E QUESTÃO RACIAL Silvio Luiz de Almeida OS IDEAIS REPUBLICANOS DA IGUALDADE E DO REPÚDIO AOS privilégios parecem, à
primeira vista, incompatíveis com o racismo ou com quaisquer outras formas de
discriminação. Todavia, um olhar mais acurado sobre a história da construção das bases conceituais e, mais ainda, sobre as experiências republicanas modernas leva à constrangedora constatação de que o racismo e as demais formas institucionais de discriminação não foram exclusividade das monarquias, contra as quais os republicanos se ergueram. Na verdade, as mesmas condições históricas e filosóficas propiciadoras da República moderna é que fizeram nascer a raça como categoria política. Assim, é possível dizer que a história do republicanismo moderno é também a história de como a raça foi se configurando como fator de legitimação do poder e como tecnologia de controle social cada vez mais sofisticada. Mesmo que possamos argumentar que o ideal republicano de igualdade permitiu a organização de lutas políticas emancipatórias e antirracistas, a forma republicana de governo nunca foi um obstáculo à institucionalização do racismo, de que são exemplos notáveis os Estados Unidos, a França, a Alemanha, a África do Sul e o Brasil. O significado contemporâneo de raça deita suas raízes nas condições socioeconômicas instauradas pela modernidade. A expansão econômica mercantilista deu aos modernos o fundamento material para uma reflexão sobre a unidade e a multiplicidade da existência humana. A expansão comercial burguesa e a cultura renascentista abriram as portas para a construção do homem universal. Raça, categoria antes utilizada para a classificação de plantas e animais, passa a ser aplicada à catalogação das diferenças humanas. As revoluções liberais marcam a passagem definitiva das sociedades feudais para a sociedade capitalista, em que a liberdade individual, a propriedade privada e o mercado são erigidos em valores universais. No fim do século XVIII e no século XIX, é construído o discurso que dá ao homem europeu e seus descendentes a tarefa de proteger tais valores universais oriundos da razão e de conduzir os “selvagens”, “primitivos” ou “atrasados” à “civilização” e ao “progresso”. Portanto, dos mesmos ideais do qual se extraem os princípios fundamentais do republicanismo, como a universalidade da razão, a afirmação dos direitos humanos e a igualdade perante a lei, também se originam os fundamentos ideológicos do colonialismo e da versão moderna da escravidão. E é dessa encruzilhada, que contrapõe liberdade, igualdade, privilégio e escravidão, que emerge a relação contraditória entre o racismo e o republicanismo moderno. A reflexão sobre o vínculo histórico entre racismo e republicanismo se inaugura sobre dois pontos. O primeiro se refere ao fato de a ligação entre escravidão e republicanismo não ser uma novidade, já que este vínculo existia no modelo de república da antiguidade. O que a modernidade traz como inovação é a determinação racial da condição de escravo. O republicanismo clássico foi construído a partir de sociedades escravagistas, de tal sorte que não se pode separar a ideia de um governo misto da crença em um direito natural que reserva a cada ser um lugar compatível com a sua “essência”. A república é, no sentido clássico, o regime mais apropriado à participação dos cidadãos no governo de acordo com a respectiva natureza. Ora, o direito natural que se relaciona com a politeia e a res publica é também a chave para a montagem jusfilosófica da escravidão como “condição natural”. O segundo ponto diz respeito à relação entre republicanismo e liberalismo. A república moderna é o resultado das revoluções liberais, sobretudo das chamadas revoluções atlânticas. As transformações socioeconômicas ocorridas entre os séculos XVIII e XIX deram origem aos primeiros Estados nacionais estruturados nos moldes republicanos: os Estados Unidos e a França. Foi nesses países que, no século XVIII, o republicanismo moderno surgiu como o arranjo político que visava lidar com a tensão entre liberdade e igualdade. A distinção entre uma tradição republicana e uma liberal no pensamento político dá-se justamente no trato desse conflito entre liberdade e igualdade. Ambas as tradições, tanto a liberal como a republicana, movimentam-se nas fronteiras da sociabilidade capitalista, em que a liberdade individual é condição imprescindível. Mas para o liberalismo, a liberdade se apresenta como negativa, no sentido de que sua realização ocorre com a ausência de constrangimentos ao indivíduo, independentemente da forma de governo. Já o republicanismo altera esse entendimento para colocar a liberdade sob uma perspectiva positiva, e daí ser fundamental a ideia de “não dominação”. Isso quer dizer que a mera existência de um governo que não possa ser controlado, responsabilizado ou mesmo deposto pelo povo é uma ameaça à liberdade individual, ainda que não se apresentem constrangimentos à ação do indivíduo. Por isso, o republicanismo seria, segundo seus defensores, a forma de governo mais apropriada para preservar a liberdade contra qualquer forma de servidão, na medida em que a igualdade é considerada condição sine qua non ao exercício da liberdade. Mas o republicanismo, enquanto “governo dos iguais”, gera ao menos três perguntas que a filosofia política tem se esforçado para responder: 1) quem são os “iguais” que pertencem à república? 