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Espaço público e interesses privados:

disputas políticas sobre o ensino religioso*


VITOR BARLETTA MACHADO**
KATIA MIKA NISHIMURA***

Resumo: Os trinta anos da promulgação da Constituição de 1988 trazem, entre outras reflexões,
a discussão acerca da questão da valorização dos ideais democráticos e republicanos tão presentes
em seus artigos. Esse é um período marcado pelas disputas políticas e pelos seus conflitos, mas
também pela mobilização popular e reconhecimento dos direitos de alguns grupos sociais até
então excluídos. Este artigo procura sistematizar algumas reflexões acerca do ensino religioso, a
partir da experiência das atividades de Extensão em uma escola pública, considerando o cenário
de disputas caracterizado pelo aumento da participação da chamada Bancada da Bíblia no
Congresso Nacional, pelo debate em torno dos direitos sexuais e das reações conservadoras. A
recente aprovação do STF do ensino religioso confessional nas escolas públicas acrescenta outros
elementos à discussão das disputas políticas e dos interesses privados no espaço público.
Palavras chave: Constituição de 1988; extensão; escola pública; bancada da Bíblia.
Public space and private interests: political disputes over religious teaching
Abstract: The thirty years of the promulgation of the Constitution of 1988 bring us, among other
reflections, the discussion about the question of the valorization of the democratic and republican
ideals strongly present in its articles. This is a period marked by political disputes and conflicts,
but also by popular mobilization and recognition of the rights of some previously excluded social
groups. This article tries to systematize some reflections about religious education, parting from
the extension activities experience in a public school, considering the scenario of disputes
characterized by the increase of the participation of the so­called Bible Bench in the National
Congress, by the debate on the sexual rights and the conservative reactions. The recent approval
in the Supreme Court of the confessional religious teaching in public schools adds further
elements to the discussion of political disputes and private interests in the public arena.
Key words: Constitution of 1988; extension; public school; Bible counter.

*
As experiências relatadas neste trabalho resultam do trabalho de extensão “Intolerância e Violência
Religiosa: construindo a alteridade no ambiente escolar” (2016­2017) e do projeto “Direitos Humanos e
Diversidade Religiosa: o papel da escola na construção de um novo espaço público”, ainda em
desenvolvimento.

**
VITOR BARLETTA MACHADO é Doutor em Sociologia (Unicamp) e professor
extensionista da Faculdade de Ciências Sociais da PUC­Campinas.
51

***
KATIA MIKA NISHIMURA é Doutora em Ciências Sociais (Unicamp) e professora da
Pontifícia Universidade Católica de Campinas.
Apresentação intimidade. Holanda buscou as raízes de
É famosa a afirmação de Sérgio Buarque tal realidade, que formam parte do
de Holanda de que “A democracia no conjunto das “raízes do Brasil”, na
Brasil foi sempre um lamentável mal­ construção do patriarcalismo e do
entendido.” (HOLANDA, 2002, p. 160). patrimonialismo, marcas indeléveis da
Bem menos famosa é a frase formação do Estado nacional brasileiro.
imediatamente seguinte: “Uma O caminho foi longo até conseguirmos
aristocracia rural e semifeudal importou­ chegar à definição, formal, de um
a e tratou de acomodá­la, onde fosse sistema político que firmasse as
possível, aos seus direitos ou privilégios, diferenças entre esses espaços, bem
os mesmos privilégios que tinham sido, como as responsabilidades do Estado e
no Velho Mundo, o alvo da luta da dos direitos do cidadão. A Constituição
burguesia contra os aristocratas. (Ibid., de 1988, cuja promulgação completa 30
p.160). É evidente que não se tratava, anos, representa o resultado de todo esse
para Holanda, de constatar uma suposta esforço. Neste artigo não realizaremos a
incapacidade do brasileiro para viver em discussão sobre tal percurso, que
regime democrático, mas sim a demandaria trabalho de maior
afirmação de que nossa democracia foi envergadura, mas utilizaremos o
criada por homens de uma elite contexto do aniversário da Constituição
interessada em privilégios e não na para focalizarmos o recente processo de
ampliação da participação popular. Era a transformação pelo qual ela tem passado,
democracia como processo burocrático como um momento de reaparecimento
de confirmação de interesses já de forças patriarcais, que tratam o espaço
compartilhados e definidos pelos público como patrimônio particular de
condutores da vida política e econômica interesses privados. Focalizamos os
nacional. Um mal entendido proposital. debates ao redor do ensino religioso
Não uma forma de confusão sobre o confessional nas escolas públicas, objeto
significado do conceito, de não se ter de recente definição favorável pelo
entendido o real sentido da democracia. Supremo Tribunal Federal.
Mas da sua construção e apresentação Considerando que tal decisão se dá em
como parte de um projeto de perpetuação paralelo ao crescimento de diferentes
no poder daqueles grupos que sempre formas de intolerância no cenário social
controlaram nosso Estado. nacional, tais como o racismo
A obra de Holanda também nos institucional e a homofobia, às quais
apresenta uma reflexão sobre outra perpassam o discurso de diferentes
característica determinante de nossa grupos religiosos. Algumas reflexões
formação política, que é a indistinção sobre os possíveis impactos dessa
entre o espaço público e privado. Ocorre decisão do STF também são
aqui o mesmo que com o conceito de sistematizadas, partindo de resultados do
democracia. Existem, formalmente, projeto de extensão sobre a violência e a
todas as distinções entre aquilo que faz intolerância religiosa em escolas,
parte da esfera privada e o que faz parte conduzido por um dos autores.
da esfera pública. Mas são distinções que Constituição cidadã
se limitam às aparências, à definição de A promulgação da constituição de 1988
normas que serão burladas para os foi um marco na transição do período da
amigos, mas que serão abismos para ditadura militar para a retomada do
todos os que estão fora de tal círculo de processo democrático no Brasil. Foge ao

