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A DIALETICA E A GEOGRAFIA AGRARIA NA OBRA. DE ARIOVALDO UMBELINO DE OLIVEIRA Larissa Mies Bomparpt Departamento de Geografia Universidade de Sio Paulo “Todos estamos inserides no turbilhao mundial da modernidade. Uns en- gajam-se no establishment, outros criticam-no. Uns fazem da ciéncia ins- trumento de ascenséo social e envolvimento politico, outros procuram co- locar 0 conbecimento cientifico a servigo da transformagao e da justiga social.” Ariovaldo Umbelino de Oliveita INTRODUGAO, A epigrafe dé o tom da discusséo que busco fazer neste artigo, um ar- tigo que envolve a interpretasio da obra do professor Ariovaldo Umbelino de Oliveira. Esta interpretagéo — como indica a propria epigrafe — s6 se faz em conjunto & sua trajetéria ¢ a sua concepsao de ciéncia. O professor Ario- valdo é, entre parte dos gedgrafos brasileiros, daqueles que indicam que a , mas, em caminho contrario a estas duas correntes, nasce também dialética: A dialética, por sua vez, como corrente filoséfica da geografia, a meu ver, constitui uma espécie de raiz, propositadamente esquecida, do pensamento geografico. Nascida nas obras de Elisée Reclus ¢ Piow Alekscievitch Kropotkin, permaneceu praticamente no interior © Bxcerto exttaido de: OLIVEIRA (1999). Este texto, que serd largamente utilizado nes te artigo, foi publicado sob o titulo “A Geografia Agriria e as transformagiesterritoriais recentes no campo brasileira” no livro “Novos Caminhos da Geogralia’. E importante in- formar que foi, originalmente, a Prova de Erudigio apresentada pelo professor Ariovaldo Umbelino de Oliveira para 0 concurso de provimento de cargo de professor ticular junto a0 Departamento de Geografia na Faculdade de Filosofia, Letras ¢ Ciéncias Humanas da Universidade de S40 Paulo, em margo de 1998, 315 opts on 18 ® ane 235 Larissa Mies Bombardi do movimento anarquista do século XIX ¢ inicio do século XX. Contemporineos de Karl Marx discutiram, profundamente, as concepgdes de Hegel sobre a dialética e a transformagio da sociedade capitalista (OLIVEIRA, 1999, p.69) A aiz dialética “propositadamente esquecida’ do pensamento geogrifi- co, como indica Oliveira, por certo, nos foi alijada tendo em vi Assim, este artigo esté construido em cinco partes (além desta apre- sentagéo, que é a primeira). Na parte 2, “A Geografia ‘Libertéria” , resgato as obras dos geégrafos anarquistas, mostrando a abordagem que fizeram da cigncia e da questio agritia e a presenca do pensamento dialético na geografia. Na parte 3, ‘A Trajetéria do Pensamento Geogrdfico na Geogra- fia Agréria’, aponto como foi a trajetéria do pensamento geogréfico na geografia agréria, indicando seu comprometimento com o status quo ¢, posteriormente, sua transformacio a partir da influéncia do pensamento marxista. Na parte 4, "A Dialética e 0 Pensamento de Ariovaldo Umbelino de Oliveira’, discuto 0 papel ¢ a importincia do pensamento do professor Ariovaldo, mostrando seu mergulho na dialética marxista ¢ o resultado desta concepsio em seuss trabalhos. Na parte 5, “Teoria ¢ Pritica na Obra de Ariovaldo Umbelino de Oliveira’, discuto 0 significado teérico/pratico de sua concepgio de ciéncia ¢ o caréter da geografia agriria que se formou. a partir de sua contribuigéo. A GEOGRAFIA ‘LIBERTARIA’ Os gedgrafos que ficaram conhecidos como “libertirios” ~ o francés Reclus ¢ 0 russo Kropotkin — tiveram por pratica explicitar em seus traba- Ihos aquilo que consideravam o papel da cigncia, Desvendaram, em seus escritos, a ciéncia atuando abertamente como ideologia, dando “status cien- tifico” ao colonialismo ¢ 4 diviséo da sociedade em classes. No excerto se- guinte, Kropotkin (1842-1921) faz uma anilise do caréter ideolégico da ciéncia ao abordar o pensamento malthusiano: 316 tps 16 ® ane 235 A dialética e a geografia agrévia na obra de Ariovaldo Umbelino de Oliveira Em suma, podemos dizer que a teoria de Malthus, a0 revestir de uma forma pseudocientifica as secretas aspiragdes das classes possuidoras da riqueza, veio a ser o fundamento de todo um sistema de filosofia pré- tica, que, penetra na mente de todas as classes sociais, veio a reacionar (como sempre faz a filosofia prética) sobre a filosofia teérica de nosso século (KROPOTKIN, 1986, p. 256). Nota-se que o gedgrafo revela a “pseudo-ciéncia” presente no pensa- mento de Malthus, estruturada para reproduzir as idéias necessérias & repro- dusio da desigualdade social. Kropotkin desvenda “por dentro” 0 papel ideolégico das ciéncias hu- manas, nfo apenas como justificadora das desigualdades sociais, mas, tam- bém, justificadora do colonialismo europeu: Quando um politico francés proclama recentemente que a missio dos eu- ropeus era civilizar algumas delas [as outras ragas] — ou seja, com as baione- tas cas matangas de Bac-leh ~, ndo fazia mais do que clevar & categoria de teoria os mesmos fatos que os europetis estéo praticando diatiamente. Até agora os europeus tém civilizado os selvagens com whisky, tabaco ¢ seqiiestro; os tém inoculado com seu virus; os tém escravizado (KRO. POTKIN, 1986, p. 6-7). Percebe-se com que clareza o gedgrafo vé a “missio civilizadora européia" ce deixa antever o papel da ciéncia como idcologia, ao qual cle se opie radical mente, especialmente quando afirma claramente que 0 papel da geografia é ser um meio para anular os esteredtipos ¢ combater os preconceitos inculca- dos com relacio as “racas inferiores’ (0s nao brancos)’. Nao nos esquecamos que a geografia que se consolidou néo foi aquela sonhada e praticada por Kropotkin. No que diz respeito ao colonialismo — especificamente -, seu papel foi exatamente o inverso: Vidal de la Blache, depois de haver dito que a conquista das distancias, colocava o homem numa situagéo que jamais antes vivera, escreve: ‘de vemos nos congratular porque a tarefa da colonizacio, que se constitui a gléria de nossa época, seria apenas vergonhosa se a natureza pudesse ter estabelecido limites rigidos, em ver de deixar margem para 0 taba- Iho de transformacao ou de reconstrugao cuja realizacao esté dentro do. poder do homem’ (SANTOS, 1990, p.15). * Ver KROPOTKIN (1986). 