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A REPRESENTAÇÃO DE CORPOS MARGINALIZADOS NOS POEMAS DE

LOBIVAR MATOS E LUCIENE CARVALHO


Juliane Regina de Souza Pereira1
Isaac Newton de Almeida Ramos2

RESUMO
Este trabalho tem por objetivo analisar as representações das vozes de certos corpos
considerados “marginalizados” presentes nos poemas “Homens e pedras” e “Dona Maria”.
Essas produções líricas estão, respectivamente, nas obras Areôtorare: poemas boróros (1935)
de Lobivar Matos e Dona (2018) de Luciene Carvalho. Sob essa temática, um dos conteúdos
pertinentes nas produções poéticas de ambos, encontra-se o contexto que escancara as
mazelas do corpo social considerado como “a ralé, os desgraçados, enfim o lupem proletariat
(Marx).”. Esse tema, nos estudos literários, faz parte dos parâmetros responsáveis na
composição das obras literárias que se coadunam na estética Modernista; dentro desse estilo,
há fórmulas que podem ser matrizes para a elaboração de poéticas livres das amarras da rima,
de ritmos cadenciados em versos brancos e de poemas com entendimento mais acessível à
gente simples. No que se refere a produção deste artigo, procura-se analisar a representação
dessas vozes e como elas se compõem a partir dessa estética. Busca-se, neste caso, trazer as
reflexões acerca dessas representações sociais dos textos líricos aqui trabalhados. Doravante
a isso, tem-se como corpus os poemas supracitados, esses, acompanhados de sua análise a
partir do deslindar dos textos teórico e crítico de estudiosos como: Araujo (2009), Bosi (1977),
Candido (1996), Castrillon-Mendes (2020), Marli Walker (2020), Sartre (2015); assim,
juntamente com outras pesquisas que se fazem necessárias para o diálogo do gênero poema e
de sua crítica. Também, são parte deste labor analítico, a historiografia literária produzida no
estado de Mato Grosso, nesse caso, presente nos escritos de Carlos Gomes de Carvalho
(2008), José de Mesquita (1936) e Rubens de Mendonça (2015).

Palavras-chave: Literatura produzida em Mato Grosso. Lobivar Matos. Luciene Carvalho.

1
Mestranda pelo Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários (PPGEL/UNEMAT). E-
mail: pereira.juliane@unemat.br
2
Professor Dr. pelo Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários (PPGEL/UNEMAT). E-
mail: isaac.ramos@unemat.br
Introdução
O presente trabalho tem como objetivo apresentar uma breve análise
sobre os estudos da poesia de Lobivar Matos e de Luciene Carvalho; busca-se,
também, reavivar pesquisas sobre as vozes do lupemproletariat3 presentes na
lírica de ambos. Nas obras Areôtorare: poemas boróros (1935) e Dona (2018)
constam uma lírica com poder significativo na produção literária desses
escritores. Tais labores poéticos depreendem o dissabor de corpos
estigmatizados, que se encontram à margem de uma sociedade arraigada pelo
consumismo exacerbado. Nesses teares poéticos, há uma constante dos
poetas em rimbombar brados desses sujeitos, ditos como marginalizados.
Destarte, a poética desses autores apresenta uma crítica e denúncia
social em forma de versos livres, sem as amarras da metrificação e a cadência
através das rimas ricas; visto que essas características são vigentes entre os
escritos da primeira fase do Modernismo brasileiro. As criações líricas de
Lobivar Matos e Luciene Carvalho trazem, em sua essência, representações do
universo social de sua experiência. Por assim dizer, os poetas recorrem à
denúncia do sujeito marginalizado, apresentando certas “revelações” deste tipo
de estigmatização social por meio de representações figurativas em suas
tessituras poéticas.
A poesia desses escritores tem uma relação intrínseca com o
Modernismo brasileiro, tendo sido influenciado pelos movimentos de
Vanguarda; esses, também, experienciados em Mato Grosso, como novos
paradigmas de ruptura da forma fixa e a representação do panorama no
contexto sociocultural de sua época. A concepção de que os fatos sociais e
culturais determinam e são determinadas as/pelas obras artísticas é apontada
por Antonio Candido, que define a posição do artista como:
[...] um aspecto da estrutura da sociedade (...) importa averiguar
como esta atribui um papel específico ao criador de arte, e como
define a sua posição na escala social, o que envolve não apenas o
artista individualmente, mas a formação de grupos de artistas. Daí
sermos levados a indicar sucessivamente o aparecimento individual

3
No original, em alemão, o conceito marx/engelsiano de lumpemproletariado é chamado
lumpenproletariat. As diversas traduções, apesar de não divergirem em grande medida, são
apresentadas da seguinte forma: lumpemproletariado, lumpenproletariado, lumpén-
proletariado, lumpen. Optamos tanto pela manutenção da forma escrita no original, em alemão,
quanto pela forma lumpemproletariado, sendo as citações divergentes, oriundas do respeito à
tradução realizada em cada obra. CINACCHI, 2020
do artista na sociedade como posição e papel configurados.
(CANDIDO, 2006, p.34).

Há na literatura brasileira, manifestos literários que mudaram a forma


com que cada indivíduo interpreta a realidade e como a encara. Como o caso
do Modernismo. O período de transição entre os séculos XIX e XX foi marcado
por grandes descobertas, evoluções tecnológicas, o homem quer viver bem e
confortável, este é o período da belle époque. Encontra-se, então, um
momento de êxtase do progresso industrial e os avanços dos estudos
científicos sofre um choque com a Primeira Guerra Mundial (1914-1918),
aumentando as rivalidades internacionais, crise na Europa, a Segunda Guerra
Mundial (1939-1945). O século XX foi também a terceira fase da revolução
Industrial e o da conquista espacial.
Todos esses momentos da história transformaram, tanto o mundo, como
também o modo de vida e de pensar das pessoas. Tudo isso contribuiu com
certas condições para o surgimento de diversas tendências artístico-culturais
que se refletiram no Modernismo: Futurismo, Expressionismo, Cubismo,
Dadaísmo e Surrealismo.
Para Gilberto Mendonça Teles:
As ideias filosóficas e sociológicas, bem como o desenvolvimento
científico e técnico da época, contribuíram para a inquietação
espiritual e intelectual dos escritores, divididos entre as forças
negativas do passado e as tendências ordenadoras do futuro, que
afinal predominaram, motivado uma pluralidade de investigação em
todos os campos da arte e da literatura. Daí o nome da vanguarda
para caracterizar o período literário que se estende dos últimos anos
do século XIX. (TELES, 1997, p. 97).

