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DEMOCRACIA, EDUCACAOE eDrroes MULTICULTURALISMO Petropolis Dilemas da cidadania em um mundo globalizado 2001 Carlos Alberto Torres 5 een ge MULTICULTURALISMO Carlos Almeida Pereira Este capitulo discute as teorias do multiculturalismo em educagio. Comeca por explorar alguns temas-chave do multiculturalismo, apés 0 que faco uma leitura critica do movimento multiculturalista, tal como re- fletido na educagao multicultural, através de uma significativa amostra de criticas provenientes do pensamento liberal, do movimento neoconserva- dor e da esquerda. Concentrando-me sobre as questoes da diferenca cultu- ral, aponto algumas das contradigées presentes nas teorias do multicultu- ralismo em educagao. Ocupo-me tanto com o multiculturalismo como movimento social quanto com a educac4o multicultural. Tendo em vista a orientagdo tedrica € os objetivos programaticos deste livro, seria util e oportuna uma discussao sobre a educacdo para a cidadania, mas isto exigi- ria uma anélise especifica e uma critica curricular, o que ultrapassa as me- tas e o espaco disponivel neste livro!. 1. Educagao para a cidadania envolve o que tradicionalmente se costumava chamar de educagao ci isto é, o ensino da democracia constitucional. Em geral, 4 educacio civica sio associadas trés categorias: a) 0 conhecimento civico, que no contexto da democracia constitucional geralmente envolve o conheci- mento dos conceitos basicos que inspiram a prética da democracia, tais como as eleigdes puiblicas, a re- gra da maioria, os direitos e obrigagées da cidadania, a separacio constitucional dos poderes e o lugar da democracia numa economia de mercado; utilizadas como premissas bésicas da sociedade civil; b) apti- does civicas, que comumente significam as aptiddes intelectuais e participativas que facilitam o julga- mento ¢ as agdes dos cidadios; ec) as virtudes civicas, comumente definidas em torno de principios li- berais como autodisciplina, compaixio, civilidade, tolerincia e respeito. Por isso é importante enfati- zar que a educacio para a cidadania se casa com a politica, sendo por conseguinte um conceito contes- tado, um conceito relacionado com a idéia do que os socislogos chamam de “socializacao politica”, ‘uma idéia que por sua vez vincula a formacdo dos individuos as politicas do estado. Questiona-se se a educagio para a cidadania deveria enfatizar 0 conhecimento civico, as aptidées civicas e as virtudes ci- vicas assim como sio definidas pelo establishment politico. “Quando elas conceitualizam o papel do ci- dadao sobretudo como cumprimento € cooperacéo, podem recompensar estes comportamentos ¢ transmitir ensinamentos sobre lei e governo; mas se o papel € definido em termos mais participativos, 0s educadores podem ensinar aos estudantes como influir nos negécios piblicos e deliberar sobre poli. tica publica. Ambos os pontos de vista slo freqiientes na literatura americana da educagéo para a cida- dania” (W.C. Parker, “Citizenship Education", em Dictionary of Multicultural Education, ed. por C.A. Grant @ G. Ladson-Billings. Phoenix, Oryx, 1997). 195 Carlos Alberto Torres Multiculturalismo como movimento social, como educagio multicultural e como educagio para a cidadania: O problema da cor branca As novas politicas culturais da diferenga nem estao simplesmen- te opostas a corrente tradicional (ou corrente masculina) da in- cluséo nem a transgridem, no sentido vanguardista de provocar choque nos ouvintes burgueses convencionais. Sao antes articu- lagées distintas de pessoas talentosas (e em geral privilegiadas) que contribuem para a cultura e que desejam alinhar-se com as pessoas desmoralizadas, desmobilizadas, despolitizadas e desor- ganizadas, a fim de lhes possibilitar e as capacitar para a agdo so- Ciale, se possivel, alcangar uma insurgéncia coletiva para a expan- sao da liberdade, democracia e individualidade (Cornel West, The New Cultural Politics of Difference). Esta epigrafe de Cornel West dé 0 tom exato da discussio. Qualquer que seja sua forma ou colorido, o multiculturalismo est4 relacionado com a politica das diferengas e com o surgimento das lutas sociais contra as socie- dades racistas, sexistas e classistas. Mas a discussio sobre o multiculturalis- mo nos Estados Unidos deve comegar por uma sutil mas importante distin- 40 entre as nogées do multiculturalismo como movimento social e aborda- gem teérica, a educac4o multicultural como movimento reformista e a edu- cacao da cidadania como uma especialidade dos programas de estudos que, dadas as caracteristicas especiais da composigao racial dos Estados Unidos, precisa levar em conta os temas da identidade racial e da diversidade cultu- ral para formago da cidadania como pedagogia anti-racista. Como movimento social, o multiculturalismo é uma orientagio filos6- fica, teérica e politica que nao se restringe reforma escolar, e que aborda o tema das relagées de raga, sexo e classe na grande sociedade?. Tomemos, por exemplo, a formulagao de McLaren (1997) para os desafios mais ime- diatos encontrados pelo movimento critico multicultural: Nossas investigagdes em sala de aula e nossas discussées com educadores urbanos de Los Angeles levaram-nos também a re- pensar 0 assunto da educacao multicultural. Angustia-nos a se- gregacao racial que observamos na cidade como um todo, bem como nos patios ou nas cantinas escolares. Alguma coisa disto nés associamos a politica de assimilagao forgada que se reflete na le- gislagdo da Proposta 187: o renascente movimento “Sé Inglés”, 08 assaltos a educagdo bilingiie na legislaco republicana e por 2, Nao € este o lugar de criticar a discussio de homogeneidade e heterogeneidade como foi anunciado, ameu ver de maneira por demais simplista e reducionista - talvez maniqueista fosse a palavra mais ade- quada - por Theo Goldberg em sua aligs excelente introducio a Multiculturalism: A Critical Reader, Oxford, Blackwell, 1996. 196 Multiculturalismo parte dos porta-vozes republicanos, a persisténcia do rastrea- mento académico, o sentimento latinofébico e antiimigratério que vem aumentando desde 0 inicio dos anos 1980, a desindus- trializagdo e o surgimento de movimentos étnicos e raciais a exi- girem reconhecimento. E preciso que o multiculturalismo seja visto dentro de um quadro mais amplo, isto €, que tenha como ponto de referéncia o novo sistema mundial dos grandes e conti- nuos fluxos migratérios, as culturas subalternas e passageiras, as grandes corporacées apatridas e a fora de trabalho pés-indus- trial de mulheres, minorias raciais e imigrantes de nagGes anteri- ormente periféricas (p. 210). Como movimento programatico de reforma, a educagao liberal multi- cultural visa garantir igualdade nas escolas. Neste contexto, os segmentos mais liberais do movimento consideram que uma de suas metas centrais € desenvolver uma idéia de tolerancia multicultural. Mas, como analisa Fra- ser (1997, p. 174), a luta por eqitidade e por reconhecimento deveria ser acompanhada por uma luta pela redistribuigao e pela igualdade, e nao ape- nas pela eqiiidade. Esta sugestao abre o caminho para uma compreensio mais radical do problema, que no tocante ao multiculturalismo a discussao deveria comegar pela questio da “cor branca”. A discussao sobre a condigdo do branco deveria ser situada no contexto das filosofias anti-racistas que criticam 0 conceito do branco e de terror branco, e que consideram a construgio da raga, particularmente da raga branca, como uma pratica racista. A questao é se uma discussdo sobre 0 branco pode servir de instrumento na busca de politicas anti-racistas. Gi- roux faz uma critica subtil da posicdo de Bell Hooks a este respeito. Argu- menta que, embora os brancos vejam-se como transparentes e invisiveis — isto é, embora eles nao se vejam a si proprios em termos raciais —, eles sao vistos como um terror branco na maneira como as interacées entre negros e brancos sao percebidas pelos negros?. Mas Henry Giroux (1997) sugere que a nogio do branco nao pode ser entendida exclusivamente em termos da experiéncia comum de dominagao e racismo branco. O branco, para Gi- roux, deveria ser rearticulado em termos antiessencialistas. Uma pedago- gia anti-racista que leve a sério os matizes da experiéncia branca deveria ca- pacitar os estudantes brancos a ultrapassarem as posigées de culpa e res- sentimento. Efetivamente, Giroux (1997) argumenta - e esta é uma dis- cussao importante para a educacio cidada anti-racista — que “a condicdo do branco precisa ser cuidadosamente estudada em termos de seu potencial para dotar os estudantes de uma identidade racial apta para desempenhar 3. Ver sua obra Black Looks: Race and Representation, Boston, South End Press, 1992. Para uma visio sociol6gica alternativa, ver Ruth Frankenberg, The Social Construction of Whiteness, Minneapolis, University of Minnesota Press, 1993. 