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Materia prima, fenômenos e análise infinita1

Ulysses Pinheiro

Introdução: Russell contra Russell e Cassirer sobre Leibniz em Mind (1903)


Como é bem sabido, a teoria da verdade de Leibniz afirma que em toda proposição
afirmativa verdadeira, seja universal ou singular, necessária ou contingente, o conceito
do predicado está incluído de alguma forma no conceito do sujeito2. A fim de explicar a
distinção entre verdades necessárias e contingentes – continua a teoria –, deve-se apontar
para as duas maneiras distintas em que essa inclusão é provada, a saber, por meio ou de
uma cadeia finita ou de uma cadeia infinita de razões: enquanto a inclusão conceitual
necessária deve ser provada por uma análise finita, a inclusão conceitual contingente
envolve uma análise infinita3. Seria igualmente supérfluo relembrar que a distinção
proposta por Leibniz entre verdades necessárias e contingentes por meio do comprimento
das cadeias de razões exigidas para sua prova tem sido objeto de inúmeras disputas entre
os intérpretes de sua filosofia. É impossível resumir todas as controvérsias que cercam
esse tópico em apenas algumas linhas, mas podemos reavaliar o pano de fundo desse
debate se retomarmos uma das primeiras e mais notórias críticas à definição leibniziana
de contingência através da análise infinita, aquela proposta por Bertrand Russell. Em um
artigo famoso e agora clássico, publicado em 1903 e intitulado “Recent Work on the
Philosophy of Leibniz”4, dedicado à revisão de dois livros recentemente (na altura)
publicados – nomeadamente, La Logique de Leibniz d’après des documents inédits, de
Louis Couturat (1901) e Leibniz’ system in seinen wissenschaftlichen Grundlagen, de
Ernest Cassirer (1902) –, Russell afasta-se, ainda que de modo relutante, de suas próprias
opiniões anteriores sobre a teoria da contingência de Leibniz, dando razão à nova

1
Este texto foi escrito no contexto de um projeto de pesquisa financiado pelo CNPq com uma Bolsa de
Produtividade em Pesquisa. Agradeço aos comentários feitos a uma versão anterior deste texto por Luiz
Henrique Lopes dos Santos, Oscar Esquisabel e Vivianne de Castilho Moreira.
2
Desde o Discurso de metafísica, de 1686, essa fórmula é um lugar-comum nos escritos de Leibniz. Ver,
por exemplo, C 16-24; FC 179 (L 263-64); cf. G VII 309. Ver também Grua 303; FC 182, 184; FC 182 (L
265); Grua 303.
3
O comprimento da prova requerida para estabelecer a verdade das proposições não é a única propriedade
usada por Leibniz para explicar a distinção entre verdades necessárias e contingentes; ele também recorre
algumas vezes à distinção entre propriedades essenciais e existenciais. Nesse segundo procedimento, deve-
se ainda esclarecer a questão ulterior sobre se as duas propriedades se sobrepõem perfeitamente, em especial
se todas as proposições essenciais são necessárias (uma vez que nem todas as proposições existenciais são
contingentes, como indica a proposição “Deus existe”.
4
In: Mind, New Series, Vol. 12, No. 46 (Apr., 1903). A opinião prévia de Russell sobre o problema da
contingência aparece em seu livro A Critical Exposition of the Philosophy of Leibniz with an Appendix of
Leading Passages (RUSSELL, 1900, p. 61-63).
2

interpretação proposta por Couturat, que se baseava em manuscritos (até então) inéditos,
coligidos pelo próprio Couturat5. Russell confessa que os novos textos disponibilizados
pela primeira vez na edição de Couturat o fizeram mudar de opinião sobre a resposta de
Leibniz ao problema da contingência. Ao invés de uma propriedade puramente lógica,
diz Russell, a solução de Leibniz envolvia uma propriedade epistêmica, na medida em
que era baseada em uma “distinção entre proposições explícita e implicitamente
analíticas”; dessa (segundo Russell, espúria) distinção adverbial, se derivava a conclusão
de que, “onde uma análise infinita, que somente Deus pode realizar, é necessária para
exibir a contradição, o contrário parecerá não ser contraditório” (idem, p. 185). No
contexto em que ocorre essa frase, Russell está discutindo o que ele chama – não sem
alguma imprecisão, devido a sua adoção de um vocabulário kantiano – de “teoria analítica
do juízo” de Leibniz, especificamente quando ela se aplica a juízos existenciais. A posição
que ele teve de abandonar à luz dos novos textos publicados por Couturat é aquela que
afirmava que as proposições existenciais são sempre sintéticas. Segundo Russell, ou a
analiticidade de todas as predicações reduz as verdades contingentes a uma mera
aparência de contingência, ou nem toda negação de uma verdade analítica é
autocontraditória. Como a última opção – adotada por Couturat – é, seguindo Russell,
simplesmente absurda, ele teve de se ater à primeira.
A crítica de Russell à solução de Leibniz para o problema da contingência foi
intensamente debatida entre os estudiosos leibnizianos, especialmente nos países
anglófonos, durante a segunda metade do século passado – os anos entre 1960 e 1990
concentram um bom número das intervenções neste debate6. Alguns intérpretes, como
Benson Mates, ficaram ao lado de Russell; outros, como Robert Adams, defenderam
Leibniz contra a suposta confusão entre propriedades epistêmicas e propriedades lógicas
que teria sido feita por ele. Examinemos brevemente esses dois partidos da disputa.
Em seu livro de 1986 sobre Leibniz (MATES, 1986), a avaliação crítica de Mates
sobre a doutrina leibniziana da análise infinita como o fundamento racional da
contingência também aponta para seu caráter epistêmico, em detrimento do caráter

5
Além de seu livro sobre lógica, Couturat publicou, no mesmo ano em que apareceu a resenha de Russell,
uma outra coleção até então desconhecida de textos de Leibniz, a agora clássica compilação intitulada
Opuscules et Fragments Inédits de Leibniz. Extraits de manuscrits de la Bibliothèque royale de Hanovre.
Russell menciona esse volume em sua avaliação favorável final da obra de Couturat (RUSSELL, 1903, p.
191).
6
Pode-se consultar uma bibliografia ampla sobre esse tema em: LOOK, 2020.
3

lógico, mais apropriado, segundo Mates, a uma teoria metafísica. Em suas palavras, a
análise infinita de proposições contingentes
pode talvez ser aceita como uma caracterização daquelas proposições
que nós, em nossa ignorância, chamamos de “contingentes”, mas não
pode definir inteligivelmente a classe de proposições que são
contingentes, sendo verdadeiras para alguns mundos possíveis e falsas
para outros (MATES, 1986, p. 116-117).

Para Mates, a provável razão pela qual Leibniz foi levado a esse equívoco está
relacionada a uma confusão mais básica, segundo a qual o significado e a extensão dos
termos da linguagem devem ser idênticos. No caso particular do termo “verdade
contingente”, diz Mates, Leibniz presumivelmente queria apontar para uma característica
comum, extensionalmente compartilhada por todas as proposições a que é aplicada –
justamente a infinidade da análise necessária para provar a inclusão do conceito do
predicado no conceito de sujeito. A partir dessa propriedade extensional, Leibniz
erroneamente concluiu que esse era o significado da contingência. Mas não está claro, diz
Mates, “como ‘César atravessou o Rubicão’ poderia, sob quaisquer condições, ter sido
falso se cruzar o Rubicão é uma parte essencial do que é ser César” (idem, p. 114). Em
vez de usar o infinito para definir o significado da contingência, conclui Mates, Leibniz
teria feito melhor se distinguisse verdades contingentes e necessárias opondo proposições
essenciais a proposições existenciais.
Em uma resenha do livro de Mates, também ela publicada na revista Mind7, as
divergências de Adams relativamente à interpretação de Mates da teoria da contingência
de Leibniz são formuladas principalmente a partir de fundamentos textuais. Ele menciona
a seção 13 do Discurso de Metafísica (G IV, 437s.) e uma passagem das Generales
Inquisitionis de Analysi Notionum et Veritatum, um texto publicado pela primeira vez por
Couturat (C 376f.) na mesma edição de 1903 das obras de Leibniz mencionada acima.
Nesse último texto, Leibniz caracteriza, respectivamente, as sentenças “César cruzou o
Rubicão” e “Pedro nega [Jesus]” não através do recurso à propriedade de elas serem
instâncias de proposições existenciais, mas antes à propriedade que os conceitos de César
e de Pedro têm de ser completos, envolvendo em si infinitos predicados. Adams termina
sua resenha com as seguintes palavras:
Esses são textos nos quais Leibniz está trabalhando arduamente sobre o
problema da contingência e o explica de um modo que parece implicar
que “César cruzou o Rubicão” e “Pedro nega” ainda seriam

