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Psicanálise e Literatura: Noite na Taverna

Psicanálise e Literatura: Noite na Taverna


Maria Beatriz Jacques Ramos
Psicanalista. Doutora em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Professora
da Faculdade de Educação da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – PUCRS.
Membro do Círculo Psicanalítico do Rio Grande do Sul – CPRS.

Palavras-Chave: Adolescência – Narcisismo – Violência.

Resumo: Adolescência é descrita como uma passagem, uma moratória no ciclo vital,
caracterizada por perdas e lutos do corpo infantil, da identidade de criança, sustentada
na identificação com os pais e a conseqüente desidealização destes. É uma fase do desen-
volvimento psíquico em que as modalidades de relacionamento com o mundo externo
denotam a vida emocional intensa e profunda do jovem. O adolescente vive perdas e
separações, se afasta dos objetos de amor infantis, mesmo que seus sentimentos edípicos
o incitem a reincejar o desejo pelos pais da criança. Na análise do insuperável e dos
conflitos que não ficaram resolvidos, notam-se marcas nos comportamentos, na forma-
ção de vínculos e nas novas aprendizagens. Ao iniciar essa análise cito a obra de Álvares
de Azevedo, Noite na Taverna, publicada em 1878. Um livro constituído de contos fan-
tásticos, narrados por um grupo de amigos à roda de uma mesa de taverna. Elementos
romanescos e satânicos se entrecruzam para tratar de violência, corrupção, adultério,
traição e morte. Vingança, tédio, bebida, luto e amor são temas presentes em cada narra-
tiva. Portanto, me remeto a um tipo específico de adolescente, aquele que manteve as
paradas no seu desenvolvimento, as feridas narcísicas, as regressões às fases em que a
fantasia e a onipotência criaram uma ilusão de controle mágico sobre o mundo e sobre o
outro.

O Começo da História...

Meu herói é um moço preguiçoso


Que viveu e bebia porventura
Como nós, meu leitor; se era formoso
Ao certo não o sei. Em mesa impura
Esgotara com lábio fervoroso
Como vós e como eu a taça escura...
Era pálido sim... mas não de estudo:
No mais... era um devasso e disse tudo!
(Alvares de Azevedo, “O poema do frade, as desventuras de um poeta libertino”, 1853.)

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Psicanálise e Literatura: Noite na Taverna

O Livro Noite na Taverna Os homens que descreveu foram


Bertram, Johann, Solfieri e Genaro.
Álvares de Azevedo nasceu em Todos perseguidos pela memória. Car-
São Paulo em 1831 e morreu em 1852, regavam uma sina que invadia as tre-
com 21 anos, viveu com os pais e uma vas da morte, do demônio que agredia
única irmã. Teve desavenças com o e perturbava o amor. Eles se embriaga-
pai, pois este não acreditava na sua vam e tinham uma história maldita,
vocação de poeta e escritor, queria vê- Eros não se salvou. Tudo se estabelecia
lo como um proeminente advogado. em função da morte. O ficcionista trou-
Por esse motivo, ingressou na Facul- xe do fundo de seu reino imaginário as
dade de Direito, mas, sem dotes para sombras de seus pesadelos, o retrato de
exercer a profissão, permaneceu escre- suas projeções.
vendo sob a influência e apoio da mãe Freud, em Além do Princípio de Pra-
e da irmã. Parece não ter tido uma zer (1920), tratou dos eventos mentais
companheira; dedicou seus investi- relacionados ao prazer e ao desprazer.
mentos amorosos exclusivamente à O princípio do prazer decorre da ne-
mãe e à irmã, configurando o que a cessidade de constância, da evitação da
psicanálise denomina um “Édipo não dor, do sofrimento.
resolvido”. Foi anjo e demônio do ro-
mantismo brasileiro, faleceu com tu-
berculose. “A tendência dominante da vida men-
Para alguns, não foi uma figura an- tal, e talvez da vida nervosa em ge-
gelical e pura, nem um excelente estu- ral, é o esforço para reduzir, para
dante. Mas, um amante do conhaque, manter constante ou para remover a
do charuto e da noite. Alienado da rea- tensão interna aos estímulos, tendên-
lidade, não se preocupou com os dra- cia que encontra expressão no prin-
mas sociais e culturais do país. Descre- cípio de prazer, e o reconhecimento
veu em algumas obras orgias terríveis, deste fato constitui uma de nossas
usando o sarcasmo e a ironia, conde- mais fortes razões para acreditar na
nando a mulher a um destino de vir- existência dos instintos de morte”
gem ou prostituta. (Freud, 1920, p.76).
No livro Noite na Taverna, um nar-
rador introduz o cenário no qual serão Freud descreveu que além do prin-
contadas histórias por personagens que cípio do prazer está a compulsão à re-
as viveram, episódios de suas vidas petição, um fenômeno próprio da pul-
aventureiras. A mulher, o demônio, o são de morte. Algo se repete e não é
amor, a morte ressurgem em cada con- prazeroso para o sujeito, mas a repeti-
to na imaginação de Azevedo. Um fic- ção precisa sustentar-se, também é uma
cionista, adolescente, que associou o fonte de energia, é um movimento pul-
poeta imaginativo que era, ao ficcio- sional que aprisiona, traz impasses e
nista, em proveito do reino fantástico leva a inércia. Com isso, desejo e medo
de Noite na Taverna. Um reino que pode impulsionam à fuga do que é conside-
ser vislumbrado pela Psicanálise nos rado perigoso.
conflitos e afetos de seus personagens e Os protagonistas das histórias de
quem sabe do próprio escritor, que ex- Azevedo se debatem no sofrimento, por
pôs seus desejos e temores ao longo das um lado, ao mesmo tempo buscam o
histórias criadas. prazer insaciável, revestido na morte
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para dominar a angústia, mesmo que com narcóticos, induzindo-a a amá-lo,


