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LETRAS CLASSICAS, n. 7, p. 11-24, 2008 A CATARSE NA COMEDIA AADRIANE DA SILVA DUARTE* Faculdade de Filosofia, Letras e Ciéncias Humanas Universidade de Sao Paulo RESUMO: A partir da revisdo das varias teorias da catarse cémica, esse artigo busca discutir as emocées envolvidas nesse processo tendo em vista a comédia aristofanica. Ao final, vendo em vista a teoria aristotélica das paixies, aponta-se a indignagao e a confianca como as emogées que possibilitam a eclosao do riso, 0 veiculo da catarse. PALAVRAS-CHAVE: catarse; Aristteles; Poética; Retérica; comé- dia grega antiga. Qualquer abordagem da cararse deve iniciar-se com a adverténcia das suas limitagdes. Fago minhas as palavras de Campbell (2001: 233) em um artigo recen- te que promete uma nova luz sobre um assunto to polémico: “Qualquer interpre- tagio da catarse 6 inevitavelmente especulativa ¢ sempre suspeita devido A con- trovérsia que cerca seu significado”. Apesar das dificuldades inerentes A questa, muitos se debrucaram sobre ela. Eudoro de Souza (1986: 98-99), no estudo introdutério & sua tradugao da Poética, nota que a grande quantidade de estudos dedicados a catarse “tradu: nao somente 0 interesse, como também o desespero, perante o indecifravel enigma daquelas palavras em que o Filésofo mais nao diz sendo que a tragédia, suscitando terror e piedade, tem por efeito a purificagdo desses sentimentos”. Vale lembrar que, no corpus aristotélico, o termo catarse aparece uma nica vez na Podtica (1449 b 27) e outra na Politica (VIIL 7), sem que qualquer definigao lhe seja aposta. Embora os mistérios da catarse, ou seja, como ela opera no espectador, no estejam no cere desse artigo, dedicado mais 2 definigSo das emogoes cOmi Professora de Lingua ¢ Literatura Grega atualmente na graduagio (PPG de Letras Classicas). Pesquisadora do CNPy (PQ). Duarte, Adriane da Silva. A catarse na comédia envolvidas nesse processo, considero imprescindivel apresentar um breve apanha- do das interpretagées preponderantes. Para isso, valho-me novamente de Campbell (2001: 226-227), devido ao seu poder de sintese ¢ clareza! A interpretagio da catarse pode ser dividida, mais ou menos, entre duas escolas. Ka@apés, sem qualquer raiz indo-européia evidente, abrange um espectro de significados que vai do fisicamente limpo a0 abstratamente puro. O adjetivo KaBapdg produziu 0 verbo KaSait pea que nos deu em troca o substantivo verbal kaWoperc. Purifica- cao religiosa e purgacao médica, com seus significados técnicos, su- gerem as duas principais escolas de interpretagio. O sentido de “pu- rificagdo” na catarse foi redefinido certamente desde Lessing para significar “educagao” — especialmente a educagao das emogoes. [...] A outra interpretago da catarse deriva da idéia de “purgacio”, que foi identificada por J. Bernays, que na dltima metade do século pas- sado |i. é, séc. XIX] estabeleceu a questo a partir de uma referéncia cruzada na Politica. Catarse, ele argumentou, significava a elimina- ao da emogao excessiva e uma restauragao temporaria do equili- brio emocional na audiéncia2 Richard Janko (1984: 142 e 2001: 65) se refere as duas correntes como “purgacio- nista” e “homeopética”, na medida em que defendam a supressiio, ainda que mo- mentéinea das emogdes tnigicas, ou a sua depuracio, visando & moderagio na vida real. A elas, veio a se somar recentemente uma v defende a purificagao, através da piedade e do terror, dos sentimentos contrarios a estes, como a impiedade e o excesso de confianga.? Como se vé, a catarse