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HISTORIA GEHRAL DO BRASIL Maria Yedda Leite Linhares (in memoriam) Francisco Carlos Teixeira da Silva Ciro Flamarion Santana Cardoso (in memoriam) Hamilton de Matos Monteiro (in memoriam) Jo&o Luis Ribeiro Fragoso Karl Schurster de Sousa Leaio Marcello Otavio Neri de Campos Basile Rafael Pinheiro de Araujo Ricardo Pinto dos Santos Sonia Regina de Mendonca 10° edicdo Atualizada e ampliada 4 O Império Brasileiro: Panorama Politico Marcello Otavio N. de C. Basile PARTE A A INDEPENDENCIA E A FORMAGAO DO ESTADO IMPERIAL A CORTE PORTUGUESA NO BRASIL i A transferéncia da Corte portuguesa para o Rio de Janeiro, em 1808, é, em geral, apontada pela historiografia como o marco inicial do processo de Independéncia politica do Brasil. O recorte, de fato, justifica-se, embora Fernando Novais e Carlos Guilherme Mota acentuem também aqueles condicionantes externos ¢ estruturais de fundo, situados na longa duragio, relacionados a crise do Antigo Sistema Colonial (resultante do desenvolvimento do capital industrial, da expansio dos mercados, das demandas livre-cambistas, da difusio das ideias politicas iluministas e liberais, da desagregaco do Estado absolutista, da Independéncia das Treze Col6nias ameri- canas ¢ da Revolugo Francesa). Seja como for, 0 fato € que o Brasil s6 passaria por mudangas substanciais na sua condigao de Colénia apés a transmigracao da Corte Portuguesa. Esta foi motivada ndo apenas pela circunstancia da invasio de Portugal pelas tropas napolednicas — em represilia & recusa daquele pais em aderir 20 Bloqueio Continental —, mas também, conforme ressaltou Maria de Lourdes Lyra, em fungao da existéncia, desde fins do século XVII, de um projeto reformista ilustrado de cons- tituigao no Brasil de um poderoso Império Luso-Brasileiro. A partir de ento, 0 Rio de Janeiro — até aquele momento resumindo-se a uma simples sede de um vice-reino, cujas Capitanias entendiam-se melhor com a Me- tépole d’além mar do que com o centro administrative da Colénia — torna-se a importante capital de um vasto império mundial que, além de Portugal e Brasil, Ea eeee Cea Ceeeere eee ea ere eee CeCe eee Hee Ce ee eee CeCe cee ee Cee CeCe eCe Cee Cece 176 HISTORIA GERAL DO BRASIL compreendia também possessdes em mais outros dois continentes, como a Africa e a Asia. Verifica-se, assim, na feliz expressio de Maria Odila Dias, a interiorizagao da Metrépole, ¢ 0 decortente processo de enraizamento dos interesses mercantis portu- gueses no Centro-Sul brasileiro. Cerca de quinze mil pessoas tomaram parte na comitiva real, 0 que, para uma populagao que na época girava em torno dos sessenta mil habitantes, acarretou, de imediato, sérios problemas para a vida da cidade, relativos 4 urbanizacio, crise de abastecimento, caréncia de moradias, aumento dos precos dos aluguéis e dos géneros de subsisténcia. Ficaram famosas as iniciais PR. (“Principe Regente”, logo chamadas pela populagao de “ponha-se na rua”) fixadas nas moradias arbitrariamente requisita- das para abrigar os recém-chegados. Uma série de instituigdes politico-administrati- vas do Estado portugués foi instalada na nova sede do Império ultramarino, como 0 Ministério e o Conselho de Estado, o Desembargo do Pago, a Casa de Suplicacio, a Intendéncia da Policia, a Mesa de Consciéncia e Ordens, o Erdrio Régio, o Conselho Real de Fazenda, a Junta de Comércio, Agricultura, Fabricas e Navega¢ao, o Banco do Brasil, a Real Academia Militar e a Real Academia dos Guardas-Marinhas. Além disso, instituigdes cientifico-culturais foram também introduzidas, como a Biblio- teca Real, o Museu Real, a Imprensa Régia (responsavel pela publicagao de livros, de folhetos ¢ do primeiro jornal produzido no Brasil, ainda em 1808, a Gazeta do Rio de Janeiro), 0 Observatorio Astronémico, o Real Jardim Botanico, as Academias Médico-Cinirgicas do Rio de Janeiro e da Bahia (criadas, respectivamente, em 1813 ¢ 1815) ¢ a Academia Real de Belas Artes (fundada em 1820, sob os auspicios da Missao Artistica e Cultural Francesa de 1816). Para viabilizar o governo portugués no Brasil, no entanto, nao bastava apenas a instalagdo de seu aparato burocratico. Era preciso também pér fim ao monopdlio comercial a que desde o inicio da colonizagao estivera sujeita a colénia portuguesa na América. A abertura dos portos brasileiros as nagées amigas, decretada a princi- pio em cardter provisério, por dom Jodo ja em 28 de janeiro de 1808 (ainda em sua estada inicial em Salvador), constituiu um passo importante na mudanga do estatuto colonial; certas restrigdes, porém, foram estabelecidas, como a cobranga de uma taxa de 24% sobre o valor das mercadorias secas importadas, ¢ o dobro para os géneros molhados, a redugdo, mais tarde, dos portos abertos a0 comércio externo apenas 20 Rio de Janeiro, Bahia, Recife, Sio Luis e Belém, e a reserva do comércio de cabota- gem para as embarcac¢6es portuguesas. De resultados prdticos inexpressivos foram, por outro lado, as medidas tomadas, em abril do mesmo ano, visando ao desenvolvimento de uma produgao industrial brasileira, como a revogagio dos alvaris que proibiam o fancionamento de manuf- turas na Colénia, a isengo do pagamento de impostos de importacdo para matérias- -primas destinadas a industria e 0 oferecimento de subsidios as indtistrias de algodio, 14, seda e para as siderurgias. Além do pouco empenho do governo portugués em fomentar de fato este setor econdmico, tais medidas contrariavam francamente os interesses ingleses, desejosos de garantir uma posi¢fo privilegiada para seus produtos industriais no mercado brasileiro. ‘A abertura dos portos ao comércio externo, ainda que (ao menos enquanto durasse a guerra na Europa) contemplasse na pratica apenas a Inglaterra, no era o bastante 0 Império Brasileiro: Panorama Politico 7 para as pretensées britanicas. O governo inglés exigia vantagens especiais, em troca do servico de escolta € protecio que havia prestado comitiva real, quando de sua fuga para o Brasil, ¢ do auxilio militar dado na luta para expulsar os franceses de Portugal. E dentro deste espirito que o Tratado de Comércio e Navegagio, assinado entre Portugal e Inglaterra, em 1810, concedia tarifas alfandegarias preferenciais 203 produtos ingleses, estabelecendo uma taxa de apenas 15% sobre o valor dos mesmos, menor inclusive do que os 16% pagos pelas mercadorias portuguesas ¢ os 24% que continuavam a incidir sobre os géneros exportados pelos demais paises. Os efeitos imediatos e duradouros desta medida consistiram em uma verdadeira avalanche de produtos industrializados ingleses no Brasil (tecidos finos, pecas de vestudrio, objetos de louga, ceramica ¢ vidro, ferramentas, ourivesaria, queijo, manteiga e presunto, para somente citar alguns), na balanca comercial favordvel & Inglaterra, na presenga cada vez maior de comerciantes ¢ negociantes britanicos nas principais cidades brasileiras, no desencorajamento das manufaturas nacionais nascentes, ¢ no decréscimo do co- mércio portugués com o Brasil (tudo isto, mesmo depois que, em 1818, os produtos portugueses passaram a ser taxados com o mesmo percentual atribuido as mercado~ rias inglesas). O mesmo tratado ainda garantia aos stiditos ingleses, residentes nos principais portos e cidades do Brasil, o privilégio de serem julgados, quando envolvi- dos em algum incidente, por um juiz conservador nomeado por seu pais, assim como também concedia a eles tolerancia religiosa ¢ 0 direito de culto privado em suas casas ou em igrejas ¢ capelas que viessem a construir, desde que estas se assemelhassem a domicilios particulares. Na mesma ocasido, um outro tratado entre os dois paises, o de Alianga e Amizade, determinava que a Inquisi¢ao nao seria implantada no Brasil, permitia que as embar- cages de guerra britdnicas entrassem livremente em qualquer porto, dos dominios portugueses, proibia a realizagao do trafico negreiro com qualquer parte da Africa que no fosse possessio portuguesa e ainda firmava o compromisso de Portugal em abolir, futuramente, todo 0 seu comércio internacional de negros escravos. Os tra~ tados de 1810 inauguraram, assim, o perfodo que Alan Manchester denominou de preeminéncia inglesa no Brasil Mas as relag6es internacionais joaninas nao foram somente conciliatérias, e até subservientes, como em relago 3 Inglaterra; para com os vizinhos americanos a t6- nica foi a de uma politica agressiva, e mesmo dominadora. Em represélia & invasio de Portugal, dom Joao declarou guerra a Franca e, em 22 de margo de 1808, mandou invadir Caiena, capital da Guiana Francesa, territério que sempre fora objeto de con- flito, por conta da definicao dos limites setentrionais da América portuguesa. Mesmo tendo sido obtida a rendigdo, os portugueses arrasaram a colénia, e a conservaram como trunfo para quando fossem travadas as negociagées com a Franca. Quando es- tas foram iniciadas, no Congresso de Viena (1815), dom Jodo mostrou-se, no entanto, pouco disposto a ceder sua conquista, mas, sem o apoio da Inglaterra (contriria a0 expansionismo luso na América), acabou aceitando devolvé-la, em 1817, em troca do reconhecimento do rio Oiapoque como limite entre o Brasil e a Guiana Francesa. A esta altura, o governo joanino jé estava envolvido em outro conflito internacional. Em janeiro de 1817, tropas portuguesas, comandadas pelo general Lecor, conquistaram Montevidéu, na chamada Banda Oriental. A regio do Prata, por sua importéncia 178 HISTORIA GERAL DO BRASIL comercial e estratégica, sempre fora alvo da cobiga portuguesa, a qual avivara-se ainda | mais com as ambi¢ées dindsticas de dona Carlota Joaquina (esposa de dom Joao ¢ irma do monarca espanhol deposto Fernando VII), que pretendia tornar-se senhora de parte dos dominios espanhéis na América. Apés alguns anos de luta, toda a Banda Oriental foi anexada ao Brasil, em junho de 1821, com o nome de Provincia Cispla- tina. A politica joanina no Brasil pode ser definida como um constante ¢ hesitante movimento pendular entre 0 velo eo nove. Enquanto no campo econdmico oscilava, como visto, entre as tradicionais préticas mercantilistas restritivas do Estado portu- gués ¢ as demandas livre-cambistas do Liberalismo econémico (estas particularmen- te defendidas por José da Silva Lisboa, futuro visconde de Cairu, seguidor das ideias de Adam Smith), no plano politico concorriam antigos procedimentos tipicos de uma monarquia absoluta e praticas que incorporavam contribuigdes do pensamento iluminista (neste caso, sobretudo por influéncia dos ministros dom Rodrigo de Sousa Coutinho, futuro conde de Linhares, e Silvestre Pinheiro Ferreira). Neste sentido € que se pode dizer que 0 