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Ene en ce elrec0) A CRIMINOLOGIA: UM ARQUIPELAGO INTERDISCIPLINAR 2012 [WEPORTO) editorial a =a 1 AHISTORIA EPISTEMOLOGICA HISTORIA DO CRIME E DA CRIMINOLOGIA DA CRIMINOLOGIA RITA FARIA’ E 1 ANISTORI& EISTEMOLEGICS DA CRIMINOLOGIA ngo do tempo, enquanto actores inseridos numa comunidade cientéfica que roduz e transmite conhecimento potencialmente itil. Nao é disso que se tra- smos “fazer” a Hist6ria da Criminologia porque cremos que a imagem do desenvolvimento no tempo e espaco deste campo do saber nos surge como excessivamente simplificado por anglises ou abordagens que tendem para a sta redugao ¢, consequentemente, menosprezo, Salvo rarissimas excepgdes", e autores de “mitosfundadores” (Garland, 2002, p.1). Urgente se torna escapar deste recontar si questionar 0 percurso jé percorrido em que mergulha, demandar o seu fazer “a andlise das formagées discursivas, das positividades edo er, nas suas relagDes com as figuras epistemolégicas e as ciéncias,[..] para dis- tinguir de outras formas posstveis de histéria das ciéncias” (Foucault, 2005, p.243) Fugindo das abordagens lineares (que estudam a a desde o momen- to da sua constituigio ¢ andlise do posterior desenvolvimento, situand ideias no tempo, como quearmazenando-as) e sem querer abragarum modelo cumulativo das ideias, procura-se, isso sim, uma abordagem segundo modelos complexos?, Desta forma, a Hist6ria do pensamento, e do pensamento crimi- nnol6gico mais concretamente, bem como das suas priticas, surge encarnada no tempo, de partaa ds Arquaologe Faueaucians:“Faar co endive itr © 0 fzor de coresiéncie humane ouaita eigrare do todo dove de tosoa price mes sistema de gensomenta. 0 temo € a concebde em termasd=toiczageo 2005) Outros autorsseerogam de 1 rt poto com Garland no texto usado reste rape que fegam adaquadamante 28 ITA FARIAE CANDICO DA AGRA Por essa razio, hé que reter necessariamente dois pontos. (® Nao nos podemos imitar apenas nem s ideias* nem ao produto. Aque- las tem necessariamente que ser associadas aos métodos, de forma que hé que tema, Nao 6 possivel pensar o pensamento sem a ideia dé ma, de um, esquema integrador. @ Este sistema tem que ser colocado na Historia nao apenas de forma cro- da vida dos Homens em sociedade, em de- (0 e vida, pois, cem tanto as poder. Tem que haver uma ligagio profunda entre conhecim énas relagdes de poder ede interesse que nasce o saber, ideias como a prépria condigio de produgio desse saber*. 1 CASTIGAR O CORPO, REAFIRMAR A LEI Para compreender a necessidade de instituigfo de uma ciéncia sobre 0 imperioso olhar parao momento anterior a0 {80 modelo arquesoglce pedi or sranta de uma is seracesiseias 9 °Acste ntl nose trated sober qua 6 0 coder que paso do extorior ectrea cnc, mas sim ue fats ae poder ceiom edar came 9 ora twaugbe dos aut 10 Pare Garland (2002), a Criinolaga nace do encanto ents o projects lombroseno & 0 von-erinioals (08) 11789 mento 2 pari do quot emo pit ‘momento em que intervim um eS mame sistema do formapte das enue i postvidade"(Fovent, 2005, p.238) eso @ oom Haman, (1988 8 1 AISTORUA EPISTEMOL.EGICA D4 CRIMINOLOGIA revelam o nao-dito sobre o crime, o delinquente, as formas de poder exercidas face aos comportamentos no conformes ¢, consequentemente, as considera- es em torno da natureza do ser humano eda sociedade que o por em causa através do seu acto. Foucault abre a sua marcante obra, “Surveiller et com o relato do suplicio de Damiens, em 1757. Multiplicacio ad infinitum do sofrimento fisico, ‘ardamento do momento em que se extingue a vida, a vitoria da Justiga e do Poder Soberano pela dor e,ao mesmo tempo, 0 oferecimento do consolo na pa- lavra de Deus ¢ a promessa da Salvagiio pelo arrependimento. A imitagio da Justiga divine ordenada, desta feta, pelo Rei ~ contra