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ResearchGate Descolonizacao do imaginario e (re-)exist@ncia indigena no ciberespaco: conceitos e praticas de etnocomunicacao e ciberativismo entre os Tupinambas afro apr ne 251 19° Congresso Brasileiro de Sociologia 9.12 de julho de 2019 UFSC - Florianépolis, SC Grupo de Trabalho: Estudos Culturais e Epistemologias Outras (GT25) DESCOLONIZAGAO DO IMAGINARIO E (RE-)EXISTENCIA INDIGENA NO CIBERESPACO: CONCEITOS E PRATICAS DE ETNOCOMUNICAGAO E CIBERATIVISMO ENTRE OS TUPINAMBAS Filipe Augusto Couto Barbosa Universidade Federal de Goids Introdugao Este trabalho é a exposigao simplificada de parte da minha tese de doutoramento em Sociologia (ainda em confecgo, e a ser defendida em dezembro de 2019), em que analiso as representagdes dos povos tupinambas na constituicao do imaginario nacional (2, em menor medida, também internacional), tendo isso em vista de trés estados processuais mais gerais, e que marcaram as dinamicas interculturais nas Américas (@ em grande parte do globo), nos tltimos cinco séculos: colonialidade / modemidade / descolonialidade. Dialogando, portanto, com as perspectivas ditas “decoloniais” e com os estudos culturais subalternos, entre outras perspectivas, ¢ partindo do caso emblematico dos indigenas tupinambas, a tese suscitada 6 a de que as guerras étnicas que marcaram a colonizacao nunca cessaram e ainda que, agora, estas guerras exacerbaram as suas caracteristicas mais sutis (ideolégicas) a0 mesmo tempo fundantes do racismo colonial, que sao a dominacdo e o embate que ocorrem no Ambito do imaginario ou das representages que reproduzimos no senso comum acerca do outro ~e isso pensando em um outro que é um tanto eu, que compée funcionalmente a identidade nacional (ja que os Tupinambas da costa foram os povos que mais se relacionaram com os europeus no primeiro século aps sua chegada), mas que esta degenerado em sua imagem, invisibilizado e velado em sua existéncia pelos discursos hegeménicos, ou seja, um ser que é subalterno @, por isso, foi esquecido, ou melhor, apagado da historia. Na tese, parto do encontro de mundos, e os motivos (edénicos ou demoniacos) que se associava aos canibais (0s tupis antropéfagos) do novo mundo, e o processo de colonizagao que desde entéo se perpetrou, e depois pela “reabilitagao do primitivo” com os modernismos do inicio do século XX, e, em especial, com o movimento da “antropofagia’, para chegar aos dias de hoje, em que pessoas autodeterminadas tupinambas ressurgem no cenério nacional, reclamando seu reconhecimento oficial pela FUNAI (tendo sido reconhecidos em 2002) ¢ 0 direito de ocupar as suas terras ancestrais (direito que ainda nao adq ram oficialmente, mas que tem se dado de fato com a ocupacao forgada nas lutas independentes de retomada dos territérios). E, especialmente entre os jovens, tem se constituido movimentos e organizacdes no sentido de se articular, de denunciar os ataques que sofrem e de reescrever a sua historia, 0 que tem se dado, entre outras formas, por meio do que os mesmos denominaram “etnocomunicagao", da qual derivam varios conceitos e praticas que nos ajudam a explicar tal fenémeno. O presente artigo foca neste ultimo momento histérico-cultural, atual, e tem como objetivo geral vos introduzir brevemente a estes conceitos e praticas, buscando os situar nas dinémicas que tém caracterizado as relagées entre comunicacao e poder na contemporaneidade. Portanto, este trabalho se debruga sobre conceitos e praticas associadas ao que se denomina aqui por “etnocomunicagao” dos grupos subalternos em sociedades multiculturais resultantes de processos coloniais, em especial, aquela que tem sido produzida como ciberativismo e midiativismo entre os tupinambas. Como sua mais nova forma de resisténcia (e, em certo sentido, também, de re-existéncia), essas formas de ativismo e edupolitica baseados nas novas tecnologias