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Ulysses Pinheiro
1
Este texto foi escrito no contexto de um projeto de pesquisa financiado pelo CNPq com uma Bolsa de
Produtividade em Pesquisa. Agradeço aos comentários feitos a uma versão anterior deste texto por Luiz
Henrique Lopes dos Santos, Oscar Esquisabel e Vivianne de Castilho Moreira.
2
Desde o Discurso de metafísica, de 1686, essa fórmula é um lugar-comum nos escritos de Leibniz. Ver,
por exemplo, C 16-24; FC 179 (L 263-64); cf. G VII 309. Ver também Grua 303; FC 182, 184; FC 182 (L
265); Grua 303.
3
O comprimento da prova requerida para estabelecer a verdade das proposições não é a única propriedade
usada por Leibniz para explicar a distinção entre verdades necessárias e contingentes; ele também recorre
algumas vezes à distinção entre propriedades essenciais e existenciais. Nesse segundo procedimento, deve-
se ainda esclarecer a questão ulterior sobre se as duas propriedades se sobrepõem perfeitamente, em especial
se todas as proposições essenciais são necessárias (uma vez que nem todas as proposições existenciais são
contingentes, como indica a proposição “Deus existe”.
4
In: Mind, New Series, Vol. 12, No. 46 (Apr., 1903). A opinião prévia de Russell sobre o problema da
contingência aparece em seu livro A Critical Exposition of the Philosophy of Leibniz with an Appendix of
Leading Passages (RUSSELL, 1900, p. 61-63).
2
interpretação proposta por Couturat, que se baseava em manuscritos (até então) inéditos,
coligidos pelo próprio Couturat5. Russell confessa que os novos textos disponibilizados
pela primeira vez na edição de Couturat o fizeram mudar de opinião sobre a resposta de
Leibniz ao problema da contingência. Ao invés de uma propriedade puramente lógica,
diz Russell, a solução de Leibniz envolvia uma propriedade epistêmica, na medida em
que era baseada em uma “distinção entre proposições explícita e implicitamente
analíticas”; dessa (segundo Russell, espúria) distinção adverbial, se derivava a conclusão
de que, “onde uma análise infinita, que somente Deus pode realizar, é necessária para
exibir a contradição, o contrário parecerá não ser contraditório” (idem, p. 185). No
contexto em que ocorre essa frase, Russell está discutindo o que ele chama – não sem
alguma imprecisão, devido a sua adoção de um vocabulário kantiano – de “teoria analítica
do juízo” de Leibniz, especificamente quando ela se aplica a juízos existenciais. A posição
que ele teve de abandonar à luz dos novos textos publicados por Couturat é aquela que
afirmava que as proposições existenciais são sempre sintéticas. Segundo Russell, ou a
analiticidade de todas as predicações reduz as verdades contingentes a uma mera
aparência de contingência, ou nem toda negação de uma verdade analítica é
autocontraditória. Como a última opção – adotada por Couturat – é, seguindo Russell,
simplesmente absurda, ele teve de se ater à primeira.
A crítica de Russell à solução de Leibniz para o problema da contingência foi
intensamente debatida entre os estudiosos leibnizianos, especialmente nos países
anglófonos, durante a segunda metade do século passado – os anos entre 1960 e 1990
concentram um bom número das intervenções neste debate6. Alguns intérpretes, como
Benson Mates, ficaram ao lado de Russell; outros, como Robert Adams, defenderam
Leibniz contra a suposta confusão entre propriedades epistêmicas e propriedades lógicas
que teria sido feita por ele. Examinemos brevemente esses dois partidos da disputa.
Em seu livro de 1986 sobre Leibniz (MATES, 1986), a avaliação crítica de Mates
sobre a doutrina leibniziana da análise infinita como o fundamento racional da
contingência também aponta para seu caráter epistêmico, em detrimento do caráter
5
Além de seu livro sobre lógica, Couturat publicou, no mesmo ano em que apareceu a resenha de Russell,
uma outra coleção até então desconhecida de textos de Leibniz, a agora clássica compilação intitulada
Opuscules et Fragments Inédits de Leibniz. Extraits de manuscrits de la Bibliothèque royale de Hanovre.
Russell menciona esse volume em sua avaliação favorável final da obra de Couturat (RUSSELL, 1903, p.
191).
6
Pode-se consultar uma bibliografia ampla sobre esse tema em: LOOK, 2020.
