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UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE BELAS ARTES Carla Sofia Verissimo da Costa © patriménio portugués visto pelos viajantes estrangeiros em Portugal na 2*, metade do séeulo XVII: Neoclassicismo~ Romantismo MESTRADO EM TEORIAS DA ARTE 2004 UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE BELAS ARTES Carla Sofia Verissimo da ‘Costa © patriménio portugués visto pelos viajantes estrangeiros em Portugal na 2*. metade do séeulo XVII: Neoclassicismo —Romantismo Dissertagdo orientada pela Professora Doutora Margarida Calado MESTRADO EM TEORIAS DA ARTE, 2004 = eee ell eee ee lee ee ee lee eee ee Agradecimentos ‘Antes de mais-gostaria de agradecer a todas as pessoas que me apoiaram nesta “epopeia”. Como sempre, devo agradecer & minha mie, Maria Natélia Verissimo Santiago, pela forga que me deu nos momentos mais dificeis desta importante etapa da minha vida, Sem as tuas palavras amigas, doces ¢ matemais teria sido impossivel de continuar quando tudo parecia longinquo e desesperante. Queria agradecer também ao meu irméo, que foi um encorajador nato durante aquelas noites em que me senti solitéria @ a sua companhia foi o meu sol nocturno, apesar do barulho, por vezes, incémodo da sua Playstation. Nao me posso esquecer que mereces a miitha verdadeira gratido em relagao a parte informética desta dissertagio. Um obrigado para aqueles grandes amigos que me tém apoiado sempre ao longo dos anos: Cléudia, Paulinha, Maria Joo, Carla Susana, Pedro, Marisa, Francisco, Bruno, Ricardo e Rita. Espero no me ter esquecido de ninguém. Quero dizer — vos que me sinto verdadeiramente privilegiada por me terem concedido a vossa verdadeira amizade. Obrigado pelos melhores anos da minha vida. ‘Nao posso deixar de apresentar um agradecimento especial a alguns colegas de mestrado, entre eles a Luisa, a Fernanda, a Carla, o Saulo e a Isabel. Depois pago — vos um jantar pelos periodos telefénicos que gastaram a ouvirem as minhas lamentagées ¢ teceios durante a elaborag&io deste extenso trabalho. Obrigado pelos vossos sébios conselhos e opiniGes e, principalmente pela vossa amizade. Devo também agradecer a0 Instituto Superior de Novas Profissdes, especialmente a Professora Doutora Teresa Amado, directora da faculdade, por ter depositado a sua confianga em mim e me ter atribuido uma bolsa de estudo, sem a qual ‘meu mestrado nao teria sido possivel. Como se costuma dizer, os tiltimos sfio sempre os primeiros e, neste caso € bem verdade. Quero agradecer do fundo do corago A minha orientadora, Professora Doutora Margarida Calado, que foi incansdvel ¢ se mostrou sempre disposta a ouvir — me, a ajudar — me ¢ a guiar ~ me neste desafio. As palavras munca serao suficientes para expressar 0 quanto fez por mim. Obrigado por ter tornado o meu sonho realidade e, acima de tudo, obrigado pela sua amizade e carinho. Teré sempre um cantiniho guardado no meu coragéo: adoro ~ a, pelo profissionalismo que sempre demonstrou ¢ pela pessoa que é. Acredite que foi um privilégio para mim ter podido trabalhar consigo. Preficio Foram quase meia centena de didrios que, os viajantes estrangeiros da segunda mietade do séoulo XVIIL, escreveram sobre Portugal, deixando seu testemunho para geragdes posteriores. Nesta dissertagdo, 0 patriménio portugués é caracterizado tanto por personagens neoclassicas como roménticas de um modo totalmente distinto. No conjunto, os livros de viagens desta época constituem certamente um elemento importante para entender a transigfio neoclassicismo — romantismo patente no modo de escrever ¢ descrever de cada autor. Baseado em trechos dos dirios de viagens, este estudo pretende elucidar o Ieitor de como viajantes filiados em duas correntes ideolégicas diferentes ¢ opostas véern as paisagens e patriménio deste nosso cantinho Tusitano. We can alinost talk about fifty diaries about Portugal, that were written by foreign travellers in the second half of the eighteen century. They can be seen as testimonies for the future generations. In this dissertation, the portuguese patrimony is caracterized by neoclassic and tomantic characters in a very distinte way. In general, the travel books of this epoch are, certainly, an important element to understand the transition between neoclassicism and romanticism, showed in the writitig and describing manner of each author. Based on sketchés from the travel diarys, this study pretends to elucidate the reader how travellers from different and opposite ideological chairis have séen the landscapes and patrimony in oué little country. indice 1. Agradecimentos 2. Prefaicio 3. Indice 4, Introdugao 5. Capitulo I — Biografia dos viajantes 5.1. Carl Israel Ruders 5.2.Arthur William Costigan 5.3. Miss Janet Shaw 5.4, Robert Southey 5.5. William Beckford 5.6. Major Dalrymple 5.7. Giuseppe Baretti 5.8. José Gorani 3 5.10. Joseph Barthélemy Frangois Carrére 5.11, Heinrich Friedrich Link 12. Bartolommeo Pacca Marqués de Bombelles 5. 5.13. Charles Frangois Duperrier Dumouriez 5.14. Conde de Saint — Priest 5.15. Maurice Margarot 5.16. Vittorio Alfieri 5.17. James Murphy 5.18. Louis Dutens ou M. de Voglie 5.19. José Andrés Comide de Folgueira y Saavedra 5. 20, Francisco Pérez Bayer 5.21, Frade Pedro Rodriguez de Campomanes 5.22. Sir Nathaniel William Bart Wraxall 5. . 23. John Blankett 12 18 28 35 46 48 50 53 55 357 59 62 67 69 3 16 8 80 85 87 89 PRARBABAKHDAY HY . 24. 25. 26. 27. . 28. . 29. 30. 31. 32. 33. 34. . 35. Jens Wolff Francis Collins Richard Croker Alexander Jardine Joseph Martinez Moreno Frade Pedro Rodriguez Mohedano Frade Rafael Rodriguez Mohedano Frade Sebastian Sanchez. Sobrino Leopold Heinrich von Schomburg, Richard Twiss Pierre — Marie — Felicité Dezoteux ou Bardo de Comartin Arsenius .. 36. Anénimos 6. Capitulo 6. 1. Quadro de Portugal 6.3. Anilise de citagdes nos livros de viagens referentes aos locais ¢ monumentos: Neoclassicismo —Romantismo 7. Conclusio 8. indice remissivo 9. Bibliografia 10. Anexos I ; Tabelas Local/Monumento - autores 11. Anexos TI: Figuras 89 89 89 90 90 90 1 1 94, 96 96 96 98 110 290 294 297 304 360 Introdueio A ideia de elaborar esta tese surgiu de uma conversa informal entre mim e a minha orientadora, .a Professora Doutora Margarida Calado jé no segundo ano do miestrado em Teorias da Arte. Durante a parte curricular passaram ~ me varios temas € questdes que poderia aprofundar, mas nenhum deles me suscitou tanto interesse como o que acabei por eleger. No inicio do mestrado pensamos sempre no objectivo pelo qual 0 tiramos, ou seja, fazer uma tese sobre algo que nos fascina. Mas, no final do ano lectivo sto tantos os assuntos que nos interessam que se toma complicado escolher um para discutir, ou porque j4 se encontram estudados demais ou exactamente pelo contrario, Quando enveredamos pelo primeiro caso, caimos muitas vezes no erro de repetinmos 0 que outros ja pesquisaram ¢ analisaram, nfo chegando a uma conclusio totalmente pessoal. No segundo caso, pudemos no conseguir fundamentar correctamente a nossa tese, 0 que a toma superficial e quase inttil como documento futuro, Voltando ao tema escolhido, este tem todo © sentido se pensarmos na minha formagio anterior. Para quem nao sabe e, deve ser muitos, tirando a minha familia, os meus amigos ¢ colegas, liccenciei ~ me em Turismo no Instituto Superior de Novas Profissdes. Porém, esta foi a minha segunda escolha em termos profissionais, visto que a primeira teria sido esquecida j4 no secundério devido & Geometria Deseritiva. Portanto, € facil de deduzir que gostaria de ter tirado um Curso em Artes, mas 0 “fantasma” da Matematica impediu — me de o fazer. Até hoje ainda nao percebi se por cuipa dos professores, se por mea culpa. O que é certo, & que no final de todos estés anos acabei por vir parar ao mundo das artes. E, pénsei porque néo juntar o titi] ao agradavel ¢ escrever uma tese, na qual houvesse uma interligagao entre as duas éreas, nag quais me quis formar? Melhor setia impossfvel de conciliar, Daf, surgiu a ideia de fazer uma dissertagio sobre os viajantes estrangeiros na segunda metade do século XVII em Portugal. Talvez tenha escolhido esta época, porque sempre fui uma apaixonada pelo Romantismo, corrente que nfo faria sentido se nfo a pensarmos como uma contraposigo a0 Neoclassicismo. Esta transigG0 ocorreu exactamente no periodo historico, no qual eu basedi este meu estudo, 1750 - 1800, Nesta altura, muitos foram os viajantes que se deslocaram 2 Portugal com varios intuitos, dependendo da’ sua formagio e objectivos. Na maneira de escrever de cada um deles sobressaia ou a sua veia neoclissica ou roméntica, dependendo dos casos. Porém, nem tudo foi simples na parte de execugdo da tese, apesar do tema me ter parecido perfeito ¢ totalmente adequado 4 minha pessoa, Recorendo a uma expressfio io ha bela sem senfo”. O desafio foi, até esta data, um dos em bom portugués “ majores da minha vida e, isso por um lado fascinou ~ me bastante, mas por outro, 20 Jongo da pesquisa, muitas foram as vezes que me senti perdida ¢ sem forgas para continuar. Na elaboragao do capitulo das biografias, talvez 0 menos interessante, mas necessétio para compreender quem foi quem, o que os moveu a vir ao nosso pais 0 que escreveram acerca dele, deparei ~ me com um caos ¢ disperséo em relago a informagao biogréfica. Muitos esconderam a sua verdadeira identidade por detrés de nomes ficticios', outros nfo tendo sido personagens influentes na histéria, nem sequer possuiam biografia em enciclopédias, bibliografias histéricas ou dicionérios bibliograficos, ou quando a possufam era bastante reduzida’. Isto fez com que eu tivesse de pesquisar em meios de informagio completamente distintos, passando, de um ‘momento para 0 outro, de um livro da altura para a internet, sempre com 0 objectivo de encontrar algo que me dissesse mais acerca deste ou daquele autor. O pior sucedia quando os factos inerentes & vida de cada um deles eram contraditérios nas diferentes fontes. Ai, tive de pesquisar mais e chegar 4 conclusio mais fidvel, comparando textos € datas. Em relagiio, aos idiomas, nos quais os livros de viagens esto originalmente escritos, dependendo da nacionalidade do autor, de inicio pensei ser féicil interpretar que cada um deles descreveu, visto eu ter um conhecimento amplo em varias linguas, entre elas o inglés, francés, alemfio, espanhol e portugués, mas quanto mais longe ia na pesquisa comecei-a aperceber — me que a lingua escrita na altura diferia da de hoje em certas consoantes @ vogais. Facto que néo me era desconhecido, mas sempre pensei que isso s6 se aplicasse ao inglés ¢ portugués. Como € dbvio enganei ~ me redondamente ¢ dei por mim a procurar livros que mie ensinassem a decifrar 0 alemfo ¢ 6 francés do século XVIII. No final deste estudo, cheguei & conclusio que néo era assim to dificil, ‘bastava - me trocar uma ou duas vogais ou consoantes pelas actuais ¢ os textos ganhariam todo. o sentido em termos de escrita e interpretagdo. Um dos casos mais flagrantes ocorreu em relagio A letra s, que tanto no inglés como no francés da época era trocada pelo f no meio das palavras. A maior parte das vezes baseei - me no livro original para fundamentar a minha tese, outras vezes optei pelas tradugSes em portugués dos livros de viagens, mas como é dbvio, néo antes de ler o original, comparando ~ o " Caso de Louis Dutens, conhecido também por M. de Voglie ou de Diogo Ferrier conhecido em Portugal por Arthur William Costigan, ? Ocorreu principalmente com os eclesiésticos. com o trabalho do tradutor. Quando a tradugo portuguesa nfo me parecia a mais adequada, escolhia uma outra numa lingua diferente, com a qual me sentia mais & vontade. Esta dltima hipétese foi sempre utilizada como derradeiro recurso, pois primeiro tentei sempre interpretar 0 original para no perder a veracidade na descrigio dos factos. Ainda na parte inicial de pesquisa, alguns foram os viajantes que nfo consegui estudar, pois os seus didrios de viagem nfo se encontram em nenhuma biblioteca em Portugal, nem na nacional, nem nas cooperantes. Nao tendo tido oportunidade de me deslocar para fora do pafs foi com tristeza que encarei este facto. Dentro da listagem obras de autores néio pesquisados encontram ~ se os anénimos, dos quais mais tarde irei falar, Arsenius, Maurice Margarot, Francisco Pérez Bayer, Jens Wolff e Leopold H. Schomburg Apenas consegui apresentar — vos as biografias de cada um deles. Em relago ao quadro de comparagio entre os varios autores, locais ¢ ‘monumentos posso dizer que foi uma das tarefas mais dificeis de concluir, porém teria sido impossivel de elaborar uma andlise correcta do contetido desta dissertagdo sem este elemento, © quadro veio facilitar a interpretago comparativa autores ~ monumentos c/ou apreciagio geogrifica elaborada no segundo capitulo. 