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BIBLIOTECA TEMPO UNIVERSITARIO COLECAO RECLAMADA PELAS NECESSIDADES ‘ATUAIS DA UNIVERSIDADE BRASILEIRA MARTIN HEIDEGOER / Introdugio 8 Metafsica MARTI HEIDEGGER / Sobre’ Humantemo YAN Wirt Matodon Stvucuratistas nas Ciencias Societe SLAUDE Levr-STRAUSS ) Antvopologtefstrtira! SEAN-PAUL SARTRE / Colonaliono’e. Neocolonalismo MAURICE MERLEAU PONY 7 umantona ¢ Terror Mfcuey FOUCAULT / Doenga Mental Priccionia GATOR BACHELARD /-0, ono Brito Cente, Senngwr WARCUSE / Mctatiliome Historica e Sristéncie bli NRA MOLES’? feaeaaInlormarny Perce otéties Biblioteca SORE GOILHERICE MERQUIOR "artes Sociedade tm Marcise, Adorno e Benjamin ' aa EMIL STAIGER / Concentos Fumdamentais da Postica Tempo Universitario 72 Se UMC ET drScnn”/ as Unirridedes no Desenvolvimento Socil de América Eat | FANE: my couesio de) / 0 Inconsciente — Volume 1 (Coléquo de Bonneva) UMMboragiee de Che BLANC, ®. DINTEINE, & TOLLIN, 'sGuuN, G. GOUATRY, ceepaieResrtAunian d LAELANCHE, © RICOEUR, ©. "STEIN © A. DEWAR: Saas’ cs pastcpicks Ge GIRAUD, JEAN HEPSOLITE, JACQUES LACAN, MAURICE MERLEAU-PONTY, B MINKOWSKI entre outres KOSTAS AMELOS / Insroduplo Go Peroamento Futuro EOE AMARAL teenie de Jornal © Penoetce : EuNeéTO GUERRA DA CAL /'Eipua @ Belle de Boa de Quetros JACQUES GUILLACMAUD'/ Ciberastia « Materialiomo Diatetica BAUR PORTELLA | Teorla da Comunicaeao Litréria: | HELAAR PRasie /Ciherndtice « Filwope EEAUDID BOUTO / Inirodugdo a2 Direlto como Cléneia Social Stattonto ManguEs MOEIRA / TndioagSer pare 0 Projeto Brasileiro ROBERTO CARDOSO DE OLIVEIRA 4 Soccloyts do Bras inden BOeTEDG PORTELCA,/ Fundemento dct Investigagdo Isteraria ERNST BLOCH / Thomas Mnser tealogo da revorueso AEDMANDER MOTSCHERLICH | 4. Cuidee do Futiro THEODOR W. KDORNO 7 Notar e\ Literati Howie B. Wittrans |e atin co forties Brsrek SENGHAAS, WOL?-DIBTER NARH e FRIEDER NASCHOLD / Andlie de Rutenay, Teosnoraca ¢ bemoereca 56S GUILMERAIE MERQUION / 4 futétiea de Léot-Strous WALTGR BENJAMIN / i Modernidade @ om Moderncs SAUTER PORIRUA, JOSE CUILHERSIE MENQUIOR, HELENA PARENTE CUNHA, TREO WaSCONCKLOS DA. SILVA, MARIA DO CARMO PANDOLFO. MANUEL Me oy CASTRO, MUNIZ SODME /Teora:Lisrdria Aun VereR Daarizet, GUNTER ROPOHL CLAUS OFFE, JURGEN FRANK, HANS LENK/ Tecnocracta.¢ Idssionia HANUEE AifoniGDE CASTRO 10 Homem Proviério no Grande Ser-tdo GeRUDE LEvISTRAUSS 7 antropologia,Rstracwral’ Dost GANG ALBERT / Tretado da Rao ‘Critica MONtZ SODRE / reorla da Literatura de Massa EARL POPPER / Logica das Ciencias Soctas KARUNIO ESTEVAM DE LIMA SOBRINHO / Etapas das Ide Rcondmicas no Brast ANTOMO PALM / A Querela do Botatomo ANTONIO PAIM / 0 Sitido'doPensemento Floséfeo Brasetro ANRUILO MARQUES MOREIRA 7 Poder, Liberdnde, Desenvotoimento VOGT FRANK OFFE / Bitada.¢ Coptaliina JOSROEN HABEEUAG /'4°Crie de’ Levitimagdo do Capitatiemo Tardio ANTONIO PAIME 4 UDF eo laste de Universidade ABRAHAM A Mobis / Teoria dos ODjtor SERGIO PAULO OUANEY / étipo‘e 0.040 ROLAND BARTHES ) Sollers drertor Sgndio PAULO ROUANET. / Tora Critica ¢ Psicandie Sete ATO, Roun Clincs Bauclors riven Bidtica, Comunicatioa SORST eLEMMGER, ZIMERMANT / Politica Economica regtonal ROBERTO. CARDOSO De OLIWEIKA Enigmas e” Solugser ROstas AXSLOS 7 Horiontey do hvndo MARIA DO Cad PANDOLEO © CELINA MOREIRA DE MELLO / Estrutura ¢ Mito MansconowG GADAMIR A Rossa na Apoes da Ciena ANTONIO HOUAISS / a ‘chive de Nowe Lingua de Cutira > — SI og Zz = 2 oO y % a a 3 i g < z : < COC2ERATIVA DE. covrear Sarna ‘DE BELO HORIZONTE Ay. Antonio Carlos, $21. cee HANS-GEORG GADAMER ARAZAO NAEPOCA DA CIENCIA Ficha catalogritica elaborada pela Equipe de Pesquisa da ORDECC. Gadamer, Hans-Georg ‘A ragio na época da ciéncla / Hans-Georg Gadamer; traducao de Angela Dias. — Rio de Janeiro: ‘Tempo Brasileiro, 1983, D. (Biblioteca Tempo Universitario; ng 7a) ‘Tradugio de: Vernunft im zeitalter der ‘Wissenschaft, 1, Filosofia 1. Titulo I. série DD — 100 tempo brasileiro eDU — 11001) Rio de Janeiro — RJ — 1983 7 | BIBLIOTECA TEMPO UNIVERSITARIO Coleco dirigida por Eovarno Portsita, Professor da \ Universidade Federal do Rio de Janeiro | ‘Tradugo: ANcELa Dias | SUMARIO Capa: Awrowio Dias e EuizaperH Laraverre | Acenca no Frrosérico was Crfxetas ® Do Craxrico wa Programacao textual: Marta DA ConcEr¢ko RarNuo Praacr ae 9 | A Frnosorta pe HzGEt & Sua INFLUENCIAS ATUAIS .... 26 (© que & A Praxts? As Conprgins pa Razio Socrat ..... 41 ‘Traduzido do original aleméo HerMEnéumich como Frrosorta PrArica . 81 a ee ea ‘Acerca oi Disrosigio Natunat 0 Hobteat wana a Fito- SOFIA. a ee 8 Fixosoria OU THORIA DA CrfivcIA? nies a Noras po Eprror Auemio 102 . Copyright: Suhrkamp Verlag, Frankfurt am Main 1976 Fee ceet renee ieee veccveveree /105 Todos os direitos reservados im | EDIGOES TEMPO BRASILEIRO LTDA. | Rua Gago Coutinho, 61 - Tel: 205-5949 ; ‘Caixa Postal 16.099 - CEP 22221 Rio de Janeiro ~ RJ - Brasil 1 (lean onl ACERCA DO FILOSOFICO NAS CI&NCIAS E DO CIENTIFICO NA FILOSOFIA ébvio que-aquilo a que chamamos de filosofia nfo ciéneia no mesmo sentido em que sdo as chamadas cléneias positives. No ha duivida que o ambito da filosofia no é algo positivo que possa ser situado a0 lado dos émbitos de investigacio das outras cléncias, A filosofia se ocupa do todo. Porém este todo néo 6 somente o todo como uniao de todas as suas partes. Mas, consiste numa idéla que supera as possibilidades finitas do conhecimento nao sendo, assim, nada que possa ser conhecido de maneira cientffica, Apesar disso, nfo deixa de ter sentido falar do carater cientifico da filosofia. Muitas vezes, com filosofia. se quer indicar colsas tdo subjetivas e Brivadas como a propria coneepedo de mundo, considerada a Bo de cienti- ects constitilam uma inseparével unidade; ambas 340 criagées dos gregos. Pelo amplo titulo de filosofia, os gregos designavam todo saber teérico. Habitualmente, também de- signamos a filosofia da Asia Oriental ou da india, da mesma forma que os gregos. No entanto, ao fazé-lo, referimos estes pensamentos a nossa tradicdo filoséfica e cientifica ocidental e, manejamos um material totalmente distinto, tal como sucedia, por exemplo, quando Christiano Wolff concebla a sapientia cinica como “filosofia prética”. tal como, por exemplo, a natureza inorgénica, a natureza’organica, @ flora, a fauna, mundo humano, ete.; uma filosofia deste tipo no esta disposta a admitir que seu estilo de pensamento e conhecimento seja considarado inferior em reiac&o & obrigatoriedade do conhe- cimento proprio das ciéncias. Na atualidade costuma ser chamada “teoria da ciéneia”, porém 6 colocada ni Atualmente se diz que o mere perscrutar das ciéncias em todas as diregées, que permite a realizacdo de suas idéias metédicas, deixa insatisfeita uma necessidade Ultima da 0, OU si de manter a unidade no todo do antes. orém, precisamente, a nacio ‘sistematica A filosofia tropeca, cada vez mais, com maior desconfianga. £ como se, atualmente, a humanidade estivesse disposta a aceitar sua propria limitacdo e, apesar da particularidade insuperdvel do saber da ciéncia, encontra satisfacéio em seu progresso e no crescente dominio da na- tureza, Até aceita 0 fato de que, com o crescente dominio da natureza, 0 crescente dominio 'do homem sobre 0 homem nfo s6, no’ diminui, como também, contra todas as expec- tativas, é cada vez maior e chega a ameacar internamente a Iberdade. Uma das conseqiiéncias da técnica é 0 haver conduzido a uma tal manipulacdo da sociedade humana, da opinido publica, das formas de vida de todos nés que, as ia. Porém as respo: que pretendiam dar sdo, para a humanidade atual, respostas a perguntas que, na realidade, no podem ser feitas ¢ que, além do mais, néo é necessario fazer. Assim, parece verdadeiro algo que Hegel, a partir do seu compromisso total com a filosofia, considerava como uma contradicao inaceitavel quando dizia que um povo sem metafisica era como um templo sem saerério, um templo vazio, desabitado, destituido de si mesm: Assim, a frase de Hegel, que queria provocar emocéo e nostalgia ou a burla dos ilumintstas radicais, se desioca bruscamente para a nossa propria situaco no tempo e no mung al, que a ciéncia nfo s6 nfo pense — no sentido enfético da palavra, tal como o utiliza Heidegger em suas, tao freqiientemente,’ mal interpretadas frases — como tampouco fale realmente uma linguagem propria? ‘Sem diivida, 0 problema da linguagem adquiriu na {i Josofia do nosso séeulo uma posicéo cultural que nio é evidentemente, a mesma que possuia na antiga tradicdo da filosofia da linguagem de Humboldt e que, tampouco, coin- cide com as amplas pretensoes da ciéneia geral da linguagem ou lingiifstica, Numa certa medida, esta importancia se deve a prevaléncia assumida pelo mundo da vida pratica, resul- tado, em parte, da investigagéo fenomenol6gica e, por outra parte, da tradicao do pensamento pragmatic anglo-saxio. Com ‘a tematizacZo da linguagem, vinculada indissoluvel- mente ao mundo vital humano, parece que se oferece um novo fundamento & velhs Naturalmente, na medida em que se trate das formas nomol6gicas do falar dos sistemas cientificos de designacdo, que estao determinados completamente desde 0 correspon- dente ambito da investigacdo, ndo ocorre, na linguagem, algo nw até o todo. Va @ cabo uma comunicacao, nfo s6 se usa, como tam- ‘bém se plasma a linguagem. Por isso, a filosofia pode deixar- se conduzir com a linguagem, quando, em seu perguntar acerca do todo, mais camente objetivaveis, e assim o fez sempre, desde os discursos orientadores de S6- crates © a orientaego “dialética” aos logoi, de que parti param, em igual medida, Plato e Aristételes em suas an lises de pensamento. & ‘aquela famosa segunda viagem a que se lanea Sécrates no Fedén platénico, depois que a investigacdo imediata das coisas, que Ihe oferecia a ciéncia de su ienlagao mai 3 lamento sobre que se ergueu a filosofia na Grécia era o irrefreavel desejo de saber, mas néo aquilo a que chamamos ciéneia. Mesmo quando o primeiro nome da metatisica era “cléncia primeira” (prima