You are on page 1of 12
A CRISE DO PERTENCIMENTO RELIGIOSO E O MOVIMENTO DOS DESIGREJADOS* Hilio Cézar Adam**, Denise Santana*** Resumo: 0 objetivo deste artigo € descrever a crise do pertencimento religioso e o movimento dos desigrejados. A meiodologia usada é a de revisdo bibliogrdfica. O artigo esta estruturado da seguinte forma: a primeira parte aborda a questo do perten- cimento religioso. A segunda parte busca conceituar o fenémeno do desigreja- mento, descrever os subgrupos existentes no movimento, as razdes pelas quais as pessoas no querem congregar em instituicdes como a igreja, bem como as criticas que fazem a igreja institucional. Palavras-chave: Desigrejado. Desinstitucionalizagao. Crise de pertencimento. desigrejamento é um movimento de pessoas que abandonaram as igrejas catblicas, protestantes e evangélicas tradicionais, que no frequentam e niio so membros das rejas institucionais. O objetivo deste artigo é observar a crise do pertencimento religioso, conceituuar 0 movimento dos desigrejados, descrever os sub; uupos exis- tentes e mostrar as razSes pelas quais as pessoas abandonaram as igrejas institu- cionais. A metodologia usada foi a revisdo literdria, O artigo est organizado da seguinte forma: a primeira parte aborda a questo do pertencimento religioso. A segunda parte busca conceituar 0 fendmeno do desigrejamento, deserever os subgru- pos existentes no movimento, as raz0es pelas quais as pessoas ngio querem congregar em instituigdes como a igreja, bem como as c eas que fazem 2 igreja institucional. * — Recebido em: 25.08.2022. Aprovado em: 13.10.2022, ** Doutor em Teologia pela Universidade de Hamburgo, Alemanha, ¢ professor adjuato de opoldo/RS). E-mail: julio3@est.edu.br Teologia Pritica na Faculdades EST (Sio Le Jornalista tedloga e historiador. . doutoranda em Teologia pela Escola Superior de Teologia (EST). Mestrado em Teologia pela Escola Superior de Teologia (EST), E-mail: jornalista. denise santana gmail.com 354 Gamih{hos, Gotanta, v.20, n. 3, p. 354-965, 2022. DOI 10.18224/eam v2018 12636 A CRISE DO PERTENCIMENTO RELIGIOSO A situagao de desigrejamento das pessoas mostra um cendrio religioso critico. Nao € a religiosidade que esté em crise, mas o pertencimento institucional. Hoje no se fala em fim da religifio, mas em dificuldade pela qual passam as instituigdes. As pessoas continuam cultuando o sagrado, mas mudou a forma como a busca € realizada. Antes, era de forma institucionalizada. Atualmente, uma parte dos cristdios evangélicos e protestantes decidiram viver a religiosidade de maneira auténoma. Nao se pode falar em fim da religiao no Brasil, mas sabe-se que a igreja passa por uma crise. Comentando sobre o fim da religito, Vieira diz: O colapso das religides que se constata na contemporaneidade ndo aponta para 0 fim da experiéncia espiritual do homem, mas para o fim de uma maneira cultu- ral e milenar de fazé-la. (..) Nas sociedades atuais a experiéncia espiritual do homem € cultivada nao mais pela religido, mas por uma espiriualidade leiga, sem crencas, sem religides e sem deuses (VIEIRA, 2018, p. 14). O fim do pertencimento religioso gera crise nas igrejas. Quanto mais se fortalece a era do conhecimento, sistemas de crencas e de valores entram em descrédito. Va- lores que nortearam a vida das pessoas por longos tempos tendem agora a ser questionados. Junto com os valores, dogmas e crencas questionados, também se constesta as instituigdes ¢ os discursos religiosos. A contemporaneidade trouxe para a sociedade uma crise de sentido, onde as pessoas 355 . inclusive sobre verdades antes consideradas estdio muito abertas a mudangé absolutas. Por causa do conhecimento as pessoas passaram a discordar das antigas teorias como, por exemplo, os dogmas. Antes os dogmas eram inques- tiondveis e agora é reavaliado pelas pessoas que criticam a instituigao religiosa € seus costumes. Vieira acredita que € preciso uma andlise mais ampla para entender a crise ¢ 0 colapso da religifio hoje. Ele afirma que o declinio da religido nao pode ser pensado somente por causa da secularizagao, mas deve ser visto a partir da crise axiol6gica (de valores). © autor diz que, quanto mais