3
lógico, mais apropriado, segundo Mates, a uma teoria metafísica. Em suas palavras, a
análise infinita de proposições contingentes
pode talvez ser aceita como uma caracterização daquelas proposições
que nós, em nossa ignorância, chamamos de “contingentes”, mas não
pode definir inteligivelmente a classe de proposições que são
contingentes, sendo verdadeiras para alguns mundos possíveis e falsas
para outros (MATES, 1986, p. 116-117).
Para Mates, a provável razão pela qual Leibniz foi levado a esse equívoco está
relacionada a uma confusão mais básica, segundo a qual o significado e a extensão dos
termos da linguagem devem ser idênticos. No caso particular do termo “verdade
contingente”, diz Mates, Leibniz presumivelmente queria apontar para uma característica
comum, extensionalmente compartilhada por todas as proposições a que é aplicada –
justamente a infinidade da análise necessária para provar a inclusão do conceito do
predicado no conceito de sujeito. A partir dessa propriedade extensional, Leibniz
erroneamente concluiu que esse era o significado da contingência. Mas não está claro, diz
Mates, “como ‘César atravessou o Rubicão’ poderia, sob quaisquer condições, ter sido
falso se cruzar o Rubicão é uma parte essencial do que é ser César” (idem, p. 114). Em
vez de usar o infinito para definir o significado da contingência, conclui Mates, Leibniz
teria feito melhor se distinguisse verdades contingentes e necessárias opondo proposições
essenciais a proposições existenciais.
Em uma resenha do livro de Mates, também ela publicada na revista Mind7, as
divergências de Adams relativamente à interpretação de Mates da teoria da contingência
de Leibniz são formuladas principalmente a partir de fundamentos textuais. Ele menciona
a seção 13 do Discurso de Metafísica (G IV, 437s.) e uma passagem das Generales
Inquisitionis de Analysi Notionum et Veritatum, um texto publicado pela primeira vez por
Couturat (C 376f.) na mesma edição de 1903 das obras de Leibniz mencionada acima.
Nesse último texto, Leibniz caracteriza, respectivamente, as sentenças “César cruzou o
Rubicão” e “Pedro nega [Jesus]” não através do recurso à propriedade de elas serem
instâncias de proposições existenciais, mas antes à propriedade que os conceitos de César
e de Pedro têm de ser completos, envolvendo em si infinitos predicados. Adams termina
sua resenha com as seguintes palavras:
Esses são textos nos quais Leibniz está trabalhando arduamente sobre o
problema da contingência e o explica de um modo que parece implicar
que “César cruzou o Rubicão” e “Pedro nega” ainda seriam
7
“Review of The Philosophy of Leibniz. Metaphysics and Language” (ADAMS, 1988, p. 299-302).
4
Seis anos depois, em seu livro Leibniz. Determinist, Theist, Idealist, Adams voltou
suas críticas contra a interpretação de Mates da teoria da contingência de Leibniz8, mas
desta vez seus argumentos são mais robustos do que os argumentos textuais que ele
apresentara alguns anos antes. Segundo esses novos argumentos, propriedades
epistêmicas são meras consequências das propriedades lógicas que definem a
contingência, mais do que seus elementos essenciais (idem, p. 29). A exclusão da
epistemologia em favor da lógica não impede Adams de contextualizar a teoria da
contingência de Leibniz em uma estrutura mais ampla, procurando entender por que o
aspecto epistêmico teve de ser introduzido. Sem esse procedimento de inclusão, como ele
antecipa na Introdução de seu livro, não poderíamos evitar a “suspeita de que
absolutamente nenhuma verdade pode ser contingente para Leibniz”:
Essas questões, e outras conectadas com elas, formam o assunto da
Parte I do livro. Um tema que emerge do meu argumento aí (um tema
afinado com muito dos mais recentes estudos acadêmicos sobre
Leibniz) é que as teses de Leibniz sobre esses tópicos são menos
dominadas por suas doutrinas lógicas do que era pensado por Bertrand
Russell e Louis Couturat, os mais influentes estudiosos de Leibniz na
primeira parte de nosso século. A visão de Leibniz dos problemas era
moldada em grande medida por sua teologia, e seu uso das doutrinas
lógicas ao lidar com eles não pode ser entendido separadamente de tais
concepções metafísicas tal como a da forma substancial (idem, p. 4).