34 dentro do segundo capitulo, comeyou por se tornar complicado eleger quais os escritores que’ se destacavam ¢ que poderiam demonstrar melhor as suas raizes neoclissicas ou roménticas, conforme a maneira de se exprimirem. A primeira pesquisa que fiz foi em relago as profissdés de cada um ¢ conclui que os textos mais interessantes ¢ descritivos foram executados por escritores ¢ homens cultos da época, enquanto que 08 menos significativos foram elaborados por militares ou espiées, talvez porque a sua formagio tenha sido diferente da do primeiro grupo. A partir daqui, apenas me baseei em citagdes que nfo deixassem divides ao Jeitor quanto a corrente seguida por este ou aquele viajante, Para além disso, resolvi estudar somente 0s locais, sitios ¢ monumentos que tivessem sido descritos por mais de um vigjante para que conseguisse estabelecer comparagSes. Por vezes, 0 mesmo local ou monumento foi visto por autores inseridos’ dentro, da mesma corrente, o que também nfo me despertou interesse, pois deste modo o leitor no se iria aperceber da diferenca entre um olhar neockéssico ¢ um olhar romantico langado ao mesmo “objecto”. Outra das dificuldades com a qual me deparei, teve a ver com a divisto de autores segundo a sua corrente neocléssica ou roméntica. Muitos viajantes encontram ~ se dentro das duas correntes, ou seja, numa fase de transi¢do entre ambas, 0 que fez com que no pudesse existir muitas vezes uma distingdo rigida entre uns e outros. Nos casos de transig&o apenas nos conseguimos aperceber da preferéncia neocléssica ou romantica do autor se lermos a sua obra como um todo e foi isto que tive de efectuar, a maior parte das vezes, para conseguir estabelecer distingdes limitativas. Os erros dos viajantes quanto ao sitio onde se encontravam ou monumento que descreviam também se tornaram um obstéculo para mim, pois, a maior parte das vezes, sabia que 0 autor estava errado, mas no conseguia perceber ao certo onde ou o que estava a ver. Para emendar estes factos recorti a guias de Portugal actuais, livros de histéria de arte portuguesa e, principalmente, as minhas antigas sebentas do curso de Turismo, isto no intuito de decifrar a confusdio geogréfica, arquitecténica ou, simplesmente, morfolégica do autor. Para além destas dificuldades, € certo que ocorreram muitos outras, mas de menor importincia, portanto nfo me pareceu oportuno referi ~ las. No final desta introdugio gostaria de dizer — vos em tom de desabafo que a paixiio pelo tema aqui estudado acabou por superar todos os entraves que num determinado momento me pareceram impossiveis de ultrapassdt. Acima de tudo, a execugio desta dissertagio foi um desafio interessantissimo para mim e fez — me perceber que a forga interior do ser himano € senipre maior do que perisainos. 10 Capitulo 1 Bidirafia dos viajantes > Buropa, embora nunca a tivesse considerado uma das mais belas, pois dizia: Carl Israel Ruders Carl Israel Ruders, nascido em Estocolmo no dia 26 de Abril de 1761, fez os seus estudos na Universidade de Upsala, onde ingressou em 1778. Comegou a leccionar como professor em varias escolas suecas, das quais se destaca o prestigiado Liceu C. Strindsberg em Estocolmo. Foi ordenado padre em 1790 depois de um ano como pastor auxiliar da igreja francesa de Estocolmo. Em 1798 veio para Portugal (no reinado de D. Maria 1) ocupar a capelania da Legagio Sueca, tendo sido recebido pelo entio encarregado de Negécios da Suécia em Lisboa, Johan Kantzow, homem de grande reputagio moral, muito bem relacionado entre os elementos do corpo diplomatico acreditado em Lisboa. Na capital portuguesa instalou-se entre a Rua de So Paulo ¢ a Rua do Alecrim, mais exactamente no antigo Beco de Stephens (0 tambérn chamado Arco do Marqués). Desde que chegou a Portugal interessou-se imediatamente pelo estudo da lingua portuguesa e aproveitou também os seus tempos livres para se passear pela cidade, descobrindo-Ihe os encantos. Considerava Lisboa uma das cidades mais importantes da “Tive ‘muitas vezes ocasitio de verificar, a propésito de Lisboa, a verdade deste rifao: que toda a cidade é bela, menos o sitio onde a gente esté! Na verdade, a distancia nem sempre deixa notar as coisas mais ou menos repugnantes que, perto de nds, se mostram claramente”®. A medida que se ia familiarizando com as gentes do nosso pais, comegou a escrever ¢ a enviar regularmente aos seus amigos ¢ companheiros cartas, que os mantinham informados de tudo aquilo que estava a encontrar de novo. Sdo estas as cartas que, compiladas apés o regresso do autor & Suécia, constituem a obra de trés volumes que desde 0 ano de 1805 comegou a ser publicada em Estocolmo, intitulando-se Portugisisk Resa, Breskrifven, Bref Till Vanner. Depois da edigdo, a obra foi traduzida por Link para a lingua alemé ¢ foi ainda parcialmente traduzida e publicada em excertos ¢ irregularmente no Diario de Noticias pelo poeta portugués Antonio Feijé (Ponte de Lima 1860 — Estocolmo 1917), durante a primeira metade do século XIX, com o titulo Viagem em,Portugal. Este poetaera.um diplomata . de carreira, radicado na Suécia por amor & sua esposa. ‘Ainda em 1803, Ruders j4 tinha publicado uma outra obra sobre o nosso pafs, chamada Anmdkningar ofver Portugal (Observages sobre Portugal), da qual-a Beletic 3 Carl Israel Ruders, Viagem em Portugal, 1798 — 1802, p. 29 12 | Review efectuou uma longa resenha, nos mimeros datados de Janeiro a Fevereiro de 1805. Este primeiro livro aparece-nos escrito em mau inglés, provavelmente por algum correspondente sueco. ‘Na introdugdo da obra Viagem em Portugal, Ruders comega por mencionar varios autores que escreveram sobre Portugal, entre eles: Murphy, que considera dar a melhor e mais correcta imagem e informacao sobre o pais nos livros Travels in Portugal © General View of the State of Portugal (1798); Southey, como tendo dado uma ideia deturpada e cheia de preconceitos em relagdio & nossa nagdo no seu livro Letters Written During a Short Stay in Spain and Portugal(1797). desenvolvimento do livro, propriamente dito, & constituido por trinta ¢ seis cartas. ‘Na primeira, Ruders fala-nos da sua residéncia em Lisboa, dos seus passeios pela capital, dos costumes lisboetas, dos meios de transporte e dos panoramas e Tuas da cidade. ‘A segunda carta, também ela é dedicada a cidade de Lisboa. Ruders descreve 0 Paldcio da Inquisigao, a Bolsa, o palcio da Familia Real, a estétua equestre de D. José I, as ruas do Ouro ¢ da Prata ¢ os jardins puiblicos. Para além disso, refere-se ainda ao mau sistema de protecgfo para a seguranga piblica, dando exemplos de atentados graves ¢ de assassinatos ocorridos na capital portuguesa. Foi também a primeira vez, que o autor assistiu a uma procisso. Na terceira carta, Ruders descreve o Aqueduto das Aguas Livres, Benfica, Belas as ruinas romanas na Rua de S. Mamede*. A quarta e a quinta cartas so dedicadas as térras da Moita, de Palmela, de Settibal, a Tréia ¢ 4 Arrébida. A sexta e sétima cartas consistem em consideragées gerais sobre Portugal, como: tremores de terra, o clima, o vestudrio e as tradigdes (exs: as vindimas e as cantigas de criadas). Na oitava, décima, décima sexta, vigésima segunda, vigésima sexta, vigésima oitava, trigésima carta, trigésima segunda ¢ trigésima quinta cartas,.o autor continua o seu discurso, falando dos teatros e dos espectaculos em Lisboa, entre eles a épera italiana ¢ os bailados. * Descobertas em 1798 1B Bo Voltando atrés, A nona carta, esta fala-nos de dois conventos de irlandeses em Lisboa, do Hospital de So José, do Convento de Freiras do Coragio de Jesus, da ‘Viagem a Setibal ¢ de outras curiosidades de menor importincia (corridas de touros, cavalhadas, feiras, mendigos cegos, esmolas, etc.) Passamos para a décima primeira carta, visto que a décima ja foi anteriormente referida. Ruders reflecte sobre a fraqueza das autoridades e os inconvenientes da falta de limpeza das ruas. Dé-nos também informagdes referentes a incéndios, a0 comportamento das mutheres ¢ seus amantes. ‘A carta seguinte (XII), 6 exclusivamente dedicada a Sintra, A Xl e a XIV cartas so talvez as mais extensas em termos de informagdo dispersa, pois tratam de varios tipos de temas, entre eles: os armamentos militares, 0 duque de LafSes, 0 clima no Outono, o monopélio de gelo © morangos, os estrangeiros residentes em Portugal, a inexactidiio das descrigdes de viagem, casamentos, baptismos ¢ enterros, procissOes e missas, o tempo no Inverno, as celebridades do Vinho do Porto, ‘0 mau cheiro em Lisboa, 0 comércio do tabaco e rapé, as casas de pasto nos arrabaldes de Lisboa e as doengas em Portugal. ‘Na XV carta, Ruders fala-nos da situago politica no nosso pais, da lingua portuguesa, e das mulheres e suas relagGes. Depois, na carta XVI, Ruders relata a chegada a Lisboa do principe Augusto de Inglaterra ¢ dA ao leitor informagGes a seu respeito, Para além disso, conta anedotas’ reflecte sobre a situago da literatura portuguesa em geral, da qual Ruders nos d4 uma 6ptima impressio, apesar da rigorosa censura a que cada livro é submetido. ‘As cartas XVIII e XIX, em termos gerais, relatam as relagdes entre Portugal € Espanha, ‘A seguir, na XX carta, o autor descreve mais alguns lugares ¢ monumentos em Lisboa, entre eles: a igreja de Sdo Roque, a Sé patriarcal, de que trataremos em pormenor. * Um de freiras e outro de frades. O semindrio irlandés de S, Patricio estava situado nas escadinhas de 8. Cispim, num antigo solar do século XVI. O convento de freiras inglesas existente em Lisboa nos finais do século XVI era 0 de Santa Brigida ou das freiras de Syon. O terramoto de 1755 destruiu por completo 9 edificio do convento, mas cinco anos mais tarde estava reconstruido. © A XVI tem aver com o Teatro Italiano Uma sobre o conde de Hoflinansegg e outra sobre 0 conde de Obidos e o marques de Pombal 14 Bo Na XXI carta, Ruders tece mais algumas consideragdes gerais sobre 0 nosso pais®, que nao tém muito interesse para 0 nosso objectivo. A XXIII, fala da viagem a Mafra? e da visita & residéncia da Familia Real em Queluz. A carta XXIV refere-se as instituigdes ¢ locais piblicos ao servigo do cidadao, como: os gabinetes de leitura, a Gazeta do Reino, os mercados de roupa velha e méveis, usados, os cafés, as vendas de legumes, os talhos, o mercado do sal em Setibel, ete. ‘Na XXV, XXVII e XXIX cartas, o autor fala exclusivamente da mé organizagio policial do nosso pais e das causas e consequéncias dessa mesma falta de organizagiio, ‘A chegada do ministro de Franga a Lisboa os acontecimentos que ocorreram 4 volta dessa visita sto relatados na XXXI carta. Passamos & XXXII carta, pois a anterior trata do teatro italiano novamente, que nos informa que 0 autor se dispde a deixar Portugel. Além disso, tece mais alguns comentérios sobre as paradas!? em Lisboa, descreve ainda, a Igreja de Sao Juliéo e, finalmente despede-se. A XXXIV carta, conta a odisseia de Ruders na sua viagem de volta Suécia, que no ocorreu nesse dia, pois foi forgado pelo temporal e por uma doenga sibita a ficar em Cascais. Finalmente, na XXXVI carta, 0 autor consegue um bilhete num paquete para Inglaterra, que parte no dia seguinte. F, as tltimas linhas que escreve so acerca de questées religiosas, fazendo a distingfio de cortesia entre um herege e um protestante. E assim, acaba o livro Viagem em Portugal. Por nfo vir de uma rea ligada as artes, Ruders optou apenas por descrever os monumentos lisboetas, como veremos, niio tecendo nenhum tipo de juizo de gosto sobre eles. Porém, em relagio a Sintra, 0 escritor sueco ja tem uma opinio prépria sobre as paisagens da vila. Outras estruturas da vida citadina que interessavam o escritor esto ligadas com as zonas de convivio da populagdio, entre elas a Bolsa, o Terreiro do Pago, os mercados, as procissdes, as festejos populares, os cafés ¢ os teatros, sobretudo o de Séo Carlos com. as companhias italianas de 6pera. * As iluminag6es, a Familia Real, os servigos de correio, os mionhos de vento, os cavalos de aluguer, as rmaneiras finas dos oficiais portugueses, as cang6es brasileiras, as modinhas populares, os restaurantes, 0s monges, 0s servigais, 0s escravos, ete. ® Sobre as vistas do telhado do palécio, o refeitrio, a igreja, a biblioteca do convento, 0 carro, os aposentos régios ¢ a grandeza do edificio. 15 Para além de todo isto, Ruders ainda visitou conventos, onde se pds & conversa com frades e o Hospital de S. José, do qual se fartou de tecer elogios. Mas, 0 que mais. Ihe provocava curiosidade eram as pessoas de Lisboa, principalmente a gente que na rua fazia a sua vida. O que era a vida dessa gente portas adentro, Ruders nunca o soube, pois niio conseguiu ter um conhecimento directo da vida familiar ¢ intima da classe popular ¢ burguesa. A sua condigio de pastor protestante vedow-the tais acessos. A gente do povo, bem como a pequena burguesia, principalmente as mulheres, apesar de se condofrem muito dos no — catélicos por serem almas em via de se perderem, recusavam estar na sua presenga, ou seja, no conviviam com aqueles que nfo tivessem a mesma confissio religiosa e a praticassem. Podemos dizer que nas suas duas obras sobre Portugal, o escritor descreveu sentiu o melhor que péde 0 povo e a paisagem portuguesas, apesar de néo ter conhecido totalmente 0 nosso pais, pois s6 viajou pelos arredores de Lisboa do outro lado rio ‘Tejo, no indo para além de Setiibal. ‘Nos arredores de Lisboa, ficou deslumbrado pelos vastos panoramas que desfrutou do castelo de Palmela ¢ do Convento da Pena, em Sintra. Mas néo foram s6 os panoramas que o fascinaram. Também ficou extasiado com os sitios de Sintra, sendo talvez © primeiro a classificé-los como trechos de paisagem roménticos. Ruders apreciou as paisagens portuguesas que the foi possivel conhecer, subjectivamente mediante emog6es romanescas. As obras que Carl Israel Ruders escreveu sobre Portugal sdo testemunhos de verdadeiro jomalismo pela objectividade e rectidao da escrita, como s6 muito mais tarde se viria a praticar nas literaturas europeias. A enciclopédia sueca Svenska Man och Kninnor classifica as duas obras de Ruders sobre Portugal como «profindas, minuciosas narrativas e reportagens, notdveis para a sua épocay''. Como reportagem, 6, sem diivida, uma das mais vivas e bem elaboradas que existem sobre a vida na cidade de Lisboa no.fim do século XVIII pela independéricia de juizos, a auséncia de ideias preconcebidas, 0 escriipulo na avaliagio, a flagrincia nas descrig6es.e por.xiltimo, mas xnéio menos importante, pela compreensiio e simpatia, seja quanto as pessoas, seja quanto A diversidade de costumes (sobretudo os religiosos).. Uma de tropas portuguesas, a outra de animais exéticos "In Preféicio, Castelo Branco Chaves, Viagem eni Portugal, 1798 — 1802, p. 15 16 OO Ruders, devia ser uma pessoa de caricter tolerante ¢ bem educada, pois disse quase a mesma coisa do que outros