de informagao comunicagao (NTIC) tém visado tanto 0 resgate da meméria social do grupo/etnia ~ abalada pela persisténcia do etnocidio que caracterizou a colonizagao —, quanto a reescrita e retomada da propria hist6ria, até entéo, contada sempre do ponto de vista do colonizador. Os conceitos e praticas investigados sao vistos aqui como desdobramentos atuais das lutas e da resisténcia dos tupinambas desde o inicio da invaséo europeia, mas © foco aqui é compreender 0 seu estatuto epistemolégico, como produtos vivos de um pensamento de fronteira, que surge do didlogo entre os povos tradicionais ¢ a modemidade, e atua no sentido de uma superaco da colonialidade que marca as relagdes de poder entre centros hegeménicos e modemidades altemativas Considerando o recorte, estes conceitos e praticas se reuinem em torno do que os sujeitos da pesquisa denominam “etnocomunicagao” e os seus desdobramentos, como, por exemplo, a “etnomidia” (e uma de suas modalidades: 0 “etnojornalismo”) © 0 “ciberativismo indigena’ (todos conceitos nativos). Dentro da etnocomunicagao ha uma constelagao de conceitos e que sao proprios de cada grupo (ou da rede de grupos) que assume a sua radicalidade e semistica, fundindo de maneira indelével a identidade cultural e a comunicagao no ativismo. Assim, o presente estudo visa identificar e compreender os conceitos e praticas que tém definido o ciberativismo dos Tupinambés. Feito isto, visa-se situar a experiéncia epistemolégica de forjar entendimentos hibridos a luz do contexto hist6rico colonial e moderno que culminaram nestas formas atuais, e, portanto, visa-se salientar os aparatos de resisténcia e de re-existéncia (como, por exemplo, suas estratégias de ocupagao do imaginario como edupolitica) que estes indigenas tém criado a fim de descolonizar e horizontalizar as relagées de poder e de saber com a sociedade nacional e o mundo globalizado. E é neste contexto que esses conceitos e praticas ganham sentido, cabendo a este pesquisador, tentar avaliar, na verdade, o impacto destes saberes hibridos no conhecimento cientifico que produzimos. Metodologia Os dados analisados foram produzides com base em publicagdes espontaneas dos préprios sujeitos engajados em canais de ativismo on-line, ou seja, com base em informagées extraidas de midias e de arquivos disponiveis na internet, como em audios, videos, filmes, e-books, plataformas virtuais, posts e comentarios em blogs e paginas e perfis em midias sociais digitais. Esta forma no interativa de coleta € andlise de dados sociais tem caracterizado diversas novas vertentes da Sociologia Digital, que gozam de um pluralismo metodolégico, tanto em termos de acolher nas anélises um conjunto de métodos, quanto em termos da interdisciplinaridade com: a Ciéncia da Computaco, a Ciéncia da Informagao e a Comunicaco, entre outras. Autores se referem a estas novas vertentes como proprias de diversos paradigmas novos, como Humanidades Digitais, Analitica Cultural, Ciéncias Sociais Forenses, Ciéncia Social Computacional, entre outras. Esta pesquisa se propde exploratéria multicaso, e, explorando-se a arquitetura ‘reticular’ e ‘rizomatica’ do ciberespago e adaptando a nocd de estudo de caso hiper realidade multi-situada e deslocada no tempo do ciberespago e das ciberculturas, e, na liberdade metodolégica que se espera de um estudo que deve se adaptar ao caso (ou a rede de casos), apropria- se de técnicas de trabalhar com o digital das correntes supracitadas, mas se as articula segundo a forma artesanal da pesquisa qualitativa etnometodolégica, uma vez que, embora o presente pesquisador nao interaja diretamente com os sujeitos da pesquisa, este busca reconstituir a atuagao destes sujeitos no ciberespago, por meio de seus rastros digitais, lidos a partir de seus préprios conceitos; assim sendo, se os pesquisados nao interagem com 0 pesquisador, o contrario nao é verdadeiro, pois 0 pesquisador