aristotélica produziu toda uma farmacopéia. Com isso torna-se claro que nao ha uma teoria aristotélica da catarse e sim teorias da catarse aristotélica Um ponto consensual entre as diversas vertentes € a crenca de que a catarse est no néicleo da resposta aristotélica a teoria da mimese de Plato e da sua conseqiiente condenagao da poesia expressas no livro X da Repiiblica’. Se, para ‘Também so Gteis as sinteses de Golden (1976), Janko (1984: 139-150) ¢ Halliwell (1997; 89-92). > Cf Bernays (1979:154-165). > CEE. S. Belfiore, a partir de Nehamas (1994: 273, n. 27). Nem mesmo nese ponto hé unanimidade. Embora concorde que esse pre aceito quase universalmente, Nehamas (1994: 275-277) di posto & orda que 0 conceito de -12- LETRAS CLASSICAS, n. 7, p. 11-24, 2008 0 fundador da Academia, as artes miméticas, e muito especialmente a tragédia, sio nocivas por apelar diretamente a parte irracional da alma, suscitando emogies que, no trato social, deveriam ser contidas, para o Estagirita, esse mesmo proceso teria por resultado, senao a climinagéo de determinados sentimentos, a sua educagio. Dessa maneita, a arte, ao garantir 0 equilibrio dos cidadaos, agiria antes em beneficio da sociedade do que em seu prejuizo. Se a situagao j4 € nebulosa no que conceme A tragédia, fica ainda pior quando a comédia est em foco. De inicio, pode-se questionar a pertinéncia de usar o termo em relagio 8 comédia j& que nenhuma passagem da Poética traz essa associagao. Vale lembrar a definigaio que Aristoteles dé a0 género (1449 a 32): A comédia é, como dissemos, imitagio de homens inferiores Iniunors davdotépay]; no, todavia, quanto a toda espécie de vi- cios [Kaxxiav], mas s6 quanto Aquela parte do torpe [100 alioxpo8] que € 0 ridiculo [yeAciov]. O ridiculo € apenas certo defeito [owapenucr], torpeza anddina e inocente [indolor e nao destrutiva, dvdSvvov Kai od GOaptLKdv]; que bem o demonstra, por exemplo, a maseara cOmica, que, sendo feia e disforme, nao tem [expresso de] dor* Como se vé, o que caracteriza a comédia para 0 Filésofo € 1) a mimese de homens inferiores (uiwnorg dorvdotépwr) e 2) a sua participagio no ridiculo (ou risivel, yeAviov). Ao contrario do que ocorre na definicdo da tragédia (1449 b 24), nada se diz sobre a catarse ou sobre as emog6es que estariam envolvidas nesse processo. Essa auséncia, significativa ao meu ver, nfo desencorajou os que preferiram justifica-la alegando que a aplicagao da teoria da catarse & comédia integraria 0 segundo livro da Poética que, infelizmente, teria se perdido.’ O emprego do condi- catarse constitua a resposta de Aristételes as crfticas de Plato A poesia e propde uma interpretactio do termo que independe desse contexto. Toxlas as citagdes da Poética sao da tradugao de Endoro de Souza, of. Aristoteles (1987) A titulo de exemplo das especulagdes as que a questo da margem, cf. Janke (2001: 52) “A Poética de AristSteles perdeu 0 seu segundo livro, que tratava da comédia e da catarse, em algum momento da Antigdidade cardia. [...] A verdade pode ser mais prosaica [do que supdc Umberto Eco em O Nome da Rosa]: a Poética foi aposta como iiltimo item na colegio das obras ldgicas de Aristoteles, seo segundo livro chegou mesmo a ser transferido do rolo para o codex, o que pode nunea ter acontecido, ele ocuparia a parte final do volume estando mais sujeita a cair caso a costura se afrouxasse”” -1B- Duarte, Adriane da Silva. A catarse na comédia cional na frase anterior evidencia o alto grau de especulagio que a questio suscita. Que Aristétcles tenha dotado a Poética de um segundo livro, € algo