philosophia), este saber de deus, do mundo e do homem, que construfa 6 contetido da meta- fisica tradicional, néo possufa de maneira indiscutivel, uma prioridade absoluta em relagdo a todos os demais conheci- mentos que se manifestavam exemplarmente nas ciéncias mateméticas, na teoria dos ntimeros, na trigonometria e na mtisica (astronomia). Pelo contrério, 0 que chamamos de ciéncla, nao cabia, em sua maior parte, dentro do campo de designacéo da ‘palavra philosophia; diante do uso, que a ela davam os gregos, a expresso “‘cléncias empiricas” soa- ria aos seus ouvidos, como algo contraditério, Eles nomeavam este tipo de conhecimento como histéria, testemunho, O que nés designamos com o coneeito usual de ciéncia foi enten- ido pelos gregos, sobretudo, como o saber daquilo sobre 2 cuja base € possivel fabricar algo: o chamavam poietie episteme o techne. O exemplo mais claro e, ao mesmo tempo, © tipo mais importante desta techne era a medicina, que néo chamamos de cléneia, mas de arte de curar, quando queremos honrar sua tarefa humanitaria, © tema que agora nos ocupa abarea pois, a sua maneira, 0 todo da marcha da histéria ocidental, os primeiros passos com a ciéncla e a atual situacdo critica em que se en- contra um mundo que, sobre e base da ciéncia, transformou- se numa gigantesca oficina. Desta maneira nossa pergunta val mais além do universo atual resultante da historia, desde © momento em que comeca a aceitar, como um desafio ao nosso pensamento, que existam tradicées de sabedoria e co- nhecimento em outras culturas que no sao formuladas na lnguagem da ciéncia e sobre a base da ciéncia, Desta forma, se impée metodicamente tematizar a rela- gio entre filosofia e ciénela em toda a sua amplitude, tanto desde seus comecos gregos, como levando também em conta suas conseqiiéncias ulteriores, tal como se apresentam na %poca Moderna, Pois a Bpoca Moderna — nao obstante as discutidas derivacdes e datas — se define inequivocamente Desde ent&o, isto é, desde o século XVII, 0 que, na atualidade, chamamos de fitosofia se encontra numa situa- edo diferente. Diante das ciéncias se vé necessitada de legi- timagdo, coisa que antes nunca the sucedeu; durante dois séculos até a morte de Hegel e Schelling, foi-se elaborando, reflexivamente, em um processo de autodefesa frente as cl. @ncias. As construgGes sisteméticas dos ultimos dois séculos constituem uma densa série de esforcos tendentes a recon- cillar a beranca da metafisica com o espirito da ciéncia moderna. Mais tarde, com o surgimento da época positiva, tal como é designada desde Comte, a cientificidade da filo- sofia fol somente uma preocupacéo académica com que se procurava salvé-la em terra firme, das tormentas de cor- Tupgdes de mundo antagénicas, para cair, finalmente, no marasmo do historicismo ou na praia da superficialidade da teoria do conhecimento, ou ainda, para mover-se, de um Jado a outro, no lago cerrado da légica. 13 Ao refletir sobre a unidade de todo o nosso saber, faz séoulo e meio, Hegel e Schelling pretendiam, com suas ‘pro- postas sistematicas, voltar a justificar “a ciéncia” e, vice- versa, fundamentar 0 Idealismo na cléncia; Schelling, através de sua demonstracao fisicalista do Idealismo e Hegel, através da conexio da filosofia da natureza e da filosofia do espi- xito, numa unidade da filosofia real frente a filosofia ideal da légica. Ndo se tratava aqui de pretender renovar uma fisica especulativa, que no século XIX fora usada € abusada, pre- cisamente como condicionada contra a filosofia. verdade que, até a atualidade, se mantém viva a necessidade da razio, no sentido de buscar cada vez mais unidade do saber; porém, a partir desse momento, se apresenta como um con- flito com a autoconsciéncia da ciéncia. Quanto maior seja a honestidade e preciso com que ela se entenda a si mesma, tanto maior é sua desconfianga frente a toda promessa de unidade e a toda pretensao de poder aleancar algo definitivo. Compreender as causas do fracasso do intento de uma fisioa especulativa e de uma ordenacio das ciéncias, no sistema as ciéncias norteado pela filosofia, significa compreender, ‘ao mesmo tempo, a hierarquia e os limites da ciéncia, Desde logo, nem Hegel nem Schelling eram cegos, frente @ pretensio de legitima autonomia das ciéncias empiricas, que seguem sua propria marcha metédica © que, precisa mente, em virtude de sua prépria lei de progresso colocaram a filosotia da Bpoea Moderna frente a novas tarefas. No momento culminante do seu trabalho, em Berlim, no pré- logo & segunda edicéio de sua Enciclopédia, Hegel disse algo acerca de como se imagina a relaego entre a filosofia e as ciéncias empiricas ¢ quais so 0s problemas que ali se en- cerram, Basta simplesmente ter em conta que a castialidade daquilo com que nos encontramos, aqui e agora, nao pode ser derivada integralmente da necessidade do conceito, Ainda no caso extremo de predigdes seguras, tais como as que per- mitem as relagdes macrocésmicas de nosso sistema solar, Para o céleulo da duracdo do dia e da noite, a duracdo dos 14 eclipses, ete., hA sempre um campo livre para deslocamentos (que, desde logo, reduz notavelmente a possiblidade da sim- ples observacio), O essencial é que a aparicao, no céu, do acontecimento celeste previsto nao é previsivel enquanto tal. Pois a observacdo natural depende, em todo caso, das condicdes metedrolégicas e, quem pode fundamentar sua confianca nos prognésticos sobre 0 tempo? No caso deste drastico exemplo, ndo se trata certamente da relagdo universal entre casualidade ¢ necessi 5 A necessidade das leis na- ‘turais, medida com a necessidade do coneeito, deve ser con- siderada como casual. Nao se trata aqui de nenhuma neces- sidade que possa compreender-se imediatamente, tal como ode compreender-se, por exemplo, a necessidade de que um organismo vivente tenha que conservar sua existéncia atra- ‘vés do proceso de metabolismo. No Ambito da investigagao natural, a formulacao de legalidades matematicas exatas 6 ‘um idea} aproximativo, Estes enunciados de leis seguem uma coneepedo normativa muito vaga de unidade, simplicidade, racionalidade e até elegdncia, Seus verda¢leiros critérios sao ‘os dados da experiéncia mesma. © Ambito das coisas humanas parece cair totalmente dentro do reino do casual. O eeticismo histérico tem melhores apolos na ‘experiéncia que acrenca -na necessidade histo- riea’e no papel da razéo na histéria. Aqui as exigéncias da razio estariam totalmente insatisfeitas, caso se tivesse que invocar unicamente as regularidades ao largo da historia que, da mesma forma que as leis naturais, por seu proprio sentido ontolégico, tao $6 formulariam o que em realidade sucede, A exigéncia da razdo se refere a outra coisa; a filo- sofia da histéria universal de Hegel 6 uma boa ilustracao a respeito,’A idéia a priori que reside na esséncia do homem, e que ele reconhece na histéria, é a idéia da liberdade. O famoso esquema de Hegel sobre'o Oriente, a Antigiiidade e ‘0 mundo cristo reza: No Oriente somente uma pessoa é livre; na Antigiidade, o so algumas e no mundo cristo, © so todos. Tal é a concepedo racional da histéria universal Isto no quer dizer que com ela se construa a histéria uni- versal, em todos os fatos coneretos da sua marcha histérica 15 © campo de agdo dos fendmenos que podem ser considerados casuals continua sendo infinito, Porém a casualidade nao uma insténeia contra, mas precisamente uma confirmacao do sentido de necessidade que corresponde ao conceito. Nao constitui objecio alguma, contra a concepedo racional da histéria universal, o fato’ de que, na realidade, nao exista aguela liberdade de todos — que Hegel apresenta como o prinefplo do mundo cristéo — e que sempre voltem a apa- Tecer tempos de falta de liberdade ou que sistemas de falta de liberdade social tenham podido estabelecer-se, definitiva e inevitavelmente, em nossa situacio do mundo. Isto cai dentro do reino da casualidade das coisas humanas que, sem Gtivida, nfo tem consisténcia alguma frente ao principio. Pois nao e; nhum prinefpio de razio superior ao de Seria um mal entendido, em que’naturalmente se incorre com freqiiéncia, pensar que este aspecto da razio do con- ceito pode ser refutado pelos fatos. A desacreditada expresso “tanto pior para os fatos” encerra também uma profunda verdade. Esta frase nao esta dirigida contra as ciéncias em- piricas mas, pelo contrario, contra aquilo que Hegel, em seu ‘prologo berlinense, chama’ de encobrimento das flagrantes contradigdes entre’a filosofia e as ciéncias, Nao admite nada daquela “tibia Tustraedo” em que a exigéncia da cléncia e a argumentacdo, a partir dos conceitos da razio, chegam a uma espécie de compromisso. Esta era uma “situacio sé aparentemente feliz”. A paz era “o suficientemente super- ficial”. “Porém, na, ia, 0 espirito celebra a reconciliacko consigo mesmo”. Este 6 0 caso do nosso exemplo da liberdade de todos. Quem néo vé que precisamente 6 histéria o fato de que a liberdade de todos se haja convertido num prinefpio indispensavel e que sempre sua realizacdo requetra novos esforcos, ndo comore- endeu a relacdo dialétiea entre necessidade e casualidade e, 16 com isto, a pretensao da filosofia de conhecer a racionalidade conereta. Na atualidade encaramos Hegel, numa perspectiva cada vez mais justa, néo sé no Ambito da ciéncia e da histéria, onde sua contribuicdo produtiva é consideravel, mas tambér no Ambito do conhecimento natural. Hegel esteve & altura da cléncia do seu tempo, O que expés ao ridiculo sua filosofia da natureza, da mesma forma que a de Schelling, nao foi © nivel de sta informagao mas 0 desconhecimento do tipo essencialmente distinto-da visdo das coisas que tem a razio frente ao conhecimento empirico. Isto se deve, por certo, a Hegel e Schelling, porém muito mais ainda as ciéncias empiricas que se tornaram cegas a respeito dos seus Uma ligo que ndo pode ser esquecida consiste na pouca permeabilidade da filosofia ao trabalho de investigacao cien- tifica. Isto melhor se manifesta pelo fato de