É porque a lógica é uma ferramenta para resolver problemas teológicos e metafísicos que
Leibniz tinha de definir a contingência por meio da teoria analítica da verdade9. Segundo
Adams, a respeito das duas propriedades lógicas tradicionalmente atribuídas a verdades
8
Adams remete expressamente seus leitores para sua resenha do livro de Mates mencionada acima: “A
distinção entre proposições existenciais e essenciais desempenha uma função central na interpretação
oferecida por Benson Mates em seu Philosophy of Leibniz. Eu retruquei aos argumentos de Mates em uma
resenha de seu livro em Mind 97 (1988): 299-302. A distinção trata, primeiramente, sobre se a existência
atual entra ou não entra nas condições de verdade das proposições categóricas, e não creio que Leibniz a
usou para formular uma teoria da contingência, embora ela de fato ocorra em seus escritos” (ADAMS,
1994, p. 45, nota 71).
9
“Verdades contingentes são tão contingentes para Deus como o são para nós, e Deus não pode mais
demonstrá-las do que nós o podemos; pois nem mesmo Deus pode ‘ver o fim da análise, uma vez que não
há fim’ (FC 182,184/L 265f.)” (idem, p. 28).
5
10
Adams concorda com as críticas de Russell apenas na medida em que ele avalia que elas expressam a
visão correta que se deve tomar ao se definir a necessidade, mas não na medida em que se pretendem uma
refutação interna das teses de Leibniz: “a concepção da necessidade pela demonstrabilidade é
fundamentalmente equivocada”, ele diz, “ainda que eu não endosse exatamente tampouco uma concepção
de necessidade como verdade conceitual” (idem, p. 29).
11
Uma visão geral desse tópico pode ser encontrada no verbete ‘Psychologism’ da Stanford Encyclopedia
of Philosophy. Na introdução desse verbete, uma definição ampla do termo “psicologismo” é dada nos
6
que seja a explicação para essa atitude, poder-se-ia duvidar se faz sentido interpretar um
filósofo do século XVII como Leibniz a partir dela, uma vez que isso levaria ao risco de
inacuidade histórica que ronda esse tipo de projeção. De fato, projetar, nossa atual divisão
de disciplinas sobre uma época na qual a filosofia era pensada como um campo do
conhecimento fundamentalmente unificado ao restante das demais ciências parece ser
anacrônico. O caso de Leibniz é ainda mais problemático, já que sua concepção peculiar
de filosofia implica uma espécie de comunicação interna de todas as suas subdivisões e
sua inter-expressão em um corpo doutrinal único: lógica, psicologia e metafísica são
apenas capítulos particulares de um sistema filosófico único e unificado. É o possível
anacronismo envolvido nas críticas contra o psicologismo, concisamente resumido acima,
que será explorado neste texto. Para restringir essa análise a um conjunto manejável de
textos, daremos ênfase à Monadologia e aos Princípios da natureza e da graça, baseados
na razão, ainda que as conclusões retiradas desse exame possam ser estendidas a outras
obras.
Veremos que é possível defender uma interpretação epistemológica da teoria da
contingência de Leibniz, pelo menos na medida em que mostraremos que ela faz parte do
sentido da afirmação de que o mundo é contingente. Ou seja, ainda que ela não explique
a contingência em todos os seus aspectos (ela não explica, sobretudo, a contingência dos
atos livres de Deus12), a interpretação epistemológica da contingência indica que há uma
equivalência conceitual entre a contingência do mundo e o fato de que o mundo se
exprime como fenômeno, ou seja, como uma aparência. Devemos notar que a observação
crítica de Russell segundo a qual, em uma análise infinita, qualquer proposição contrária
a uma proposição contingente alegadamente verdadeira só parecerá13 não ser
contraditória teria de lidar com o fato de que o mundo fenomênico é precisamente, para
Leibniz, uma aparência.
Como Adams já mostrou de forma convincente, há uma teoria sólida e coerente,
formada por Leibniz ao longo dos últimos trinta anos de sua vida, segundo a qual
fenomenalismo e idealismo não devem ser entendidos como um equivalente do famoso
seguintes termos: “Muitos autores usam o termo ‘psicologismo’ para o que eles percebem como o erro de
identificar entidades não-psicológicas com entidades psicológicas. Por exemplo, filósofos que pensam que
leis lógicas não são leis psicológicas veriam como uma forma de psicologismo identificá-las”. Cf. KUSCH,
2015.