que esta longe de ser consensual entre os estudiosos ¢ cuja solugao parece estar bem distante tendo em vista as fontes de que (nao) dispomos. Se, por um lado, néo se conhece 0 testemunho de qualquer leitor desse famos 0 livro, outro silancio elogiiente a9 meu ver, por outro temos a passagem da Politica (VIII 7, 1341 b 32 ss) que remete & Poctica para elucidacao do termo e o final sugestivo, mas estropiado, de um dos trés manuscritos que nos chegaram desse texto (1462 b 16)?: Falamos, pois, da uagédia e da epopéia, delas mesmas e das suas espécies e partes, néimero e diferencas dessas partes, das causas pe- las quais resulta boa ou ma a poesia, das criticas e respectivas solu- gGes. Dos jambos ¢ da comédia... itélicos meus]. Estimulados por essa vaga promessa (2), vérios estudiosos se langaram em busca de fontes que permitissem reconstituir 0 contetido do livro perdido. Merece destaque 0 esforgo de Janko (1984), que viu num tratado do sée. X d.C., 0 Tractatus Coislinianus, uma fonte privileginda para tal tarefa. A tese de Janko (2001: 52) éa de que o Tratado contenha um resumo, em formato esquemético, da Poética TI, constituindo, portanto, um testemunho direto da teoria aristotélica sobre a comé- dia. Ele mesmo reconhece que os problemas de corrupgao textual as inconsistén- cias do Tratado sio obstaculos para a aceitagio de seu ponto de vista, hoje ampla- mente questionado.’ Apesar disso, toda a discussio da catarse cémica tem aqui 0 seu inicio, uma vez que, no documento, comédia e catarse aparecem associados na propria definigo do yénero: IV. A comédia é imitacio de uma ago risivel e de grandeza imper- feita, completa, em linguagem ornamentada, separada em varias es- 7 Somente 0 MS Riccardianus 46 registra esse inicio de frase . es advei Como exemplo das re: ¢ a observagio feita por M. Heath (1988: 344): “Meu objetivo nesse artigo € recosinderar varios aspectos da reflextio de Aristoteles sobre a comédia & luz do corpus aristorélico. Eu no devo dizer nada sobre o Tractarus Coislinianus, um pequeno documento obscuro ¢ contencioso, que (a despeito dos esforgos enérgicos de Richard Janko para restaurar scu crédito) permanece um ponto de partida inadequado para a discuss.” Sobre Aristotle on Comedy de Janko, cle diz (n. 1) ser “um livro amplamente admirado ¢ desacreditado”, arrolando seus criticos. Cf. também 0 balango feito pelo proprio Janko (2001: 52-52) da recepgaio de scu livro. -iM4- LETRAS CLASSICAS, n. 7, p. 11-24, 2008 pécies [de ornamento] em cada uma das suas partes, [a imitacio se da] com atores e nao pela narrativa; pelo prazer e pelo riso efetuan- doa catarse de tais afecgdes. E tem como mae o riso.? Antes de entrar propriamente na discussio do significado desse texto para concep- 40 da catarse cémica, gostaria de apontar para o paralelismo, quase que absoluto, que ha entre essa passagem ¢ a definigio da tragédia na Poética (1449 b 24). Vou reproduzir os dois textos em grego para ressaltar a simetria que guardam entre si: Eotw oby tpory@dta Lipmorc mpokews omovdaiiac Kai tehetarg néyeBog ExovONG, HSvopevw AOyw Ywpic ExGoww vow eBaw EV Wig Hopioic, Spavrww Kail od BL dmayyeAiac, bY EALOV Ka Bou mEpatvovse. Thy Tév toLlobtoy RaOnLdceov KoHapaLW. (Pod tica)" Kau@diar Loti piunors mpokews Yehotac Kai Gpoipov Leyebovs, TERE, Ywpic EKG TOY Lopiwy EV TIS eiBeor, Spavtwv Kai bi lmayyeriac, 8L HBoviig Ka YeL@tog Tepaivovsa Thy Ta ToLovTOY nAATLOTOD KOBAPCLY. Exe de untépa tov yeAwra, (Tructatus Coislinianus). O texto do Tratado sofreu diversas corregées — 0 aparato critico é considervel - ¢ dois acréscimos, indicados pelos parénteses obliquos, cuja base declarada foi a definigfo da tragédia na Poética." Tal semelhanca, ao invés de corroborar a auten- ticidade do texto do Tratado, langa ainda mais suspeitas sobre ele, sugerindo que seu autor se valeu de um procedimento grosseiro, ou seja, o de produzir uma defi- nigao para a comédia caleada na que a Poética apresenta para a tragédia, pois, 9 Janko (1984) editou ¢ traduziu o Tratado para o inglés, em portugués hi uma tradugio de Possebon (2000), inserida entre os anexos que fazem parte de sua dissertacao de mestrado. A tradugo aqui apresentada 6, no entanto, minha. (Aristételes, 1986:110): “E, pois, a i imitagio de uma acgio de cardter elevado, completa ¢ de certa extensio, em CE. a tradugao da passagem por Eudoro de Sot tragé linguagem ornamentada ¢ com virias espécies de ornamentos distribufdas pelas diversas, partes [do drama], [imitag30 que se efectua] nao por narrativa, mas mediante actores, € que, suscitando o terror e a piedade, tem por efeito a purificagio dessas emogies” 1 Para uma avaliagao da passagem, cf. Janko (1984: 151-153). Em outro texto (2001: 65), © mesmo autor declara que a “definicZo foi emendada para fazer sentido (¢ para fazt-la mais aristotélica) por virios estudiosos, eu mesmo por Gltimo e por final”, -15- Duarte, Adriane da Silva. A catarse na comédia como nota Janko (1984: 151), “é de se presumir que as definigdes dos termos dada na Poética 6 nao seriam repetidas na Poética II”. Mas os problemas nfo param por ai. A anélise do contetido mostra que 0 paralelismo é em parte aparente, ao menos no que concerne a catarse. Embora 0 Tratado atribua a catatse cmica a ago de dois elementos, 0 prazer e 0 riso (8t ABovAig Kol 7éRert0G), assim como a tragica, na Poética, esta associada a pie- dade e ao terror (8 EACOU Koi G6Bov), a simetria entre esses elementos se rom- pe. Nos dois textos, piedade, terror, prazer e riso si definidos como emogies (noOnwérv), mas no me parece evidente que eles de fato o sejam e nem que Aristételes os colocasse num mesmo patamar. Esse desequiltbrio foi logo notado pelos eriticos do pretenso aristotelismo do Tratado. A principal objecto diz respeito & pertinéncia de arrolar o prazer (8ovq) como um dos propulsionadores da catarse cOmica. Bernays (a partir de Janko, 1984: 157) nota que, sendo 0 riso subordinado ao prazer, conforme 0 pré- prio Aristételes estabelece na Retérica (1 11 1371 b 35), os termos nao deveriam aparecer coordenados. Na mesma obra, o Filésofo apresenta uma definigtio de emogao da qual fazem parte 0 prazer ea dor. Diz ele (IT 1 1378 a 19): As paixdes (ta:60n) sao todos aqueles sentimentos que, causando mudanga nas pessoas, fazem variar seus julgamentos, e sfio seguidos de tristeza e prazer (AOm Kot f8ovh), como a célera, a piedade (E 2e0¢), © temor ($6Bo¢) ¢ todas as outras paixdes andlogas, assim como os seus contrarios.!? Se a certas emogiies segue-se o prazer, isso significa que Aristételes nao o conside- rava um pathos como é 0 caso da piedade e do terror, ali denominados. Além disso, na Poética, Aristételes reconhece a existéncia de um prazer proprio a tragédia (XIV, 1453 b 8): Quanto aos que procuram sugerir pelo espeticulo, néo o tremendo, mas 0 monstruoso, esses nada produzem de trégico; porque da tra- gédia nao ha que extrair toda a espécie de prazeres (Soviv), mas Uo $6 0 que lhe € proprio (viv otxetav). Ora, como o poeta deve "As tradughes do segundo livro da Ret6rica so de Isis Borges B. da Fonseca (Cf. Aristiteles, 2000). -16- LETRAS CLASSICAS, n. 7, p. 