7
“Review of The Philosophy of Leibniz. Metaphysics and Language” (ADAMS, 1988, p. 299-302).
4

contingentes se elas fossem construídas como proposições essenciais,


uma vez que a contingência não está enraizada na existência do sujeito,
mas na conexão do sujeito com o predicado. Se nossa questão for em
que Leibniz acreditava, tais textos não podem ter menos importância
(em minha opinião) do que aqueles nos quais nos quais ele parece muito
casualmente tratar “existencial” como equivalente a “contingente”
(e.g., C 392) (idem, p. 302).

Seis anos depois, em seu livro Leibniz. Determinist, Theist, Idealist, Adams voltou
suas críticas contra a interpretação de Mates da teoria da contingência de Leibniz8, mas
desta vez seus argumentos são mais robustos do que os argumentos textuais que ele
apresentara alguns anos antes. Segundo esses novos argumentos, propriedades
epistêmicas são meras consequências das propriedades lógicas que definem a
contingência, mais do que seus elementos essenciais (idem, p. 29). A exclusão da
epistemologia em favor da lógica não impede Adams de contextualizar a teoria da
contingência de Leibniz em uma estrutura mais ampla, procurando entender por que o
aspecto epistêmico teve de ser introduzido. Sem esse procedimento de inclusão, como ele
antecipa na Introdução de seu livro, não poderíamos evitar a “suspeita de que
absolutamente nenhuma verdade pode ser contingente para Leibniz”:
Essas questões, e outras conectadas com elas, formam o assunto da
Parte I do livro. Um tema que emerge do meu argumento aí (um tema
afinado com muito dos mais recentes estudos acadêmicos sobre
Leibniz) é que as teses de Leibniz sobre esses tópicos são menos
dominadas por suas doutrinas lógicas do que era pensado por Bertrand
Russell e Louis Couturat, os mais influentes estudiosos de Leibniz na
primeira parte de nosso século. A visão de Leibniz dos problemas era
moldada em grande medida por sua teologia, e seu uso das doutrinas
lógicas ao lidar com eles não pode ser entendido separadamente de tais
concepções metafísicas tal como a da forma substancial (idem, p. 4).

É porque a lógica é uma ferramenta para resolver problemas teológicos e metafísicos que
Leibniz tinha de definir a contingência por meio da teoria analítica da verdade9. Segundo
Adams, a respeito das duas propriedades lógicas tradicionalmente atribuídas a verdades

8
Adams remete expressamente seus leitores para sua resenha do livro de Mates mencionada acima: “A
distinção entre proposições existenciais e essenciais desempenha uma função central na interpretação
oferecida por Benson Mates em seu Philosophy of Leibniz. Eu retruquei aos argumentos de Mates em uma
resenha de seu livro em Mind 97 (1988): 299-302. A distinção trata, primeiramente, sobre se a existência
atual entra ou não entra nas condições de verdade das proposições categóricas, e não creio que Leibniz a
usou para formular uma teoria da contingência, embora ela de fato ocorra em seus escritos” (ADAMS,
1994, p. 45, nota 71).
9
“Verdades contingentes são tão contingentes para Deus como o são para nós, e Deus não pode mais
demonstrá-las do que nós o podemos; pois nem mesmo Deus pode ‘ver o fim da análise, uma vez que não
há fim’ (FC 182,184/L 265f.)” (idem, p. 28).
5

necessárias – a propriedade de “ser verdadeiro puramente em virtude das relações de


conceitos” e a propriedade de “ser logicamente demonstrável” –, Leibniz sustentou
apenas a segunda. Em outras palavras, Leibniz, seguindo Adams, acreditava que a
propriedade “não implicar uma contradição” é a propriedade definitória de toda prova
demonstrativa. Ele conclui sua defesa da consistência interna de Leibniz contra Russell
(e Mates)10 da seguinte forma:
Quando Russell reprovou a concepção da análise infinita da
contingência por no máximo produzir verdades que apenas parecem ser
contingentes, ele estava explicita e erroneamente assumindo que tudo o
que é falso puramente em virtude das relações de conceitos deve ser
autocontraditório para Leibniz (idem, ibidem).

Apesar do fato de defenderem visões opostas sobre a avaliação da teoria da


contingência leibniziana, tanto Mates quanto Adams – tomados aqui como representantes
de duas posições opostas e generalizadas na história recente de comentários sobre a teoria
da contingência de Leibniz – aceitaram que a leitura epistêmica da teoria de Leibniz é um
erro a ser evitado. A divergência entre eles reside na questão sobre se Leibniz se
comprometeu com esse mal-entendido ou não. Mesmo quando, como ocorreu no caso de
Adams, os intérpretes defenderam a teoria leibniziana contra as acusações de
inconsistência ou de confusão, eles geralmente fizeram isso argumentando que o próprio
Leibniz pretendia expressar os fundamentos da contingência em termos lógicos (ou
lógico-metafísicos), ao invés de apresentá-los em termos epistemológicos.
Uma das raízes da opinião corrente segundo a qual o viés epistemológico deve ser
a todo custo evitado nas interpretações da metafísica leibniziana é provavelmente uma
crítica mais geral contra as interpretações “psicologistas” da lógica – e não devemos nos
esquecer de que Russell está na origem desse tipo de atitude crítica, a qual dominou boa
parte da filosofia da lógica durante o século XX. Apesar de ser constatada uma tendência
recente de superar esse tipo de crítica contra as abordagens psicológicas da lógica através
de sua integração em uma discussão mais geral sobre as virtudes do naturalismo
filosófico, a perspectiva negativa das assim chamadas “contaminações” que ameaçam a
lógica persiste (talvez como um resquício inconsciente) no mundo acadêmico11. Qualquer

10
Adams concorda com as críticas de Russell apenas na medida em que ele avalia que elas expressam a
visão correta que se deve tomar ao se definir a necessidade, mas não na medida em que se pretendem uma
refutação interna das teses de Leibniz: “a concepção da necessidade pela demonstrabilidade é
fundamentalmente equivocada”, ele diz, “ainda que eu não endosse exatamente tampouco uma concepção
de necessidade como verdade conceitual” (idem, p. 29).
11
Uma visão geral desse tópico pode ser encontrada no verbete ‘Psychologism’ da Stanford Encyclopedia
of Philosophy. Na introdução desse verbete, uma definição ampla do termo “psicologismo” é dada nos
6