197 Carlos Alberto Torres um papel crucial na reformulagdo de uma politica anti-racista capaz de ins- pirar um projeto democratico radical mais amplo” (p. 16). O branco é para McLaren (1997b, p. 237-293) um atributo da etnicidade, e o terror bran- co constitui 0 leitmotiv do multiculturalismo critico, como um movimento social cujos limites ultrapassam as fronteiras da escola. McLaren (1997) vincula a educagao multicultural 4 pedagogia critica, desafiando a politica do “branco como um tipo de pritica articuladora que se localiza na convergéncia de colonialismo, capitalismo e formacao do sujei- to” (p. 268). E interessante que McLaren considera o branco ao mesmo tempo como mito-poético, na medida em que constr6i um imaginério social coletivo que se articula com a superioridade ontolégica do sujeito social eu- ropeu e americano, € como meta-estrutural, na medida em que associa este imagindrio coletivo a uma hegemonia cultural, social e econémica de capital em nivel global, incluindo as multiplas camadas de diferengas sociais. De uma maneira parecida, Richard Dyer (1997) considera que “o dis- curso branco reduz implacavelmente o sujeito ndo-branco a uma fungao do sujeito branco, nao lhe concedendo espacgo nem autonomia e nao admitin- do nem o reconhecimento das semelhancas nem a aceitacao das diferen- as, ando ser como um meio para conhecer 0 ‘eu’ branco” (p. 13). Ao equi- parar-se ao ser humano, o branco “assegura para si uma posig4o de poder” (p. 9), e por isso os brancos se véem “no como uma determinada raca, mas simplesmente como a raga humana’ (p. 9). Entio, o discurso e a representagao do branco como algo neutro serve a0 propésito de apresentar um determinado grupo social como o humano co- mum, escondendo as relagdes de poder e privilégio que 0 fato de ser branco poe em jogo (na verdade, a ponto de as coalizdes em torno da cor branca pa- recerem possuir um poder de mobilizacao maior do que, por exemplo, em torno da classe social); e efetivamente o branco aparece como um simbolo de supertoridade datética, coma 9 ideal explicite:“Enibora o-viloe de poder do branco resida sobretudo em suas instabilidades e em sua aparente ausén- cia de neutralidade, a cor carrega o sentido simbélico mais explicito de supe- rioridade moral e também estética” (p. 70). Tomando esta critica do branco como uma premissa “ontoldégica” cen- tral, o multiculturalismo radical e a pedagogia critica deveriam centrali- zar-se sobre uma economia politica e uma pedagogia critica, como diz McLaren (1997): “O que é essencial para os educadores nesta arena de luta é desmantelar os discursos de poder e privilégio e as prdticas sociais que passaram por uma mutacao epistemolégica para uma nova e terrivel forma de nacionalismo xenéfobo, onde existe apenas um sujeito universal da histéria - 0 branco anglo-saxdo, masculino e heterossexual do privilégio burgués” (p. 214). 198 Multiculturalismo Nao resta dtivida de que a presenga de metas multiculturais nas discus- sdes mais recentes de educagao para a cidadania constitui no minimo um desafio, e no maximo vem modificando 0 ambito curricular da educacio cidada. Alguns estudiosos, sobretudo James Banks (1997), argumentam que educar cidadaos numa sociedade multicultural exige uma educacao multicultural. O multiculturalismo como movimento social e como enfoque teérico Quem confere autenticidade a uma identidade auténtica? Quem esta autorizado a emitir carteira de filiagdo? Os limites mudam no tempo e no espago. A semelhanga depende da cultura e dos objetivos da classificagdo. Para um transeunte ou um recensea- dor, eu sou um branco. Para um anti-semita, sou simplesmente um judeu. Para um judeu alemao posso ser um judeu do Leste; para um sefardim, um judeu ashkenazi; para um judeu israelense, um americano; para um judeu religioso, um secular; para um sio- nista da direita, um apéstata, ou nem sequer um judeu (Todd Gi- tlin, The Twilight of Commen Dreams). A questao da identidade é de extrema importancia para compreender os problemas da educagao. Identidade e cidadania, entretanto, ndo podem ser dissociadas da discussao do estado. O primeiro dever do estado, como apontado por Ted Mitchell (1997) em sua obra histérica, citando DeWitt Clinton, governador do estado de Nova Iorque em 1822, “é tornar seus ci- dadaos virtuosos através da instrucao intelectual e da disciplina moral, ilu- minando suas mentes, purificando seus coragées e ensinando-lhes seus di- reitos e obrigagées” (p. 1). Mas, como Mitchell esclarece sofridamente em sua anilise histérica, a0 longo do tempo a nogao de cidadania tomou diferentes significados para di- ferentes grupos de pessoas nos Estados Unidos e em diferentes contextos. Aanilise de Mitchell (1997) mostra que mais de duzentos anos atr4s 0 novo sistema educacional criado pelo estado revolucionério tentava resol- ver a tensao entre liberdade e ordem. Nas palavras de Mitchell (1997): “O problema aqui sucintamente abordado era duplo, e residia, primeiro, em encontrar um equilfbrio adequado e duradouro entre liberdade e ordem e, segundo, em estabelecer meios institucionais capazes de manter este equi- Iibrio” (p. 3). Aanilise histérica de Mitchell, seguindo a tradigao do novo institucio- nalismo em educagao, mostrou que o estado americano revoluciondrio buscava uma educacao que fornecesse um enfoque explicito sobre o trei- namento moral, ajudando a estabelecer os vinculos entre os individuos e 199 Carlos Alberto Torres 0 novo estado‘. Ampliando a andlise de Mitchell, verificarei que os cida- dios individuais que os fundadores tinham em mente — 0 que nao causa surpresa, como jé fora 0 caso anteriormente na Inglaterra — eram pessoas brancas, livres, do sexo masculino. A educacao dos nativos da América, dos afro-americanos — a grande maioria dos quais vivia em condicées de escravidao ~ e das mulheres foi, em grande parte, negligenciada no perfo- do revolucionério. A questao de cidadania e educagdo democrética nao pode, nem deve, ser desvinculada das quest6es de quais so os cidadaos a serem educados, de como estes cidadéos mudam com 0 tempo em termos de sua prépria configuragio demogrifica, politica, cultural e mesmo simbilica, e, vice-ver- sa, em termos de como estas mudangas s4o percebidas pelos cidadaos — 0 que David Tyack (1993) chamou de cultura publica na construgao da dife- renga. Além do mais, é fundamental que entendamos como a figura do préprio cidadao se modifica no contexto das mudangas do estado e do pro- cesso de globalizacao. Por ultimo, é fundamental descobrir como mudam os cenérios institucionais em que as virtudes dos cidadaos sao praticadas, 0 4. Ted Mitchell e a nova escola institucionalista na hist6ria da educacdo tentaram questionar a idéia da inevitabilidade na histéria das instituicées educacionais, colocando a énfase sobre as lutas que con: ‘tuem a dindmica da transformagio da realidade. Na visdo de Mitchell, tais lutas intermediam, dao for- ma e sublinham a institucionalizagéo da ago social nas instituigées educacionais. As instituicgdes sao construidas em torno de rotinas, regras, normas e estruturas e guiam a agdo dentro de certos limites e moldes de comportamento. A teoria institucional tenta compreender a configuracao hist6rica e socio- légica da racionalizacéo da acdo social nas instituigdes educacionais. Seus defensores véem a educagao ~ sobretudo a socializagao politica - como um instrumento para reforgar a aco democrética racional deliberada. Dat por que o papel do estado € central para a teoria institucional. Como afirma o Professor Mitchell, todo estudo da hist6ria das instituicSes educacionais deveria consi- derar “as lutas reais que criaram as estruturas e priticas que posteriormente chegamos a considerar como estabelecidas. Por que o sistema escolar é mantido a expensas puiblicas? Por que possuimos graus € niveis? Para muitos profissionais e para a maioria do pblico, as respostas a questées deste tipo ten- dem a basear-se em regrais universais, em determinados tipos de determinismo desenvolvimentista e institucional. Mas cada uma destas caracteristicas possti uma histéria particular e um conjunto de cau- sas ligadas ao tempo. Recuperar tais hist6rias e 0s conflitos que as envolvem é de grande importancia para apreciar as causas especificas, e esta apresentacao € essencial para todos, leigos ou profissionais, ‘que estejam interessados em entender ou melhorar nossas instituicdes educacionais” (Los Angeles, UCLA, 1986, manuscrito, p. 1). Desta forma, um interesse central para os te6ricos institucionalistas é a expansio da autoridade do estado e o papel da educagéo como ceriménia de uma iniciago contem- ‘poranea. Eles conceituam a formacio do estado e a incorporacdo e expansio dos sistemas piiblicos de ‘educacdo como uma parte central da construcéo nacional da cidadania e como a extenséo da autorida- de do estado sobre toda a populagio. Por exemplo, inspirando-se na obra de Michael Katz, David “Tyack, Bernard Bailybn, Lawrence Cremin, Michael Apple e outros criticos culturais da institucionali- zacio educacional, Ted Mitchell tentou “restaurar a consciéncia, a agao e a funcionalidade de decisSes tomadas que configuraram nossas instituices educacionais. [Dai,] mostrando como certas decisoes refletiram os interesses especificos em momentos especificos, poderiamos ficar livres para tomar deci- sbes muito diferentes, a medida que os tempos, as circunstancias e as relagées de poder se modificam. E desta maneira, recriando a aco ea luta pelo pasado, que a hist6ria pode se tornar importante para as opcées politicas presentes” (manuscrito, p. 2). Um fascinante e antigo exemplo deste trabalho é 0 pri- meiro livro de Mitchell, Political Education in the Southern Farmers’ Alliance, Madison, Uni ‘Wisconsin Press, 1987. 