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escopo deste trabalho sistematizar os frequência facultativa e
diferentes avanços no que se refere à ministrado de acordo com os
retomada dos preceitos democráticos da princípios da confissão religiosa
participação popular na vida política do aluno manifestada pelos pais
nacional. O que será enfocado é ou responsáveis e constituirá
justamente a temática do ensino religioso matéria dos horários nas escolas
nas nossas diferentes cartas públicas primárias, secundárias,
constitucionais. A temática do ensino profissionais e normais.”
religioso não aparece nas constituições ● 1937 – “Art 133 ­ O
de 1824 e nem na seguinte de 1891. Em ensino religioso poderá ser
1824 ainda estávamos no regime contemplado como matéria do
monárquico, com D. Pedro I, e a curso ordinário das escolas
constituição somente reafirmou a primárias, normais e secundárias.
religião Católica como a oficial do Não poderá, porém, constituir
Império, mas com liberdade privada para objeto de obrigação dos mestres
o culto de outras religiões: “Art. 5. A ou professores, nem de
Religião Catholica Apostolica Romana frequência compulsória por parte
continuará a ser a Religião do Império. dos alunos.”
Todas as outras Religiões serão
permitidas com seu culto domestico, ou ● 1946 – Art 168, “V ­ o
particular em casas para isso destinadas, ensino religioso constitui
sem fórma alguma exterior do Templo.”. disciplina dos horários das
Não havia, portanto, necessidade de escolas oficiais, é de matrícula
especificar o ensino religioso já que o facultativa e será ministrado de
catolicismo estava presente diretamente acordo com a confissão religiosa
na estrutura do Estado. A primeira do aluno, manifestada por ele, se
constituição da República, em 1891, não for capaz, ou pelo seu
tratou do tema especificamente, mas representante legal ou
afirmou a separação entre o Estado e a responsável;”
religião, ao vedar no seu artigo 11, que a ● 1967, emendada em 1969
União e os estados pudessem: “2 º ) – Art 176, §3º “V – o ensino
estabelecer, subvencionar ou embaraçar religioso, de matrícula
o exercício de cultos religiosos;”. O facultativa, constituirá disciplina
espírito republicano se fazia presente dos horários normais das escolas
mantendo a liberdade de crença dos oficiais de grau primário e
cidadãos, mas excluindo o Estado de médio;”
interferência nas mesmas. Tal temática
era tão importante no final do século ● 1988 – Art 210 “§ 1º O
XIX que os membros de ordens ensino religioso, de matrícula
religiosas sujeitos à voto de obediência facultativa, constituirá disciplina
foram proibidos de participar das dos horários normais das escolas
eleições. públicas de ensino fundamental.”
As próximas constituições republicanas Podemos perceber que a temática esteve
já trazem o tema do ensino religioso, de presente sempre com o sentido
maneira muito similar entre elas: facultativo em todas as constituições
brasileiras do século XX. Mas ela segue
● 1934 – “Art 153 ­ O um percurso no qual aparece como uma
ensino religioso será de disciplina que existe necessariamente no