escritores da época, mas néo utilizou a sua obra com © intuito pessoal de denegrir Portugal ¢ os portugueses como muitos outros fizeram. Por todas as raz6es que acima referi, as obras deste autor sio um dos mais valiosos documentos que um historiador pode dispor sobre a vida social do fim do século XVII em Portugal. Se no escreveu mais sobre o nosso pais foi, porque as obrigagdes do seu ministério lhe tomaram bastante tempo. Em principios do més Agosto de 1802, o pastor sueco Carl Israel Ruders deixou Portugal ¢ nunca mais voltou, mas certamente que levou saudades e recordagées marcantes e inesqueciveis na bagagem. «Apesar de predisposto — escreveu ele poucos dias antes de ir embora - ndo é sem uma espécie de angiistia que vou deixar este pais, em cujos habitantes s6 encontrei consideragiio e cordialidade e onde eu, com sade e alegria, pude gozar dos encantos da Natureza e dos beneficios dum clima suave. Deveria, com motivo, considerar-me um ingrato, se nesta hora néo experimentasse nenhum sentimento de pesar».!? Quando chegou & Suécia, regressou a Universidade de ~ Upsala com 0 objectivo de acabar os seus estudos. Com os seus 56 anos de idade contraiu matriménio com Johanna Elisabeth Littarin, que em 1820 o deixou vitivo. Em 1833 casou pela segunda vez com Brita Haseler ¢ a 15 de Fevereiro de 1837 faleceu em Nysatra, Carl Israel Ruders, Viagem em Portugal 1798 - 1802,p.281 7 Arthur William Costiga Hoje em dia, j4 se sabe que Arthur William Costigan, nfo passava de um pseudénimo para ocultar 0 verdadeiro nome de Diogo Ferrier, um oficial estrangeiro que acompanhou o conde de Schaumburg — Lippe a Portugal, com 0 objectivo de estudar as fortificagdes e pragas portuguesas. Castelo Branco Chaves diz na sua obra “Os livros de viagens em Portugal no Século XVIII e a sua projecgdo europeia” gue foi o escritor portugués Aquilino Ribeiro quem descobriu o autor acobertado pelo pseudénimo de Costigan, mas jé numa carta de 1774, Louise Valleré, filha de um oficial francés", publicon uma carta ‘de seu pai, na qual identificou Costigan como sendo um oficial chamado Ferrier. A situag#o de mercendrio era bastante vulgar nos finais do século XVII, a ela recorriam aventureiros, foragidos, individuos sem escripulos, nobres arruinados, todos eles A procura de situagées rentéveis. Em Portugal existia uma grande escassez de oficiais, sobretudo no campo da artilharia, 0 que contribuia para que a afluéncia desse tipo de gente fosse enorme. Diogo Ferrier nasceu em Santo André, cidade da Eseécia, no ano de 1734. ‘Supée-se, pelo seu nome e pelas ideias religiosas, que deveria ser de origem francesa, talvez filho de um huguenote, que devido 4 Revogagiio de Edito de Nantes, em 1685", teria fugido para o Reino Unido e af se estabelecido. Em Agosto de 1762, Ferrier veio para Portugal na qualidade de capittio de infantaria, com exerefcio de engenheiro, ¢ foi nessa qualidade que construiu a ponte de Ortiga, No més de Margo de 1763 subiu na carreira ¢ tomou-se sargento — mor de infantaria, organizando 0 regimento da artilharia de Lagos. Dois anos mais tarde, mais exactamente em Agosto, subiu ao posto de coronel no regimento de artilharia do Porto, sediado em Valenga do Minho. Ai, foi encarregado dos trabalhos de fortificagéo da praga com o objectivo desta resistir a um cerco formal. Para além disso, formava graduados (na teoria e pratica) na Aula Real de Artilharia, uma escola profissional. ® Castelo Branco Chaves, “Os livros de vidgens em Portugal no Século XVII ea sua projecgao exropeia”, p.20 Guillaume — Louis ~ Antoine de Valleré * Reinado de Luis XIV 18 Os oficiais da guarnigdo de Valenga'® ocupavam o seu tempo com discussées de cardcter filoséfico, nas quais atacavam sem piedade a Igreja Catélica. Além de discussdes filos6ficas, liam livros de Hobbes, Voltaire e Rosseau, jogavam, bebiam bom. vinho, faziam intrigas e divertiam-se com mulheres. Como ¢ dbvio, a boe vide nao dura para sempre, ¢ Diogo Ferrier acabou por ser acusado pelo sargento ~ mor, Anténio Soromenho, de vitios acontecimentos graves dentro do regimento de artitharia, tais como: dar dispensa ao servigo de varios pragas, fazendo-as passar por mortas; dar licenga a alguns oficiais com o pretexto de estarem de servigo; ter mandado um grupo de comerciantes ingleses fazer um exercicio substituindo o regimento desde a alvorada até ao recolher'”; no mandar varios criminosos do regimento ao conselho de guerra; de gastar em proveito proprio ferro e madeiras que estavam destinadas ao laboratério do regimento. Apesar de todas estas acusagées, surpreendentemente, quem acabou preso por seis anos, foi Soromenho. i em 1767, 0 oficial inglés, coronel de artilharia e inspector dos corpos de arma, John Macbean, apresentou um relatério de uma inspeceo efectuada ao regimento de attilharia comandado por Ferrier ¢ os resultados foram desastrosos. Contudo, Ferrier continuou no posto de comando. No ano de 1773, 0 coronel esteve de licenga na Alemanha durante seis meses, onde foi para junto do conde de Lippe, com o intuito de se instruir num servigo de artilharia. Entre 1774 ¢1775 permaneceu um ano no Algarve, mais exactamente em Faro, ¢, finalmente, a 1 de Junho de 1775, regressou ao regimento de Valenga do Minho. Apenas em 1780, Miron de Sabionne, um tenente coronel suigo, veio tomar 0 lugar de Ferrier. Certos autores contam que foi o proprio Ferrier que pediu a demissio, mas Louise de Valleré diz que 0 coronel foi coagido a deixar 0 posto de comando. do regimento de artilharia na provincia do Minho e a regressar a0 Reino Unido. Isto, em 1778.-- “ : Foi em 1787, que nos aparece publicado pela primeira vez, em Londres, o livro “Sketches of Society and Manners in Portugal”, constituido pelas cartas escritas por "© Trintae seis 20 todo, treze dos quais eram estrangeiros: dois ingleses, dots escoceses, um irtandés, dots -franceses, um alemao, um suigo, irs italianos e um espanhol. 19 ae aes in ead eee bees en ee ee ee ae ee eee ae Arthur William Costigan, enderegadas ao irméo residente na Gra - Bretanha, Dez anos mais tarde foi langada uma outra edigGo abreviada em lingua inglesa, igualmente em Londres, por William. Fordyce Mavor, entitulada “Travels in Portugal, chiefly relative to society and manners in that country”. Através de duas edigdes sucessivas, uma de 1810 e outra de 1811, o livro de Costigan foi também divulgado em Franga com o titulo: “Lettres sur le gouvernement, Jes moeurs et les usages en Portugal”. Em relagGo ao caso portugués, j4 desde o século XIX varios estudiosos se interessaram sobre a obra do mesmo autor. Contudo, foi apenas no século XX que este relato de viagem foi traduzido para a nossa lingua a partir da edigdo inglesa de 1787 pelo conceituado investigador © ensaista Augusto Reis Machado (1887 — 1966). Esta tradugo integral foi publicada em 1946 com o titulo: “Cartas de Portugal 1778 — 1779". Finalmente em 1989, foi reeditada a tradugfo'® elaborada por Reis Machado, mas introduziram-lhe correcgdes no prefiicio € no proprio texto e enriqueceram-na a * nivel iconogrético. Em relago a obra de Costigan (ou Ferrier), propriamente dita, trata-se de um relato sobre Portugal nos finais do século XVIII que se tomou célebre pelas apreciagdes demasiadamente negativas que o autor fez relativamente A sociedade portuguesa, as quais foram aproveitadas por aqueles que quiseram denegrir a imagem do nosso pats. Uma dessas personagens que aproveitou para desacreditar Portugal, baseando-se na dureza de juizos de Costigan, foi o major Dalrymple, através do seu livro “Travels through Spain and Portugal in 1774, with a short account of the Spanish Expedition against Algiers in 1775”, publicado em 1777. Devemos reter dois aspectos cruciais relativamente & obra de Arthur William Costigan: um deles tem a ver com a circulagio do seu livro entre o piblico viajante da €poca®, o outro ponto esta interligado com o primeiro e tem a ver com a contribuigio decisiva da obra para a formacao de preconceitos nas mentes daqueles que mais tarde se deslocaram ao nosso pais. a 17& gastando nisto muita pOlvore e langando muitas bombas de noite, s6 para verificar 0 efeito que produziam no ar ' Em dois volumes pelas Edigdes Lips6ptima. ¥ Robert Southey (1795 ~ 1796), James Canavah Marphy, William Beckford basearam-se na obra de Costigan 20 ‘Temos de reconhecer que o livro “Sketches of Society and Manners in Portugal” & um dos mais detractores de Portugal, devido ao modo como Costigan olhou a nossa nagao. A visio deste estrangeiro nao se baseia s6 no contacto directo, mas é limitada por ideias que interiorizou a priori, nomeadamente através de autores que leu e de opinides pessoais. Varios foram os que citaram Costigan de um modo depreciativo, entre eles encontramos Heinrich Link e Robert Southey, com o intuito de o desdizer e corrigir. Penso que também ¢ importante salientar a forma epistolar escolhida por Costigan para estruturar a sua narrativa, pois trata-se de uma maneira eficaz de conferir autenticidade ao relato; que ao mesmo tempo, reforgada pela introdugio de pequenas historias e reprodugSes de conversas, envolvendo varias personagens que o autor diz ter conhecido durante a sua permanéncia neste pais. Através destes factos, chegamos 4 conclusto que o escritor opta por uma posigao mais pessoal em relago ao que vé, e no se limita a descrever © que vai conhecendo, on seja, Costigan interpreta 0 novo ambiente que o cerca de acordo com a sua maneira de ver e de si ir, tornando-se assim, ele préprio a personagem central da sua narrativa™. Apesar de ndo se ter a certeza de todas as afirmagdes feitas por Costigan e de alguns factos descritos no livro, que por ‘vezes parecem ser puramente fantasiosos”, podemos dizer com toda a convicgo que a obra “Sketches of Society and Manners in Portugal” se trata de um documento historico com a feigao de um romance e de um panfleto politico ¢ religioso. Através da leitura do livro de Arthur William Costigan, nota-se bem, que este homem possuia um mau carécter moral, pois quando expulso do exéreito portugués, «azedou- se —the 0 Gnimo em relacito a Portugal, ficando o livro vinculado a todos os seus despeitos” ”, coronel Ferrier (ou Costigan), ao longo da sua obra, poucas vezes consegue ser superiormente verdadeiro, pois a sua prosa é composta. por rancor, mesquinhez ¢ sobretudo por uma atitude vingativa sempre presente. Mas, podemos ver esta atitude de um outro prisma, mais construtivo, Ferrier identificava-se com as novas ideias filos6ficas que comecaram a surgir na Europa nos meados do século XVIII, contra as.quais o intendente Pina Manique Iutou incansavelmente. Assim, baseando-se % Umas vezes participando activamente nos acontecimentos, outras sendo wm mero espectador, mas sempre emitindo 2 suas opiniGes. 2" Devido a falsidade presente em certos pormenores, atendendo ao que se conhece doutras informagdes, historicas ® Tn Castelo Branco Chaves, “Os livros de viagens em Portugal no Século XVII e a sua projeceao europeia”,p. 20 21 nas recentes doutrinas filoséficas, Ferrier vai contra a Igreja Catélica ¢ a monarquia absolutista, Todos estes pensamentos poderiam ter por detrés uma aspiraggo a uma sociedade melhor. Nao nos podemos esquecer que.a nago portuguesa no século XVII, niio estava isenta de vicios ¢ defeitos. Alids e pior ainda, tratava-se de uma sociedade estagnada, que vivia numa luta permanente entre dois poderes: por um lado, 0 da monarquia despética e por outro, 0 dos chamados estrangeirados”*. Estes tiltimos, tentavam desmascarar os primeiros com 0 objectivo de modificar as condigdes sociais € econémicas da época. Ferrier tinha a mesma mentalidade dos estrangeirados, ¢ tentou através do seu livro salientar os defeitos dominantes” da sociedade portuguesa, talvez com a intengdo de chamar a atengéio dos governantes de que esta necessitava de se desenvolver. ® contra o seu clero *D. Luis da Cunha, Anténio Ribeiro Sanches, Luis Anténio de Verney , Francisco de Lemos, Correia da Serra, o duque de Lates, Frei Manuel do Ceniculo, Gomes de Avelar... 22 Miss Janet Shaw Escassas sfio as informagdes sobre esta dama escocesa, pois no manuscrito do seu “Didrio” no aparecem em parte alguma os nomes da autora e os nomes das pessoas mencionadas na narrativa, geralmente aparecemi-nos em branco. Uma investigagao sistematica ¢ exaustiva”® feita j4 nos infcios do século XX pelo professor de Histéria da América na Universidade de Yale (E.U.A), C. Mclean Andrews”’, revela-nos que Miss Janet Shaw nasceu em Edimburgo entre 1739 e 1744. Com 35 ou 40 anos de idade, esta senhora partiu numa viagem & América em 1774. O pequeno brigue de oitenta toneladas, chamado Jamaica Packet e comandado pelo capitio Thomas Smith, largou do porto de Firth of Forth na Esedcia a 26 de Outubro de 1774. O grupo que embarcou”* era composto por Alexandre Shaw, funciondrio da alftindega da ilha britinica de Sa0 Cristovao” (Antilhas); a irma, Miss Janet Shaw, autora do “Diario”; trés filhos de John Rutherfurd’!, escocés conceituado, parente e amigo dos Shaw que se tinha estabelecido na Carolina do Norte e um casal de criados. Também se fala da existéncia de um numeroso grupo de emigrantes clandestinos a * bordo. © bdarco navegou para Norte passando entre as ilhas Orkneys e Shetlands, seguindo pelo Atlantico e, finalmente, aproou direito as Antilhas (a Sudoeste). A 23 de Novembro de 1774, os tripulantes avistaram o grupo central de ilhas dos ‘Agores, que no dizer de Miss Shaw se tratava de “um grupo de ilhas africanas muito bonitas que pertencem ao reino de Portugal’. A 12 de Dezembro, apés sete semanas no mar, o grupo de passageiros chegou a capital da ilha Antiga, S. Jodo, nas Antilhas. No dia 14 de Fevereiro de 1775, 0 Jamaica Packet desembarcou no continente americano ¢ Miss Shaw foi viver com o irméo Robert em Wilmington, Passados nove meses, mais exactamente a 10 de Novembro de 1775, Miss Shaw regressou 4 Europa, % Bare eles: a auséncia de preocupactio moral, a sensualidade exagerada, alinguagem corriqueira, a ‘enorme falta de cultura, as praticas supérsticiosas, em vez de um verdadeiro sentimento religioso,° ~ acentuado relaxamento de costumes ¢ a excessiva indulgéncia perante os préprios defeitos. 