317 opts 37 ® ane 235 Larissa Mies Bombardi Quanto mais nos deparamos com a geografia que se consolidou, como aapontada por Milton Santos, tanto mais nos surpreendemos com o carter profundamente critico da “geografia libertétia” propugnada pelos gedgrafos anarquistas. O prego pago pela geografialibertdria, por cles praticada, foi cla ter sido “exilada” em sua/nossa propria hist6ria e eles, Kropotkin e Reclus, viveram este exilio literalmente no cotidiano de suas vidas. Esta geografia, dialécica, desvendadora do papel da ciéncia na sociedade burguesa, melhor dirfamos, no ambito do capitalismo, foi ex; bém na analise que os Kropotkin, entre os anos 1880 ¢ 1882, perfodo em que esteve hospe- dado na casa de seu amigo ¢ também geégrafo anarquista Elisée Reclus, na Suica, publicou uma série de artigos no jornal anarquista Le Revolve. Tiés anos mais tarde, em 1885, enquanto Kropotkin esteve preso, Flisée Reclus organizou estes artigos e os editou sob o titulo Paroles d'un Revolte. Entre os capitulos deste livro, ha um cujo titulo é “Questéo Agraria’, no qual o autor revela nao apenas a presenga dos conflitos de classe na Euro- pa como também a aio do campesinato organizado, seja para a conquista da terra, seja para a diminuicio da subordinagio de sua renda: Quem nao lé as noticias da Irlanda, sempre as mesmas? A metade deste pais esta em revolta contra seus senhores. Os camponeses ndo pagam. mais o arrendamento aos proprietirios do solo; aqueles mesmo que de- sejariam fazé-lo, nfo ousam mais, com medo de ter de se explicar com a Liga Agraria — poderosa organizacio secreta, que estende suas rami ficagées aos vilarcjos e pune aqucles que desobedecem sua palavra de ordem: “recusar 0 pagamento do atrendamento”. Os proprietitios nio ousam exigir o pagamento do aluguel. Se eles quisessem receber este dinheiro, que lhes devem neste momento, deveriam dispor de cem mil policiais ¢ provocariam uma revolta(..) Se nos transportarmos & outra extremidade do continente, & Espanha, encontzatemos uma situagio andloga. De um lado, como na Andaluzia ¢ na provincia de Valéncia, onde a propriedade fundidria concentrou-se em poucas mios, legiées dde camponeses famintos, ligados entre si fazem guetrilha sem trégua nem mereé aos senhores. Favorecidos por uma noite escura, os reba- nhos do proprietirio sao exterminados, as plantacdes de drvores quei madas em centenas de hectares a0 mesmo tempo; as granjas queimam 5 Vera “apresentagio” de Martin Zemliak em KROPOTKIN (2005). 318 opts oind 38 ® anu ns A dialética e a geografia agrévia na obra de Ariovaldo Umbelino de Oliveira ¢ aqueles que denunciam as autoridades os autores destes atos, assim como o alcaide, que ousa processé-los, caem sob as facas da liga (KRO- POTKIN, 2005, p. 118-119). Kropotkin mostra que a questio da terra extrapola o ambito do traba- Iho. Aliés, © autor demonstra a existéncia de um movimento de luta pelo acesso 4 terra na Inglaterra. Mostra também a existéncia de uma liga de trabalhadores rurais assalariados que lutava por melhores salirios, transfor- mando-se em uma liga que passou a lutar pelo acesso a terra: © que hi de surpreendente em que 0 grito de “Nacionalizagio do solo!” torne-se, hoje, o grito de agrupamento de todos os descontentes? ‘A grande Liga da Terra ¢ do Trabalho pedia, desde 1869, que todas as terras dos grandes senhores fossem confiscadas por toda a nagio, ¢ esta idéia ganha terreno a cada dia. A Liga dos Trabalhadores dos Campos, fortalecida com 150 mil membros, que ha dez anos sé tinha um tinico: objetivo, o de aumentar, pela greve, os salirios, pede, agora, cla tam- bém, o desapossamento dos senhores (KROPOTKIN, 2005, p. 124) Elisée Reclus, grande amigo ¢ interlocutor de Kropotkin, ao analisar a propriedade da terra na Europa, apontou a grande propriedade como um empecilho ¢ como um problema social a ser superado: Seja por efeito da heranca feudal, como na Gri-Bretanha, na Alema- nha do Norte, na Lombardia, seja em virtude de conquista, como na Inlanda, seja por grandes aquisi¢ées, como na Austrilia, a divisio da terra em latifiindio tornow-se regra em certas regides, onde os verda- deiros trabalhadores sio quase sempre excluidos de qualquer parce- la de posse no terreno produtivo. Cita-se principalmente o exemplo classico do norte da Escécia, onde o territério esta, por assim dizer, inteiramente nas méos de alguns privilegiados, muitos dos quais no conseguitiam ateavessar sua propriedade a galope em um dia; em con- trapartida, a maior parte sequer se preocupou em exploré-la, bastan- dorlhes receber a renda, Se ilustres agrénomos, que cram ao mesmo tempo grandes proprieté- tios, introduziram em certos paises excelentes métodos de cultivo, se trataram seus campos com ciéncia, como fabricas de produtos quimi: cos onde sio aplicadas as mais recentes técnicas, tornaram conhecidas novas espécies de plantas ou de animais ou ainda praticaram processos de producio desconhecidos até entio, € preciso nao se esquecer de que o latifindio, em sua esséncia, comporta fatalmente a privagio da cerra 319 Larissa Mies Bombardi para um grande ndimero: se alguns tém muito, porque a maioria nio tem nada, Alguns grandes proprietérios, atraidos pela paixio da terra, podem também