governo joanino constitui um exemplo caracteristico do regime hibrido definido pelo adsolutismo ilustrado. Embora os principais postos do governo permanecessem quase sempre nas mos dos portugueses, ¢ apesar da forte carga fiscal que pesava sobre os brasileiros, parti- cularmente nas capitanias — obrigadas agora a sustentar, néo apenas a Corte no Rio de Janeiro, mas também os gastos relativos a recuperagiio de Portugal (sem falar no énus gerado pelas guerras de conquista) —, dom Jodo nao deixou também de acenar com certos beneficios para as elites brasileiras. Os trabalhos de Alcir Lenharo ¢ Riva Gorenstein evidenciam a politica de integracio econdmica do Centro-Sul brasileiro iniciada pelo governo joanino. Analisando o desenvolvimento do comércio de abas- tecimento da cidade do Rio de Janeiro efetuado pelos produtores ‘do sul de Minas Gerais, Lenharo demonstrou como as politicas de construgao e reforma de estradas e de doagio de sesmarias e concentracao de terras contribuiu, nio sé para interligar as zonas produtoras e consumidoras daquele comércio, e promover 0 povoamento € a colonizagio da regido, como também para a emergéncia de um novo setor da classe dominante — 0 dos produtores e comerciantes ligados a0 comércio de abastecimento da Corte. Jé Gorenstein, analisando o desenvolvimento de outro setor da classe do- minante ~ os negociantes de grosso trato do Rio de Janeiro -, chamou atengo para a rede de relagdes pessoais que entio se constituiu entre estes ¢ a aristocracia rural e a burocracia da Corte, ¢ para o papel fundamental que desempenharam os capitais privados daquele setor (investidos em companhias de seguros, navegacao abastece- dora de cabotagem ¢ trifico negreiro) na esfera de atribuigées de um Estado incapaz de arcar com todas as suas despesas; em contrapartida, o Governo concedia mercés, honrarias, titulos de nobreza, cargos de importdncia, privilégios e monopélios (me- diante o sistema de arrematagao de contratos da Coroa) a seus fiéis colaboradores.! A politica desenvolvida por dom Joao, contudo, beneficiava muito mais o Centro- ~Sul da Colénia do que as demais regides. Para estas, mesmo a elevacao do Brasil & categoria de Reino Unido a Portugal e Algarve, em 1815 ~ reconhecendo for- malmente uma situaso que, pelo menos quanto ao Rio de Janeiro, ha muito jé se vetificava de fato -, pouco significou em termos de mudanga efetiva de sua condigao ee eee eee ee eee ee eee ee eee eee eee eee ere eee O Império Brasileiro: Panorama Politico 179 colonial, permanecendo sujeitas aos arbitrios politicos e administrativos da nova Corte, que nomeava e destituia livremente governadores militares com plenos pode- ses para governa-las. A interferéncia do poder central em tais regides, especialmente no Nordeste, dava-se também no plano econémico, onde, além dos pesados encargos fiscais, ¢ a despeito da liberalizagaio do comércio a partir de 1808, a Coroa continuava como intermediaria nos negécios de exportag’o, ¢ os comerciantes lusitanos seguiam monopolizando as atividades comerciais A insatisfaco crescente com tal situagio,em meio a difusio das ideias iluministas no seio das elites letradas coloniais, aliada a um quadro conjuntural de queda acen- tuada nos pregos dos dois principais produtos brasileiros de exportagio na época — 0 agicar ¢ 0 algodio ~ ¢ de escassez dos géneros alimenticios de subsisténcia, esté na raiz da revolta eclodida em Pernambuco, em 1817. Proprietdrios de terras, comer- ciantes brasileiros ¢ clérigos, reunidos em lojas magOnicas, estiveram entre os Iideres do movimento, que contou também com o apoio das tropas, insatisfeitas com o atraso no pagamento dos soldos, e com ampla participagéo popular, inclusive de libertos e escravos. Em 6 de margo, a revolta é desencadeada, com os rebeldes tomando 0 poder na provincia ¢ proclamando uma Reptiblica, separada de Portugal e do Rio de Janeiro, mas logo contando com a adesio das provincias vizinhas da Paratba e do Rio Grande do Norte, com as quais se pretendia formar uma federagdo. Instituiu- -se, ento, um Governo Provisério, composto por uma junta de cinco membros — 0 padre Joao Ribeiro Pessoa, o comerciante Domingos José Martins, o juiz Jos¢ Luiz de Mendonga, o fazendeito Manuel Corréa de Aratijo ¢ o militar Theoténio Jorge. O novo governo assegurou a liberdade de comércio, a suspensio dos impostos mais onerosos, a anistia dos juros devidos pelos proprictarios extinta Companhia Geral de Pernambuco e Paraiba, o aumento dos soldos das tropas, a permanéncia dos fun- cionérios publicos em seus postos, a liberdade de Imprensa e de cultd, ¢ a defesa do direito de propriedade, além de anunciar para breve a convocagio de uma Assembleia Constituinte. Tratava-se, portanto, de um movimento com sentido essencialmente politico ¢ forte cardter antilusitano, que,-como notou Carlos Guilherme Mota, rejeitando a qialificagio de revolugio, nao almejava provocar mudangas na estrutura social, a0 menos a curto ou a médio prazo. Este ponto fica evidenciado em uma proclamagio, de 10 de margo, feita pelo Governo Provisério 4 populagao pernambucana, onde buscava tranquilizar os proprietérios quanto aos rumores de que pretendia abolir a escravidio, declarando ser inviolavel e sagrada todo tipo de propriedade, ainda as mais oppugnantes ao ideal de justiga, e comprometendo-se a promover a emancipacio dos escravos apenas de maneira /enta, regular, ¢ legal. A. patticipagao popular, por sua vez, também foi contida dentro de certos limites, evitando-se, assim, uma maior radicalizagao do movimento. O sucesso inicial da revolta, todavia, sobressaltou 0 go- verno joanino, que prontamente mobilizou recursos ¢ tropas para sufoca-la. A divisio dos rebeldes em facges divergentes facilitou a tarefa,e a Republica nordestina nao durou mais do que setenta e quatro dias, sendo restaurado o dominio luso-brasileiro na regio em 19 de maio, com a entrada do almirante Rodrigo Lobo em Recife. A bem sucedida repressio ao movimento nao apagou, contudo, as aspiragées latentes de liberdade que estavam, entao, em gestac’o em algumas provincias brasileiras. re re eee eee ee geet 180 HISTORIA GERAL DO BRASIL © MOVIMENTO VINTISTA E A SITUAGAO BRASILEIRA Se um ideal de liberdade, ainda que difuso e regional, jé se desenvolvia em certas pro vincias brasileiras, foi, todavia, um movimento ocorrido em Portugal que veio a pre- cipitar os acontecimentos no sentido da potencializagio deste ideal. Em 24 de agosto de 1820, na cidade do Porto, eclodiu uma revolucao liberal (na esteira da onda revo- luciondria que, no mesmo ano, assolava também Espanha, Grécia, Napoles e Con- federagao Germinica), logo seguida por um movimento de adesio de Lisboa, em 15 de setembro. Desde a transferéncia da Corte, Portugal vivia uma situagdo de pemiiria ¢ caos, decorrente da devastagio provocada pela invasio do pais pelas tropas francesas, da aguda crise econdmica ¢ da perda dos antigos privilégios de que gozava enquanto metrépole de um vasto império colonial. Especialmente a abertura dos portos bra- sileiros ¢ 0 Tratado de Comércio ¢ Navegacio, pondo fim ao exclusive colonial ¢ concedendo vantagens alfandegérias Inglaterra, arruinaram a burguesia comercial portuguesa, afetando também a incipiente industrializagio do pais. A nobreza, por sua vez, reclamava a recuperagao das regalias ¢ do status perdidos com a transferéncia da Corte, pretendendo, ainda, manter, para o seu sustento, o sistema de impostos extraordindrios que recafa sobre comerciantes e funciondrios citadinos, sobretudo de Lisboa ¢ do Porto, o que, naturalmente, era rechagado pelos mesmos. A desvalori~ zagao da moeda portuguesa em relagao a brasileira, acarretando a fuga crescente de capitais para a nova Corte, contribuia ainda mais para aumentar a crise. Além disso, ‘0 governo do pais estava entregue a um Conselho de Regéncia, que, além de ter que prestar contas ao Rio de Janeiro, ainda era presidido pelo marechal inglés Beresford, © qual, depois do fim da guerra com a Franca, continuou comandante-em-chefe do exército portugués, ao passo que a Corte nao dava sinais de que pretendia retornar. A situagio de Portugal, por outro lado, contrastava com a do Brasil, que con- quistava cada vez maiores vantagens ¢ direitos, assumindo, na pratica, a condigao de metrépole, ¢ que, aos olhos lusitanos, parecia passar por um perfodo de franca pros- peridade e otimismo, com perspectivas ainda maiores de progresso. Nao era sem ra- 40, portanto, que os portugueses, em Portugal, sentiam-se preteridos em relagiio aos brasileiros, ¢ protestavam contra a inversdo colonial que de fato vinha se produzindo. Nestas condigées, as ideias liberais, em franca difuséo pela Europa ocidental, en- contraram um terreno fértil para sua recep¢io, fomentando a revolucao vintista. Ini- ciada esta como uma ago militar, logo generalizou-se por setores mais amplos da sociedade, sobretudo entre a burguesia comercial do Reino. O objetivo, em primeiro lugar, era introduzir um sistema de governo liberal em Portugal, transformando as Cortes consultivas do Antigo Regime em Cortes deliberativas, que elaborassem uma Constituigdo, subordinando a Coroa ao Poder Legislativo e garantindo os direitos dos cidadios; em segundo lugar, objetivava-se promover o desenvolvimento econd- mico do Reino, a fim de superar a crise econémica em que se encontrava, Para tanto, duas condigées colocavam-se como necessirias: 0 retorno da Corte & Portugal ¢ 0 restabelecimento dos antigos vinculos coloniais com o Brasil. Tratava-se, portanto, de um movimento com contetidos, de certa forma, ambiguos, apresentando, por uma ado, uma face liberal (no que se refere & Portugal) e, por outro, uma colonialista (no © Império Brasileiro: Panorama Politico 181 que tange as relagbes com as demais partes do Império). Seja como for, enquanto se aguardava a volta de dom Joao VI ¢ se convocavam as eleigses para as Cortes Cons- tituintes, instituiu-se uma Junta Provisdria de Governo em Lisboa e foi proposta a adogao temporaria da Constituicao liberal espanhola de 1812. No Brasil, as primeiras noticias da revolugo no Porto chegaram ainda em ou- tubro, ¢ as repercussdes foram imediatas, porém controversas. Afora o proprio rei e sua familia, e alguns burocratas, ministros e conselheiros de Estado (dentre os quais, destacava-se Thomaz Antonio de Villanova Portugal), interessados na preservagao da estrutura absolutista de governo, quase todos os segmentos sociais saudaram ¢ se mostraram mesmo francos defensores do movimento, embora nem sempre pelos mesmos motivos. Enquanto os brasileiros, em geral, e comerciantes estrangeiros, em particular, se prendiam & face liberal da