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ÉTICA MODERNA E HUMANISMO1

Com a chegada da modernidade, na Europa, entre os séculos XVI e XVIII, o pensamento


filosófico rompe tanto com a antiguidade greco-romana, como com o pensamento cristão medieval.
Uma das marcas desse rompimento com o pensamento greco-romano está na profunda
diferença que os filósofos modernos estabelecem entre a humanidade e a natureza ou animalidade.
Lembremo-nos que, para o pensamento greco-romano, a natureza era uma referência
positiva. Tanto é assim, que Platão e Aristóteles pensaram uma ética das virtudes naturais. Quanto
mais o comportamento dos homens se aproximasse das suas tendências naturais, mais próximo
estariam da excelência ética e moral. Em Platão, as virtudes naturais desempenhavam funções
específicas que ordenadas e hierarquizadas resultavam na própria justiça.
Em Aristóteles, os homens, na busca da sua perfeição ética e moral, deviam comportar-se
com moderação e equilíbrio (o justo meio-termo), assim como se mostrava a ordem da natureza
(kosmos), que dispunha todas os seres nos seus devido lugares; corrigindo os excessos e também as
faltas.
Já para a filosofia moderna, a natureza deixa de ser representada como perfeita, tanto a
externa aos homens quanto a sua própria, para ser vista como aquilo que temos que superar com
nosso esforço e trabalho para sermos melhores e progredirmos.
Por isso, o que se valoriza nos homens não é a parte que ele tem em comum com os animais,
os seus instintos naturais e incontroláveis, mas o que ele possui, e que nenhum outro ser vivo
possui, a sua liberdade.
Essa característica passou a ser valorizada por ser própria e exclusiva dos homens, já que
outras diferenças foram sinalizadas, mas ainda tinham parte com a natureza. O próprio Aristóteles já
definira o homem como um "animal racional", e um outro filósofo, moderno, Descartes, o definira
como possuindo sensibilidade. No entanto, a diferença proposta por Aristóteles é uma diferença de
grau ou de intensidade, e não de qualidade, pois os animais também são capazes de inteligência. E,
quanto à diferença proposta por Descartes, não é incomum presenciarmos reações de dor e prazer
como também de afeto por parte dos animais. Aliás, esse fato será reconhecido mais tarde pelos
filósofos utilitaristas, ao considerarem imoral todos os atos que aumentem a dor e o sofrimento,
estendendo a moralidade para todos os seres sencientes, inclusive os animais.
E é justamente essa característica, a de sermos seres livres, característica essa presente em

1Texto elaborado pelo professor Joaquim Humberto de Oliveira, a partir da leitura de: FERRY, Luc. Vencer os medos.
São Paulo: Martins Fontes, 2008.
várias propostas filosóficas modernas, que nos faz o tempo todo buscar a superação de nós mesmos
em busca de uma perfeição, que cada vez mais se acredita independer da natureza. Buscamos,
enquanto seres humanos livres, realizarmos uma história individual e política inteiramente
dependente de nossas escolhas e decisões. Nesse sentido, a própria noção de história se humaniza,
contrapondo-se à idéia de um destino que se impõe aos homens, subtraindo, dessa maneira, a sua
parcela de liberdade.