que as ciéncias mesmas devem manter-se afastadas de toda complementacéo filosética e de toda dogmatizacdo especulativa, mantendo-se assim a salvo de toda intervencao perturbadora por parte da filosofia. Hegel e Schelling séo muito mais as vitimas do dogmatismo nas ciéncias-do que de sua prépria mania dog- matica de perfeigéo. das aprioristicamente, implica foi rechacada, Jogia na quimica e toda a classificagao da flora e da fauna cedeu em favor destes passos’eda continuidade destes passos. Daf a légiéa ter sido tomada cada vez mais pela matemética moderna e seus fetiches. Meu mestre Natorp pretendeu, to- davia, demonstrar conceptualmente, a priori, 2 tridimensio- nalidade do espaco, assim como Hegel quis demonstrar que os planetas eram em mimero aT (GRGRIAEMAa. a cisncia pode talvez oferecer-nos a pos- sibilidade de criar a vida em uma retorta ou de prolongar ad libitum a vida do homem. Porém isto néo modifica em nada as fortes descontinuidades entre o material e o vivente ou entre a yida realmente vivida ou o ir-se murchecen: a_morte, ponibilic a cléncia moderna representa, diante disto, somente um campo particular da intervencdo e do controle, que apenas se encontra delimitado na medida em que a resisténcia do ente contra a sua objetivacdio nao pode ser superada. ‘Desta maneira, ndo se pode desconhecer que a ciéncia se vé sempre confrontada com uma pretensio de compreen- der frente & qual fracassa e tem que fracassar. Desde que Sécrates no Fedon fundamentara a abertura até os logoi, fa dialética, esta pretensdo é mantida pela filosofia, como sua tarefa propriamente dita, Hegel esté também nesta linha. ‘Também ele segue a orientacdo da linguagem. “A linguagem da conselencia” esta j& atravessada por eategorias, euja con- garemos a um futuro em que @ adequacdo sem linguagem, sem palavras, torne supérflua a afirmacéo da razdo? E assim como a ciéneia se impoe autonomamente, de uma nova ma- neira, ao ndo transmitir sua intervencdo na vida mediante © uso comum de uma linguagem de compreensio geral, tam- bém aparece, em sua segunda dimensio, uma dificuldade similar. Como 6 sabido, Hegel estudou com especial interesse o sistema das necessidades enquanto fundamento da socie- dade e do Estado, porém subordinou consideravelmente este sistema as formas espirituais da vida ética. Na atualidade, vemos que este sistema se move em um cfreulo vieioso de 18 produgao e consumo que impulsiona, cada vez mais, a hu- manidade & sua propria auto-alienagdo, porque as necessi- dades naturals jé nao so, “feltas” por ‘si mesmas. Ao con- trario, progressivamente, tais necessidades se apresentam como ‘produto de um interesse de indole diferente e pouco inclinado & satisfagio de necessidades, Neste ponto, se poderia perguntar se a destogmatizacio da ciéncia, levada a cabo no século XX, ao exigir a separacao da intuicdo natural, ao final néo fez mais que — e isto ja teria seu mérito — haver bloqueado um acesso demasiado fécil da faculdade da imaginagéo humana aos campos de investigacao. Ao inverso, e de maneira positiva, a ciéncia desfez, assim, a seducdo dogmatica que surgia desta acessi- Dilidade e que Hegel chamara de ocultamento das contra- digdes. O modelo da mec&nica, que na época de Hegel e de Schelling descansava sobre as bases seguras da fisica de Newton, possuia uma velha afinidade com o fazer, com a preparacao mecanica e, por isto, havia possibilitado o ma- nejo da natureza para fins imaginados artificialmente, Nesta perspectiva técnica universal existia uma certa correspon- déncia com a primazia filosofica que gerourautoconsciéncia no desenvolvimento moderno. Sempre corremos 0 perigo de aceitar, sem restricées, a construgdo da histdria que fora criada ‘pelo Idealismo alemao. E assim, cabe perguntar, se, no fundo, estas duas concepedés nao se tornam demasiado limitadas. Dirada pelas antecipacdes de Sehiopentiauet e Nietzsche ¢ que penetraram’na eiéneia e conferiram sua influéncia na psi- candilise — néo é algo isolado. O intento de Hegel de ir além do conceito idealista da autoconsciéncia e de fazer surgir 0 mundo do espirito objetivo como uma dimensio superior da verdade, a partir da dialética de autoconsciéncia, significou uma exigéneia na mesma direcdo a que recorreram Marx e a ideologia do marxismo, Porém, poderia parecer mais importante o fato de que o conceito de objetividade, que, na fisiea, esta estreitamente 19 ligado ao de mensurabilidade, experimentara, através da nova fisica teérica, profundas transformagées. © papel que a propria estatistica comecou a desempenhar neste Ambito € a que se submete, cada vez mais, nossa vida econdmica e social, desperta a consciéncia da oposicdo entre a mecanica € a maquina e novos modelos cuja peculiaridade consiste na auto-regulagio, isto é, que lembram mais o vivente, a vida organizada em efrculos regulares, que o construivel. Sem dtivida seria um erro desconhecer a vontade de dominacao que se expressa nestes novos métodos de controle da natureza e da sociedade. A forma imediata com que se recomenda a intervencao humana, ali onde os mecanismos se tornaram totalmente claros, cede lugar a maneiras me- diatizadas de conduzir, de equilibrar, de organizar. Do meu ponto de vista, isto é tudo. Mas ha’ também que se consi- Gerar 0 seguinte: Presumivelmente ha que reconhecer-se 0 yprogresso da civilizacio industrial que devemos & ciéncia, sem dtivida, a partir do fato de que o proprio poder que é exercido pelos homens, sobre a natureza e os demais homens, perde sua evidéneia e, por isto, é maior a seducdo do seu abuso. Basta pensar no assassinato em massa organizado ou na méquina de guerra que, apenas com o apertar de um botio, pode ter efeitos letals. Porém reflita-se também no automatismo crescente de todas as formas sociais de vida, no papel, por exemplo, da planificagio a cuja esséncia pe ‘tence o tomar decis6es a longo prazo, ou seja, 0 determinar a liberdade de decisio. Ou ainda considere-se 0 crescente poder da administracdo que tem dado aos burocratas uma importaneia que ninguém desejava outorgar-ihes, porém que se tornow inevitével. Cada vez sio mais mumerosos os Am- bitos de nossa vida que se submetem as formas coatoras de processos autométicos e cada vez menos, 0 proprio homem seu espirito se reconhecem nestas objetivacdes do espirito, Todavia, preclsamente diante desta situacdo de um sub- jetivismo qué se autocrucifiea na Bpoca Moderna, me parece que se sobressai um outro aspecto que escapou’ a conside- raeséo da autoconsciénela moderna, e sua exasperacéo até a despersonalizacdo da vida, que outorga a velhos motivos uma nova forca em direedo oposta. Também sob este aspecto, me parece que Hegel tem renovada atualidade. Nao sé é quem completa a idéia da subjetividade que subjaz & Epoca Moderna, quem amplia a estrutura da subjetividade além 20 | | | das formas do espirito objetivo e do espirito absolut, mas ainda é quem da vigéncia a um novo sentido de racionalidade que tem uma antiquissima origem grega, O conceito da razéo e da racionalidade nao 6 somente uma determinacao de nossa autoconsciéncia. Desempenhou, na filosofia grega, um papel decisive, sem que se houvesse desenvolvido um conceito de sujeito e de subjetividade. E continua constitu- indo uma permanente provocacao de nossa compreensio de Hegel, o fato de que haja reproduzido, sem comentarios, como um dos ultimos pardgrafos de seu sistema de ciéncia filos6fica, um texto grego da Metafisica de Aristoteles. Por certo que é um texto no qual ndo podemos fazer outra coisa, senio introduzir nosso conceito de autoconseléneia. A auto conseiéneia suprema tem que corresponder ao ente divin supremo. E, sem diivida, na autoconseiéncia do deus que se pensa a si mesmo, culmina, segundo o pensamento grego, toda a construedo do ser de maneira tal que, dentro dela, a auto consciéneia humana desempenha um papel sumamen modesto, styuGrara ta dora: —: O mais digno so as es- trelas: este € 0 inalterdvel critério com 0 qual o pensamento grego mede a dimenstio do homem iio cosmos, Soa estranho, para nés, que sejam as estrelas © ndo 0 homem, o mais Gigno dentre todos os entes. Isto nos parece inaleansavel mente distante tanto de Hegel, quanto de nosso proprio presente. E, sem diivida, hé, aqui, uma atualidade dialética que precisa ser desvelada e que, segundo me consta, outorga uma nova importancia tanto a Hegel, quanto a nossos pais gregés. A definicéo hegeliana da filosofia como a reconci- liagdo do transitério se apresenta, a nosso ver, nfo tanto como uma verdade valida ou enquanto uma falsidade idea- sta, mas principalmente, como uma espécie de antecipacao romantica. ‘Segundo Hegel, da bifureacéo entre a autocons- ciéneia € a realidade do mundo deveria surgir a forma su- prema da verdade, através da reconciliacdo e negagio das ‘oposicdes, a0 libertar-se o subjetivo da rigidez de sua con- ‘traposi¢ao ao objetivo. Este era o “pathos” escatolégico de sua filosofia, O que nos rodeia é, naturalmente, 0 oposto: a tm infinitude de um determinar, de um apoderar-se, de um apropriar-se, que avanca indefinidamente e, como tal, praticado, Hegel vinculou esta ma infinitude com 0 aspecto a1 exterior do entendimento do mundo racional ¢ com a obsti- nagdo com que insiste na fixago das oposicées, e, desta forma, colocou o exterior em sua contraposigéo consigo mesmo, em sua pura objetividade. Quando Hegel afirma frente a isto a verdadeira infinitude do ser que se determina a si mesmo — por exemplo, na infinitude do vivente, da auto conseléncia, ou, ainda, na humanidade que se libera na consciéncia de sua liberdade, ou do espirito que se faz transparente na arte, na religiao e na filosofia — sentimo- nos situados além das gretas do tempo e como se estivéssemos em um novo terreno. A racionalidade grega que Hegel trata de vincular com a autoconsciéneia moderna, em uma nova unidade, se exclui a si mesma de uma maneira diferente, se é que nao deva ser vista como uma mera prefiguragio do moderno. Jé nao se trata mais do enigmético auto-olvido que se