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currículo de todas as séries (1934), deveria seguir a confissão religiosa dos
passando a ser uma disciplina que pode alunos, ou seja, o professor deveria
ou não ser oferecida (1937), para oferecer o ensino religioso específico de
retornar à redação que afirma a presença uma determinada religião, algo que abria
da disciplina (1946, 1967 e 1988). a possibilidade da necessidade de vários
Destaca­se a grande semelhança entre a professores diferentes ministrando tal
redação dos artigos sobre o ensino disciplina para uma mesma turma. Ao
religioso nas constituições de 1967 e na invés do conhecimento sobre a
de 1988, com a diferença de que na diversidade religiosa se afirmava a
primeira o mesmo estaria presente em separação entre os credos. A redação
todas as séries e na segunda apenas adotada em 1967 e 1988 fala apenas em
durante o ensino fundamental. A lei de ensino religioso, não informando nada
1967 foi redigida já no contexto da sobre a confissão religiosa dos alunos. A
ditadura militar, após o golpe de 1964, questão então passou a ser sobre o
que a emenda constitucional de 1969, conteúdo a ser ministrado aos alunos,
feita após o Ato Institucional número 5, havendo aqueles que defendiam o ensino
manteve inalterada. A constituição de genérico de fundamentos religiosos,
1988, redigida em pleno processo de como um tipo de história das religiões,
transição para a democracia, manteve mas também aqueles que defendiam o
toda a redação anterior, alterando apenas enfoque em poucas ou apenas uma
o nível de ensino a que se refere. religião. Paralelo a tal debate havia um
Outro aspecto chama atenção. Até a problema prático: a inexistência de
constituição de 1946 o ensino de religião professores habilitados para tal ensino.
era considerado disciplina presente no Como resultado geral a maioria das
escolas simplesmente optou por não
horário escolar, mas sem especificar se
seria em horário separado das demais oferecer a disciplina.
disciplinas, já que se tratava de conteúdo O entendimento atual do STF caminha
não obrigatório. Em 1967 e 1988 em uma direção que responde à apenas
encontramos a redação “horários um dos problemas anteriores, que é sobre
normais das escolas”, sugerindo que a o tipo de conteúdo a ser ministrado.
mesma deva aparecer incorporada ao Seguindo o espírito das constituições de
horário das demais disciplinas. Isso 1934 e 1946 determinou a possibilidade
lança de imediato um problema para as do ensino religioso confessional nas
escolas, que é o de precisar oferecer algo escolas públicas como disciplina
aos alunos que não optarem por opcional. Todas as outras questões
participar das aulas de religião, permaneceram sem respostas, jogadas
implicando necessariamente em nas costas de professores e
deslocamento de pessoal para tal administradores escolares. E também
finalidade. Mas o problema da logística não lidou com várias outras questões:
de acompanhamento dos alunos é apenas Qual será a formação exigida de tal
a dimensão mais simples da questão. O profissional? Haverá concurso para a
cerne do debate se localiza na seleção? O Estado deve arcar com os
perpetuação da indistinção entre o custos de tal contratação em se tratando
espaço público e o privado em todas as de um ensino confessional específico
nossas constituições, não importa se para certos grupos de alunos? Como
foram redigidas em períodos autoritários saber qual será a demanda real dos
ou mais democráticos. Em 1934 e 1946 alunos e suas famílias pela oferta de tal
a lei determinava que o ensino religioso ensino? O Estado passará a arcar com os