200 Multiculturalismo que, por definigao, implica sérios desafios ao papel que o sistema educa- cional ea cultura politica devem desempenhar na construcio da cidadania. Em suma, pelo menos nos Estados Unidos ~ e, diria, no mundo inteiro — as relagées entre democracia, cidadania e educacéo ndo podem ser tratadas separadamente da questao do multiculturalismo. Tendo em mente esta palavra histérica de adverténcia, pode-se argu- mentar que, embora o multiculturalismo como enfoque histérico tenha adquirido uma forma mais vigorosa nos anos 1980 e 1990, a questo do multiculturalismo nos Estados Unidos é tao velha quanto a tentativa de o pais estabelecer uma escolarizagdo compulséria de massa. Desafortunada- mente, a discussao sobre 0 multiculturalismo foi configurada em termos das relagées vigentes dominador-subordinado, onde 0 grupo dominante utilizava as escolas para integrar e socializar as criangas de varios grupos étnicos; apoiava os pensionatos para quebrar os vinculos culturais e tribais dos americanos nativos; ex- clufa na medida do possivel os afro-americanos que procuravam entrar no sistema educacional com a esperanga de que a escolari- zagao lhes trouxesse bons empregos e mobilidade social; e em larga escala ignorou trezentos anos de presenca e influéncia espa- nhola na América (La Belle e Ward, 1994, p. 9). Na virada do século, e talvez j4 mesmo antes, a escolarizagio foi usada para homogeneizar a lingua, a experiéncia e os valores de diversos grupos, assegurando que os grandes grupos de imigrantes que vinham para os Esta- dos Unidos assimilassem a conduta, os valores e os costumes em um “cadi- nho social”, como 0 concebia a inteligéncia oficial e a politica oficial de cul- tura na emergente poténcia mundial. Como observa Tyack (1993), citan- do J.F. McClymer, por volta de 1916 “a diversidade cultural havia chegado a ser definida como uma crise nacional” (p. 15). A experiéncia do pés-guerra imediato e as crescentes lutas sociais nos Estados Unidos desencadearam uma série de debates sobre relagées inter- grupais, sobre diversidade e sobre o que as autoridades educacionais consi- deravam como lutas provocadoras de diviséo entre diferentes grupos de in- teresse e grupos étnicos que competiam por dar forma politica e 4 pratica educacional. Tyack (1993) capta a dinémica do confronto, enfatizando que uma construcg4o competitiva do pluralismo exigia uma nova definicao da cultura publica que nao se restrin- gisse a celebrar as diferengas culturais, partindo entdo para pre- miar um nticleo de valores comuns baseados no individualismo da classe média americana. A nova versao do pluralismo era ex- plicitamente politica e desafiava nao apenas o canon académico tradicional mas também os interesses entrincheirados que havi- am sustentado o racismo. Nao é de estranhar que esta visio parti- 201 Carlos Alberto Torres cular tenha provocado muito mais controvérsia do que o fizeram formas mais antigas de educacio intercultural (p. 19). Com os fluxos e refluxos das lutas sociais nos Estados Unidos, o multi- culturalismo nao foi um movimento social homogéneo. Nem é representa- do por um paradigma teérico tinico, um enfoque educacional ou uma pe- dagogia. Por isso, a nogdo de multiculturalismo nao pode, como tal, encer- rar a representacao do vasto universo da politica de identidade cultural, apesar de ambas estarem muitas vezes estreitamente ligadas (Arthur e Shapiro, 1995). Algumas pessoas véem o multiculturalismo como uma fi- losofia anti-racista, outras como uma metodologia para a reforma educa- cional, outras como um conjunto de 4reas especificas dentro dos progra- mas de instrugio. Para pessoas diferentes, multiculturalismo significa coi- sas diferentes. Todd Gitlin (1995), em sua prosa elegante, aponta com precisio a ver- satilidade do termo “multiculturalismo” e 0 seu uso, finalidade e leitmotiv ambivalentes: A palavra é eldstica, uma mistura de fatos e valores, atual justa- mente por ser bastante vaga para servir a muitos interesses. Os partidérios podem usar 0 termo para defender 0 reconhecimento da diferenca, ou para resistir a politicas e idéias impostas pelos conquistadores, ou para defender o cosmopolitismo ~ o interesse € o prazer que cada um possa ter dentro das diferengas do género humano. Os puristas da politica da identidade usam-no para de- fender a fissio sem fim, um monte de monoculturas. Por outro lado o multiculturalism e seu irmao gémeo demoniaco, a “cor- reco politica”, servem aos conservadores como nomes para uma salada de coisas que eles detestam — inclusive para uma irritante insisténcia nos direitos das minorias (p. 228). Qualquer anilise sistematica da florescente literatura multiculturalis- ta h4 de mostrar que as metas maiores da educagao multicultural sao v4- tias. Elas variam, primeiro, desde o desenvolvimento de uma alfabetizagéo étnica e cultural (por exemplo, ampliar o grau de informacao sobre a hist6- ria e as contribuigdes dos grupos étnicos tradicionalmente excluidos do curriculo) até o desenvolvimento pessoal (por exemplo, desenvolver o or- gulho da prépria identidade étnica). Segundo, variam desde a mudanca de atitudes e clarificacdo de valores (por exemplo, desafiar preconceitos, es- tere6tipos, etnocentrismo e racismo) até promover a competéncia multi- cultural (por exemplo, aprender como interagir com pessoas diferentes de nds, ou como compreender as diferengas culturais). Terceiro, variam des- de 0 desenvolvimento da proficiéncia em aptidées basicas (por exemplo, melhorar a leitura, a escrita e as habilidades mateméticas de pessoas cujo fundo étnico, racial e/ou de classe é diferente do capital cultural predomi- 202 Multiculturalismo nante nas escolas formais) até a busca da aquisi¢do simultanea de eqiiidade e exceléncia educacional (por exemplo, desenvolver o aprendizado de op- Ges atuantes através de diferentes culturas e estilos de aprendizagem). Quarto, variam desde o aspirar pelo fortalecimento individual até 0 alcan- car reformas sociais (por exemplo, cultivar nos estudantes as atitudes, va- lores, habilidades, habitos e disciplina para que se tornem agentes sociais comprometidos com a reforma das escolas e da sociedade, com o fim de erradicar as disparidades sociais, as opress6es racistas, sexistas e classistas, com isto de melhorar a igualdade das oportunidades educacionais e ocu- pacionais para todos). Banks e Banks (1993), por exemplo, identificam quatro enfoques para a educagao multicultural: 1) ensinar as contribuicdes dos diferentes grupos culturais e individuos, enfoque este que pode ser chamado de multicultu- ral conservador corporativo; 2) um enfoque aditivo, incluindo como unida- des de estudo as ligdes multiculturais - 0 enfoque multicultural liberal tf- pico; 3) um enfoque transformador que tente mudar o curriculo ea instru- cao basicos, refletindo as perspectivas e experiéncias dos diversos grupos culturais, étnicos, raciais e sociais — 0 enfoque multicultural democratico e social; 4) um enfoque de propor politicas baseadas na histéria das lutas so- ciais no pais (por exemplo, movimentos das mulheres, movimento dos di- reitos civis, movimento contra a guerra no Vietna, movimento de livre ex- pressdo), que ensine aos estudantes que as relagées intergrupais sempre constituem parte integrante dos conflitos sociais e histéricos na sociedade, e que eles — nas palavras de Bourdieu — deveriam empregar seu capital cul- tural, seus habitos e seu habitat para participar da aco politica por mais igualdade, mais liberdade e mais justica para todos, ao mesmo tempo em que se distanciando dos princfpios da organizacao social do capitalismo — 0 enfoque multicultural socialista. Esta lista, que é uma versao ligeiramente modificada da lista de Banks, define quatro principios de organizag’o do multiculturalismo como educa- ¢4o multicultural. Mas nao representa, em absoluto, a classificagao defini- tiva dos diferentes tipos de multiculturalismo. Um importante trabalho de Christine’ Sleeter e Carl Grant (1987) também identifica cinco categorias que podem ser tteis para sintetizar o sem-ntimero de enfoques e curricu- los multiculturais, o ensino, as experiéncias de aprendizagem que estdo sendo implementadas nos Estados Unidos. Sao elas: a) ensinar os estudan- tes de diferentes culturas a se enquadrarem na corrente hegem6nica da so- ciedade; b) um enfoque de relages humanas, que realce a convivéncia harmoniosa dos diferentes povos; c) o enfoque do estudo de um determi- nado grupo, que se concentra em desenvolver a consciéncia, 0 respeito ea aceitacao dos grupos especfficos na sociedade; d) o enfoque sobre a redu- do dos preconceitos e sobre a busca da igualdade de oportunidades educa- cionais e de justiga social para todos; e por tltimo, e) um enfoque recons- 203 Carlos Alberto Torres trucionista social, que estimule o pensamento analitico e critico centrado na redistribuicao do poder, da riqueza e dos outros recursos da sociedade entre os diversos grupos. Antes de prosseguirmos com a critica do multiculturalismo e da edu- cagdo multicultural, é importante mostrarmos as conexdes com a demo- cracia e com a educacio para a cidadania. Sob este aspecto sao fundamen- tais as contribuigdes de James Banks. Democracia, multiculturalismo e educagao para a cidadania: a perspectiva de James Banks E pluribus unum. Sao poucas, na melhor das hipéteses, as andlises das relagdes entre de- mocracia e multiculturalismo. Mas a recente obra de James Banks (1997) constitui uma excecio, e merece ser discutida como um trabalho funda- mental intimamente relacionado com a tradicao liberal. O ponto de partida de Banks (1997) sao as fissuras democraticas, isto é, a distancia entre os ideais e a realidade americana: “Em um curriculo de- mocratico os estudantes precisam aprender e ter oportunidades de adqui- tir os valores democréticos americanos, € ao mesmo tempo em que enxer- gar as realidades americanas que desafiam estes ideais, como a discrimina- cdo baseada em raga, sexo e classe social” (p. 9). Banks (1997) argumenta que o multiculturalismo esté em crescimento no pais, e que iré integrar-se cada vez mais ao curriculo dos estudos sociais. Como educagao para a liberdade, é importante preencher as lacunas entre os ideais democraticos e as praticas democrticas, em trés sentidos impor- tantes: a) permitir que os estudantes afirmem sua identidade de sexo, ragae cultura; b) proporcionar aos estudantes a liberdade de funcionarem além dos limites étnicos e culturais; e c) permitir que eles adquiram as necessdrias habilidades para viverem numa sociedade democrética moderna (p. 26). Um pressuposto central da andlise de Banks é que, como 0s curriculos de ciéncia social refletem os mais importantes desenvolvimentos sociais, politicos e econémicos dos Estados Unidos, eles “continuaro a refletir os temas e tensdes maiores dentro da vida americana, bem comoa espelhar os ideais, metas, aspiraces e conflitos da nacéo” (p. 31). A partir de uma perspectiva construtivista’, o conhecimento pode contribuir para a criagéo de cidadaos reflexivos, o que constitui uma meta central dos currfculos de ciéncia social e da educacio. 