perde a si mesmo, na contemplagéo do mundo, e que s6 se referia a ‘si mesmo como um deus supremo do mundo; frente A ma infinitude a que somos empurrados, se apresenta, a nés, como a imagem de um possivel futuro, de uma possivel vida e sobrevivéncia, O ideal que @ razdo tem em vista j4 no é a construcao de sistemas que negam, no pensamento, o que entra em contradicéo reciproca e também nfig_¢ mai desmedida pai: i i fato de que, em lugar da construcio ies iS, apareca a teoria do sistema, me parece que tem um grande alcance simbélico. Naturalmente, aqui, hé uma enorme transformagio de significado, no sentido’ da palavra teoria. Que ha nesta transformacéo? A palavra teorla é uma palavra grega. Re- presenta a caracterizacdo propriamente dita do homem, esta apari¢éo quebrada e subordinada dentro do universo que, apesar de suas reduzidas ¢ finitas medidas € capaz da in: tuicéo pura do universo. Porém, a partir do grego, seria impossivel “formular” teorias. Isto soa como se féssemos elas mesmas. A palavra nao significa — tal como sucede com 0 comportamento tedrico assumido desde a autocons- 22, ciéncia — aquela disténcia em relacdo ao ente que permite conhecer imparcialmente o que 6 , desta maneira, submeté- lo a uma dominacdo andnima. A distancia da teoria 6 bem mals a da proximidade e da pertinéncia, O velho sentido da teoria consiste na participacdo nos cerimoniais em honra dos deuses. O contemplar o proceso divino nao é a com- provacio, sem participacio, de um estado de coisas, ou a observacso de um magnifico espetdculo, mas uma auténtica participacéio nos acontecimentos, um real estar presente. Por isso, a racionalidade do ser, esta grande hipotese da filosofia, grega, nfo é, primariamente, uma nota distintiva da auto- consciéneia humana mas do ser mesmo, de tal maneira que € 0 todo e, assim aparece como o todo, a circunstancia de que a razdo humana tenha que ser pensada sobretudo, como uma parte desta racionalidade, e nfo como a autoconscién- cla que se sabe frente ao todo. Assim é ao mesmo tempo, outro caminho no qual a reflexao humana se adentra em si mesma e se encontra a si mesma: nao € 0 caminho até a interioridade a que nos convida Santo Agostino, mas o camino para a total entrega ao exterior, no qual, sem dit- vida, quem busca se encontra a si mesmo. A grandeza de Hegel consiste em que aceitou este caminho’ dos gregos, nfo como um-caminho falso, frente ao da autodeterminacdo moderna, mas como um aspecto que corresponde ao ser mesmo, A grandiosa contribuicdo de sua légica consiste em haver reconhecldo, na dimensdo do légico, este fundamento que suporta e reune 0 exnosto. O fato de que chamara de “nous” ou deus 6 alo puramente externo, da mesma forma que, na inversao mistica é 0 mais profundamente interno do Cristlanismo, Cheeamos ao final de nossa reflexio. A relacio entre ciéncia e filosofia demostra ser, no caminho a que nos levara Hegel e, i tica. pela travessia especulativa da fron- teira até o Indo de uma determinacdo dogmética da inves- tigacao que se encontra em permanente fluir. Temos que aprender a pensar positivamente esta relagio, em toda sua contraposicao. Nao se trata aqui de nenhum debilitamento até uma “Ilustracién moderada”, nenhuma dissimulacio. 23 Seria um equivoco pensar que esta perplexidade nos obriga a colocar a filosofia do lado da arte e fazé-la participante de todos os seus privilégios e de todos os riscos que esto vinculados a estes privilégios. O esforgo do conceito deve continuar correndo por sua conta. # verdade que a pretensio de unidade sistematica nos parece, hoje, mais dificil de manter, que na época do Tuminismo. Ao mesmo tempo, uma afinidade interna nos leva & maravilhosa pluralidade que os enunciados da arte desdobram, entre nés, na riqueza de suas obras, Nem 0 principio da ‘autoconseiéncia, nem ne- nhum outro principio de unificacao tiltima e de autofunda- mentacio nos conferem a expectativa de poder construir o sistema da filosofia, Todavia, continua sendo indescartavel a necessidade de unidade da razdo. Esta necessidade nao se aplaca nem diante de Argus de cem olhos que, segundo as elas palavras de Hegel, representa a obra de arte, ja que ndo hé nenhum lugar da arte que nao nos observe. im cada aspecto se mantém a tarefa da autocompreenséo do homem ‘econsigo mesmo, que ndo pode ser negada em nenhuma de suas experiéncias e, por certo, tampouco nas experiéncias da arte. Contudo, assim como as emunciados da arte estio co- nosco integrados, no processo da nossa autocompreensio, quando séo aprecndidos em sua verdade, nao é a arte, mas a filosotia, 0 que atua. & a mesma necessidade da razio, 0 que nos obriga a estabelecer permanentemente a unidade do nosso conhecimento, e 0 que nos deixa penetrar pela arte. A cla pertence, em nosso mundo, tudo aquilo que nos outorgam as ciéncias, na mediacio dos acessos ao mundo, e na comprovagao de todas as investigagées sobre este mundo, por parte da ciéncia, A ela pertence também a heranca de nossa, tradicao das concepedes filoséficas da razio, diante das quais se deve, nao tomar e aceitar uma totalmente, mas, sobretudo, nao silenciar a nenhuma. A necessidade de uni. dade da razdo assim 0 exige. © modelo de ciénela, que caracteriza 0 nosso tempo, deveria proteger-nos, também, da tentagdo de levar a cabo, em construcdes apressadas, a satisfaco da necessidade de unidade da razio. Assim como nossa experiéneia total do mundo representa um processo sem fim de sujeicio — e, usando palavras de Hegel, em um mundo que sempre s¢ apresenta como estranho, ‘para nés, porque é um mundo 24 | modificado por nés mesmos — também a necessidade de justificacdo filoséfica é um processo que nao tem fim. Nele se Tealiza néio s6, 0 didlogo que cada ser pensante trava, consigo mesmo, mas também 0 didlogo no qual estamos todos compreendides e que nunca cessard, ainda quando se pro- clame gue a filosofia esta morta, 25 A FILOSOFIA DE HEGEL E SUAS INFLUSNCIAS ATUAIS Como professor universitario, me parece atrativo e, mesmo tenipo, arviseado, apresentar-me diante de te grupo de pessoas maduras, egressas da universidade, em pleno exer, elcio de sua profissio, e com as quais ndo estou vineulado pelo contrato regular’ da atividade académica, Gostaria de facilitar 0 acesso a um pensador cuja obra é enigmitica, de uma maneira muito estranha e quase tinica. Nao € exagerado afirmar que nao existe nenhuma pessoa vivente que esteja em condigdes de compreender repensar ‘a obra de Hegel de tal modo que, em caso de que lhe seja apresentado um texto de Hegel, pudesse imediatamente, ou depois de algum esforgo, compreendé-Io totalmente. Ha uma famosa historia de uma visita de Hegel a Goethe. Goethe que, geraimente, costumava conduzir a conversacio com uma certa superio. ridade patriarcal, se manteve, durante a refeiedio, notoria. mente em siléncio © Hegel, 0 convidado, falou notoriamente muito, desde o inicio, em um muito misterioso dialeto suabo. A nora de Goethe, que também havia participado da mesa, perguntou, quando Hegel jé se havia retirado: “Quem ¢ este convidado to curioso?” & Goethe respondeu: “O pri. meiro filésofo da Alemanha, o professor Hegel, de Berlin” Esta cena pode servir também para recordar, prontamente, que Hegel pertence & época de Goethe e que dois homent — com ® thesma intensidade, ainda que de maneira dife- rente — condicionaram decididamente a época posterior. Goethe pode ser chamado, com razo, 0 simbolo da sociedace burguesa do século XIX,'0 homem que, em virtude do seu talento, e extraordinaria’ personalidade, foi o verdadelro so- berano na corte de Weimar, e a quem costumavam seguir na peregrinacio, tanto as pessoas mundanas, como os prin- 26 cipes do espirito. Este estranho professor de Berlim, que apesar do seu dspero suabo e toda a abstragio de pensa- mento que se reflete na sua obra, foi, sem diivida, 0 mais influente mestre da filosofia no século XTX. Mais que um mero pensador, foi uma figura cujo perfil constituiu objeto de luta entre diferentes escolas ¢ a avaliacfo de sua impor- tancia dividiu os espiritos. Depois da morte de Hegel, houve uma guerra intelectual entre didconos, & semelhanca co que costuma acontecer, quando desaparece um soberano po. deroso. Comecaram a formar-se uma direita e uma esquerda hegelianas, Entre os “hegelianos de direita” e os “hegelianos de esquerda” deflagrou-se uma polémica sobre o verdadeiro contetido do pensamento de Hegel. Entre os contemporaneos de Hegel, Goethe era, sem dtivida, o espirito mais universal Entretanto, o préprio Goethe nao estava em condicdes de poder ler Hegel realmente. Temos um bom documento sobre isso, Nas primeiras frases da Fenomenologia do espirito, na primeira pAgina deste livro, Goethe — a quem Hegel, na- turalmente, havia enviado um exemplar — sentiu-se surpre- endido diante de uma passagem. Da mesma forma que todos 0s seus livros,, Goethe também leu este, mas nfo avancou muito mais, aiém da primeira pagina, Sentiu-se eseandali- zado diante de algo que Hegel havia escrito e Ihe parecia inaceitével: “O botao desapareceu com a aparigiéo da flor © poderia dizer-se que aquele é negado por esta”, Goethe — decidido adversario de toda teoria revoluciondria ou expio- siva, tanto diante da histéria, quanto da terra dos homens — considerava, como é sabldo, 0 mistério do. crescimente organico das coisas, precisamente, como o modelo da correta atitude espiritual do homem, Daf sua rejeicdo a Hegel. En- tretanto, se reléssemos esta passagem que tanto molestara Goethe, ‘comprovariamos que ele no continuou a folhear mais o'livro, j4 aue, na pagina seguinte, a exposicdo rea- firma o sentido de Goethe com um “porém” que dé vigéncia & “unidade orgdniea”, Assim, Goethe néo chegou a dar-se conta da afinidade interna que o unia a Hegel. Ao mesmo tempo, conservou sempre por Hegel uma favoravel predis- posic&o, em parte também, porque ele fol um de seus defen- sores na polémica contra a dtica de Newton, ou seja, f partidario da teoria das cores de Goethe. Como é sabido, Goethe nao se considerava