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custos da aquisição dos materiais de tal Tudo começa com um grupo de
ensino, como Bíblias e outros textos interesse que mobiliza apoio
sagrados? Ou teremos mais um processo político – no Executivo ou no
de produção oficial de apostilas e livros Legislativo (municipal, estadual,
didáticos? Ressaltamos que tais questões mas de preferência federal) – para
conseguir a edição de uma norma
não são novas no debate sobre o ensino
que determine a obrigatoriedade da
religioso no Brasil republicano. Cunha inserção do elemento de seu
(2007) sistematizou as idas e vindas do interesse nos currículos de todas as
ensino religioso, passando por modelos escolas; se não de todas, pelo menos
que estabeleciam a ausência de custos nas redes públicas de ensino. O
para o Estado, bem como sua relação interesse real defendido pode ser de
com a disciplina de Educação Moral e ordem econômica, de ordem
Cívica. Nos debates sobre a Lei de político­ideológica ou de ambas, o
Diretrizes e Bases de 1996 o autor caso mais frequente. Uma disciplina
destaca: obrigatória é a preferência geral.
Justificativas diversas procuram
O artigo pertinente da LDB fazer crer que esse interesse
assumiu, então, redação distinta. O particular é bom para todos.
ER foi considerado “parte integrante
da formação básica do cidadão” e Quanto mais elevada a instância
poderes especiais foram atribuídos política de normatização, maior o
aos sistemas de ensino, das unidades efeito obtido. A Constituição é, sem
da Federação e dos municípios, para dúvida, a meta preferida. Por ser
estabelecerem normas para a mais difícil de ser revertida a norma
habilitação e a admissão dos incluída e por ter maior
professores de ER. Ademais, foi abrangência, ela constitui o
reconhecido o poder das entidades desaguadouro de todos os grupos de
religiosas formadas pelas diferentes interesse. (Id., 2009, p. 403)
denominações religiosas. Cada Ainda que regulamentações mais
sistema educacional deveria ouvi­ específicas fiquem ao encargo de estados
las na formulação dos respectivos e municípios a inclusão de uma cláusula
programas. (CUNHA, 2007, p. 299) na constituição permite atingir todos ao
A presença do ensino religioso ao longo mesmo tempo, eliminando a necessidade
da história republicana brasileira é de esforços locais de atuação. Não é
indissociável da atuação das diferentes necessário esperar que as famílias se
instituições religiosas, principalmente a mobilizem para que o ensino religioso
Católica. Cunha destaca que essa seja oferecido se o mesmo estiver
atuação foi central na manutenção das previsto como parte integrante do
legislações sobre o ensino religioso, um currículo escolar. Do mesmo modo não
protagonismo e não apenas uma será necessário contar com a disposição
concessão política, que permitiu ao de voluntários ou ainda sujeitar­se a
ensino religioso permanecer presente questões trabalhistas diversas se o
mesmo após o processo de Estado assumir a contratação dos
redemocratização enquanto Educação profissionais. Em outro artigo Cunha e
Moral e Cívica foi eliminada1. O caráter Fernandes destacaram o papel
político de tal discussão também foi
apontado pelo autor:

1
Não nos deteremos aqui no recente movimento que é fruto de recente aprovação no Distrito
pela volta de tal disciplina ao currículo escolar, Federal.