A moral de Kant

Essa nova e moderna definição do homem rompe com aquela concepção aristocrática que
defendia uma ordem natural, equilibrada e hierarquizada, na qual o homem deveria se inserir e se
adaptar exercendo as suas virtudes naturais. Na ética aristocrática dos antigos, a excelência humana
era uma descoberta no homem das suas melhores tendências e talentos naturais. Assim, era possível
defender que a essência humana estava dada de forma anterior à sua própria existência. Por isso, a
ética antiga pode ser considerada como a busca da excelência humana natural; uma ética
aristocrática natural.
Mas, para os pensadores modernos, apenas os animais guardam uma essência, incapaz de ser
modificada pela sua vontade. Um gato, por exemplo, mesmo com fome não se alimentaria de grãos,
assim como um pombo, também faminto, não se tornaria carnívoro.
Nos humanos, ao contrário, é preciso priorizar aquilo que está para além de qualquer
determinação natural; para além de uma essência que o determine por completo.
Em defesa da liberdade, como principal marca do homem, esse novo humanismo contraria
algumas ideologias que insistem em defender dominações justificadas por diferenças naturais, como
o racismo e o sexismo. Ideologias raciais difundem que cada raça guarda uma essência própria,
apartando uma da outra de acordo com as suas habilidades, e impondo-as a todos os indivíduos
daquele grupo: a inteligência dos judeus, a espontaneidade dos africanos, a habilidade dos árabes,
etc. Por sua vez, as ideologias sexistas divulgam que todas as mulheres têm uma essência ou
natureza mais sensível que a dos homens, mais propensas às emoções do que às abstrações; num
certo sentido, mais próximas do ambiente familiar do que do mundo do trabalho.
E é justamente a postura antinaturalista defendida pelas filosofias modernas que vai permitir
elaborar uma filosofia em favor dos direitos humanos. Porque o sujeito dos direitos humanos não
tem uma natureza particular, que o identifica a um grupo específico (seja nacional, religioso,
étnico), pelo contrário, ele é todo e qualquer indivíduo. Esse indivíduo passa a ter um
reconhecimento universal, já que todos possuem uma igual capacidade de liberdade.
Dessa nova definição antinatural e antiaristocrática do homem, Kant deduz, em apoio a
outro filósofo moderno, Jean-Jaques Rousseau, os dois principais pilares da moralidade moderna,
também presentes na Declaração dos Direitos do Homem: o desinteresse e a universalidade.
Primeiramente, a verdadeira ação moral deve ser desinteressada, isto é, deve ser livre de
toda determinação natural. Isso porque Kant, seguindo a tendência da maioria dos filósofos
modernos, desconfia que agindo por natureza agiríamos sempre pensando em nós mesmos, de
maneira egoísta, o que acabaria por impossibilitar a convivência social. Contra a natureza egoísta
dos nossos desejos, devemos opor a nossa força de vontade, a nossa boa vontade, para nos
tornarmos mais altruístas.
Essa exigência moral está presente na maioria das avaliações que fazemos no nosso dia a
dia, mesmo que de forma irrefletida. Qualquer admiração por um gesto, por uma atitude,
imediatamente se esvai se descubro que ele guarda algum interesse próprio. Não há nenhum valor
moral quando uma pessoa se aproxima de uma outra somente para obter mais vantagens para si
mesma. Há interesse particular, mas não valor moral na sua atitude.
Consideramos indigna tal atitude, já que tratamos o outro apenas como meio para
satisfazermos os nossos próprios interesses. Está aqui, posto em prática, o conceito de dignidade
humana forjado por Kant, quando diz que "todo ser humano deve ser tratado como um fim em si
mesmo, jamais como um meio". O princípio da dignidade humana, tão difundido pelos direitos
humanos, impede a reificação do homem, ou seja, o seu tratamento como coisa, de forma
desumana, que ocorre quando não o reconhecemos como um ser livre, mas determinado por
interesses alheios à sua vontade.
Em segundo lugar, a ação por ser desinteressada, por não levar em consideração interesses
pessoais, deve ser universal; deve ser do interesse de todo e qualquer indivíduo, aquele mesmo
indivíduo consagrado como sujeito dos direitos humanos universais.
Essas exigências morais, por se afastarem de qualquer inclinação natural, nos são impostas
por um dever. Um dever que substitui a natureza como guia para o bem. Por isso, essa concepção
moral moderna é também conhecida como deontologia: por seguirem a razão (logos) de um dever
(deon).
A razão desse dever se expressa em comandos, mandamentos ou imperativos denominados
categóricos. Nos imperativos categóricos o dever é moral pois ele se cumpre por si mesmo,
independente de qualquer fim. Nos imperativos categóricos o dever é um fim em si mesmo.
Diferentemente do dever ou da obrigação moral, o dever ou obrigação jurídica tem a sua
razão formulada por um imperativo hipotético. Os imperativos hipotéticos comandam um dever que
é um meio para se alcançar um fim que não é o próprio dever. Por exemplo, nas leis penais estão
implícitos comandos que ordenam o dever de não matar, mas esse dever pode ser cumprido tendo
como fim ou motivação não ser punido.
Essa distinção entre direito e moral é típica de pensadores reconhecidos como liberais. O
que mais preocupa os liberais é a relação entre o Estado e os indivíduos. Para essa doutrina, o
Estado deve intervir o mínimo possível nas relações privadas. Em reforço à essa posição, a
moralidade é pensada por Kant como uma relação do indivíduo consigo mesmo, não cabendo ao
Estado o controle dessa obrigação. Ao contrário, cabe ao Estado controlar as relações externas entre
os indivíduos, que são regidas por leis jurídicas. Para tanto, o Estado não precisa levar em conta as
as intenções ou motivações íntimas das pessoa; as suas convicções morais. A obrigação moral é
uma exigência individual (privada), enquanto a jurídica é própria do Estado (pública).

