de seu territdrio. bin 1749, chegam a publico os trés primeiros volu- ines da Histoire Naturelle do conde de Button, que lan- (iva a tese sobre a “debilidade” ou “imaturidade” do Continente americano. Partindo da observagéo do pequeno porte dos jiimals existentes na América e do aspecto imberbe dos nativos, Buffon pretendia ter encontrado um con- Hinente infantil, retardado em seu desenvolvimento itil “Vejamos entio por que existem répteis tao efindes, isetos tio gordos, quadripedes tao peque- nove homens tio frios nesse novo mundo. O motivo Seconds cou Himiboldt nascea em 1769 em Berlim, no seio de uma familia 4 © protestinte, Pugindo das guerras napoleénicas, o jovem Humboldt 1) jurta Ameetca espanhola, entre 08 anos de 1799 ¢ 1804, Nao entra no portuguesa nfo Ihe di permissio para tal, En suas montanhas, Thu torlos os Lneas, encontrava cores e elementos magni sornam as mins belas,e os trépicos surgiam dignificados. Com- ie Huthon slamaturndade do continente, defendendo sempre a idéia da ureve com sthos encantados a flora, a fauna, a fade he cada amibtente © de suas relagdes com 0 universo, 20 Ravisnio no Brasil é a qualidade da terra, a condigio do céu, o grau de calor e umidade, a situagao e elevacio das montanhas, a qualidade das 4guas correntes ou paradas, a extensao das florestas e, sobretudo, 0 estado bruto em que a > 11 Na visdo do naturalista, por- natureza se encontra : diga nem vital € tanto, a natureza nao se mostrara pro’ | repleta de energia criadora naquele lugar. E eee que a designagio “Novo Mundo passava a se referir mais 4 formagio teltirica da América do que ao mo- mento da colonizagao. / Buffon nao representa, porém, um exemplo isola~ do. No ano de 1768, 0 abade Corneille de Paw editava em Berlim Recherches Philosophiques sur les Américains, ou Mémoires Interessants pour Servir 4 Histoire de |’Espéce Humaine, em que retomava as nogodes de Buffon, radicalizando-as. O autor introduzia um vies original, ao utilizar a idéia de “degeneragio” para designar © novo continente ¢ stias gentes, Assolados por uma in- crivel preguica ¢ pela falta de sensibilidade, por uma yontade instintiva e uma evidente fraqueza mental, es- ses homens seriam “bestas decafdas”, muito afastadas de qualquer possibilidade de perfectibilidade ou civ lizagao. O “CONTINENTE INFERIOR” Ganhavam forma, dessa maneira, duas imagens tia negativas: um mundo gasto € degradado, de an Jados um mundo inacabado e imaturo, de outro. A essa Ulti- ma pertspectiva se associara Hegel, com sua ee clio sobre as duas Américas: a angl6-saxOnica ¢ a iberica as: Apuid Gerbi (1982), p. 7, nota 15. Raga Como Negociagio 21 ou latina. Também nesse periodo, e incentivados pelo rei Maximiliano José I da Baviera, 0 zodlogo Johann Baptist von Spix e 0 boténico Carl Friedrich P. von Martius realizaram uma grande viagem pelo Brasil, que se imiciou em 1817 e terminou em 1820, apéds terem. sido percorridos mais de 10 mil quilometros. O resultado é uma obra de trés volumes intitulada Viagem ao Brasil (1834) e varios subprodutos, como O Estado de Direito Entre os Autéctones no Brasil (1832). Sobretudo nesse dltimo texto, Martius desfila as ma- ximas de De Paw ao afirmar que, “permanecendo em grau inferior da humanidade, moralmente, ainda na infancia, a civilizacdo nao altera o primitivo, nenhum exemplo o excita e nada o impulsiona para um nobre desenvolvimento progressivo”."