Nas vanguardas europeias do século XIX nasceu o “espírito novo”. Na


época, houve uma grande inquietação dentro das elites das ciências e da
indústria, como também, das artes e letras. Este espírito novo foi gerado ao
grande “rebuliço” das cidades, em meio às revoluções industriais e
tecnológicas. O movimento estético modernista provém do berço parisiense, e
depois, alastra-se para o mundo.
O Brasil se encontrava, depois da Primeira Guerra Mundial, em uma
ligação mais estreita com o Ocidente europeu. As vanguardas artísticas
europeias tiveram um grande efeito, pois as agitações sociais trouxeram
considerável nível de consciência literária, inspirações populares e muitas
produções artísticas e literárias. A Semana de Arte Moderna aconteceu um
mês depois da chegada de Graça Aranha da Europa, em novembro de 1921,
“tudo leva a crer, portanto, que os nossos primeiros modernistas, de olho vivo
nos últimos acontecimentos literários de Paris e compelidos – talvez até pelo
próprio texto de Apollinaire – a lutar por uma literatura nacional, acabassem por
negar as origens estrangeiras da renovação que pregavam.”. (TELES, 1997,
p.32)
Assim, o movimento modernista, ou a literatura em si, é considerado
retrógrado pelos estudiosos da literatura mato-grossense, devido às distâncias
das grandes cidades com o estado, mesmo com o progresso da comunicação
entre as cidades, a comunicação era precária. Devido a isso as ideias de estilo
modernista apareceram tardiamente em Mato Grosso.
Entretanto, a partir das reflexões e conceituações sobre a estética do
Modernismo expostas acima, torna-se válido a conceituação do que se trata de
produções da modernidade e da estética modernista. Segundo Haroldo de
Campos, na obra O arco-íris branco (1997) a “expressão ‘modernidade’ é
ambígua. Ela tanto pode ser tomada de um ponto de vista diacrônico, histórico-
evolutivo como de uma perspectiva sincrônica: aquela que corresponde a uma
poética situada (...)”. Mais à frente Haroldo de Campos cita Octávio Paz, onde
ele coloca em xeque a conceituação histórica do labor poético e suas
significações, a “literatura moderna, é ela moderna? (...) há um conflito entre
poesia e modernidade que tem início com os pré-românticos e que se prolonga
até nossos dias.” (PAZ apud CAMPOS, p. 248. 1997)
Sobre essas reflexões provocativas, pelos preâmbulos críticos das
produções desses poetas, talvez, seja possível uma ruptura no seguimento
desse padrão estético; trata-se aqui apenas um questionamento sobre a
atemporalidade da tessitura poética desses escritores que utilizam a voz lírica
como voz crítica. De acordo com Campos, pôde-se arriscar uma definição onde
“temos um oximoro poetológico: o poema crítico.”. (HC., P.253. 1997)

A lírica de Lobivar Matos e de Luciene Carvalho


As vozes dos sujeitos poéticos nos poemas “Homens e pedras” e
“Dona Maria” emanam a inquietude daqueles que, estando na marginalidade,
recebem a oportunidade através dessas produções de versarem certas
injustiças sociais resultantes da exploração capitalista, sendo esse fenômeno
um dos grandes responsáveis pela marginalização desses sujeitos. Para Fanon
(1968), “a constituição de um lumpenproletariat é um fenômeno que obedece a
uma
lógica própria (...) semelhante a uma rataria (...) significa o apodrecimento
irreversível, a gangrena instalada no coração do domínio coloquial.”. (1968, p.
107)
Os escritores buscam em sua lírica contextualizar as condições desses
corpos lupe proletariat, e que por meio da fruição lírica externalizam essas
vozes poéticas que continuam a ecoarem e resistirem à exclusão aos direitos
básicos de viver. Desse modo há uma incoerência que se reproduz nessas
condições não dignas e precárias; observa-se em seus poemas o intuito de
reverberar a desumanidade desses marginalizados, que constantemente, os
vemos alheios aos direitos básicos de um indivíduo que pertence a uma
sociedade que tramita entra o caos e a ordem em busca dessa utópica
equidade de direitos. Em suma, as tessituras poemáticas de Lobivar Matos e
Luciene Carvalho funcionam como veículo de denúncia, de engajamento
político e social.
A obra Areôtorare apresenta um poeta modernista arraigado de
criticidade, acidez e sensibilidade no que concerne às discrepâncias sociais de
sua época, segundo ele “os poetas da geração moderna são obrigados a falar
nas coisas humildes, nos dramas cruciantes dos desgraçados, dos miseráveis,
dos párias sem pão, sem amor e sem trabalho” (in Coleção Obras Raras. 2008,
p. 27). E no segundo livro publicado Sarobá (1936), que é analisado nesse
trabalho, o poeta elucida que Sarobá é “a mancha negra bulindo na cidade
mais branca do mundo” (in Coleção Obras Raras. 2008, p. 110).
Assim, como há nas análises que abarcam a lírica de Lobivar Matos em
forma denúncia, onde seu texto poético apresenta sob os holofotes o ser
situado à margem, existe uma outra poeta que aparentemente também emana
de seus escritos vozes, também de margem: Luciene Carvalho, mulher negra
que faz parte entre significativos nomes no âmbito da cultura de Mato Grosso,
a escritora se tornou integrante da Academia Mato-grossense de Letras (AML)
antes mesmo de galgar uma graduação.
Para Luciene Carvalho a poesia não é lazer, é arma de luta, segundo
suas palavras no livro Insânia (2009), ser poeta “não é festa,// é posição de
vida.// Não é escolha,// É postura.” (Carvalho, p.55). Segundo a poeta, a lírica
pode ser um instrumento político, de luta e de denúncia sobre as mazelas
sociais e dos estigmatizados por essas; em sua obra Dona (2018), o poeta
assume um papel engajado, esse sujeito lírico ressalta que, o “verso é
periférico;// pulou o muro,// entrou pela janela,// veio pela entrada de serviço// -
eu sei disso.” (Carvalho. 2018, p.88).
Partindo do que foi exposto acima, sobre as tessituras poéticas como
uma ferramenta de engajamento político e social, há uma alusiva nos escritos e
pensamentos sartreanos, acerca dessa função da literatura. Essa detém um
significado de engajamento social na busca de soluções dessas problemáticas.
Segundo o filósofo francês em sua obra Que é Literatura? (2015), o escritor
literário possui um olhar crítico, atento, político e se posiciona como mediador
da realidade que entorna entre o oprimido e a sociedade opressora,
escancarando esse paradigma em seus escritos.
Sartre situa o escritor engajado como um corpo fundamental de
intervenção e que deve assumir esse seu papel importante em qualquer
conjectura social, segundo o pensador esse sujeito engajado por meio de suas
tessituras apresenta as estigmatizações sociais de um modo em que os
consumidores de tal literatura possam refletir e ponderar, aderindo ou não às
ideias expostas pelo escritor. Para filósofo francês:
[...] um escritor é engajado quando trata de tomar a mais lúcida e
integral consciência de ter embarcado, isto é, quando faz o
engajamento passar, para si e para os outros, da espontaneidade
imediata ao plano refletido. O escritor é mediador por excelência, e o
seu engajamento é a mediação. (SARTRE, 2015, p. 66-67).