se articulam og eventos humanos (secularizagao, modernidade, globalizacio, mudancas de condigdes culturais, sociais e do trabalho, avanco na comuni- cago), mais aumenta a crise axiolégica. Quanto mais a sociedade se tomar secularizada, se tornard menos religiosa. Existe hoje uma crise de sentido e de valores. Vieira cita que 0 colapso da religiio acontece também devido as mu- dancas nas condigdes culturais, sociais e de trabalho (VIEIRA, 2018, p. 105). Estamos diante de uma conjuntura que provoca uma mudanca profunda nos sis- temas axioldgicos, inclusive religioso. O homem contemporaneo que transita, se Gamtithos, cotar ¥. 20, n. 3, p. 354-965, 2022. move, parece igualmente viver um estado de inércia e de perplexidade diame do emaranhado de ideologias, de informagoes, de posturas contrapostas ¢ da inexis- téncia de um sistema de valores universal. Nossas sociedades se encontram em um estado grave de anomalia axioldgica e, por conseguinte e relacionada com esse es- tado, em uma grande crise com respeito as formas religiosas (VIEIRA, 2018, p. 42). Na contemporaneidade, a cultura dominante instiga © homem ao imediatismo, & busca permanente de novidades e de novas experiéncias e a ser o prdprio construtor das verdades. Ocorre uma quebra significativa entre as geragdes na transmis- sfo da heranga cultural, 0 que faz com que 0 legado dos valores, dos saberes e dos bens simbélicos se dilua de geragao em geragao (VIEIRA, 2018, p. 17). Vieira diz que a sociedade contemporinea vive uma crise na transmissio da heranga cultural. Crise que est4 em todas as éreas como familia, Estado, mo- vimentos sociais, entidades civis e tradig6es religiosas. As pessoas perderam todos os sistemas absolutos de referéncia (os sagrados, os naturais e os cien- tificos). E isso aconteceu quando as pessoas descobriram que tm nas maos © destino global. Nao restou as pessoas nenhum critério ou guia, a nito ser a propria sabedoria (VIEIRA, 2018, p. 22). Ribeiro também comenta sobre a crise atual. Segundo 0 autor, sob o signo da contem- poraneidade, vive-se uma época de crise, mas também um tempo marcado por novas possibilidades e emancipagdo. A crise é do sentido que rompe ¢ questiona as origens da tradigao ocidental. Ele ainda diz que, apesar da crise, possibilidade para se criar novos sentidos. Afirma que a sociedade esta em “um século marcado pela transigao de paradigmas, um tempo marcado pelo afa continuado de mudanga, um tempo que questiona o valor dos valores, os seus fundamentos ¢ sua viabilidade” (RIBEIRO, 2014, p. 654). A crise que as instituig6es religiosas atravessam precisa ver vista sob a forma como as pessoas resolveram viver a religiosidade, sem desejo de pertencer a uma igreja institucionalizada. A safda de uma religiao ou denominagio é desencadeada pela discordancia de preceitos e doutrinas, Muitas pessoas que abandonam uma fé 0 fazem porque perderam a credibili- dade em um sistema ou porque acreditam que é possivel adotar, em suas vidas, uma formula simples que conjuge flexibilicacdo de normas e desenvolvimento de uma ética ~ ainda que carregada por simbolos religiosos — muito particular e desinstitucionalizada sob o ponto de vista da declaragao de pertena (BARTZ; BOBSIN; SINNER, 2012, p. 245). atual do universo religioso brasileiro & miiltipla. A sociedade passa por uma época de mudanga de habitos, valores, concepedes e priticas. Existem novos valores na 356 Gamithos, cotar ¥. 20, n. 3, p. 354-965, 2022. miisica, na educacao, na literatura, na arte, nos filmes, nas novelas, no comporta- mento, no trato com as pessoas ¢ na religidio. E um tempo no qual valores educa- cionais, sociais, politicos, morais e religiosos estao sendo contestados e outros so propostos para o lugar. As pessoas hoje aceitam todas as crencas, nas suas mais variadas linhas de credo. A pritica da espiritualidade tem caracteristicas diversas como a aversao a tutela institucional, o fim da verdade absoluta, o individualismo, arreligiosidade emotiva, 0 pluralismo, o pragmatismo e a secularizagao. A primeira caracteristica que se percebe no universo religioso atualmente é a aversio & tutela institucional. Religiao nao é mais ins ‘as