* Assim, apesar do elo- gio 4 natureza tropical, contido nos relatos desses “via- jantes filésofos”, a humanidade daquele local parecia representar algo por demais diverso para que a per- cepgio européia encontrasse local certeiro ou mesmo humanizado em sua detini¢4o, mais disposta a achar 0 ex6tico do que a dar lugar 4 alteridade. A América era nio apenas imperfeita mas também decaida, e assim estava dado 0 arranque para que a tese da inferiorida- de do continente, e de seus homens, viesse a se afir- mar a partir do século 19. O fato é que, seja nas versGes mais positivas, seja nas evidentemente negativas, esse entio Novo Mundo sempre foi “um outro”, marcado por suas gentes, com, costumes tio estranhos. Isso tudo num periodo em que. “raga” nem ao menos existia como conceito definido. Ou seja, seo conceito data do século 16, as teorias ra- clus sdo ainda mais jovens: surgem em meados do 18. Martins, O Estado de Direito Entre os Autéctoues no Brasil, p.56. 22, Racisme no Brasil Além disso, antes de ter ficado vinculado 4 biologia, 0 termo compreendia a idéia de “grupos ou categorias de pessoas conectadas por uma origem comum”, nio indicando uma reflexiio de ordem mais natural." O "LABORATORIO RACIAL” BRASILEIRO Foi s6 no século 19 que os teéricos do darwinismo racial fizeram dos atributos externos e fenotipicos ele. mentos essenciais, definidores de moralidades e do devir dos povos.'* Vinculados e legitimados pela biologia, a grande ciéncia desse século, os modelos darwinistas so- ciais constituiram-se em instrumentos eficazes para jul- gar povos ¢ culturas,a partir de critérios deterministas, e, mais uma vez, o Brasil surgia representado como um. grande exemplo; dessa feita, um. “laboratério racial”. Apenas dessa maneira se explica, por exemplo, que ji em 1844 0 recém-criado Instituto Historico e Geo- grafico Brasileiro tenha realizado seu primeiro coneutso, apresentando como mote o seguinte desafio: “Como Escrever a Histéria do Brasil”, Mais interessante do que a proposta em si (indicativa de como naquele momento se “inventava uma histéria local”, que deveria ser dife- rente daquela da metr6pole portuguesa) foi o resultado, © vencedor foi o naturalista estrangeiro Von Martius, defensor da tese de que a trajet6ria brasileira seria construida através da mistura de suas trés ragas:“Devia ser um ponto capital para o historiador reflexivo mostrar Bonton, p. 264. “Paumos falindo de autores como Gobineau, Le Bon ¢ Ts una correligio entre atributos externos (fisicos) ¢ int o das na que procuraram Jo dh raya tnt elemento ontolégico € defimdor do fiat Raga Como Negociagio 23 como no desenvolvimento sucessivo do Brasil se acham estabelecidas as condigdes para o aperfeigoamento das trés racas humanas que nesse pais si0 colocadas uma ao lado da outra, de uma maneira desconhecida na historia antiga e que devem servir mutuamente de meio ¢ fim’’.'5 Utilizando-se da metafora de um poderoso rio purificador, correspondente 4 heranga portuguesa, que deveria“absorver os pequenos confluentes das ragas India e Ethiopica”’, 0 Brasil surgia representado pela particula- ridade de sua miscigenagao. O pais seria, portanto, o re- sultado futuro e promissor da convergéncia de trés afluentes diferentes, que faziam as vezes das ragas ~a branca, a negra e a vermelha —, e sua singularidade ficava vincu- lada 4 conformagao especitica de sua populacio. Nio foi acidental, alids, o fato de a monarquia brasileira, recém-instalada, ter investido numa sim- bologia tropical, que misturava elementos das tradi- cionais monarquias européias com indigenas, poucos negros e muitas frutas coloridas. Tornava-se nesse nomento complicado destacar a presenga africana, uma vez que ela lembrava a escravidao; mas nem por isso a tealeza abriu mio de pintar um pais que se caracterizava por sua coloragao racial distinta. Nio ‘obstante, se logo apés a independéncia poli- ica de 1822 as elites intelectuais locais, adeptas da voga do romantismo, selecionaram no indigena (mitificado e alastado da prépria realidade) um modelo de nacio- nialicade, ja em finais do século 19 os negros e mesticos, ite entio ausentes da representagao oficial, acabaram vendo apontados como indices definidores da degene- ‘gio, Ou Como os responsiveis pela falta de futuro des- te pais. Autores como Nina Rodrigues, da Escola de Martins, "Como Escrev a Hist do Brasil”, p. 381. 