ter a ambigao de ser admirados como benfeitores lo- cais; mas 0 fato de que a grande propriedade devora a terra ao seu redor € um desastre apenas menor que a devastagio € 0 incéndio; ela termina, alis, por chegar a0 mesmo resultado, isto é, & ruina das populagées € muitas vezes & propria ruina da terra (RECLUS, 1985, p. 84-85) Scja como for, pode-se indagar sea grande propriedade, enaltecida como a iniciativa do progresso, nao é em seu conjunto, pela soma de suas in- fluencias, menos eficaz do ponto de vista dos melhoramentos materiais que a pequena propriedade, por mais dividida que seja. Se quisesse, na economia geral da Franca, medir com mindcia, de um lado, todos os excedentes de lucro devidos & geréncia de um s6 em vastas propriedades, ¢, de outro, todos os desperdicios causados 4s comunas pelos parques reservados a raros privilegiados, pelos territdrios de caca, pelos mata gais que substituem as pequenas propriedades, talvez a balanga pendesse bbem para o lado do prejuizo ea grande propriedade continuasse para os povos modernos 0 que ela foi para os antigos, 0 flagelo da morte. Por outro lado, na pequena propriedade a iniciativa conseguiu prosperar até entre os horticulrores e pequenos cultivadores do mesmo modo que en- tue 0s ricos agrénomos, embora com menos fausto e menos publicidade. O pobre é sem diivida rotineiro e néo artisca seus poucos centavos sone gados 20 fisco ¢ & usura sendo com grande prudéncia, mas mesmo assim. os arrisea; alguns sabem observar, experimentar, aprender: as geragées, os séculos nao passam para eles sem que tenham realizado experiéncias duraveis. (RECLUS, 1985, p. 90-1) Nota-se que o autor abordou a mancira como era feita a apropriagio da terra e propés que esta devesse ter um carter social. Ele abordou também os efeitos nefastos da grande propriedade sobre o meio ambiente «, ainda mais, mostrou que as pequenas propriedades eram mais produtivas do que as maiores. Enfim, pés em discussio a terra como reserva de valor e como mercadoria. A questio agréria é, tal como apontavam os geégrafos anarquis- tas, uma questio latente. Kropotkin mostra, até mesmo, a existéncia de mo- vimentos messinicos na Europa: 320 (.) O que havers de surpreendente se nestas provincias a revolta se instalar surpreendentemente! Ora é um fanatico pregando 0 comu- nismo teligioso, que arrasta atrds de si milhares de camponeses, ¢ estes sectirios s6 sio dispersados sob as balas dos soldados; ora é um vilarejo A dialética e a geografia agrévia na obra de Ariovaldo Umbelino de Oliveira aque vem cm massa apoderar-se das terrasincultas de algum senhor ¢ as lavram por sua conta.. (KROPOTKIN, 2005, p. 120) rafia, captar ‘A abordagem dialética de ambos per- mitiu que percebessem a contradigao ¢ 0 conflito como marcas da socieda- de, A patti deste entendimento & que enxergatam a laténcia dos conflitos ¢ a contraditoried tifico geogrifico” Beatamente por isto foram fos, exilados ¢ praticamente alijados da histéria do pensamento geogrdfico. A TRAJETORIA DO PENSAMENTO GEOGRAFICO NA GEOGRAFIA AGRARIA ntretanto, ficou apartada da geografia e, sem. diivida, também da geografia agréria, durante décadas. A insurgéncia (ou 0 incémodo) do pensamento dos gedgrafos anarquistas fica ainda mais evidente quando se considera a época em que viveram: Reclus foi, por exemplo, con- temporineo de Vidal de la Blache que nasceu apenas 13 anos antes que o geé- grafo anarquista. A geografia agrdria brasileira, neste sentido, também reflete tal processo, Sua raiz encontra-se fundamentalmente na ind, sobretudo naquilo que resultou das oposigées positivistas e historicistas no seio da geografia, tendo 0 conceito de regiso, a partir de Hertner, tomado lugar central. Quando Leo Waibel, discipulo de Hettner, introduz a geografia agrdtia no Brasil (em 1946, a convite do Conselho Nacional de Geograti ge de ser o eixo central nas andlises realizadas e a neutrali- posta como um ponto i liscutivel. * Ver: PORTO ~ GONGALVES (1978) e SANTOS (1990), 321 opts ont 321 ® anu ns Larissa Mies Bombardi de positivismo especialmente na separaco homem/natureza e, sobretudo, na forga tremenda pela busca da “neutralidade cientifica’. Obviamente nao en- contraremos no trabalho de Waibel a referida neutralidade, pelo contritio: Numa de suas constatagées, publicada no texto “O homem no espaco. sul-afticano”, Waibel afirmou que: “o espaco sul-africano é hoje um espago do homem branco; sé ele ¢ proprietétio de terras e ¢ produtivo através do seu tabalho. O autéetone perdeu a sua autonomia econd- mica ¢ trabalha como empregado a servico do homem branco”. E concluit dizendo que: “o futuro de toda a populagio branca na Africa do Sul € colocada em jogo quando a questio racial nao ¢ corretamente abordada. O espago é terra do homem branco, aqui ele pode viver ¢tra- balhar ¢ ele deve, em favor de seu proprio interesse, excluir a populagso negra do direito & terta e ao trabalho” (ETGES, 1997, p. 29-30). Nao sé seu trabalho nao se aproximava de uma neutralidade, como, ao invés disto, era carregado de preconceitos e justificador do colonialismo alemio. Em sua definigio de geografia agrétia, Waibel (1958, p. 4) afirma que “para a geografa (.) a agticulrura é um importante fenémeno da superficie da terra e & sua atribuigio tentar descrever a sua diferenclacio expacial, procu- tando so mesmo tempo esl organ atances, Note que o papel dil Reclus, 50 anos antes, quando publicou Terra” afirmo cull Infelizmente a geografia nao prosseguiu no caminho apontado por Re- clus, mas continuou se alterando para permanecer a mesma em sua missio reprodutora dos valores ¢ conhecimentos da/para expansio capitalista. Evi- dentemente que i a geografia brasileira ce Sua primeira atribuicao [da geografia agréria fisionémica] consiste em a Para isto corna-se indispensivel a observaci0 no terreno, 0 que considero especial vantagem deste modo de encarar 0 fendmeno, porque cle finalmente também introduz na geografia cco- ndmica o método da observasio (...) (WAIBEL, 1958, p.7). 