pessoas so religiosas sozinhas. $40 autonomas no exereicio das crengas. As pessoas dizem que acre- ditam e cultuam a Deus, mas querem distancia da instituigdo igreja. O grande exemplo sao os desigrejados que nao acreditam na igreja institucional como acreditavam anteriormente, Mas esse movimento diz. que nao deixou de crer em Deus. Por isso, muitos nao vao aos templos, mas confessam a erenga no sa- grado de maneira auténoma, sozinha e em casa, Sob esse aspecto, os exemplos so as reunides nos lares, as células e as igrejas organicas. A segunda caracteristica ¢ 0 fim da verdade absoluta. Mudou a ideia do que é verdadei- 10 ¢ falso. A sociedade procura o que funciona sem querer saber se é certo ou errado. A religiosidade tornou-se subjetiva, mudando a ideia do que & verda- ituciona deiro e falso uma vez que agora nao se esté preocupado com a verdade absolu- ta, Na visio das pessoas, nfo existe mais espago para a verdade inquestiondvel, e para o absolutismo, ismo. A ideia de as pessoas se oporem as ins- tituigdes, como € o caso dos desigrejados que rejeitam a igreja institucional, é por causa da valorizacao do individualismo. Entende-se a desinstitucionalizagao como reflexo do individualismo e escotha por viver uma autonomia diante de instituigdes. Ha uma negacio em se aceitar a tutela das instituigdes, pois acredita-se que as mesmas defendem valores extempordneo: Santos (2018, p. 52) também comenta sobre a autonomia e o individualismo. Diz. que ideia da nao necessidade de controle coletivo e da autonomia individual é © aspecto central do discurso daqueles que decidiram viver a fé apartado das prerrogativas institucionais eclesidstica. Essa autonomia na fé é comentada ainda por Hervieu-Léger que afirma que a visio sociolégica sobre religido ¢ modernidade foi ampliada, sendo atualmente vista em dois aspectos: primeiro, pelo aspecto da dispersao das crengas ¢ das con- dutas. Segundo, pela desregulagao institucional da religiosidade. Hoje se passou a ter mais interesse em se estudar a religido pelo processo de decomposicao e de recomposicao das crencas que ndo se relacionam com 0 dm- bito da verificagdo ¢ da experimentacdo, mas encontra a sua razdo de ser no fato 357 Gamithos, cotar ¥. 20, n. 3, p. 354-965, 2022. de darem um sentido d experiéncia subjetiva dos individuos. Redescobre-se que tais crencas pertencem a praticas, linguagens, gestos automatismos espontane- 05 que constituem o ‘crer’ contempordneo. Permanece-se na singularidade das construcoes de crengas individuais, em seu cardter maledvel, fluido e disperso, na logica dos empréstimos e reutilizacdes de que as grandes tradi¢des religiosas hist6ricas sdo objeto (HERVIEU-LEGER, 2008, p. 23). Ainda explicando sobre a autonomia e a emancipagao, Hervieu-Léger fala sobre laicizagao Hervieu- A quinta caracterfs A sexta das sociedades modernas. Laicizacao implica dizer que a sociedade ¢, cada vez, menos, submetida a regras ditadas por uma instituigdo religiosa. Hervieu-Léger explica que a religido, a0 contririo de periodos histéricos anteriores, nao ofe- rece mais 8 sociedade as referencias, normas, valores que deem sentido a exis- téncia humana. “Na modernidade, a tradigdo religiosa ndo constitui mais um eSdigo de sentido que se impoe a todos” (HERVIEU-LEGER, 2008, p. 34). -Léger diz ainda que modemo niio é 0 fato de as pessoas se apegarem ou se afas- tarem da religido, mas é o fato de que se tornou ilegitima a pretenso de que a religitlo deva governar a vida das pessoas. Crer e participar de uma agio religiosa sfo assuntos de opcdo pessoal que dependem da consciéncia individual. A reli- gido no mais pode impor normas e creneas. Os desigrejados so o exemplo de gfuipo que milo seguem mais o modelo institucionalizado de religizio. ica é a religiosidade emotiva, baseada no sentimento € nao no co- nhecimento, Isso gera pessoas egoistas, individualistas, com uma religiosidade subjetiva onde se rejeita a reflexdio racional ¢ usa os sentimentos e desejos como critério de validagio das coisas. As pessoas se deixam levar pelas emocdes caracteristica dos tempos atuais ¢ 0 pragmatismo. MacArthur diz. que a igre- ja evangélica assimilou a filosofia