2) quem dentre os “iguais” deve exercer o governo? 3) o que fazer com os “não iguais”? Ao se observar as experiências republicanas modernas, constata-se que a raça, direta ou indiretamente, fez parte das respostas a essas questões. Sobre a primeira é importante destacar que, assim como no caso do liberalismo, o republicanismo não implica, a priori, qualquer oposição à escravidão. Pelo contrário: os séculos XVII e XVIII, em que o moderno republicanismo floresceu, foram marcados pela escravidão relacionada ao processo econômico mercantil e, mais tarde, ao industrial. E uma das principais características da escravidão moderna é o seu caráter racial. No caso dos Estados Unidos, a questão da escravidão foi um dos principais pontos de negociação entre os estados após a independência, de tal sorte que se pode dizer que, em alguma medida, os interesses dos senhores de escravo foram preservados para que a República e o capitalismo norte-americano pudessem se constituir. Negros e indígenas foram tidos por séculos como indignos ou inaptos a fazer parte da “comunidade dos livres” e, depois, do “governo dos comuns”, em razão de sua raça. “Livres” e “iguais” eram adjetivos reservados originalmente a homens brancos e proprietários, de tal modo que se pode afirmar que a raça foi fator decisivo para que as condições de participação na vida republicana pudessem ser estabelecidas. A questão racial não passou ao largo da experiência francesa. O berço da mais emblemática das revoluções liberais também se prestou a empreendimentos coloniais que redundaram em escravidão e racismo. No período imediatamente anterior às revoluções da década de 1790 e no Haiti — que fora uma de suas colônias —, a escravidão das plantations e o comércio transatlântico associado a ela constituíam o setor mais lucrativo e dinâmico da economia francesa. Depois da perda do Haiti, em 1794, o declínio econômico foi significativo, mas os senhores de engenho de Martinica, Guadalupe e Réunion resistiram à abolição até a Revolução de 1848 conduzir os opositores da escravidão ao poder. A Revolução Haitiana eclodiu justamente no período inicial da Primeira República, e seus eventos escancararam as contradições do postulado da igualdade universal; havia homens e mulheres que não eram iguais e não poderiam reivindicar os mesmos direitos do homem francês ou de seus descendentes porque não eram brancos. O fantasma da Revolução do Haiti assombrou o imaginário político da burguesia em diversos países do mundo e serviu como justificativa para a expansão da escravidão, bem como para o aumento de políticas de controle racial e até de extermínio. Quanto aos mecanismos de participação no governo, é importante ressaltar que a universalização dos direitos políticos, ou seja, que a democracia, nem sempre fez par com a vida republicana. O encontro entre o republicanismo e a democracia, ainda que esta seja meramente formal, só ocorreu após muitas mortes, greves, protestos, guerras e uma forte mobilização dos movimentos sociais. A condição racial, sexual ou de classe determinava quem poderia ou não participar da vida política, como eleitor ou como candidato, mesmo em contextos de regimes formalmente democráticos ou em que já não havia escravidão. Apesar da universalização dos direitos políticos, o racismo não se desentranhou da república; na verdade, o racismo é a forma de calibrar as contradições do republicanismo moderno, que se equilibra entre um discurso universalista e a hegemonia política e econômica de certos grupos sociais. A raça sempre foi um dos modos de racionalizar as disputas de poder dentro da república. O racismo naturaliza a ideia de que mesmo em países de maioria negra ou indígena caberia a homens brancos ou a pessoas por eles autorizadas o exercício do governo, uma vez que a raça seria uma comprovação “científica” de inteligência ou de preparo emocional e, nesse ponto, negros e indígenas estariam, segundo esses modelos, em desvantagem. Quando o “racismo científico” caiu em desuso ou foi desmoralizado pela grande maioria acadêmica, a desigualdade na república foi transferida para o campo discursivo da meritocracia, concepção individualista que esconde o caráter histórico e político da desigualdade. A questão de quem são os iguais na república articula-se com o tema do nacionalismo. O nacionalismo é central para a construção de um imaginário social de “unidade do Estado” ou da “unidade de um povo”. Trata-se de fornecer as bases ideológicas que permitirão aos indivíduos se reconhecer como pertencentes a uma comunidade política orientada por valores e propósitos singulares. Por isso, a ideia de nação também envolve afirmar quais as características físicas ou culturais, ou qual