322 tps ont 32 ® anu ns A dialética e a geografia agrévia na obra de Ariovaldo Umbelino de Oliveira A segunda refere-se & reflexio a respeito do tamanho ¢ uso das proprie- dades rurais. De acordo com Etges (1997, p. 216-217), temas como o uso da terra, estrutura de posse ¢ tamanho dos lotes tém estado na ordem do dia, principalmente a partir dos anos 80, quando a temitica referente 4 Reforma Agraria voltou a tomar vulto. ‘Neste contexto, o Estatuto da Terra de 1964 continua sendo a referén- cia principal, uma vez que li foi apresentada a classificagio das proprie- dades rurais, usando como eritério o tamanho da propriedade e o uso da terra [apoiado nos estudos realizados por Waibel] Segundo Oliveira (1978, p. 399-400): “dizfamos da importancia da obra de Waibel e reperimos tal afirmativa, porque a c cia ldgica sao os pontos altos do seu trabalho” 10 Orlando Val cia e a consistén- Pierre Monbeig, que vei sda Universidade de Sio Paulo na década de 1930, substituindo Deffontaines ¢ permanccendo por 12 anos na diregio da AGB, também teve uma importincia grande na for masio dos primeiros ge6grafos que trabalharam com a temética agraria, en- tue 0s quais podemos destacar Nice Lecog Miller e Pasquale Petrone. Monbeig, que escreveu “Pioneiros ¢ Fazendeiros de Sio Paulo”, era representante do historicismo clissico. Monbeig, como Waibel, tinha um olhar centrado no desenvolvimento, no moderno, o que de outra forma sig- nificou que nao lograva fazer uma anélise centrada nas quest6es reais que es- tavam por tras da sociedade em que vivia. Assim, viu o indio brasileiro com tum olhar repleto de preconceitos. Segundo Bray (1983, p. 84): (..) 0 pensamento da “escola francesa” no Brasil, que teve em Pierre Monbcig um ilustre ¢ competente representante, incorporou 0 positi- vismo como método, 0 liberalismo politico como douttina, e a abor- dagem sistémica-organicista como pritica; predominando a teoria do cequilibrio entre o homem-natureza ¢ dos homens entre si através da geogralia da solidaricdade. A idéia de equilibrio entre homem e natureza em Monbeig escamoteava 605 conflitos sociais que estavam colocados, “homem-meio” ~ 0 homem gené- rico que perdurou no discurso geogrifico ~, como sempre nega a agio que é fandamentalmente social em qualquer apropriagio que ¢ feita do espaso. Esta postura de entendimento comegou a se transformar com a produ- io geogrifica que surgiu nos trabalhos de Orlando Valverde e Manuel Cor- 323 opts ond 3 ® anu ns Larissa Mies Bombardi reia de Andrade. Valverde, em sua obra “Estudos de Geografia Agritia Bra- sileira’, afirmou que havia quem duvidasse da existéncia de um problema agririo brasileiro por conta da sua posi¢éo na producio agropecudria mun- dial ou por conta da dimensao de sua area. Entretanto, argumentou que nio eram estes os elementos que indicavam se foblema agririo ou ‘no, mas sim “a resposta a esta a: fo donextosoioecondonie do pls” (VALVERDE, 1981, p. 232). Orlando Valverde avangou, assim, em uma ditegio completamente oposta aquela de seu mestre, na medida em que passou a colocar no centro de sua preocupacao o contexto “socioeconémico”. Portanto, discutir a ques- io agriria no ambito da geografia proposta por Valverde passava necessa- riamente por compreender a maneita como a terta estava sendo apropriada © 0 que isto significava do ponto de vista social. compreensio e da postura frente realidade social (OLIVEIRA, 1978) Manuel Correia de Andrade caminhou em uma diresio similar qu: escreveu “A Terra e o Homem no Nordeste”, estudando a questio a ra (FERNANI , 1998). Entre os textos presentes em “Estudos de Geografia Agraria Brasilei- 2°, de Orlando Valverde, esta um capitulo que havia sido escrito em 1961 chamado “Regionalizagao da Reforma Agréria’, no qual seu autor afirmou que, para a reforma agriria ser democrética, dois grupos deveriam ser ou- vidos: os técnicos os camponeses da regido. Afirmou também que nao se devia fazer reforma agraria em terras longinquas, pois “assim o desejam 08 opositores da reforma agrétia’, e que o nico objetivo fundamental da reforma agraria: “é o soerguimento econdmico e social das populagées ru- rais” — adotando uma postura deliberadamente politica, j4 em total con- sonancia com sua abordagem cientifica. O legado destes autores ¢ realmente indiscutivel, sobretudo quando se considera o salto te6rico-metodolégico dado com relagio & geragio anterior. Eles formaram a raiz do pensamento critico posterior. Foi através da influén- cia do pensamento marxista que a dialética passou a estar presente na geo- 324 opts 34 ® anu ns A dialética e a geografia agrévia na obra de Ariovaldo Umbelino de Oliveira grafia agréria brasileira e passou, portanto, a adquitir 0 carter despontado por Valverde e por Manuel Correia de Andrade. O Marxismo, desta forma, teve grande importancia na compreensio da realidade passou a haver, portanto, uma luta contra o discurso da “neutra- lidade cientifica’ presente nas demais correntes do pensamento geogrifico, Segundo Oliveira (1999, p. 69) (..) a dialética como corrente de pensamento da Geografia Agré- tia esta na base de um conjunto de trabalhos de Orlando Valver- de, Manuel Correia de Andrade, Pasquale Petrone, Léa Goldenstein, Manuel Seabra, entre outros. Essa influéncia tem sido marcada por prinefpios que sustentam esta escola de pensamento, Pode-se desta- car entre