revolucao, nela vendo o fim do Absolutismo, a preservacao das prerrogativas do Reino Unido e a eliminag&o dos monopédlios ¢ privilégios ainda existentes, os comerciantes portugueses, por outro lado, viram na face colonialista e no trago antibritanico da mesma um meio para a restituigo dos monopélios e privilégios comerciais de que antes gozavarn. As divergéncias, porém, comegaram a aparecer com maior nitidez no tocante & questo do retorno da Corte a Portugal. Tal medida contrariava os interesses do Rio de Janeiro e das demais provincias do Centro-Sul, particularmente, de fazendeiros, negociantes, burocratas e membros do Judicidrio de origem brasileira, e de todos aqueles portugueses que se cnraizaram no Brasil, constituindo negécio, familia, in~ vestindo em terras e propriedades urbanas ou que, na condicao de funciondrios pabli- cos, gravitavam em torno da Corte; também eram contririos a medida alguns minis- tros e conselheiros de Estado, como o ilustrado Silvestre Pinheiro Ferteira, que, em suas Cartas sobre a revolugao do Brasil, defendia a permanéncia de dom Joao no Rio de Janeiro, sob a vigéncia futura de um sistema constitucional, como forma de impedir que uma revolugdo democratica e violenta levasse a dissolugao da unidade brasileira € A separagio entre Brasil e Portugal. Para todos esses grupos, a transferéncia da sede do Reino Unido representaria uma ameaga nao s6 aos seus interesses privados, como também as liberdades e vantagens politicas e econémicas nos tltimos tempos - conquistadas. Defendendo o regresso da Corte Portugal, encontravam-se, por ou- tto lado, as provincias do Norte e Nordeste do pais — desejosas de se verem livres do dominio exercido pelo Rio de Janeiro sobre elas ~, as tropas portuguesas sediadas nas mais diversas partes do territério brasileiro, 0s comerciantes Iusitanos cujos negécios dependiam de Portugal e que ansiavam pelo restabelecimento dos lagos comerciais exclusivistas, ¢ uma parcela da alta burocracia estatal e dos ministros ¢ conselheiros de Estado, como Thomaz Anténio de Villanova Portugal, que forcava a volta do rei 4 Portugal (permanecendo dom Pedro no Rio de Janeiro), de modo a impor a auto- tidade real sobre as Cortes de Lisboa, contendo seus excessos liberais. Observa-se, portanto, que nas duas posigdes — 2 favor ou contra a permanéncia de dom Joao VI no Brasil — encontravam-se elementos identificados ao constitucionalismo monar- quico, seja em prol dos interesses brasileiros, seja em fidelidade as decisées das Cortes Portuguesas, Mesmo niio vendo com bons olhos o movimento constitucional que ameagava li- mitar seus poderes, dom Jodo, contudo, preferiu adotar uma posicao de compromisso, 182 HISTORIA GERAL 00 BRASIL decidindo, a principio, aceitar a reuniio das Cortes, mas conferindo-lhes um carater meramente consultivo, devendo ficar suas proposicées sujeitas & sango real. Ja nas provincias do Norte e Nordeste, as propostas liberais da revolugo foram prontamen- te bem recebidas: 0 Grio-Pard, em 12 de janeiro de 1821, foi a primeira provincia brasileira a manifestar sua adesio a0 movimento ¢ a Constituigdo a ser brevemente claborada, seguido pela Bahia, em 10 de fevereiro; em ambos os casos, as tropas por- tuguesas locais, com 0 apoio de varios brasileiros ¢ do corpo do comércio, se rebela~ ram e depuseram os governadores, estabelecendo juntas de governo diretamente fiéis as Cortes de Lisboa. No Rio de Janeiro, outro pronunciamento militar, feito em 26 de fevereiro pela Divisio Portuguesa — em resposta a dois decretos de trés dias antes, onde se defen- dia a no aplicagao integral para o Brasil da Constituigio a ser feita em Portugal ¢ convocava-se uma Junta de Cortes, com o fim de adaptar as novas leis ao Brasil ~, levou a troca de ministério e ao juramento, pelo rei, das bases da futura Constituicao, A negociacio levada a cabo pelo principe dom Pedro com os revoltosos evitou, con- tudo, a adogio imediata da Constituigdo espanhola enquanto nio entrasse em vigor a portuguesa, como acontecera na Bahia. Ainda na esteira do movimento de 26 de fevereiro, dom Joao assinou dois decre- tos em 7 de marco - um afinal anuaciando seu regrésso para Lisboa e a permanéncia de dom Pedro no Brasil, na condigao de regente, ¢ outro convocando cleigées para a escolha dos deputados brasileiros 4s Cortes. As eleigdes — indiretas, mas mediante sufrdgio universal masculino (o que no mais se verificaria durante todo o século) - seriam feitas conforme o complexo método estabelecido na Constituigao espanhola: 0s paroquianos maiores de vinte e cinco anos e do sexo masculino dejcada freguesia nomeavam, pela pluralidade de votos, os compromissdrias de sua freguesia, os quais, reunidos em assembleias de paréquia, escolhiam os eleitores de paréquia, que, por sua vez, em assembleias de comarca, elegiam os eleitores de comarca, que, em assembleias de provincia, elegiam, por fim, os deputados. A partir de entéo, o clima de agitacao politica tomou conta da cidade, marcan- do o engajamento da populagio carioca & causa constitucionalista. Em 21 de abril, na praca do Commercio, uma assembleia de eleitores que setiam consultados acerca das instrugdes a serem deixadas por dom Joao VI a dom Pedro, bem como acerca da indicagio daqueles que ficariam como secretérios do principe, foi além das expec- tativas do governo, reunindo uma multidao de pessoas que passaram a exigir a ado- do imediata da Constituigdo espanhola enquanto a portuguesa nfo fosse redigida, a permanéncia da familia real no Brasil, a nomeagio, pela assembleia, de uma junta ou conselho de governo, e a proibicao de que qualquer embarcagio saisse da barra sem a autorizagio desse novo governo. Dom Joao, a principio, cedeu quanto primeira reivindicagio, mas, no dia seguinte, determinou (suspeitou-se, na época, de que a ordem partira de dom Pedro) que o exército dissolvesse a assembleia pela forga,o que resultou em muitos mortos e feridos entre os manifestantes, sendo, ainda, anulada a adogao da Constituic&o espanhola. No dia 26 do mesmo més, a Corte retornava 4 Lisboa, deixando dom Pedro no Rio de Janeiro, como principe regente. ‘A regéncia de dom Pedro foi inicialmente marcada por um clima de incerteza e inseguranca quanto as inclinacées liberais ou despéticas de seu governo, fato agravado 0 Império Brasileiro: Panorama Politico 183 pela crise financeira decorrente do desfalque dado pela familia real no Banco do Bra- sil, antes de sua partida, e da suspensio, com o retorno da Corte, das contribuicoes tributdrias enviadas até entdo pelas provincias ao Rio de Janeiro. Esta desconfianca Jevou, nesta cidade, a novo levante das tropas portuguesas comandadas pelo general Avilez - a Bernarda de 5 de junho -, obrigando dom Pedro (e todo o funcionalismo publico) a jurar as bases da Constitui¢ao portuguesa, a destituir o ministério ¢ tam- bém a nomear uma Junta Consultiva de Governo. Enquanto isso, nas provincias procedia-se, em diferentes datas, as eleigdes das Juntas de Governo, que passavam a administré-las em cardter de Governo Provisério, e dos deputados constituintes, que deveriam ser logo enviados para Lisboa, onde as Cortes ja se encontravam reunidas ¢ os trabalhos em andamento. Em algumas pro- vincias registraram-se violentos distirbios, como em Pernambuco, onde, em agosto, instalou-se uma junta rebelde de governo na cidade de Goiana, que se opés pelas armas a de Recife; o impasse sé foi resolvido em outubro, com a elei¢do de um novo governo. Nao se tratava, porém, de um movimento de fidelidade a dom Pedro ou de rejeigao as Cortes, mas apenas de uma briga interna entre faccdes politicas locais. Embora o Rio de Janeiro tenha sido a primeira provincia brasileira a escolher seus representantes, a primeira bancada a tomar assento nas Cortes foi a de Pernambuco, em 29 de agosto. As demais representagées foram chegando muito lentamente, a0 longo de 1821 e de 1822, finalizando-se a Constituigao em 12 de julho deste ano, sem que vinte e trés deputados, dos sessenta e nove eleitos pelo Brasil, chegassem a tempo de participar dos trabalhos. Provincias como Minas Gerais ¢ Rio Grande do Norte nem chegaram a ser representadas por qualquer um de seus deputados. Todavia, antes mesmo da chegada dos primeiros representantes das provincias brasileiras, as Cortes ja discutiam assuntos sobre o Brasil; um parecer de 21 de agosto propunha o envio de tropas para sustentar a ordem no Brasil, a extingao dos tribunais superiores no ultramar ¢ a volta de dom Pedro a Portugal. Em 29 de setembro, j com a presenga dos deputados de Pernambuco e do Rio de Janeiro, foram decretadas me~ didas que referendavam as Juntas Provisérias de Governo ja existentes ¢ determina~ vam a formagio de tais juntas nas provincias ainda governadas por capities-generais, ficando todas subordinadas diretamente 4 Lisboa; estabeleciam também a criagio, nas provincias, do cargo de governador das armas, independente das juntas, ¢ sujeito ao governo do Reino ¢ as Cortes. Esvaziavam-se, assim, os poderes de dom Pedro, re- duzindo-o, como ele proprio ja se queixara em carta ao pai, mais a um antigo capitio- ~general de provincia (do Rio de Janeiro) do que a regente de um reino. Os mesmos decretos de setembro determinavam, por fim, o regresso do principe & Portugal. Os deputados brasileiros presentes no se opuseram as medidas, pois ainda compartilha- vam com os representantes portugueses uma identidade de interesses acerca da causa do Império Luso-Brasileiro. Além disso, a exceco dos deputados paulistas (que sé chegariam a Lisboa em 1822), nao tinham instrugées precisas a seguir, votando de acordo com suas préprias apreciagdes das matérias debatidas. As Lembrangas e Apontamentos do Governo Provisério para os Senbores Deputados da Provincia de Sao Paulo constituiam, portanto, o tnico plano de instrugdes apresentado Por uma provincia brasileira destinado a orientar a ago dos seus representantes nas Cortes. De autotia de José Bonifécio de Andrada ¢ Silva, 0 documento propunha, 184 HISTORIA GERAL DO BRASIL entre outras medidas: a fixagio da sede do Reino Unido em um ponto geogrifico central do Brasil ou, quando muito, sua alternAncia, na sequéncia dos reinados ou por um periodo sucessivo de tempo no mesmo reinado, em Portugal e no Brasil (neste caso, instalando-se uma regéncia, presidida pelo principe hereditério da Coroa, no reino onde a Corte nao estiver situada no momento); a criago de um Conselho de Estado, cujos membros seriam nomeados pelas Juntas Eleitorais de Provincias, em igual nimero pelo Reino de Portugal ¢ Estados Ultramarinos; a observancia da mes- ma relagio paritéria para as deputagdes nas Cortes; a elaboragio de cédigos