o qual o su atentado directamente com o seu acto. O monarca realiza a Justiga como se fos- seDeus:sfo comunsas imagens escatol 108 lugares de julgamento e em. tudo se assemelham as que sto encontradas nos locais de oracao (Robert, 2006). Asemelhanga de Deus, o monarca, por via dos seus magistrados, funcionsrios ecarrascos, separa os justos eos impios, castigando-os naterra, antecipendoo sofrimento que se seguirajé fora deste mundo (Foucault, 1987).A eternidadedo sofrimento é reproduzida na duragéo do suplicio e o poder do monarca é absoluto, directamente delegado de Deus. © castigo aplicado, quando nao termina na morte, deve perdurar no corpo No corpo do criminoso deve ficara marca do seu feito e, logo, da acgto do monarea que restabeleceu ¢ reafirmou desta forma o seu poder, in@screvendo-o nomais palpavel do seu sibdito, Sao comuns castigos comoa iado havia ‘de arrependimento sto também usados. O restante da populacio encontra-se desta forma com 0 acto, como proscrito e com o poder. Nos supli- ios vem para admirar adestreza do carrasco (ou injuriarquando este cumpre mal o seu oficio) e acompanbar 0 condenado ao eadafalso; mas a popuilagio também segue os condenados ao desterro ou as galés, da pristo ao barco, ad- miraassuas pobres roupase mauestado de satide, apupaou dé confort 16-30 para este otto Maria ose Moutinno Santos (7999), mss tambim romance do Victor Huge uit da do vm condenado mots 30 ITA FABIA E CANDIDO DA AGRA ‘adescrigao dos maus actos movidos por maldade, jgnominia ou desejos insa- cidveis, tal como encontramos no final do discurso de Arthur, escravo fugido, ladrao e violador, em 768 (citado in Rafter, 2009, p.7):"“Desejosinceramente que aRécita dos meus Crimes, ea Morte ignominiosa para a qual a minha Malvadez me ‘empurrou, possam ser um Aviso a todas as pessoas que assim se acautelam" castigo é pablico e reproduzido vezes sem conta por transmissio oral,em 1eas pessoas trocam ou léem entre si p.54)-0 que dari origem a uma “reeserita estética do crime’ made romance ou, um século depois, aos jornais especial deer (idem, p.56) na for- zados em hist 2 0S SABERES SOBRE 0 HOMEM NA SUA RELAGAO COM ALEI Encontramo-nos ainda a uma certa distancia dos conhecimentos espectficos sobre o“Homem delinquente”, mas, durante todo oséculoxv1 forte impulso.ao que viriam a ser chamadas as ciéncias do Homem. Sem reves- ¢ relago com os outros e com o mundo. Surgem escritos importantes sobrea relago com a moral e, consequentemente, a forma como cada um opera esco- Ihas, lida com o Bem ¢ 0 Mal, 0 Justo €0 Injusto, como percepcionao Prazer € oDesprazer eage em c Hutcheson, em 1725, p beauté et de la vertu” onde, contrariando o rel existir uma apreensio imediata do bom e do belo, reflectindo em torno dos mecanismos mentais de racionalizaglo ¢ legitimacao que subjazem aos com- portamentos moralmente discutiveis (Debuyst; 19950). Mandeville” escreve 0950) ooseu capitulo sobraossaberes ro cometemas para seu tabalne de te artigo. a 1 ARISTORIR EPISTEMOLOGICA DA CRIMINOLOGIA co segundo volume de "Fabula das abelhas” em 1729. Afirma que a fal glo da mic em relagio ao recém-nascido conduza estupider.e defeito de 50 izagdo na idade adulta, o que se verificaria frequentemente nas classes mi lé ao prelo a obra “Psychologia empirica", anunciando ser possivel medir a inten: estados deal impressées edo grau de certeza dos julgamentos que 0 sujeito faz sobre as mes- ras (ibidem). Maupertis fala de uma aritmética dos prazeres, no sex “Essai de philosophie morale” (i749), através da qual seria imaginavel medir a qua dade de felicidade que é dada a experienciar a cada individuo e Rousseau, em 1755 defende existir um sentimento inato de justiga no ser humano (ibidem). lac (715-1780), 0 conhecimento funda-sena sensagdo. os objectos siio considerados segundo o prazer