mundana do pragmatism ¢ que isso traz resultados amargos. Ele conceitua 0 pragmatismo como uma nogao de que 0 significado ou valor € determinado pelas consequéncias praticas. O pragmatismo tem suas raizes no darwinismo e no humanismo secular. E rela- tivista, rejeitando a nogao dos absolutos ~ certo e errado, bem e mal, verdade e erro. O pragmatismo define a verdade como aquilo que é iitil, significative e benéfico. As ideias que nao parecem titeis ou relevantes so rejeitadas como sendo falsas. (...) Quando 0 pragmatismo é utilizado para formularmos juizos acerca do certo, da teologia e do ministério, acaba colidindo com as Eserituras. A verdade espiritual e biblica nao é determinada baseado no que funciona ou que ndo funciona (MACARTHUR, 2016, p. 7). Buscando as consequéncias priticas, atualmente existe a ideia do prazer que deve ser 358 vivido aqui ¢ agora. Passa pelo imaginario popular que o que se pode obter no Gamtithos, cotar ¥. 20, n. 3, p. 354-965, 2022. momento é mais importante do que os resultados a longo prazo. E a busca por satisfag3o do momento em detrimento do futuro, a énfase no resultado. As p ticas so avaliadas em fung’o do que podem produzir. Vive-se em uma época de mudanga de valores. Bauman diz que o sentimento hedonista e do eu primeiro governa o mundo. O hedonismo é um tipo de filosofia que surgiu na Grécia que busca © prazer como estilo de vida, sendo este considerado © bem supremo. “A alta dos sentimentos hedonisticos ¢ do eu primeiro so fendmenos que, sem diivida, se destacam entre as marcas de nosso tempo” (BAUMAN, 2001, p. 36). Para atingir 0 hedonismo as pessoas podem ser tornar pragmiticas e egoistas, pois enxergam somente suas prioridades. Além de egoista, o hedonista ¢ ainda individualista, pois sempre busca suas prioridades, DESCREVENDO 0 MOVIMENTO DOS DESIGREJADOS O cenario religioso brasileiro mostra que muitos evangélicos e protestantes nao querem mais ser membros das igrejas. SA0 os chamados sem igreja ou desigrejados que, de acordo com Bomilcar, so uma tribo informal, com pessoas que desis- tiram da igreja, seja ela de qualquer expressio, mas especialmente as reunidas em templos ou instituigdes eclesidsticas (BOMILCAR, 2012, p. 16) A recusa em participar das reunides da igreja institucional nao significa, para esse ptiblico, abandonar a erenga em Jesus Cristo, De acordo com Campos (2017, p. 30), & ne- cessirio fazer separagiio entre desigrejados e desviados. O primeiro é formado por cristiios que deixaram as igrejas, mas néio abandonaram a fé. Os des! soas que no querem mais seguir as regras de f¢ e pritica do cristianismo, Abando- naram a crenca em Jesus Cristo, rejeitam a confissio dogmitica, nfo reconhecem Jesus Cristo como Salvador, desconsideram o batismo e ndo participam da ceia. Existem varios subgrupos de desigrejados. O piiblico é diversificado e os estudiosos do tema nao chegam a uma Gnica conclusao sobre a quantidade de subgrupos. Por exemplo, Lopes (2010, p. 14) lista trés grupos: o primeiro € de pessoas que andonaram a igreja e a f8. Esse grupo primeiro torna-se desigrejado e depois desviado. O segundo grupo é dos que abandonaram a igreja e mantém a fé. S40 os cristéios sem igreja, os decepcionados por terem vivido algum problema na comunidade. Tentam continuar a ser cristdos sem pertencer ou frequentar um templo. Querem servir a Jesus, mas nao aceitam a tutela institucional. Existem © terceiro grupo de pessoas que so radicais. Os que nao frequentam cultos, pregam o fracasso da igreja organizada, defendem o cristianismo sem igreja, afirmam que as pessoas devem sair da igreja para encontrar Deus, querem que as igrejas acabem em todo o mundo e pregam o fim da instituigao, Bomilcar (2012, p. 23) também afirma que ha varios subgrupos dentro desse piblico. Lista cinco grupos: os que se assumem sem igreja, sem vinculo, parcerias ou 350 © Gamsithos, cotar ¥. 