12
Voltaremos à contingência dos atos divinos mais adiante.
13
Como vimos acima, a formulação de Russell (“onde a análise infinita, a qual somente Deus pode realizar,
é requerida para exibir a contradição, o oposto parecerá ser não contraditório” (RUSSELL, 1903, p. 185))
não usa o verbo aparecer (“to appear”), mas o verbo parecer (“to seem”), mas assume aqui que, nesse
contexto, eles são sinônimos.
7
dito de Berkeley de que “esse est percipi”. Seguindo Adams, Leibniz entende a palavra
“fenômenos” como significando os “objetos intencionais de percepção, ao invés das
próprias percepções como estados psicológicos” (ADAMS, 1994, p. 220). Ainda que essa
passagem possa ser lida ela mesma como outra instância da resistência mencionada acima
contra o “psicologismo”, ela propõe uma maneira clara e elegante de tornar compatíveis
um conjunto de teses de Leibniz que são usualmente tomadas como incongruentes – por
exemplo, que o mundo corporal é por natureza fenomênico; ainda assim, que existem
substâncias corporais; que os corpos são agregados de substâncias imateriais simples; que
os fenômenos são objetos tanto da sensação quanto do intelecto puro14. Para os nossos
propósitos aqui, tomar os fenômenos como o conteúdo objetivo das percepções, tal como
propõe Adams, nos permitirá entender por que não seria uma objeção contra a teoria da
contingência de Leibniz dizer, como fez Russell, que ela poderia provar apenas uma
aparência de contingência. O que a crítica de Russell afirma é que a negação de
proposições contingentes verdadeiras é realmente contraditória, mesmo que
ilusoriamente pareça não ser. Contra a crítica de Russell, é preciso considerar que a
conjunção de proposições que descreve o mundo fenomênico de fato não representa nada
mais do que uma aparência, mas que ela não é ilusória. Esta resposta às críticas de Russell
parece ser, à primeira vista, apenas um jogo de palavras, mas implica mais do que apenas
isso, como veremos em seguida.
14
Adams dá como exemplos de “phenomena” mencionados por Leibniz no período de 1671-72 “a luz das
estrelas (especialmente do sol) e a solidez e resistência da terra” (A VI, ii, 329) e o fato que “a luz do dia é
movida diariamente em torno do globo da terra” (A VI, iii, 69).
8
15
Cf. RUTHERFORD, 1995, p. 187: “Um grupo de susbtâncias é compossível somente se tais substâncias
puderem ser concebidas como coexistindo no mesmo mundo, quer dizer, somente se elas concordam em
suas respectivas expressões do universo”. Ver também p. 198: espaço e tempo “determinam a ordem de
conexão de todos os mundos possíveis” (sobre esse ponto, cf. FUTCH, 2008, p. 64). Se Deus tivesse dado
a cada substância seus próprios fenômenos, independentes dos das outras substâncias, haveria tantos
mundos sem conexão quanto substâncias (G IV.519/L 493).
9
16
Esta é, resumidamente, a solução de Mates para o problema da contingência em Leibniz. Para Adams,
que diverge nesse ponto de Mates, nem todos os conceitos na mente de Deus representam propriedades
necessárias (isto é, necessárias no interior de cada mundo possível), uma vez que Deus concebe a conexão
entre o sujeito e o predicado de algumas proposições essenciais como contingentes (ADAMS, 1988, p.
302).