5. Veja a conclusio para a discussio sobre construtivismo. 204 Multiculturalismo Para Banks (1997), o multiculturalismo oferece uma resposta sistemé- tica A questo da educagdo para a cidadania. Ele oferece uma integracdo sisteméatica ao contetido e um enfoque sistem4tico do processo de constru- ¢40 do conhecimento, levando em conta categorias centrais como classe, raga e sexo; busca reduzir os preconceitos individuais e institucionais; atua através de uma pedagogia que enfatiza a exceléncia e a igualdade, e desta maneira os estudantes de cor encontram em seus professores uma pedago- gia da eqiiidade, que lhes permite obterem melhores realizacées académi- cas; e por fim contribui para a criagdo de uma cultura escolar e de uma es- trutura social mais eficazes. A pedagogia multicultural baseia-se numa no- ¢4o multidimensional do conhecimento, que Banks (1997, p. 85) divide em trés dreas principais: conhecimento pedagégico, conhecimento da ma- téria e conhecimento multicultural. ‘A construgio da cidadania democrética implica, para Banks, nao so- mente que o professor possua um sélido conhecimento nas trés dreas aci- ma mencionadas, mas que igualmente exista um conjunto de intervengoes pedagégicas com o fim especifico de modificar as atitudes raciais dos estu- dantes. Destas intervengées fazem parte estudos de reforco, isto é, tenta- tivas de provocar uma mudanga no perfil psicolégico das criangas, refor- cando positivamente o combate ao preconceito racial; estudos de diferen- ciagdo perceptual, incluindo diferentes tipos de intervengoes, sobretudo unidades e ligdes que simulem experiéncias nas atitudes raciais de estu- dantes e professores; e por tiltimo a promogao da aprendizagem cooperati- va e de contatos inter-raciais nas escolas. Embora afirme a necessidade de uma reforma total da escola, Banks identifica como chaves para a educagdo multicultural 0 papel do professor em promover a tolerancia e a compre- ensao racial e em criar salas de aula multiculturais (p. 96-97). Para criar escolas democréticas, professores e administradores de di- versos grupos raciais, étnicos e culturais devem examinar seus préprios pressupostos, tendéncias, comportamentos, conhecimentos e paradigmas culturais sobre os quais estao baseadas sua pedagogia e a matéria que ensi- nam. Deveriam também ajudar os estudantes a identificarem como 0 co- nhecimento inserido no curriculo € construido. Uma premissa do modelo de educacao para a cidadania de Banks (1997), com fundamentos solidamente liberais e que nao pode ser contes- tada, é a presenca da comunidade dos estados americanos, 4 qual deve sub- meter-se toda crianga, qualquer que seja 0 grupo de etnia, sexo ou classe social a que pertenga. Para isto € recomendado um processo em trés eta- pas: primeiro, a identificagao étnica; segundo, a identificagio nacional; e, baseado sobre estas duas, 0 terceiro passo recomendado, a identificagao democratica global. “Por mais importante que seja para a escola refletir a democracia cultural e compreender as culturas dos estudantes, também é 205 Carlos Alberto Torres de capital importancia para toda a juventude americana desenvolver uma identificagao nacional reflexiva e esclarecida e um sélido compromisso com os ideais politicos americanos” (p. 129). Nestes trés passos existe uma unidade de propésitos, que leva mais além da identidade étnica e americana, tentando chegar a uma identidade global: “Acredito que a iden- tificago cultural, nacional e global é desenvolvimentista por natureza, e que um individuo s6 pode alcancar uma sadia e reflexiva identificagao na- cional depois de ter adquirido uma sadia e positiva identificagao cultural; que os indivfduos sé podem desenvolver uma identificagao global reflexiva € positiva depois de possuirem uma identificagéo nacional realista, reflexi- va e positiva” (p. 139). Para Banks, portanto, existem premissas que precisam ser observadas para se chegar a uma sadia cultura e cidadania democritica e politicamente pluralista. As escolas devem tornar possiveis os vinculos entre estes trés conjuntos de identificagdes ou identidades (isto é, étnica, nacional e glo- bal); 0 currfculo deveria mostrar a existéncia de preconceitos e fissuras de- mocriticas, incluindo a exploragao e dominacdo, e as realizagoes dos dife- rentes grupos étnicos, sociais e culturais, e como todos podem contribuir para o e pluribus unum. Embora Banks explore alguns dos dilemas da democracia e da cidada- nia, ele procura dar um tom de satisfacdo e otimismo & situagdo, servin- do-se de ferramentas sociopsicolégicas e curriculares para intervir e bus- cando a redugao drdstica do racismo e do preconceito racial e a expansdo do multiculturalismo. Mas seu ponto de vista, construfdo como uma com- binagao de tipologias e incluindo uma anilise histérica demasiadamente breve sobre a pesquisa, deixa de levar em conta as complexidades por mim identificadas da distancia entre democracia como método e democracia como contetido (que vai muito além da simples brecha entre os ideais de- mocriticos e as realidades sociais). Banks deixa igualmente de reconhecer as complexidades associadas a nogao de identidade em si, e como é dificil ligar a(s) identidade(s) a uma teoria da democracia. Por esse motivo, sua critica 4 natureza capitalista da sociedade americana aparece como um ar- gumento ad hominem, e na melhor das hipéteses como superficial. Por til- timo, apesar de seu conhecimento e de suas boas intengGes, sua anilise das complexidades da cidadania e de seus vinculos com o multiculturalismo nao consegue atingir as principais contradigdes nem os dilemas da cidada- nia democrdtica em sociedades multiculturais. Evidentemente, os propésitos divergentes do multiculturalismo, esbo- ¢ados acima, juntamente com a variedade de perspectivas teéricas, episte- molégicas e politicas que abordam 0 multiculturalismo como um movi- mento social e educagao multicultural, criam uma grande quantidade de 206 Multiculturalismo respostas a esquerda e & direita do liberalismo tradicional, criticas estas com que passo a ocupar-me nas segdes que seguem. A critica liberal “Desprendimento apaixonado” requer mais do que uma parciali- dade reconhecida e autocritica. Somos forcados a procurar pers- pectivas a partir de pontos de vista que nunca podem ser conhe- cidos com antecedéncia, e que prometem algo de extraordinério, isto é, um conhecimento capaz de construir mundos menos orga- nizados pelas armas da dominacao (Donna J. Haraway, Simians, Cyborgs, and Women). O liberalismo tem estado no coragao do movimento multiculturalista, € por vezes € retratado como a principal ideologia da educagiio multicultu- ral. Mas os estudiosos liberais externaram sérias criticas ao que eles perce- bem como as correntes mais radicalmente liberais do multiculturalismo. Uma das preocupagées centrais foi apresentada por Arthur Schlesinger (1991) em sua defesa da Europa contra o que ele considera o assalto das ideologias multiculturais e “étnicas”: Quaisquer que sejam os crimes préprios da Europa, este conti- nente também é a fonte — a fonte unica — das idéias de liberdade individual, de democracia politica, do império da lei, dos direitos humanos e da liberdade cultural, que constituem nossos mais preciosos legados, a que quase todo o mundo aspira em nossos dias. Estas sao idéias européias, nao sao idéias asidticas, africanas ou do Oriente Médio, a nao ser por adogio (p. 76). Schlesinger (1991) receia que o multiculturalismo possa levar a cultu- ra americana A incoeréncia e ao caos. A preocupacio central de Schlesinger €como 0 teor emocional do debate e, mais importante ainda, como as con- trovérsias sobre a questdo da cultura podem diminuir a estatura de uma cultura (ocidental) comum (e daf de um c4none comum); como elas po- dem solapar a solidez dos lagos culturais, j4 sobrecarregados pelos conflitos comuns de toda cultura; como-criam uma cultura fragmentiria cheia de guetos, tribos e enclaves, forcando a idéia de uma espécie de “apartheid” cultural e lingiiistico; e como solapam a igualdade e originalidade da cultu- ra americana: “Os lacos de coesdo em nossa sociedade so tio frageis, ou pelo menos assim me parecem, que nao faz sentido sobrecarregé-los, enco- rajando e éxaltando o apartheid cultural e lingiifstico” (p. 137-138). Ao fa- zer assim, considera Schlesinger (1990), os estudos étnicos deixam de ser americanos, porque no final das contas eles promovem a balcanizacdo da populagao (A14). Um personagem central no pensamento liberal dos académicos ameri- canos, Gerald Graff (1992), discorda de Schlesinger. Em vez disso ele se 207 Carlos Alberto Torres alinha com a maioria dos criticos multiculturais e feministas, que haveriam de argumentar que tais tensdes, contradig6es e controvérsias existem in- dependentemente, e que certamente elas ocorrem antes que qualquer movimento desperte sua atengao. Mais importante ainda, a objecdo des- tes grupos no se refere a idéia de compartilhar experiéncias culturais, mas sim ao uso desta idéia como desculpa para a desigualdade ea injustica” (p. 46). Como deixa entrever 0 subtitulo do livro de Graff, ir além das “Guerras Culturais” mostrard que o “ocupar-se com os conflitos pode revi- talizar a educagdo americana”. Mas Graff est4 muito mais preocupado com a politizacdo da