Ética Utilitarista

A outra visão moral ocidental dominante desde o século XVIII é o utilitarismo, tendo como
seu fundador o filósofo Jeremy Bentham (1748-1832). De origem anglo-saxã, essa doutrina moral
domina ainda hoje o sistema jurisprudencial americano (common law). O utilitarismo assemelha-se
à moral de Kant, por ser voltar também para o indivíduo, e por ser universalista, ao reconhecer
todos os seres humanos como moralmente iguais entre si.
Mas, por outro lado essas duas éticas humanistas também se diferenciam. Para ambas as
doutrinas agimos moralmente quando levamos em consideração os interesses dos outros e não só os
nossos. Para Kant, a regra dessa ação é agirmos desinteressadamente, de encontro à nossa natureza
e ao encontro dos deveres impostos pela razão. As ações são morais quando obedecem as regras
previamente impostas pela razão; por isso ser essa ética denominada como deontológica.
Já. para os utilitaristas, uma ação é moral quando também não contraria os interesses dos
outros. Só que os outros, incluídos aí todos os seres vivos e não só os humanos, têm interesse em
sentir prazer e evitar a dor ou o sofrimento. Portanto, uma ação moral resulta no aumento de prazer
e na diminuição de sofrimento. Por buscar um resultado ou uma finalidade, essa ética é conhecida
como teleológica, por estar a sua razão ou justificativa (logos) numa finalidade ou resultado (telos).
Nessa busca pela maior quantidade de felicidade para o maior número de pessoas reside
tanto a sua força atrativa quanto a sua fragilidade. Porque, em nome dessa soma maior de benefícios
para o maior número de pessoas, é possível concordarmos com restrições aos direitos individuais.
Para o bem da coletividade, talvez seja recomendável o sacrifício individual.2
Por outro lado, percebemos que as teorias utilitaristas não limitam a dimensão moral às

2 Devido a esse problema, contra o utilitarismo de atos surge o utilitarismo de regras. De acordo com essa
separação, enquanto o utilitarismo de atos defenderia a moralidade da condenação de um inocente para salvar muitas
vidas, o de regras não tem porque admitir a moralidade de uma regra que pune inocentes.
relações entre seres livres, mas estendem-na para todos os seres sensíveis, capazes de sentirem
prazer e dor. Há, para os utilitaristas, o reconhecimento de um direito do reino animal a ser
preservado, não em nome da liberdade humana, mas em favor dos seus próprios interesses. Em
razão disso, o seu reconhecimento como uma ética não antropomórfica ou antropocêntrica.
É interessante observar, que muitos seguidores à risca da moral utilitarista tornam-se
vegetarianos, considerando mais prejudicial que prazeroso o regime alimentar carnívoro. Em
relação à utilização de animais como cobaias de experimentos científicos, dividem-se, por não se
entenderem a respeito da quantidade de prejuízo ou benefício de tais práticas. A morte desses
animais é um sofrimento em vão, ou resulta no aumento de felicidade no mundo? Uma das maiores
dificuldades de aplicação da moral utilitarista está no difícil cálculo dos prazeres e dores.
A moral utilitarista desenvolve-se concomitantemente com o desenvolvimento da
democracia e as sucessivas conquistas pelas igualdades de condições e de direitos: o
reconhecimento pelos direitos de cidadania política das mulheres; os direitos de liberdade aos
escravos negros africanos e por último o reconhecimento dos direitos aos animais. Para a moral
utilitarista o direito visa a proteção dos interesses de todos os seres sencientes, sendo a liberdade
protegida por estimular a felicidade. O direito nada mais é do que a proteção dada pelo Estado aos
interesses dos seres vivos, capazes de prazer e sofrimento.
Não se quer com tudo isso afirmar que a moral de Kant e Rousseau sejam a favor do
sofrimento dos animais. Porém, essa moral justifica a sua proibição moral e legal pelo fato dessas
atitudes serem prejudiciais aos interesses humanos, por estimularem relações de ódio.

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