20, n. 3, p. 354-965, 2022. compromissos institucionais com denominagdes; 0s que stio ususrios, em al- gum momento, dos servigos ¢ eventos oferecidos pela igreja como os congres- sos, por exemplo. Mas mantém a distancia preventiva da instituicio formal: hd os que esto firmados na igreja institucional. Fazem parte de toda progra- magao e até assumem cargos, mas desenvolvem relacionamentos superficiais Ainda no entenderam o que é ser igreja de verdade. Nao observam que podem ser um sem igreja mesmo estando dentro dela. A vida social da igreja € interes- sante para esse grupo e niio a genufna conversao; ainda tém pessoas que esco- Iheram ir para as casas, sales, escolas e parques. Buscam a informalidade, os pequenos grupos. Tentam ser 0 mais liberal possivel para ndo dar & reunigo um aspecto organizacional. Mas, de qualquer maneira, acabam criando a propria formatagao, se agrupando em algum local, tendo um tipo de lideranea, obede- cendo a regras como 0 horério ¢ ritual, por exemplo. Ha os cristdos sem igreja que sio adeptos das ministragdes pela televisdo e pela internet. DeYoung cita quatro raz0es pelas quais as pessoas sofrem desilusdo com a igreja. A raza0 ndmero um é a missiol6gica, ou seja, que a igreja nao cresce e perdeu de vista a stta missio. A segunda razo 6 a pessoal. “Aos olhos de muitos que estao afas- tados, em especial os jovens, a igreja est repleta de pessoas de mente fecha- da, ultraconservadores hipécritas, mis6ginos, homéfobos e julgadores. Muitos frequentadores da igreja sentem-se feridos e decepcionados” (DEYOUNG; KLUCK, 2010, p. 15). A terceira razio é a hist6rica. Os afastados da igreja afirmam que ideias gregas suplantaram o pensamento hebraico na igreja. O pa- ganismo invadiu os templos acabando com a igreja pura. A igreja est corromy da, Boa parte do culpado por isso acontecer foi o Império Romano. De acordo com alguns cristaos insatisfeitos, a igreja é um acidente histérico nao biblico, uma capitulagdo ao paganismo. Tudo 0 que consideramos igreja — sermoes, prédios, pastores, liturgia, ofertas, corais & resultado do desvio de seu estado puro, no século I, para a religiio sincretista e institucionalizada que hoje se chama cristianismo (DEYOUNG; KLUCK, 2010, p. 17). A quarta razao para a desilusiio das pessoas quanto a pertencer a uma igreja é a teoldgica. Esse gru- po & composto de pessoas que afirmam que nao € biblica a visio de igreja or- ganizacional, institucional, hierdrquica, programética e com cultos semanais. Jesus niio veio para criar uma religiao. A ideia dos desigrejados é que, “quanto ‘mais pudermos distanciar de todas as doutrinas feitas por homens, dos rituais € das estruturas da igreja como a conhecemos, mais préximos estaremos co- nhecendo a Deus” (DEYOUNG; KLUCK, 2010, p. 18). Esse movimento de abandono das igrejas tem consequéncias. O pensamento de afastar-se 360 da membresia est gerando pessoas que milo participam ativamente, Sdo criticos. Vivem de igreja em igreja praticando o transito religioso, Optam pela distancia e no ajudam na edificagao. Nao contribuem com os cultos das igrejas que visitam, Gamtithos, cotar ¥. 20, n. 3, p. 354-965, 2022. Mas nao Esquecem que cada um prestard contas a Deus acerca da esperanga da fé, de incen- tivar o amor e as boas obras. Esquecem da responsabilidade de ter 0 cuidado pelas pessoas da mesma fé. Pouco fazem por missdes. Outra consequéncia, por causa da safda de muitos evangélicos e protestantes das igrejas tradicionais, é que uma nova onda de igreja alternativa est ganhando forga no Brasil. Siio as reunides domésti- cas ¢ igrejas organicas. Diante das novas ideias para a administracao eclesiastica e doutrinas diferentes, as pessoas apontam novos caminhos de ser igreja. ‘io desigrejadas as pessoas que frequentam as reunides cristas nos lares. Esses evangélicos ndo pregam o fim da igreja tradicional e nao querem se afastar da fé crista. Os cristdos que optam por esse modelo sdo figis, praticam as ordenangas da ceia e do batismo. Querem participar do corpo de Cristo. S6 entendem que podem desenvolver a comunhao em ambiente diferente ao do templo. Veem uma alternativa no modelo bfblico. E a busca por ser parecidos com a pritica de #8 dos primeiros cristaos, em Jerusalém, que também se reuniam em casas, AS DISCORDANCIAS DOS DESIGREJADOS DA IGREJA INSTITUCIONAL Sao intimeras as discordancias dos desigrejados em relagdo a igreja institucional. Por igreja institucional, entende-se “um povo