17
Seria correto afirmar que Deus conhece o mundo como o conjunto infinito das coisas-em-si-mesmas e
também como fenômenos, ainda que Deus não tenha um corpo? Em outras palavras, Deus conhece as coisas
como fenômenos espaço-temporais ou Suas ideias representam apenas a estrutura básica da realidade, isto
é, os fatos metafísicos que são o fundamento das aparências? Poderia parecer que a segunda opção é a
correta, uma vez que todas as ideias no intelecto de Deus são claras e distintas, e as ideias sensíveis que
formam os fenômenos são confusas (e, algumas vezes, obscuras e confusas). Ora a obscuridade e a confusão
são o resultado da finitude das mentes dos entes criados, justamente devido ao fato de que elas não podem
abarcar a infinitude; Deus é infinito; logo, Deus não tem ideias obscuras e confusas. Entretanto, se Deus
não percebe fenômenos, isso parece implicar uma restrição em Sua onipotência; em particular, uma vez
que corpos são fenômenos, Deus não conheceria absolutamente os corpos. Portanto, parece que Leibniz
deveria defender a tese da natureza dupla do intelecto de Deus: mesmo que todas as ideias no intelecto de
Deus sejam claras e distintas, adequadas e intuitivas, o conhecimento divino parece dever englobar em si
as percepções obscuras (bem como as paixões e demais afecções parciais) que constituem o mundo
fenomenal, ainda que elas estejam, no entanto, integradas em um sistema total e infinito de percepções
intuitivas. Isso significa que todas as nossas percepções, até mesmo as percepções obscuras e confusas,
sendo percepções representadas por Deus, são verdadeiras. Daí se segue também que toda percepção pode
ser explicada – tem uma causa ou razão para sua existência –, ou seja, nenhuma delas é um simples fato
bruto. Sobre esses pontos, cf. Discurso de metafísica, Artigo 14: “Pois Deus, girando [tournant] por assim
10
dizer de todos os lados e de todas as maneiras o sistema geral dos fenômenos que ele acha bom produzir
para manifestar sua gloria e observando [regardant] todas as faces do mundo de todas as maneiras possíveis,
porque não há relação que escape a sua onisciência, o resultado de cada visão [vue] do universo, como
observado de um certo lugar [endroit], é uma substância que exprime o universo conformemente a essa
visão, se Deus acha bom tornar seu pensamento efetivo e produzir essa substância. E como a visão de Deus
é sempre verdadeira, nossas percepções também o são, mas são nossos juízos que provêm de nós e que nos
enganam” (A VI, 4 B, 1549).
18
Cf. supra nota 8: como mostra Adams, nem tudo o que é falso “puramente em virtude das relações de
conceitos deve ser autocontraditório para Leibniz”.
11
19
A distinção entre essência e próprios, comum no século XVII, é claramente exposta por Spinoza no
Tratado da emenda do intelecto (G II, 95).
20
No começo da “Dialética Transcendental” da Crítica da razão pura, Kant despende algum tempo para
explicar a distinção entre fenômenos e ilusões: “Muito menos podem aparência [Erscheinung] e ilusão
[Schein] ser tomados como idênticos. De fato, verdade ou ilusão não estão no objeto, na medida em que é
intuído, mas somente no juízo feito sobre ele, na medida em que é pensado. Portanto, pode-se corretamente
dizer que os sentidos não erram …” (CPR A 293, 294/B 350). Deve-se lembrar, no entanto, que Kant
acreditava – equivocadamente, a nosso ver – que sua posição era distinta da de Leibniz, o qual, de acordo
com ele, manteve a identificação tradicional entre aparência e erro (CPR A 44/B 62).
21
Ver sobre esse último ponto os Novos ensaios II, 16, § 4: “Si Dieu estoit étendu, il auroit des parties.
Mais la durée n’en donne qu’à ses operations. Cependant par rapport à l’espace il faut luy attribuer
l’immensité, qui donne aussi des parties et de l’ordre aux operations immediates de Dieu. Il est la source
des possibilités comme des existences, des unes par son essence, des autres par sa volonté. Ainsi l’espace
comme le temps n’ont leur realité que de luy, et il peut remplir le vuide quand bon luy semble. C’est ainsi
qu’il est par tout à cet egard” (A VI, 6, 155).
12
Dito isso, deve-se notar também que, no § 8 dos Princípios da natureza e da graça
fundados na razão, Leibniz define a expressão “coisas contingentes” por meio do atributo
corpóreo. A definição de contingência neste texto é a seguinte (citamos o texto no original
em francês, com a tradução na nota, pois a fraseologia é importante neste caso):
Or, cette Raison suffisante de l’Existence de l’univers, ne se sauroit trouver
dans la suite des choses contingentes; c’est-à-dire des corps, et de leurs
representations dans les Ames23: parce que la Matière étant indifférente en
elle-même au mouvement et au repos, et à un mouvement tel ou autre; on n’y
sauroit trouver la Raison du Mouvement, et encore moins d’un tel mouvement.
Et quoique le present mouvement, qui est dans la Matiere, vienne du
precedent, et celui-ci encore d’un precedent; on n’en est pas plus avancé,
22
Ver também Aristóteles, Física II.3.195b16-21.