2° De todas as descrigdes de lugares, acontecimentos e pessoas que so referidas no “Didrio”. 2 Raitor do “Diério”. % Também ele identificado pelo professor Andrews. ® Que ia ocupar o seu posto. © Que acompanhava Alexandre Shaw e ia visitar outro mao residente na América. °" Uma rapariga de 18 ou 19 anos chamada Fanny e dois rapazes de 9 ¢ 11 anos que regressavam a.casa dos pais. *H. Amorim Ferreira, Os Agores, Setibal ¢ Lisboa vistos por uma dama escosesa em 1774, p. 11. 23 agora num paquete chamado King George™. O grupo de passageiros partiu do Cabo Fear, na data acima: referida, era constituido por Miss Shaw, pelos trés inmaos Rutherfurd, a mesma criada que j4 os tinha acompanhado ¢ um escocés de Dundee, Archibald Neilson, com cerca de 30 anos de idade™. Miss Shaw escreveu pouco durante a viagem por mar, preferindo guardar as poucas folhas que possuia para escrever quando chegasse a Portugal, George chegou a Setibal entre os dias 12 ¢ 14 de Dezembro de 1775. A primeira viagem por terra que Miss Janet fez jé em continente portugués foi até & Moita, ¢ depois deslocou-se da Moita para Lisboa, atravessando 0 Tejo de barco. Quando chegou A capital portuguesa, Miss Shaw ficou alojada em casa de Mr. Paisley, um comerciante inglés casado com uma amiga de infancia desta dama escocesa. Janet Shaw escreveu bastante sobre as pessoas, as coisas ¢ a paisagem de Setibal e Lisboa™ e, depois de prestar a visita 4 sua amiga anuncia que vai regressar & Escécia. Diz ela: “O paquete «King George» sai amanha, e cd estou a acabar a iiltima carta que te escrevo do continente. Estou cheia de ansiedade; e espero em Deus, que me tem > protegido até agora, que me leva em seguranca até ao fim da minha grande viagem e ‘me faca encontrar os amigos ttio dedicados como dantes”**. ‘Na tiltima carta, Miss Shaw pede & amiga que Ihe escreva para Greenock, o porto de mar que serve Glasgow. Nao se consegue determinar, com certeza, quanto tempo esta dama escocesa passou em Lisboa ou a data exacta da sua partida para a Escécia. Através do “Didrio” deduz-se que a estada na cidade de Lisboa tenha durado por volta de quatro semanas e, que o regresso A sua terra natal se tenha efectuado em meados de Janeiro de 1776. Assim, Miss Janet poderd ter desembarcado na Escécia antes do fim do més de Janeiro ou princfpios do més seguinte” Dois anos apés a sua chegada & Escécia, mais exactamente em 1778, residia novamente em Edimburgo. Pensé-se que nunea se chegou a casar. E é tudo quanto sabemos da vida de Miss Janet Shaw. Relativamente ao seu “Didrio”, encontrou-se em 1904 no Museu Briténico de Londres, um. volume in.— quarto, manuscrito, com 0 titula “Travels in the West Indies. ® Comandado pelo capitio Deans. * Tratava-se de um homem culto ¢ viajado que fora secretério do governador Martin da colénia da Carolina do Nort. 3 Na segunda parte do “Didi”. 2511, Amorim Ferreira, Os Acores, Setibal e Lisboa vistos por wma dama escocesa, p. 34. > Fevereiro de 1778. 24 and South Carolina, 1774 ~75”*, inscrito no Inventério do Museu como «Egerton 2423», Este manuscrito continha cartas que se suponham ter sido escritas por uma senhora a uma amiga que se encontrava na Escécia, enquanto a primeira viajava pelas Antilhas, pelo continente americano e por Portugal. Apés a descoberta do manuscrito, apareceram mais dois exemplares do “Didrio”. Um deles, nunca chegou a ser conhecido, pois o acesso a tal documento foi vedado. O outro, é valioso, porque contem o nome da autora na dedicatéria a Alexandre Shaw, seu irmio, Compararam-se os dois manuscritos, 0 primeiro ¢ ultimo, e chegou-se 4 conclusio que teriam sido escritos pela mesma pessoa, pois o terceiro ¢ uma cépia quase integral do primeiro, diferindo apenas ligeiramente em certas palavras. No “Didrio” original, a informagio sobre os hdbitos, costumes, clima, paisagem, cultura e gentes dos locais por onde a autora passou™ é extensa. A reedigio do “Didrio” de Miss Janet Shaw foi efectuada pelo professor Andrews, tendo a Introdugiio sido escrita por Evangelina W. Andrews". Esta publicagio saiu pela primeira vez em 1921, entitulando-se “Journal of a Lady of Quality; Being the Narrative of a Journey from Scotland to the West Indies, North Carolina and Portugal, in the years 1774 to 1776” e para além das cartas de Miss Shaw & composta por numerosas notas ¢ eruditos apéndices de interesse histérico, ‘A segunda impressio desta reedigdo do “Didrio” data de Junho de 1922 ¢ é composta por 254 paginas de narrativa e mais 87 apéndices e indice. Em relagao ao caso portugués, a tradugdo do “Didrio” foi efectuada por H. Amorim Ferreira em 1947, com o titulo “Os Agores, Senibal e Lisboa vistos por uma dama escocesa”. Quanto 4 autora, deduzimos através das cartas que se trata de uma pessoa inteligente, culta, viva e sentimental, Esta dama mostra também ser uma escocesa bem — = nascida, leal sua terra, de gostos e preferéncias aristocréticas © com opinides - religiosas, sociais .e polfticas caracteristicas da classe culta da Escécia na. segunda metade do século XVIII. Talvez, por ser uma pessoa instruida tenha tido coragem para se langar no mundo das letras, deixando um relato precioso dela propria, dos seus ° Ero do catilogo do museu Britinico, pois Miss Shaw ndo esteve na Carolina do Sul, mas sim na do Norte. » Antithas, Carolina do Norte e Portugal. 25 familiares e amigos. Os preconceitos e antipatias sfio em grande parte resultantes do seu feitio e dos da sua classe, embora nfo elimine a realidade, 0 que acontece ¢ que por vezes deturpa e desvirtua uim pouco os acontecimentos. Em relago a questdes religiosas, Miss Shaw deixa transparecer que segue a doutrina de Calvino, ou seja, foi educada para ser uma presbiteriana ferrenha. Apesar disso, nota-se perfeitamente durante as cartas a sua curiosidade relativamente as ceriménias religiosas da Igreja Catélica. A pompa litirgica da religifo catélica, a decoragéio exuberante das igrejas e das imagens dos santos, a abundancia de cruzes, os varios simbolos religiosos em locais piiblicos ¢ a existéncia de conventos cheios de monges ¢ frciras nfio deixaram de impressionar desfavoravelmente Miss Shaw. ‘No que diz respeito ao povo portugués, mais concretamente ao sexo masculino, a dama escocesa descreve os homens portugueses como seres amdveis e gentis para'com as mulheres. E, diz mesmo que niio hé terra onde o sexo feminino seja tratado com tanta estima e respeito. Em matéria de politica social, Miss Shaw revela-se conservadora e defensora da * autoridade da familia e do Estado. Por isso mesmo, quase no fim das suas cartas, encontramos um extenso elogio a obra do Marqués de Pombal, o que leva a crer que ela concorda com o despotismo praticado pelo marqués, principalmente por ele ter sido 0 responsdvel pela expulsdo dos jesuitas. ‘Ao longo da obra, é evidente que Miss Shaw aprecia as convengées da vida social, embora, por vezes, se dispense de as seguir. Aconteceu um epis6dio nos‘Agores que & prova disso mesmo. Quando Miss Janet chega & ilha Antiga"', foi informada de que ao almogo as senhoras da terra sé bebiam Agua com sumo de limo, mas ela, decidida a no se submeter a este costume, bebeu um copo de vinho da Madeira a satide da dona da casa. As referéncias a Portugal que se encontram na totalidade do Didrio, localizam - se em duas partes distintas com o nome: Os Agores vistos do mar em Novembro de 1774, e Visita a Setiibal e Lisboa em Dezembro e Janeiro de 1775-76. A primeira parte € relativamente curta e nfo ocupa mais de cinco paginas (p. 59 — 64) do texto impresso pelo Dr. Andrews. Se lermos estas escassas folhas, pereebemos que a autora nfo teve qualquer tipo de contacto com as gentes das IIhas dos Agores, por isso limita-se a descrever a paisagem, os campos e as culturas. “ Os descobridores do dirio original Talvez Sao Miguel ou Santa Maria 26 Jia segunda parte, relativa a Setibal e Lisboa, é bastante extensa, ocupando 37 paginas (p. 218 ~ 254) do texto impresso. Aqui, podemos jé encontrar referéncias a0 povo portugués ¢ aos seus.costumes, para além de descrigGes criticas sobre a paisagem, politica, religido, cultura ¢ patriménio portugueses. DispOe-se assim, de um relato desinteressado proveniente de uma dama culta que viajou em Portugal no principio do liltimo quartel do século XVIIL, ou seja, no final do reinado de D. José. Seja como for, este Di io tem, pelo menos, a originalidade de ter saido de mos femininas, o que no era usual nessa época. ‘No geral, na obra de Miss Shaw, encontramos preconceitos e injustigas, mas, apesar disso, também verificamos que esta «dama da sociedadey apresenta no seu discurso vivacidade, clareza de entendimento, finura na critica, frescura de alma e bondade no coragdio. 27 Robert Southey Em Outubro de 1795, Robert Southey, um inglés, com apenas 21 anos de idade foi obrigado a vir para Lisboa a pedido de sua mfe™. Este jovem revoluciondrio, como qualquer outro nesta época, encontrava-se embriagado pelos fumos da Revolugdo Francesa ¢ pela deliciosa visio de pantisocracia"’, Sabia que em Portugal néo iria encontrar nada de novo e de animador, mas mesmo assim casou-se com Edith Fricker* no dia de Ano Novo, deixou-a a porta da igreja ¢ partiu para Falmouth com o tio Hill® para aguardarem vento favordvel. Dai, partiram numa desconfortavel viagem até ‘Madrid. Da capital espanhola, foram até a fronteira portuguesa, no-rasto do rei D. Carlos de Espanha e da sua Corte, que arrebatava todos os alimentos encontrados. Para além disso, o rei reservou para seu uso exclusivo a tinica ponte segura que atravessava o rio da fronteira e o que os comuns mortais tinham de fazer éra tentar entrar em Portugal por qualquer outro local. E, foi o que Southey e Mr. Hill foram obrigados a fazer. A m& impressiio com que Southey ficou, até ao fim da sua vida, em relagto aos regimes monérquicos da Peninsula Ibérica adveio destes factos. A partir dai, 0 poeta passou a considerar todos os monarcas corruptos, cruéis ¢ ineompetentes. Finalmente, a 21 de Janeiro de 1796, Southey chegou a Portugal. A viagem até Lisboa foi bastante ineémoda, pois chovia imenso e as pousadas estavam infestadas por insectos repugnantes. Robert Southey queria negar-se a vir para Potugal, mas jé estava farto de recusar constantemente todos 0s desejos de sua mae. ‘© Comunidade ut6pica onde todos sao iguais e todos governam. Uma mulher enfadonha, mas que Southey adorava: “Bra capelio em Lisboa. 28 Quando chegou & capital portuguesa instalou-se em casa de seu tio, Mr. Hill. Logo durante a primeira noite, 0 solo tremeu em Lisboa, mas por sorte nfo ocorreu nada de grave. No dia seguinte, 0 poeta decidiu inspeccionar a cidade, a respeito da qual teceu os piores comnentirios Em relago a0 Governo e A Igreja Catdlica escreveu com cinico desprezo, amargura ¢ arrogincia. Para além de criticar tudo também decidiu criticar todos, inclusivamente os seus proprios compatriotas, os ingleses. Para ele, os ingleses® que residiam em Lisboa apenas se dedicavam a perder tempo na vida boémia da alta sociedade, dangando e jogando as cartas. A sociedade quer portuguesa, quer inglesa aborrecia Southey. A nica coisa que 0 poeta queria era abandonar imediatamente Portugal, © que no aconteceu por esta altura. Passados vatios dias em Lisboa, Robert Southey foi apresentado ao embaixador inglés em Portugal, Mr. Walpole. Mas, esta relago de nada Ihe serviu para o animar, pois continuava separado dos amigos e da noiva, que se econtravam em Inglaterra. Por esta altura 0 seu poema épico Joan of Arc estava prestes a ser publicado na seu pais natal e nem a esse importante evento ele poderia assistir. O desfinimo era cada vez maior, até as festas ja Ihe aborreciam. As suas tinicas consolagdes eram a leitura, a aprendizagem da lingua portuguesa ¢ em descobrir tudo o que podia sobre os costumes, modo de vida hist6ria, literatura e lendas de Portugal. Tudo isto Ihe interessava, pois pretendia publicar uma obra sobre © nosso pais quando regressasse & sua patria. Realmente, nas cartas das quais resultou essa primeira obra 0 posta ¢ bastante erudito ¢ inteligente, contudo falta-Ihe a facilidade em aceitar o modo de viver ¢ os costumes do povo portugués. Para Southey a pera portuguesa era completamete absurda, pois nao concordava com a proibigdio de mulheres em palco. Isto ocorria, porque D. Maria I era bastante catdlica ¢ ciumenta e visto que o marido era um entusiasta da 6pera, ela tomou tal deciséo. ‘Ao longo da primeira obra publicada em 1797 com o titulo Letters Written During a Short Residence in Spain and Portugal, With Some Account of Spanish and Portuguese Poetry 0 poeta revela-nos a sua aversao pelo catolicismo em geral ¢ pelo clero portugués em particular, achando o tolo, supersticioso, intolerante, reacciondrio, cruel e obcecado pela visti do Paraiso, Acima de tudo, detestava as instimigdes “© Comerciantes na sua maior parte. 