As obras poéticas de Lobivar Matos e de Luciene Carvalho possuem ao


mesmo tempo nuances iguais e diferentes, esse embate tornou-se um dos
guias de estudo dessa pesquisa. Para tanto, tem-se como farol os estudos
literários, em seu fazer relações e comparações desses objetos de pesquisas
sendo os quais já delimitados anteriormente. Tende-se, nesse caso, a
compreender como se dá esse discurso poético de denúncia social e como dá
voz a sujeitos afetados pelas mazelas de uma sociedade moderna a partir das
produções literárias de Lobivar Matos e de Luciene Carvalho, e pelo prisma
teórico de Antônio Candido em Literatura e Sociedade, para Candido a
literatura se apresenta como um instrumento fundamental para a compreensão
do indivíduo como um ser agente da sociedade e ao mesmo tempo um
indivíduo condicionado/afetado por ela.
Ademais, tem-se como premissa a ideia de que o labor literário possui
uma real importância no que concerne à comprovação do estigma social
presentes em certos corpos, assim como já exposto, a fruição lírica concebe
uma importância de cunho político e social. Segundo Candido (2006) a “criação
literária corresponde a certas necessidades de representação do mundo, às
vezes como preâmbulo a uma práxis socialmente condicionada”, também
pontua que “tanto quanto sabemos, as manifestações artísticas são inerentes à
própria vida social” e ressalta que essas criações são “socialmente
necessárias, traduzindo impulsos e necessidades de expressão”.
A Literatura é a arte da palavra, a arte literária que consiste no trabalho
de criar/recriar a realidade através da linguagem. Ferreira Gullar define arte
como “uma transfiguração simbólica do mundo. Quer dizer o artista cria um
outro – mais bonito ou mais intenso, mais significativo, ou mais ordenado – por
cima da realidade imediata.” (GULLAR, 2003, p. 09). Por meio da palavra o
artista engendra, constrói, delata, cria e transforma a realidade. Apresenta
paradigmas e molda uma realidade de significação própria, produzindo no
público e no criador um efeito imediato. Transformando a concepção de
mundo, e chega a modificar a conduta do indivíduo.

Análise do poema “Homens e pedras” de Lobivar Matos e uma breve


historiografia de suas produções
Sabe-se que a arte está ligada às sensibilidades, na qual suas raízes se
fundem na filosofia, gerando a objetividade requerida pela nova estética. O
poeta Lobivar Matos é considerado um modernista por excelência, foi contrário
às imposições feitas pelo academismo, à época do Parnasianismo. Propagava
a liberdade de criação, o desprendimento das amarras da versificação.
Segundo Bosi em O ser e o tempo da poesia:
trata-se de falar sobre a fala, poetar sobre a poesia, medusar-
se no signo, são tendências fortes do espírito moderno que, no
limite, como ensinou Hegel, bloqueariam o discurso
representativo e emotivo. Na verdade, não o fazem de todo por
mais que o tentem. A dialética que pulsa na vida da poesia não
é diferente da dialética social: como esta, não supera sem
conservar. (BOSI, 1977, p. 61)
Ainda que tardiamente, já beirando os meados do século XX, o
Modernismo não havia se afirmado, ainda, na produção literária de Mato
Grosso. Apesar de haver manifestações em periódicos, ainda não foram
suficientes para alçar o devaneio de Lobivar Matos, onde seus parceiros de
caneta engajariam nas linhas de cunho estético modernista. De um ritmo mais
liberto, livre das amarras da padronização das métricas, todavia, ao mesmo
tempo centrado, crítico e sensato com os paradigmas da sociedade.
Há de se dizer que há fatores que contribuíram para a não
modernização das letras mato-grossenses. Na conferência “O Sentido da
Literatura Mato-grossense”, no centro Mato-grossense no Rio de Janeiro, 1936,
José de Mesquita falou sobre a problematização da literatura mato-grossense:

o sentido da literatura mattogrossense (...) tem dois aspectos


característicos, que o definem e completam — o da bravura e o da
melancolia, decorrentes ambos de circunstancias históricas e
mesológicas, que criaram para Matto-Grosso uma feição toda
peculiar, dado o seu isolamento geográphico e a sua immensidão
territorial. (MESQUITA, 1936, p. 5)

Marinei Almeida (2012, p.36) reforça dizendo que “Quando ‘Pindorama’