civis e criminais de acordo com as particularidades de cada regio, a catequizago geral dos indios selvagens; um melhor tratamento dispensado aos escravos ¢ 0 favorecimento de sua emancipagio gradual; o desenvolvimento do ensino, com a criagao de escolas de primeiras letras em cada cidade, vila ou freguesia, com a implantacio de um gind- sio em cada provincia e com a criagao de pelo menos uma universidade; e uma nova politica agréria, preconizando o confisco das sesmarias improdutivas e das posses ilegais, a venda e a demarcagao de pequenos lotes de terras, revertendo o dinheiro ganho para favorecer a colonizacio de europeus pobres, indios, mulatos e negros for- ros, a quem seriam dados pequenos lotes de terras para cultiva-las. Nenhuma dessas medidas, porém, veio a ser implementada pelo Congreso de Lisboa. © FICO E A INDEPENDENCIA DO BRASIL Assim que se tomou conhecimento no Brasil, em dezembro de 1821, da decisio das Cortes de trazer dom Pedro de volta a Portugal, a reacio foi imediata. Aqueles mesmos grupos e provincias que defenderam a permanéncia de dom Joao no Brasil reuniram-se agora em torno do principe regente para convencé-lo a nfo atender as determinagoes de Lisboa, passando a encarar o rei como um prisioneiro das Cortes. O crescente descontentamento gerado pelas tentativas do congresso portugués de enfraquecer a regéncia do Rio de Janeiro fez com que a campanha pelo ico ganhasse rapidamente forga e amplitude. Dentre os principais articuladores deste movimento estava José Bonificio, entio vice-presidente da Junta Provincial de Sao Paulo, que,em uma representa¢o convocando os mineiros a resisténcia, acusava o decreto das Cor- tes de ser uma medida despética que contrariava os legitimos interesses brasileiros ¢ a decisio de dom Joao de deixar seu filho no novo Reino, e que visava apenas desu- nir as provincias, instaurar a-anarquia e subjugar o Brasil. Rio de Janeiro, Sio Paulo ¢ Minas Gerais colocaram-se, assim, & frente do movimento pelo fico, organizando representagdes solicitando a permanéncia de dom Pedro. O principal manifesto, redigido por frei Sampaio e assinado por nada menos que ito mil pessoas, proveio do povo do Rio de Janeiro, tendo o presidente do Senado da Camara desta cidade, José Clemente Pereira, como seu principal promotor. No docu- ‘mento, ficava patente a ideia de que a partida do principe regente levaria A anarquia, a0 rompimento dos lagos de unio entre as provincias e a Independéncia do Brasil, 0 que no interessaria nem a este pais, nem a Portugal. No dia 9 de janeiro, uma pro- cissio de homens bons e do povo em geral da cidade dirigiu-se ao Pago para entregar © manifesto a dom Pedro, juntamente com uma representagio, no mesmo tom dra- mitico e alarmista, de negociantes ¢ oficiais de ourives. Na ocasiao, Clemente Pereira 0 Império Brasileiro: Panorama Politico 185 pronunciou um discurso inflamado, novamente lembrando a ameaga indesejivel de Independéncia, o perigo da emergéncia de uma fac¢ao republicana, como a que se projetou em Pernambuco em 1817, ¢, pela primeira vez, reivindicando um corpo legislativo particular para o Reino do Brasil. O clima de indignagao geral desper~ tado pelos decretos das Cortes de Lisboa foi observado pela viajante inglesa Maria Graham, que registrou, em seu Diario, a intensa expectativa da populagao carioca em relacio 20 dia 9 de janeiro, visto por ela como decisivo para o Brasil. De fato, nesta data, dom Pedro, que até entdo protestara, um tanto hesitantemente, prestar obedi- éncia as Cortes, como revelam as cartas que escrevia a seu pai, finalmente proclarna 20 povo carioca sua permanéncia no Brasil, Era o primeiro sinal de que o governo do Rio de Janeiro comegava a agir de maneira independente em relagao as decisées das Cortes. Nem todos, no entanto, concordavam com o fico. As tropas portuguesas interpre- taram a decisio do principe regente como um franco desafio 4 autoridade constitu~ cional das Cortes. Logo a Divisio Auxiliadora do Rio de Janeiro, comandada por Avilez, novamente se rebela, realizando, nos dias 11 e 12 de janeiro, mais uma Ber- narda, Soldados ¢ oficiais portugueses promoveram um quebra-quebra pela cidade e pronunciaram discursos insolentes contra dom Pedro, ameagando levé-lo preso de volta 4 Portugal. Desta vez, contudo, a divisdo insurgente, composta de cerca de mil ¢ seiscentos homens, encontra forte resisténcia por parte das tropas brasileiras, dos regimentos de milicias locais e de uma massa de civis pertencentes as mais diversas camadas sociais, somando uma forga estimada entre quatro mil ¢ seis mil pessoas. Frente a esta mobilizagao ea enérgica atitude de dom Pedro, ameagando 08 revoltosos com punigées por deslealdade e desobediéncia, a diviséo portuguesa afinal consentiu em depor as armas (contanto que as tropas brasileiras fizessem o mesmo) e retirar- ~se para a Villa Real da Praia Grande (atual Niter6i). Pela primeira véz a Regéncia ficava livre do constrangimento militar que as tropas portuguesas lhe impunham. Ao mesmo tempo, cresciam os antagonismos ¢ os conflitos de rua entre brasileiros ¢ por- tugueses, no apenas na Capital do Reino, como também (por vezes com forga ainda maior, como no Para, em Pernambuco e na Bahia) nas provincias. Embora ainda nao se observasse um ideal separatista, a partir dai verifica-se uma crescente congregacao de forcas em torno do principe dom Pedro, que, por sua vez, volta-se cada vez mais para a defesa dos interesses brasileiros. Esta nova disposigao é assinalada pela formagao, em 16 de janeiro, de um novo Ministério. Neste, destacava~ -se a figura do paulista José Bonifacio, defensor convicto, até entio, do ideal de Impé- rio Luso-Brasileiro, contanto que fossem respeitados os interesses e as pretrogativas do Brasil enquanto reino. A partir de entio, o governo do Rio de Janeiro passa a desenvolver uma politica que visa consolidar sua posi¢o como regente do Reino do Brasil, em relaco tanto & Portugal, como as demais provincias brasileiras. E neste sentido que se da a criacio, em 16 de fevereiro, do Conselho de Procuradores das Provincias, embrio do futuro Conselho de Estado. Consistia tal instituigao em um érgio de cardter consultivo (embora na ideia original, de Clemente Pereira, fosse deliberativo, o que deu mar- gem a algumas confusdes), formado por procuradores eleitos das provincias, as quais passavam, assim, a serem dotadas de uma instancia de representatividade na Capital 186 HISTORIA GERAL DO BRASIL do Reino, Caberia ao Principe Regente convocar ¢ presidir 0 Conselho, embora seus membros pudessem reuni-lo em situagdes de emergéncia. Era esta, portanto, uma forma de congregar as diversas provincias em torno do centro comum do Rio de Janeiro, afastando-as da ingeréncia das Cortes. Nem todas, entretanto, concordaram com a ideia, havendo algumas provincias, como Bahia e Maranhfo, que interpretaram a medida como o gérmen ilegal de uma Assembleia Legislativa, a qual conflitacia com a soberania das Cortes ¢ com a propria representaco brasileira af presente. Na Bahia, bem como em Minas Gerais, ocor- reram distitbios, em fevereiro ¢ marco, promovidos pelas tropas portuguesas, que procuravam assegurar fidelidade as Cortes. A agitagao foi intensa também quando da realizagio das eleigdes para os procuradores de provincia, ocorrendo, mesmo no Rio de Janeiro, confiitos entre brasileiros e portugueses. A despeito destes problemas, a Regéncia comegou a angariar 0 apoio de varias provincias, como Espirito Santo, Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Mato Grosso, Goids, Cisplatina e, de maneira ainda um tanto hesitante, Pernambuco, além do Rio de Janeiro, de Sao Paulo e de Minas Gerais. Nesta tiltima, onde os incidentes militares foram contornados pela presenca do Principe Regente, os deputados eleitos recusaram-se a embarcar para Lisboa, em protesto contra os tiltimos decretos baixados pelas Cortes; 0 mesmo também fez um representante substituto do Espirito Santo. Desde 0 inicio do movimento constitucionalista, as tropas portuguesas constitui- am a principal forca de resisténcia a qualquer ato que pudesse significar uma atitude autonomista do Brasil ou de desrespeito as Cortes de Lisboa, ndo sendo poucas, como visto, as dernardas que promoveram em praticamente todas as provincias para garantir a soberania daquela assembleia. Por conta disto, dom Pedro, em sua nova politica de defender os interesses brasileiros, determinara, em 17 de fevereiro, a ex- pulsao, para Portugal, da Divisio Auxiliadora, que permanecia acantonada na Praia Grande, E, em marco, nao permitiu o desembarque da guarnigao portuguesa enviada para substituir aquela Divisio. Enquanto isso, em Lisboa, as Cortes reconheciam a necessidade de apreciar me- Ihor a situacdo do Brasil. Instituiu, assim, uma comisséo especial, integrada por seis deputados brasileiros e seis portugueses, que deveria emitir um parecer sobre o assun- to. Em 18 de margo, foi apresentado o parecer, que propunha, entre outras medidas, a permanéncia de dom Pedro no Rio de Janeiro, aventando a possibilidade de estabele- cer no Brasil um ou dois centros de delegacao do Poder Executivo, aos quais ficariam subordinadas as provincias; as Juntas de Fazenda e os comandantes de armas, por sua vez, passariam a ser subordinados as Juntas de Governo de suas provincias. A chegada das noticias do fico e da formacio do ministério de janeiro provocaram, no entanto, indignagio ¢ protesto nas Cortes, que encararam tais acontecimentos como insubor- dinagao ¢ ato anticonstitucional. Formaram-se, entio, duas correntes, identificadas por Valentim Alexandre como integracionista e conciliatéria: a primeira, defendendo medidas rigidas para o Brasil, condenava nao s6 0 parecer, como também a junta pau- lista que promovera a representagao criticando a tirania das Cortes, durante a cam- panha do fico; a segunda, preocupada com a preservacao do Império Luso-Brasileiro, aprovava 0 parecer, contando com o apoio da deputagao brasileira. O impasse levou ao adiamento da votagio, que nao foi mais realizada. 