tanto como o grande poeta que era, mas, principalmente como o grande investigador da a7 TREN oH natureza, que havia imposto, contra Newton, a verdadeira forma de consideragio da natureza, especialmente da luz ¢, conseqiientemente, da fisiea. A conformidade que Hegel, ‘Schelling e Schopenhauer manifestaram, em relagio A teorla Goetheana das cores, no deixa de ter sua importancia ob- jetiva, Um fisico poderia, talvez, sentir-se acima desta ques- ‘ao. Porém, o que se refletia nesta polémica infeliz, entre Goethe e Newton, é bem mais um fenémeno de profunda importaneia. Nela se manifesta que a moderna ciéncia na- tural, como um fato verdadeiramente revolucionario, pene- trou no mundo e pos fim & forma tradicional da “ciéncia”, que se constituia, a partir da observacao e da experiéncia naturais, sem recorrer & abstragio matematizante, A ciéncia empiriea’ moderna encontrou no século XVIT, na mecénica de Galileu e de Huygens, seu primeiro fundamento. Con- tinuou a desenvolver-se cada vez mais, incorporou todos os Ambitos do saber numa nova metodologia e buscow final- mente — este 6 0 momento em que agora nos encontramos — conquistar ¢ submeter ao seu enfoque, também a reali- dade social, com a pretenséo de conduzi-la cientificamente, No fundo, j4 no século XVII, n&o era possivel satisfazer & pretensdo evidente da filosofia, no sentido de ser a regina seientiarum, a suma de todo o saber € 0 marco que encer- rava todos 0s conhecimentos possfveis ao homem. Hegel foi 6 primeiro que tratou de defender, com um pensamento, a orguihosa pretensio da filosofia de constituir a ampla to- talidade do saber humano possivel. Na medida em que isto se tentou, depois de Hegel, s6 conseguiu realizar-se dentro do horlzonte escolar dos professores de filosofia e ja nao foi uma realidade histérico-universal, tal como ainda o era, no caso do professor Hegel, de Berlim. Hegel pretendeu uma ‘iltima sintese entre natureza e historia, entre natureza e sociedade, num grande sistema de pensamento filoséfico que, naturalmente, por ser a tiltima culminancia de uma_antiquissima pretensao, a pretenséo grega, de pensar o “logos” do ser, alcancou popularidade, muito rapidamente. A influéncia do pensamento hegeliano se manifesta claramente pelo fato de que Rudolf Heym, em meados do século XIX, no ano de 1854, vinte anos apés a morte de Hegel, apresentou uma exposicdo polémica da filo sofia de Hegel, que gozou de grande respeito. Houve também um livro, com que Heym inicio as reflexes sobre o rapido 28 desprestigio que sofria a filosofia hegeliana, O tom desde- nhoso, comercial, com que o autor fala — no qual, qualquer um, que saiba escutar os tons histéricos tem que perceber 0 materialismo comercial do primeiro desenvolvimento indus- trial da Alemanha, em meadas do século ‘passado — reza: “Bsta grande empresa entrou em bancarrota «tao repida- mente porque todo o ramo comercial deteriorou-se”, Heym quer dizer aqui que a filosofia, como totalidade, havia en- trado em bancarrota e que a decadéncia universal do espi- rito hegeliano seria, apenas, uma conseqiiéncia disso. E é ver dade: desde Hegel néo houve nenhum outro pensador — tal- ‘ver, pudesse dizer-se, até Heidegger — que expressasse a cons- ciéneia de todos, por mais que sua yoz se fizesse ouvir intra- muros, somente dentro do marco da universidade, Natural- mente surgiram grandes eseritores como Schopenhauer e Nietzsche, ou também Kierkegaard, mas no houve nenhum mestre de filosofia, nas universidades, que realmente alean- casse a consciéncia geral. Quando, na atualidade, um nove- lista como Giinther Grass, que nao escreve para especialistas, mas para um pitblico em’ geral, debocha, em seus romances da filosofia de Heidegger; isto & um bom testemunho de que a voz de Heidezger escuta-se além das aulas untversi- tarias. Caso nos perguntemos sobre o rapido desprestigio da filosofia hegeliana, a resposta sera facil. O progresso da investigacdo moderna, em todas os ambitos da ciéncia, de- sacreditou a pretensdo que Hegel havia sido o ultimo a’for- mular, ow seja, que @ ciéneia da natureza devia ser prefi- gurada e incorporada em um sistema aprioristico de pen- samento. Uma tutela deste tipo através do apriorismo da razio tinha que provocar o desprezo ea resisténcia das cléncias empfricas. : Hoje, A distancia de um século, pensamos de maneira diferente sobre as foras dominantes, na época imediata- mente posterior a Hegel ¢ reconhecemos, em todos os am- bitos, também sua influéncia positiva. Isto vale tanto para os conceitos fundamentais da cién- cia natural, como para a fllosofia do século, que culminava com 0 neo-Kantismo, sem ter clara consciéneia de até que ponto Hegel continuava sobrevivendo nela. Especialmente a 29 chamada escola historica, 0 movimento de investigagio his- Yérico-eritico, centrado em Berlim, se considerava a si mesmo, em oposicao & filosofla especulativa da historia de Hegel; na atualidade sabemos que, em verdade, estava guiada pela fi- {osofia idealista, especificamente pelas idéias de Hegel. Con- tinua sendo um fato notavel, que este tosco suabo nfo de- yesse a popularidade que gozava entre os estudantes a ex- terioridades. Isto, seja dito de passagem, confirma uma ex- periéneia geral no sentido de que 0 que confere eficdcia a fim professor universitario néo so suas virtudes retéricas ou formais, Eu mesmo, por exemplo, aprendi muitissimo no campo da historia das cléncias, gracas a um professor que gaguejava. Depois de duas horas, se a pessoa tem realmente flgo que dizer, acabam esquecendo deste defeito. E certa- mente, que os estudantes de Hegel nao notayam mais seu acento ¢ seu dialeto suabo, mas pensavam que ouviam alguém falando no mais puro alemio, Todavia, a autocons- itneia cientifica de fins do século XIX esteve caracterizada, & tal ponto, pela discriminacao de Hegel, que, no mundo Sntelectual internacional, Hegel continua sendo até hoje uma figura suspeita, especialmente no mundo anglo-saxo. So- mente em nossos dias, comeca a notar-se, também ali, um jnovimento em direeao contraria, Atualmente, também nos Estados Unidos e Inglaterra, existem novas associacGes filo- soficas dedicadas ao estudo de Hegel, Elas procuram atrair, novamente, a atencdo sobre o tiltimo pensador que conseguiu resumir, gracas A sua genialidade {ilos6fica, nosso saber © nossa sensibilidade do mundo. Porém, em geral, pode dizer- se que, ainda hoje, Hegel continua sendo suspeito ante os ches da ciéncia e de todos aqueles que eréem que, com o rogresso da eiéneia é possivel solucionar basicamente todos Os problemas humanos. Apesar de tudo, sempre houve hege- lianos “naturais”. Tal é o caso do italiano Spaventa, um dos tormadores do hegelianismo italiano, que fora logo conhe- cido como ‘os nomes de Croce e Gentile. Na Holanda, hé uma escola hegeliana vinculada com 0 nome de Bolland, ‘0s chamados bollandistas, um grupo que, ainda hoje, existe fe gue esta integrado por espfritos Uberais e livres pensa- Souvs, Na Inglaterra, em 1900 aproximadamente, se pro- ‘duziu um amplo movimento hegeliano, cujas marcas, desde Jogo, foram gravadas a sangue e fogo, em Oxford e Cami: 30 bridge. E na Alemanha, sempre tem havido um ou outro hegeliano, Deste hegelianismo natural se alimentou o estudo da filosofia de Hegel, na Alemanha. Em 1910, Wilhelm Windebaud, a figura principal do neo-Kantismo sul-ociden- tal alemAo, pronunciou na Academia de Ciéncias, eth Hei- delberg, uma conferéncia acerea do novo hegelianismo: foi entio uma espécie de porta-voz de seus préprios estudantes e disofpulos que, dentro do neo-Kantismo dominante, se er- guiam contra Hegel. Um das partidérios destes grupos hege- lianizantes era Julius Ebbinghaus, atualmente um decidido opositor de Hegel ¢ velho Kantiano, Porém também per- tenciam a este grupo, uma série de pessoas, cujos nomes ‘so, hoje, bem conhecidos, tais como por exemplo, Ernst Bloch, George von Lukées, Fedor Stepun, Richard Kroner, Ernst’ Hoffmann, ete., um grande nuimero'de jovens que, na época, depositaram suas melhores esperancas em Hegel. Em nosso tempo, isso j4 ndo ocorre. Se eu mesmo fundei e dirijo ‘uma associacdo dedicada ao estudo de Hegel, isto se deve ao desejo de aprender de Hegel — ou seja, de adestrar-me em sua preciso conceptual e em sua radical energia de pensa- mento — e no, coma propésito de reriovar sua perspectiva. Isto vale também para aqueles que, quandoyfalam de Marx, na realidade, se esto referindo a Hegel. Sao as coisas que se tém que aprender de Hegel, que fazem do hegelianismo uma suma de questées vivas que devem ser reconhecidas como tais, sem necessidade de formar uma espécie de “loggia” hegeliana. Gostaria de demonstrar isto, referindo-me a trés destas questées: primeiro, ao problema’ religioso da t€ e do saber; segundo, a0 problema do espirito objetivo ou do mundo histérico e, em terceiro lugar, & questéo da unidade da na- tureza e da histéria, no coneeito, © problema religioso é 0 primeira desta série, uma vez que a ele se remonta a divisdo partidarista na interpretacdo de Hegel, a que me havia reférido antes, A direita e a es- querda hegelianas representam primariamente uma diferen- ca teolégiea. O que importava era a questo de saber se Hegel tinha razdo quando pretendia abarcar. nos pensamentos fi- loséficos, também a verdade do Cristianismo e situar a {6 sob a forma do saber ou — deixando de lado toda vinculagao pessoal com o Cristianismo, que aqui nao interessa — se equivocava tanto, que se podia chegar a dizer que, na reali- dade, falseou a. verdade do Cristianismo ¢ acelerou sua desa- 31 parigdo. Pertence a esséncia da religido, como doutrina ver- @adeira — e 0 Cristianismo tem a pretensio de ser uma doutrina — o fato de que sempre esteja exposta & suspeita de hetesia, Também a pretensdo de Hegel, no sentido de haver colocado a verdade da religido altura do conceito filoséfico, foi combatida energicamente pela Tgreja e pela reagao teol6- gica. Hegel foi inclufdo nas heresias espiritualistas que, pelo . menos, desde Joaquim Da Fiori, acompanham