apareceu, formulou uma profissão de fé compatível com o mundo
contemporâneo”. Apesar da tentativa de moldar a estética modernista na
literatura mato-grossense, a revista Pindorama não obteve tal resultado. Mas
deixou como herança a semente desta sede de mudança, desta renovação nas
letras mato-grossense e a busca de seu reconhecimento nos grandes centros
do país.
Apesar de ter tido apenas oito publicações, não significa que a revista
não obteve êxito na implantação da literatura moderna no estado, pelo
contrário ela preparou território para que Wlademir Dias-Pino e Rubens de
Mendonça, em conjunto, lançassem, como continuidade do movimento, a
revista Sarã. Em seu texto inaugural a revista afirma ser a continuidade da
revista Pindorama, paralelo a Sarã é lançada a revista Ganga, 1951, com o
título “Certidão de Nascimento” e o total de quatorze publicações. Seus
fundadores: Rubens de Mendonça, João Antônio Neto e Agenor Ferreira Leão.
Para a instauração do Modernismo em Mato Grosso, fora necessária a
persistência dos dedicados às Letras mato-grossenses, o empenho para a
imposição a Literatura e o seu reconhecimento em todo território nacional.
Esforço translúcido nas cartas trocadas entre Lobivar Matos e Gervásio Leite,
nos recortes de Rubens de Mendonça em Históra da literatura mato-grossense,
onde Gervásio Leite responde a Lobivar Matos por meio da Revista Pindorama,
sobre o manifesto que acontece em Mato Grosso sem muito impacto
comparado aos grandes centros. Sobre estas dificuldades, sobre a escassa
repercussão e o atraso (ou o descaso da mesma, ignorada pelos modernistas
dos grandes centros) nas literaturas mato-grossenses. Gervásio Leite pontua
em resposta ao seu conterrâneo – Lolito se trata de Lobivar Matos – que se
encontra em estadia no Rio de Janeiro:
Lolito, você tem razão. Os bororos também falam ou, pelo menos,
estão aprendendo a falar. É que ainda falamos uma língua estranha,
que não sendo bem a língua portuguesa, não é também castelhana.
Nem guarani. Nem brasileira. De modo que, por aqui, fala-se o
esperanto. Ora já é uma vantagem falar o esperanto quando ninguém
acredita nele. Mas vamos adquirindo também o hábito de expressar
coisas humanas com esse esperanto, qualidade que é bem
apreciável. Saber falar ‘humanidade’ – confesse! – já é um pedaço
bom. Pois nós sabemos. E até usamos sinônimos que é o cúmulo da
sabença. Só que não encontramos eco. Falamos na planície, e vozes
nos planos perdem-se, morrem. Daí a gente tornar-se casmurro,
interiorizado, difícil. Bancar o programa, falar sozinho na vida é bem
duro. Felizmente, você e outros falam em nosso nome lá fora,
revelando aos brasileiros espantados a voz e o pensamento de Mato
Grosso, principalmente da mocidade mato-grossense. (LEITE apud
MENDONÇA, 2015, p. 175)

Notamos que a participação do poeta modernista Lobivar Matos nos


movimentos de vanguardas mato-grossenses era bastante válida e importante
para a história da literatura no estado. Em outubro de 1947, Lobivar se rende a
úlcera. Faleceu precocemente deixando poucas produções, todavia de muita
importância, como se viu.
Lobivar Matos é um questionador, pensador que estava à frente de sua
época, como podem atestar o poema aqui analisado. Esta lírica se configura
também como uma denúncia social, uma influência modernista, tal movimento
eclodia nas primeiras décadas do século XX. No ano de 1935, em Mato
Grosso, Lobivar inova o fazer poético. Brada a seus coestaduanos a vida como
ela é de fato, percebendo os que estão à margem, os sentimentos não
camuflados, as dores e sofrimentos, as não perfeições, os olhos sem cor, a cor
escura, a marca do tempo, a perversão, a maldição, a miséria, as condições
humanas de díspares nuances.
Em seus poemas, Lobivar Matos liga-se aos problemas sociais. O poeta
denuncia o marginalizado, apresenta certas “revelações” deste tipo de
estigmatização social. Lobivar Matos em seus 18 anos publica dois livros, o
primeiro Areôtorare, em 1935, e Sarobá, em 1936, no Rio de Janeiro.
Para Bosi:
Mesmo quando o poeta fala do seu tempo, da sua experiência de
homem de hoje entre homens de hoje, ele o faz, quando poeta, de um
modo que não é do senso comum, fortemente ideologizado; mas de
outro, que ficou na memória infinitamente rica da linguagem. (BOSI,
1977, p. 104)

Lobivar Matos pintava seus textos com a realidade muitas vezes


ignorada, na obra Sarobá é um compendio de insurgências poéticas, produzida
na sua forma mais livre, versos sem metrificações, cheio de sons, ritmos, de
tons sarcásticos e carregado de melancolias. O poeta apresenta a natureza do
humano, a natureza do mundo na presença do humano. Onde os personagens
são pessoas simples, pessoas reais. O eu poético de seus poemas
posicionava-se muitas vezes como um “repórter fotográfico”. Em “alguns
momentos ele como que fotografa essa realidade. Ou, por outra, faz de seus
poemas uma reportagem radiográfica da áspera condição de sua gente, e da
qual Sarobá se constitui no melhor espelho”. (Carvalho, 2008, p.32)

Homens e Pedras

O encarregado da pedreira, um sujeito forte,


cara de português e de verdugo,
dá uma volta pelo rancho de madeira
e, em seguida, o sino badala

Pobres operários! Ignorantes, inconscientes, rudes


voltam à refrega. E, no espaço de um minuto,
onde o silêncio era profundo, agora
o barulho é medonho,
de aturdir,
de ensurdecer.

Só se ouve o ruído fina e frenético do aço que geme


na carne dura e rija das pedras lascadas.

De um lado, os britadores,
num ritmo desordenado,
vão quebrando,
esmigalhando,
esfarinhando,
nos seus dentes robustos,
lascas e lascas
das pedras dinamitadas na montanha.

De outro lado caminhões carregados,


esburacando a terra, passam, rangendo,
em disparada, como loucos infernais.

Lá em cima, no alto do morro


côxo
dois homens trabalham, zombando da morte.

Aqui mais abaixo, com a ajuda de alavancas enormes,


braços poderosos movem massas de pedra,
que rolam,
pesadas,
enchendo o ar
de faíscas
fuzilantes
de fogo.

De vez em quando um mulato descansa o malho


E passa o dedo grosso na testa enrugada.
Ouve-se, então, um tinido de aço
que batesse, em cheio, num bloco de pedra.
É suor do mulato que se cristaliza em aço.

Agora é findo o trabalho... Silêncio!


Mas eu continúo a ver
aquelas pedras rolando e se esmigalhando, aqui em baixo,
aqueles homens, lá em cima, zombando da morte.

Agora é finda a refrega. Silêncio!


Mas eu continúo a ouvir
o ruído fino e frenético do aço que geme
na carne dura e rija das pedras lascadas.

Silêncio!...
Silêncio!...

O sol é um martelete de ouro perfurando o espaço!

(MATOS, Lobivar. 2008. p.111-112).