0 Império Brasileiro: Panorama Politico 187 No Brasil, 0 Senado da Camara do Rio de Janeiro, por proposicéo de Clemen- te Pereira e Domingos Alves Branco, confirmou a autoridade de dom Pedro como regente pela vontade popular (e nao mais, como até entio se revestia, pela heredita~ riedade ou por delegacao das Cortes), ao oferecer-the o titulo de Protetor e Defensor Perpétuo do Brasil. Alegando nao precisar este Reino de protetor algum, o principe recusou tal epiteto, aceitando de bom grado, porém, em 13 de maio, 0 titulo de De- _fensor Perpétuo do Brasil No dia 23 deste més, foi dirigida a dom Pedro, em reagio ao parecer da comissio especial das Cortes, uma representacao com duas mil, novecentas ¢ oitenta ¢ duas as- sinaturas, promovida por Joaquim Gonsalves Ledo, Januario da Cunha Barbosa, An- tonio Joao Lessa, Clemente Pereira, Joao Soares Lisboa, ¢ Bernardo José da Gama, pedindo a convocacao de uma Assembleia Geral das Provincias do Brasil. A ideia de ctiar um corpo legislativo no Brasil, paralelo as Cortes de Lisboa, j4 fora langada des- de margo, mas desta vez tratava-se de uma assembleia, eleita por voto popular, no sé legislativa, mas também com poderes especiais para adaptar a Constituicao a ser feita em Portugal, estabelecendo alteragdes ¢ emendas que fossem convenientes ao Brasil. Contudo, ainda nao ficava claro nesta proposta o cardter constituinte da assembleia, 0 mesmo se observando em outra representacio, de 3 de junho, feita pelo Conselho de Procuradores das Provincias, sob a inspiragio de Gongalves Ledo, procurador pelo Rio de Janeiro. No mesmo dia, todavia, dom Pedro baixou um decreto, convocando, de maneira inequivoca, uma Assembleia Geral Constituinte e Legislativa, composta por deputados eleitos pelas diversas provincias. Decidia-se também nao mais obede- cer as Cortes, enquanto estas nao mudassem de postura. Apesar de alguns questionamentos e mesmo de uma oposico mais séria (como na Bahia), quanto ao cardter constituinte desta assembleia, uma vez que conflitava com as Cortes portuguesas e com a deputagiio brasileira af assentada, a medida revestiu-se, em geral, de grande efeito integrador, no sentido de constituir um passo decisivo para dotar 0 Brasil de um centro de poder auténomo e comum (agora nfio sé executivo, mas também legislativo, e com fung6es constituintes), que congregasse as provincias ao redor do Rio de Janeiro. Passava-se, assim, a se delinear o perfil de uma Monarquia Dual, em que Portugal e Brasil manteriam-se unidos em uma mesma Nacio, mas com constituigdes semelhantes adaptadas as suas realidades e delegacées préprias dos poderes Executivo e Legislativo. ‘A grande polémica, no entanto, se deu em relagao a forma como se deveriam realizar as eleigdes para a assembleia brasileira. Em torno desta questao é que, pela primeira vez de maneira contundente, se dividiram as elites politicas e intelectuais do Reino que defendiam uma maior liberdade c os interesses mais especificos do Brasil, sem, com isto, abdicar da unio com Portugal. Afloraram, ent&o, como identificadas por Liicia Neves, duas correntes, dotadas de visées politicas um tanto distintas. A pri- meira, mais moderada, postulava uma monarquia centralizada politica e administra~ tivamente, com predominio do Poder Executivo sobre o Legislativo, ¢ cuja soberania residia estritamente no rei e na Nacio (entendida esta como o corpo de representan- tes); faziam parte deste grupo José Bonifiicio e seus irmios Antonio Carlos ¢ Martim Francisco, José da Silva Lisboa, Azeredo Coutinho, Aratijo Lima, Nicolau de Cam- pos Vergueiro, Manuel da Camara Bittencourt, Raimundo da Cunha Mattos, José 188 HISTORIA GERAL DO BRASIL Joaquim da Rocha, Luis Gongalves dos Santos, frei Francisco Sampaio ¢ Hipélito da Costa, entre outros individuos, em sua maior parte formados na Universidade de Coimbra e vinculados ao aparelho de Estado, tanto em Portugal como no Brasil. Por sua vez, a segunda corrente, mais radical, almejava uma monarquia com menor gran de centralizacao ¢ de concentragio de poderes, predominando o Poder Legislative sobre o Executivo, ¢ calcada na soberania popular; compunham este grupo individu- 08, em sua maior parte sem formagao universitaria, que, por suas intensas atividades jornalisticas, mais se enquadrariam no perfil de uma elite intelectual (embora alguns também atuassem como politicos), como Gonsalves Ledo, Janudrio da Cunha Bar- bosa, Clemente Pereira, Alves Branco, Jodo Soares Lisboa, Bernardo José da Gama, Luis Augusto May, Joio Baptista de Queiroz, Francisco de Montezuma, Pereira da Nébrega, Silva Porto, frei Caneca, Cipriano Barata, Lopes Gama, Diogo Feijé, José de Alencar e Muniz Tavarez, entre outros. Embora ambas as facgdes compartilhas- sem da mesma cultura politica liberal luso-brasileira, concordando, naquele momen- to, quanto ao ideal de uma monarquia constitucional ¢ representativa, divergiam, no entanto, a respeito dos fundamentos e das relagées de poder relativos a este sistema? Se até este momento a aco se dava essencialmente em reagfo a demandas ex- temas (a politica das Cortes de Lisboa) que procuravam modificar as relagdes es- tabelecidas entre Brasil ¢ Portugal ~ 0 que mantinha relativamente unidos aqucles dois grupos —, os antagonismos entre estes comegaram a se mostrar mais candentes quando se tratou de definir as bases internas de um novo concerto politico que se esbocava a partir de entao. As eleigdes para a Assembleia Constituinte brasileira re- velaram as diferentes posturas, Enquanto 0 grupo de Ledo, baseando-se no principio rousseauniano da seberania do povo, defendia que as cleigdes fossem diretas, 0 de José Bonifacio, avesso a uma maior participagio popular, pretendia a realizagao de eleigdes indiretas. Esta ultima proposta acabou vencedora, por maioria de votos, no Conselho de Procuradores, ficando, entio, decidido, pelas instrugdes de 19 de junho, que os paroquianos do sexo masculino a partir de vinte anos escolheriam os eleitores de paré- guia, que, por sua vez, reunidos nas cabegas dos distritos eleitorais de cada provincia, clegeriam os deputados, em ntimero de cem. A partir dai, verifica-se um posicionamento mais nitido, j4 esbogado desde abril, por parte da corrente mais radical, quanto a formulagéo de uma aspirago separatista ¢ de constituicao de um Império brasileiro, embora nao se deixasse de acenar ainda com a possibilidade de preservagao da unio entre os dois Reinos. Mesmo a corrente moderada j4 comegava a hesitar em relacdo as perspectivas reais de manutengao do Reino Unido. Em Portugal, verificavam-se sucessivos atritos entre os deputados brasileiros ¢ portugueses. Desde maio, as Cortes jé haviam decidido, contrariamente ao voto dos representantes brasileiros, o envio de tropas para Bahia, a fim de evitar uma eventual revolta de negros e mulatos na provincia e de impedir a propagacao pelo restante do Reino das ideias separatistas que germinavam no sul do pais. Em fins de junho € inicio de julho, novo e mais sério conflito se daria por conta dos artigos adicionais a Constituigio, referentes ao Brasil, sugeridos pela deputagao brasileira. Tais arti- gos, que em seu conjunto definiam a introdugio de um sistema federalista no Reino Unido, consagrando a fSrmula da Monarquia Dual, propunham o estabelecimento O Império Brasileiro: Panorama Politico 189 de uma regéncia com amplos poderes no Brasil, a existéncia de Cortes Especiais em cada reino, a manutengao das Cortes Gerais, compostas paritariamente por membros dos dois congressos, na Capital do Império, a instalago de um Tribunal Supremo de Justiga no Brasil. Apesar dos apelos dos deputados brasileiros de que apenas tais medidas evitariam a Independéncia, a proposta nfo foi aceita. Mais uma forte discordancia entre os deputados dos dois reinos se deu, no mesmo periodo, em razio da deciséo tomada pela Comissao sobre os Negécios do Brasil de processar a Junta Governativa de Sio de Paulo e outros quatro individuos ~ dentre estes José Bonifacio -, pelos ataques que fizeram as Cortes ¢ pelo papel que desem- penharam no fico; além disso, aceitava-se 2 permanéncia de dom Pedro no Rio de Janeiro apenas até a publicagao dos artigos adicionais 4 Constituicao relativos ao Brasil, devendo, porém, sujeitar-se 0 principe as Cortes, que passariam a nomear seus ministros € secretarios. Por sua vez, as noticias da convocagao de uma assembleia legislativa e constituinte no Brasil, chegadas em finais de agosto, foram interpretadas pelos deputados portu- gueses como uma clara manifestagao de ruptura. E o mais grave era que A frente do movimento separatista brasileiro estaria o proprio principe regente, pairando, portan- to, a ameaca nao apenas de Independéncia, mas também, em caso de morte de dom Joao VI e de reunificagio dos dois Reinos, de restabelecimento da sede da monarquia no Rio de Janeiro. Enquanto isso, no Brasil, ampliavam-se as bases de sustentacao da Regéncia, com aadesio da Junta Governativa de Pernambuco e de uma parte da Bahia, onde varias cimaras municipais declararam-se favordveis ao principe regente, a despeito da resis~ téncia do governador das armas, Madeira de Mclo. Sentindo-se encorajado por tais manifestacées de apoio, dom Pedro baixou um decreto, em 1e de agosto, declarando inimigas as tropas que viessem a ser mandadas por Portugal sem seu consentimento. Ao mesmo tempo, fez um empréstimo de um milhao de cruzados para preparar a defesa em caso de um cada vez mais provavel conflito armado com o Reino lusitano. E,no dia 5, os governos provinciais receberam a recomendagio de nfo darem posse a empregados despachados de Portugal. Sc dom Pedro ainda hesitava em assumir um rompimento definitivo com Por- tugal, faltava pouco agora para que isto afinal se consumasse. No mesmo més de agosto, dois manifestos produzidos por dom Pedro representaram uma declaragao quase formal de Independéncia. No Manifesto aos Povos deste Reino, redigido por Gongalves Ledo, em 12 de agosto, o principe regente’acusa as Cortes de Lisboa de pretenderem, com suas medidas, reduzir o Brasil & rufna e escraviddo, com isto forcando as Provincias do Sul do Brasil a sacudir o jugo que Ibes preparavam. Dom Pe~ dro ja fala entao claramente em Independéncia, no sentido de ruptura politica com Portugal, e ndo mais como uma ameaga, mas como algo praticamente consumado, embora conservasse ainda uma certa dubiedade, deixando timidamente em aberto a possibilidade de manuteng4o do Reino Unido. A convocacao da Assembleia brasi- leira teria, assim, por fim cimentar a Independéncia Politica deste Reino sem romper, con- tudo, 05 vinculos da Fraternidade Portuguesa; harmonizando-se com decoro e justiga todo 0 Reino-Unido de Portugal, Brasil, e Algarves; ¢ em seguida conclamava: Acordemos, pois, Generosos Habitantes deste Vasto e poderoso Império, esta dado o grande passo da Vossa 190 HISTORIA GERAL DO BRASIL Independéncia |...) Jd sois um Povo Soberano; ja entrastes na grande Sociedade das Nagées independentes. Sobressai no texto, em uma clara mensagem 4s provincias reticentes do Norte e Nordeste, a intengio de se estabelecer os limites geogréficos deste império e de forjar para seus habitantes a identidade comum de brasileiros, imputando-se a esta unidade territorial ¢ de sentimentos uma