reunido em um lugar. Reunis-se ou ajuntar-se regularmente faz uma igreja ser uma igreja” (HANSEN, 2021, p. 61). Percebe-se, com a descrigdo de Hansen, que uma igreja institucional é um grupo organizado de pessoas que se denominam cristas, que tém regras proprias de encontros, que seguem padrées gerais de organizagio e culto. Sem a intengdo de mudar o que entendem que esté errado, os adeptos do desigrejamen- to optam por se desvincular, tornando-se autonomos na Fé. Os desigrejados se rastam das igrejas institucionais entendendo que o cristo ntio precisa ser mem- bro de uma denominagio, mas do corpo de Cristo. Nao aceitam se prender as obrigagdes religiosas e as tradigOes, procurando vivenciar 0 que de fato Cristo ensinou acerca de um relacionamento simples com Deus. De acordo com Viola, os desigrejados ndio devem dar 0 dizimo (VIOLA, 2009, p. 270). dizimam porque dizem que nao podem se prender a um sistema de recompensas € punigdes. Comentam que 0 Novo Testamento nao ordena que o fiel dé 0 dizimo € que isso & assunto do Antigo Testamento. Acreditam que s6 pode tornar uma comunidade quando houver mais confianga em Deus ¢ menos medo. ofertam ou Lopes (2010, p. 14) mostra os motivos que levam as pessoas a se afastar da igreja institu- 361 cional. Por exemplo, o surgimento de muitas denominagdes evangélicas, 0 poder apostélico das igrejas neopentecostais, a institucionalizaedo e secularizagao das denominagdes histéricas, a profissionalizagdo do ministério pastoral, a busca de diplomas teolégicos reconhecidos pelo Estado, a variedade de métodos de eres- cimento das igrejas tradicionais e 0 fracasso das igrejas emergentes. Gamtithos, cotar ¥. 20, n. 3, p. 354-965, 2022. Sobre a variedade de métodos de crescimento de igrejas, a critica recai sobre a vistio que persegue a quantidade e nao a qualidade de aprendizado das pessoas. Os desigrejados afirmam que, a qualquer custo, a igreja busca mais membros & néio 0 maior crescimento espiritual das pessoas. A busca por crescimento ri- pido gera muitas pessoas alcancadas, mas poucas transformadas. O foco das reunides € para certificar se os objetivos dos projetos foram alcancados e 0 resultado disso ¢ a frustracao ao nao conseguir bater as metas que so compli- cadas e dificeis de cumprir. Isso gera grandes cobrangas por parte da lideranca € disputa entre as pessoas para ver quem atingiu a meta. Os desigrejados rejei- tam todos esses pontos dizendo que buscam estruturas que expressam mais a vida alcangada pela graca de Deus e nao pelo esforgo humano. Os desigrejados criticam ainda lideres manipuladores que usam pessoas para o servico de um ministério. Nao concordam com a igreja voltada para o sucesso da insti- tuigdo. Nao aceitam a estrutura organizacional e a hierarquia, pois consideram que isso prejudica 0 cristio uma vez. que nao o permite viver 0 sacerdécio de todo o crente. Lopes afirma que os desigrejados sfo insatisfeitos por entender que a igreja esta desvirtuada em sua natureza, missao e servigo. Também nao gostam do surgimento de milhares de denominagdes evangélicas, do poder exercido pelas igrejas neopentecostais que pregam a Teologia da Prosperidade prometendo riqueza e satide. Os desigrejados desaprovam a cultura de dar 0 dizimo e reivindicar as béncZos de Deus. Afirmam que aparece a decepeio quando as reivindicacdes nao acontecem. Também nao aceitam a profissiona- ico do ministério pastoral. Na lista de insatisfagdes citando os defeitos da igreja, os desigrejados ainda comentam sobre os escdndalos sexuais e finan- ceiros que sao amplamente divulgados nos meios de comunicagao de massa. Desigrejados dizem que a igreja organizada nao é biblica porque Jesus no construiu uma nos moldes que existe hoje. Afirmam que, a partir do século I foi inventada a hierarquia na igeeja e que aqueles cristdos se deixaram impregnar pelo pensamento filos6fico grego. Que ideias nao cristas se infiltraram no cristianismo primitive 0 desvirtuando dos ensinamentos de Jesus. © Império Romano, principalmente 0 imperador Constantino, teria sido o grande incentivador para que a igreja deixasse de ser pura e simples como era no século I. No século IV a igreja se tornou