Estudiosos como Susylene Dias de Araujo( 2009) e Carlos Gomes de


Carvalho (2008) consideram a poesia de Lobivar Matos uma sequência de
fotos, cada verso um click sobre uma realidade mórbida dos “párias sem pão”.
Corumbá em seu cenário imenso, com variedade de imagens, torna-se um
palco para a criação artística da poesia de Lobivar Matos. “A variedade da cor
da pele, no entanto, não basta para que o bairro descrito pelos versos do poeta
ganhe cores suficientes para colorir o cenário descrito.”. (ARAUJO, 2009,
p.113)

Carvalho diz que Lobivar é “precoce e aparece de forma inovadora.


Inova na temática e traz o frescor dos versos livres” (2008, p.16). Lobivar Matos
inovou a forma de poetizar, apresentando uma poesia liberta das amarras da
métrica e dos temas fechados, mantendo o ritmo e a rima, com a inserção da
linguagem comum, coloquial, a linguagem do povo.

“A poesia de Lobivar representa uma vigorosa inovação temática e


formal na história literária de Mato Grosso. Ele introduz na poesia
regional um conteúdo novo e até então desconhecido – o povo, os
negros, a ralé, os desgraçados, enfim o lupem proletariat (Marx).”
(CARVALHO, 2008, p.28)

As obras Areôtorare: poemas boróros (1935) e Sarobá (1936) são


construídas numa temática social, com versos livres, um ritmo e vocabulário
próprios, esses próximos da musicalidade das pessoas que viviam em
Corumbá. Cheio de gírias e regionalismo, o vocabulário é amplo, assim como a
sua indignação com a realidade social. Também possui certo grau de
pessimismo, melancolia e ironia, marcas encontradas em poetas modernistas
como Manuel Bandeira e Drummond.

No poema “Homens e pedras”, o poeta cria um jogo de imagens na mais


pura e requintada fruição estética. Apesar da sua geração abandonar o rigor
desse uso estético, Lobivar Matos constrói com primor os versos desse poema.
A começar pelo jogo de figuração metafórica no título desse poema, o escritor
coloca em pé de igualdade o indivíduo “homem” à “pedra lascada”. Há um jogo
de imagens onde sibila uma denúncia social ao descaso acerca doa segurança
de vida do lupemproletariat, por assim dizer do risco de morte desse indivíduo
em seu labor proletário. Ao discorrer seus versos, numa alusiva à situação
prosaica dessa camada social, percebe-se a comparação direta do “homem” à
“pedra”, “Só se ouve o ruído fino e frenético do aço que geme//na carne dura e
rija das pedras lascadas. [...] aquelas pedras rolando e se esmigalhando, aqui
em baixo, // aqueles homens, lá em cima, zombando da morte.”. (MATOS,
2008, p.111-112)

Observa-se o jogo figurativo e aprumado nos versos em prosa de lobivar


Matos, como característico da estética de seu tempo, o poeta em cada verso
traz um detalhe característico, anuncia as mazelas e os descasos do homem
lupemproletariat. Cabe, destacar que, é percebido claramente a falta de
relações com as regras métrica e estrutural dos versos – esses provenientes
do estilo modernista. O poema é composto por onze estrofes com diferentes
quantidades de versos, sem metrificações e usos de rima rica. Como os
demais poemas presentes em sua obra, totalmente fora dos padrões
convencionais da época, tanto na sua forma quanto no nível de linguagem,
mas sem perder de vista as linguagens poéticas, o jogo de sentidos, o uso de
figuras de linguagem. Como o uso da anáforas 4 nas nona e décima estrofe
”Agora é findo o trabalho... Silêncio! [... ]//Agora é finda a refrega. Silêncio!”. O
poeta com maestria se diverte com a repetição dos termos “agora” e “silêncio”.
Dando um sentido, não obstante, do silenciamento de indivíduos largados à
pura sorte no “agora” e do “silêncio” constante de seus párias sobre essa
ignorância política e social acerca das condições precárias do indivíduo da
classe lupemproletariat.

. O uso dessa figura de linguagem ritma a poesia. Por meio do uso


dessa repetição o poeta enumera os quadros colocando o leitor em
perspectivas, numa constante gradação, em seus sentidos de oposição e no
jogo de significações lexicais, presentes, como exemplo, nesses versos “Mas
eu continúo a ver// aquelas pedras rolando e se esmigalhando, aqui em baixo,//
aqueles homens, lá em cima, zombando da morte.”. O poeta se utiliza de
recursos estéticos para apresentar sua queica ao observar aquela gente
naquele estado de total desgosto, total abandono de “pedras lascadas” em um
“agora” arraigado de “silêncio”.

Podemos observar a riquíssima escolha na elaboração, e meticulosa


seleção dos termos e critérios modernistas na produção dos versos de Lobivar
Matos, que a partir de escolhas de versos curtos e outros versos longos o
4
Figura de Linguagem que consiste na repetição de uma ou mais palavras no princípio de
sucessivos segmentos métricos (versos) ou sintáticos. (MOISÉS, 2004 . p. 23)
poeta compões um ritmo que dá a voz ao contexto do marginalizado de uma
forma rica, por assim dizer esteticamente. Um dos termos em destaque seria
“silêncio” essa palavra presente na maior parte das estrofes, dando um maior
destaque a esse ignorar das condições laborais desse “homem”. Se
apropriando dessa rica estética, o poeta abre um reclame ao utilizar mais uma
vez da anáfora em “mas eu contínuo”, nas estrofes, antepenúltima e penúltima,
do poema; Lobivar Matos se aproveita do uso da escrita engajada para
apresentar sua crítica a esse descaso social, vemos isso no não silenciamento
do eu lírico nos versos

Agora é findo o trabalho... Silêncio!


Mas eu continúo a ver
aquelas pedras rolando e se esmigalhando, aqui em baixo,
aqueles homens, lá em cima, zombando da morte.

Agora é finda a refrega. Silêncio!


Mas eu continúo a ouvir
o ruído fino e frenético do aço que geme
na carne dura e rija das pedras lascadas.