interage com os ‘espectros’ dos pesquisados na maquina - e, com isso, produz uma semidtica, como é caracteristico dos estudos etnograficos da Antropologia e Sociologia. Resultados Ha menos de duas décadas, os Tupinambas (etnia que chegou a ser dada como “extinta’) iniciaram um processo de luta por reconhecimento e de retomada de seu territério no sul da Bahia. Este proceso, nas frentes de luta mais jovens, tomou a forma de um ciberativismo, que focou nos processos de articulagao intercultural e de ocupagao do imaginario nacional por meio da etnocomunicagao no ciberespago. Partiu-se do caso da Organizacao da Sociedade Civil Thydewé (redugao de uma expressao em lingua indigena e que se pode traduzir por “Esperanga da Terra’), surgida em 2001, formalizada em 2002, e atuante na Regido Nordeste do Brasil Os trabalhos da Thydewé se iniciaram com o projeto “indios na visao dos Indios”, voltado @ “formacao de indigenas de varias etnias e nagSes para atuarem como historiadores, antropélogos, jornalistas e fotégrafos de suas préprias realidades” (THYDEWA, 2018), ¢ que compartilham os seus trabalhos em midias como audios, e-books, fotografias, filmes e videos digitais, disponiveis para download gratuito no sitio eletrénico da Thydewa." Neste debate sobre as ciberculturas indigenas, e pensando o cinema (e também ‘sua apropriagao para o cineativismo) como um dos precursores deste proceso, 6 impossivel nao mencionar o aclamado projeto “Video nas Aldeias",? ativo ha cerca de trés décadas, e que se consolidou e notabilizou. O projeto partiu da iniciativa de no-indios, notadamente do seu fundador, 0 cineasta Vincent Carelli, que, tendo iniciado um cinema etnografico acabou sendo demando por indigenas que queriam registrar seus rituais e seu cotidiano, como uma estratégia de sobrevivencia da sua cultura, especialmente, na transmissdo para os jovens, interessados pelas NTIC, uma vez que os conhecimentos tradicionais de suas culturas orais se encontravam ameagados com a morte iminente de seus ancidos. Havia, porém, rituais que eram segredo, levando Vincent a treinar indigenas para registrar e editar seus filmes, @ © resultado foi inesperado e magnifico, revelando olhares outros pelas lentes das cameras. * Site oficial: http://wmw.thydewa.org/ 2 Site oficial: htp://videonasaldeias.org.br/2008/. As NTIC foram apropriadas para resolver um “conflito geracional” bastante sério comum entre os povos indigenas brasileiros na contemporaneidade, devido ao fato de os jovens estarem sendo “seduzidos’ pelos “objetos e tecnologias dos ndo- \digenas", e nao mais se interessarem pelas praticas tradicionais, como observa Carlos Fausto (2011, p. 162), a respeito de um caso semelhante; segundo este autor, 0 uso das praticas rituais sobre “um passado idealizado (...) sempre serviu como método pedagogico para criar uma imagem de futuro para os jovens”, porém, agora estes estéo em busca de outras habilidades para se projetarem no mundo globalizado, como, por exemplo: aprender a lingua portuguesa, ir a escola formal ¢ @ universidade, conseguir um trabalho para ter dinheiro e poder adquirir os objetos tecnolégicos ndo-indigenas, etc. Entdo, esta preocupagao de registrar e de garantir a reproducéio dos modos de ser indigenas esta presente em diversas situagdes, como fica evidente também nos registros filmograficos produzidos no Ambito do projeto Video nas Aldeias. Neste, 08 indigenas passaram a produzir filmes e se tornaram os préprios cinegrafistas da vida de seus povos, afastando a “imagem eurocéntrica” e romantica do selvagem construida por toda filmografia ocidental (SHOHAT; STAM, 2006) e que permeou o imaginario moderno. Isso culminou no nascimento de uma linguagem audiovisual outra, um “cinema indio" (FAUSTO, 2011), e também em uma “escola de cinema indigena” (CARELLI, 2011), inaugurando formatos hibridos e interculturais. E 0 projeto “Indio na visdo do Indio" da Thydewa