29 monésticas, os portugueses, a maior parte da sua literatura, os ingleses de Lisboa ¢ os monarcas déspotas. A iinica viséo que fez Southey atenuar um pouco a sua antipatia pelos conventos © mosteiros talvez tenha sido a vista do convento da Arrébida, tio magnificamente situado nos montes sobre o mar, que Ihe inspirou uma poesia. A paisagem da Arrdbida e a sua visita a Sintra, onde 0 tio” possuia uma casita entre as colinas, escondida entre limoeiros ¢ loureiros, com um pequeno regato junto & porta, despertaram em Southey todo o entusiasmo proprio e habitual dos turistas ingleses roménticos. A medida que se aproximava a Primavera, Robert suspirava cada vez mais pela sua noiva, Edith Fricker, e assim, decidiu partir em Abril de 1796 para Inglaterra. Durante seis meses viveu entre a fama de Avon ¢ o fimo de Bristol . Por vezes, recordava o sol de Lisboa, ¢ chegou mesmo a ter saudades de Espana. Mas, ainda nfo desejava Portugal conscientemente. Passado esses seis meses decidiu fixar-se em Bristol ¢ foi af que se dedicou ao estudo do Direito, 20 mesmo tempo, que preparava a edigdo das suas Letters Written During a Short Residence in Spain and Portugal. O resto do tempo passava-o convivendo com os amigos e com a sua noiva. Em casa, Southey refugiava-se na sua ardente paixGo pela literatura e criava continuamente baseando-se nos seus sonhos povoados por sultdes, sultanas, érabes, mégicos, camelos, gentes exéticas e de alta categoria. Escrevia na ilustio de que a sua poesia se tomaria imortal, ‘por vezes até sem inspiragio, mas sempre com a mais firme convicgéio do seu éxito, A sua criago continua foi interrompida pelo estudo das leis e por um cargo de secretério, mas nenhuma destas ocupagSes fascinaram. O que ele pretendia era viver no campo, de preferéncia perto do mar com Edith e alguns amigos, os seus livros e escrevendo ininterruptamente. No final de 1799 comegou a pensar em ir de novo para o estrangeiro, pois sentia- se muito doente* ¢ encontrava-se farto dos estudos de Direito. Southey no pretendia vir para Lisboa, queria antes procurar algo de novo. Contudo, o seu tio, Mr. Hill, convenceu-o,através de uma carta a viajar para Portugal novamente, E, em Fevereiro, 0 poeta j& encarava essa sugestio de um modo diferente, entusiasmado. Como jé se encontrava a escrever a sua Histéria de Portugal, aproveitaria para: conhecer melhor * Mfr. Hill * De um mal que os médicos chamaram de «sensibilidade doenten, um tipico mal fomntico, que Ihe transtornava as fungbes e gradualmente Iho ia debilitando. 30 certos locais do nosso pais nesta segunda viagem, tais como: as margens do Mondego, Ourique, o ttimulo de Inés de Castro na abadia cisterciense de Alcobaga, 0 Convento das Necessidades, etc. Southey pretendia que a sua Histéria fosse uma obra longa, ardua e interessante. Esperava também poder escrever criticas de livros portugueses e espanhéis, para a sua Critical Review. Penso que com tantos projectos em mente, Robert tinha a intengo de néio desperdigar nem uma hora quando chegasse Portugal. Trabalharia, faria excursdes © escreveria sobre 0 que ia vendo. Desta vez, Southey resolveu trazer Edith, contudo esta nfo mostrou o minimo interesse pela viagem. Assim, em fins de Abril de 1800 e apés cinco dias de uma viagem cheia de obstaculos, mais propriamente de enjoos e sustos”, Southey viu realizado o seu desejo ¢ subiu o Tejo, contemplando, uma vez mais, a incomparivel paisagem da linda cidade de Lisboa sobre as margens do rio, Mal chegou a sua casa situada na colina de Buenos Aires em frente ao Tejo, comegou a elaborar o plano para a sua Histéria. Southey escrevia a janela, dominado por uma vista soberba sobre o rio e sobre Almada. Porém, Edith nfo se interessava minimamente.por Lisboa, por Portugal ou pelo panorama. O seu dnico divertimento resumia-se em olhar as pessoas ¢ apontar os defeitos no aspecto destas. ‘Nesta altura, Walpole jé ndo era embaixador, sucedeu-the John Hookham Frere"? em 1800. Lisboa chegara ao auge como lugar do bea monde inglés: eram os oficiais do exército © da armada; os doentes que definhavam na rua de Buenos Aires, sendo, de seguida, sepultados na Estrela’; os ricos elegantes que dangavam e jogavam todas as noites ¢ faziam apostas sobre qual seria o préximo movimento de Napoledo Bonaparte; €'o grupo mais intelectual que se reuniia 4 volta da embaixada inglesa. Os ingleses frequentavam a Corte em Queluz, visitavam as belas quintas da aristocracia, faziam excursées ao longo 'do Tejo até Santarém, a Palmela, a Alcobaga, a Batalha, a Coimbra € obviamente a Sintra. Em suma, formavam um grupo alegre, luxuoso, divertido, trocista © inabordavel, que as classes da alta sociedade inglesa sempre procuravam formar por onde quer que passassem. Robert Southey, o seu tio Mr. Hill e os membros da Feitoria Inglesa em Lisboa nao tiveram uma grande facilidade em ser incluidos nesta pequena sociedade aristocratica, pois Frere s6 aceitava a entrada de estrangeiros nobres, emigrantes e diplomatas. Contudo, Southey ainda conseguiu manter certos contactos, Bath sofria de ataques de depressio e de medo, © que tomou a viagem insuportével. * Com o seu irmo como secretério da legagko. * Este cemitério inglés ainda hoje existe no mesmo local. 31 tais como 0 embaixador americano e varias senhoras amigas". Os meses de Maio ¢ Junho foram passados entre visitas as casas destas senhoras para assistir a procissdes que o chocaram bastante ‘e tardes na sua casa arejada. O barulho dos foguetes, dos tiroteios, dos chocalhos das cabras ¢ de mulas, ¢ principalmente, os sinos da capela pertencente a uma casa de um comerciante portugués irritavam 0 escritor e todos os ingleses residentes na rua de Buenos Aires. Southey ansiava por ir viver para Sintra, onde esperava encontrar a calma ¢ a inspirago que em Lisboa era impossivel de aleangar. Acabou por permanecer na capital portuguesa até aos finais de Junho com 0 intuito de assistir 4 procissio do Corpus Christi em casa da tal Miss Stevens. Depois, partiu finalmente para a sua adorada Sintra, e fixou-se na casa de seu tio, onde escutou, uma vez mais, 0 regato que murmurava por entre alamedas de limoeiros, e respirou aquele ar fresco e perfumado. Encontrava-se sozinho com Edith, pois Mr. Hill tinha ficado retido em Lisboa, baptizando e sepultando os filhos dos soldados ingleses. Southey sentia-se feliz, apesar da presenga cada vez maior de comerciantes portugueses por aquelas bandas que enriqueceram e acabaram por descobrir Sintra, comprando casa na vila, O poeta ocupava o seu tempo a explorar a regidio montado num burro ou mula, a escrever a sua Histéria e 0 livro Thalaba, e a planear novas obras geniais. As tinicas coisas que lhe faltavam eram manteiga fresca inglesa® e conhecer alguém com quem pudesse falar de tudo isto. E, foi af que apareceu uma tal Miss Barker, uma senhora da alta sociedade inglesa que habitava em Sintra. Os dois fizeram ‘grandes passeios pela regio montados em mulas durante horas ¢ horas, Miss Barker acabou por ter que partir para Inglaterra, 0 que entristeceu Southey, pois ela era, sem davida, uma dptima companheira, Por esta altura, 0 escritor inglés estava a terminar 0 décimo primeiro livro da sua obra Thabala™. A partida de Miss Barker f8-lo ansiar, novamente, por manteiga fresca e boa companhia. A maior parte das pessoas da alta sociedade em Sintra, mesmo as inglesas, eram aborrecidas. Felizmente, 0 poeta vivia Tonge da vila conseguia-se escapar de muitas delas. Quanto aos comerciantes portugueses que compraram casa em Sintra, Southey considerava-os ignorantes e gente que tinha por habito adormecer constantemente,.e tio profundamente, que com dificuldade se conseguiam levantar'na mandi seguinte. Este costume portugués parecia a Southey deplorivel. Evidentemente, sentia-se cada vez mais ansioso por uma 2 Ene elas, uma tal de Miss Stevens ® Parece que a manteiga de Sintra nfo prestava Um romance selvagem companhia inteligente com quem pudesse conversar ¢ contar os seus planos de obras futuras. A sua intitagdo tenso mental e doméstica eram crescentes, pois nfo tinha quaisquer tipo de interesses em comum quer com os ingleses, quer com os portugueses reSidentes em Sintra e para piorar a situagio a sua esposa durante a tarde ia sempre para idade, nao tinha conversa digna deste nome. O escritor encontrou 0 seu refiigio e contentamento na a cama dormir a sesta ¢, mesmo quando estava acordada e em acti dedicagao as suas «obras imortais» e nas excursées ao longo do nosso pais. Robert Southey éra um ser sensivel a beleza da Natureza, exemplo disso sfio as suas descrigées entusidsticas perceptivas das colinas e bosques de Sintra, das flores, pirilampos, arvores, forma e cor das montanhas, etc. Em relagao a beleza natural era um artista, sensitivo ¢ impressiondvel e percebe-se isso na maneira como escreve. Contudo, © seu sentido de beleza na arte era defeituoso, exemplo disso so as suas criticas 4 pera italiana e as sumptuosas procissdes religiosas. No Outono de 1800, os Southey acabaram por regressar a Lisboa. Edith queria voltar para Inglaterra, pois encontrava-se alarmada pela febre amarela que tinha atingido ~ Espanha, mas Robert néo pretendia nada disso. Sentia-se feliz. em Lisboa ¢ nao voltaria 20 seu pafs natal enquanto o contrato de arrendamento feito por um ano no terminasse. Durante esta estadia em Lisboa resolveu procurar matérias ¢ materiais para a sua Histéria, esquadrinhando bibliotecas ¢ fazendo excursdes. E, foi por esta altura que Southey visitou Ci Ao chegar & capital portuguesa apercebeu-se de que a situagdo internacional estava no bra, Alcobaga e a Batalha. Apés estas visitas, voltou para Lisboa. limite, ou seja, os ingleses esperavam a cada momento ser expulsos pelos portugueses para que os franceses se acalmassem. Southey 0 no desejava, mas Edith queria partir e, para além disso, a situagio nfo era das mais favordveis para eles ficarem, Mr. Hill estava ja a encaixotar tudo, aprontando tudo para a viagem. Era um tio exemplar ¢ util que muito incentivou © sobrinho a escrever a Histéria sobre Portugal ¢ agora ajudava-o a preparar tudo-para 0 seu regresso a Inglaterra. Mas, se nfo fosse por Edith, Southey ter-se-ia arriscado @ permanecer em Portugal e, portanto, 4 guerra e A expulsio dos ingleses pelos franceses. Ainda gostava de ter explorado 0 Norte. do nosso pais. No momento em que se encontrava cada vez mais apaixonado pelo pafs, pela sua beleza, pelo seu clima e pelos camponeses, considerando-os boa gente, trabalhadora ¢ admirdvel, é que tinha de partir. Isso ndo The soava bem, pois criara fortes ligagdes locais, embora no pessoais ¢ sociais, e apaixonou-se pelas paisagens ¢ pelo clima portugueses e, principalmente pelo paraiso estival de Sintra, Porém, ameagado pela 33 invasio e expulsio lé resolveu regressar 4 sua pitria. Em Maio de 1801 Southey e Edith deixaram Portugal e chegaram a Inglaterra em Junho, deixando Mr. Hill ainda a empacotar livros e indeciso se haveria de partir ou ficar em terras lusas. A partir desta data, o escritor nfio tornaria a ver Portugal. Enquanto cé esteve fez todos os possiveis e impossiveis para obter um cargo no consulado de Lisboa, pois tudo © que pretendia era estar entre nés. Trinta anos depois ainda sentia saudades do nosso pafs, mas teve de se contentar com a composiglio da sua Histéria, que nunca chegou a ser terminada nem publicada. Para além disso, tornou-se um tradutor avido e assiduo da literatura portuguesa junto dos seus compatriotas, fazendo de Portugal uma moda literdria em Inglaterra. Chegaram, a fazé-lo membro da Academia de Lisboa, pois 0 seu conhecimento em literatura portuguesa era mais amplo do que aquele que possu‘am varios estrangeiros e, até portugueses. Ele proprio contribuiu para a onda de lusofilismo roméntico que jé ha alguns anos se estabelecera em Inglaterra ¢ iria quebrar-se antes de meados do século XIX, J no pais que o viu nascer trabalhou incessantemente na Historia de Portugal, que como ja referi nem sequer chegou a ser publicada. A ‘mica parte editada foi a ia do Brasil, em 1817. Hist Em 1832, sabe-se que continuava a escrever a sua Histéria. Infelizmente, no ano de 1843, Robert Southey acabou por falecer, ndio completando a obra em que trabalhava havia quarenta e trés anos. Hoje, ainda ninguém conseguiu descobrir onde se encontra 0 ‘manuscrito. Resta-nos apenas recordar Southey através das suas cartas editadas no seu primeiro livro Letters Written During a Short Residence in Spain’and Portugal, With Some Account of Spanish and Portuguese Poetry, publicado em 1797. 