educacao. Embora pense que a solugao da filosofia analitica tradicional, quando insiste em que os professores deixem suas vis6es politicas fora da sala de aula, é nao apenas inttil mas até mesmo simplista, ele esta interessado em slogans como “todo ensino é politico”, uma referéncia indireta, embora clara, 4 and- lise dos trabalhadores culturais ligados & pedagogia critica. Por exemplo: O mesmo problema ocorre com o crescente volume de escritos que clamam por um curriculo oposicionista, uma pratica educa- cional transformadora, uma “pedagogia dos oprimidos”. Esta li- teratura radical nunca deixard de se interrogar sobre o que deve ser feito com os professores e estudantes que nao desejem ser ra- dicalizados (Graff, 1992, p. 169). Semelhantes lamentos ocorrem quando ele explora a crescente popu- laridade dos “programas de estudos culturais”, de fato um conceito nada simples que permite ligar e integrar as disciplinas, mas sim um campo que passou a ser um eufemismo para estudos esquerdistas. Embora 0 conceito de estudos culturais pareca-me um guarda-chuva alta- mente promissor para interligar e integrar as disciplinas, dificil- mente poderd servir a esta finalidade — e certamente nao fard jus- tiga a suas pretensdes democriticas — se excluir de sua érbita todo mundo que nao jé esteja de acordo com os postulados es- querdistas sobre a natureza politica da cultura (p. 169). Mas para Graff 0 impulso do multiculturalismo estd certo: melhorar a capacidade de construir um plano de estudos que no seja expressio de um c4none imutivel. Ironicamente, Graff lembra-nos que quando pedi- ram ao Mahatma Gandhi sua opiniao sobre a cultura ocidental, ele respon- deu que era uma boa idéia. Canones pouco rigorosos, como nos lembra o escritor e critico literdrio afro-americano Henry Louis Gates (1992), sio paradoxais, como considera Graff (1992), na esteira de Gates: O critério da expresso de grupo que deu legitimidade ao canone americano foi, no entanto, considerado perverso e ofensivo quan- do utilizado para justificar a expressdo de culturas minoritérias. E hoje, quando negros, pessoas do Terceiro Mundo e outras invo- 208 Multiculturalismo cam a representacio da experiéncia de grupo para proclamar 0 valor de suas préprias literaturas, eles so censurados por substi- tuirem o valor literdrio pela politica e a forca demogréfica. E 0 caso classico de se puxar a escada depois de haver chegado lé em cima (p. 155-156). O argumento de Graff é um argumento liberal bem conhecido que, quer se queira quer nao, foi fundamental para apoiar a expansio da educa- ¢4o multicultural, e que foi criticado por teéricos criticos da raga como Ladson-Billings e Tate (1995), que observam que o paradigma multicultu- ral esté “atolado na ideologia liberal, que nao oferece nenhuma mudanga radical para a ordem corrente” (p. 62). O argumento de Graff (1992) é que “nossos sujeitos abriram caminho para os planos de estudo por seus préprios méritos, mas que os deles estéo entrando sé por pressio politica, de graca ou por esmola” (p. 156). Nao é de admirar que eu mesmo, em minha carreira académica nos Estados Unidos, me tenha por mais de uma vez confrontado com esta si- tuagao. Basta mencionar uns poucos casos. Quando, depois de uma com- peticdo académica internacional aberta na UCLA em 1990, me oferece- ram meu cargo atual, um professor titular de educagao superior da Univer- sidade da Califérnia-Berkeley, hoje jubilado, teria comentado que 0 outro candidato, um professor branco e conservador do sistema SUNY, carecia da “etnicidade adequada para a nomeacao”. De fato ele nao procurou saber que a Graduate School of Education da UCLA, que no inicio dos anos 1990 nenhum esforco de imaginacdo seria capaz de considerd-la como uma instituicéo representativa da educagio multicultural, por quase unanimidade dos votos da faculdade preferiu-me ao outro candidato, porque, como fui informado, meu dossié, minha lista de publicagées e meu programa de pesquisa eram mais impressionantes, e meu programa encaixava-se melhor nas metas programiticas de uma im- portante faculdade. Um incidente semelhante, porém ao inverso, ocorreu quatro anos mais tarde, quando uma faculdade de uma importante universidade pro- curou recrutar-me como titular em educagao, no que (com duvidosa sabe- doria académica) foi denominado “a busca de uma estrela”. Quando eu passei a encabecar a lista dos candidatos do comité de investigagio, soube que um membro da faculdade que apoiava minha candidatura teria obser- vado ser uma feliz coincidéncia eles poderem conseguir para esta posi¢io um excelente pesquisador que ao mesmo tempo poderia melhorar seu in- dice de ago positiva. Inutil dizer, varios membros da instituigdo, que eram meus amigos, me sugeriram - e eu concordei com eles — que nestas cir- cunstncias, mesmo sob a velada ameaga de eu nao ser indicado pelo crité- rio do mérito académico, nao tinha sentido empenhar-me pela indicagao. 209 Carlos Alberto Torres Embora eu nunca chegasse a perder o sono por causa de incidentes deste tipo, ao ler um episédio revelador da infancia de Henry Louis Gates de alguma maneira cheguei a compreender meus préprios sentimentos li- gados a situagdes como estas. Num maravilhoso livro de testemunhos, 0 critico literdrio Gates (1992) refere um incidente de sua infancia. Uma tarde, depois de um r4pido encontro num café, ele perguntou a seu paiem tom de queixa por que seu pai havia sido chamado de “George” por Mr. Wilson, um branco tranqiiilo de Piedmont, West Virginia, a quem eles ha- viam acabado de cumprimentar; 0 pai de Gates nao se chamava George. A resposta de seu pai foi que Mr. Wilson chamava de George todas as pes- soas de cor. A recordacio de Gates € instrutiva, porque ele nos diz que depois des- tas palavras trocadas com seu pai fez-se “um longo siléncio. Foi ‘uma des- sas coisas’, como diria minha mae. Mesmo entio, jé nessa idade, eu sabia quando me encontrava em presenga de ‘uma dessas coisas’ que nos permi- tiam enxergar, através de uma brecha na cortina, um outro mundo sobre o qual nés no podiamos exercer nenhuma influéncia, mas que tinha in- fluéncia sobre nés” (p. 131). O que aprendi com estes pequenos episédios de minha vida nos Esta- dos Unidos foi que, como a raga € um constructo social, e em face da histé- ria da formagio racial nos Estados Unidos, eu sempre estou sujeito a “uma dessas coisas”. Mas faco minhas as palavras de Robert S. Chang, um imi- grante coreano e professor de direito da California Western School of Law, que disse: “Da mesma forma como herdei um legado de discrimina- do contra os asidticos americanos [um termo que poderia ser substitufdo por outro para refletir a experiéncia de qualquer pessoa de cor], eu tam- bém herdei um legado de luta” (1995, p. 331). Voltando a construgio liberal do multiculturalismo, parece-me que ela é melhor resumida por Graff (1992) quando ele afirma que: Talvez devéssemos procurar imaginar a cultura americana como uma conversa entre diferentes vozes — mesmo que seja uma con- versa de que até pouco tempo atrés alguns de nés néo poderia- mos participar (...) [e a educacéo como] um convite para a arte desta conversa, onde aprendemos a reconhecer as vozes, cada uma delas condicionada por uma diferente percepgao do mundo. O senso comum diz que no conseguimos incluir 90 por cento da heranga cultural do mundo, se realmente desejamos aprender a respeito do mundo. (...) O senso comum (gramsciano e outros) lembra-nos que nés todos somos étnicos, e 0 desafio de superar o chauvinismo ético é um desafio que todos nés precisamos en- frentar (p. 175). 210 Multiculturalismo Dat o clamor por escolas que oferecam a oportunidade de diélogo en- tre as diferentes tribos. E a necessidade de promover a tolerancia cultural com base no entendimento cultural: “O desafio que a América enfrentaré no século XXI que entra consistira em dar forma, a longo prazo, a uma cul- tura verdadeiramente comum, que fornecga uma resposta as culturas de cor, por tanto tempo silenciadas. Se abandonarmos o ideal da América como uma nagio pluralista, teremos abandonado a propria experiéncia que a América representa” (p. 176). Mas 0 didlogo acarreta riscos, entre eles a possibilidade de ser inter- rompido, e assim de o conflito se prolongar indefinidamente. A manuten- cao do didlogo implica, até certo ponto, a compreensao de que as premis- sas que deram origem ao didlogo sao — material e simbolicamente — dife- rentes, e que os lugares dos diferentes interlocutores nesse didlogo sao nao apenas distintos mas hierarquicamente diferentes em termos de poder, ri- queza e prestigio®. Efetivamente, compreender 0 ato do didlogo é reconhe- cer também a possibilidade de os discursos serem incomensuréveis € as possiveis contradicées do interesse préprio. Por tiltimo, a propria possibili- dade do didlogo implica ir além da necessidade da tolerancia cultural com base na compreensio cultural. E imprescindfvel situar este didlogo, tole- rancia e compreensao dentro do contexto da economia politica dos limites e dentro do contexto dos limites e possibilidades da democracia nas socie- dades capitalistas. Accultura publica que Graff espera sustentar, reconstruir e honrar na América multiculturalista, e que vai se tornando tao transnacional quanto a “californizacéo” do gosto da juventude, pode efetivamente minar a criti- ca de que a invocagao ritualizada da “alteridade” talvez esteja perdendo sua capacidade de engendrar novas formas de conhecimento, ou que a posi¢40 critica que Graff (1992) tao facilmente classifica como marginal “pode ha- ver esgotado seu valor estratégico como uma posi¢o a partir da qual se tor- na possivel teorizar como objeto de estudo as préprias antinomias que a produziram” (p. 192). Embora intrigante, o argumento de Graff