condigao primordial para a cfetivacio da Independéncia e a construgdo da futura Nagao brasileira: “Nao se ouga, pois, entre ‘vds outro grito que nao seja UNIAO. Do Amazonas ao Prata néo retumbe outro eo que ndo seja INDEPENDENCIA. Formem todas as nossas Provincias o feixe misteriaso, que nenhuma forga pode quebrar.” No Manifesto aos Governos e Nasées Amigas, redigido por José Bonifacio, em 6 de agosto, sdo reiteradas as criticas severas 4 impolitica das Cortes, mas mantém-se o mesmo sentido diibio quanto aos destinos do pais. Logo de inicio, o principe regente, em nome da vontade geral do Brasil, proclama a face do Universo a sua Independéncia politica. Mais 4 frente, contudo, afirma que nao Desejo cortar os lagos de unitio e frater- nidade que devem fazer de toda a Nagao Portuguesa um sé Todo Politico [...] debaixo de um sé Rei como Chefe Supremo do Poder Executivo de teda a Nagao. Cumpre observat, em todo caso, que dom Pedro ja se colocava como chefe de uma nagao independente, pois tratava-se de um manifesto de cardter diplomético, dirigido aos governos dos demais pafses, procurando estabelecer com os mesmos relacdes politicas, comerciais e de amizade diretas, inclusive propondo a troca de agentes diplomaticos. Ainda em agosto, dom Pedro precisou ir a Sao Paulo para conter uma revolta na vila de Santos, cujo governo se opés as ordens da Junta provincial, convocando as demais vilas para formarem uma nova junta de governo. O episédio estava ligado a uma luta interna entre as forcas politicas da provincia, relacionada com o crescimento do poder dos Andradas na regio, nada tendo a ver com a causa da Independéncia. Dada, porém, a importancia estratégica da provincia no processo em curso de Inde- pendéncia, a presenga do principe se fazia necesséria para apaziguar os animos, no que, alids, foi bem sucedido. Foi durante esta sua permanéncia em Sio Paulo que chegaram as noticias acerca das decisdes relativas ao Brasil tomadas pelas Cortes em julho. A gravidade da situa- fio levou a que tais noticias fossem imediatamente enviadas a dom Pedro, juntamen- te com cartas de sua esposa, dona Leopoldina, do Ministério e, em particular, de José Bonifacio, cobrando a tomada de uma posi¢io definitiva em relagao a Independéncia. O desfecho foi o famoso grito do Ipiranga de “Independéncia ou Morte”, em 7 de setembro de 1822. A data, todavia, nao se revestiu de imediato do significado especial que lhe foi posteriormente atribuido, tendo sido inicialmente marcado, como decla- rou 0 préprio dom Pedro em sua Proclamagdo aos Portugueses, o dia 12 de outubro como data da Independéncia (somente a partir de 5 de setembro de 1823, por reso- lugao da Assembleia Nacional Constituinte, passou~se a considerar 0 7 de setembro como dia do aniversirio da Independéncia). No dia 12 de outubro, data de seu aniversdrio, dom Pedro foi aclamado, em meio a.uma grande festa popular, Imperador do Brasil, titulo sugerido por Domingos Alves Branco, em reunifio na loja mag6nica Grande Oriente. Em 19 de dezembro, celebrava- ~se, em ceriménia pomposa bem ao estilo do Antigo Regime, a sagracao e coroagio do jé entiio dom Pedro I. Ao passar por estes rituais, o primeiro imperador brasileiro O Império Brasileiro: Panorama Politico 191 jnvestia-se, assim, conforme assinalou Maria Eurydice Ribeiro, de um mandato li- beral de origem popular, fundado no pacto social, e, por outro lado, de uma certa sacralidade, fundamentada na ordem dindstica que assegurava a dinastia de Braganca o direito sagrado de reinar, Estava ja ai simbolicamente presente a ambiguidade que marcaria todo 0 governo de dom Pedro 1. Tais solenidades e a declaracao formal de Independéncia nfo implicaram, contu- do, a adeséo imediata e pacifica de todas as provincias ao Império nascente. Embora amaioria delas fosse progressivamente manifestando sua incorporagio & nova enti- dade politica em fins de 1822 e em principios do ano seguinte, em provincias como 0 Grio-Pard, o Maranhio, o Piaui,o Ceara ¢ a Bahia a situagao foi mais complicada. Nestas regiGes, onde havia uma forte presenca de tropas e de comerciantes portugue- ses Jeais as Cortes de Lisboa ¢ onde faces locais divergiam quanto 4 adesio ou nao 20 Rio de Janeiro, a Independéncia s6 se deu apés intensa e prolongada luta. Como ainda no existia propriamente constituido um exército brasileiro, foi preciso recorrer acontratacao de mercenérios estrangeiros para empreender a conquista daquelas pro- vincias. A luta teve inicio na Bahia, com 0 oficial francés Pierre Labatut organizando um grande exército para combater as forgas do general portugués Madeira de Melo, que jé se encontravam assediadas por milicias brasileiras do interior da provincia, montadas por grandes proprietarios da regio. Ainda assim, Labatut nao conseguiu vencer a resisténcia de seu oponente, encastelado em Salvador, sendo substitufdo no comando das tropas por José Joaquim de Lima e Silva. Este passou a contar com a providencial ajuda de /ord Cochrane, ex-oficial da marinha britinica contratado para bloquear e atacar Salvador pelo mar. Sem terem mais como resistir, finalmente, em 2 de julho de 1823, as forgas portuguesas abandonaram a cidade e as tropas de Lima ¢ Silva a ocuparam, garantindo a anexagio da Bahia ao Império brasileiro. O Ceara submeteu-se em seguida, sem muita resisténcia, Logo depois, Cochrane dirigiu-se com sua esquadra ao Maranhio, conseguindo, a 28 de julho, a incorporagao nao s6 desta provincia, como também do Piaui. Por fim, foi enviado ao Grao-Pard o segundo comandante de Cochrane, o capitio John Grenfell, que empreendeu uma violenta persegui¢ao aos rebeldes, com mais de mil ¢ trezentas vitimas, culminando na morte de duzentos e cinquenta e dois prisioneiros, sufocados por cal virgem langada no pordo do’ brigue Palsaro; em 15 de agosto, celebrou-se-a incorporagio da provin- cia, o mesmo manifestando, em 9 de novembro, a Junta de Governo do Rio Negro, garantindo-se, entéo, a unidade do Império brasileiro. A POLITIZACAO DAS RUAS Seja como for, a solu¢io monarquica parecia, desde o inicio, o caminho mais provi- vel para a Independéncia. Em primeiro lugar, ndo havia uma tradigao republicana no pafs, surgindo uma tal aspiracao apenas circunstancialmente ou em momentos de extremismo (como em casos de revolta), sem que produzisse frutos mais duradou- 10s ou que constituisse um ideal convicto de qualquer segmento das elites fora de situagées limites; repiblica no Brasil era ento, como pareciam atestar os exemplos da antiga América espanhola e da Revolugao Francesa, sindnimo de fragmentagio territorial, de dissolugao social, de anarquia. Em contrapartida, a monarquia estava 192 HISTORIA GERAL DO BRASIL enraizada no Brasil desde os tempos da colonizagao portuguesa, tornando-se mais cara € presente com a instalacdo da Corte no Rio de Janciro. Para além de convic- ses ideolégicas sinceras, havia também um sentido instrumental por parte das eli- tes politicas ¢ intelectuais brasileiras quanto 4 adocdo da monarquia como regime de governo do Brasil independente: era esta a tnica forma vista de garantir a integridade territorial do pais, mantendo unidas as diferentes provincias, de evitar uma revolu- ao social sangrenta, de preservar a escravidiio e as estruturas de producao, enfim de nio alterar as hierarquias sociais ¢ as relagdes de poder ja estabelecidas. Além disso, nio hé por que duvidar da penetracio ¢ da forca do imaginario monarquico entre as camadas populares. Por sua vez, como demonstra Maria de Lourdes Lyra, a antiga crenga utépica na edificagio de um vasto ¢ poderoso império no Brasil — luso-brasi- leiro a principio, e brasilico em seguida -, consubstanciado na simbologia que cercava um pais com dimensées territoriais tao extensas ¢ recursos naturais tio abundantes, constituiu um importante fator para o estabelecimento, nao de uma simples monar- quia com um rei a sua frente, mas de um império pretensamente venturoso, gover- nado por um legitimo imperador. E, se, a parti do movimento vintista, nao havia no Brasil quaisquer discordancias quanto ao carter constitucional do novo governo, 0 mesmo no se daria em relagio 4 polémica questio centralizagao ou descentralizagio, como sera visto adiante. Um ponto importante a destacar é 0 papel de primeiro plano desempenhado pela Imprensa no processo de Independéncia. O clima de intensa efervescéncia politica da época propiciou, como demonstraram Cecilia Oliveira e Liicia Neves, uma prolife- raso sem precedentes de jornais eo surgimento de centenas de panfletos de carter politico-doutrindrio, que polemizavam uns com os outros, configurando, assim, nos dois lados do Atlantico, uma intensa rede de debates. Para isto também contribuiu a relativa liberdade de Imprensa instaurada em 1821 e a criagio de diversas outras tipografias além da Impressao Régia (somente no Rio de Janeiro eram sete, em 1822). Os principais centros produtores de tais impressos eram Lisboa e Porto, em Portugal, e Rio de Janeiro e Salvador, no Brasil. No Rio de Janeiro, jornais como o Reverbero Constitucional Fluminense, redigido por Gongalves Ledo ¢ Januario da Cunha Barbosa, 0 Correio do Rio de Janeiro, de Jodo Soares Lisboa, A Malagueta, de Luis Augusto May, o Compilador Constitucional, Politico ¢ Litterario Brasiliense, escrito por José Joaquim Gaspar do Nascimento e Joao Baptista de Queiroz, O Expelho, editado por Manuel Ferreira de Aratijo Guimaraes, O Regulador Brasilico-Luso, depois O Regulador Brasileiro, redigidos por frei Francisco de Sampaio ¢ Antonio José da Silva Loureiro, a despeito de suas tendéncias mais ra- dicais ou moderadas, foram todos liberais constitucionalistas, defensores, a principio, da preservacao do Império Luso-Brasileiro, em geral pleiteando uma centralidade ao Rio de Janeiro em relago s provincias e mesmo, em alguns casos, a todo 0 Império,¢ somente a partir de abril de 1822 passando alguns progressivamente a promoverem 2 causa da Independéncia. Na Bahia, por outro lado, a exceo do Diario Constitucional (ou O Constitucional, como depois se chamou), redigido por Francisco José Corte- -Real, Eusébio Vanério Avelino Barbosa ¢, mais tarde, também Francisco Gomes Brandao, os periédicos— como a Idade d’Ouro do Brazil, redigido por Diogo Soares da Silva de Pivar e padre Indcio José de Macedo, e O Semanario Civico, de Joaquim José PEELE Eee eee EE EEE eee Eee eee eee eee eee eee eee eso 0 Império Brasileiro: Panorama Politico 193 da Silva Maia — cram também constitucionalistas, mas, para estes, isto significava ser favordvel as Cortes de Lisboa e & unio com Portugal, o que muitas vezes os levava a se colocarem contra o governo do Rio de Janeiro. Jornais