Sobre os versos, oras longos, ora curtos, composta de um verbo


apenas, esses expressam o sentido de movimento, assim, apresentam suas
formas no gerúndio, como exemplo os versos “[...] pedras rolando e se
esmigalhando, aqui em baixo,// [...] vão quebrando,//
esmigalhando,//esfarinhando”. Além desse âmbito de construção estética o
poeta capitula o sintagma adversativo “Mas”, dando a alusão de que apesar
dessa paradigmática de descaso ao corpo lupempreletariat, o eu lírico/crítico
ainda continua “a ver” e “ a ouvir” esse “silêncio”,

Silêncio!...
Silêncio!...

O sol é um martelete de ouro perfurando o espaço!

O escritor dá um certo realce no uso do termo “silêncio”, usando-o como


um sorver e soltar do ar, dando uma alusiva ao ato de “suspirar” ou um
esperançar”, ao chegar ao verso final “O sol é um martelete de ouro perfurando
o espaço!”,
Sobre os versos, oras em curtos, com uma palavra, ou versos longos
trechos no gerúndio, traz no contexto desse universo do ser marginalizado, o
ritmo no poema, assim, se lido em voz alta. Esse rigor aprumado que
encontramos em Lobivar Matos, trata-se de um trabalho rico e aprimorado do
bom trato com as palavras, sintaxes e pontuações. Suas obras, apresentam o
uso de recursos estéticos dentro da maioria de seus poemas, além do cuidado
e atenção de arrebatar e reverberar dessa voz, que até então é deixada de
lado pela sociedade, como no caso a voz do marginal.

De modo geral na sequência dos versos em suas produções líricas, há


caracterizações dos personagens e suas ações, sendo as ações utilizando o
recurso de versos com verbos no gerúndio, como dando uma cadência pelo
uso das adjetivações como nesse poema os versos “pobres operários”, “pedras
lascadas”, “ritmo desordenado”, “pedras dinamitadas” e verbos nominais
“refrega”, “cristaliza”, “dura e rija”; o poeta, com ritmos fortes e vocábulos
marcantes monta o poema na sua forma mais livre e inédita, com traços de um
indivíduo com uma posição crítica e reflexão sobre os marginalizados,
desprovidos de regalias, diferente da burguesia, cheio de escárnio, com sede
de descortinar as misérias do homem, da sociedade.
Construído, dessa forma, o poema respira melancolia da crítica ácida, a
denúncia do marginalizado, a temática social, a liberdade rítmica e criativa. Um
tear lírico que se predomina morfologicamente nomes e adjetivos não de forma
aleatória, mas meticulosamente escolhida para tanto, a modalidade poética de
Lobivar Matos, dentro da poética em “Homens e pedras”, apresenta um papel,
por sua vez, mais complexo e possui encargo de grande significância, ela se
distingue, à primeira vista, pois uma de suas principais ferramentas com
escolhas de vocábulos e de versos os fixos, que possuem uma liberdade maior
de retratarem a natureza do comportamento das pessoas e da sociedade a
partir de suas experiências.

Análise do poema “Dona Maria” de Luciene Carvalho

Na lírica de Luciene Carvalho podemos encontrar o engajamento e a


preocupação da poeta em apresentar os sujeitos pertencentes a um contexto
de margem, suas vozes são representadas em sua extensa produção poética
que têm nessas produções o seu “verso como popular...”; e que, na maioria
das vezes, esses versos são tensionados a serem enquadrados em alguma
estética. Para a poeta, trata-se de ir além de vertentes ou escolas literárias as
produções do poema, para ela o “verso é pardo”, o “verso tem pé na rua”, o
“verso não é só difusão literária”. Essas adjetivações podem ser encontradas
no poema “Periférica”, esse consta na obra Dona (2018). A análise que aqui
se segue é doravante ao poema “Dona Maria”,

 
Dona Maria
acorda, faz o café,
arruma o pão,
gruda o bucho no fogão;
faz chá,
depois cozinha o feijão.
Corta o alho,
a cebola,
enrola a couve,
corta a folha bem fininho,
refoga.
Afoga os sonhos
no ensopado de acém.
Alface ela lava bem
com a pouca água que tem.
Do arroz tira três medidas...
Bastante arroz
parece muita comida.
Do almoço, sobra panela,
claro que sobra pra ela.

Lava louça
e começa a ver novela.
Liga o tanquinho,
enfia a roupa,
vai escutando a novela
e começa a fazer a sopa.
Esse é seu dia.
Mudança, se tem, é pouca:
uma ida no postinho,
num domingo escapa um vinho.
Dona Maria
não tem carta de alforria.
Tem marido, filho, neto,
tem o cocho e tem o teto,
tem o nome
e tem azia.

(CARVALHO, Luciene. 2018. p.88-90).


A arte produzida por Luciene Carvalho choca, ecoa na alma de quem
as lê, vibra cada senso crítico social de que depara com sua lírica, também
podemos visualizar o uso da metapoesia5 para ressaltar as cenas cotidianas e
conflituosas que a voz desse eu poético emana, ao mesmo tempo assumindo
um discurso de mulher negra e simultaneamente dos seres marginalizados na
obra Dona (2018).

No poema “Dona Maria” há usos estilísticos da Língua Portuguesa


como a gradação. Encontra-se tal figura de linguagem, como exemplo nos
versos “enrola a couve,// corta a folha bem fininho,// refoga// afoga os
sonhos”. Esse recurso se apresenta na sequencia do poema como “Lava a
louça// [...] Liga o tanquinho,// enfia a roupa// [...] e começa a fazer a sopa”.
Sobre os versos desse poema, há a presença de um ritmo formado a partir
dessa cadência que se configura pelo uso do recurso da figura de estilo,
nesse caso o uso a gradação 6.
No enlace dos versos, há um contexto de degradação do sujeito
mulher, na sua última estrofe, existe uma ironia em que “Dona Maria” é
delimitada a um recinto doméstico, uma figuração do corpo da mulher
moderna que se torna escrava de seu próprio lar,

Esse é seu dia.


Mudança, se tem, é pouca:
uma ida no postinho,
num domingo escapa um vinho.
Dona Maria
não tem carta de alforria.
Tem marido, filho, neto,
tem o cocho e tem o teto,
tem o nome
e tem azia.