aliada ¢ influenciada pelo Estado romano. Isso significa corrupedo para os desigrejados. Até as confissdes de fé criadas pelos patristicos, os pais da igreja, so criticadas, pois impedem 362, © livre pensar, na opinido dos desigrejados. Entendem ainda que a Reforma Protes- tante tentou, mas no conseguiu corrigir os erros da igreja. Apesar de Martinho Lu tero, entre outros reformadores, ter se levantado contra a corrupedo, os protestantes, acabaram cometendo os mesmos erros ao criar denominagdes organizadas, sistemas interligados de hierarquia e processos de manutengao do sistema, como a disciplina e a exclusio dos dissidentes, e ao elaborarem confissdes de fé e catecismos que en- Gamtithos, cotar ¥. 20, n. 3, p. 354-965, 2022. gessaram a mensagem de Jesus e impediram o livre pensamento teoldgico (VIOLA, 2009, p. 14). Toda a estrutura € criticada: dizimo, hierarquia nos cargos, ficha de ‘membro, tesouraria, clero, confissdo de fé e faculdade de Teologia. A CRISE COMO OPORTUNIDADE PARA REPENSAR A VIVENCIA COMUNITARIA ‘Ao estudar sobre as pessoas que esto cansadas da igreja, Azevedo disse que o que elas querem € acolhimento e pastoreio. A lideranga tem que atuar para que “todos que entrem na comunidade crist& sejam acolhidos € continuem integrados. Se voce for uma pessoa acolhedora, sua igreja também sera” (AZEVEDO, 2010, p. 52). Burke, no livro que é um chamado a tolerancia ¢ a entender o mundo atual, traz uma refiexao Burke (2006, p. 55) diz. que o mundo atual, a “geragao do eu 363 para a lideranga evangélica. A comegar pelo titulo “Proibida a entrada de pessoas perfeitas”, 0 autor descortina os problemas encontrados nas pessoas hoje. Nas que estdo dentro das igrejas ¢ nas que nao estao. E também chama os lideres & respon- sabilidade e & reflexdo. Entre as citagdes, afirma que os lideres que pretendem atuar com as novas geragdes precisam criar uma cultura na qual as pessoas desajustadas sejam bem-vindas ¢ haja espaco para a cura. “Pessoas desajustadas so pessoas feri- das, Se a igreja deve ser a esperanca delas, os lideres precisam entender o mundo ar- rasado em que vivemos” (BURKE, 2006, p. 56). A proposta é que a lideranga esteja preparada para oferecer 2s pessoas a esperanga e a cura que Jesus ofereceu a Zaqueu. era do “se algo o faz sentir bem, faa-o”, atravessa cinco batalhas sociolégicas que precisam ser superadas para as pessoas viverem a fé, participando da igreja. Sao elas: a batalha com a confianga (porque as pessoas esto perdendo a confianca nos instituigdes); a da tolerancia; a da verdade (que se tornou relativa e nao mais absoluta); a do quebrantamento; e a batalha da solidao. Ele diz que essa geracdo anseia por uma profunda unio, ainda que geralmente estabeleca formas de relacionamentos superficiais. Diz que isolamento ¢ desconfianga andam juntos. Quando uma pessoa cresce isolada e solitaria, vive uma descon- fianca a respeito de relacionamentos. Cabe a igreja gerar uma cultura de envol- vimento para essa geragdo solitdria porque a falta de unido é dolorosa, Com um olhar diferenciado, Burke entende que a cultura atual é mais uma oportunidade do que uma ameaca para a igreja. Ele diz que o pensamento de hoje tornou a busca espiritual culturalmente aceitavel. Isso é uma oportunidade que as gera- Ges anteriores nao viram. Hoje a igreja tem a chance de nutrir a alma de uma geracio espiritualmente faminta. outros e n: Nao ha desafio e oportunidade maiores para a igreja do que lidar com os esmaga- dores sofrimentos emocionais que conduzem nossa geracdo a inimeros compor- Gamtithos, cotar ¥. 