11-24, 2008 procurar apenas 0 prazer (fibovfv) inerente a piedade e ao terror, provocados pela imitagao, bem se vé que é da mesma composi¢ao dos factos que se integram tais emogoes. Esse prazer tragico esta, como se vé no texto, associado ao sentimento de piedade ao terror e, portanto, efeito da catarse e nao seu objeto — ao contrario, ja que as emogées tragicas so por natureza dolorosas. O mesmo raciocinio deve valer para a comédia, ja que Aristételes se refere explicitamente a “um prazer que lhe é pré- prio” por oposigo ao tragico (XIII, 1453 a 10)."° Ora, tal prazer deve ser inerente a certas emoges e nfo a si proprio. Diante da inadequagio do termo, Golden (1987: 169) vai buscar no pré- prio Aristoteles, no segundo livro da Retérica, que trata das emoges, 0 equivalen- te cOmico para o par tragico terror e piedade. A solug&o me parece especialmente engenhosa porque a obra nos pe em contato direto com a visio aristotélica das paixdes e porque 0 Fildsofo mesmo indica para cada uma das emogées analisadas a que Ihe € contréria." A idéia se sustenta na observagio de que Aristételes vé a comédia como a antitese da tragédia. Da definigio do género na Poética (1449 a 32, citada acima), depreende-se que a comédia imita “homens inferiores” (uipnorg gahorépay), enquanto a tragédia é imitagio de uma “aco de carater elevado” (hizimors mpéfews cnovsaias). Esse contraste entre omovdatiog ¢ dahog € recorrente na Poética (1448 a 1-2; 1448 b 24-27) e indice da polarizacao com que Aristételes trata os géneros dramaticos. Heath (1989: 352) acrescenta a isso o fato de Aristételes frisar 0 carter anédino e nao destrutivo (1449 a 32, avoBvvov Kat ob o8aptiK6v) da comédia por oposicao A tragédia, cujo enredo contempla a ca- tastrofe, descrita como ago destrutiva e dolorosa (1452 b 11, mpaéug O0aptuct A d8vnpé). Com tudo isso em vista, Golden (1987: 170) conelui: J4 que tragédia e comédia so postas por Aristételes em oposis polar no que concerne ao tipo de ago e carter que representam, a “Cabe o segundo lugar, nao obstante alguns the atribuitem o primeiro, 8 tragédia de dupla intriga, como a Odisséia, que ofcrece opostas solugies para os bons e para os maus. [...] Mas 0 prazer que resulta desse géncro de composigées € muito mais proprio da comédia, porque nela os que sio na lenda inimicissimos, como Orestes e Egisto, se tornam por fim amigos e nenhum deles € morto pelo outro”. Contra a opiniso de que o tratamento dado por Aristételes as emogées na Retérica ¢ superficial ¢ eivado de [ugarcs-comuns por estar subordinado a uma finalidade pritica, cf. Fortenbaugh (1979) © Nehamas (1994: 262) -17- Duarte, Adriane da Silva. A catarse na comédia identificagio de vepeoav como antonimo de EAeog fornece uma pista sugestiva para o desvelamento de um aspecto importante da teoria aristotélica da comédia. Na Retérica II, Aristételes aponta vepeody, indignacao, como a emogao contraria & EAe0g, piedade. Vejamos a sua definigéo (1386 b 8): Opde-se A compaixiio (1G kAe€iv) sobretudo o que se chama indig- nacdo (vepecdy); com efeito, ao sentimento de pesar pelos infortd- nios imerecidos contrapée-se, de certa maneira, ¢ procede do mes- mo cardter, o pesar (t Avia) pelos sucessos imerecidos. Am- bos os sentimentos (ttxn60n) decorrem de um caréter honesto. Deve- se sentir aflicao e compaixao pelos que sio infelizes sem o merecer, ¢ indignago pelos imerecidamente felizes Que a indignagao esteja profundamente implicada na comédin, testemunham as comédias de Arist6fanes, pois é justamente esse sentimento que move o heréi cémico. De um