é contraditério, primeiro e an- tes de tudo porque nos Estados Unidos os estudos criticos nao se encontram mais 4 margem do establishment educativo. Esta claro que suas contribui- g6es causam um impacto bastante forte em varias arenas da intervencg3o educacional — com mais clareza, por exemplo, na educagéo dos professores 6. E bom lembrar que Saussure faz distingdo entre a natureza arbitréria ou convencional dos sinais ea natureza motivada dos simbolos. Para Saussure, a nogo do valor de um sinal é funcio de sua posicio numa rede relacionada, ou de relacdes paradigmsticas e contrastantes que existem entre todos os sinais de um conjunto. Por isso, no modelo de Saussure a lingua é simplesmente um sistema de termos inter- dependentes, onde o valor de cada termo resulta da presenca simulténea do outro. an Carlos Alberto Torres do que na criagéo de uma politica dentro do establishment. Além do mais, se na pior das hipdteses os argumentos criticos esto perdendo terreno, como Graff parece subtilmente sugerir, ou se na melhor das hipsteses eles chega- ram ao ponto mais elevado, nao hé razdo para acreditarmos que os debates polfticos irao continuar confinados as divisdes tradicionais, ou que o ativis- mo politico dos movimentos sociais, das organizagdes de comunidade, das ONGs e de toda sorte de instituicdes da sociedade civil possam ser contidos dentro de uma moldura do fim da histéria, anunciado por um estudioso como Fukuyama (1992). Nem existe qualquer indicio de que as narrativas politicas dos movimentos sociais tenham de seguir as mesmas regras de légi- ca, tolerancia e entendimento cultural invocadas por Graff. Apesar de sua hipétese de que “ensinar sobre os conflitos pode revitali- zar a educagao americana”, Graff parece nao reconhecer que a arte da poli- tica nado segue sempre as mesmas regras que a arte da educacao. Embora 0 propésito mais importante em educacio seja persuadir usando os melho- res argumentos, os melhores raciocinios te6ricos e os melhores dados dis- poniveis, o principal objetivo da politica é ganhar usando os meios mais efi- cientes, quaisquer que sejam. Por isso a disputa em torno do multicultura- lismo é uma disputa em torno da politica da identidade e da politica da cul- tura, e a critica neoconservadora passou a ter vida prépria, quase como uma cruzada contra 0 multiculturalismo como movimento social. O multiculturalismo como cruzada: A critica neoconservadora Os reformadores sociais estao presentes em grande numero, des- de o piso até 0 topo do sistema. Eles estéo mais interessados na igualdade do que na exceléncia. (...) A guerra pela escola ptiblica serd travada em nivel local, onde os pais e os educadores que ad- vogam a volta as origens sentem-se como os aliados de uma Casa Branca conservadora (Peter Brimelow, Shock Waves from Who- ops Roll East). Os neoconservadores haveriam de argumentar que 0 multiculturalismo € um complé contra o cdnone cultural dominante e uma cruzada em favor das principais reivindicagdes dos grupos étnicos. Em geral os académicos e politicos da direita vinculam os debates sobre corregao politica ao que eles consideram ser um programa homogéneo de multiculturalismo. De uma forma semelhante, outros inimigos do multiculturalismo argumentam con- tra um “culto ao multiculturalismo”, que eles consideram como representa- tivo da politica cultural da identidade (de diferentes etnicidades, ou de gru- pos particulares de interesse). Os criticos acusam ainda o multiculturalismo de ser um movimento que manifesta uma intensa “eurofobia”, e que ird sola- par a unidade e a cultura comum da nacdo americana. 212 Multiculturalismo Numa andlise neoconservadora do programa de ciéncias sociais nos Estados Unidos os intelectuais liberais e progressistas, € claro, sio respon- sabilizados pelos males da sociedade americana, e pela conviccio de que o multiculturalismo solapa as bases da civilizagéo americana, ao voltar sua atenco para as necessidades de um grupo social especifico: Os intelectuais progressistas e do New Deal adotaram a classe trabalhadora como seu grupo favorito de desfavorecidos, como vimos no caso de Herbert Croly, John Dewey, Charles A. Beard e V.L. Parrington, e favoreceram 0 socialismo democratico como a encarnagao de uma promessa realizada da vida americana e da cura da enfermidade capitalista. Mais recentemente, 4 medida que se desvaneceu o sonho socialista mas permaneceu a hostili- dade a nossa civilizagao, testemunhamos a promogio da raga edo sexo como definindo os principais grupos de desfavorecidos, que merecem apoio e compensagées especiais (Lerner, Nagai e Roth- man, 1995, p. 155). De fato, insiste Giroux (1988), os criticos em geral abragam uma for- ma de nacionalismo, e “mais do que analisar 0 multiculturalismo como uma complexa, legitima e necessdria negociagéo em marcha entre as mino- rias contra a assimilagao, (...) eles véem na participagao da diferenga cultu- ral menos uma tens&o produtiva do que uma divisdo debilitante” (p. 50). As formas menos extremadas do movimento contra o multiculturalis- mo véema politica da diferenga como uma ameaga ao patriotismo, ao nacio- nalismo, a unidade nacional e aos valores tradicionais, a0 passo que as mais extremadas véem-na como uma ameaga aos valores cristos da nacdo ameri- cana ou a imaculada heranga racial branco-européia do pais (Giroux, 1997). Desta forma a critica ao multiculturalismo faz parte de um programa da Nova Direita. Se a escolha € 0 cavaleiro de reluzente armadura do esta- do neoconservador, como expus no cap/tulo 1, o multiculturalismo € sua deusa vingadora. E um fato comumente reconhecido que nos anos 1980, nos Estados Unidos, a raga foi efetivamente usada pelas administragées Reagan e Bush para construir e manter unida uma nova maioria neoconser- vadora. Em educacao esta estratégia incluiu abordar as questées espinho- sas do multiculturalismo. Nao resta dtivida de que muitos neoconservado- res sao “eurocéntricos”, no sentido de negarem, ou de colocarem em se- gundo plano, a legitimidade das construgées histéricas e simbélicas dos grupos étnicos e nacionais diferentes da cultura dominante branca ou eu- ropéia. Nao obstante, como com bastante forga de convencimento argu- menta West (1993a), opor o multiculturalismo ao eurocentrismo obscure- ce 0 tratamento teédrico e politico do problema. West (1993a), com seu estilo estruturado e confidvel, considera que devemos ir além do debate sobre multiculturalismo e eurocentrismo, 215 i i i Carlos Alberto-Torres porque desde o comeco ele significa que devemos questionar to- das as nogées de tradicao e de pristinas herangas, ou toda civiliza- do ou cultura que pretenda possuir o monopélio da virtude ou da percepgao. ... Os préprios termos, multiculturalismo e euro- centrismo, nao sao categorias analfticas, mas sim categorias a se- rem analisadas com um sentido histérico matizado, e também com uma sutil andlise social (p. 4). As discussées tradicionais definem as fontes do pensamento ocidental na producao de pensadores europeus, masculinos e heterossexuais; sua pre- missa bésica consiste em apelar para textos canénicos como fundamento para a educacio liberal. Pode-se esperar que depois de muito debate ptiblico as vers6es recalcitrantes, unilaterais e unidimensionais do eurocentrismo, que j4 tiveram tanta importancia no movimento neoconservador, hio de perder terreno para as posigdes neoconservadoras sobre a diversidade cultu- ral eo multiculturalismo nos Estados Unidos. Ocasionalmente, no entanto, surgem indicios de eurocentrismo em movimentos como o “S6 Inglés” na Califérnia. Nao obstante, mesmo dentro dos quadros neoconservadores a disputa nao é clara, uma vez que o neoconservadorismo é um améalgama ins- tavel de diversos grupos e uma alianca de elementos diversificados. Por exemplo, os debates do Partido Republicano sobre as proposigdes 187 e 209 na Califérnia, que limitam o acesso de imigrantes ilegais aos servicos ptibli- cos, so um bom exemplo da complexidade dos problemas envolvidos e das diferentes posicdes assumidas nos quadros neoconservadores. Os intelectuais neoconservadores tentaram abordar a importancia do multiculturalismo para a educagéo americana estabelendo uma oposigao entre o multiculturalismo étnico e 0 pluralismo cultural, e considerando as vantagens do ultimo sobre as perigosas tendéncias do primeiro. Mesmo aceitando que o multiculturalismo nos Estados Unidos seja um “reconhe- cimento das sensibilidades das minorias étnicas ou raciais, [isto ndo deve- ria] ser confundido com o pluralismo cultural. (...) Os grupos étnicos de- vem ser conservados como elementos constituintes identificaveis da nagio americana, por causa dos elementos tinicos com que contribuem para a ri- queza e variedade da cultura americana” (Safran, 1994, p. 69). Embora os neoconservadores estejam de acordo que as nogées de plu- ralismo cultural podem ter uma dimensio racial, por confundirem raca, cultura e nacionalidade, eles néo acham, ao contrario da maioria dos enfo- ques multiculturalistas, que o pluralismo cultural seja etno-racial. Como diz William Safran (1994): Embora a maioria dos defensores do pluralismo cultural aceitem plenamente uma cultura “nacional” — quase sempre a da maioria ~— como a mais importante, isto €, como a que serve de veiculo para a comunicacao interétnica, o multiculturalismo muitas ve- 214 Multiculturalismo zes tende a ser culturalmente isolacionista ou “separatista”. Além do mais, muitos defensores do multiculturalismo acreditam que sua cultura de minoria étinica € ndo apenas igual mas superior 3 da maioria. Embora o pluralismo cultural seja conservador, o multiculturalismo é radical, pelo fato de rejeitar tradicdes cultu- rais ha muito estabelecidas, que as elites dominantes ou as de mi- noria