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politicamente ativo da Igreja Católica2 após a ocorrência de um caso mais grave
na inserção da obrigatoriedade do ensino de agressão a uma aluna umbandista
religioso nas Constituições, mas também entre vários outros conflitos menores em
na LDB, em particular na primeira, de sala de aula, entre os alunos e entre estes
1961, lembrando que vários autores: e alguns professores. Por necessidade da
“apontaram o papel da Igreja Católica na temática, a reflexão sobre a diversidade
legitimação dos interesses religiosa brasileira e a abordagem de
particularistas, não apenas dos seus algumas doutrinas religiosas foi
próprios, mas de todo o setor privado, realizada, mas partindo inicialmente do
que ainda não tinha força suficiente para entendimento da bagagem religiosa dos
dispensar a legitimidade que aquela alunos participantes. E todas as oficinas
instituição lhe propiciava.” (CUNHA; realizadas durante os anos de 2016 e
FERNANDES, 2012, p. 851). Nos 2017 revelaram um cenário de baixa
intensos debates em torno dessa LDB, participação religiosa e um profundo
em pleno período pré­golpe de 1964, desconhecimento das doutrinas. Ao
Cunha chama atenção para a redação contrário do que um certo senso comum
final da nova lei, que determinava que a supõe, de que a população das nossas
oferta do ensino religioso seria feita periferias viveria intensamente uma
“sem ônus para os Poderes Públicos” religiosidade evangélica, enquanto
(Ibid., p. 861). Até o momento em que católicos se destacariam pela baixa
redigimos este artigo ainda não houve participação, as respostas dos alunos
definição oficial sobre tal questão após a mostraram outra realidade. Os alunos
decisão final do STF. participantes foram solicitados a refletir
sobre sua religiosidade, respondendo: 1­
Religião em sala de aula
Em que você acredita? 2­ Você possui
Apresentamos nesta parte algumas religião? Qual? 3­ Você frequenta as
reflexões realizadas através das celebrações da sua religião? 4­ Quais são
atividades de extensão realizadas por um os principais elementos da doutrina da
dos autores, em escola estadual do sua religião? Em que coisas ela acredita?
município de Campinas, como parte do
programa de extensão da Pontifícia A maioria dos alunos, de fato, afirmou­
Universidade Católica de Campinas. A se como evangélicos, seguidos pelos
relevância de tal inserção remete ao tema católicos, que apareceram em número
quase igual aos sem religião
do projeto desenvolvido: intolerância
religiosa e violência. O trabalho resultou determinada, conforme podemos ver no
de demanda da própria escola, em seguinte gráfico:
conversa com o docente responsável,
Gráfico I - Adesão religiosa

2
O autor já destacou, inclusive, que: “...a Igreja obrigatória nos currículos do sistema público de
Católica é a única instituição que sempre fechou ensino. As Igrejas Pentecostais, mais recentes,
questão em torno do ensino religioso nas escolas não fecharam questão sobre isso – umas são
públicas. As Igrejas Evangélicas manifestamente contra, outras se dividem.”
tradicionalmente foram contra sua inclusão (CUNHA, 2009a, p. 267­268).
56
Entre os evangélicos a maioria não foi diferenças. E como a maioria absoluta
capaz de nomear adequadamente a sua eram de religiões cristãs os alunos
igreja, retendo­se na denominação circulavam em um universo que Negrão
genérica. Mas todos os alunos tiveram denominou como “mínimo denominador
dificuldades em falar sobre a doutrina de religioso comum” (NEGRÃO, 1997),
sua religião. Os evangélicos lembravam referindo­se à raiz comum da maioria
apenas das interdições às mulheres na das religiões pelas quais os brasileiros
grande maioria, com relação ao vestuário circulam, em um processo de conversões
e maquiagem, enquanto os católicos e reconversões, ao longo da vida. A
algumas vezes conseguiam se lembrar de diversidade religiosa no Brasil existe,
algum dos dez mandamentos. Verificou­ mas é uma diversidade dentro do
se que há uma baixa participação de universo do cristianismo, pelo qual as
todos, sendo minoria aqueles que pessoas conseguem transitar sem
semanalmente vão aos cultos e grandes dificuldades. Não é de se
celebrações. estranhar, portanto, que a maioria das
Quando questionados sobre o tema da diferenças entre as religiões se expresse
intolerância religiosa o cenário se através de certas proibições e formas de
mostrou bastante diverso. Dada a oração, naqueles rituais que são mais
absoluta predominância de religiões visíveis aos de fora, enquanto que os
aspectos fundamentais das doutrinas
cristãs eles acabam não sentindo no
cotidiano as diferenças entre elas. Isso permanecem desconhecidos. Em outro
pois mesmo entre os alunos evangélicos, artigo Negrão comenta:
por exemplo, poucos se preocupavam Não há, entre os entrevistados,
com as interdições de vestuário e senão muito poucos casos em que a
maquiagem, de modo que não estavam atração por uma religião ou culto
presentes os estereótipos do visual tenha se dado a partir da influência
popularmente chamado de “crente”3. De da mídia. Em alguns casos de
pessoas de maior nível de instrução,
maneira geral eles estavam sendo
é a leitura, sobretudo de livros, que
ensinados a evitarem os conflitos, mas os põem em contato com certas
através do encerramento do diálogo, do religiões (kardecismo, religiões
“não tocar em certos assuntos” e não pela orientais, esoterismos). A maioria
via construção do respeito real às dos mutantes ou futuros mutantes