Luciene Carvalho se empodera no usufruto dos poemas em versos


livres, sem escalonamento, não se preocupa com escansão de seus versos,
pois ela presentifica as vozes em forma de canção/versos através do uso da

5
“a metapoesia consiste em um gênero discursivo em que o autor-criador fala do próprio ato
poético não em si mesmo, mas de a partir de outras consciência” SANTANA & SILVEIRA, p. 3
2020)
6
Figura de adição, gradação ou clímax: com efeito (...) de prosseguir a marcha (...) sucessivas
unidades de palavras, (...) tendo em vista acentuar (...) a sequência de ideias ou dos
acontecimentos. (MOISÉS, 2004 . p. 78)
linguagem coloquial e despreocupada com o formalismo. Assim, pode-se
depreender a ideia de uma “carta de alforria” eu seus eu líricos que
prontamente colocam em voga o reclame da não liberdade, a exemplo
postulado nesse poema, tem-se os versos: “Esse é seu dia.// Mudança, se
tem, é pouca [...]// “Dona Maria// não tem carta de alforria. // Tem marido,
filho,neto,// tem o cocho e tem o teto.”
Cabe, portanto, dizer que sua lírica não é estabelecida pela métrica,
nem resguardada da liberdade de criação em contextualização do ser poético
subjetivo, pois ao deparar com uma fruição mais livre de seus versos, a sua
poemática se distingue dos versos comedidos e se apresentam performados
em oralidade. Sobre as performances da escritora em seus versos e nos
palcos, a também poeta, escritora e crítica Marly Walker relata, o perfil poético
de Carvalho, em sua obra “Mulheres silenciadas e vozes esquecidas: três
séculos de Poesia feminina em Mato Grosso” (2021) uma “característica que
difere Carvalho das demais poetisas de Mato Grosso é a sua desenvoltura no
palco, quando ela, que também interpreta, declama seus poemas”. (WALKER,
p 209)
Estudiosos afirmam e reafirmam que Luciene Carvalho “expõe
poeticamente a condição da mulher persistente em nossa estrutura social” a
poeta coloca em xeque esses perfilares estruturais de um universo decadente
acerca da liberdade de existir do corpo feminil, ao contrário de suas
versificações se manterem “análoga a outros momentos da história humana a
odeia de que a mulher precisa ser exemplar”.
Dando sequência a essa linha de entendimento sobre indivíduo mulher,
Serra (2011, p. 49-50 apud WALKER, p 209, 2021) continua dizendo que tal
contexto social e histórico, “mantém-se a ideia de sua fragilidade, da
impossibilidade de exercer certas funções”. Pela desenvoltura de Luciene
Carvalho nos palcos e nos versos, seus poemas apresentam características de
crítica social e rimbombam através de sua sonoridade, o enfrentamento dessa
estigmatização do corpo da mulher dentro de uma estrutura social
ultrapassada, a partir da leitura do reclame inquieto de seus eu líricos, há uma
abertura em seus poemas, na qual cada verso pode ser entoado; por fim,
existe em Luciene Carvalho um tear lírico que deve e precisa ser vozeado em
alto e bom som. Acerca da crítica a respeito das obras produzidas no
território do estado de Mato Grosso, temos as palavras de Castrillon-Mendes
em que, “não há, nos registros da história literária, nenhum momento tão
fecundo como o que se tem vivenciado em Mato Grosso.” Ela ressalta que a
“diversidade temática, a experimentação, o uso livre e libertário da palavra, o
fazer coletivo, são caminhos pelos quais os escritores têm se aventurado com
bons resultados.”. (CASTRILLON-MENDES, 2020, p. 490)
Para a pesquisadora os poetas da modernidade à atualidade detêm
uma visão arraigada ao seu tempo e espaço de pertencimento, por assim
dizer, nas reflexões da mesma o poeta “tem os olhos fixos no seu tempo (e
aquém/além dele), vislumbrando luzes, cores e sombras. Seu poder recriador é
penetrar na intimidade delas, interpelando-as.”. (CASTRILLON-MENDES,
2020, p. 491)

Pela alta qualidade dessas produções, dessas escritas, e as intensas


pesquisas dessas, Castrillon-Mendes reforça que deveríamos ter “o texto
literário como foco de estudo e o papel de mediador nas instituições de ensino
e nos mais variados setores da dinâmica sócio-histórica e cultural.” Tais
perspectivas advindas dessa estudiosa, e tais como as ideias já apontadas,
fazem parte da obra de vanguarda acerca das produções da crítica sobre as
literaturas produzidas em Mato Grosso. A obra rica e extensa de Castrillon-
Mendes Matogrossismo (2020), permite-nos fazer dessa obra uma fonte de
busca sobre a produção critica nos estudos e pesquisa da Literatura Brasileira
produzidas em territórios mato-grossenses. De forma que os escritos inseridos
nesse labor de riqueza crítica, fornecem aos pesquisadores da crítica lírica, o
deslindar do percurso nas modalidades de escritas literárias e suas análises.
Doravante as intepretações e interpenetrações da poética de Luciene
Carvalho em Dona (2018), Castrillon-Mendes diz que, seus “escritos nos
chegam intensa e deliberadamente por argumentações que violam a
imobilidade, (...) a desigualdade social, criando assim, novos paradigmas do
(...) imprevisto e o indomável” e que, “se coloca como portadora das novas
transformações que não se esgotam.”. A pesquisadora também ressalta “que a
perenidade dos versos enfeixados em Dona está no movimento circular da
descontinuidade.”. (CASTRILLON-MENDES, 2020, p. 524)
No que se concerne sobre a produção poética na obra Dona (2018),
Luciene é leve, mas eficaz. Seu estilo é direto e perpassado
pelo tom coloquial pelo qual traça a moldura do quadro em que
se vê o feminino. As sutilezas que encontra nessas
formulações são especulações acerca da história, dos sabores
e dissabores dos quais são feitos os caminhos que a trouxeram
até aqui, ou seja, no fato de ser tema de reflexão, de
questionamentos e tomadas de atitudes. (CASTRILLON-
MENDES, 2020, p. 524)

A poeta Luciene Carvalho começa a explorar em sua vasta produção


literária, algo aquém e fora dos padrões das líricas estabelecidas ante a
estética modernista. Destarte a isso, ao estudar sua larga produção poética,
percebe-se em seus poemas o uso de recursos que entoam as vozes e sons
presentes em cada verso. Os eu líricos que constam em sua poesia podem ser
interpretados tanto sobre um palco, quanto no processo de leitura desses
versos. Por assim dizer, mesmo seus versos não metrificados, fora dos
padrões da lírica convencional, tal forma, já estabelecida e explorada antes da
Semana de Arte Moderna, a fruição lírica de Luciene Carvalho apresenta uma
cadência rítmica bem gutural e estonteante em cada versificação estabelecidas
em suas obras.