a igreja crista, seu terceiro artigo, a doutrina do Espirito Santo, é enfati- zado de tal maneira que a Encarnacdo, 0 Deus feito Homem, no fundo se converte num acontecimento permanente, sempre presente, que se reitera em todas as partes, Na realidade, é (© milagre da Pascoa, a vinda do Espirito Santo, 0 que man- tém vivo aquilo que veio ao mundo através de Cristo e 0 que faz com aue permaneca como a comunidade dos santos, om seja, como uma comunidade no espfrito. © terceizo artigo tem sido sempre tao exagerado nas neresias espiritualistas — da mesma forma que o que sucede em Hegel — que a Crucificagaio’e sua Ressurreicao se con- vertem em simbolos do poder da renovacéo permanente do Espirito. Aquilo que decai renasce de uma nova Ressurreic&o; este € 0 movimento espiritual através do qual o Espirito, nos homens, trata de elevar-se até a total Ressurreicio esta Transfiguracéo culmina na total espiritualizacao do hhomem e na autotransparéncia do pensamento. Se a religifo apresenta sua doutrina sob a forma da representacio e interpreta, por exemplo, 0 sactiricio de Jesus, na Cruz, como um acontecimento da graca de Deus, 0 pen: samento filoséfico eleva ao conceito a verdade desta repre- sentacdo, Assim, Hegel acreditou e pretendeu haver recon- cilindo a fé e o saber. Hegel nfo queria dizer com isso ou que nao fosse possivel ou que estivesse justificada alguma forma de concepgao do crente, junto com a claridade de pensamento gue se autoconeebe. Da mesma forma, quando flegel falava de sua famosa teoria do cardter de passado da arte, nao queria dizer, com isso, que a arte nao existisse mais, Quando Hegel disse “A arte ndo é mais a forma su- prema da verdade”, quer dizer que aquilo que na escultura grega era a coincidéncia evidente entre a divindade adorada € o artisticamente visivel, desaparece com o Cristianismo & Sua doutrina da realidade interna do divino. A forma da 32. religido da arte chega a seu fim, ou seja, em lugar das belas formas dos deuses do mundo antigo, aparece uma forma superior de conceber as coisas, mesmo quando, de inicio, se tratasse da forma das representagées da f€ crista. O pro- blema de Hegel ter ou ndo razo, quando afirma ter con. seguido uma reconciliacdo, entre a'fé eo saber, é uma ques- ‘to teologica. Porém, hé algo que, em todo caso, deve ser Jevado a sério: a religido, precisamente a religido crista, néo pode entrar em oposicao com a liberdade de pensamento dos homens e nao sofrer dano algum, Além disso, toda a possibilidade dos homens de obter aigum esclarecimento, através da pratica de pensar, tem que provar sua eficdcia, em uma polémica viva com nossa tradi¢&o orista e vice-versa, Hegel define a filosofia como o pensamento do infinito, Na realidade — do ponto de vista do seu contelido — osta € uma expresso congruente &s coneepedes de Deus infinito e de uma religiio que entende a totalidade do mundo como Criagio e eré na superacdo da morte através da Redenedo pelo amor divine. - __Por esta raat, a polémica sobre o caréter cristdo da filosofia hegeliana sempre se acende de novo. Faz pouco tempo, apareceu_um excelente livro que”renova a adesio ao eristianismo de Hegel ¢ testemunha uma ampla invest. gacdo filoséfica: Michael Theunissen: HE nD ABSOLUTEN GEIST. aeons eee Porém, de maiores conseqiiéncias ¢ mais atual é 0 se- gundo ponto, porque é, certamente, onde se manifesta, de maneira mais forte, até que ponto Hegel é indispensivel para o pensamento filos6fico e onde se pode estar seguro de que, ainda aqueles que quiseram mandar ao diabo a filosofia — sobretudo a de Hegel — vivem dela, principalmente os socidlogos. Refiro-me, especialmente, & sua teoria do espirito absoluto, © embasamento politico desta teoria de Hegel se ez especialmente claro, desde que os escritos de juventude de Hegel, a raiz de sua publicacdo, penetraram na conscién- cla geral da filosofia, Da mesma forma que toda a sua geracio, Hegel padeceu da alienacdo que existiu entre as cireunstancias politicas e religiosas de sua época e as neces- sidades auténticas do espfrito, O grande acontecimento com que 0 Tdealismo alem&o se sentiu especialmente vinculado 33 foi a Revolueéo Francesa. Através dela, formas constitucio- nais e de vida, que se haviam tornado incompreensiveis € ineficazes, foram superadas por um novo patetismo da Ii- berdade. Isto vale, especialmente, tal como Joachin Ritter fo destacou, em relagéo a Hegel. Conta-se que ainda o Hegel Qa epoca de Berlim, o suposto filésofo do Estado prussiano e defensor da reacdo, em um circulo de amigos — em Dresde, ‘Segundo creio, em 1823, em plena época da sinistra politica’ Ge restauragio de Metternich — levantou, de repente, seu copa e disse: “Sabeis que dia é hoje?” e o esvaziou brindando pela queda da Bastilha. Até tal ponto a Revolucdo Francesa, bu seja, a idéia da liberdade burguesa e, com ela, a liberdade @e todos, se havia transformado no “Leitmotiv”, também do pensamento de Hegel. Esta idéia subjaz & sua filosofia do Espirito absoluto, Nesta teorla do espirito objetivado nas ins- ituigées, o que importa nao é 0 fato de que as instituicdes existentes foram defendidas em sua correctio imutavel. Hegel 50 defendeu as instituicdes diante dos falsos sAbios. Com sua avassaladora forca intelectual, mostrou os limites do mora- liso na vida social, insustentabilidade de uma moral pu- yamente interna, que ndo se manifestara nas formas obje- tivas da vida que agrupa os homens. Assim conseguiu mos- trar, na realidade, as cisdes pecullares, para nfo falar das ambigiiidades e falsetas, a dialética da deslealdade que es- tava ligada ao moralismo abstrato dos homens. Converteu-se em eritico da filosofia moral kantiana, na medida em que esta insiste na autocerteza moral e na medida em que o conhecimento do proprio dever se pensa prescindindo de todas as condicoes externas: tanto das naturais, como das sociais e, especialmente, do sistema dos costumes e da edu- cacao, do sistema de recompensas e castigos. E ainda pelo fato de que a filosofia moral kantiana insiste em que a ragio pratica pode impor e defender por si mesma, através de sua propria autonomia, a forca obrigatéria da pretensio moral da lei ética, sem ter em conta nenhum dos outros aspectos, Este grandioso impulso, em si, foi considerado 01 ticamente por Hegel, justo ali onde se erige como moralidade da interioridade, numa atitude moralista frente a realidade do Estado e da sociedade. Assim se expressa a sua teoria do espirito objetivo, quando sustenta que a consciéncia do individuo é apenas uma realidade comum e vineulante, que 34, vai além da consciéncla individual, e que constitui o fun- damento da nossa vida humana no Estado e na sociedade. ‘De uma maneira extraordinaria, sobretudo em sua Fenome- nologia do Espirito e, mais tarde, em Berlim, na Filosofia do Direito expés que a autoconsciéneia humana realiza 0 paso decisivo para sua estabilizagao, no reconhecimento do seu proprio ser, por parte dos demals, Desenvolveu a idéia abstrata da autoconsciéneia que, no idealismo alemao re- monta-se, em tltima Instancla, ao “cogito me cogitare” de Descartes e que foi elevado A categoria ‘de principio basico da filosofia — em Kant, o eu designa a sintese transcen- dental da percepedo. Hegel mostra que este eu, em verdade, enfrenta toda uma génesis através da qual, além da subje- tividade, passa & objetividade do espirito. Além disso, tam- bém pensou a forma de subjetividade, no apétite sensivel. Isto parece um pouco fora de moda, Mas, 0 que ele deseja significar 6 0 auto-sentimento vital, a forma de estar-se seguro de si mesmo, na satisfagio’ sensorial. Esta é, na realidade, uma forma de confirmaco do eu que surge de nosso sentimento vital. Aqui encontro o que sou, 0 meu pré- prio eu, por exemplo, quando tenho fome. Porém, como é sabido, ‘a fome desaparece quando estou.-saciado, até que volte a ter fome. Portanto, este sentimento de si mesmo 6 muito inesgotdvel. Hegel demonstrou que nio é possivel conseguir um verdadeiro auto-sentimento através da apro- priagaéo e do submetimento do estranho. Nem sequer, na forma em que se 4, quando, como senhor, escravizo outros homens a fim de procurar uma satisfagdo segura dos meus apetites, consigo obter um auténtico sentimento de mim mesmo, 'Pois, que pode significar-me 0 reconhecimento por parte de alguém que depende de mim? Que pode significar, para alguém que busca sua autoconseiéneia, o fato de que ‘0 outro, enquanto escravo, o reconheca como seu senhor? Em compensacéo, uma ¢dlsa muito distinta, 6 ser re- ‘conhecido por outra autoconsciéncia. Isto dé a minha auto- consciéneia uma confirmacdo real, concreta, Tudo isto o reco- nhecemos, perfeitamente, no fendmeno que descrevemos, num sentido amplo, como honra, Hegel mostra, nele, a dialética da autoconsciéncia, Esta é uma das partes mais estupendas do pensamento dialético de Hegel, que permite demonstré-lo, por assim dizer, em stia conerecdo. O reconhecimento tem que ser reefproco, A autoconsciéncia é autoconsciéneia somente quan- 35 do recebe sua confirmacéo do outro, mas também, apenas, ‘quando este outro obtém sua confirmacdo do outro, mas tam- bém, apenas, quando este outro obtém sua confirmagéo a par tir do cu mesmo. Isto pode aclarar-se com um exemplo muito sensivel, experimentado por qualquer um de nés, Uma das formas mais extremas de honrar o outro saudé-lo. Quem nao conhece esta. desagradavel sensacio que se experimenta, quando alguém satida uma pessoa ¢ cla segue em frente, sem dar-se conta, seja porque a confundimos com ym co- nhecido, ou porque nao quer saudar-nos. Saudar em vio é uma experiéncia na qual o sentimento de si mesmo se quebra, 20 menos por um momento. Por certo que o costume da saudagio constitui o mais externo da vida social — 0 fato de que a jovem geracdo jé no se ditija a nés, profes- sores, sauidando-nos com o tftulo, mas que prefiram bater- nos no ombro, como se féssemos americanos, me parece que uma importante contribuicdo reforma universitéria, mesmo que nao haja nada a opor a esta mudanca