que seja a explicação para essa atitude, poder-se-ia duvidar se faz sentido interpretar um
filósofo do século XVII como Leibniz a partir dela, uma vez que isso levaria ao risco de
inacuidade histórica que ronda esse tipo de projeção. De fato, projetar, nossa atual divisão
de disciplinas sobre uma época na qual a filosofia era pensada como um campo do
conhecimento fundamentalmente unificado ao restante das demais ciências parece ser
anacrônico. O caso de Leibniz é ainda mais problemático, já que sua concepção peculiar
de filosofia implica uma espécie de comunicação interna de todas as suas subdivisões e
sua inter-expressão em um corpo doutrinal único: lógica, psicologia e metafísica são
apenas capítulos particulares de um sistema filosófico único e unificado. É o possível
anacronismo envolvido nas críticas contra o psicologismo, concisamente resumido acima,
que será explorado neste texto. Para restringir essa análise a um conjunto manejável de
textos, daremos ênfase à Monadologia e aos Princípios da natureza e da graça, baseados
na razão, ainda que as conclusões retiradas desse exame possam ser estendidas a outras
obras.
Veremos que é possível defender uma interpretação epistemológica da teoria da
contingência de Leibniz, pelo menos na medida em que mostraremos que ela faz parte do
sentido da afirmação de que o mundo é contingente. Ou seja, ainda que ela não explique
a contingência em todos os seus aspectos (ela não explica, sobretudo, a contingência dos
atos livres de Deus12), a interpretação epistemológica da contingência indica que há uma
equivalência conceitual entre a contingência do mundo e o fato de que o mundo se
exprime como fenômeno, ou seja, como uma aparência. Devemos notar que a observação
crítica de Russell segundo a qual, em uma análise infinita, qualquer proposição contrária
a uma proposição contingente alegadamente verdadeira só parecerá13 não ser
contraditória teria de lidar com o fato de que o mundo fenomênico é precisamente, para
Leibniz, uma aparência.
Como Adams já mostrou de forma convincente, há uma teoria sólida e coerente,
formada por Leibniz ao longo dos últimos trinta anos de sua vida, segundo a qual
fenomenalismo e idealismo não devem ser entendidos como um equivalente do famoso

seguintes termos: “Muitos autores usam o termo ‘psicologismo’ para o que eles percebem como o erro de
identificar entidades não-psicológicas com entidades psicológicas. Por exemplo, filósofos que pensam que
leis lógicas não são leis psicológicas veriam como uma forma de psicologismo identificá-las”. Cf. KUSCH,
2015.
12
Voltaremos à contingência dos atos divinos mais adiante.
13
Como vimos acima, a formulação de Russell (“onde a análise infinita, a qual somente Deus pode realizar,
é requerida para exibir a contradição, o oposto parecerá ser não contraditório” (RUSSELL, 1903, p. 185))
não usa o verbo aparecer (“to appear”), mas o verbo parecer (“to seem”), mas assume aqui que, nesse
contexto, eles são sinônimos.
7

dito de Berkeley de que “esse est percipi”. Seguindo Adams, Leibniz entende a palavra
“fenômenos” como significando os “objetos intencionais de percepção, ao invés das
próprias percepções como estados psicológicos” (ADAMS, 1994, p. 220). Ainda que essa
passagem possa ser lida ela mesma como outra instância da resistência mencionada acima
contra o “psicologismo”, ela propõe uma maneira clara e elegante de tornar compatíveis
um conjunto de teses de Leibniz que são usualmente tomadas como incongruentes – por
exemplo, que o mundo corporal é por natureza fenomênico; ainda assim, que existem
substâncias corporais; que os corpos são agregados de substâncias imateriais simples; que
os fenômenos são objetos tanto da sensação quanto do intelecto puro14. Para os nossos
propósitos aqui, tomar os fenômenos como o conteúdo objetivo das percepções, tal como
propõe Adams, nos permitirá entender por que não seria uma objeção contra a teoria da
contingência de Leibniz dizer, como fez Russell, que ela poderia provar apenas uma
aparência de contingência. O que a crítica de Russell afirma é que a negação de
proposições contingentes verdadeiras é realmente contraditória, mesmo que
ilusoriamente pareça não ser. Contra a crítica de Russell, é preciso considerar que a
conjunção de proposições que descreve o mundo fenomênico de fato não representa nada
mais do que uma aparência, mas que ela não é ilusória. Esta resposta às críticas de Russell
parece ser, à primeira vista, apenas um jogo de palavras, mas implica mais do que apenas
isso, como veremos em seguida.

A realidade dos corpos é a realidade dos fenômenos


Há duas formas distintas de avaliar, em termos leibnizianos, a tese segundo a qual
a contingência das coisas mundanas se explica pelo fato de que um conjunto infinito de
substâncias simples compõe o mundo: 1- a primeira se refere ao conhecimento finito e 2-
a segunda, ao conhecimento divino infinito. Enquanto uma descrição do conhecimento
finito explica a contingência ao apelar para o mundo fenomenal, a consideração (do que
podemos deduzir a priori sobre) o conhecimento divino explica a contingência das
próprias mônadas, isto é, do mundo tal como ele é em si mesmo. Examinemos cada uma
dessas descrições, começando pela que define o mundo em termos do conhecimento
finito, isto é, das percepções monádicas.

14
Adams dá como exemplos de “phenomena” mencionados por Leibniz no período de 1671-72 “a luz das
estrelas (especialmente do sol) e a solidez e resistência da terra” (A VI, ii, 329) e o fato que “a luz do dia é
movida diariamente em torno do globo da terra” (A VI, iii, 69).
8

1- É verdade que o que aparece (o fenômeno) é o produto da ignorância e da


limitação das mentes finitas, mas essa ignorância não é uma pura ilusão ou erro: é antes
a maneira de acessar um tipo de realidade que apenas mentes finitas podem perceber –
quer dizer, que só elas podem constituir como realidade, visto que o ser dos fenômenos
implica ser percebido por mentes finitas. Essa realidade, o mundo corpóreo, é o conjunto
infinito de mônadas confusamente percebidas pela totalidade infinita das mentes finitas.
Ao contrário do que propõe Berkeley, para Leibniz os corpos não se reduzem ao não-ser:
eles existem, no sentido próprio da “existência” do mundo. Na medida em que o mundo
corpóreo é real e existente, o mesmo ocorre com sua contingência. A contingência é um
fenômeno, mas os fenômenos são reais (com exceção das ilusões, dos sonhos e das
alucinações). Portanto, mesmo que a sucessão de fenômenos fosse totalmente
determinada do ponto de vista do conhecimento das coisas em si (ou seja, do ponto de
vista do conhecimento de Deus), eles seriam necessariamente indeterminados e
contingentes da perspectiva da percepção finita. Em outras palavras, a essência do mundo
fenomenal envolve a aparência de ser contingente.
É importante notar, ademais, que o fato de as mônadas serem a base última dos
corpos não implica que sua independência ontológica signifique que elas possam existir
sem corpos (e sem um corpo próprio a cada uma delas). Ao contrário, as mônadas
necessariamente expressam-se como corpos, uma vez que nada mais são do que um
princípio ativo de unificação das percepções. Em outros termos, todo mundo possível é
um mundo espaço-temporal15. A consequência desta última tese é a indiscernibilidade
entre ontologia e epistemologia quanto à existência do mundo fenomenal: os corpos nada
mais são do que fenômenos para as mônadas. O mundo fenomenal objetivo, composto
por um número infinito de mônadas, cada uma delas composta por um número infinito
de modificações internas (percepções e apetites) não é nada além do que o núcleo comum
dessas percepções parciais, ou seja, o objeto intencional resultante da interseção de
infinitas percepções coerentes entre si, mas distinto de cada uma delas tomada em
particular (Monadologia, § 62). Ou ainda: o mundo fenomênico é o vetor que nasce da
conjugação harmônica de todas as perspectivas parciais, mas não é, ele mesmo, uma outra