Diceépolis, em Acamenses, insatisfeito com as regalias de embai- xadores e politicos em contraposi¢ao aos sofrimentos causados pela guerra & popu- lacdo, a um Cremilo, em Pluo, inconformado com o enriquecimento imerecido de pilantras de vérios tipos enquanto os honestos sio relegados & pentiria, todos os herdis aristofinicos se revoltam contra uma situag3o que consideram injusta. Por- tanto, é natural pensar que essa indignagiio comunique-se de alguma forma A pla- téia tornando-se imprescindivel para que haja aquela explosio de riso decorrente do castigo dos desonestos. Como observa Aristételes (1386 b 24) | quem sente pesar pelos que imerecidamente sao infelizes se ale- grar4, ou pelo menos nao experimentara pesar pelos que merecida- mente so infelizes [...]. Assim, aquele “bem-feito” que acompanha a gargalhada diante de um Paflagdnio condenado a vender salsichas nos portées da cidade, em Cavaleiros, ou do Pensatério em chamas n’ As muvens, nasce antes de mais nada do sentimento de indignagao. justamente esse riso zombeteiro diante de um adversirio batido a forma mais fre- giiente de riso nas comédias aristofanicas, segundo o levantamento feito por Sommerstein (2000: 68). Nesse ponto, Golden dé-se por satisfeito ¢ abandona a questo. Para ele, assim como para a maioria dos comentadores, é mais facil engolir 0 riso como um -18- LETRAS CLASSICAS, n. 7, p. 11-24, 2008 dos elementos envolvidos na catarse céimica do que o prazer.! Isso acontece por- que, na definigao de comédia na Poética (1449 a 32, citada acima), Aristételes aponta o risivel ou o ridiculo (yeAdiov) como sua esséncia. Com certeza 0 riso diz respeito & comédia e pode-se imaginar com facilida- de o papel que ele desempenharia na catarse cémica. Assim poucos discordariam do autor do Tractatus Coislinianus quando afirma que a comédia “tem como mae 0 riso” (tov yékcora,, citado acima). No entanto, o que nao é claro para mim, é a fungio desse elemento no processo catértico. Um dos maiores problemas implicados no exame da questo € de natureza terminolégica. Como bem observou Scruton (1982: 198): Riso & um termo enganoso. Nés o empregamos para indicar sons emitidos por alguém que est sob efeito de cécegas, certas expres- ses de escémnio ou espanto, 0 ‘riso oco’ que acompanha a percep- fio da ruina de alguém. Em seu sentido mais amplo (no qual denota um som produzido pela boca de um ser sensfvel) n6s usamos o mes- mo termo para as hienas. A essas acepgées, valeria ainda acrescentar a definigéo de riso enquanto um fend- meno fisico que envolve a contrago muscular de mis is, como, por exem- plo, o ricto involuntario dos mortos ou de certos doentes. Esse quadro & bem ver- dadeiro no que respeita a Grécia Antiga. Embora 0 vocabulério do riso e do rir comporte alguma variedade, os gregos, sobretudo os do perfodo clissico, elegeram yéhac, yehow e seus derivados para dar conta dos diversos espectros que o fend- meno comporta.!® los faci Primeiramente € preciso estabelecer se 0 riso é uma emogio, um pathos, para os gregos e muito particularmente para Aristéreles. Nfio me parece que esse seja 0 caso, jf que considero o tiso antes de mais nada como veiculo para a expres- sfio de uma emogio ou de uma sensagio (fisica, no caso das eécegas) ¢, nesse % Golden (1987: 172) propée que a indignagio seja 0 equivalente cOmico do terror ¢ piedade tragicos, tendo em vista a interrelagio existente entre eles ¢ o fato de Arist6teles notar que o sentimento de indignagio por alguém que ¢ feliz sem merecer se mistura freqtientemente ao de terror, caso esse alguém esteja