para isso repitam as situações traumáti- sem consentimento, porque ela dese-
cas que o provocaram. java seu esposo. Ainda assim, Claudius
Este foi o caso de Bertram, um jo- a obriga a ficar com ele, até que o po-
vem apaixonado por Ângela, moça que bre homem traído os encontra e mata
abandonou para encontrar o pai que o a mulher, que tanto o queria. Esse é mais
chamava à Dinamarca. Ao retornar ela um final trágico: amor desfeito, senti-
estava casada. Mas, esse fato não im- mento de vazio e morte, abatimento e
pede que voltem a se encontrar, que solidão.
tenham noites de prazer e êxtase. Até Johann, outro personagem, brigou
que um dia, sua amada, não suportan- num bar, enquanto jogava bilhar. Ele e
do essa situação, mata o filho e o mari- seu adversário saem para a rua. A briga
do e diz para Bertram: “Sou tua e tua continua. Ele mata o pobre homem, que
só. Foi por ti que tive força bastante para em agonia lhe entrega um bilhete di-
tanto crime. Vem, tudo está pronto, fuja- zendo que deveria ir num hotel, pois lá
mos. A nós o futuro” (p.26). encontraria uma mulher. A porta esta-
Miséria e loucura, a mulher colo- ria aberta, ela o esperava. Assim acon-
cou em ato seu desejo. Não precisavam tece. O jovem dirige-se para esse lugar.
mais separar-se, o vínculo podia ser res- Ao chegar, a escuridão não lhe permi-
tabelecido sem a sombra da interdição, te vislumbrar a figura. Por fim, tem uma
o Outro estava morto, o pai deixava de noite deliciosa nos braços da mulher.
existir. Quando sai encontra um homem, es-
Mas, ela não suportou a culpa, o barra nele, mas não identifica sua fisi-
abandonou. Ele tornou-se um bêbado, onomia, pois estava muito escuro ain-
jogador de cartas; um homem perdido, da. Brigam. Ele mata-o. Passado o sus-
terrível e sem coração. Amor e agres- to, com uma lanterna, ilumina seu ros-
são, a articulação que Freud descreveu to. Com pavor descobre que matou seu
ao falar do sadismo: irmão. Sobe ao quarto no qual deixara
a mulher. Ela estava desmaiada, Então,
“Desde o início identificamos a pre- olha a mulher. Com espanto vê os sei-
sença de um componente sádico no os nus, a face fria, a infância perdida,
instinto sexual, ele pode tornar-se in- era sua irmã. Tornara-se um maldito, a
dependente e, sob a forma de perver- vida só teria sentido nos bares, na be-
são, dominar toda a atividade sexual bida, queria esquecer. Um dia encon-
de um indivíduo” (Freud, 1920, tra a morte junto a uma prostituta, que
p.74). se vinga do que ele fez à irmã. Mais uma
vez a lâmpada apagou-se, a luz da vida
O livro expõe nas histórias a am- se desfez.
bivalência entre amor e ódio na vida Essas são algumas histórias conta-
erótica. Ao mesmo tempo o temor da das por esse jovem, ainda adolescente.
perda do objeto, a ferida narcísica no Seus terrores, angústias, representados
Eu denegrido, o amor pela própria ima- nos personagens infelizes e sós. Os de-
gem. Isso faz com que a vigilância do sejos eróticos, talvez, determinados por
rival ressurja na inveja, ou ciúmes do suas pulsões e conflitos amorosos. O
parceiro. homem sempre foi um infeliz, ao mes-
Na história de Claudius, ele rouba mo tempo um rival na realização dos
a esposa do marido, entorpecendo-a desejos incestuosos. Porém, no imagi-
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