15
Cf. RUTHERFORD, 1995, p. 187: “Um grupo de susbtâncias é compossível somente se tais substâncias
puderem ser concebidas como coexistindo no mesmo mundo, quer dizer, somente se elas concordam em
suas respectivas expressões do universo”. Ver também p. 198: espaço e tempo “determinam a ordem de
conexão de todos os mundos possíveis” (sobre esse ponto, cf. FUTCH, 2008, p. 64). Se Deus tivesse dado
a cada substância seus próprios fenômenos, independentes dos das outras substâncias, haveria tantos
mundos sem conexão quanto substâncias (G IV.519/L 493).
9

perspectiva suplementar – em particular, ele não é a perspectiva de Deus sobre o mundo,


pois Deus não vê o mundo exclusivamente a partir de nenhuma perspectiva particular,
uma vez que Ele não tem corpo e, portanto, não é uma mônada. Daí se segue que, se uma
das propriedades essenciais do que o mundo é é a propriedade de ser conhecido ou
percebido através de uma infinitude de percepções, então o fato de que o mundo nos
aparece como contingente (não podendo, por princípio – graças à infinitude de
percepções –, ser reduzido a uma série dedutiva finita, isto é, a conexões necessárias) é
idêntico ao fato de o mundo ser contingente.
2- Tendo examinado a definição do mundo fenomênico a partir das percepções
das coisas finitas, vejamos agora como o mundo inteligível é definido a partir do intelecto
divino infinito. O conhecimento claro e distinto que Deus tem das mônadas não as
representa como seres necessários, uma vez que seus conceitos são compreendidos sub
species possibilitatis pelo intelecto divino: mesmo que Deus encontre todos os conceitos
de substâncias individuais já completamente determinados em Seu intelecto, Sua vontade
livre pode trazer à existência qualquer um dos infinitos mundos possíveis (isto é, qualquer
um dos infinitos subconjuntos de objetos compossíveis) nos quais essas substâncias estão
contidas elas mesmas como possibilidades16. De acordo com Leibniz, o mundo inteligível
não é uma aparência para Deus: pelo contrário, ele é pensado tal como é em si mesmo,
isto é, como um agregado infinito de mônadas, cada uma delas modificada por um número
infinito de percepções e afetos17. No intelecto infinito de Deus, os conceitos completos

16
Esta é, resumidamente, a solução de Mates para o problema da contingência em Leibniz. Para Adams,
que diverge nesse ponto de Mates, nem todos os conceitos na mente de Deus representam propriedades
necessárias (isto é, necessárias no interior de cada mundo possível), uma vez que Deus concebe a conexão
entre o sujeito e o predicado de algumas proposições essenciais como contingentes (ADAMS, 1988, p.
302).
17
Seria correto afirmar que Deus conhece o mundo como o conjunto infinito das coisas-em-si-mesmas e
também como fenômenos, ainda que Deus não tenha um corpo? Em outras palavras, Deus conhece as coisas
como fenômenos espaço-temporais ou Suas ideias representam apenas a estrutura básica da realidade, isto
é, os fatos metafísicos que são o fundamento das aparências? Poderia parecer que a segunda opção é a
correta, uma vez que todas as ideias no intelecto de Deus são claras e distintas, e as ideias sensíveis que
formam os fenômenos são confusas (e, algumas vezes, obscuras e confusas). Ora a obscuridade e a confusão
são o resultado da finitude das mentes dos entes criados, justamente devido ao fato de que elas não podem
abarcar a infinitude; Deus é infinito; logo, Deus não tem ideias obscuras e confusas. Entretanto, se Deus
não percebe fenômenos, isso parece implicar uma restrição em Sua onipotência; em particular, uma vez
que corpos são fenômenos, Deus não conheceria absolutamente os corpos. Portanto, parece que Leibniz
deveria defender a tese da natureza dupla do intelecto de Deus: mesmo que todas as ideias no intelecto de
Deus sejam claras e distintas, adequadas e intuitivas, o conhecimento divino parece dever englobar em si
as percepções obscuras (bem como as paixões e demais afecções parciais) que constituem o mundo
fenomenal, ainda que elas estejam, no entanto, integradas em um sistema total e infinito de percepções
intuitivas. Isso significa que todas as nossas percepções, até mesmo as percepções obscuras e confusas,
sendo percepções representadas por Deus, são verdadeiras. Daí se segue também que toda percepção pode
ser explicada – tem uma causa ou razão para sua existência –, ou seja, nenhuma delas é um simples fato
bruto. Sobre esses pontos, cf. Discurso de metafísica, Artigo 14: “Pois Deus, girando [tournant] por assim
10

de todas as mônadas são representados de forma clara, distinta, adequada e intuitiva, o


que significa que o fato de ser pensados não acrescenta nada à caracterização de sua
existência. Em suma, Deus não é uma mônada e as coisas em si não são – por definição
– fenômenos. Portanto, a interpretação epistemológica da contingência delineada acima
não parece se aplicar ao conhecimento infinito de Deus. Poder-se-ia concluir daí que essa
restrição do escopo da nossa interpretação a refuta, uma vez que ela pretende ser
perfeitamente universal.
Esta conclusão não é, porém, ao contrário do que pareceria inicialmente, correta,
pois a interpretação epistemológica também se aplica ao conhecimento divino. Ainda que,
para Leibniz, o mundo não seja apenas um fenômeno, ele é também necessariamente um
fenômeno (ou, para ser mais preciso, um conjunto infinito de fenômenos). Deus não
apenas prevê a ocorrência dessa expressão fenomenal como a percorre com sua visão
intuitiva, “observando todas as faces do mundo de todas as maneiras possíveis” (Discurso
de metafísica, Artigo 14).
Deus poderia ter criado um mundo distinto do mundo atual – por exemplo, Ele
poderia ter criado um mundo finito. Mas essa potência encerra em si duas especificações.
Por um lado, faz parte analiticamente do conceito de Deus que Ele escolherá o melhor
dos mundos possíveis, ou seja, este mundo atual, o qual, por ser escolhido para existir
obedecendo ao Princípio da Plenitude ou da Perfeição, é um mundo infinito. Por outro
lado, essa escolha não é necessária, pois ela não é regida unicamente pelo Princípio de
Não-Contradição18. A infinitude do mundo está, pois, conceitualmente ligada à
contingência. O fato de que tal infinitude se exprime fenomenicamente como aparência
sensível também é, como vimos acima, uma marca do conceito de contingência: porque
Deus escolhe de forma contingente qual mundo criar, então Ele escolhe um mundo que
aparece, para as mônadas, como contingente (isto é, lhes aparece de forma confusa). Essa
aparência fenomênica não define o conceito de contingência tomado em geral, mas é uma
propriedade que, decorrendo desse conceito, faz parte dele – é um próprio que, não
constituindo a essência das coisas contingentes, está, no entanto, sempre presente quando

dizer de todos os lados e de todas as maneiras o sistema geral dos fenômenos que ele acha bom produzir
para manifestar sua gloria e observando [regardant] todas as faces do mundo de todas as maneiras possíveis,
porque não há relação que escape a sua onisciência, o resultado de cada visão [vue] do universo, como
observado de um certo lugar [endroit], é uma substância que exprime o universo conformemente a essa
visão, se Deus acha bom tornar seu pensamento efetivo e produzir essa substância. E como a visão de Deus
é sempre verdadeira, nossas percepções também o são, mas são nossos juízos que provêm de nós e que nos
enganam” (A VI, 4 B, 1549).
18
Cf. supra nota 8: como mostra Adams, nem tudo o que é falso “puramente em virtude das relações de
conceitos deve ser autocontraditório para Leibniz”.
11

há contingência mundana19. Nesse sentido, ele está, pois, analiticamente contido no


conceito de escolha livre de Deus e, portanto, é uma propriedade necessária (ainda que
não essencial) da contingência tomada em geral.
Tendo examinado o modo como a infinitude do mundo aparece 1- para as mentes
finitas e 2- para o intelecto infinito de Deus, vejamos agora como esses dois tipos de
conhecimento se integram em uma interpretação epistêmica unificada da contingência.
Segundo Leibniz, não existem dois mundos, um “fenomenal” e um “numenal”: existe
apenas um mundo, o mundo atual em que vivemos. Na verdade, Leibniz, como Kant
depois dele, usa a palavra “fenômeno” não no sentido (na época) tradicional de “ilusão”,
mas sim para designar o modo como as coisas em si se expressam ou se manifestam à
sensibilidade dos percipientes finitos20. Mas, em contraste com Kant, Leibniz crê ser
possível demonstrar que todas as coisas-em-si mesmas que são finitas se manifestam
necessariamente como fenômenos – e, reciprocamente, que todas as coisas-em-si são
necessariamente percipientes para os quais aparecem os fenômenos. Além disso, a
totalidade das infinitas mônadas existentes em um determinado mundo é expressa em
toda e cada mônada deste mundo. Finalmente, a idealidade do espaço e do tempo tem ela
mesma um fundamento real, a saber, a imensidade de Deus21. Portanto, para Leibniz, não
apenas não existem dois mundos distintos (isso tampouco ocorre na assim chamada teoria
dos dois mundos de Kant, exposta na Dissertação de 1770 (OBERST, 2015)), mas todas
as coisas que compõem o único mundo real que efetivamente existe são simultaneamente
sujeitos e objetos de percepções.
Porque os corpos são reais e porque os fenômenos não são, na sua maior parte,
ilusórios, daí decorre que eles são objetos do conhecimento do próprio Deus. Ao remeter
os fenômenos a seus fundamentos monádicos, essa remissão não pode ser caracterizada

