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A Representação de Corpos Marginalizados Nos Poemas de Lobivar Matos E Luciene Carvalho
A Representação de Corpos Marginalizados Nos Poemas de Lobivar Matos E Luciene Carvalho
RESUMO
Este trabalho tem por objetivo analisar as representações das vozes de certos corpos
considerados “marginalizados” presentes nos poemas “Homens e pedras” e “Dona Maria”.
Essas produções líricas estão, respectivamente, nas obras Areôtorare: poemas boróros (1935)
de Lobivar Matos e Dona (2018) de Luciene Carvalho. Sob essa temática, um dos conteúdos
pertinentes nas produções poéticas de ambos, encontra-se o contexto que escancara as
mazelas do corpo social considerado como “a ralé, os desgraçados, enfim o lupem proletariat
(Marx).”. Esse tema, nos estudos literários, faz parte dos parâmetros responsáveis na
composição das obras literárias que se coadunam na estética Modernista; dentro desse estilo,
há fórmulas que podem ser matrizes para a elaboração de poéticas livres das amarras da rima,
de ritmos cadenciados em versos brancos e de poemas com entendimento mais acessível à
gente simples. No que se refere a produção deste artigo, procura-se analisar a representação
dessas vozes e como elas se compõem a partir dessa estética. Busca-se, neste caso, trazer as
reflexões acerca dessas representações sociais dos textos líricos aqui trabalhados. Doravante
a isso, tem-se como corpus os poemas supracitados, esses, acompanhados de sua análise a
partir do deslindar dos textos teórico e crítico de estudiosos como: Araujo (2009), Bosi (1977),
Candido (1996), Castrillon-Mendes (2020), Marli Walker (2020), Sartre (2015); assim,
juntamente com outras pesquisas que se fazem necessárias para o diálogo do gênero poema e
de sua crítica. Também, são parte deste labor analítico, a historiografia literária produzida no
estado de Mato Grosso, nesse caso, presente nos escritos de Carlos Gomes de Carvalho
(2008), José de Mesquita (1936) e Rubens de Mendonça (2015).
1
Mestranda pelo Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários (PPGEL/UNEMAT). E-
mail: pereira.juliane@unemat.br
2
Professor Dr. pelo Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários (PPGEL/UNEMAT). E-
mail: isaac.ramos@unemat.br
Introdução
O presente trabalho tem como objetivo apresentar uma breve análise
sobre os estudos da poesia de Lobivar Matos e de Luciene Carvalho; busca-se,
também, reavivar pesquisas sobre as vozes do lupemproletariat3 presentes na
lírica de ambos. Nas obras Areôtorare: poemas boróros (1935) e Dona (2018)
constam uma lírica com poder significativo na produção literária desses
escritores. Tais labores poéticos depreendem o dissabor de corpos
estigmatizados, que se encontram à margem de uma sociedade arraigada pelo
consumismo exacerbado. Nesses teares poéticos, há uma constante dos
poetas em rimbombar brados desses sujeitos, ditos como marginalizados.
Destarte, a poética desses autores apresenta uma crítica e denúncia
social em forma de versos livres, sem as amarras da metrificação e a cadência
através das rimas ricas; visto que essas características são vigentes entre os
escritos da primeira fase do Modernismo brasileiro. As criações líricas de
Lobivar Matos e Luciene Carvalho trazem, em sua essência, representações do
universo social de sua experiência. Por assim dizer, os poetas recorrem à
denúncia do sujeito marginalizado, apresentando certas “revelações” deste tipo
de estigmatização social por meio de representações figurativas em suas
tessituras poéticas.
A poesia desses escritores tem uma relação intrínseca com o
Modernismo brasileiro, tendo sido influenciado pelos movimentos de
Vanguarda; esses, também, experienciados em Mato Grosso, como novos
paradigmas de ruptura da forma fixa e a representação do panorama no
contexto sociocultural de sua época. A concepção de que os fatos sociais e
culturais determinam e são determinadas as/pelas obras artísticas é apontada
por Antonio Candido, que define a posição do artista como:
[...] um aspecto da estrutura da sociedade (...) importa averiguar
como esta atribui um papel específico ao criador de arte, e como
define a sua posição na escala social, o que envolve não apenas o
artista individualmente, mas a formação de grupos de artistas. Daí
sermos levados a indicar sucessivamente o aparecimento individual
3
No original, em alemão, o conceito marx/engelsiano de lumpemproletariado é chamado
lumpenproletariat. As diversas traduções, apesar de não divergirem em grande medida, são
apresentadas da seguinte forma: lumpemproletariado, lumpenproletariado, lumpén-
proletariado, lumpen. Optamos tanto pela manutenção da forma escrita no original, em alemão,
quanto pela forma lumpemproletariado, sendo as citações divergentes, oriundas do respeito à
tradução realizada em cada obra. CINACCHI, 2020
do artista na sociedade como posição e papel configurados.
(CANDIDO, 2006, p.34).
Homens e Pedras
De um lado, os britadores,
num ritmo desordenado,
vão quebrando,
esmigalhando,
esfarinhando,
nos seus dentes robustos,
lascas e lascas
das pedras dinamitadas na montanha.