quiseram conservar. Maso pluralismo cultural pode impul- sionar a modernidade, porque concede um lugar as culturas étni- cas minoritdrias, que em certos casos podem ser mais avangadas do que a cultura da maioria, ao passo que o multiculturalismo é antimoderno, na medida em que ressalta a ago afirmativa eo re- crutamento por inscrigao (em oposicéo ao baseado no mérito) (p. 69-70). Nio é preciso dizer que esta posigao contrasta frontalmente com o ar- gumento de James Banks (1993, 1997) de que a educacio multicultural busca prover todos os estudantes — independentemente de sexo, etnicida- de, raga, cultura, classe social, religido ou condi¢ao excepcional - com uma educagao de boa qualidade nas escolas. Além disso, a educagdo multicultu- ral, como preconiza Banks, procura eliminar a discriminagio escolar, colo- cando 0 multiculturalismo como um movimento de reforma nascido dos direitos civis e dos movimentos de protesto dos anos 1960 e 1970, e que constitui um movimento internacional de reforma que tenta ajudar estu- dantes e professores a “desenvolverem atitudes positivas para com a diver- sidade racial, cultural, étnica e lingiifstica” (Banks, 1993, p. 3). Nao surpreende que na viséo neoconservadora o multiculturalismo seja um movimento unificado. Esta visao contrasta claramente com a anéli- se tipicamente liberal do multiculturalismo como expresso da diversida- de cultural e de programas politicos, e como uma arena onde se confron- tam visdes que alternam entre relagdes estruturais e de acdo, particular- mente as dinamicas de raga, etnicidade, cultura, classe e sexo na educagao americana. Assim, para os neoconservadores 0 multiculturalismo etno-ra- cial (isto €é, uma visdo do multiculturalismo enraizada em nog6es de cons- trusio social de etnicidade, raga, cultura e nacionalidade) é antimoderno, porque deforma a meritocracia e as credenciais e baseia suas reivindica- Ges sobre um status adscritivo, sobre a tradicao e a politica da identidade, mais que sobre o mérito. As observacoes de Safran (1994) fazem eco as usuais queixas neoconservadoras de Lerner, Nagai e Rothman (1995), de que o multiculturalismo € paroquial e constitui um outro exemplo da forga do movimento de corregao politica nos meios académicos e educacionais: Pelo final dos anos 1960, os distuirbios estudantis e universitdrios trouxeram uma mudanca permanente para a universidade ameri- cana. O crescimento e a difusdo da Nova Esquerda nos campi de colégios e universidades nos Estados Unidos ajudou a legitimar a 215 Carlos Alberto Torres idéia de que todas as instituigdes americanas, inclusive a educa- do, sofriam de falhas importantes, que exigiam mudanca radical. Em resposta aos protestos, foram pelos colégios e universidades adotadas muitas politicas: cédigos que permitiam muito maior manifestacao de opiniao dos estudantes, inflagdo de notas, me- nos atencdo as normas académicas tradicionais, abolicdo de pré-requi- sitos, abolicao quase total da educagio geral, e criagio de novos departamentos de estudos sobre negros, e mais tarde sobre a mu- Iher. Estas medidas supunham que se as universidades viessem a abolir os pré-requisitos e a baixar os padrées de graduacio, as es- colas primérias e secundérias haveriam de imitd-las. O que de fato fizeram (Safran, 1994, p. 44). O multiculturalismo também € visto como expressdo do excessivo po- der do feminismo e dos movimentos de mulheres em debilitar um progra- ma comum nas escolas, mas sobretudo como algo que solapa a propria qua- lidade da educagéo. Uma pesquisa empirica sobre a questo, realizada por Lerner, Nagai e Rothman (1995), conclui, partindo de um enfoque tipica- mente neoconservador, que: Os livros-texto mudaram rapidamente. Michael Kirst, ao descre- ver suas experiéncias como um membro da Secretaria de Educa- cao da Califérnia que queria elevar o nivel dos livros-texto, refere que af por 1980 nenhuma editora possufa um livro que apresen- tasse ao mesmo tempo um padrao académico elevado e satisfi- zesse aos critérios feministas: os livros antigos eram sexistas, en- quanto os mais novos se haviam estupidificado (p. 43). Para os neoconservadores, os grupos responsdveis por promover o mul- ticulturalismo sao os mesmos professores de sala de aula que se tornaram extremamente ativos na educagao americana e que nao conheciam limites em suas agdes. Como dizem Lerner, Nagai e Rothman (1995): “Os temas que examinamos, juntamente com a evidéncia que constatamos, sugerem a presenga de um fator de enorme importancia na conformagao da cultura po- litica e civil na América: embora s6 por omissao, os educadores americanos adquiriram um grande poder, que merece um inquérito ptiblico” (p. 5). Para os neoconservadores, o responsavel por esta situagao é certamen- te o feminismo: Os resultados de Diane Ravitch e Chester E. Finn Jr. (1987) su- gerem uma considerdvel influéncia feminista sobre o que léem os estudantes do ensino médio nos Estados Unidos. O paradoxo é que os americanos acreditam que a educagao é controlada em ni- vel local. Mas est claro que o impulso para as mudangas feminis- tas no provém dos pais nem dos membros das juntas escolares locais (Lerner, Nagai e Rothman, 1955, p. 55). 216 Multiculturalismo Além disso, 0 problema é visto como um problema histérico “técnico”. Isto é, nao existem suficientes exemplos de presenga feminina na histéria, porque a histéria foi feita quase inteiramente por homens (que sao os he- réis, os soldados, os estadistas etc.). Partindo deste ponto de vista, os neo- conservadores lamentam que com 0 excessivo poder do movimento de corrego politica eles tentaram resolver esta falta de presenca feminina na histéria através de uma solucdo politica simplista, que Lerner, Nagai e Rothman chamam de “feminismo de recheio”, ignorando os fatos histéri- cos e a realidade das realizagdes dos homens na histéria: Existe, no entanto, um problema importante em escrever li- vros-texto de histéria nao sexista. Quase toda a histéria america- na € dominada por homens, em parte porque em quase todos os estados, até o século XX, nao era permitido as mulheres votarem nas eleigdes federais nem ocupar cargos ptiblicos. Isto é lamenté- vel, mas nao deixa de ser um fato. Que deve, entao, fazer o escri- tor “ndo-sexista” da histéria americana? A resposta é 0 “feminis- mo de recheio” ~ acentuando a importancia de personagens e eventos menores, sem restringir inteiramente a cobertura das pessoas e eventos maiores do panorama aceito da histéria ameri- cana (p. 56). O multiculturalismo € visto ndo apenas como uma cruzada mas tam- bém como uma tentativa de desenvolver a diversidade da forga de traba- lho, considerada como a fronteira final do movimento de corregio politica (Lynch, 1995, p. 32). Linda Chavez escreveu com profusio, na tentativa de desmistificar 0 multiculturalismo. Para Chavez (1994), o multiculturalismo se baseia so- bre uma premissa demogrfica errada, a de que a populagao branca esteja declinando rapidamente em comparacio com a populacao nao-branca. Se- gundo, existe também uma distingéo pouco nitida entre raga e cultura: “Os multiculturalistas insistem em tratar raga e etnicidade como se fossem sin6énimos de cultura” (p. 26). Um pressuposto central do multiculturalis- mo — totalmente rejeitado por neoconservadores como Chavez — é que nao existe uma cultura americana comum. De fato, ela vé como uma caracte- ristica distintiva desta cultura a capacidade de incorporar muitos grupos diferentes, criando um todo novo a partir de partes separadas. Para Chavez esta cultura se comprovou tao poderosa que as diversas ondas de imigran- tes que vieram para os Estados Unidos adotaram-na e assimilaram-na, a ponto de na segunda ou terceira geracdo ndo conservarem mais suas lfn- guas, ou nem mesmo lacos mais s6lidos com suas nagées de origem: “Ironi- camente, a énfase dos multiculturalistas sobre a educacio enfraquece seu argumento de que a cultura seja inseparavel da raca ou da nacio de origem. (...) Eles parecem acreditar que sem uma forte dose de doutrinacao multi- 217 i Carlos Alberto Torres cultural os imigrantes nao seriam capazes de resistir 4 assimilacao pela cul- tura americana” (p. 30). Embora censure alguns multiculturalistas por suas estratégias e por seu resultado final, desunir a América, Chavez acredita que o multiculturalismo nao é um movimento de base auténomo. Pelo contrério, “foi criado, susten- tado e ampliado pela politica do governo” (p. 32). Quer dizer que o multi- culturalismo € outra criatura, ou pelo menos um subproduto, do estado do bem-estar e dos excessos liberalistas do Partido Democritico. Ela afirma inequivocamente que “é facil censurar os ideélogos e radicais que estao pro- movendo a desuniao da América, para usar a frase de Arthur Schlesinger, mas os verdadeiros culpados sio aqueles que fornecem aos multiculturalis- tas os recursos e os meios para impulsionar sua causa” (p. 32). © emprego da raca como parte da estratégia do estado neoconservador de dividir para governar nao tem sido muito sutil. Dada a complexidade dos curriculos de estudos nas sociedades multilingiies, multiétnicas e multicul- turais como os Estados Unidos, os neoconservadores tém que admitir até certo ponto que ensinar sobre heréis, datas nacionais e conquistas das mino- rias étnicas exerce um forte apelo ao orgulho étnico. Mas 0 debate sobre multiculturalismo e a promogio de um programa multicultural €, na visdo dos neoconservadores (Safran, 1994), autocomplacente e oportunista: Tais politicas podem garantir emprego para os intelectuais e os administradores das minorias étnicas; a fim de justificar suas po- sigdes — e sustentar a nova burocracia das minorias étnicas — eles podem tentar atrair uma clientela suficientemente grande, ape- lando para o minimo denominador