19
A distinção entre essência e próprios, comum no século XVII, é claramente exposta por Spinoza no
Tratado da emenda do intelecto (G II, 95).
20
No começo da “Dialética Transcendental” da Crítica da razão pura, Kant despende algum tempo para
explicar a distinção entre fenômenos e ilusões: “Muito menos podem aparência [Erscheinung] e ilusão
[Schein] ser tomados como idênticos. De fato, verdade ou ilusão não estão no objeto, na medida em que é
intuído, mas somente no juízo feito sobre ele, na medida em que é pensado. Portanto, pode-se corretamente
dizer que os sentidos não erram …” (CPR A 293, 294/B 350). Deve-se lembrar, no entanto, que Kant
acreditava – equivocadamente, a nosso ver – que sua posição era distinta da de Leibniz, o qual, de acordo
com ele, manteve a identificação tradicional entre aparência e erro (CPR A 44/B 62).
21
Ver sobre esse último ponto os Novos ensaios II, 16, § 4: “Si Dieu estoit étendu, il auroit des parties.
Mais la durée n’en donne qu’à ses operations. Cependant par rapport à l’espace il faut luy attribuer
l’immensité, qui donne aussi des parties et de l’ordre aux operations immediates de Dieu. Il est la source
des possibilités comme des existences, des unes par son essence, des autres par sa volonté. Ainsi l’espace
comme le temps n’ont leur realité que de luy, et il peut remplir le vuide quand bon luy semble. C’est ainsi
qu’il est par tout à cet egard” (A VI, 6, 155).
12

como uma eliminação, no sentido em que certas filosofias eliminativistas procedem à


denúncia de uma ilusão reduzindo-a ao que realmente existe. É isso o que Adams comenta
ao tratar dessa tese sobre a distinção entre fenômenos reais e ilusórios:
Fenômenos são reais, em um sentido fraco, se e somente se eles entram
em um sistema unificado cientificamente adequado de fenômenos
harmoniosos de todos os percipientes. Aqueles fenômenos, e somente
aqueles fenômenos, que são reais nesse sentido mais fraco são também
reais em um sentido mais amplo na medida em que existem mônadas
reais que são expressas apropriadamente por corpos orgânicos
pertencentes ao sistema de fenômenos que é ao menos real no sentido
mais fraco (ADAMS, 1994, p. 261).

Se o mundo fosse composto por um número finito de fenômenos, isto é, por um


número finito de mônadas – não importa quão grande seja esse número –, não seria
possível confundir os significados de “ser contingente” e “parecer ser contingente”. Nesse
caso, poderia haver, por princípio, uma maneira de reduzir (ou seja, de eliminar) o mundo
fenomenal em favor do mundo numenal, pois seria possível (por princípio) percorrer
todos os fenômenos para eliminar a aparência de contingência. Uma vez que o mundo
contém um número infinito de mônadas e que as aparências não devem ser entendidas
como ilusões, mas sim como a forma pela qual o conjunto infinito de coisas é percebido
pelas mônadas, devemos concluir que o fato de o mundo parecer contingente às mentes
finitas é uma parte essencial da definição mesma do mundo.
Todas as teses listadas no parágrafo acima correspondem, segundo Leibniz, a fatos
metafísicos que constituem a própria essência do mundo conhecido por Deus. Portanto,
o conhecimento que Deus tem das coisas em si mesmas não é uma refutação da
interpretação epistemológica da contingência: todos os mundos possíveis são mundos
fenomenais, espaço-temporais, e a visão que Deus tem dos fenômenos os compreende
como comportando uma aparência de contingência para as mentes finitas. O fato de o
mundo aparecer como uma realidade contingente para as mônadas criadas não é
separável do fato de ele existir de modo contingente. Em outras palavras, a contingência
é uma aparência, mas o mundo também é – embora o mundo também seja algo mais do
que uma aparência.
Se essa defesa da interpretação epistêmica da contingência for aceita, seguem-se
dela algumas consequências. Detenhamo-nos em apenas uma delas, a que radica a
contingência na matéria.

Fenômenos e materia prima


13

À primeira vista, a filosofia de Leibniz estabelece uma ruptura radical com a


tradição escolástica e aristotélica, na medida em que, para Aristóteles, a contingência está
associada à potencialidade (dunamis), a qual, por sua vez, tem sua raiz metafísica na
matéria (o que é o tema central do Livro Θ da Metafísica)22, as explicações que ela
promove devem se restringir às ideias das mônadas contidas no intelecto infinito de Deus,
as quais são representadas de maneira clara e distinta. A matéria, diz aí Aristóteles, “existe
em um estado potencial, simplesmente porque ela pode chegar a sua forma; e quando ela
existe atualmente, então ela é em sua forma” (1050a9-17). A forma é, portanto, o
princípio ontológico e gnosiológico da realidade; por contraposição, a matéria desprovida
de qualquer forma é o substrato último de toda substância, substrato esse em si mesmo
indeterminado e indefinível, reduzindo a uma pura potência – a isso se chama de matéria
prima.
Contrariamente a essa impressão inicial, a interpretação epistêmica da
contingência proposta acima mostra que Leibniz aproxima-se bastante da teoria
aristotélica, justamente ao conjugar a contingência à matéria, embora, ao mesmo tempo,
modifique profundamente seu sentido. De fato, notemos que, para Leibniz (assim como
para Aristóteles), a matéria prima é uma abstração que não existe; o que existe é sempre
uma matéria dotada de alguma atividade. Lemos, nos Novos ensaios, que
As potências primitivas constituem as próprias substâncias, e as
potências derivativas ou, se se preferir, as faculdades são apenas modos
de ser que se deve derivar das substâncias, e não se as deriva da matéria
na medida em que ela é apenas máquina, isto é, na medida em que só
se considera por abstração o Ser incompleto da matéria primeira, ou o
passivo inteiramente puro (A VI, 6, 379).

Dito isso, deve-se notar também que, no § 8 dos Princípios da natureza e da graça
fundados na razão, Leibniz define a expressão “coisas contingentes” por meio do atributo
corpóreo. A definição de contingência neste texto é a seguinte (citamos o texto no original
em francês, com a tradução na nota, pois a fraseologia é importante neste caso):
Or, cette Raison suffisante de l’Existence de l’univers, ne se sauroit trouver
dans la suite des choses contingentes; c’est-à-dire des corps, et de leurs
representations dans les Ames23: parce que la Matière étant indifférente en
elle-même au mouvement et au repos, et à un mouvement tel ou autre; on n’y
sauroit trouver la Raison du Mouvement, et encore moins d’un tel mouvement.
Et quoique le present mouvement, qui est dans la Matiere, vienne du
precedent, et celui-ci encore d’un precedent; on n’en est pas plus avancé,

22
Ver também Aristóteles, Física II.3.195b16-21.
23
Variante (do manuscrito da Bibliothèque Nationale de la France): “et des representations de ces mêmes
corps dans les Ames” (LEIBNIZ, 1986, p. 45-46).
14

quand on iroit aussi loin qu’on voudroit: ˃car˂ il reste toûjours la même
question24.