20, n. 3, p. 354-965, 2022. tamentos de dependéncia. Se os lideres cristaos nao se prepararem, organizarem € orarem para que as feridas causadas pela experiéncia pés-moderna sejam cura- das, correremos 0 risco de perder pessoas desta geracdio (BURKE, 2006, p. 55), CONCLUSAO Este artigo, ao ter 0 objetivo de descrever a crise do pertencimento religioso e 0 mo- vimento dos desigrejados, enfocou um tema que é desafiador para a igreja evangélica e protestante brasileira na atualidade. Os pontos trabalhados na primeira parte foram a atual conjuntura pela qual passam as pessoas quanto a vincularem-se a uma instituigao religiosa. Foi relatado que no existe crise na religiosidade do brasileiro, mas uma dificuldade que as instituigdes religiosas atravessam. Uma parte dos evangélicos e protestantes vivem uma autonomia quanto a religiosidade, defendendo 0 fim do perten- cimento religioso e isso tem gerado crise nas igrejas. Autores pesquisados entendem que, quanto mais se fortalece a era do conhecimento, sistemas de crengas e de valores entram em descrédito. A contemporaneidade reflete ideias de uma época de crise de sentido. As pessoas esto abertas a mudangas em todas as reas, até mesmo a repensar verdades religio- sas antes tidas como absolutas. Ha uma crise axioldgica que se reflete em todos 6s setores sociais como familia, Estado, movimentos sociais, entidades civis e tradigdes religiosas. Nao é s6 crise por Ao mostrar a crise das instituigbes religiosas, 0 artigo também abordou a forma pela qual as pessoas vivem a religiosidade, sem pertencimento institucional. Hoje se rejeita a tutela de um Lider religioso. Ainda foi observado os aspectos do fim da verdade absoluta, 0 individualismo, a religiosidade emotiva, o pluralismo, 0 pragmatismo e a secularizacao, Ao descrever 0 desigrejamento, os pontos analisados foram 0 conceito do movimen- to, os diversos subgrupos existentes entre os desigrejados e as razdes pelas quais as pessoas abandonaram as igrejas institucionais. Por fim, foi abordada a crise como oportunidade para se reconsiderar a experiéncia de vida crista comunitéria. aus da secularizagao, mas de valores. THE CRISIS OF RELIGIOUS BELONGING AND THE MOVEMENT OF THE UNCHURCHED Abstract: The purpose of this article is to describe the crisis of religious belonging and the movement of the unchurched, The methodology used is the literature review. The article is structured as follows: the first part addresses the issue of religious belonging. In the second part, the structure of the article is 10 conceptualize the 364 Gamstthos, cotar ¥. 20, n. 3, p. 354-965, 2022. phenomenon of unchurched, to describing the subgroups that exist in the move- ‘ment, the reasons why people don’t want to congregate, the institutions such as the church, as well as the criticisms they make of institutional church. Keywords: Unchurched. Deinstitutionalization. Crisis of belonging. 365 REFERENCIAS AZEVEDO, Israel Belo de. Gente cansada de igreja. So Paulo: United Press, 2010. BARTZ, Alessandro; BOBSIN, Oneide; SINNER, Rudolf Von. Mobilidade religiosa no Bras: conversdo ou trnsito religioso. In: REBLIN, luri; SINNER, Rudolf Von (Orgs). Religiao ¢ Sociedade desajios contempordneos. Sao Leopoldo: Editora Sinoda/EST, 2012, BAUMAN, Zygmunt. Modernidade Liquida. Rio de Janciro: Zabar, 2001 BOMILCAR, Nelson. Os sem igreja: buscando ca tia, Sao Paulo: Mundo Crista0, 2012. BURKE, John. Proibida a entrada de pessoas perfeitas: um chamado & tolerfincia na igre. ‘Sao Paulo: Editora Vida, 2006, CAMPOS, Idauro, Desigrejaclos: Teoria, historia e contradigées do niilismo eclesidstico. Rio de Janciro: Bvbooks, 2017. DEYOUNG, Kevin; KLUCK, Ted. Porque amamos a igreja. Sa0 Paulo: Mundo Cristo, 2010, HANSEN, Collin. Jgreja é essencial: redescobrindo a importincia do corpo de Cristo. $0 José dos Campos: Fiel, 202. HERVIEU-LEGER, Danitle. O peregrino eo comertide: a religito em movimento, Petripo- lis, RI: Vores, 2008 LOPES, Augustus Nicodemus. Os desigrejados: Sio Paulo: Tempora Mores, 2010. MACARTHUR, John, Com vergonha do evangelho: quando a igreja se toma come © mundo. ‘Sao José dos Campos, Sao Paulo: Fiel, 2016. RIBEIRO, F. A. S. Crise ¢ emancipae20 no horizonte das espiitualidades no religioses. Horizon- le Revista de Estudos de Teologia e Cigncias da Religifto, v. 12, . 35, p. 654-657, 3 out, 2014. SANTOS, Douglas Souza. Desigrejados: um caso de revonfiguragio religiosa entre os evangé- Ticos brasileiros no contexto da modernidade radicalizada, Rio de janeiro: Bonecker, 2018. VIEIRA. Jose Alvaro Campos. Os sem. re Belo Horizonte: Editora PUC Minas, 2018. igo: aurora de uma espiritualidade no religios VIOLA, Frank. Reimaginando a igreja, Brast tora Palavra, 2009, ¥. 20, n. 3, p. 354-965, 2022.

You might also like