de cos fumes. Mas, a partir desta exterioridade se pode compre- ender o substancial de nossa vida humana em comunidade, por exemplo, a solidariedade que é necesséria para que um sistema juridico possa funcionar. Nos tempos criticos em que vivernos, dispomos de abundantes provas empiricas sobre quo perigoso se torna o fato de que uma sociedade seja ameacada em sua solidatiedade, e que j& ndo exista uma evidéncia comum de reeonhecimento da ordem furfdica. Basta pensar no descrédito em que cai a declaracio testemunhal numa sociedade secularizada, que obrigou a jurisprudéncia a evitar, dentro do possivel, a defesa mediante testermunhos. E, aqui, o direito é também, contudo, um aspecto bem externo da realidade social. HA realidades muito mais subs- tanciais da vida em comum. Toda unio através da amizade ‘ou do amor contém esta comunidade substancial que pode ser descritz mediante a dialética do reconheimento recfproco. Um dos grandes méritos de Hegel consiste, precisamente, em haver mostrado, de maneira convincente, que a familia, a sociedade e o Estado, a partir desta mesma raiz da su ragio e ultrapassagem do espirito subjetivo, da consciéncia individual, se move na direeao de uma conseiéncia comum. Chego, agora, ao terceiro ponto de minha exposicao. Jé me referi 20 fato de que Hegel, da mesma forma que 36 toda a geragiio de sua época, fol impulsionado, no caminho de seu pensamento, por uma vivéneia fundamental, ou seja, a vivencia da cisdo. Ble a denominou “positividade”. Em Hegel, hd que levar-se em conta que, freqientemente, se quer dizer, ‘precisamente, 0 contrério do que parece indicar a ex- pressio que utiliza, Quando Hegel diz positividade, quer ai zer algo muito negativo, ou seja, que as normas foram tao somente impostas pela autoridade e que ndo contam com © reconhecimento interno por parte daqueles a quem se di- rige. Ai esta, por exemplo, a positividade do Cristianismo, quando exige, dos crentes, mera obediéncia, sem levar em conta a atitude e 0 compromisso interno deles, E também, a positividade de uma Constituicgo, quando continua exis tindo validamente, em suas disposigdes como constituiedo, 4 tendo perdido todo espirito vivo. Como se sabe, a Consti- tuigéio do Sacro Império Romano-Germanico representava, nos anos de juventude de Hegel, um campo vivo de experi. mentacao deste tipo de decadéncia, da alienacéo entre o vélido de uma maneira puramente ‘externa e positiva ¢ 0 efetivamente real. Deve-se recordar que o final do Sacro Império Romano-Germanico foi arrastado em um grande proceso — em Ratisbona ou noutras partes — enquanto que a disposicéo essencial de uma auténtica constituico do Império — que estabeleceria a verdadeira solidariedade dos alemaes — se havia tornado totalmente ineficaz e inerte, através do Estado territorial moderno e dos governos abso- lutistas dos diferentes principes. A cisdo, este primeiro ponto de partida de Hegel, tem seu “pendant” na reconciliacao da prépria cisio, ou, como ele disse, “a reconeiliacdo do tran- siterio”, Esta era'a tarefa que Hegel se havia imposto como pensador, ou seja, a superacdo de todas as cisdes através do poder do’ pensamento filosofico. Para voltar novamente ao primeiro ponto de minha exposic&o; obviamente, logo Hegel sentiu que o conceito de reconciliacdo era uma forma con- creta da mensagem cristé. Tomemos um trabalho escolar do companhelro de escola de Hegel, Hélderlin, sobre o tema “Jesus como génio da reconciliacso”. Este néo é um tema da ortodoxia teolégica, mas do Tiuminismo. Isto poderia ter sido dito por Harnack’ou qualquer outro te6logo liberal dos fins do século XIX. O importante aqui néo 6 o teolégico mas que a reconclliacdo é um auténtico fendmeno da esni- ritualidade humana, como tem sido mostrado por Hegel. Ela 37 se encontra também na dialética da autoconsciéneia. Nao existe amizade alguma, amor algum, matriménio algum que néo surja através da polémica e da reconciliacdo reciprocas. © Segredo da reconciliacao ¢ o segredo da dialética he- geliana. Chama-se sintese. Se tivéssemos que precisar por- que Hegel se converteu na figura final da grande tradicao metafisica — que 6 0 que o distingue nesta. grande tradigao — dir-se-fa que Hegel estendeu a grandiosa concepgao da metafisica grega a um terreno moderno, todo um hemis- fério diferente, isto 6, a0 mundo histérico. O grandioso da metafisica grega 6 0 haver buscado a razio no cosmos, 0 “nous” que ata em todas as formagdes da natureza, orde- nando-as ¢ estabelecendo distingdes. Encontrar a razio na natureza foi a heranca grega. Hegel tratou de mostrar tam- bém essa razio na histéria, Em um primeiro momento, pa- rece enormemente paradoxal — nao somente ante nossos ‘olhos mas também diante dos contemporaneos de Hegel — sustentar, precisamente, que @ confusdo das coisas humanas pode suportar uma comparacdo com a serena érbita que as estrelas percorrem no céu, Este eri realmente 0 modelo da ‘cosmologia e da metafisica gregas: a ordem do sistema solar, que ja os pitagéricos consideravam como uma harmonia de- terminada matematica e musicalmente, A confusio das coi- sas humanas, os altos e baixos da instabilidade — nada permanente subsiste — era algo bem familiar para os pen- sadores do século XVIII, sobretudo em vista da decadéncia do Império Romano. Os grandes historiadores do séeulo XVIII tinham, como idéia fixa, o tema da desapariedo da oikumene antiga. A corajosa tese de Hegel consistia, precisamente, em afirmar que, apesar de tudo, mantinha-se e manifestava-se, na histéria humana, uma razdo similar & que estava pre- sente na natureza. A famosa frase que eserevera no Prélogo da Filosofia do Direito, e que tem sido motivo de burla de todos aaueles que nao querem pensar, compreende esta ra~ zo: “O que ¢ racional é real e o que 6 real é racional”. Quando a escutamos ela primeira vez, esta frase soa como uma assertiva impossivel. Pode alguém entreear-se, de mins atadas, a uma realidade que envelhece ¢ considerar que tudo (0 gue existe é bom? Mas ¢ isto que Hegel quer dizer? Quer Hegel dizer com “realidade”, 0 que supomos em uma pri- meira compreensio desta frase? Nao quer dizer, em tiltima instancia — e me parece que esté bem claro que isto é 0 98 que auer dizer — que, no sentido amplo, o irracional nao logra manter-se? & algo bem estranho sustentar que, na realidade, num sentido amplo, o irracional nao consegue im- por-se € nao consiste, precisamente, no enorme fenémeno de nossa auto-experiéncia histérica, na qual o individuo — com seus planos, atividades, esperancas, desilusdes'e deses- perancas — atua e esta vivente, sem saber 0 que, ao final, representa no todo histérico e ho todo social? Nossa expe. riéneia da historia € precisamente que estamos muito dentro dela e que, em certo sentido, sempre podemos dizer: nio sabemos 0 que nos acontece. “A historia & precisamente isto; 6 desconhecer 0 que se passa e, apesar de tudo, estar-se en- volvido no jogo, cada um em seu lugar ou — como, preci- samente, 36 0 sentem os jovens — cada um buscando e ndo encontrando esse lugar, dentro do qual poderia atuar e mo- dificar uma realidade adversa. Assim, pois, me parece que fa frase de Hegel — “O que é racional é real e o que é real 6 racional” — é muito mais a formulacéo de uma taref para cada um, do que uma legitimacao, para todos no da propria inatividade, A cesta idéia se vincula uma das concepedes de Hegel que talvez esteja mais voltada para o futuro, Como ¢ sabido, Hegel apresentava 0 passo triplo da dialética: tese-antitese” sintese, de uma, tal maneira, na histéra universal, que in- terpretava essa histéria como um progresso da liberdade: se, no Oriente, um s6 era livre e todos os demais careciam de liber- dade, ¢ na Grécia, sé as habitantes da cidade eram livres, en- quanto os demais eram escravos, através do cristianismo e da histéria moderna — especialmente através da emanci- Pagio do terceiro estado e da libertacdo dos camponeses — se chegou tdo longe, que todos so livres. Nao se pro- duziu, desta maneira, 0 fim da histéria? Pode haver his- t6ria, segundo Hegel, depois que. todos tenham alcancado a liberdade e o que é a histéria, a partir deste momento? Em verdade, desde entao, a histéria nao tem que ser baseada em um novo prinefpio, O prineipio da liberdade 6 inviolével e irrenuncldvel. Jé no ¢ possivel, para ninguém, suportar a falta de liberdade dos homens. Portanto, j4 nao se pode ignorar o princfpio de que todos sao livres. Mas isto signi- fica que a historia tenha chegado ao fim? Todos os homens so livres? Em verdade, os homens so livres? Por acaso, 39 a histéria nfo consiste, precisamente, na_atuacio histérica_dos homens para transformar a liberdade em realidade? Obviamente, com isto, a histéria se remete ao objeto infinito da abertura de suas tarefas futuras e nio se outorga, de maneira alguma, a tranqiiiliaante seguranca de que, no mundo, tudo esté em ordem. 