os mesmos 0 condicionamento histérico ¢ social do pensa- mento, portanto seu caréter ideolégico de classe. Com o marxismo comesa a baralha pelo desmascaramento do discurso pretensamente neutro ¢ objetivo presente no positivismo € no empirismo légico & mesmo no historicismo, A DIALETICA E O PENSAMENTO DE ARIOVALDO UMBELINO DE OLIVEIRA Ariovaldo Umbelino de Oliveira tornou-se o principal representante da corrente marxista no ambito da geografia agriria, Foi ele quem, deliberada- mente, introduziu na geografia agréria — por meio de sua concepgio dialéti- ca de cigncia — 0 comprometimento do trabalho cientifico com a transfor- magio da realidade. De acordo com Fernandes (1998, p. 106): (...) um dos primeiros trabalhos de ruptura nos estudos de Geogra fia Agraria ¢ a Ido nn’, Este trabalho ‘introdu: do materialismo histérico e do materialismo dialético, elementos fun- damentais para uma introdugao critica as ideologias dos trabalhos de- senvolvidos em Geografia Agrétia, particularmente no Brasil Neste ambito é que os temas como conflitos por terra, violéncia e movi- ‘mentos sociais no campo passaram a ser abordados por Ariovaldo Umbelino de Oliveira, de forma aberta e deliberada 325 opts 38 ® anu ns Larissa Mies Bombardi Entreranto, a interpretaéo do campesinato, da violéncia e dos confli- tos no campo nio tem sido a marca dos estudos em geografia agréria. Como demonstra o préprio professor mento do foi, como tem sido feita por posturas teéricas, por vezes, antagénicas. ica c mostrando que imtimeros autores, no préprio marxismo, Moo ceapiam' aes tone do postin come de ioc Em uma destas correntes esto os autores que defendem que no Brasil houve feudalismo, ou relagdes semi-feudais de producao: Por isso cles advogam a seguinte tese: para que o campo se desen- volva seria preciso acabar com estas relagées feudais ou semifeudais € ampliar 0 trabalho assalariado no campo. Para esses autores, a uta dos camponeses contra os latifundidrios exprimiria o avango da so- ciedade na extingio do feudalismo. Portanto, a luta pela reforma agriria seria um instrumento que faria avangar 0 capitalismo no campo. Esses autores costumam afirmar inclusive que o capitalismo esté penetrando no campo. Entre os principais estudiosos que se- guem essa concepsio estio Maurice Dobb, Nelson Werneck Sodré, Alberto Passos Guimaries, Inacio Rangel etc. © livro Estudos de Geografia Agréria Brasileira, de Orlando Valverde, apresenta esta interpretagao(...) (OLIVEIRA, 1999, p. 70). Em uma segunda corrente, estio os autores que acreditam que © ca pitalismo iri se desenvolver até 0 ponto em que 0 campesinato ird se “di- ferenciat” internamente, 0 que significa que, por fim, haverd sua prépria desaparigéo, tendo os elementos desta classe tornado-se proletérios ou ca- i pitalistas (Outra vertente entende que o campo brasileiro jé esté se desenvolven- do do ponto de vista capitalista e que os camponeses inevitavelmente iio desapatecer, pois eles seriam uma espécie de ‘residuo' social que © progresso capitalista extinguiria. Ou seja, os camponeses ao tentar produzir para o mercado acabariam indo & faléncia, ¢ perdendo suas tertas para os bancos ou mesmo teriam que vendé-las para saldar as dividas. Com isso, os camponeses tornar-se-iam proletitios. Entre os principais pensadores dessa cortente estio Karl Kautsky, Vladimie I 326 opts ond 328 ® anu ns A dialética e a geografia agrévia na obra de Ariovaldo Umbelino de Oliveira Lenin, Léo Huberman, Paul Sweezy, Caio Prado Jr., Maria Concei- cio D'Incao ¢ Mello, José Graziano da Silva, Ricardo Abramovay ete. A maior parte dos trabalhos em geografia agrétia tém por base essa concepsio. Séo exemplos dessa corrente (...) a maior parte das ceses e dissertagdes defendidas na Geografia da UNESP — Rio Claro-SP ¢ na UERJ, no Rio de Janeiro. Mas, talvez, pelo seu carter emblems- tico, 0 trabalho de Ruy Moreira, “O desenvolvimento do capitalismo 0 lugar do campo no proceso”, publicado na revista Terra Livre n° 1, seja um dos melhores exemplos dessa corrente na geografia agréria (OLIVEIRA, 1999, p.71). O professor Ariovaldo, entretanto, se opde as duas correntes anteriores argumentando que nelas nio ha lugar histérico para os camponeses no futuro. Isso porque a socie- dade capitalista é pensada por estes autores como sendo composta por duas classes sociais: a burguesia (os capitalistas) e © proletariado (os trabalhadores assalariados). E por isso que muitos autores ¢ mesmo partidos politicos nao assumem a defesa dos camponeses (OLIVEIRA, 1999, p.71). Para se contrapor aos autores das outras duas correntes marxistas de in- texpretagio do campo, Ariovaldo Umbelino de Oliveira afirma: Penso que esses autores “esqueccram” uma frase escrita por Karl Marx em O Capital: “Os proprietarios de mera forga de trabalho, os proprietd- rios de capital e os proprieuévios de terra eujas respectivas fontes de rendi- mentos séo 0 salério, 0 lucro e a renda fundidria, portanto, assalariados, capitalistas e proprietdrios de terra, constituem as trés grandes clases na sociedade moderna, que se baseia no modo de produgéo capitalista.” Por- tanto, a compreensio do papel e do lugar dos camponeses na sociedade capitalista ¢ no Brasil, cm particular, é fundamental. Ou entende-se a questio no interior do processo de desenvolvimento do capitalismo no campo, ou entio continuar-se-d a ver muitos autores afirmarem que os camponeses esto desaparecendo; entretanto, os camponeses conti- nuam lutando para conquistar 0 acesso & terra no Brasil, Um bom exemplo para esclarecer essa questio ¢ o aumento do mimero de pos- seiros no Brasil (OLIVEIRA, 1999, p. 72). Hi que se fazer um importante esclarecimento com relagio & inter- pretagio, proposta pelo professor Ariovaldo, sobre a existéncia do cam- 327 organi 37 ® anu ns Larissa Mies Bombardi pesinato como classe social no modo capitalista de produgio: ela é reflexo de seu posicionamento tedrico. Ou seja, esta interpretagéo nao ¢ fortuita, a0 contratio, ela é diretamente fruto do mergulho dialético no marxismo, que fez/faz 0 professor Ariovaldo, Em outas palavras, este mergulho na dialética marxista é que o permite conceber a realidade como eminente- mente contraditéria. Neste sentido, ¢ préprio da “condicao contraditéria da realidade” a existéncia de formas nio-capitalistas no interior ¢ no pro- cesso de produgio ¢ reprodugio do capital. Assim é que 0 campesinato € interpretado, ou seja, como fruto deste desenvolvimento do capital, que, a0 mesmo tempo em que é contraditério, é também combinado Em suas palavras: --- 04 Seja, 20 mesmo tempo que segue reproduzindo relagées especifi- camente capitalistas mais avancadas, produz também, igual ¢ contradi toriamente, relagées nao-capitalistas de producio ¢ de trabalho, como as relagdes camponesas de produgio, a peonagem etc.; todas necessarias & sua Idgica de desenvolvimento (OLIVEIRA, 1999, p. 74). E neste ambito que esté construida a terceira corrente de interpretacio do desenvolvimento do capitalismo no campo: uma corrente assentada no pensamento dialético, em que tem lugar a concepgio da unidade dos con- trérios, ou, dito de outra forma, a concepsao de que o desenvolvimento ca- pitalisca é a0 mesmo tempo “desigual ¢ combinado": Dessa forma, para mim, que fago parte de uma outra concepgio teé- rica da compreensio do desenvolvimento do capitalismo no campo, © que ocorre na agricultura brasileira é um processo diferente. O. estudo da agricultura brasileira deve ser feito levando-se em conta que © processo de desenvolvimento do modo capitalista de produ- Gio € contraditério € combinado. Isso quer dizer que, a0 mesmo tempo que esse desenvolvimento avanga reproduzindo relagées es- pecificamente capitalistas (implantando 0 trabalho assalariado pela presenga no campo do béia-fria), ele (o capitalismo) produz tam- bém, igual ¢ contraditoriamente, relagses camponesas de produ- 40 (pela presenga do aumento do trabalho familiar no campo) Entre os mais importantes pensadores dessa corrente estéo Rosa de Luxemburg, Teodor Shanin, Samir Amin, Kostas Vergopoulos (...) (OLIVEIRA, 1999, p.73). 328 opts 38 ® anu ns A dialética e a geografia agrévia na obra de Ariovaldo Umbelino de Oliveira Neste entendimento, apontado ¢ desenvolvido por Ariovaldo Umbe- lino de Oliveira, néo apenas a realidade é concebida como eminentemente contraditéria, como ha que se considerar também que é parte fundamental da concepsio dialética submeter a teoria & realidade Na dialética, a teoria nfo pode se constituir de modo isolado da prética porque é esta que fornece contetido para o pensar. A pritica também nao pode estar desvinculada de uma teoria, razio pela qual 0 acervo teérico dde nosso trabalho depende da prética social. (CAMPOS, 2001, p. 88) Neste sentido, o professor Ariovaldo, teve — como “pritica teérica” ou “teoria prética”, ou ainda para usar a expressio de seu attigo “Na prdtica a teoria outra para a teoria na pritica néo pode e néo deve ser outra"’ — por hé- bito, melhor ditfamos, por opgdo tedrico-metodoldgica, sempre submeter a teoria & realidade, como ele proprio explicita: Como se sabe, a realidade é a Ginica referéncia para submetermos & dis- cussio nossas concepgées teérieas. Desse modo, este debate deve es tar submetido ao entendimento que temos a respeito dos processos de desenvolvimento da agricultura capitalista. Caso contrério, podemos continuar, como tem sido regra na hist6ria do pensamento geogritico, a “geografizar” um debate que tem dimensées filossficas, histrieas ¢ politicas (OLIVEIRA, 1999, p. 65). Nesta pratica, ¢ neste entendimento, o professor Ariovaldo nao sé submete sua teoria & realidade, como a concebe também a partir da reali- dade, em uma busca continua em que conhecimento ¢ realidade nao sao concebidos como entidades apartadas, mas, ao contrério, se complemen- tam ¢ se auto-determinam.® Assim, ¢ exatamente neste Ambito — no 4m- bito do real - que o professor Ariovaldo Umbelino de Oliveira clabora e sustenta sua teoria sobre a agricultura camponesa e, particularmente, so- bre o campesinato brasileiro: 5 OLIVEIRA (19858). © O professor Ariovaldo Umbelino de Oliveira coscuma, em suas aulas, relembrar 0 esque ‘ma apontado por Caio Prado Jr (1955), em Dialécica do Conhecimento, em que 0 aucor mostra a unidade e totalidade do processo de conhecimento da seguinte forma: condiciona labora ATIVIDADE PENSAMENTO CONHECIMENTO dirige orienta 329 tps ond 39 ® anu ns Larissa Mies Bombardi a compreensio do papel e do lugar dos camponeses na sociedade capitalista ¢ no Brasil, em particular, é fundamental. Ou entende- se a questéo no interior do proceso de desenvolvimento do capi- talismo no campo, ou entéo continuar-se-4 a ver muitos autores afirmarem que os camponeses estéo desaparecendo; entretanto, os camponeses continuam lutando para conquistar 0 acesso & terra no Brasil. Um bom exemplo para esclarecer esta questio é o aumento do ntimero de posseiros no Brasil. Em 1960, existiam 356.502 esta- belecimentos agropecudrios controlados por posseiros. Jé em 1985, cles passaram para 1.054.542 estabelecimentos. Exatamente neste periodo de grande desenvolvimento do capitalismo (sobretudo in. dustrial) ocorreu no Brasil um aumento de mais de 196% dos esta- belecimentos ocupados por posseitos (OLIVEIRA, 1999, p.72) E, portanto, através da realidade que o professor Ariovaldo constréi e clabora seu pensamento