Considerações finais

Na introdução da obra Sarobá, de Lobivar Matos, temos:

“Só se lembram de Sarobá quando são necessários os serviços de


um negrinho. Fora daí a Favela em ponto menor é o templo eterno da
Miséria, é a mancha negra bulindo na cidade mais branca do mundo,
na expressão de um inglês que passou por lá caçando onça e, quem
sabe? Se petróleo também.
_______

O fotógrafo bateu inúmeras chapas e não foi feliz. No momento não


havia sol suficiente para fotografias nítidas e artísticas. Consolem-se.
Não há outro remédio. As fotografias da série de Sarobá foram
bastante prejudicadas pela falta absoluta de luz. Era preciso luz, sol,
muita luz, muito sol. E havia – tortura do artista – treva, relâmpagos
violentos e chuva, muita chuva...”
Rio – 1936.”
(MATOS, 2008. p. 110).
Neste texto de abertura do livro Lobivar Matos poematiza em prosa os
problemas sociais presentes nesse “Bairro de negros”, que vai aquém de uma
localidade. Nesse prefácio o poeta apresenta a precariedade e o abandono,
revelando-se o descaso e a miséria do povo. Devido à ausência de luz, o poeta
lamenta não poder apresentar fotos que comprovassem sua denúncia. Talvez
esta falta de luz seja mais um traço sarcástico do poeta; talvez luz significasse
esperança.
Seguido disso, convida o leitor a buscar tal luz nas poesias, apesar do
poeta se expressar às trevas, torturas, relâmpagos e debaixo de muita chuva.
Observa-se aqui um jogo de metáforas onde falta de luz, trevas, relâmpagos,
chuva significam abscessos emotivos, mal-estar, sentimentos negativos
advindos e expressados pelo poeta em sua obra. Sentimentos expressados
nos poemas de Sarobá, sentimentos originados do desgosto causado pela
indiferença da sociedade com relação aos marginalizados, sentimentos
indignados do artista interpenetrado por pensamentos críticos às estruturas
mentais e sociais do ser humano.
O fazer poético do mato-grossense Lobivar Matos desponta de todas
estas características como no caso da construção dos poemas de forma livre
das amarras métricas, uma versificação solta, mas carregadas de sentido e
sons.
A poesia de Lobivar é toda ela o retrato de um dilaceramento. Do
homem que não encontra guarida na sua própria terra, como um
exilado que quer retornar ao regaço materno, e que se sente estranho
e é por ela rejeitado. O poeta vive uma marginalidade plena. Uma
dupla marginalidade – literária e sócio-política. É nessa condição que a
sua poesia reflete a angústia e o desespero com o sofrimento de seu
povo e com as mazelas da sociedade.
CARVALHO, 2008, p.40).
Em contexto mais atual, surge uma figura que possui um olhar de
enfrentamento e entorpecedor, impregnados em sua poética, e também na sua
desenvoltura no palco, Luciene Carvalho tece em “Dona” (2018) poemas não
apenas para a fruição, ócio ou prazer estético; mas, sobretudo, poemas que
são para serem refletidos, deixar em inércia quem os lê! Indagações iradas e
afirmações lúcidas provocam. Desassossegam o leitor atento e que possua um
mínimo de sensibilidade.
Textos como esses vão além da denúncia de quem viveu na carne, em
corpo de mulher, negra; ou de homem, negro, ambos periféricos e
principalmente de quem viveu na alma as agruras e injustiças no que se trata
de seres “incluídos” na marginalização. Sabe-se que “a criação literária
corresponde a certas necessidades de representação do mundo”, segundo
Antônio Candido (2006) em Literatura e Sociedade, que a literatura se
apresenta um como um instrumento fomentador acerca da construção e
ressignificação do homem e da sociedade.
Dentro desta mistura de cores, tons, sons e imagens que desencadeiam a
voz do povo mato-grossense, o poeta denuncia e chama a atenção para os
fatos sociais, e os transformando o poema em objeto de denúncia, um
instrumento social. O poeta de forma original e singular busca alertar o seu
povo a direcionar o seu olhar, a perspectiva em direção aos desprovidos de
cuidados, aos menos afortunados. A abrirem uma nova concepção de mundo,
do novo mundo.
Lobivar Matos e Luciene Carvalho por meio de seus pensamentos críticos
e reflexões sobre os problemas sociais expõe a decadência humana e social
em forma de poemas, de ritmos, de cadência e de sonoridade. São escritores
que pouco a pouco ganham espaço na galeria dos mais abrilhantados autores
líricos e estão saindo das prateleiras particulares, das periferias e se tornam
autores apreciados pela crítica da Literatura Brasileira.
Há uma recente e fervorosa ascensão no que diz respeito aos estudos
literários no estado de Mato Grosso. As pesquisas e análises dos materiais,
dos acervos de produção literária do estado vêm, de uns tempos para cá,
recebendo o teor mais crítico, analítico e, claro um nível maior de interesses
dos núcleos de estudos acadêmicos da literatura mato-grossense. As
produções de cunho literário e artístico tiveram seu expoente paralelo à criação
do indivíduo sensível e dotado de pensamentos críticos e reflexivos sobre sua
existência, sobre o social e o universal. Junto, o surgimento de pesquisadores
e estudiosos das produções e manifestações artísticas.
Essas produções possuem correntes inquebráveis, certo é que as
produções e manifestos artísticos produzidos no decorrer da História humana,
não estagnaram. Continuam até hoje como objetos e assuntos de pesquisas
acadêmicas. Como prova disso são os periódicos, revistas, jornais e teses
científicas entre os núcleos acadêmicos de Linguagem e Arte como se viu no
nas postulações e reflexões expostas anteriormente. Por fim, vale ressaltar
que, o estado de Mato Grosso não fica fora destas produções, principalmente
no seu ambiente acadêmico com as produções em periódicos, revistas, jornais
e teses.
No entanto, outras considerações poderão ser aprofundadas em estudos
posteriores. É necessário ampliar as análises de suas produções literárias,
deste poeta único, que apesar de ter poucas obras publicadas e produzidas,
detém um arcabouço de conhecimento e requer mais atenção nos estudos
acadêmicos sobre a produção cultural mato-grossense.
REFERÊNCIAS

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