em condigao de nos ameagar. CE Eire (2000: 14): *Fortanto, os gregos possuem trés palavras, € conseqiientemente turds nogGes, para enunciar de modo especffico a ago de ‘rit’, que se exprime de modo geral pelo verbo yea.” Ver também Sommerstein (2000: 65-66). -19- Duarte, Adriane da Silva. A catarse na comédia sentido, um fendmeno assemelhado ao choro. Fortenbaugh (2000: 333), num es- tudo sobre o tratamento das emogies em Aristételes, dé-nos uma pista para o tratamento da questo ao observar que na Retérica, embora o Fildsofo reconhega a importancia do riso para 0 orador, [...] ele nao Ihe dedica em parte alguma um tratamento detalhado comparavel aquele da célera, do medo ou de outras emogies que ele agrupa sob a etiqueta de pathos. Mais adiante, Fortenbaugh esclarece que o riso constitui uma resposta emocional a0 que é prazeroso, resposta essa que se apresenta em miiltiplas formas. O fato de ser deflagrado por uma emogao nao implica a sua irracionalidade, pois como 0 mesmo autor se esforgou por demonstrat, 0 processo cognitivo uma parte essen- cial da resposta emocional (1979: 134). Embora suponha que o riso possa ter rece- bido da parte de Aristételes um tratamento semelhante ao das emogoes na Retéri- ca, Fortenbaugh (2000: 342) aponta, no decorrer da sua andlise das varias espécies de riso, as emogGes que, a0 seu ver, estariam implicadas nesse processo, a saber, a inveja ou a célera. Vale lembrar que ele pensa o fendmeno em sua multiplicidade e no na sua aplicagao A comédia antiga. Feitas e: s observacdes, proponho retomar a discussfio no ponto em que Golden a deixou. Nunca entendi porque ele nao estendeu ao terror (Bos) 0 mesmo raciocinio que empregou para a piedade (£480¢), buscando no seu contr’- tio © outro elemento que ao lado da indignagio (veweodv) comporia o par das emog6es cémicas. Examinemos o que diz Aristételes na Retérica (1383 a 19): O que inspira a confianga (Soppa.éq) € o distanciamento do temivel ea proximidade dos meios de salvacao. E igualmente se ha meios de reparagiio e de protego numerosos ou importantes, ou as duas coi 40 mesmo tempo; se nao sofremos nem cometemos injustiga; se abso- lutamente nao temos antagonistas, ou eles nao tém poder, ou se, ten- do poder, os amigos, ou nos fizeram um favor ou o receberam, de nés. Qu entao se os que tém os mesmos interesses que nds sao mais numerosos ou mais fortes, ou as duas coisas ao mesmo tempo. Ss Zio nos Em vista dessa definicao, pode-se afirmar que € 0 sentimento de superioridade de imunidade que sustenta a sensagao de confianga. E justamente esse estado que € normalmente apontado como essencial para que se produza o riso. Como nota Fortenbaugh (2000: 345), se extrairmos plenamente as conseqiigncias das obser- -20- LETRAS CLASSICAS, n. 7, p. 11-24, 2008 vagies da Poética sobre o objeto da imitagio cémica, os homens inferiores (gavrotépev), concluiremos que: [...] 0 julgamento que faz rir € uma comparagao de duas pessoas: uma que 6 considerada inferior e outra que ri. A tiltima se imagina superior e seu riso pode ser mais ou menos uma expressio de satisfa- a0 devida a sua propria superioridade. ‘Também o herdi cOmico, ao zombar de um adversério batido, faz isso imbuido do sentimento de confianga. Esse inimigo, destitufdo de seu poder e autoridade, nfo representa mais nenhum perigo para o her6i ou para os seus. Este é bem 0 caso de LAmaco ou do Paflagonio, ao final de Acamnenses e de Cavaleinos, respectivamente. A confianga também est na base de outra espécie de riso detectado na co- média aristofinica, Sommerstein (2000: 