3
Saia comprida, cabelo longo e sem maquiagem
para as mulheres.

57
religiosos aceita com naturalidade pessoa pode acreditar que um indivíduo
os convites que lhe são feitos, vai tem o direito de ser homossexual, mas
conhecer diferentes grupos, que o outro teria também o direito de ser
submete­se a tratamentos espirituais homofóbico, justificando atitudes
com esperança e sem hesitações. discriminatórias do segundo contra o
Há, portanto, uma predisposição
primeiro com base na noção de respeito
favorável a conhecer, participar e
submeter­se a experiências às suas crenças religiosas. E quando
religiosas variadas, pois todas são percebemos que a maioria das pessoas
vistas como igualmente boas e nem mesmo compreende ou conhece os
como caminhos alternativos para o elementos básicos da doutrina religiosa
mesmo Deus. E creio também que a que afirma seguir, temos um terreno
boa receptividade aos convites e às fértil para desentendimentos variados.
participações provenha de certa
tradição popular em considerar as Retomando a questão do ensino religioso
diferentes religiões como temos que a dinâmica das atividades de
equivalentes funcionais no que se extensão aqui analisadas revelou que a
refere à concessão de proteção e discussão sobre as religiões em sala de
quanto à orientação aula pode ser um instrumento importante
comportamental. (NEGRÃO, 2008, para o ensino da alteridade. Mas para que
p. 130) isso ocorra é necessário que a reflexão
A pesquisa de Negrão, sobre as não se concentre em uma prática
trajetórias religiosas no Brasil, sugere proselitista, que causaria desinteresse
que a transição, a mudança religiosa não entre os alunos, uma vez que há uma
é vista pela maioria das pessoas como diversidade de afiliações religiosas
um problema, mas como partes de uma muito grande. O cotidiano das atividades
experiência sobre o sagrado, indicadas na escola revelou que os jovens estavam
genericamente como igualmente válidas. dispostos a identificarem as mensagens
Esse argumento era o mesmo utilizado comuns das diferentes doutrinas,
pelos alunos participantes das oficinas sintetizadas nas oficinas pela discussão
quando explicavam como evitavam as da máxima “faça aos outros o que
brigas motivadas pelas diferentes gostaria que fizessem com você”. Uma
crenças. O problema de tal argumento é vez estabelecido tal diálogo a religião
que determinados temas, como a servia como canal para a reflexão sobre
homofobia e o machismo, relacionados à as mais variadas temáticas, algumas
interdições de origem religiosa variadas, delas expressas nas diferentes
passam também a ser observados como mensagens de reflexão deixadas pelos
assuntos de opinião pessoal, algo a não participantes, como podemos ver nas
ser debatido. No limite de tal questão a imagens que se seguem:

58
Imagem 01

Imagem 02

59
Imagem 03

Imagem 04

60
Imagem 05

É importante ressaltar que todas essas aquele do respeito à diversidade religiosa


temáticas surgiram das demandas e humana.
trazidas pelos alunos participantes, ao
Algumas considerações
pensarem sobre o valor religioso de amor
ao próximo, de não violência e O aniversário de 30 anos da Constituição
tolerância. Ao lembrarem­se desses parece ser um oportuno momento para
temas estavam se referindo a situações reflexões e balanços do período,
variadas nas quais as pessoas são marcado pela participação política nas
desrespeitadas e violentadas em seus urnas, pelas mobilizações por direitos e
direitos elementares. Queremos destacar pela publicização de temáticas e debates
novamente que o debate sobre as antes não tratados. Um dos elementos
religiões pode, então, auxiliar no que caracterizam esse cenário foi o
desenvolvimento de diferentes aumento da participação de políticos
temáticas, desde que o caminho seja religiosos4, conhecidos na literatura