Porque cada coisa contingente envolve outras coisas contingentes, e estas


envolvem ainda outras, e assim por diante até o infinito, a expressão “não se avançou
mais” [on n’en est pas plus avance] mostra que cada passo que foi dado na explicação
ainda não é nada diante da série infinita que resta, a qual não parece se distinguir, assim,
de meros fatos brutos sem explicação (afinal, uma explicação incompleta parece ser tão
boa quanto nenhuma explicação). Por um lado, do ponto de vista dos raciocínios das
mentes finitas com base no Princípio da Razão Suficiente, tanto os fatos brutos quanto as
séries infinitas apresentam o mesmo estatuto ontológico e epistêmico: eles não dão
nenhuma razão suficiente para uma determinada coisa existir ou para um evento a ocorrer.
Em outras palavras, sob esse aspecto, eles são conhecidos exatamente da mesma maneira
que um dado estado de coisas cuja ocorrência é o objeto da experiência sensível. Por outro
lado, porém, as proposições contingentes não equivalem exatamente a meros fatos brutos,
pois justamente elas obedecem, de uma certa forma, o Princípio da Razão Suficiente. A
contingência é justamente a obscuridade e confusão contidas nas representações do
infinito.
Para nossos propósitos aqui, o aspecto mais interessante do trecho citado acima é
uma outra equivalência (“c’est-à-dire”) feita por Leibniz, aquela que ocorre entre “as
coisas contingentes” e “os corpos e suas representações nas Almas”. A variante dessa
frase, encontrada no manuscrito de Viena25, é ainda mais significativa, uma vez que ela
enfatiza a importância do conceito de corpo na definição de contingência, reduplicando
sua ocorrência na segunda metade da sentença: “coisas contingentes” e “corpos” são
equacionados aí com “as representações desses próprios corpos nas almas” (“des
representations de ces mêmes corps dans les Ames”26). Nesse contexto, os movimentos
na matéria devem ser lidos não apenas como um exemplo entre outros de “coisas
contingentes”, mas como um elemento essencial na própria definição da contingência.
Como já observamos – seguindo as lições de Adams –, o fenomenalismo leibniziano não

24
LEIBNIZ, 1986, p. 45-47. “Ora, essa Razão suficiente da Existência do universo não poderia ser
encontrada na sequência das coisas contingentes, isto é, dos corpos e de suas representações nas Almas:
porque a Matéria sendo indiferente nela mesma ao movimento e ao repouso, e a um tal movimento ou outro,
não se poderia encontrar nela a Razão do Movimento, e ainda menos de um tal movimento. E ainda que o
movimento presente, que está na Matéria, venha do precedente, e esse último por sua vez de um precedente,
não se avançou mais quando se fosse também tão longe quanto se queira: pois permanece sempre a mesma
questão”. Cf. a passagem correspondente na Monadologia, § 37.
25
Cf. acima, nota 23.
26
Os itálicos foram acrescentados por mim.
15

é incompatível com a existência de substâncias corporais e, portanto, com a distinção


entre estados mentais subjetivos e corpos existentes objetivos27; portanto, mesmo que os
corpos sejam fenômenos, eles não são apenas eventos psicológicos na mente de alguém
(ou de todos). Mas, por outro lado, uma vez que os corpos são, para Leibniz, realidades
dependentes da mente, seu estatuto existencial é definido pelo fato28 de que seu ser
consiste em ser percebido (apenas pelos sentidos ou pelos sentidos auxiliados pela razão).
A maior parte dessas percepções é obscura e confusa porque cada mônada percebe não
apenas objetos isolados, mas sim todo o universo de uma só vez. O mundo fenomênico
forma uma totalidade unificada e continuamente densa na qual todo movimento na
matéria está ligado a todas as outras partes da matéria. O princípio ontológico dessa
conjunção íntima de toda a matéria é baseado em sua divisão infinita real29, o que faz com
que seja expresso na mente de cada mônada como uma representação abrangente e
confusa do todo corporal (Monadologia, § 60). Visto do ponto de vista de percepções
obscuras e confusas, é necessário que o mundo apareça necessariamente como
contingente, justamente porque as mônadas que o compõem se exprimem como corpos.
Examinemos a lição de André Robinet em sua edição de 1954 da Monadologia, visto que
ela exibe graficamente as sucessivas etapas de composição dos manuscritos encontrados
em Hanover, Viena e Paris, e as várias hesitações de Leibniz nessas versões são
especialmente significativas no caso presente:
[Ainsi] >Mais< LA RAISON [A PRIORI] SUFFISANTE doit trouver [encor] aussi dans
les vérités contingentes [# > ou de fait < c’est-à-dire dans > la <suite des
[choses] > choses qui se trouvent dans < l’univers de creatures [ou la] où la
resolution en raisons particulières [va à l’infini] pourroit aller à un detail
[infini] >sans bornes< < [# à cause de la varieté [infinie] >immense< des
choses de la Nature et de la division des corps à l’infini30.

27
Ver, por exemplo, De modo distinguendi phænomena realia ab imaginariis (GP VII, 319-322).
28
Ele é contingente porque é um evento que ocorre em uma série infinita de outras percepções.
29
Em um texto sem título nem data (C 16-24), Leibniz afirma que toda proposição na qual a existência e
o tempo, o “aqui e agora”, intervêm implicam a “série total das coisas”. Esse texto foi traduzido para o
francês por Michel Fichant (Cf. LEIBNIZ, 1998, p. 339-349). Uma passagem particular do texto equaciona
claramente as verdades contingentes e as propriedades corporais das substâncias: o conhecimento perfeito
de todas as partes do universo “dépasse toutefois toutes les forces créées, parce qu’il n’y a aucune portion
de matière qui ne soit actuellement subdivisée en d’autres portions, ce qui fait que les parties de n’importe
quell corps sont actuellement infinies” (idem, p. 341-342). Rauzy estima que esse texto deve ter sido escrito
por volta de 1689 (idem, p. 325); Fichant sugere o seguinte título para ele: “Vérités nécessaires et vérités
contingentes”. Ver também Monadologia, § 61.
30
Monadologia, § 36. Tradução: “[Assim] >Mas< A RAZÃO [A PRIORI] SUFICIENTE deve encontrar
[ainda] também nas verdades contingentes [# > ou de fato < isto é, na > a <sequência das [coisas] > coisas
que se encontram no < universo das criaturas [onde a] onde a resolução em razões particulares [vai ao
infinito] poderia ir a um detalhe [infinito] >sem limites< < [# por causa da variedade [infinita] >imensa<
das coisas da Natureza e da divisão dos corpos ao infinito” (LEIBNIZ, 1986, p. 90-91).
16

Seguir as hesitações da escrita de Leibniz é paradoxalmente uma maneira clara de


considerar como ele pretendia igualar a contingência do mundo e seu caráter fenomenal.
Em particular, deve-se notar a indecisão de Leibniz em relação ao lugar certo para colocar
a palavra “infinito”: de um lado, as razões envolvidas nas verdades contingentes são
infinitas e os corpos são divisíveis ao infinito; por outro lado, o vocabulário intencional
ou epistêmico se insinua nas variantes “sem limites” (“sans bornes”) e “imensa”
(“immense”)31.
A posição madura de Leibniz é, pois, que a matéria é a base da contingência – e,
em última análise32, que a matéria prima indeterminada é sua fonte original. É nesse
ponto, justamente, que Leibniz se aproxima da explicação de contingência de
Aristóteles33, mesmo que com reformulações importantes. Segundo Aristóteles, infinito,
vazio e matéria estão eternamente em potência; Leibniz nega a realidade do vazio, mas o
infinito e a matéria são, para ele, coisas reais (no caso da matéria, trata-se, como vimos,
de uma realidade fenomênica). A matéria é de fato a fonte do “ser em potência” para
ambos os pensadores: ela é o princípio passivo que complementa e corresponde ao
princípio ativo (“enteléquia”). , ou seja, é o fundo obscuro que se contrapõe à clareza e
distinção da razão. Para Leibniz, essa passividade original ou resistência ao movimento e
à mudança é o que identificamos como matéria prima ou impenetrabilidade. Em uma
carta a Remond, Leibniz explica que as mônadas “não são forças puras; eles são a base
não apenas das ações, mas da resistência e da passividade, e suas paixões são encontradas
em suas percepções confusas. É nisso que está envolvida a matéria ou o numericamente
infinito34”.
Mas é preciso não esquecer as reformulações que a teoria de Aristóteles sofre
quando assimilada pela de Leibniz. No mundo aristotélico, a contingência emerge de um
fundo indeterminado que é em princípio ininteligível, resistindo a determinações
racionais. Para Leibniz, ao contrário, o mundo é inteiramente determinado no intelecto de
Deus até seus mínimos detalhes – a individuação não é fundada pela matéria, mas pelos