teérico, contrapondo-se as demais correntes de in- terpretagio do campo, ¢ mostra que 0 equivoco destas correntes esté justa- mente na negligéncia daquilo que a realidade esta abertamente “gritando”. ‘Ou seja, se a teoria ndo se confirma na pritica é porque a teoria est equivo- cada ¢ nao, evidentemente, o contrério: Se as teses de extingio do campesinato, de fato, tivessem capacidade explicativa, esses possciros deveriam ter se tornado prolerétios. Mas nao foi isso 0 que ocorreu. Os camponeses, em vez de se proletariza- rem, passaram a lutar para continuarem sendo camponeses. Logo, sto as teses sobre a compreensio do desenvolvimento do capitalismo no campo, seguidas por esses autores, que possivelmente no tém ca- pacidade explicativa, Na realidade, 0 que ocorre é que esses autores tém uma concepgio teédrica que deriva de uma concepsio politica de transformagio da sociedade capitalista. Partem do pressuposto de que a chegada do socialismo s6 seria possivel se a sociedade capi- talista tivesse apenas duas classes sociais: 0 proletariado e a burgue- sia (...) (OLIVEIRA, 1999, p.72). Ea partir do método dialético de Marx que Ariovaldo Umbelino de Oliveira clabora e desenvolve sua teoria, concebendo a realidade como pon- to de partida e de chegada. Citando o préprio Marx, mostra onde esti 0 as- pecto central de seu método: 330 A dialética e a geografia agrévia na obra de Ariovaldo Umbelino de Oliveira ... meu método dialético néo s6 difere do hegeliano, mas é sua an- sitese diteta, Para Hegel, 0 processo de pensamento, que ele, sob 0 nome de idéia, transforma num sujeito auténomo, é 0 demiurgo do real, real que constitui apenas a sua manifestagio externa. Para mim, pelo contririo, o ideal nao é nada mais que o material, trans- posto e traduzido na eabega do homem (MARX, 1985, apud OLL- VEIRA, 1999, p. 70). Seu mergulho na realidade ¢ sua cocréncia com a postura teérico-me- todolégica escolhida fizeram com que 0 professor Ariovaldo fosse portador de uma grande ousadia na produgio do conhecimento na geografia agraria brasileira. Esta ousadia tem sido a marca de sua produsio bibliografica Esta produgio bibliogrifica tem varios trabalhos que se tornatam em- bleméticos na construgio da geografia agréria brasileira sob a perspectiva marxista. Um dos primeiros trabalhos — que se tornou referéncia nesta li- nha de pensamento ~ foi sua propria tese de doutorado, que comesou a ser desenvolvida com a intengio de verificar como seria a aplicagio no campo paulista da teoria de Von Thiinen, ¢ acabou por tornar-se exatamente set. avesso, out seja, transformou-se na “Contribuigao para o estudo da geografia agraria: critica ao ‘Estado Isolado’ de Von Thiinen”. © professor Ariovaldo, no desenvolvimento dos estudos para a tese, deu o “salto metodolégico dialéti- co”, tornando-se cénscio de que a teoria nao se “encaixava” a realidade ¢, a partir dai, fez a critica da prépria teoria estudada, Neste sentido, ¢ caminhando no desvendamento do campo brasileiro a partir de uma perspectiva dialética, foi fundamen capital no campo. A partir dai, diversas foram as obras" de desvendamento do campo nesta mesma perspectiva, em que se completava o ciclo de sua postura dialética, no sentido de que sua trajetéria foi marcada néo s6 pela interpretacio da realidade como também por set compromisso com a trans- formagio social da realidade. OLIVEIRA, 1981. © Entre estas, ver: OLIVEIRA (1984; 1985; 1986a; 1986b; 1990; 1991a; 1991b; 1995a; 1995b; 1996; 2001b; 2002; 20036; 2004) 331 opto nt 31 ® anu 2735 Larissa Mies Bombardi TEORIA E PRATICA NA OBRA DE ARIOVALDO UMBELINO DE OLIVEIRA lo tornou-se uma referén- nao sé na geografia, como nas outras ciéncias humanas ~, produzindo uma interpretacdo para a reprodugéo do campesinaro e dos movimentos camponeses. Esta explicagio & fo camponesa~ que, muitas veces, ae aaa Scamp em 0 pina traduzida em diversas obras de Ariovaldo Umbelino , ¢ é enxer- gada como fruto da contradigao desta sociedade: No entanto, se da violéncia nasce a morte, nasce também a vida. O Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra € produto dessa con- tradigio. A negagio & expropriagio nao é mais exclusividade do reti- rante posseito distance. Agora ela é pensada, articulada e executada a partir da cidade, com a presenca dos retirantes a que a cidade/sociedade insiste em negar o direito & cidadania. Direito agora construido e con- quistado na luca pela recaptura do espago/tempo, perdidos na trajetsria histérica de expropriagio (OLIVEIRA, 2001b, p. 14) tornou-se, portanto, Umbelino de Oliveira. Assim é que, deliberadamente, denunciou (como tem denunciado) o significado do latifiindio brasileiro, desvendando que ha por rds do enorme ¢ violento processo de grilagem de terras no pais, como, por cexemplo, tem ocorrido no Pontal do Paranapanema em Sio Paulo: Com uma érea de 900 mil ha, esta regiso, segundo o Instituto de Terras do Estado de Sio Paulo — ITESP — possui um total de 444 mil ha de terras devolutas (piblicas portanto) derivadas do “grilo mae” da fazen- dda Pirapozinho/Santo Anasticio (mais de 560 mil ha) datado do ano de 1886. Somente em 1958, depois da apuracéo da falsidade dos titu- los, o governo do Estado ganhou a ago de devolusao das terras Passados 37 anos, virios dectetos de desapropriagdes foram assinados pelos governos estaduais atingindo uma dtea de 46.169 ha, que redun- daram em treze assentamentos com 3350 familias (.) Os fazendeisos-grileiros que se dizem “proprictitios” das verras grila- das do Pontal, evidentemente ingressatam na justiga para contestat as 332 opts 32 ® anu 2735 A dialética e a geografia agrévia na obra de Ariovaldo Umbelino de Oliveira agées do