34 William Beckford Escritor, antiquirio ¢ critico inglés, nasceu em 1760. Estudou miisica com Mozart ¢ arquitectura com Sir William Chambers, 0 maior arquitecto do seu tempo em Inglaterra. Ler 0 que Beckford escreveu sobre Portugal é uma viagem extraordinaria através de um mundo colorido, fantistico, divertido, belo, pomposo, luxuoso, absurdo, cinico descrito numa prosa de linguagem acessivel. Conseguir escrever como este poeta é um dom raro. Alids, a verdade ¢ que ele pos fa quase todos os dons, tal como uma sensibilidade profunda perante todos os aspectos da beleza, mas também aquele modo de a exprimir delicadamente. A sua imaginagio era requintada ao maximo, principalmente quando pensamos no campo da miisica, em que Beckford mergulhava em sonhos vagos de prazer ou de saudade. A beleza, quer a da Arte, quer a da Natureza ‘transportava-o em éxtase. Beckford era um poeta de prosa® e nfo de verso como seria de esperar. Escreveu sobre Portugal e sobre a vida e costumes dos portugueses com elegincia, espirito, ironia ¢ beleza. Este escritor era contudo temperamental, segundo os seus contempordneos, que © consideravam ciumento, crucl, malévolo, vaidoso, intrujéio e sem escripulos. Para além disso, ainda era acusado de homossexualidade. Mas, apesar de tudo isto, escreveu * Tipicamente romantico 35 genialmente, pois possuia uma mente brilhante, culta, fascinante, espirituosa, caprichosa e perversa. Quando Beckford pensou em viajar no ano de 1787, a primeira ideia que Ihe ocorren foi fazer'uma excurséo 4 Jamaica, mas os obstéculos para 14 chegar eram muitissimos. Ele tinha de ir para algum lado, pois os inimigos no seu pais eram bastantes e o escdndalo tinha-se apoderado da sua vida. Primeiro, decidiw ir para a Madeira, mais exactamente para o Funchal. O seu objectivo inicial era o de se refugiar num convento portugués, comendo laranjas e rezando a Santo Anténio. Mas Beckford acabou por vir parar a Lisboa em Margo de 1787, com o Doutor Verdeil, 0 seu médico, de origem sufga, e mais alguns criados. Trouxe na sua maleta, por mais estranho que possa parecer, o livro Travels through Spain and Portugal do Major Dalrymple, o qual tinha classificado como uma obra «seca, enfadonha e melancélica». Estabeleceu-se em Belém. Nao gostava de hospedarias® e por isso nao quis ficar nas de Buenos Aires, onde se instalavam, normalmenté, todos os mercadores 57 ¢ escritores ingleses quando chegavam a Lisboa. Uns dias mais tarde, 0 seu amigo Home, por intermédio da rainha D. Maria I, acabou por lhe arranjar uma nova “casa”, a Quinta dos Bichos™. Instalou-se por 14; com © seu piano, a sua mobilia ¢ o seu grande séquito de criados. No fim do quente més de Maio, preparou-se para conquistar a sociedade lisboeta. Beckford queria visitar 0 embaixador inglés em Portugal” , Mr. Walpole, como mandava o protocolo, mas este ndo o recebeu, nem Ihe pagou a visita. O desprezo inglés era inflexivel e dizia-se que tal procedimento fora ordenado pela Corte inglesa. Nenhum inglés procurava Beckford, a situago do poeta passava de boca em boca , cada vez mais, 0 escandaloso milionério residente na Quinta dos Bichos era posto de lado. Assim, na sua casa ricamente mobilada, ao lado do Palacio das Necessidades, recebia algumas pessoas ilustres da nobreza portuguesa, que estavam curiosas e ansiosas por 0 conhecer, pois sentiam-se atraidas pelas suas exuberantes devogies e pelos seus .. gastos ainda mais exuberantes. % CARRERE, IBF. ~ Panorama de Lisboa no ano de 1796, p.39 CARRERE, BF. — 0 Panorama de Lisboa no aio de 1796, p.31-38 8 Ao lado do Palacio das Necessidades. ® BEIRAO, Caetano —D.Maria I (1777-1792), p. 100-101 36 Em vio, Beckford tentou tudo para ser apresentado na Corte, 0 que passou a ser quase uma obsesstio. Os seus familiares e amigos, aos quais pedira credenciais nfo 0 auxiliaram com uma tnica palavra. Portanto, se ninguém o ajudava teria de arranjar-se por si. Por isso, téntou arrastar para 0 seu partido todos os que conhecia, tomando-se, por esta altura, um grande amigo do Marqués de Marialva, D. Diogo, um homem bastante influente. A relagao de amizade de Beckford com os Marialvas comegou pouco depois da sua chegada. Nos primeiros artigos do seu jomal de viagem, ja fazia referéncia ao Palcio Marialva e ao filho do marqués (D.Pedro)™, que na altura tinha 15 anos. Este jovem, tinha uma grande admiragio por Beckford e até se chegou a apaixonar pelo poeta inglés. D. Diogo quando nfo podia estar perto do seu amigo inglés, escrevia-the. Pelo menos, duas cartas foram encontradas. Numa delas, escrita em Maio de 1787, 0 marqués exaltou as qualidades de Beckford, chamando-o de honnéte homme e proclamou por toda a parte as virtudes do seu amigo, convencendo todos os seus conhecimentos a visité-lo. A partir daqui, Beckford gozou da convivéncia da melhor ~ sociedade portuguesa, bem como da hospitalidade e dos divertimentos do palicio dos Marialvas, onde a familia muito o estimava, (Os Marialvas viviam mum “estado” feudal, protegidos pelo velho marqués (o pai do amigo de Beckford), que suportava uma corte privada de 300 pessoas. Beckford acabou por entrar no seio desta corte particular e escapou-se assim dos grandes efrculos da nobreza portuguesa. Apaixonou-se neste Palicio dos Marialvas por Henriqueta, uma bastarda, ¢ toda a familia ambicionava casé-la com o milionério inglés. Quanto ao filho do Marqués de Matialva, 0 jovem Pedro, este adorou Beckford mudamente, ¢ ainda bem, porque o poeta o achava melancélico ¢ feio. Os Marialvas eram, nfo incluindo o Duque de Lafves, a nobreza mais poderosa em Portugal. Sob 0.governo de Pombal“, 0 paldcio dos Marialvas havia-se tomado um asild para os perseguidos. © velho marqués liderava agora o partido dos inimigos de Pombal, fidalgos e clérigos reacciondrios, cujos poderes haviam sido invejados. pelo. grande Carvalho e que, desde a queda deste, tentavam recuperé-los. “© BECKFORD, William — Recollections of an Excursion to the Monasteries of Alcobaca and Batalha, p.205 *" Ainda no tempo de D. José 1, pai de D. Maria I. 37 Passado um tempo, Beckford ganhou a reputagiio de grande devoto entre os fidalgos portugueses. Paradoxalmente, ele era devoto a Santo Ant6nio, mas nada mais que isso. Ele nfo era crenite, nunca fora protestante, nem catdlico. Ele era apenas um céptico que se sentia extasiado pela magnificéncia lirica das missas de Lisboa, que se dedicava a frequentar a igreja para impressionar a Corte e os fidalgos portugueses. Divertia-se no meio de priores e prelados, encontrando entre eles excelentes companhias. Ouvia os monges mais simples ¢ humildes e revoltava-se contra a monotonia dos milagres e maravilhas que contavam, ¢ contra a ignorancia nas suas cabegas. © facto de conviver com os fidalgos portugueses € de ter voltado as costas aos ingleses radicados em Lisboa (ou antes, vice-versa), privou-o de ter descrito a colénia britfnica. Se Ihe tivessem dado essa oportunidade, no ha diwvida que denegriria ao méximo todos os ingleses de Lisboa. A corte dos Marialvas acabou por ir para as termas das Caldas, interessada apenas no lazer ¢ nos banhos. Os tinicos que se preocuparam, realmente, em conseguir uma audiéneia para Beckford com a rainha foram D. Diogo e o Sr. Home. Certo dia, Beckford recebeu, em Lisboa, uma carta do Sr. Home que dizia que a rainha estava indecisa quanto A sua audiéncia, pois o abandono a que Beckford fora votado pelos parentes ingleses tinha dado lugar a especulagSes. Por outro lado, o Principe do Brasil estava impaciente por conhecer o notivel e tio falado estrangeiro. Por esta altura, comegaram a surgir bastantes problemas relacionados com o suposto futuro casamento com Henriqueta. O velho abade da familia Marialva concordava com 0 matriménio, dando a entender ao poeta inglés que Henriqueta se sentia apaixonada por ele. Contudo, 0 irmo do marqués, que segundo a moda portuguesa, se apaixonara pela sobrinha, tinha citimes de Beckford, chegando-lhe a oferecer o Palécio em Belém ¢ um ducado para este deixar a bastarda em paz. Beckford ficou preocupado e perplexo com esta oferta, ¢ foi ficando cada vez mais deprimido. A cada dia que passava, relembrava Fonthill, a sua “patria”. E, havia muito que Lisboa Ihe parecia insfpida, O clima e o barulho tinham-se tornado intolerdveis,.¢. a sociedade, triste. Apenas a beleza do mar e do céu Ihe suscitavam ainda prazer. O seu espitito fora atingido pela melancolia e ele encontrava-se muito em baixo. Tinha saudades de 38 Inglaterra, dos campos verdes e frescos de Fonthill, da sua falecida esposa ®, das conversas ¢ das discusses partidérias em Londres. Entretanto, o jovem marqués, D. Pedro, decidiu voltar das Caldas para Lisboa e Beckford foi recebido no Palécio Marialva com grande afecto ¢ amizade. Ainda nio tinha decidido o que fazer em relagio ao casamento com Henriqueta, e enquanto, no se resolvia ia tendo longas conversas com seu pai acerca do procedimento de Walpole e da timidez de Melo. ‘Chegou finalmente o dia em que a rainha® quis conhecer Beckford, no entanto, néio podia dar ordem a Martinho de Melo e Castro “ (1716 — 1798) para o trazer & sua presenga com as ceriménias habituais. Por isso, 0 Marqués de Marialva e Beckford acabaram por concordar em irem visitar Melo e em convencé-lo a quebrar 0 protocolo da Corte. E, foi o que aconteceu. Beckford foi visitar Melo e Castro, que admitiu o ridfculo procedimento do embaixador inglés, Walpole, mas, ao mesmo tempo, acentuou a inconveniéneia de ir contra o sistema aceite e de se deixar apresentar por outrem que no fosse 0 ministro britfnico. De seguida, o poeta inglés interveio para falar, com eloquéncia irritada, da abomindvel conduta de Walpole, o que no agradou ao marqués. Passado meia hora de conversa, Melo e Castro achou que Beckford tinha ido longe demais e apaziguou-o com as palavras do costume. O escritor saiu furioso e resolveu deixar Portugal, logo que fosse devidamente apresentado na corte, e deixélo imediatamente se isso ndo acontecesse. Fora pedida uma carta de recomendagiio a Luis Pinto de Sousa Coutinho ®, 0 embaixador portugués em Londres, mas quando esta, por fim chegou, Beckford néio ficou satisfeito com ela, porque Ihe faltava conviego. poeta inglés ia ficando, cada vez mais aborrecido, de dia para dia, com esta situagdo e decidiu que o melhor seria partir. © Marqués de Marialva tentou persuadi-lo a ficar. Mas, até o marqués jé aborrecia Beckford, com a sua perseveranga e superstigdes® monétonas. O poeta inglés ‘4 repetia ao marqués, vezes sem conta, que nfo ia mudar de projectos, a néo ser que D. 7 fargaret. D. Maria I, “ Foi um dos mais habeis administradores do século XVIII. Em 1787 era primeiro —ministro, bem como secretirio de Estado para os Negécios Estfangeiros, Guerra, Coldnias e Marinha. © 1+ visconde de Balsemao. Embaixador de Portugal em Londres entre 1774 ¢ 1778, quando o marqués de Marialva procurava obter a sua cooperacdo para conseguir com que Beckford fosse apresentado & rainha D. Maria. Mais tarde foi secretiio de Estado. - “0 marques de Marilva referia-se entio @ religito, explicando a Beckford que este fora levado a Portugal por ura milagre pela vontade de Deus e por iss, nfo deveria abandonar 0 nosso pais. Maria I the concedesse uma distinta ¢ honrosa recepgo. Tudo isto, se tratava, sem diivida de um circulo vieioso. Durante os primeiros meses que esteve cé (a0 todo foram 10 meses: de Margo — a Dezembro de 1787), escreveu sobre tudo: festivais, prociss6es, concertos, festas, excursdes, fogos de artificio, touradas (as quais detestava), padres, cdes vadios, a beleza de Lisboa a noite, o pér-do-sol em Belém, expedigées a Colares, Mafra ¢ Sintra. Nestes seus didrios particulares nfo existe nenhum indicio dos ressentimentos e derrotas que passou em Portugal, mas apenas um ligeiro indfcio de aborrecimento. A versio publicada sobre a viagem de Beckford ao nosso pais é um relato de paisagens, triunfos sucessos sociais, nfo manchados por qualquer humilhagai Antes de partir para Inglaterra, estabeleceu-se algum tempo em Sintra. Sintra reanimou- o. O Sr. Street — Arriaga Brum da Silveira, um irlandés com nacionalidade portuguesa, arrendow-lhe a sua Quinta do Ramalhdo, perto da vila. Beckford foi vé-la, a 9 de Julho de 1787, com o marqués de Marialva. O jardim era clegante, a casa espagosa, arejada.e fresca. No dia 22 de Julho, decidiu habitar a quinta, rodeando-se de misicos, livros e algumas ovelhas oriundas de Fonthill. Os grandes amigos de Beckford continuavam a ser os Marialvas. Home vivia perto, numa outra quinta, A vida social do inglés baseava-se em festas, expedigdes, musica funerais ¢ intrigas. Ainda durante 0 més de Julho, 0 Marqués de Marialva levou Beckford a visitar Mafra, ‘onde passaram uma noite no convento. No hé diivida que os Marialvas queriam urgentemente que o milionério inglés fizesse parte da familia, oferecendo-Ihe, para isso, muitos bens e poder. Mas, 0 que interessava a Beckford era somente a beleza do Ramalhiio ¢ Sintra, Descrevia estes dois lugares incessantemente. Nestas descrigdes, encontramos algumas cenas singulares, tais como a entrevista no dia 19 de Outubro de 1787 a D. José em Cascais”, 0 jovem principe do Brasil e herdeiro ao trono, A veracidade deste facto relatado pelo escritor inglés foi (e ainda é) posta em causa. Aconteceu 0 mesmo, a uma cena descrita nos Sketches (1834), mais exactamente, acerca do jantat. como jovem poeta Bocage.a 9 de Novembro de 1787. Pois, sabe-se. que Bocage permaneceu em Goa de 1786 a 1789. Mas, Te6filo Braga diz que o poeta esteve em Portugal durante algum tempo em 1787. Em suma, nunca vamos ter certeza destes © Beckford di grande relevo 2 este facto no seu diério publicado, mas nunca o menciona no didtio manuscrito, No dia 19 de Outubro, que & o indicado no primeiro, nfo contém no segundo nenhuma 40 dois factos descritos nos Sketches, pois no existem provas suficientes nem para os negar, nem para os certificar. Durante a estadia em Sintra, Beckford alia a poesia ao espirito, descrevendo irénicamente pessoas € factos. A vivacidade da sua convivéncia social, a beleza dos passeios pelos campos e a dogura da musica continua®, fazem do seu diério publicado uma crénica de prazer. Entretanto, a ideia de Beckford em conseguir uma audiéncia real ainda nfo se tinha dissipado por completo. © Marqués de Marialva tentava tudo para convencer a indecisa rainha a receber Beckford, mas esta era uma mulher to religiosa que temia ofender a Inglaterra ao proteger os supostos vicios escandalosos do poeta inglés. Finalmente, a 28 de Setembro, Marialva informou Beckford de que todos os esforgos efectuados foram em véo, pois Walpole tinha conseguido denegrir, ainda mais, a imagem do escritor na corte inglesa e portuguesa. No fim do més de Outubro, Beckford deixou Sintra e regressou a Lisboa com o objectivo de partir imediatamente para 0 seu pais natal. Beckford acabou por deixar Portugal devido ao provincianismo, & sociedade ignorante e as intrigas politicas que o tentavam injuriar. Passou as suas tltimas semanas, em Portugal, com os Marialvas, ouvindo miisica, indo A igreja, aos bailados e a banquetes. ‘A 28 de Novembro de 1787, a sua jomada em direcgtio a Espanha comegou. Viajou com bastante comodidade desde Aldeia Galega®, passando por Vendas Novas”, Arraiolos”! e Estremoz, até a fronteira espanhola, na qual Ihe facilitaram a passagem . Da Peninsula Ibérica partiu para Fonthill, onde viveu acompanhado de trés cozinheiros, um pasteleiro, nove criados”, um médico, um conselheiro especializado em herdldica e outros peritos. Entretanto, Beckford foi passar as suas férias a0 lago Evian”, onde mandou construir varios pavilhdes. Estes foram executados por artistas parisienses. Quando o terror comegou a alastrar em Franga, Beckford decidiu retirar-se para a Itélia. referéncia’A entrevista, endo’preenchido antes com a desctigo de um passeio, tendo sidas as péginas~ soguintes arrancadas. Por isso, nifo existe nenhuma prova de que a entrevista se tenha realizado, Beckford tinha sua ordem uma orquestra reunida pelo regente da 6pera de Lisboa. © Hoje em dia, o Montijo, onde se instalou em casa do chefe do correio. Aqui, Beckford dormiu no Palécio que fora mandado construr por D. Joo V com o intuito de dormir rele apenas uma noite em 1729. Actualmente, o antigo palécio ¢ 0 quartel de Vendas Novas. *" Onde Beckford se abasteceu de lindos tnpetes pera a viagem, no caso de ir parar a algum aposento sem eles. ® Um deles era um anto italiano que servia & mesa. ® Zona termal em Franga. 