74-75) aponta, ao lado do riso zombeteiro, a presenga do riso compartilhado em decorréncia de um prazer. Ele relaciona quatro fontes deste riso, a saber: os prazeres da festa; os prazeres do amor; 0 fato de ter escapado a um perigo ou dor; uma reconciliagdo ou reuniio apés uma separagio. No que concerne aos dois tiltimos motivos, especialmente, me parece que o sentimento de confianga, tal qual o descreve Aristételes, esteja implicado. Portanto, séo igual- mente numerosos na comédia de Arist6fanes exemplos de situagdes em que o riso brota desse estado de alma, como mostram os finais felizes, em que todos os obstéicu- los ao bem-estar do her‘i foram superados e no ha mais nada a temer Por fim, nao posso deixar de notar a relagio de reciprocidade que 0 par indignago e confianga mantém entre si, pois s6 se pode expressar livremente a indignagdo quando se est confiante de que se esta a salvo da reacao dos que so alvos dela. Numa conhecida passagem das Viagens de Gulliver, Swift imagina o encon- tro de Aristételes com todos os comentadores de sua obra desde a Antigitidade. O grupo era tio numeroso ~ ¢ seria ainda consideravelmente maior, se fossem incor- porados os que se dedicaram a essa tarefa nos tiltimos trezentos anos -, que nfo cabia num salao, espalhando-se pelas demais salas e pelo patio do palacio. Ao ser apresentado a dois dos mais ilustres membros do clube, Escoto e Ramus, Aristéte- les “perdeu a paciéncia [...] ¢ perguntou-Ihes se o resto da tribo era constituido de asnos tio grandes como eles?.!” "CE Swift, J. Gulliver's Travels. Harmondsworth/Middlesex: Penguin Books, 1982, p. 242 (parte 3, cap. 8) Duarte, Adriane da Silva. A catarse na comédia Conto essa histdrin somente para frisar que sei os riscos que corro e consci- ente deles nao pretendo que a minha investigagao seja uma reconstrugao do pen- samento de Aristételes sobre o tema. Assim se justifica plenamente o paradoxo que a norteou, ao levar ao extremo o procedimento de clonagem da definigio de tragédia na Poética, antes criticado em relagao ao autor do Tractatus Coislinianus. Apresento antes um exercicio que parte ¢ tem por base elementos da reflexo aristotélica sobre os géneros draméticos e sobre as emagdes. Ads percorrer esse caminho, poder apontar a indignagao e a confianga como as emogdes cémicas que possibilitariam a eclosio do riso, o veiculo da catarse, significa ampliar as possibi- lidades de compreensao da comédia. E uma pequena contribuigao para um debate que estar sempre em aberto. Rererincias Bis.ioGRAricas ARISTOTELES. Poética. Tradugao, introdugao, comentario e apéndices de Eudoro de Souza. Lisboa: Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 1986. ___. Retérica das paixdes. Introdugio, tradugao e notas de Isis Borges B. da Fonse- ca, So Paulo: Martins Fontes, 2000. ARISTOTLE. Poetics. introduction, commentary and appendixes by D.W. Lucas Oxford: Claredon Press, 1972. BERNAYS, J. Aristotle on the effect of tragedy. In Barnes, J.; Schoefield, M.; Sorabji, R. (ed.) Articles on Aristotle. 4. Psychology and aesthetics. London: Duckworth, 1979, p. 154-165. CAMPBELL, J. S. Painless pleasure: catharsis in the Poetics. Les Etudes Classiques, 69, p. 225-236, 2001. EIRE, A. L. 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ABSTRACE This paper intends wo discuss the comic catharsis and identify which emotions play a role in this process, considering the avstotelic definition of passions (Rhetoric, 1) KEYWORDS: catharsis; Aristotle; Poetic; Rhetoric; old comedy.

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