23
Variante (do manuscrito da Bibliothèque Nationale de la France): “et des representations de ces mêmes
corps dans les Ames” (LEIBNIZ, 1986, p. 45-46).
14
quand on iroit aussi loin qu’on voudroit: ˃car˂ il reste toûjours la même
question24.
24
LEIBNIZ, 1986, p. 45-47. “Ora, essa Razão suficiente da Existência do universo não poderia ser
encontrada na sequência das coisas contingentes, isto é, dos corpos e de suas representações nas Almas:
porque a Matéria sendo indiferente nela mesma ao movimento e ao repouso, e a um tal movimento ou outro,
não se poderia encontrar nela a Razão do Movimento, e ainda menos de um tal movimento. E ainda que o
movimento presente, que está na Matéria, venha do precedente, e esse último por sua vez de um precedente,
não se avançou mais quando se fosse também tão longe quanto se queira: pois permanece sempre a mesma
questão”. Cf. a passagem correspondente na Monadologia, § 37.
25
Cf. acima, nota 23.
26
Os itálicos foram acrescentados por mim.
15
27
Ver, por exemplo, De modo distinguendi phænomena realia ab imaginariis (GP VII, 319-322).
28
Ele é contingente porque é um evento que ocorre em uma série infinita de outras percepções.
29
Em um texto sem título nem data (C 16-24), Leibniz afirma que toda proposição na qual a existência e
o tempo, o “aqui e agora”, intervêm implicam a “série total das coisas”. Esse texto foi traduzido para o
francês por Michel Fichant (Cf. LEIBNIZ, 1998, p. 339-349). Uma passagem particular do texto equaciona
claramente as verdades contingentes e as propriedades corporais das substâncias: o conhecimento perfeito
de todas as partes do universo “dépasse toutefois toutes les forces créées, parce qu’il n’y a aucune portion
de matière qui ne soit actuellement subdivisée en d’autres portions, ce qui fait que les parties de n’importe
quell corps sont actuellement infinies” (idem, p. 341-342). Rauzy estima que esse texto deve ter sido escrito
por volta de 1689 (idem, p. 325); Fichant sugere o seguinte título para ele: “Vérités nécessaires et vérités
contingentes”. Ver também Monadologia, § 61.
30
Monadologia, § 36. Tradução: “[Assim] >Mas< A RAZÃO [A PRIORI] SUFICIENTE deve encontrar
[ainda] também nas verdades contingentes [# > ou de fato < isto é, na > a <sequência das [coisas] > coisas
que se encontram no < universo das criaturas [onde a] onde a resolução em razões particulares [vai ao
infinito] poderia ir a um detalhe [infinito] >sem limites< < [# por causa da variedade [infinita] >imensa<
das coisas da Natureza e da divisão dos corpos ao infinito” (LEIBNIZ, 1986, p. 90-91).
16
31
Talvez haja um eco nesta passagem das hesitações de Descartes em aplicar a propriedade de “ser infinito”
a outra coisa que não Deus; segundo Descartes, o mundo é percebido por nossas mentes finitas como
“imenso” e “sem limites”, mas não podemos concluir dessa percepção que ele seja realmente infinito. Cf.
Descartes, Princípios da Filosofia I, 27 (AT VIIIA, 15).
32
Talvez não seja desprovido de sentido sugerir que se tome a expressão “em última análise” não apenas
no sentido idiomático que ela tem no português, mas também no sentido técnico de sua acepção leibniziana.
33
Sobre o tópico do “prôton hupokeimenon”, ver, por exemplo, Metafísica v 4 (1014b32 and 1015a7–10),
v 6 (1017a5–6), vii 3 (1029a20–26), viii 4 (1044a23), ix 7 (1049a24–7); Physics i 9 (192a31), ii 1 (193a10
and 193a29).
34
GP III, 636. Apud RUTHERFORD, 1995, p. 247.