comum, por exemplo ofere- cendo cursos sobre cozinha ou danga latinas (etnicidade vestigial ou nostélgica), ou sobre os problemas socioeconémicos do bairro (estudos de opresséo), em vez de cursos de lingua e literatura es- panhola. A fim de ganhar aliados taticos, muitas vezes os promo- tores do multiculturalismo fazem causa comum com os multi- culturalistas ndo-étnicos, misturando cursos sobre cultura étnica com cursos de cultura especifica (por exemplo, feministas) ou de estilos de vida alternativos. Embora tais enfoques tentem mi- nar o predominio da cultura majoritéria, para a minoria étnica eles so em ultima andlise contraproducentes, porque uma e ou- tra podem cancelar-se mutuamente e solapar a limpideze o pres- tigio de sua cultura (p. 69-70). ‘Ao lamentar a perda da “pureza” e do “prestfgio” de uma cultura, ou o declinio de sua eficdcia social, a estratégia multicultural dos neoconservado- res enfatiza as diferencas e aceita a nocdo da diversidade, na medida em que estes diferentes grupos culturais concordam em conformar suas identidades com referéncia a um cAnone aceitavel. Este canone tanto pode ser definido em termos de uma cultura minima prescrita quanto de uma cultura mais 218 Multiculturalismo elevada, ou de um comportamento e fervor politico recomendado, por exem- plo, o patriotismo. Apropriando-se de uma prescricdo liberal sobre tolerin- cia em encontros culturais, os neoconservadores pragmaticos/utilitérios (em oposicao aos doutrindrios) definem a guerra das culturas nos Estados Unidos como criadora de insuperdveis contradigdes na construgao de identidades uniformes, a menos que se escolha a tinica op¢ao capaz de evitar 0 caos re- sultante da luta cultural: identificar sélidos principios ou fundamentos a que cada cultura possa ser referida no contexto nacional. O argumento neoconservador recebe de bragos abertos as lutas inter- nas e autodestruidoras entre grupos minoritdrios, assim como qualquer tentativa de definir identidades culturais singulares e monoliticas. Inspi- rando-se nos pontos de vista mais conservadores de Tocqueville, os neo- conservadores lamentam a perda de pureza na cultura e o fato de nenhum baluarte haver permanecido de pé: Nas sociedades aristocriticas, a classe governante, aquela que da 0 tom da opiniao e que toma a dianteira nos negécios ptiblicos, esta colocada acima da multido e possui uma elevada opiniao a respeito de si propria. Tais opiniées, e a honra que elas acarre- tam, impelem os homens a aprender por aprender — 0 que Toc- queville chama “um sublime e quase divino amor a verdade” (Lerner, Nagai e Rothman, 1995, p. 462). Os neoconservadores argumentariam que hoje, nos Estados Unidos, a profissio docente, dominada por ideologias liberais e igualitdrias, assumiu uma posicdo de adversério em relacao aos padrdes americanos. Ao mesmo tempo o pais carece das ferramentas que os tocquevillianos imaginam ca- pazes de impedir a proliferagao dos vicios da democracia. Assim “o ensino da histéria, pelo menos a partir do que evidenciam os livros-texto do ensi- no secundario, estd cada vez mais dominado pelos igualitdrios radicais. Di- ante das recentes mudangas na sociedade e na cultura americana, nao é provavel que isto venha a se modificar em futuro préximo” (Lerner, Nagai e Rothman, 1995, p. 157). A Ultima versao da critica neoconservadora, no entanto, inverteu os termos do discurso, argumentando, a partir de uma perspectiva pragmati- ca, que o problema havia deixado de existir, porque, como 0 diz com muita clareza o titulo do novo livro de Nathan Glazer (1997), “agora todos nés somos multiculturalistas”. E assim, ao que parece, uma cruzada neoconser- vadora contra o multiculturalismo constitui um esforco vao, e a cooptagdo sistémica pode seguir o seu curso. Quando um conceito constitui uma ameaga, ou quando ele aponta para marés perigosas que alguns poderiam tentar deter, nao existe outra estratégia melhor do que a cooptacao e in- corporagao ao discurso da escolha hegeménica. 219 i i i Carlos Alberto Torres Nathan Glazer parte do pressuposto de que, depois de uma pressio histérica por reconhecimento cultural, o multiculturalismo chegou para fi- car. De fato, pressionando para que a idéia de diversidade cultural seja acei- ta, Glazer (1997) sustenta que “os estudantes negros sao 0 cerne do assun- to” (p. 9). Seu argumento é que: Quando digo que o multiculturalismo ganhou, e que “agora nés somos todos multiculturalistas”, quero dizer que agora nés todos aceitamos um grau maior de atencao as minorias e as mulheres, e ao seu papel na histéria americana e nas classes de estudos sociais ede literatura. Aqueles poucos que querem que a educacao ame- ricana regresse a um perfodo em que as varias subculturas eram ignoradas, e em que a América era apresentada como 0 pico e 0 produto final da civilizacao, nao podem esperar progredir nas es- colas (p. 14). Mas, na visdo de Glazer, a idéia da América foi um sucesso completo, que ele nao pode deixar de afirmar com toda convicgdo, embora com uma ponta de nostalgia: Quero destacar o cardter inelutdvel da fase que agora atravessa- mos na educagao e sociedade americanas, em nosso encontro se- cular com as questées da diferenga racial e étnica. Nao é uma fase que abracemos de coracdo aberto, e espero que meu proprio sentimento de tristeza por termos tido que chegar a este ponto nao passe despercebido ao leitor (p. 21). A tristeza de implementar o multiculturalismo no curriculo escolar se encontra, por conseguinte, nos detalhes. Glazer (1997) conclui que, de- pois que foi abandonado 0 tom emocional da discussao, no final das contas certos objetivos da educagao sao buscados tanto pelos que advogam o mul- ticulturalismo quanto pelos que a ele se opdem. Entre estes objetivos figu- ram “melhores realizagdes educacionais para todos os grupos, um certo grau de harmonia civil, a competéncia para realizar as tarefas basicas da produtividade econémica. Todos eles requerem outras qualidades, como autenticidade, responsabilidade, capacidade de comunicagao” (p. 83). Dificilmente alguém descordaré destes louvaveis objetivos, mas nio obstante 0 neoconservadorismo de Glazer precisa de um maior refinamen- to para que possa ser plenamente aceito pela maioria das facgées liberais e radicais do movimento multiculturalista. Uma premissa desta anélise é que o movimento anteriormente chamado de pluralismo cultural passou agora a ser chamado de multiculturalismo. Isto, numa perspectiva politica, ética e epistemol6gica, é simplesmente uma iluséo (Glazer, 1997, p. 97). O problema agora nao € que a politica de identidade leve a uma politica de reconhecimento, mas sim que existe uma diferenca importante entre tole- rar a diferenga e aceitar a politica da identidade, incluindo as crescentes 220 Multiculturalismo demandas dos movimentos sociais por mudangas na estrutura do poder so- cial (em termos de classe, sexo e raga), com o fim de atender as reivindica- des do movimento feminista, aos espacgos subalternos ou 4 teoria critica da raga, como discutido no capitulo 3. Um estudo cuidadoso das teorias do estado em educagio ajuda-nos a identificar e criticar os perigos e as brechas analiticas das posigdes defendi- das pelos intelectuais neoconservadores. E particularmente instrutivo ob- servar como o multiculturalismo em educagao é considerado pelos neo- conservadores como um movimento separatista, que prejudica o tecido so- cial da sociedade americana. E mais instrutivo ainda comparar estes argu- mentos com os da esquerda (que esbogo mais adiante) e os dos teéricos criticos da raga (explicados no capitulo 3), que véem, ao invés, o movimen- to liberal dominante do multiculturalismo como trabalhando em favor da classe governante conservadora branca. Levando em conta estes pontos fracos do pensamento neoconserva- dor, fica claro como os neoconservadores véem 0 pluralismo cultural fa- zendo uso dos recursos das sociedades multiculturais, embora continuem ainda classificando os individuos por suas realizagdes e desempenho. O que é fascinante nos neoconservadores seculares e moderados é que, como os neoliberais, eles apdiam o livre comércio e advogam a globalizacao das culturas e economias, j4 que a globalizagéo aumenta o fluxo de capital. Mas, para sua consternaco, a globalizacio - como explicado no capitulo 2 — também aumenta o fluxo de trabalho. Assim constitui um paradoxo que aimigragao e o multiculturalismo nao sejam do seu agrado, embora sejam a outra face da moeda da globalizagao das economias. Mas globalizagéo, com certeza, ndo quer dizer necessariamente uma mentalidade global. Para os fundamentalistas cristdos e para as facg¢des extremadamente conservado- ras dentro do neoconservadorismo, além do mais, a globaliza¢o nem sem- pre é um processo bem-vindo — mas uma expresso das contradigdes den- tro do movimento neoconservador. Mas 0 multiculturalismo, como veiculo da mobilidade social seletiva, é inevitavel na logica do estado neoconservador. Para os neoconservadores a solugdo do debate sobre o multiculturalismo nao pode, ironicamente, ser entregue a légica do mercado. Os neoconservadores procuram estabelecer um conhecimento bésico, um conhecimento oficial a que todas as culturas deveriam estar expostas a fim de moldar sua compreensao cultural, ao mesmo tempo que conservar seu cardter folclérico. Nao obstante, como disse um critico, toda definigéo de conhecimento é um lugar de conflito “sobre as relacdes entre cultura e poder em termos de classe, raga, sexo e religiao” (Apple, 1993a, p. 5). Para os neoconservadores, a responsabilida- de e escolha individual constituem a base do desempenho cultural em mercados dinamicos. Existe, néo obstante, uma importante tensio: Se o 221

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