41 Voltou a Portugal em Novembro de 1793”. Tinha entio, 33 anos. A vida embora tendo-o amargurado cada vez mais, devido a atitude fria dos ingleses perante os seus escindalos passados, enriquecera-o também, tomando-o ainda mais extravagante. O vestigio de loucura turbulenta que sempre fez. parte dele, no se acalmara com a idade, Para Portugal trouxe o Dr. Erhardt ”’, Franchi”, chefes de cozinha, lacaios e a sua banda privada de misica, Beckford ocupou uma quinta que alugara em Belém. Desta vez, no foi recebido em Portugal com as mesmas’calorosas boas-vindas da primeira vez. E é claro que neste momento, se arrependeu de ter recusado todos os bens e terras que Ihe tinham oferecido quando estivera c4 anteriormente. Até Henriqueta, a bastarda da familia dos Marialvas j4 se tinha casado com outro e, agora, Beckford dificilmente se poderia tomar um fidalgo portugués. A situaco politica portuguesa nesta altura também nao era das melhores. A rainha D. Maria I enlouquecera e governava o seu segundo filho, D. Joo que era um homem fraco. ‘Nesta 2°. época em Portugal, Beckford néo escreveu nenhum diério pessoal que * possamos comparar com os que relatam a sua primeira estadia em Portugal. Existem apenas, algumas cartas e as Recollections of an Excursion to the Monasteries of Alcobaga and Batalha, publicadas 40 anos depois (1835). Em vez de escrever, 0 poeta inglés dedicou-se principalmente 4 miisica e & devogaio”. José de Ribamar ajudou Beckford a renovar a sua amizade com os Marialvas e os prelados amigos. © inverno e a primavera foram passados em festas, miisica e igrejas. Beckford esforgava-se ainda por derrotar 0 embaixador inglés com 0 objectivo de ser apresentado a corte portuguesa. Realizou essa ambigdo de oito anos apenas em Maio de 1795”, mas o que interessa é que a sua batalha acabou por ser ganha. ‘Numa manha de Junho, Beckford foi convidado pelo Gréo ~ Mestre da Ordem de Aviz e pelo Prior de Sao Vicente para visitar os dois famosos mosteiros de Aleobaca » --- da Batalha, A excurstio durou.12 dias, acabando com uma audiéneia com.o principe regente D. Joo. A obra que derivou destas duas visitas trata-se duma narrativa Passado seis anos. ” Que veio da corte francesa e que assistiu & execugio do ree se tornous; portanto, uma personagem suuspeita aos olhos dos emigrados franceses em Lisboa, ™ Um velho amigo seminarista que conhecera em Portugal e pelo qual Beckford se apaixonou. ” Principalmente ao culto do Santo Anténio. encantadora e divertida cheia de incidentes, gragas, descrigdes”, pensamentos, ¢ invengdes. Por vezes, os fragmentos das varias histérias que contou nas suas Recollections no se adaptam logicamente uns aos outros, o que dificulta o trabalho dos investigadores. Tudo isto, derivou da sua loucura e da mania de se vangloriar. Apesar de tudo, a sua prosa é rica e fécil, sendo muito diferente daquela que nos ¢ apresentada pelos seus compatriotas viajantes"’. As Recollections sio compostas por cenas deliciosas, paisagens encantadoras e personagens bastante bem caracterizadas*'. Beckford ¢ alternadamente satirico, moralista, grosseiro, observador compreensivo € espirituoso. A parte principal da obra Recollections deve ter sido executada depois da excursaio a Alcobaga e 4 Batalha, quando Beckford subarrendou Monserrate™no Outono de 1795. Esta quinta pertencia ao Sr. Gerard De Visme, um comerciante inglés. Beckford falou deste local na sua primeira visita a Portugal, devido as suas terras, a sua localizago. Contudo, da primeira vez. o Sr. De Visme no quis alugar a quinta ao poeta inglés. Durante os anos em que Beckford esteve fora do nosso pais, 0 comerciante inglés deitou a casa abaixo e construiu outra em estilo gético. No decorrer dos meses de Agosto e Setembro de 1795, Beckford mandou reconstruir o edificio® ¢ arranjou os jardins™. O seu entusiasmo e energia mantinham-se inalterdveis ¢ ilimitados. No fim de Setembro, jé estava um pouco farto da calma do campo. Decidiu por esta altura, construir uma nova residéncia em Lisboa, Por dentro, 0 nosso luarento pais j4 0 aborrecia um pouco em finais de Setembro e Beckford ficou ansioso por conhecer ‘Napoles. Mas, nunca chegou a concretizar esse sonho. Quando decidiu partir para Itélia, ficou com receio de um corsério bérbaro que navegava nos mares, e por isso refugiou-se em Alicante. Depois, passou um tempo em Valenga e foi af que deixou de vez a ideia de ir para Népoles. Infelizmente, jé tinha mandado alguma bagagem para 1a: um piano- forte, vinhos, ete. ‘No fim do ano, mais exactamente em Dezembro de 1795, voltou para Portugal, onde ficou apenas trés meses. Desta altura, no existe nenhum escrito do que Beckford fez. por c4, exceptuando o..scu proprio testemunho, .que..diz que Ihe tinha sido. 7 através da ajuda do Ministro dos Estrangeiros em Portugal, Sousa Coutinho, ® De recordagiies ¢ de sonhos. ® Quo uilizam um estilo mais didéctico e afectado por ideias preconcebidas. * Prineipalmente as cOmicas. © Um desejo de ha longo tempo. © A um carpinteiro de Falmouth. * Alias, a jardinagem foi sempre um das suas predilecgies. 4B encarregado uma grande misao por parte do Principe Regente. Nao se sabe qual teria sido essa t&o notavel “encomenda”. No fim de Margo .(1796), voltou a sua atengéio para Franga, sem, no entanto, receber nenhuma resposta de gratidiio por parte dos ministros de sua majestade. Mas, niio teve melhor sorte em terras ftancesas devido as complicagées internacionais*. ‘Voltou a Portugal em Dezembro de 1798 e ficou ca até Julho do ano seguinte. Presumivelmente, visitou o seu amigo marqués e outros amigos intimos. O imico testemunho de Beckford em Portugal, por esta altura, encontra-se apenas num registo policial, que se refere a pristio de um tal de Anténio, pois este desapareceu com os cavalos supostamente pertencentes ao escritor inglés. Beckford nunca mais regressou a Portugal. Mas, num outro sentido também munca o deixou. Partiu em Julho de 1799 para Inglaterra. Fonthill, e a vida em Fonthill, encantou, fascinou, confundiu e escandalizou os seus vizinhos por muitos muitos anos: os ricos banquetes, as cerimonias pomposas, as curiosidades, a grandiosa lmciria, os misicos exéticos e as belezas extravagincias descobertas em varias partes do mundo. Todo este sentimento festivo, derivou de tudo 0 que Beckford encontrou em Portugal no tempo de D. Maria I e na corte Marialva, dos seus amigos e do que se passava nas suas proprias casas. Beckford guardou os seus di ingleses, que mais tarde os plagiaram. Em 1783, publicou Dreams, Waking Thoughts and Incidents. ios, rescreveu-os, mostrou-os € 1é-os aos seus amigos Os dois livros portugueses foram escritos com talento e génio. O escritor queria publicé-los. Em 1818, Moore, um amigo de Beckford, ficou relutante em editar os dois livros. Assim, Beckford acabou por desistir da ideia e deixou os didirios de lado até 1833. Os Sketches apareceram publicados em 1834, as Recollections um ano mais tarde. Em Margo de 1834, a guerra entre os dois irmaos" estava préxima do fim ¢ Portugal vivia sem qualquer prosperidade. Beckford, nfo teria encontrado ja nada que Ihe agradasse, Se tivesse voltado, iria ser sempre. um estranho, a, nfio ser.que fosse exilado c4, hostil a tudo o que visse e ouvisse. O seu Portugal estava, de facto, morto, chacinado pelos exércitos de Napoledo. Nunca mais seria o mesmo. Ao preparar, © Acontecimentos relacionados com a Revoluglo francesa, *D, Pedro e D. Miguel organizar e embelezar as suas memérias para a publicagilo, para além de uma ambigo gratificante sentiu também uma melancolia solitiria. ‘Aos 75 anos afirmou que esta obra seria uma composigao inovadora, escrita com base em pequenas notas. Reviveu as antigas memérias dramiticas, a beleza exética, as paixdes ¢ romances e as longas temporadas que passou em Portugal, o que o fez sentir-se como 0 jovem turista que se encontrava na obra que ele proprio escrevera. Fora sempre recebido em Portugal, em grande! Em suma, as duas obras que Beckford escreveu sobre Portugal so verdadeiras obras de arte literdrias, principalmente devido ao extravagante temperament do artista. Porém, nfo tiveram qualquer tipo de influéncia na formagiio da imagem do nosso pais, na Europa do século XVII, pois trataram-se de livros que foram publicados tardiamente, apenas no século XIX*, mais exactamente durante as lutas liberais em Portugal. " aly ; with Sketches of Spain and Portugal (1834) e Recollections of an Excursion to the Monasteries of Alcobaga and Batatha (1835) Major W. Dalrymple Sir Hew Whiteford Dalrymple (1750 — 1830), general inglés, foi chamado a Gibraltar para se tomar oficial daquela guamnigio, quando em 1774 Ihe ocorreu realizar umia viagem por Portugal e Espanha, Um dos seus principais desejos era conhecer a Academia Militar estabelecida pelo general O’Réillly em Avila. Apés ter terminado a sua excursio pela Peninsula Ibérica, ainda serviu 0 Duque de York (1793) na Flandres e tomou-se governador de Guemesey (1796). De seguida, voltou a Gibraltar, para ser ali governador (1806). Durante a guerra da Independéncia de Espanha, em 1808, tomou parte nela, mandando reforgos ingleses para Portugal. Assinou também a convengiio de Sintra com o general napoleénico Junot, acto desaprovado pelo seu governo. Devido a este erro militar, teve de se apresentar perante uma comisso que o desculpou, mas a partir dai nunca mais conseguiu obter nenhum servigo no activo, Em 1812, tornou-se general, devido aos seus inimeros anos de servigo prestados ¢, finalmente, morreu em 1830. Travels through Spain and Portugal, in 1774, with a short account of the Spanish expedition against Algiers in 1775, foi publicado pela primeira vez no ano de 1777. Esta obra foi traduzida para a lingua alema no ano seguinte (1778), intitulando — se Reisen durch Spanien und Portugal im Jahr 1774: nebs einer Kurzen Nachricht von der spanischen Unternehmung auf Algier im Jahr 1775.4 tradugao francesa aparece — nos em 1783, tendo sido elaborada por um oficial francés que a dedicou & condessa de Ligniville. Este didrio é composto por varias cartas, como j4 era natural na época entre os viajantes, escritas no final de cada dia. seu livro na parte portuguesa da a impressdo de que a sua vinda ao nosso pais teria como objectivo inspeccionar os oficiais ingleses, que depois da campanha de 1762 permaneceram em Portugal. Talvez devido a essa razio, e por nfo ter contactado suficientemente com a realidade nacional, a sua obra revela — se uma das mais detractoras em relagio a Portugal e aos portugueses, contendo criticas exacerbadas generalizagbes um tanto ou quanto abusivas. ~ Podemos dizer que 0 Major Dalrymple obteve 0 seu reconhecimento dentro da literatura de viagens da segunda metade do século XVII devido a Willian Beckford, Voyage en Espagne et en portugal dans l'anée 1774, avec une relation de I’Expedition des Espagnol conte les algeriens en 1775. Outra das teorias apresentadas & que Dalrymple veio em missio de espionagem ao nossorpais: ¢ 46 Ia primera ciudad de Europa. pois 0 poeta inglés trouxe consigo, na sua viagem a Portugal (1787),, uma cépia do didrio do major. Nunca conseguiremos perceber esta selecgio de Beckford, pois para ele © livro de Dalrymple era seco, cansativo e fraco. O estilo de escrita do major inglés é muito ponderado e bastante desanimador, 0 que faz, com que as descrigdes do nosso pais se tomem muito aquém da realidade. O \inico ponto de interesse no didrio de Dalrymple é, sem davida, 0 vasto inventério que claborou de igrejas, mosteiros, casas, manufacturas e quintas. Também descreveu medianamente os modos de agricultura, 0 estado do exército portugués, a gastronomia, os vinhos e, obviamente, 0 nosso povo. Sao raras as vezes em que deixa transparecer bons sentimentos e, se o faz, de seguida, tem sempre algo de menos bom a referir. Este caso é bem visivel no inicio da viagem ao nosso pais, quando Dalrymple descreve 0 Porto™(CartaXI): “Han comezado aqui un hospital sobre un plano inmenso y magnifico: estiman que costard cuatro 0 cinco millones, Es una empresa tan prodigiosa, que jamés podrén acabarlo. Es absurdo haber destinado un tal edificio a esta ciudad, todas cuyas riquezas no bastarian para pagarlo; seria digno de embellecer at Do Porto partiu para Lisboa, dando relevancia durante a viagem & universidade, aos conventos” e ao observatério” em Coimbra. Ao longo do caminho mencionou ainda a manufactura de chapéus franceses em Pombal, a fibrica inglesa de vidros da Marinha Grande, os mosteiros da Batalha e de Alcobaga. Passou pelas Caldas, Obidos e por Mafra, considerando 0 mosteiro um trabalho estupendo, Antes de entrar em Lisboa descreveu Sintra de uma maneira agradvel e romantica, mas pouco talentosa. Finalmente quando chega 2 Lisboa comega a descrig#o da capital portuguesa de um modo um pouco mordaz: “Voy a daros los mejores detalles que he podido procurarme sobre esta infortunada ciudad"”* . E, foi exactamente assim que viu Lisboa, procurando pormenores ¢ descrevendo - os sinteticamente. : ‘Ao longo da leitura desta obra, o major Dalrymple tece ainda opiniGes sobre a corte