ou desprazer que provocam no Homem, de acordo com a associagao de ideias eas ligagdes associativas operadas (ibider), ‘Mas néo se escreve apenas acerca do Homem e da sua relagio com a Moral com as Leis. Escreve-se também acerca das préprias Leis. Em 1748 Montes- ica 0 famoso “Espirito das Leis” onde chama a atencfo para a exis- ao diversa consoante o local ea época. D’Alembert, no seu “Essai sur les éléments de philosophie” (179), defende que os seres humanos io dotados de liberdade e que, por essa razio, as leis tm que ser nto apenas necessdrias,mas justas. A partir da Bastitha, o Marqués de Sade demonstra que mais nfo é que a expressio do mais forte que assim impde 0 seu ponto de vista (‘Justine et les malheurs dela vertu’ 1797). .ctode reflexio em autores como Mande- realgaa existéncia dos vicios evirtudes smo,da prostituigdo eds pobreza nao enquanto fenémenos intrinsecamente negativos: crime eriaempregos, diz Mandeville, os vicios existem quando oEstado quer arrecadarriqueza, ebusando, desta forma, da sua populagio. Rousseau, porseu a do sistema econémico sobre as desigualdades entre ferenga face ao Outro (ibidem). cia nfo seja, no Ambito destes escritos, ‘Tambéma organizagio social éo ‘ou, denovo, Rousseau. imbricados nos mecanismos s6cio-politicose reflecte acerca do aleot amo, realga a inf ‘0s Homens ea crescente: Ainda que adi estudo per se, estamos aqui perante saberes ‘17 Mateo fldstoojureta alone (1679-1764) 18 ecinde emprestada a linguagem de Deouyt no vabolhejtindiead (7005aL ITA FARIA CANDV00 04 AGRA 3UMA HERANCA DE 250 ANOS: Para Pires (1998), 0 ano cle 1764 marea o momento exacto do nascimento da ‘moderna racionalidade penal, Com: obra “Dos d Beccaria, o Direito Penal surgenas vestes que, de forma geral, perduraram até inalmente desligado da teologia mas também do Direito Civil, ‘um subsistema complexo de regras de proibigio 1at6rias, com procedimentos fechados sobre si mesmos, auténomo € 197). 0 objectivo do Direlto Penal éa protecgio da cordem, da seguranga ea pacificagto social através da disstiasto eda obrigacio de puniras infracgdesa lei esc Publicada anonimamente, a obra “Dos delitos e das penas” tem como pri tos e das penas” de Cesare dos e condenados, ou seja,as garantias pro- ia sobrea pena (Pires, 1998). contra as atrocidades do Antigo Regime, mas talvez. mais nao seja que @ voz, quese faz ouvir jd entreuma populagao indignads face violéncia do monarca entos de humanidade vao surgindo ite por via da importancia atribuida & razo € consequente afasta- mento desentimentos eemocées nocivos, como sejaa vingangaem prol daqual 2 punigZo era normalmente realizada. Beccaria conseguiu, portan criagdo de um sistema penal desligado da violéncia fisica eda arbitrari que caractorizava o poder até af® e que vai orientar ou determinar as grandes Ainds segundo Foucault, "0s derotes estates sci talerode: onde onic do reg, incbservincia do ndmeros Stes ov ordenoyes erm conto do 33 1 ARISTORIAEPISTEMOLOGICA DA CRIMINOLOSIA Jinhas da racionalidade penal da modernidade. Tio relevante quanto Beccaria 6]. Bentham (1748-1832), tendo este, no entanto, uma obra mais vasta e bem mais heterogénea que o primeiro. Estes dois autores sdo, normalmente, apon tados como os grandes nomes da baptizada Escola Clssica de 10 Penal deve ser capar de proteger nfo 0s valores ito Penal. Para Beccaria, 0 fundamentais da sociedade, mas também assegt lade, protegendo-a contra os ‘atentados'individuais de quem infringe a lei. Simultaneamente, tem que ser garante da liberdade individual contra. abusos de poder. Procura-se uma resposta para dificil eq F as condigdes essenciais davida em soci anecessidade de tar esse mesmo poder de vviduos (idem). Como resolver? Através do respei pela repartiglo da fe mimero® ou principio da utilidade. As leis, além de justas, isto 