17
conceitos completos da mente divina. No entanto, Leibniz sempre recusou o rótulo anti-
aristotélico que outros pensadores modernos reivindicaram para si mesmos. Em seu
debate post-mortem com Locke, no Livro III (“As palavras”), Capítulo 10 (“Do abuso das
palavras”) dos Novos ensaios, ele critica a forte rejeição de Filaleto ao conceito de
Aristóteles de materia prima35. Argumentando que esse conceito ainda pode ser de grande
utilidade na física moderna, Leibniz conclui:
Não desaprovo, pois o que Aristóteles falou sobre a matéria prima, mas
não seria possível se impedir de culpar aqueles que não se detiveram
muito sobre ela e que forjaram quimeras sobre palavras mal-entendidas
desse Filósofo, que talvez tenha também muito dado ocasião algumas
vezes a esses mal-entendidos e galimatias. Mas não se deve exagerar
tanto os defeitos desse autor célebre, porque se sabe que muitas de suas
obras não foram acabadas nem publicadas por ele mesmo (A VI, 6, p.
344-345).
35
Segundo Filaleto, “cette pensée a produit des discours inintelligibles, et des disputes embrouillées sur la
matiere premiere” (A VI, 6, p. 344).
36
Cf. sobre esse ponto VUILLEMIN, 1983, p. 38: “Como o indica a concessiva final, pode-se precisar o
gênero de confusão que se teria insinuado na concepção de Aristóteles: ele teria tomado o incerto pelo
indeterminado e, de uma propriedade subjetiva relativa a nosso conhecimento, teria falaciosamente tirado
uma propriedade objetiva relativa à ordem das coisas”.
37
RUTHERFORD, 1995, p. 248. Rutherford não tinha em mente nessa passagem a propriedade da
contingência, mas antes a resistência à mudança: “A resistência à mudança é uma propriedade da matéria,
manifestada no movimento e na colisão; um fundamento inteligível é encontrado para ela na matéria prima
da mônada, a qual dá conta da limitação intrínseca de sua própria atividade” (idem, ibidem). Não é preciso
dizer que a contingência da vontade de Deus é fundada na matéria, uma vez que Deus é incorporal: a matéria
explica somente a contingência dos mundos fenomenais e não é nem ao menos suficiente para explicar as
escolhas livres e contingentes das mônadas.
18
ontologia, na medida em que o ser dos corpos é – mas não se reduz a – ser percebido. No
texto de 1695 intitulado Specimen Dynamicum, Leibniz explica em que sentido se dá uma
tradução do vocabulário aristotélico-tomista da matéria prima para seu próprio sistema de
forças espirituais: “E, de fato, a força primitiva de ser agido [patiendi] ou de resistir
constitui a própria coisa que é chamada de matéria prima nas Escolas, se corretamente
interpretada” ( GM VI,236/L 437). Ou seja, a matéria prima entendida como pura
potencialidade é para Leibniz (tal como para Aristóteles, embora por razões diversas) uma
abstração que não pode existir na realidade (é uma fantasia, assim como a ideia quimérica
de tabula rasa38): há sempre alguma modificação ou atividade imperceptível na matéria,
uma vez que 1- a noção mesma de uma pura passividade não tem sentido, e 2- a matéria
existe nas mentes que a percebem, as quais, por sua vez, só existem na medida em que
agem. Porque a própria contingência é essencialmente relacionada às percepções
confusas de seres finitos, essa mesma confusão, radicada na matéria prima, faz parte
essencial da noção de contingência.
Isso não torna os corpos, porém, meras ilusões: as percepções confusas,
consideradas nelas mesmas, são todas verdadeiras, na medida em que foram criadas por
Deus. Como lemos nos Ensaios de teodiceia,
Deus é a primeira razão das coisas: pois aquelas que são limitadas,
como tudo o que vemos e experimentamos, são contingentes e não têm
nada nelas que torne sua existência necessária, sendo manifesto que o
tempo, o espaço e a matéria, unidos e uniformes em si mesmos e
indiferentes a tudo, podiam receber movimentos e figuras
completamente diferentes [de tout autres mouvements et figures], e em
uma outra ordem (A VI, 107).
38
Cf. Novos ensaios I, 1, § 2 : “Les choses uniformes et qui ne re [n]ferment aucune varieté, ne sont jamais
que des abstractions, comme le temps, l’espace et les autres Estres des mathematiques purs” (A VI, 6, 109-
110).
19
porque poderia não ter sido criado por Deus. Mas, além disso, é necessário que o mundo
inteligível seja infinito, porque é só em sua infinitude que se pode encontrar o fundamento
da infinitude dos fenômenos. O mundo inteligível é contingente nos dois sentidos
requeridos por uma teoria da liberdade: ele é, digamos assim, “externamente” contingente
porque poderia não ter sido criado e é, também, “internamente” contingente, porque não
é possível eliminar a contingência do mundo fenomênico sem eliminar, ao mesmo tempo,
a infinitude do mundo inteligível.