40 © QUE +A PRAXIS? AS CONDIGOES DA RAZAO SOCIAL Na atualidade, a praxis 6 definida, em certa medida, por oposicéo & teoria. Ha um certo tom antidogmético na palavra praxis, uma desconfianca frente ao mero conhect mento tedrico, de quem carece de experiéncia e, por certo, uma sempre presente oposicdo latente que a Antigitidade também conheceu. Entretanto, seu conceito oposto, 0 de tooria, converteu-se em algo diferente e perdeu alguma coisa de sua dignidade, Neste conceito jé nao resta nada daquilo que a theoria significava para quem tinha olhos para ver a estrutura do céu e a ordem do mundé’e da socieda- de humana. A teoria se converteu num conceito instru- mental, dentro’ da investigacdo da verdade e da aquisicéo de novos conhecimentos. Esta & a situacgo bésica a partir da qual nos propomos a pergunta “o que 6 praxis?” Ja nao sabemos porque, partindo do moderno conceito de ciéncia, somos destocadas na direcdo da aplicacdo da ciéncia, quando falamos de Praxis. Se, para a conseléneia geral, praxis ¢ a aplicacéo da ciéncia, que é, entao, a ciéncia? Que novo movimento, pré- prio da ciénela moderna, conduziu a praxis a se converter numa aplicagio irresponsivelda ciéncia, irresponsavel, a0 menos, diante da ciéncia? A ciéneia j4 ndo é mais a soma do saber e daquilo que € digno de ser sabido mas um ca- minho, um caminho para avancar e penetrar num mbito ainda no investigado e, portanto, ainda néo dominado. Este avango e este progresso nao poderiam ter sido conseguidos sem uma rentincia bésica, O primeiro criador da ciéncia moderna, Galileu, 0 criador da meednica classica, pode ilus- trar este proceso. Porém, era necessdrio uma grande au- at décia para, como Galileu, desenvolver as leis da queda no vazio, quando ninguém, até entdo, havia tido tal experiéncia, J que so se conseguiu criar experimentalmente o vazio numa época. posterior a Galileu. © experimento escolar que tanto nos fascina, isto 6, 2 comprovacao de que, no vazio, um pluma cai efetivamente com a mesma velocidade que uma lamina de chumbo, foi realizado por Galileu num ato de enorme antecipacao intelectual. Galileu mesmo o descreve com estas palavras: “mente coneipio”, concebo em minha mente a idéia da queda de um corpo no vazio, isto 6, quando néo hé nada gue o freie, Sua legitimidade matematica pode expressar-se nas relacées de distancia percorrida e tempo. Com isto a ciéncia se converteu numa atitude basica- mente diferente. Prescindindo de todo nosso mundo, prima- riamente apreensfvel e que nos familiar, a ciéneia’ se con- verte num conhecimento de contextos dominaveis através da. investigacao isolada. A partir dai, sua relagio com a apli cago prética deve ser entendida como situada em sua pro- pria esséneia moderna. Se é possivel aprender e caleular relagdes abstratas entre condicdes iniciais e efeitos finais, de maneira tal, que a colocacdo de novas condicées iniciais tenha um efeito previsivel, entao, efetivamente, através da ciéncia, assim entendida, chega a hora da técnica. A antiga vinculaedo do fato artificialmente, artesanalmente, seguindo modelos dados pela natureza, se ‘transforma num ideal de construcdo, no ideal de uma natureza realizada artificial- mente, de acordo com a idéia. Isto é 0 que, em tiltima instancia, provocou a forma de civilizagéo moderna em que vivemos. O ideal de construcdo, que se encontrava ja no conceito de ciéncia, da mecanica, se converteu num monstrucso prolongamento do braco hu: mano, que é 0 que possibilitow nossas maquinas, nossa elaboragdo da natureza e nosso langamento no espaco. ‘A coeréncia imanente deste contexto de construgéo me- tédica e de fabricagdo técnica influi de uma dupla maneira 1) a técnica est, da mesma forma. que o antigo artesanato, referida a um projeto prévio. A vida econdmica autéctone do mundo medieval ou de outras culturas superiores da hu- manidade, impunha sempre ao esforco técnico a autoridade do consumidor. Em ultima instancia quem exercia um papel decisivo para resolver o que se devia fazer era 0 consumidor. 42 Obviamente isto foi decisivo para a forma de trabalho da Antigitidade, Em troca, vemos, com nossos préprias olhos, como em nossa civilizacdo, progressivamente técnica, cada. vex mais o artificial vai se erguendo ao nosso redor como nova oferta, como um produto que desperta 0 consumo e novas necessidades. 2) O que necessariamente se difunde através deste mundo 6 uma perda de flexibilidade no trato com o mundo. Quem utiliza a técnica — e quem de nés nao o faz? — se familiariza com seu funcionamento e, com le, através de uma renincia primaria de liberdade, no que iz respeito ao préprio poder-atuar, chega ao gozo destas surpreendentes comodidades e aleances que a técnica mo- derna nos facilita. Com isto se obscurecem duas coisas: Pasa quem se trabalha aqui? Até que ponto os rendimentos da técnica estiio a servico da vida? A partir dai, delineia-se de uma nova maneira o problema que toda civilizacho tem enfrentado, isto & 0 problema da razdo social. A tecnifi- cacao da natureza e do mundo natural, em torno, se en- contra sob o titulo de racionalizacdo, desencantamento, desmitologizacéo, eliminacao de correspondéncias antropolé- gicas apressadas. Finalmente, a rentabilidade econémica, um novo motor de uma transformacdo incessante em nossa ci- vilizagéo — e isto caracteriza a maturidade, ou, caso se queira, a crise de. nossa civilizacéo — se converte em um poder social, cada vez mais forte, 86 0 sécuilo XX & deter. minado através da técnica de uma maneira nova, na medida em que lentamente se processa a passagem do poder técnico do domfnio das foreas naturais para a vida social. Isto estava demorando, Houve, no século XVIII, profetas do novo futuro social, porém as grandes forcas sustentadoras da cultura européia ocidental, o Cristianismo, 0 Humanismo, a heranea da Antigiidade, as velhas formas de organizacao politic: continuaram sendo as decisivas. E quando, com a Revolucao Francesa, um novo estrato social, o chamado “‘terceiro es- tado”, que continuava ainda amitide, ligado a vinculos reli- giosos, irrompeu decididamente na vida social, se atras uma vez mais a aplicacdo, sem travas, decidida, do poder téenico na vida social. Porém, agora, j4 chegamos a ele. Nao se trata de que nossa sociedade esteja, em realidade, totalmente determina- da. pelos seus téenicos. Em nossa conseiéncia, porém se di- funde uma nova expectativa sobre 0 que nos cerca. Através 3 de uma planificagéo adequada, no hd de ser possivel, tal- ea tintroduair uma organizagio mais funcional? Seve Piausivel aspirar-se ao dominio da socledade através, 1 Plato, para assegurar-se uma situagdo social mais racional Trio So ideal da sociedade de especialistas, na, qual nos Eingimos a um profissional, buscando nele, a ajuda, para ag qeatbes: préticas, politicas e econémicas. O especialista, € cee seesta uma figura imprescindivel para o dominio tée- sreamtgs processos. Ocupa 0 lugar do antigo artesio. Porém nafs especialista deve substituir também a experiéncla, pri; site CEecial, Esta & a expectativa que a sociedade deposita fete © que ndo pode realizar, com honesta conviegio © auto- avaliacio sdbria e metédica. Porém mais fatal, ainda, é a influéneia da conformacdo téonien de nossa sociedade, a tecnificacéo da formacao de Ghinigo, Este ¢, talver, hoje o novo fator que tem mais tev: eptza, no jogo de forgas sociais. A mederna téeniea de infor Shacdo eriou possibilidades que tornam necesséria, numa Te Ta insuspeltada, a selecdo de informagées. Entretanto, toda cricedo sipnifiea uma tutela. E néo pode ser de outra maneira Guem seleciona, relém. 1, naturalmente, seria muito pior ee Ttelecionar. ‘Neste caso, haveria uma inundacdo pelas Dermanentes correntes de informacdo ¢ se perderia o Wiime Peguielo de razio. , portanto, inevitavel que a modema Tolies de comunieacéo condtza a uma poderosa manipu: Jacko. dos espirites, B possivel dirigir uma opinido pubes Planificadamente em determinada direcao ou nels influir Para que adote determinadas decisdes. A propriedade ¢% Paves ue comunteacao 6, pols, decisiva. Por esta razko, em Toda democracia se empreendem esforeos mais ou menos im- potentes para estabelecer um certo equilfbrio © controle me Pmministragao,e organizacso dos mefos puiblicos de informa afo. © que ndo se consegue — numa medida tal, que 0 con si0 dot de noticias possa estar seguro de uma auténtica SMlisfacso de quas necessidades de informacio — se avails pela erescente apatia da sociedade de massas no que diz Fespeito as coisas publicas. ‘© aumento do grau de informagéo, portanto, néo signi- fica, nevessariamente, um fortalecimento da raxdo social ca, timais correto que af resida, precisamente, o verdadeiro problema’ a ameagadora perda’ de identidade do homem 44 atual, Quando o individuo se sente, na sociedadé, dependente SMimporente face as formas de vida que Ihe sao proporcio~ ¢ jdoe tecnicamente, se torna incapaz, de conseguir sua iden- Uteagdo, Isto tem um profundo efeito social. Af reside, em Hiinhs opinio, o maior Perigo, que ameaca nossa civilizagdo: © privilégio que se outorga & capacidade de adaptacio. Bm ultima instancia, numa civilizacio técnica, € ine vitavel que néo se premie, tanto a poténcla criadora do Jndividuo, como o seu poder de adaptacdo. Resumindo:, a Sociedade de especialistas, 6, ao mesmo tempo, uma socle- secte ae funcionarios, pols corresponde ao conceito mesmo Ge"funciondtio, o concentrar-se na administragio de sua faneao. Nos processos cientificos, téenicos, econdmicos, mo- Meigrios e, por suposicGo, muito mais na administracdo, na Politica etc, tem que se garantir como o quem 6, ou seja, Fomo alguéin que & empregado para o funcionamento deste faparato. Com esta finalidade é procurado; nisso reside suas Shssibilidades de ascensio. Ainda quando a dialética deste Mesenvolvimento 6 percebida por todo aquele que afirma que, cea wen mais, € menor o mimero de pessoas que tomam Gkeisdes e cada vez maior, o das pessoagique 86 esto 8 Senvigo deste aparato, a moderna socledade industrial esta Scimotida a uma coacéo objetiva imanente. Entretanto, isto sapduz 2 decadéncia da praxis na técnica e, néo por culpa Gee especialistas, A decadéncia na desrazao social Que pode significar, nesta situacdo, a reflexio filoséticn acorea do verdadero sentido da praxis? Ha que comecar-se or um ponto que, talvez, possa parecer surpreendente, porém Tue eonsidero 0 mais profundo de todes, porque representa ease antropolégica imutdvel de todas as transformacées @ imanas e soclais — sejam estas passadas ou presentes. Que aconteceu, na natureza, 20 surgir, na cadeia de forme Ges da natureza ou da criag&o, um ser que foi excluido da fhsereao de todo vivente, em seus tragos instintivos ¢ em sua referénela & conservacaio da espécie? ‘© homem 6 um ser cujo instinto vital fol tio alterado que, frente a tudo aquilo que conhecemos do mundo antmay Agssul uma_peculiaridade indiscutivel que néo é nem. de Poe diminufda pelo estudo das socledades animais e de suas Tovinas de comunicacao, de solidariedade e de agressdo. Tra- faze do pensar do homem acerea de sua prépria vida no 45

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