31
Talvez haja um eco nesta passagem das hesitações de Descartes em aplicar a propriedade de “ser infinito”
a outra coisa que não Deus; segundo Descartes, o mundo é percebido por nossas mentes finitas como
“imenso” e “sem limites”, mas não podemos concluir dessa percepção que ele seja realmente infinito. Cf.
Descartes, Princípios da Filosofia I, 27 (AT VIIIA, 15).
32
Talvez não seja desprovido de sentido sugerir que se tome a expressão “em última análise” não apenas
no sentido idiomático que ela tem no português, mas também no sentido técnico de sua acepção leibniziana.
33
Sobre o tópico do “prôton hupokeimenon”, ver, por exemplo, Metafísica v 4 (1014b32 and 1015a7–10),
v 6 (1017a5–6), vii 3 (1029a20–26), viii 4 (1044a23), ix 7 (1049a24–7); Physics i 9 (192a31), ii 1 (193a10
and 193a29).
34
GP III, 636. Apud RUTHERFORD, 1995, p. 247.
17

conceitos completos da mente divina. No entanto, Leibniz sempre recusou o rótulo anti-
aristotélico que outros pensadores modernos reivindicaram para si mesmos. Em seu
debate post-mortem com Locke, no Livro III (“As palavras”), Capítulo 10 (“Do abuso das
palavras”) dos Novos ensaios, ele critica a forte rejeição de Filaleto ao conceito de
Aristóteles de materia prima35. Argumentando que esse conceito ainda pode ser de grande
utilidade na física moderna, Leibniz conclui:
Não desaprovo, pois o que Aristóteles falou sobre a matéria prima, mas
não seria possível se impedir de culpar aqueles que não se detiveram
muito sobre ela e que forjaram quimeras sobre palavras mal-entendidas
desse Filósofo, que talvez tenha também muito dado ocasião algumas
vezes a esses mal-entendidos e galimatias. Mas não se deve exagerar
tanto os defeitos desse autor célebre, porque se sabe que muitas de suas
obras não foram acabadas nem publicadas por ele mesmo (A VI, 6, p.
344-345).

Para entender o que Leibniz aceita da conexão aristotélica entre contingência e


matéria prima, devemos lembrar que, para o primeiro, a matéria é a manifestação
fenomenal de percepções confusas, e não uma realidade separada existindo à parte do
intelecto. O erro de Aristóteles foi não perceber que a matéria é dependente da mente,
tomando sua separação das modificações da mente como uma noção ontológica, ao invés
de epistêmica36, e confundindo obscuridade e confusão com ininteligibilidade tout court.
Como Donald Rutherford mostra, a redução da matéria à mente é a maneira pela qual
Leibniz explica propriedades do mundo fenomênico que, de outra forma, seriam meros
fatos brutos incompreensíveis. “A questão”, diz Rutherford, “é localizar uma
característica da substância que pode explicar (e fornecer uma base na realidade para) o
que percebemos ser o caso no mundo fenomenal”37. Ou seja, é preciso traduzir a
indeterminação ontológica da matéria aristotélica em um tipo de indeterminação
epistêmica das ideias obscuras e confusas, – a qual é ela mesma a base de uma nova

35
Segundo Filaleto, “cette pensée a produit des discours inintelligibles, et des disputes embrouillées sur la
matiere premiere” (A VI, 6, p. 344).
36
Cf. sobre esse ponto VUILLEMIN, 1983, p. 38: “Como o indica a concessiva final, pode-se precisar o
gênero de confusão que se teria insinuado na concepção de Aristóteles: ele teria tomado o incerto pelo
indeterminado e, de uma propriedade subjetiva relativa a nosso conhecimento, teria falaciosamente tirado
uma propriedade objetiva relativa à ordem das coisas”.
37
RUTHERFORD, 1995, p. 248. Rutherford não tinha em mente nessa passagem a propriedade da
contingência, mas antes a resistência à mudança: “A resistência à mudança é uma propriedade da matéria,
manifestada no movimento e na colisão; um fundamento inteligível é encontrado para ela na matéria prima
da mônada, a qual dá conta da limitação intrínseca de sua própria atividade” (idem, ibidem). Não é preciso
dizer que a contingência da vontade de Deus é fundada na matéria, uma vez que Deus é incorporal: a matéria
explica somente a contingência dos mundos fenomenais e não é nem ao menos suficiente para explicar as
escolhas livres e contingentes das mônadas.
18

ontologia, na medida em que o ser dos corpos é – mas não se reduz a – ser percebido. No
texto de 1695 intitulado Specimen Dynamicum, Leibniz explica em que sentido se dá uma
tradução do vocabulário aristotélico-tomista da matéria prima para seu próprio sistema de
forças espirituais: “E, de fato, a força primitiva de ser agido [patiendi] ou de resistir
constitui a própria coisa que é chamada de matéria prima nas Escolas, se corretamente
interpretada” ( GM VI,236/L 437). Ou seja, a matéria prima entendida como pura
potencialidade é para Leibniz (tal como para Aristóteles, embora por razões diversas) uma
abstração que não pode existir na realidade (é uma fantasia, assim como a ideia quimérica
de tabula rasa38): há sempre alguma modificação ou atividade imperceptível na matéria,
uma vez que 1- a noção mesma de uma pura passividade não tem sentido, e 2- a matéria
existe nas mentes que a percebem, as quais, por sua vez, só existem na medida em que
agem. Porque a própria contingência é essencialmente relacionada às percepções
confusas de seres finitos, essa mesma confusão, radicada na matéria prima, faz parte
essencial da noção de contingência.
Isso não torna os corpos, porém, meras ilusões: as percepções confusas,
consideradas nelas mesmas, são todas verdadeiras, na medida em que foram criadas por
Deus. Como lemos nos Ensaios de teodiceia,
Deus é a primeira razão das coisas: pois aquelas que são limitadas,
como tudo o que vemos e experimentamos, são contingentes e não têm
nada nelas que torne sua existência necessária, sendo manifesto que o
tempo, o espaço e a matéria, unidos e uniformes em si mesmos e
indiferentes a tudo, podiam receber movimentos e figuras
completamente diferentes [de tout autres mouvements et figures], e em
uma outra ordem (A VI, 107).

Os fenômenos dependem de substâncias que os produzem e, por isso, são seus


suportes de inerência. Porque não existe em e por si mesmo, o mundo fenomenal é
contingente. Daí se entende também em que sentido a análise infinita das mônadas,
consideradas como coisas-em-si-mesmas, e não apenas em sua expressão fenomênica,
está ligada à definição de contingência. No nível do conhecimento finito do mundo
fenomênico, como vimos, a reflexão filosófica sobre o mundo mostra que é sua infinitude
que permite a fundamentação da contingência, uma vez que só ela mostra que é por
princípio impossível, para uma mente finita, percorrer toda a série dos fenômenos. No
nível do conhecimento divino infinito, isto é, do mundo inteligível, ele é dito contingente

38
Cf. Novos ensaios I, 1, § 2 : “Les choses uniformes et qui ne re [n]ferment aucune varieté, ne sont jamais
que des abstractions, comme le temps, l’espace et les autres Estres des mathematiques purs” (A VI, 6, 109-
110).
19

porque poderia não ter sido criado por Deus. Mas, além disso, é necessário que o mundo
inteligível seja infinito, porque é só em sua infinitude que se pode encontrar o fundamento
da infinitude dos fenômenos. O mundo inteligível é contingente nos dois sentidos
requeridos por uma teoria da liberdade: ele é, digamos assim, “externamente” contingente
porque poderia não ter sido criado e é, também, “internamente” contingente, porque não
é possível eliminar a contingência do mundo fenomênico sem eliminar, ao mesmo tempo,
a infinitude do mundo inteligível.
Porque mundo fenomênico e mundo inteligível são um só e mesmo mundo, suas
respectivas determinações são mutuamente implicadas. É assim que, na sequência do
trecho citado acima dos Ensaios de teodiceia, é apresentada uma caracterização da
contingência segundo a qual o espaço e o tempo são os mesmos em todos os mundos
possíveis, a única coisa variante neles sendo os objetos que aí existem:
Chamo de mundo toda a sequência e toda a coleção de todas as coisas
existentes, a fim de que não se diga que muitos mundos pudessem
existir em diferentes tempos e diferentes lugares. Pois dever-se-ia
contá-los todos em conjunto por um mundo ou, se preferirdes, por um
universo. E quando se preenchesse todos os tempos e todos os lugares,
permanece sempre verdade que se poderia tê-los preenchido de uma
infinidade de maneiras, e que há uma infinidade de mundos possíveis
dos quais é preciso que Deus tenha escolhido o melhor...” (G VI, 107).