Estado ¢ mais do que isto, quanto irremediavelmente per- diam, moviam ages para peditem indenizagSes pelas benfeitorias, Na verdade, tudo parece uma grande farsa, pois se a justiga reconhece que ssas cerras ndo pertencem a estes fazendeiros, eles se tornaram grilei tos, ou seja, utilizaram as tcrras sem sequer possuir uma autorizagio de seu proprietétio (0 Estado), logo, dever deixar estas terras que nio Ihes pertencem. E mais, é 0 Estado que deveria mover agées judiciais pedindo o ressarcimento pelo uso indevido de seu patriménio, ou s¢ja, estes fazendeiros-grileiros deveriam pagar, no minimo, renda pelo uso da terra, que legalmente pertence ao Estado. Mas nio é 0 que acontece no Pontal (OLIVEIRA, 2001, p. 116). Ai esté a ousadia do pensamento do professor Ariovaldo Umbelino de Oliveira, que tem construido uw afia completamente compro- metida com a Evidentemente, esta ousadia no est4 apenas na teoria la por ele, mas esté também em sua ago, j& que o professor tornou-se um dos grandes interlocutores dos su- jeitos sociais comprometidos com a transformagio da realidade, mem- bros dos movimentos sociais camponeses ¢ de entidades da sociedade ci- vil organizada, que a ele recorrem para que os ajude a iluminar os passos da luta que travam cotidianamente. Ao abordar os dados sobre os con- fitos no campo, publicados pela Comissio Pastoral da Terra em 2002 — em artigo publicado pela propria CPT -, 0 professor faz sua anilise teérica da realidade, indicando, ao mesmo tempo, a interpretagio poli- tica coerente com a teérica: Essa modernidade produziu, contraditoriamente, capitalistas lati- fundisrios e latifundidtios capitalistas, os agribusiness que nio se cansam de clamar pelo fim dos subsidios agricolas nos paises desen- volvidos, insistem, em pleno século XXI, na recusa de accitar a re- forma agriria como caminho, igualmente moderno, para dar acesso terra a aqueles que querem produzir e viver no campo (OLIVEI- RA, 2002, p. 26). Neste sentido, ele tem sido assessor, interlocutor ¢ — com a livenga da postura dialética que se completa com sua pritica — também “companheiro” dos atores sociais envolvidos com a lua pela terra e com a transformacio desta sociedade. Retornemos, entéo — para tecer uma interpretagio da teo- ria/prética do professor Ariovaldo — aos ge6grafos libertarios. Retornemos ao Kropotkin ¢ & sua utopia: 333 opts 39 ® anu 2735 Larissa Mies Bombardi ‘Veremos que a situasio atual torna-se insustentével ¢ néo pode durar muito tempo; veremos que nio esti longe o dia em que a sociedade deverd transformat-se, até em seus alicerces, e dar lugar a uma nova or- dem de coisas: uma ordem de coisas em que o regime da propriedade ¢ da cultura, tendo sofrido uma profunda modific solo nio seré mais, como hoje, o patia da sociedade e vird a ocupar seu lugar no banquete da vida e do desenvolvimento intelectual (...) ‘Uma coisa é certa:a Inglaterra caminha para a aboligéo da propriedade privada do solo, ¢ a oposigio encontrada por esta idéia, por parte dos detentores da terta, impedira que esta transformagio se opere de ma- neira pacifica: para fazer prevalecer sua vontade, 0 povo inglés deverd recorrer & forca. (KROPOTKIN, 2005, p. 122 ¢ 125). Tal como os gedgrafos anarquistas, que fizeram uma geografia/ucopia comprometida com a transformasio da sociedade em que viveram, assim é a geografia do professor Ariovaldo Umbelino de Oliveira que afirma, a res- peito da produgio do conhecimento no mundo atual: © cultivador do a forca do capital na atualidade encontra-se no monopélio do conhe- cimento e da informagio. Hé muito tempo, os investimentos de capi- tais no desenvolvimento de pesquisas constituem a base da possibilida- de de avango tecnolégico das empresas. A constituigio de associagées entre empresas tem visado & redugao da relagZo custo-beneficio para esses empreendimentos. Os pesquisadores ou administradores, a cada dia que passa, transformam-se em verdadeiros parceiros dos negécios. ‘Transformaram-se, portanto, em capitalistas associados Discutir essas contradigées € um dos objetivos desta apresentagio, que procuraré, além da necesséria reflexio a respeito dessa préxis, dar conta da utopia para pensé-la como instrumento que permita a construgio da liberdade, da autonomia ¢ do compromisso social no interior da pritica universitétia (OLIVEIRA, 1999, p. 64) A dialética pensada/praticada por Ariovaldo Umbelino de Oliveira esté expressa na construgio do conhecimento que elabora, no modo como o ela- bora, no modo como ensina o que elaborou e, finalmente, no modo como interage com aqueles que bebem de seu conhecimento para transformarem a realidade em que vivem. Assim, na pritica e na elaboracéo desta geogra- fia também libertéria é que Ariovaldo Umbelino de Oliveira tem colocado — para coneluir com suas ea palavras ~“o.conbecimento ciensifica a ser 334 eating rv id 536 & A dialética e a geografia agrévia na obra de Ariovaldo Umbelino de Oliveira BIBLIOGRAFIA ANDRADE, M. C. de. A Terra o Homem no Nordeste. Sao Paulo: Brasiliense, 1967. PREFACIO, In: (Org,); Fernandes, F, (Coord.) Elisée Re- clus. Sio Paulo: Avica, 1985. (Geografia). BOMBARDI, L. M. “Geografia agréria responsabilidade social da ciéncia’. In: Terra Livre. n° 21, Sao Paulo, 2004. p. 41-53, BRAY, S. C. “O Pensamento e o método na obra de Pierre Monbeig —anilise dos trabalhos produzidos no Brasil nas décadas de 30 ¢ 40”. In: Revista de Geo- grafia da Unesp, Volume 2, Sio Paulo, 1983, p. 83-90. CAMPOS, R. R. de, “Tese, antitese, sintese, tes...” In: Boletim Paulista de Geogra- fia, n° 77, Associagio dos Gedgrafos Brasileiros, S40 Paulo, 2001, p. 79-98. CAPEL, H. 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