foram produzidos também, em 1821-1822, em Pernambuco, Maranhio e Pard, somente mais tarde surgindo nas demais provincias. Ha ainda o caso célebre do Correio Braziliense, periddico de linha mais moderada publicado, desde 1808, em Londres, por Hipélito da Costa, mas que circulava também, com grande notoriedade, pelo Brasil. Assim como os periédicos, mas sem a continuidade e a recorréncia tipicas de tais publicagdes, os panfletos ¢ folhetos politicos discutiam pontualmente, por um lado, as. questdes e os acontecimentos politicos do momento, como a revolugdo em Portugal, a permanéncia ou nao de dom Joo VI no Brasil e o local mais apropriado para a sede da Monarquia, as manifestacdes piiblicas (como os acontecimentos da praca do Commercio e as bernardas promovidas pelas tropas portuguesas), as eleigdes para as Cortes de Lisboa, as medidas tomadas por estas, 0 fico, a convoca¢ao do Conselho de Procuradores das Provincias e da Assembleia Constituinte brasileira, a situagao nas provincias, as relagdes entre portugueses ¢ brasileiros, a unido ou a separacao dos dois Reinos. Por outro lado, foram responsiveis também, a0 lado dos jornais, pela divulga- gio e vulgarizagio das ideias liberais e de um novo vocabulério politico, caleado neste ideario, introduzindo ¢ explicando temas como a limitagao dos poderes absolutos do Estado, o constitucionalismo, a representatividade politica, a divisio de poderes, o pacto social, as garantias ¢ os direitos civis ¢ politicos do homem e do cidadao, a soberania do povo ou da nagio, entre outros. Para tanto, apresentavam-se sob as mais diversas formas didaticas do discurso politico, como cartas, didlogos, versos, hinos, ca- tecismos e oragées polfticas, buscando atingir, por meio de tais técnicas facilitadoras da oralidade, um piiblico que ia além do letrado. Um trago caracteristico desses im- pressos (e também de alguns periddicos) era o frequente anonimato de seus autores, que quase sempre escondiam-se sob a capa dé pseud6nimos e de iniciais de nomes, quando nao simplesmente omitiam qualquer tipo de identificagao; era este um meio de garantir a liberdade de expresso, sem os riscos de sofrer censuras ou mesmo ame- acas, ja que a liberdade de Imprensa nao estava ainda plenamente assegurada. Jornais e panfletos difundiam, assim, uma cultura politica, calcada no Liberalismo, que encontrou ampla ressonancia, sobretudo no Rio de Janeiro, nos diversos espagos piblicos de sociabilidade que entéo se formavam, e que desempenharam também um importante papel no processo de Independéncia. Dentre estas instincias, desta- cavam-se as sociedades secretas, como as lojas magénicas Comércio e Artes ¢ Grande Oriente do Brasil, e como o Apostolado, que reuniam, no Rio de Janeiro, a nata da elite politica e intelectual, inclusive dom Pedro. Além disso, associagées livres, academias literdrias, livrarias, teatros, boticas, botequins, casas de paste, mesmo quartéis, igrejas, tuas ¢ pragas constituiam outros importantes espacos de sociabilidade — eruditos populares. Isto permite inferir que as ideias veiculadas nos periddicos e panfletos nfo atin- giam somente as camadas alfabetizadas da populacio, que liam diretamente tais es- ctitos politicos, mas alcangavam também o pitblico nao letrado, que as apropriava por meio de uma cultura oral que promovia a circulago das mesmas em conversas € discussées, em boatos que corriam pela cidade, nas declamagoes de hinos ¢ de 194 HISTORIA GERAL DO BRASIL sonetos patridticos, em sermées, nos movimentos politicos, em festividades publicas ou mesmo na leitura em voz alta de publicagées afixadas furtivamente nas vias pi- blicas. Maria Beatriz Nizza da Silva refere-se, a este respeito, a entdo existéncia de murais politicos nas esquinas das ruas, que consistiam na exposigio de determinados niimeros de jorais ¢, sobretudo, de panfletos ¢ folhetos incendiérios, colocados a noite em exibigao para que, no dia seguinte, fossem lidos, proclamados e comentados entre os transcuntes que se aglomerariam no local, formando-se muitas vezes 0 que as autoridades policiais chamavam de ajuntamento iltito, Mesmo o piiblico alfabetizado nao deve ser menosprezado, em se tratando das maiores cidades do pais. Nao hé estatisticas oficiais a respeito para o periodo, mas, se levarmos a efeito 0 célculo proposto por Roderick Barman para o Rio de Janeiro = 0 qual sugeriu que, do total de habitantes livres das freguesias urbanas da cidade (43.139), segundo o censo de 1821, se deduzisse pouco mais de um tergo, referente aos menores de idade, ¢, se dividisse o nimero obtido pela metade, de modo a distin- guir o percentual de homens e de mulheres adultos, confrontando-se, por fim, 0 re- sultado (14.380) corh o niimero de signatarios do manifesto do fico (8.000), enquanto um indicador da populagio alfabetizada -, chega-se a um indice de alfabetizagao entre os homens livres adultos da cidade de quase 56%;3 e, se o mesmo céleulo for feito incluindo as freguesias rurais, ainda assim a porcentagem é bastante elevada, quase 42%. I claro que podem ser feitas ressalvas ao critério adotado (como 0 fato de se assinar uma representagio nao significar, necessariamente, prova de alfabetizacio), mas, por outro lado, deve-se considerar também que boa parte dos individuos alfabe- tizados certamente nao assinou o documento, seja por nfio ter tomado conhecimento do mesmo, seja por no ter tido a oportunidade de fazé-lo, seja por discordar do manifesto. Assim, parece fora de diivida que o indice de alfabetizacao na Capital do Brasil na época da Independéncia era bem superior aos 16% de alfabetizados apon- tados para o total da populacdo brasileira (entre livres e escravos) pelo censo de 1872. Em vista de tudo isso, pode-se dizer que o processo de Independéncia produziu uma politizasdo das ruas, e o desenvolvimento de uma opinido publica embrionéria, que delineia, entdo, uma esféra publica emergente, a0 menos na cidade do Rio de Janeiro, e, talvez, em menor escala, em algumas outras também importantes, como Salvador e Recife. Nesta perspectiva, outro aspecto a ser destacado é que o processo de Independén- cia nao envolveu apenas as elites politicas e socioecondmicas do pais, e nem foi tio pacifico, como comumente se concebe. Intimeros movimentos em conjunto do pov ¢ tropa (como se dizia na época) ou de um ou outro destes segmentos em especifi- co ocorreram, sobretudo nas cidades, entre 1821 ¢ 1823, em praticamente todas as provincias brasileiras, principalmente no Grio-Pard, Maranhao, Piaui, Pernambuco e Bahia, mas também, entre outros, no Rio Grande do Sul, Mato Grosso, Sao Paulo, Minas Gerais e mesmo no Rio de Janeiro. Além disso, verificou-se um némero mui- to maior de pequenas manifestagdes de rua, envolvendo quase sempre brasileiros € portugueses. Trabalhos como o de Joo José Reis, para a Bahia, e o de Gladys Sabina Ribeiro, para o Rio de Janeiro, evidenciam uma ativa participacao nao s6 das camadas livres de baixa condigdo social, mas inclusive de escravos, no bojo das lutas politicas entre brasileiros e portugueses durante 0 processo de Independéncia. Contagiados a 0 Império Brasileiro: Panorama Politico 195 pelas novas ideias liberais em circulagio, pelas noticias trazidas de Portugal que se espalhavam e pelos embates em prol da Independéncia, os escravos lutavam, segundo esta visio, por uma liberdade entendida nfo s6 como libertagio da patria do jugo portugués, mas também do préprio cativeiro a que eram reduzidos, compreendendo, ainda, um significado de participagio no espago publico.+ (A despeito de todo o debate ¢ dos movimentos politicos que o acompanharam, © processo de Independéncia nfo suscitou, no entanto, um sentimento profundo de identidade nacional entre os brasileiros das diferentes partes do pais, e, logo, também ndo produziu,a seu termo, propriamente uma nago. Como jé assinalado, durante todo 2 época colonial constituia o Brasil um conjunto de capitanias sem unidade politica e econémica, que se entendiam diretamente muito mais com 0 governo metropolitano do que com o governo-geral da Colénia. Esta, durante certo tempo, também esteve dividida em duas unidades administrativas independentes uma da outra, formando os Estados do Brasil e do Maranhao ¢ Grao-Para. Além disso, ocorreram poucos movimentos civicos durante 0 periodo, ¢ ainda os que houve nao se reportavam, em suas aspiragées, & unidade de todo o Brasil. Mesmo durante a permanéncia da Corte portuguesa e, em seguida, da regéncia no Brasil, as capitanias e depois provincias (8 excegio das localizadas no Centro~Sul) resistiram de todas as formas, como visto, a integrag40 ao governo do Rio de Janeiro. Os préprios deputados enviados para as, Cortes de Lisboa declaravam~se representantes antes de suas provincias do que do Brasil. E até depois de proclamada a Independéncia, varias provincias mantiveram-se fiéis 8 Portugal, somente sendo integradas pela forga das armas. Diante de tantas forgas centrifugas, demoraria ainda muito tempo para que se diluissem os patriotismos regionais ¢ uma identidade nacional pudesse ser forjada. E sintomatico, neste sentido, que ja em 1828 0 entio deputado mineiro Bernardo Pereira de Vasconcelos, em sua Carta aos Senhores Eleitores da Provincia de Minas Gerais, ainda empregasse de maneira ambigua o termo péfria, para referir-se tanto a sua provincia, como a seu pais, chamando Minas Gerais de nossa Patria ¢ o Brasil de comum Patria, Por sua vez, varias revoltas provinciais viriam mais tarde a ocorrer com ideais separatistas. Um embriao de sentimento nacional pode ser encontrado apenas nos frequentes e muitas vezes violentos conflitos entre brasileiros e portugueses, ocorridos em todo o Brasil, particularmente a partir de 1821 e durante todo o Primeiro Reinado e 0 periodo regencial. Gladys Ribeiro, no trabalho citado, defende que estes conflitos constitufram um dos eixos centrais de formagio da identidade nacional no Império, 20 se produzit, neste processo cotidiano de lutas e de experiéncias compartilhadas, a oposigao entre o “ser brasileiro” e o “ser portugués”, Todavia, se isto de fato se deu foi fandamentalmente no Rio de Janeiro, que se via como a propria imagem da civili~ zaso e da nacionalidade, buscando legitimar-se como centro comum da nagio em construgo; nas provincias, 08 fortes lacos regionais ¢ as animosidades manifestas ou latentes em relagdo ao centralismo politico-administrativo da Corte amenizaram os possiveis efeitos integradores do antilusitanismo no ambito nacional. Nio foi, portanto, a Independéncia do Brasil produto de um processo premedita- do, linear e homogéneo, imbufdo de uma consciéncia nacional profunda, transcorrido