6, em vez de serem instruments de paixio de uns poucos devem resultar de um pacto por todos, respeitandoa liberdade ea dignidade humana esendoem Cada acréseimo de lei representa um decréscimo de Penal) aodispor fem aliberdade e le forma a proteger os indi- pela dignidade humana e sm que ser efectivamente necesséria liberdade. A leg da procura da felicidade s6 € a dignidade humana. Mas porque precisamos nés de governo, de leis, de sancbes? A famosa teo sia do contrato social de Beccaria diz-nos que os Homens, quando vi chamado Estado de Natureza, gozavam de total liberdade mas, igualmente, de total inseguranga, num estado de guerra perpétua. Toda a liberdade se torna- ria imitil por nio poder ser usufruida. Unindo-se, os homens sacrificaram uma minima parte dasua liberdade, transferindo-a para um poder assim legitimado, emtroca de seguranca nas suas relagdes, O Estado legitimo deve, portanto, a: ministrar essas porgdes de liberdade de forma nao abusiva, protegendo os in- iduos contra aagressio de terceiros, mas também protegendo o agtessor da ide dos meios (nomeadamenteoDi gida quando aqueles resp polite ¢eeondiza da socedade"(p.70. 20E nda cor ott uma quest 20000! tar wbaminoraeaviante Pres, 109) RITA FARIA ECANDIDO DA AGRA reacgfio informal dos seus concidadaos e face ao proprio poder. A necessidade de seguranca é, portanto,o fundamento da sociedade. As leis™, os tribunais e as penas s6 podem existir na medida em que garantam essa seguranca preser- erdade". Aquele que atenta contra 0 pacto social sabe que as leis apresentam “argumenios sensiveis"™ (Beccaria, 1998, -63) pata socaos. A sangio penal no procura expiar omalapl vyando ao mesmo tempo ssuadir de comportamentos faturos semelhantes: “o,fim das penas nao 60 de atormentar eafigi um ser se Adetito ja cometido. (..) nao € outro sero o de impedir oréu de fazer novos danos aos ladaos ede dissuadir outros de fazer 0 mesmo” (idem, p.85)*. 10s que punir nao decorre de uma imento da ordem,mas sim porque em o de anlar um peranteo tribunal estejam protegidos e sempre queas decisdes judiciais sejam. menos constrangedoras possivel. Nio é necessério punir mais mas punirme- mais vozes (mesmo as infracgBes mais ligeiras), obrigatoriamente e sem- dizmnos que sea sangio for i geral ou especifica, nio deve existir (como sucede no caso dos inimputaveis); poroutro lado, ocritério de eficécia da pena éasuacapacidade de dissuadirsem por no cumprir os objectivos de dissuasio sto fetas refering _orreapa de colnado, sno om esetos mas trios (el Pres, 1988), 35 1 AHISTORI EPISTEMOL06I04 D4 CRIINOLOGIA ‘optando ou nao por realizar o acto interdito. Este céleulo é realizado, no indi- viduo que éracional edotado de livrearbitrio, pela procuradetudooquecause prazer ¢ 0 afastamento de acgdes que acarretem desprazer (Agra, 200%, p.82); ‘em concreto,a sangio penal deve ser célere para que aassociacio de ideias en- ‘eo crimee o castigo nao esmoreca**, Reflectindo desta forma, os individuos tém a capacidade de renunciar ao acto transgressive que acarreta consequén- cias negativas (a pena) ou neutralizam 0 efeito dissuasor da sano ¢ passam aoacto (Pires, 1998). Para se atingir o efeito dissuasor, o legislador, esse ‘engenheiro da conduta humana’, no tem que prever penas cruéis ou desproporcionadas, mas antes, penas piblicas, céleres, certas, inflexiveis e com uma quantidade minima. O magistrado, por seu turno, deve abster-se de qualquer acto de interpretagio dalei e reduzir-sea uma condigao de ‘autémato’.Esta forma de conceber asan- ‘920 penal se, por um lado, pretende acabar com incertezas e disparidades nas decisdes, por outro fecha a porta a qualquer forma altemnativa de resolugio de litigios (idem), como sejam « negociagio ou o perdio por parte da vitima que,

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