portuguesa”’, 0 comércio”, 0 governo da época”, o teatro”, o povo portugués”,e finalmente, sobre o amor a portuguesa’. °° © Porto foi a segunda cidade visitada por Dalrymple, tendo sido a primeira Braga. * MERCADAL, J. Garefa ~ Viajes de extranjeros por Portugal e Espafia V, p. 217. % Principalmente ao de Santa Cruz. ® Que se encontrava sob a tutela de wih tenente coronel inglés, o oficial Eifden. ¥ MERCADAL, J. Garcia ~ Viajes de extranjeros por Portugal e Espafta V, p. 221 % Considerando —a pouco elegante. - 47 seppe Baretti Giuseppe Baretti nasceu em Turim a 25 de Abril de 1719. Pertencia, provavelmente, a média burguesia desta cidade italiana, Era o terceiro filho da familia e, por isso, livre de encargos familiares, podendo assim, adquirir uma s6lida cultura, escrever e viajar. Baretti mudou — se para Veneza ainda bastante novo, Ai, tomou — se amigo do conde Gasparo Gozzi ¢ de outros intelectuais. Mais tarde, viaja para Millio, onde contactou com personalidades da cena cultural da época, entre elas Imbonati, Tanzi, Passeroni, Parimi e outros. Nesta altura teve de se sujeitar ao emprego de supervisor de obras nas fortificagdes militares em Luveo, terra onde residiu durante algum tempo. Depois das ditas obras terminadas, depressa refomou uma vida errante, boémia ¢ n6mada entre as cidades de Millio, Veneza e Turim. Em 1751 acaba por partir para Londres, pois a esperanga de encontrar uma ‘ocupagdo decente no seu pais tomou — se nula, JA em Londres, abre uma escola de lingua italiana e publica um dicionério que alcangou um sucesso considerével. Em 1760 volta para Itilia, atravessando Portugal, Espanha ¢ Franga. Chegando a Milio ¢ com a ajuda de Imbocato, entre outros, publica o primeiro volume das Lettere Samiliari di Giuseppe Baretti ai suoi tre fratelli Filippo, Giovanni e Amadeo ™ (Miliio, * Que de dia para dia cai em ruina, por causa da prodigiosa situagio econémica da corte ¢ dos sovernantes, 5 2 Trata ~se de um autortarismo absolutoliderado pelo Marqués de Pombal. * Que para o major inglés ainda se encontra muito atrasado, pois os actores s6 comegaram a representar gq lingua portuguesa dezassete anos antes da sua Viagem (1774). » Que no ponto de vista de Dalrymple ¢ ignorante, devido ao despotismo ¢ vingativo, mas também 6 um ovo sdbrio. ©" srrebatado, cego e cheio de chime & mistura. ©" Cartas escritas em italiano de forma epistolar e dedicadas & familia como o proprio titulo indica. 48 1761"). Baretti volta a visitar Veneza, onde o segundo volume das Lettere (1763) ea Frusta Letterdria (1763) so dadas 4 estampa. A polémica que se gerou em torno desta liltima obra, que atacava 0 neoclassicismo académico dominante na literatura internacional da época, obriga ~o a voltar a Londres, onde falece aos 70 anos em 1789. No prefiicio da edigdo inglesa da sua obra 4 journey from London to Genova, through Portugal, Spain and France (1770), 0 autor indica que foi devido aos conselhos do seu mestre, Dr, Johnson", que decidiu escrever um diario sobre a sua viagem. A edig&o inglesa foram retirados os juizos e expresses mais agressivas para Portugal, pois quando a obra apareceu pela primeira vez em italiano, 0 embaixador portugués da altura, Freire de Andrade, protestou. Ent, Baretti resolveu ser mais cauteloso no texto inglés. Relativamente ao estilo de escrita, Giuseppe Baretti, foi influenciado pela sua formagio cléssica obtida no bom ambiente cultural inglés. Este modo de escrever encontra ~ se bem patente no estilo correntio ¢ na curiosidade insacivel pelos detalhes ‘humanos e pormenores culturais que descreve. Baretti esteve em Portugal em 1760 e foi um viajante por exceléncia, sem outro objectivo que no fosse o de se divertir, ver gentes, coisas ¢ costumes diferentes dos que 4 conhecia e recolher informagées para elaborar uma obra que satisfizesse 0 Dr. Johnson, a quem teria de agradar. A pedido do seu mestre inglés, Giuseppe desereveu tudo 0 que viu pormenorizadamente sem omitir os detalhes mais insignificantes. Este aspecto, justifica em parte, o mal que o autor diz acerca do povo portugués © as generalizagdes apressadas e incorrectas que tece sobre Portugal. Apesar disso, as suas cartas sfio documentos informativos de grande interesse devido A fidelidade da descrigao. Lendo o livro, ficamos a perceber 0 que Baretti pensa sobre os varios aspectos da nago portuguesa na segunda metade do século XVIII. Em relagao a nossa literatura, somente Camées ¢ D. Jerénimo Osério Ihe merecem consideragao. No que toca as casas ¢ alojamentos, Baretti refere — se a proliferago de cabanas de madeira. As hospedarias descreveu ~ as como sujissimas e cheias de bichos,,sendo.a. alimentago servida de muito ma qualidade. 292 Informagao de data retirada do livro de Carlos Garcia~ Romeral Pérez, Bio ~ Bibliografta de Viajeros por Espafia y Portugal, apesar de na obra Os livros de-viagens em Portugal no século XVII e a sua projecgao europeia de Castelo Branco Chaves se encontrar a referéncia a 1762, A edigio de 1762 jé é referente & publicacéo veneziana e nfo milanesa, 4° amigo inglés de longa data. Baretti era um frequentador ass{duo da sua casa ¢ tertilia: 49 Quanto aos habitos alimentares, Giuseppe fica bastante admirado com a cozinha conventual quando visitou 0 convento de Mafra, pois considera ~ a tradicionalmente requintada ¢ abundante. Outro dos aspectos que o autor relata positivamente trata — se do vestuario dos nobres portugueses, achando — 0 de bastante bom gosto devido as suas cores € por serem a francesa’. A tourada também foi outro dos pontos de interesse de Baretti, pois ficou espantado com a coragem e a agilidade dos toureiros portugueses. '°* J4.a opinido de José Gorani que, também ¢ italiano e esteve em Portugal sensivelmente na mesma época que Bareti, € contréria 50 Giuseppe Gorani A 15 de Fevereiro de 1740 nasce em Milo, Giuseppe Gorani. Veio do seio de uma familia aristocritica e ingressou no exército quando terminou os estudos secundétios. Esta escolha pela via militar fez com que a seus parentes 0 renegassem, pois para a familia, Gorani, estava destinado a vida eclesidstica. Combateu na Guerra dos Trinta Anos ao servigo das tropas austriacas italianas. Depois desta etapa da sua vida, entrega — se a uma existéncia aventurosa que o leva a viajar pela Europa com o fim de obter recursos monetétios para uma eventual conguista da Sicilia’, Para além disso, trabalhou para varios govemos e cumpriu as mais Variadas e secretas missdes ao servigo destes. Quanto 4 sua formagio cultural era, essencialmente, de cariz autodidata, enriquecida pelas miiltiplas experiéncias humanas e sociais'™ vividas ao longo do seu percurso. Em 1765, Gorani chega a Portugal”, muito provavelmente em missiio de espionagem'*. Conseguiu um facil acesso & corte portuguesa devido as dptimas cartas de apresentagéio que trazia consigo e tormou — se amigo do Marqués de Pombal!”™. Giuseppe foi também membro da magonaria, tendo sido por isso perseguido e ameagado pela Inquisieao. Em 1767 deixa Portugal, incumbido de miss diplomitica secreta a0 "A qual Ihe caberia por heranga dos avoengos. Mas, apesar de todos os esforgos Gorani acabou por nfio conseguir tomnar— se rei da Sicilia °* Foi diplomata de Maria Teresa de Austria. Para além disso, era amigo de Voltaire e foi ajudante de Mirabeau em Paris. '” Passando antes, mais precisamente em 1764, pelo Norte de Atica e por Espanha. Tal como o seu contemporineo Giuseppe Baretti anos antes, mais exactamente em 1760. "™ Apesar de Gorani discordar vivamente com governo repressivo instalado em Portugal nesta época. 51 servigo do Marqués. Passado uns anos teve de fugir para Itélia, pois envolveu ~ se numa série de intriges enquanto cumpria 0 seu dever. JA @ii"terras italianas conhece Metastisio, Beccaria, Visconti, Frisi e outros letrados e inicia uma carreira literéria, que foi parcialmente interrompida por uma breve participago na Revolugdo Francesa. Em Genebra, escreve um livro em francés com o titulo Mémoires (Paris, 1793), onde conta a histéria da sua vida e das suas viagens. Giuseppe Gorani acaba por momer em Genebra em 1819. Gorani foi um dos poucos viajantes estrangeiros em Portugal que possufa um verdadeiro estofo de intelectual. Tinha algum talento como poeta e libretista, actividades que menciona, alis, no seu livro sobre 0 nosso pais. A sua obra é uma das menos preconceituosas em relago a Portugal, pois para Gorani o atraso da nossa nag‘io devia — se maioritariamente A dinastia reinante ¢ a0 govemno déspota em que viviamos", sabendo o autor distinguir as qualidades intrinsecas do povo portugués independentemente do governo que possuia. As suas criticas so menores e comuns as de todos os outros viajantes que. assaram por territério portugués. Nelas refere o mau estado das estradas, a ma qualidade das hospedarias e, em relagdo a Lisboa salienta a falta de polici sujidade das ruas nao calcetadas. Quanto as instituigdes religiosas, Gorani elogia o nivel cultural do clero jamento ¢ a portugués, que foi largamente denegrido por outros escritores. Relativamente A classe militar, o autor italiano congratula a sua disciplina ¢ apresentacdo exterior. No que respeita a0 comércio raramente ouviu falar em faléncias, considerando por isso mesmo, os Comerciantes portugueses gente honesta ¢ activa nos seus negécios. Giuseppe também opina sobre os costumes da sociedade portuguesa da época ¢ em termos de vestuério'! diz que as mulheres portuguesas desprezavam a moda 12, mas no entanto descreve as suas roupas com um tom de bom gosto. francesa’ Verificamos portanto, que Giuseppe Gorani tentou sempre suavizar os aspectos menos.bons do.nosso pais, dando, um maior.énfase & parte. positiva, ao longo do seu livro sobre Portugal. "© Gorani regia ~ se segundo principios filos6ficos e ideol6gicos de desprezo pela autoridade despética. 11 Feminino principalmente, pois o masculino & objecto de menor atenco por parte dos viajantes estrangeiros, obviamente. <= 52 Marqués de Bombelles O Marqués de Bombelles ‘nasceu em Bitche e foi pajem na corte de Luis XV. Durante a Guerra dos Seté Anos esteve ao servigo do exército francés como oficial. Dépois, tomou — se embaixador de Lufs XVI e no inicio da Revolugio Francesa, seu agente secreto, Também foi general no exéreito de Condé. Todas estas fungdes no 0 impediram, contudo, de ter sido um homem de carécter affvel, um bom pai de familia € um bom marido, Como pelo proprio nome indica, Bombelles, veio do seio de uma familia nobre. Era filho do conde de Bombelles, também ele tenente -. general dos exéroitos do Rei, ‘governador da cidadela de Bitche um téctico prestigiado. Os Bombelles pertenciam & pequena nobreza, mas eram uma familia de antiga Tinhagem. Desde hé muito que serviam os exércitos reais e pareciam preocupar — se mais com a honra e estima do que com a riqueza, O Marqués de Bombelles teve um pereurso muito agitado até ao Tratado de Paris em 1763, mas 0 regresso da paz faz com que consiga aperfeigoar a educagio que Ihe foi negligenciada na sua inffincia, devido A morte prematura dos pais. Para além disso, a vida dura dos campos de batalha também Ihe retirou a possibilidade de estudar. Portanto, a partir de 1763, os objectivos principais do Marqués eram dois: conhecer 0 mundo e nele conviver com gentes de crédito e inteleotuais. Fisicamente, nfo era muito atraente, sendo um homem de pequena estatura, mas clegante. Psicologicamente, pode dizer — se que possufa uma viva inteligéncia © um espirito requintado, amadurecido por uma experiéncia precoce. Socialmente, tratava ~ se de um conversador espirituoso, tendo sido.também um excelente misico', compositor © poeta ocasional. Era moderado nas suas opiniGes politicas ¢ religiosas quando convivia em sociedade. De 1775 a 1780 foi embaixador em Ratisbona. De seguida, fica cinco anos sem o lugar, pois nfio era muito bem visto pela Rainha'*, Quando chegou a Portugal'!®, 0 Marqués de Bombelles foi recebido com uma certa desconfianga.como era habitual na sociedade portuguesa da época, apesar desta ter sido’ logo neutralizada. A sua fungGo, em relagio ao nosso pafs, era meramente 2 Opinido diferente possuia Giuseppe Bare 8 Tocava clavicérdio. No entanto, as relagées da mulher com a irma de Luis XVI, a rainha Elisabeth Marie, acabam por relativizar essa inimizade, ‘5 Bm 1786, nas vésperas da Revolugio Francesa. 53 diplomtica, tendo como missio apagar o prestigio inglés e assinar um tratado comercial com Portugal, mas ndo foi muito bem sucedido. Quanto ao didrio do Marqués sobre Portugal, que se entitula Journal d ‘un Ambasseur de France au Portugal:1786 ~ 1788!"*, o trunfo utilizado pelo autor é, sem diivida a sinceridade, pois parece que este escreve para si mesmo!!” ou ento para os seus parentes mais préximos. Entfo, observa e julga com toda a liberdade ¢ fidelidade as factos, sem abandonar a sua fineza e dignidade naturais. O seu jomal de viagem, escrito em estilo correntio, num tom familiar ¢ intimista, espelha os sentimentos de um homem consciente da sua época face ao Portugal pés — pombalino, estagnado, fechado sobre si mesmo e Europa. Para o Marqués de Bombelles um dos pontos fortes do nosso pafs 6, sem diivida, 8, Quanto ao resto da descrigdo sobre Portugal, o Marqués é tio fiel ao que os © clima’ seus olhos véem e aos seus principios, que se tora quase imposgiyel descobrir elogios oua falta deles ao longo do didrio. As tnicas criticas mais visiveis sio em relago a desigualdade © m4 * pavimentagdo do solo lisboeta, aos gastos excessivos da nobreza ¢ as atitudes libertinas do clero'”®. 6 Editado apenas em 1979. 1 Para se reler mais tarde. 8 Considerando — 0 soberbo. "® Bombelles fala de comportamentos impréprios, da parte do clero, numa procisséo lisboeta, na qual viu ‘monges langarem olhares pouco decentes a certas mulheres.

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