Porque mundo fenomênico e mundo inteligível são um só e mesmo mundo, suas
respectivas determinações são mutuamente implicadas. É assim que, na sequência do
trecho citado acima dos Ensaios de teodiceia, é apresentada uma caracterização da
contingência segundo a qual o espaço e o tempo são os mesmos em todos os mundos
possíveis, a única coisa variante neles sendo os objetos que aí existem:
Chamo de mundo toda a sequência e toda a coleção de todas as coisas
existentes, a fim de que não se diga que muitos mundos pudessem
existir em diferentes tempos e diferentes lugares. Pois dever-se-ia
contá-los todos em conjunto por um mundo ou, se preferirdes, por um
universo. E quando se preenchesse todos os tempos e todos os lugares,
permanece sempre verdade que se poderia tê-los preenchido de uma
infinidade de maneiras, e que há uma infinidade de mundos possíveis
dos quais é preciso que Deus tenha escolhido o melhor...” (G VI, 107).
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“… pode-se quase dizer que a obra constitui um novo livro de Leibniz” (RUSSELL, 1903, p. 191).
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autor que está discutindo”, mas, paradoxalmente, esse cuidado só é possível precisamente
se compreendermos a forma como a recepção do autor molda o significado de suas obras.
Isso não quer dizer que todos os desenvolvimentos posteriores de uma dada obra
filosófica devam ser tomados como uma sua leitura fiel e verdadeira, mas apenas que a
“neutralidade” é a própria face (ideológica) do anacronismo. Cassirer notou com clareza
essa falta de sensibilidade histórica característica da interpretação russelliana, a qual se
expressa em sua redução de toda oposição a uma contradição entre juízos, em vez de
reconhecer nela a própria transformação de um sistema de pensamento40. Projetar parte
da doutrina de Kant na de Leibniz é, para Cassirer, a única maneira de esclarecer as
aparentes contradições que ameaçam minar a monadologia leibniziniana: “O tempo para
Leibniz”, afirma Cassirer, “é certamente objetivo no mesmo sentido que é para Kant, a
saber: a ordem objetiva das aparências (Erscheinungen)” (CASSIRER, 1902, p. 540). Em
particular, é impossível reduzir a teoria da substância de Leibniz à relação lógica de
sujeito e predicado, como Russell propõe: “Substância não é uma coisa que
posteriormente seja dotada de propriedades e características distintas (Merkmale); é,
antes, a unidade e a correlação legítima de uma série determinada singular e a sucessão
(Reihe und Abfolge) de estados” (idem, p. 537). Em suma, uma substância é, para
Leibniz, uma alma dotada de um corpo biológico. As incontáveis atribuições de abstrusão
(Verworrenheit) feitas por Russell contra Leibniz (idem, p. 541) é o sinal perfeito de sua
leitura anacrônica. A história dos comentários sobre Leibniz no século passado mostra,
portanto, que alguns dos mais interessantes resultados retiveram a lição de Cassirer, ao
invés da de Russell41.
Bibliografia:
40
“Es wäre durchaus einseitig und unhistorisch, wenn man diese Gegensätzlichkeit, auf der gleichsam die
gesamte innere Spannung des Systems beruht, nur als Widerspruch beurteilen wollte. Russell hat es gleich
anfangs prinzipiell abgelehnt, auf die besonderen geschichtlichen Bedingungen des Systems einzugehen”
(CASSIRER, 1902, p. 539).
41
Para um exemplo de uma atitude crítica recente em relação à interpretação de Russell, ver
BLUMENFELD, 1985, p. 497: “Essa objeção assume que a opinião de Leibniz é que toda proposição
verdadeira é tal que, de uma forma ou de outra, sua contrária implica uma contradição. De acordo com
Russell e Lovejoy, Leibniz afirma que em alguns casos a contradição pode ser descoberta em um número
finite de passos, enquanto em outros a contradição aparece somente após um número infinito de passos.
Mas o propósito da teoria da análise infinita é asseverar que há verdades analíticas cujas negações
simplesmente não são contraditórias. É exatamente desse modo que Leibniz espera evitar a acusação de
que suas proposições contingentes são realmente necessárias”.
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