4
Conforme Figueiredo e Speck (2018).

61
temática como Bancada da Bíblia5, no ensino religioso e do modo como sua
Congresso Nacional e pelos seus implementação se dará parece ser de
distintos posicionamentos. A atuação importância considerável não somente
desses congressistas ficou conhecida para os profissionais da educação, mas
pelo teor conservador principalmente para a sociedade em geral. A experiência
nas questões relacionadas aos direitos da abordagem da temática da religião no
sexuais. A valorização da moralidade ambiente escolar aqui mencionada
privada e a defesa da família tradicional mostrou que essa discussão pode ser uma
caracterizaram a atuação desse grupo na interessante via de abordagem, junto aos
Política Institucional6. Tais alunos, dos valores religiosos e de outros
posicionamentos se combinaram com a valores de tolerância e respeito,
defesa da diminuição da maioridade imprescindíveis para a construção de
penal, da liberalização do porte de arma, uma sociedade mais democrática em que
contra as demarcações das terras o tratamento igualitário figure como um
indígenas e favoráveis ao impeachment dos elementos centrais.
da presidente em 2016. Em que o apelo à
defesa dos valores da família foi
significativamente lembrado na votação Referências
dos deputados favoráveis pela CUNHA, Luiz Antônio. A educação na
admissibilidade do processo. concordata Brasil­Vaticano. Educ. Soc.,
Campinas , v. 30, n. 106, p. 263­280, abr. 2009a.
Se se pode afirmar que no cenário dos Disponível em
últimos anos, se registrou uma <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_artt
ampliação do debate acerca dos direitos ext&pid=S0101­
73302009000100013&lng=pt&nrm=iso>.
com a inserção de novas temáticas e Acessos em 11 maio 2018.
algumas conquistas com http://dx.doi.org/10.1590/S0101­
reconhecimento jurídico; por outro lado, 73302009000100013.
o recrudescimento do conservadorismo ______. A luta pela ética no ensino fundamental:
que se evidenciou com as reações, religiosa ou laica?. Cad. Pesqui., São Paulo,
muitas vezes significativamente v.39, n.137, p.401­419, ago. 2009b. Disponível
intolerantes, contra grupos sociais até em
então excluídos, trouxe dúvidas acerca <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_artt
ext&pid=S0100­
da sobrevivência democrática. E nesse 15742009000200005&lng=pt&nrm=iso>.
contexto marcado por essa confluência Acessos em 01 maio 2018.
de movimentos que o ensino religioso é
______. Sintonia oscilante: religião, moral e
aprovado pelo STF, suscitando civismo no Brasil ­ 1931/1997.Cad. Pesqui., São
questionamentos e também reflexões Paulo, v.37, n.131, p.285­302, ago. 2007.
acerca de qual ensino religioso será Disponível em
implementado, como estará configurado, <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_artt
ext&pid=S0100­
que interesses procura atender e como
15742007000200004&lng=pt&nrm=iso>.
poderá contribuir para a construção de Acessos em 01 maio 2018.
uma sociedade democrática.
CUNHA, Luiz Antônio; FERNANDES, Vânia.
Em um contexto marcado pela Um acordo insólito: ensino religioso sem ônus
intolerância a diversidade política, para os poderes públicos na primeira LDB.
Educ. Pesqui., São Paulo, v. 38, n. 4, p. 849­864,
cultural, e religiosa, a reflexão acerca do

5 6
São assim chamados por ser formada por Conforme Pierucci (1986) e Prandi e Santos
políticos evangélicos e também por políticos (2017) destacaram.
católicos.

62
dez. 2012. Disponível em das religiões no Brasil: religião, sociedade e
<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_artt política, pp. 163­191, São Paulo, Hucitec.
ext&pid=S1517­
PRANDI, Reginaldo; SANTOS, Renan William
97022012000400005&lng=pt&nrm=iso>.
dos. Quem tem medo da bancada evangélica?
Acessos em 11 maio 2018. Epub 31­Jul­2012.
Posições sobre moralidade e política no
http://dx.doi.org/10.1590/S1517­
eleitorado brasileiro, no Congresso Nacional e na
97022012005000019.
Frente Parlamentar Evangélica. Tempo soc., São
FIGUEIREDO NETTO, Gabriela; SPECK, Paulo, v. 29, n. 2, p. 187­214, May 2017.
Bruno Wilhelm. O dinheiro importa menos para Available from
os candidatos evangélicos?. Opinião Pública, <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_artt
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Pierucci e Reginaldo Prandi, A realidade social Recebido em 2018­07­01
Publicado em 2018­07­06

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