Ou seja, a própria existência dos infinitos mundos possíveis e, portanto, a


contingência envolvida na escolha do melhor dentre eles, implicam a contingência
envolvida na infinitude do mundo fenomênico e, por conseguinte, também do mundo
numênico.

Conclusão: a crítica de Cassirer a Russell e a Couturat


No mesmo artigo em que faz Russell faz a avaliação entusiástica do trabalho de
Couturat – ele é tão bom, diz Russell em suas observações finais, que é como se tivesse
sido escrito pelo próprio Leibniz39 – contrasta com sua abordagem do livro recém-
publicado de Cassirer: “Ao contrário de M. Couturat, o presente autor ainda não
compreendeu a descoberta muito moderna da importância da Lógica Simbólica [...] O
mérito muito raro de não imputar a própria filosofia ao autor que se está discutindo
pertence à obra de M. Couturat, mas não, creio eu, à do Dr. Cassirer” (RUSSELL, 1903,
p. 191). Segundo Russell, Cassirer falhou, entre outras coisas, em perceber que a

39
“… pode-se quase dizer que a obra constitui um novo livro de Leibniz” (RUSSELL, 1903, p. 191).
20

matemática é redutível à lógica, e que a lógica não é redutível à teoria do conhecimento.


“Em ambos os aspectos”, diz Russell, “a obra é kantiana, e supõe que Leibniz, pelo menos
em parte, seja também kantiano” (idem, ibidem). Esta é mais uma ocasião para Russell
reforçar sua abordagem antipsicóloga da lógica e da obra de Leibniz: toda a visão
sustentada por Cassirer “confunde o processo de aprendizagem com os fatos aprendidos,
e é incapaz de conceber proposições exceto como existentes mentais” (idem, p. 198). Na
leitura de Russell, Cassirer aproxima-se de Leibniz apenas porque ambos teriam cometido
os mesmos erros: se a interpretação de Cassirer encontra algum suporte textual nas obras
de Leibniz, diz Russell, é apenas na medida em que Leibniz se tornou uma espécie de
amnésico: “Estou longe de negar que muitas passagens em Leibniz apoiam essa
interpretação; mas elas pertencem, creio eu, quase todas, a anos posteriores, quando ele
havia esquecido que seu sistema precisava de fundamentos” (idem, p. 199).
O tom agressivo de Russell foi provavelmente motivado pelas críticas ácidas que
o próprio Cassirer desenvolveu no apêndice de seu livro contra algumas interpretações de
Leibniz propostas àquela altura por Russell e Couturat. Mas a amarga ironia de Russell
não o impediu de perceber que as críticas que dirigia à leitura de Cassirer da obra
leibniziana “são quase todas críticas à própria filosofia kantiana, e aqueles que aceitam
essa filosofia encontrarão no livro do Dr. Cassirer exatamente o que eles desejam” (idem,
p. 201). Na verdade, se o que foi dito acima sobre a equivalência entre contingência e
matéria prima na filosofia de Leibniz estiver correto, então uma leitura kantiana da
doutrina leibniziana a elucida melhor do que uma abordagem puramente lógica, tal como
a sugerida por Russell. Às vezes, de fato – mesmo com os riscos do anacronismo – um
pensamento que é elaborado muito tempo depois da formulação de uma intrincada
doutrina é uma maneira perspícua de projetar seus desenvolvimentos posteriores no
contexto um tanto confuso da escrita original. A história é sempre, pelo menos até certo
ponto, uma forma de representar nosso próprio tempo atual por meio de um retrato do
passado. Cassirer, como representante da filosofia neokantiana, conhecia essa lição
particularmente bem.
O que Russell não percebeu é que o anacronismo é ainda mais insidioso quando
disfarçado em uma interpretação pretensamente neutra, que não incorpora explícita e
reflexivamente os desenvolvimentos posteriores de uma obra em sua própria leitura. No
presente caso, foi justamente a constatação do “leibnizianismo” de Kant que permitiu a
formulação de nossa interpretação epistêmica da teoria da contingência do próprio
Leibniz. É verdade que se deve evitar cuidadosamente “imputar a própria filosofia ao
21

autor que está discutindo”, mas, paradoxalmente, esse cuidado só é possível precisamente
se compreendermos a forma como a recepção do autor molda o significado de suas obras.
Isso não quer dizer que todos os desenvolvimentos posteriores de uma dada obra
filosófica devam ser tomados como uma sua leitura fiel e verdadeira, mas apenas que a
“neutralidade” é a própria face (ideológica) do anacronismo. Cassirer notou com clareza
essa falta de sensibilidade histórica característica da interpretação russelliana, a qual se
expressa em sua redução de toda oposição a uma contradição entre juízos, em vez de
reconhecer nela a própria transformação de um sistema de pensamento40. Projetar parte
da doutrina de Kant na de Leibniz é, para Cassirer, a única maneira de esclarecer as
aparentes contradições que ameaçam minar a monadologia leibniziniana: “O tempo para
Leibniz”, afirma Cassirer, “é certamente objetivo no mesmo sentido que é para Kant, a
saber: a ordem objetiva das aparências (Erscheinungen)” (CASSIRER, 1902, p. 540). Em
particular, é impossível reduzir a teoria da substância de Leibniz à relação lógica de
sujeito e predicado, como Russell propõe: “Substância não é uma coisa que
posteriormente seja dotada de propriedades e características distintas (Merkmale); é,
antes, a unidade e a correlação legítima de uma série determinada singular e a sucessão
(Reihe und Abfolge) de estados” (idem, p. 537). Em suma, uma substância é, para
Leibniz, uma alma dotada de um corpo biológico. As incontáveis atribuições de abstrusão
(Verworrenheit) feitas por Russell contra Leibniz (idem, p. 541) é o sinal perfeito de sua
leitura anacrônica. A história dos comentários sobre Leibniz no século passado mostra,
portanto, que alguns dos mais interessantes resultados retiveram a lição de Cassirer, ao
invés da de Russell41.

Bibliografia:

40
“Es wäre durchaus einseitig und unhistorisch, wenn man diese Gegensätzlichkeit, auf der gleichsam die
gesamte innere Spannung des Systems beruht, nur als Widerspruch beurteilen wollte. Russell hat es gleich
anfangs prinzipiell abgelehnt, auf die besonderen geschichtlichen Bedingungen des Systems einzugehen”
(CASSIRER, 1902, p. 539).
41
Para um exemplo de uma atitude crítica recente em relação à interpretação de Russell, ver
BLUMENFELD, 1985, p. 497: “Essa objeção assume que a opinião de Leibniz é que toda proposição
verdadeira é tal que, de uma forma ou de outra, sua contrária implica uma contradição. De acordo com
Russell e Lovejoy, Leibniz afirma que em alguns casos a contradição pode ser descoberta em um número
finite de passos, enquanto em outros a contradição aparece somente após um número infinito de passos.
Mas o propósito da teoria da análise infinita é asseverar que há verdades analíticas cujas negações
simplesmente não são contraditórias. É exatamente desse modo que Leibniz espera evitar a acusação de
que suas proposições contingentes são realmente necessárias”.
22

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