os termos de uma simples oposicao entre col6nia e metrépole, ou entre Liberalismo 196 HISTORIA GERAL DO BRASIL € Absolutismo, estando suas bases jé dadas desde a crise do Antigo Sistema Colonial, a transmigracao da Corte portuguesa ou mesmo a revolugio vintista. Se estes tiltimos fatos constituem, sem dhivida, marcos decisivos do processo, nao o explicam de todo, Afinal, até meados de 1822 ainda se mantinham as esperancas de unigo com Porty- gal, nos moldes de uma Monarquia Dual. A recusa das Cortes de Lisboa em aceitar tal projeto e a adogao pelas mesmas de uma série de medidas que cada vez mais res- tringiam as liberdades politicas do Brasil, aliado 4 congregacio das elites intelectuais ¢ politicas, sobretudo do Centro-Sul, em torno de dom Pedro, produziram, em meio aum processo dinamico de agées reagdes, um conflito de interesses que se mostrou insustentavel, levando a separacio entre os dois reinos. A adesio das demais provin- cias 4 Independéncia, por sua vez, no decorreu apenas das guerras empreendidas pelo governo sediado no Rio de Janeiro, mas correspondeu também aos interesses de diversos grupo locais, desejosos de se verem livres de Portugal. A DISPUTA PELO PODER NO INICIO DO PRIMEIRO REINADO. Proclamada a Independéncia, as divergéncias e os conflitos entre as elites que estive- ram a frente do proceso logo precipitaram-se, ao sc langarem estas a tarefa de definir as bases de constituigao do novo Estado e de ocupar um lugar central nesse governo. As disputas, como visto, comegaram mesmo antes da ruptura com Portugal. O grupo de Ledo, mais radical, predominou de inicio, a0 se colocar 4 frente do movimento pelo fico, da proposta original de convocago do Conselho de Procuradores das Pr vincias, da entrega do titulo de Defensor Perpétuo do Brasil a dom Pedro, da iniciativa de ctiagdo de Cortes no Brasil, da redagio do manifesto de 12 de agosto, da prépria ideia de Independéncia ¢, por fim, da Aclamagio do Imperador. Mas 0 grupo de José Bonificio, mais moderado, nfo ficou a reboque do processo, estando o Andrada no comando do ministério instituido logo depois do fico, conferindo um carter apenas consultivo ao Conselho de Procuradores, saindo-se vitorioso no estabelecimento da eleigao indireta para a Assembleia Constituinte, redigindo o manifesto de 6 de agosto © promovendo a sagracfo ¢ coroagao do Imperador. Os principais palcos dessas disputas eram, até entfio, a Imprensa e as sociedades secretas. Nestas, como naquela, predominava inicialmente, no Rio de Janeiro, o grupo de Ledo, destacando-se na atuagdo em jornais como o Reverbero Constitucional Flu- minense e 0 Correio do Rio de Janeiro, e em lojas magénicas como a Comércioe Artes ea Grande Oriente do Brasil. Nesta iltima, que desde a sua instituigio, em maio de 1822, determinava que seus membros jurassem defender e promover a Independéncia ¢ integtidade do Brasil, dom Pedro foi, em julho, iniciado na Maconaria, sob 0 pseud6- nimo asteca de Guatemoxim, sendo escolhido, logo apés o rompimento com Portugal, grlo-mestre da loja, no lugar justamente de José Bonificio. Este - que, nesta ocasio, fora veladamente atacado por Alves Branco no discurso de saudagio que fizera a dom Pedro (aconselhando o Imperador a afastar-se de homens colérices e furiosos, que pretender minar o edificio constitucional) -, refugiou-se, entio, no Apastolado da Nobre Ordem dos Cavaleiros de Santa Cruz, que havia fundado em junho e era o reduto de seu grupo. Estava aberta, assim, a guerra pelo poder entre as duas facges politicas que promoveram a Independéncia. O Império Brasileiro: Panorama Polltico 197 Dom Pedro, todavia, identificava-se muito mais com o pensamento mais auto- ritirio ¢ conservador, no plano politico, de José Bonifacio do que com as ideias mais populares ¢ exaltadas da outra corrente. E, com a Independéncia, interessava-lhe servir-se daquele para a tarefa de organizar e colocar-se a frente do novo Estado. Nao Ihe agradava, por exemplo, ver seu poder limitado pelo Parlamento ou pelo referendo do povo, como queria o grupo de Ledo. Este ja havia evidenciado suas intengoes 20 tentar impor, para o dia da Aclamacio, o juramento prévio de dom Pedro 4 Consti- tuigdo brasileira que deveria ser elaborada pela Assembleia Constituinte, ao que se opis José Bonificio, alegando que nao era este 0 momento adequado. A vitéria do Andrada nesta disputa marcou 0 inicio da virada de posigo no jogo politico. Assim, interessava a dom Pedro apoiar as ages de seu ministro, conferindo-lhe o poder ne- cessério para silenciar seus adversarios politicos. Jé em 10 de outubro, Ledo ¢ Clemente Pereira, entre outros, foram insultados apedrejados por um grupo de manifestantes que, segundo se dizia, estava a mando de José Bonifacio. No dia 15 do mesmo més, saiu de circulagdo, em circunstincias um tanto misteriosas, como assinalou Carlos Rizzini, o Reverbero Constitucional Flumi- nense; e, no dia 21, foi a vez do Correia do Rio de Janeiro, desta feita por determinagio direta de José Bonificio ao intendente de policia, que mandou suspender 0 periddico cestabeleceu um prazo de oito dias para que o redator, Jodo Soares Lisboa, deixas- se 0 pais, sob a alegacio de insinuar a adocdo da Repiblica no Brasil. No dia 25, a conselho de seu ministro, dom Pedro suspendeu temporariamente a Grande Oriente € demais lojas magénicas. Ao mesmo tempo, Clemente Pereira foi pressionado a demitir-se da presidéncia do Senado da Camara. A dréstica tepressio instaurada, mal tendo iniciado um governo dito liberal, logo provocou uma forte rea¢o popular. Em suas cartas, 0 agente diplomatic austrfaco, baréo de Mareschal, alude ao surgimento nas ruas de pasquins sediciosos que critica- vam as medidas autoritérias ¢ a persegui¢io empreendidas por José Bonificio. Dom Pedro acaba, entio, recuando, determina a reabertura da Maconaria ea libertagao de Soares Lisboa, enquanto José Bonificio, contrariado e talvez num lance estratégico, demite-se do Ministério, em 27 de outubro, juntamente com Martim Francisco e Caetano Montenegro. Jogada politica ou nao, o fato é que a noticia da queda do Ministério gerou uma grande onda de protestos e uma enxutrada de panfletos, em forma de manifestos, Proclamagées ¢ representagdes (uma das quais, popular, continha cerca de mil e qui- hentas assinaturas, havendo, ainda, uma das tropas da Corte e uma dos procuradores de Provincia), pedindo a reintegracao dos ministros e atacando o grupo de Ledo, visto como defensor da Repiiblica e promotor da anarquia. Dom Pedro cedeu de bom grado & pressio ¢ restituiu o Ministério, sob aclamagéo popular. Ledo ainda ensaiou um protesto, enviando, em 2 de novembro, uma representagdo ao Imperador, defendendo-se das acusagées que vinha sofrendo. Todavia, sentindo-se fortalecido, José Bonificio ordenou, no mesmo dia, a abertura de uma devassa contra Clemente Pereira, Pereira da Nébrega, Janudrio da Cunha Barbosa, Goncalves Ledo, Alves Branco, Soares Lisboa, Pedro da Costa Barros e o padre Lessa, acusados de repu- blicanismo, de perturbadores da ordem ¢ de conspirarem contra o Governo. Os trés Primeiros foram deportados para a Franga, em 20 de dezembro, e Ledo conseguiu 198 HISTORIA GERAL DO BRASIL escapar, fagindo para Buenos Aires. Devassas foram instauradas também em diversas outras provincias, resultando em condenacdes em Sao Paulo e em Pernambuco. Com a derrota da facgio mais radical, afirma-se no poder uma elite politica cuja principal caracteristica, conforme demonstrou José Murilo de Carvalho, era a sua homogeneidade, nao social, mas ideolégica ¢ de treinamento, constituida por meio de um processo de socializagao comum, efetuada nos niveis da educagao universitiria (em Coimbra), da ocupagdo e da carreira politica. Define-se a partir de entio uma elite politica, formada por conselheiros de Estado, ministros, senadores ¢ deputados gerais, em que predominavam militares, clérigos e, principalmente, magistrados (per- tencentes, sobretudo, aos altos escaldes, e, em sua maioria, de origem social vinculada, direta ou indiretamente, ao latifiindio, a0 grande comércio e as finangas). Tal homo- geneidade permitiu reduzir, segundo aquele autor, a margem de conflitos no interior dessa elite, possibilitando a implantagao de um certo modelo (monarquico-centrali- zador) de dominacio politica.5 Isto ndo quer dizer, todavia, que grupos marginais a elite politica ndo viessem, mais tarde, a emergir e a contestar tal dominagao, tentando estabelecer um outro modelo politico-social. A ASSEMBLEIA CONSTITUINTE DE 1823 E A CONSTITUICAO DE 1824 Coroado o Imperador e garantida a presenca de José Bonificio no Governo, o con- flito desloca~se para a relagio entre o Executivo ¢ o Congresso, tendo como cenatio a Assembleia Geral Constituinte, finalmente inaugurada em 3 de maio de 1823. Sem- pre desconfiados das tendéncias autoritirias de dom Pedro ~ até por causa de todo 0 seu apoio a José Bonifacio ¢ porque governos de carater francamente autoritirios vigoravam entio na Franga, na Espanha e, mais recentemente, em Portugal (onde, no mesmo més de maio, ocorte o golpe de Vila Francada, fechando as Cortes cons- tituintes) -, os deputados brasileiros pretendiam limitar os poderes do Imperador, como aqueles que lhe permitiriam vetar as leis e dissolver a legislatura. Os temores ja haviam sido acesos quando, em sua ceriménia de sagragio ¢ coroa¢o, dom Pedro declarara que defenderia a Constituicao se fosse digna do Brasil e de mim, palavras que foram reiteradas na Fala do Trono da sessio de abertura da Assembleia, e entiio acres- cidas por outras ainda mais contundentes: espero, que a constituigdo que fagais, merera a minha imperial aceitagdo. Dom Pedro invertia, assim, a ordem liberal das coisas, 20 colocar a Constituigao sujeita a ele, nao 0 contririo. A resposta dos deputados foi dada no Projecto de Constituigao, apresentado para discussio em 19 de setembro. Neste, ficava patente a intengao de fortalecer o Legis- lativo e restringir os poderes do Imperador, Estabelecia uma Monarquia hereditéria e representativa, constituida pelos Poderes Legislativo, Executivo ¢ Judiciério. Ao primeiro, delegado conjuntamente a Assembleia Geral (Camara dos Deputados Senado) e ao Imperador, caberia no s6 propor, recusar e aprovar os Projetos de Lei, mas também fixar anualmente o orgamento piblico e as forcas armadas, repartir os impostos diretos ¢ autorizar a contragao de empréstimos. O Imperador nao poderia impedir nem dissolver a reunidio da Assembleia, mas apenas adié-la ou prorrogé-lae teria poder de veto suspensivo sobre os projetos aprovados pela mesma (ou seja, se um

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