24 Racisnio no Brasil Medicina da Bahia; Silvio Romero, da Escola de Reci- fe; ¢ Jodo Batista Lacerda, do Museu Nacional do Rio de Janeiro, entre tantos outros, destacaram “as mazelas da miscigenagao racial” e, informados por teorias es- trangeiras, condenaram a “realidade mestiga local”. A interpretacao realista da geracdo dos anos 1870 se contrapés, dessa maneira, 4 fei¢do positiva cuidado- samente imaginada pela elite imperial. Surgindo na contramio do projeto roméntico, os autores de final do século inverterao os termos da equagao ao destacar os “perigos da miscigenacio” e a impossibilidade da cidadania. J4 em maio de 1888, um artigo polémico, assinado por Nina Rodrigues, aparecia em alguns jor- nais brasileiros. Nele, 0 médico ajuizava: “os homens nao nascem iguais. Supde-se uma igualdade juridica entre as ragas, sem a qual nao existiria o Direito”. Desdenhando do discurso da lei, logo apés a aboligio formal da escravidio, esse “homem de sciencia” passa- va a desconhecer a igualdade e 0 proprio livre arbi- trio, em nome de um determinismo cientifico e racial Nina Rodrigues nao se liniitava, porém, aos perio- dicos. Em 1894, publicou As Ragas Humanas e a Res- ponsabilidade Penal no Brasil, em que nio s6 defendia a proeminéncia do médico na atuacio penal, como ad- vogava a existéncia de dois cédigos no pais — um para negros, outro para brancos —, correspondentes aos diferentes graus de evolugio apresentados por esses dois grupos. Falando de um lugar privilegiado, inte- lectuais como Nina Rodrigues entendiam a questao nacional a partir da raca e do grupo e, dessa maneira, inibiam uma discussao sobre cidadania, no contexto de implantagao da jovem Reptblica. A adoga io. desses modelos nao era, como se pode imaginar, tio imediata, mesmo porque implicava concor- dar que uma nacdo de ragas mistas, como a nossa, era in— Raga Como Negaciagio 25 idvel e estava fadada ao fracasso. No entanto, se interna- mente a interpretacio gerava posigdes paradoxais, parecia ndo existir ditvidas com relac4o 4 visio que vem de fora: 0 Brasil havia muito tempo era entendido como um“labo- ratorio racial”, um lugar onde a mistura de ragas era mais interessante de observar do que a prépria natureza. Agassiz, por exemplo, viajante suico que esteve no Brasil em 1865, fechava seu relato da seguinte maneira: “que qualquer um que duvide dos males da mistura de ragas, e inclua por mal-entendida filantropia a botar abai- xo todas as barreiras que a separam, venha ao Brasil. Ndo poderd negar a deterioragao decorrente da amil- gama das ragas, mais geral aqui do que em qualquer outro pais do mundo, e que vai apagando rapidamente as melhores qualidades do branco, do negro ¢ do indio, deixando um tipo indefinido, hibrido, deficiente em cnergia e mental”.!° Gobineau, que permaneceu na corte do Rio de Janeiro durante quinze meses, como enviado francés, queixava-se: “Trata-se de uma popu- ligdo totalmente mulata, viciada no sangue e no espiri- to © assustadoramente feia”.!” Gustave Aimard, que andou pelo pais no ano de 1887, assim descrevia 0 “es- peticulo das ragas” que assistia: “P’ai remarqué un _fait singuiicr que je n'ai observé qu'au Brdsil: c’est le changement ui s'est opéré dans la population par les croisement des ra ily sont les fils du sol” [Observei um fato singular, que s6 envontrei no Brasil:a mudanga que se opera na popu- lagio pelo cruzamento das ragas— sao os filhos do solo]."* Nao se trata aqui de acumular exemplos, mas ape- tas de demonstrar como, nesse contexto, a mesticagem Apisiz, p71 Hacders, p. 96

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