a “raça”, de um membro legítimo da comunidade, qual posição pode ocupar na sociedade ou em que circunstâncias deve ser afastado. É em torno da defesa da nação e, de forma direta ou indireta, da raça que a dimensão ideológica das lutas políticas pela tomada ou pela manutenção do Estado irá se organizar no contexto da modernidade. Nesse diapasão, é possível compreender que o tipo de nacionalismo emergente nas revoluções do século XVIII tenha gerado o republicanismo moderno, em geral categorizado como nacionalismo “cívico” ou “territorial”, em oposição ao tipo “étnico” ou “orgânico”, originado na Europa do século XIX, sobretudo na Alemanha. O primeiro significava que, pelo menos em teoria, uma pessoa pertencia à nação simplesmente por estar lá e ser humano; já no caso da adesão ao tipo étnico, exigia-se a ascendência correta ou “sangue”. Posteriormente, “solidariedade étnica” e “cidadania política” seriam combinadas, embora em proporções distintas. Portanto, apesar da base universalista exposta nas respectivas declarações de direitos, o republicanismo sempre se viu às voltas com a disputa sobre quem seriam os humanos ou se, mesmo dentre os humanos, todos seriam iguais. E, ainda assim, mesmo nos países em que o questionamento sobre a humanidade dos indivíduos para fins de participação política fora abolido, tornar-se membro pleno da comunidade política exigia a atenção a padrões particulares envolvendo renda, idade, sexo, local de nascimento, ascendência parental ou pertencimento étnico-racial. No caso brasileiro, é impossível separar o processo de formação da Primeira República do debate racial. Após a abolição da escravidão, em 1888, e o fim do Império, em 1889, iniciou-se uma grande discussão acerca da identidade nacional, na qual a concepção de raça desempenhou um papel fundamental. “Quem eram os brasileiros?”; ou ainda: “como criar o brasileiro?” foram perguntas importantes ao projeto nacional. A construção de um país republicano, economicamente liberal e sem escravidão, levou a uma reflexão sobre os rumos da nação e da nacionalidade, o que não significou um país desigual. A Primeira República brasileira, ao contrário da dos Estados Unidos e da França, não conviveu com a escravidão formal, mas, em compensação, assistiu à reordenação da desigualdade social no país em termos nitidamente raciais, no caso do “racismo científico” e das “teorias de branqueamento”, que se tornaram uma espécie de ideologia oficial do país. Na literatura, nos ensaios, nos romances, a raça se estabeleceu como uma categoria essencial para os que desejavam entrar nos debates em torno da cultura nacional. Mesmo que para divulgar, ressignificar ou até negar os discursos advindos do racismo científico, falar do processo histórico de formação do povo brasileiro trazia à baila a questão racial. Assim, a reorganização da desigualdade brasileira pós-abolição foi feita com a participação do Estado e de suas instituições (faculdades de direito, escolas de medicina e museus de história natural), responsáveis pela criação dos mecanismos repressivos e ideológicos que ainda hoje estruturam a desigualdade econômica, o racismo e o autoritarismo brasileiro. O racismo foi e continua sendo um elemento estrutural das experiências históricas do republicanismo. No caso dos Estados Unidos, vale mencionar que com o fim da escravidão, em 1863, e após uma intensa disputa pela hegemonia do país entre os estados do norte e do sul, entraram em vigor, entre os anos de 1876 e 1965, as leis de segregação racial apelidadas como “Leis Jim Crow”. E até hoje a desigualdade entre negros e brancos é uma realidade nos quando são observados os índices de pobreza e a situação da população carcerária do país. No caso da França, as heranças do imperialismo e do colonialismo se apresentam atualmente sob a forma de uma crescente xenofobia e de problemas de integração social de uma significativa comunidade de imigrantes. No Brasil, o racismo fez parte de projetos de nação desde o início da República, de tal sorte que moldou e deu racionalidade às principais formas institucionais de violência, autoritarismo e desigualdade que constituem a vida social brasileira. A efetividade do republicanismo como forma de governo realmente apta a abrigar a democracia, a repudiar privilégios, a promover a igualdade substancial e a garantir a liberdade tem como única viabilidade a ressignificação histórica da “comunidade dos iguais”, a fim de que todos, sem distinções raciais ou sexuais, possam dela fazer parte. Nesta vereda, a mesma história que não permite desvincular racismo e republicanismo também revelou que a radicalização do ideal republicano foi capaz de orientar o imaginário político das lutas sociais, seja para reformas substanciais, seja para revoluções. Ao se definir a política como a possibilidade sempre aberta de rompimento com todas as formas de tirania, o ideal republicano leva, a quem o reivindica para si, a ter na dissolução do racismo uma tarefa que não pode mais ser adiada.
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