Silêncio!...
Silêncio!...
Silêncio!...
Silêncio!...
Dona Maria
acorda, faz o café,
arruma o pão,
gruda o bucho no fogão;
faz chá,
depois cozinha o feijão.
Corta o alho,
a cebola,
enrola a couve,
corta a folha bem fininho,
refoga.
Afoga os sonhos
no ensopado de acém.
Alface ela lava bem
com a pouca água que tem.
Do arroz tira três medidas...
Bastante arroz
parece muita comida.
Do almoço, sobra panela,
claro que sobra pra ela.
Lava louça
e começa a ver novela.
Liga o tanquinho,
enfia a roupa,
vai escutando a novela
e começa a fazer a sopa.
Esse é seu dia.
Mudança, se tem, é pouca:
uma ida no postinho,
num domingo escapa um vinho.
Dona Maria
não tem carta de alforria.
Tem marido, filho, neto,
tem o cocho e tem o teto,
tem o nome
e tem azia.
5
“a metapoesia consiste em um gênero discursivo em que o autor-criador fala do próprio ato
poético não em si mesmo, mas de a partir de outras consciência” SANTANA & SILVEIRA, p. 3
2020)
6
Figura de adição, gradação ou clímax: com efeito (...) de prosseguir a marcha (...) sucessivas
unidades de palavras, (...) tendo em vista acentuar (...) a sequência de ideias ou dos
acontecimentos. (MOISÉS, 2004 . p. 78)
linguagem coloquial e despreocupada com o formalismo. Assim, pode-se
depreender a ideia de uma “carta de alforria” eu seus eu líricos que
prontamente colocam em voga o reclame da não liberdade, a exemplo
postulado nesse poema, tem-se os versos: “Esse é seu dia.// Mudança, se
tem, é pouca [...]// “Dona Maria// não tem carta de alforria. // Tem marido,
filho,neto,// tem o cocho e tem o teto.”
Cabe, portanto, dizer que sua lírica não é estabelecida pela métrica,
nem resguardada da liberdade de criação em contextualização do ser poético
subjetivo, pois ao deparar com uma fruição mais livre de seus versos, a sua
poemática se distingue dos versos comedidos e se apresentam performados
em oralidade. Sobre as performances da escritora em seus versos e nos
palcos, a também poeta, escritora e crítica Marly Walker relata, o perfil poético
de Carvalho, em sua obra “Mulheres silenciadas e vozes esquecidas: três
séculos de Poesia feminina em Mato Grosso” (2021) uma “característica que
difere Carvalho das demais poetisas de Mato Grosso é a sua desenvoltura no
palco, quando ela, que também interpreta, declama seus poemas”. (WALKER,
p 209)
Estudiosos afirmam e reafirmam que Luciene Carvalho “expõe
poeticamente a condição da mulher persistente em nossa estrutura social” a
poeta coloca em xeque esses perfilares estruturais de um universo decadente
acerca da liberdade de existir do corpo feminil, ao contrário de suas
versificações se manterem “análoga a outros momentos da história humana a
odeia de que a mulher precisa ser exemplar”.
Dando sequência a essa linha de entendimento sobre indivíduo mulher,
Serra (2011, p. 49-50 apud WALKER, p 209, 2021) continua dizendo que tal
contexto social e histórico, “mantém-se a ideia de sua fragilidade, da
impossibilidade de exercer certas funções”. Pela desenvoltura de Luciene
Carvalho nos palcos e nos versos, seus poemas apresentam características de
crítica social e rimbombam através de sua sonoridade, o enfrentamento dessa
estigmatização do corpo da mulher dentro de uma estrutura social
ultrapassada, a partir da leitura do reclame inquieto de seus eu líricos, há uma
abertura em seus poemas, na qual cada verso pode ser entoado; por fim,
existe em Luciene Carvalho um tear lírico que deve e precisa ser vozeado em
alto e bom som. Acerca da crítica a respeito das obras produzidas no
território do estado de Mato Grosso, temos as palavras de Castrillon-Mendes
em que, “não há, nos registros da história literária, nenhum momento tão
fecundo como o que se tem vivenciado em Mato Grosso.” Ela ressalta que a
“diversidade temática, a experimentação, o uso livre e libertário da palavra, o
fazer coletivo, são caminhos pelos quais os escritores têm se aventurado com
bons resultados.”. (CASTRILLON-MENDES, 2020, p. 490)
Para a pesquisadora os poetas da modernidade à atualidade detêm
uma visão arraigada ao seu tempo e espaço de pertencimento, por assim
dizer, nas reflexões da mesma o poeta “tem os olhos fixos no seu tempo (e
aquém/além dele), vislumbrando luzes, cores e sombras. Seu poder recriador é
penetrar na intimidade delas, interpelando-as.”. (CASTRILLON-MENDES,
2020, p. 491)
Considerações finais
CAMPOS, Haroldo de. 1977. O arco-iris branco. Rio de Janeiro: Imago. 284p