vai no mesmo sentido e, embora ainda experimental e germinal, inova, ao nao se restringir a nenhum tipo de midia @ ao focar no digital, e se desdobra em varios outros projetos, como veremos mais adiante, Com de trés a quatro anos de existéncia, em 2005, a OSC Thydewa concorre ao primeiro edital pUblico para os Pontos de Cultura,? com a iniciativa de um blog que 5 Para estimular grupos étnicos eartstcos excludes do crcuito cultural que compée 0 mainstream, em 2008, (© Ministério da Cultura brasileiro lanca uma politica cultural inovadora, entdo, batizada de Pontos de Cultura. A ideia é uma metéfora relativa a0s pontos meridionais da medicina tradicional chinesa, que, segundo o Ministro da Cultura a época, o misico e pensador do movimento tropicalsta Gilberto Gil, tem a cultura com um corpo vivo, cujos “pontos vitals” poderiam ser estimulados por um “Do-in antropolégico”: “massageando pontos vitais, mas momentaneamente desprezados ou adormecidos, do corpo cultural do Pais. Enfim, para avivar 0 velho e aticar o novo. Porque a cultura brasileira ndo pode ser pensada fora desse jogo, dessa dalética permanente entre a tradiclo e a invencdo, numa encruzilhada de matrizes milenares ‘einformagbes e tecnologias de ponta’ (BRASIL, 2003). funcionaria como uma rede nacional de comunicagao indigena, de nome “indios Online”, e 6 contemplada, nascendo ai o Ponto de Cultura Viva Indios Online. A politica publica dos Pontos de Cultura fornece um kit multimidia basico e acesso a.uma midia social de troca de experiéncia entre os Pontos de todo o pais, e alguma assisténcia técnica e de gestao para ajudar a colocar em funcionamento 0 Ponto. Com isso, houve uma impulsao do ciberativismo com foco na cultura, e se reforgou ‘0s movimentos de ocupacao do imaginario por grupos subalternos, uma vez que o ciberespago pode ser visto também como o lugar em que se cristalizam e ganham formas sensiv as imagens e os simbolos culturais, ¢ a0 qual 0 acesso e/ou a lade de ocupagao ainda sao muito maiores que o acesso a terra ou a um possibil teto nos regimes de propriedade privada, ou mesmo de propriedade coletiva, esta tiltima constitucionalmente garantida aos povos originarios. Hoje, a Thydewé agregou os Pontos de Cultura Indigena de sete povos diferentes, formando a Rede de Pontos de Cultura Indigena do Nordeste. Seu projeto inicial, “a REDE” indios Online, tornou-se pioneiro do etno-jornalismo digital, e nesse sentido foi também o lugar de amadurecimento politico de varias personalidades importantes para o ciberativismo indigena no Brasil, e, em especial, na Regio Nordeste, como Potyra Té Tupinamba, diretora da Thydewa e ativista pelos Direitos Humanos Indigenas e Mulheres Indigenas. Em depoimento ao filme Indigenas Digitais (2010), de producéo da Thydewa, ela explana um pouco sobre esse “ciberativismo indigena”. Isso é ciberativismo: [..] & vocé continua esse movimento que vocé 14 fazendo aqui, presencial, através do mundo virtual, é publicando uma matéria, € trocando um e-mail com um parente, é entrando no ninho da Esperanca da Terra e fazendo o movimento Ié também, isso se chama ciberativismo... da pra alcangar muitas pessoas, muitos indigenas e nao indigenas também... sensibiliza pras nossas necessidades usando a internet. (INDIGENAS, 2010) Em outra ocasido, em cursos de formagao em etno-midia, Potyra Té Tupinambé comenta que, além de combater informagdes tendenciosas produzidas pela midi convencional, 0 ciberativismo tem possibilitado aos Povos Indigenas “reescrever” sua historia por eles mesmos, descolonizando o imagindrio produzido por séculos sedimentando representagdes exotizantes e pejorativas dos indigenas. Outro dos entrevistados no filme Indigenas Digitais (2010) relata a sua experiéncia ao interagir com contetidos publicados por participantes da REDE indios Online, e 0 seu relato nos mostra bem o carater desmistificador da conexao intercultural, ¢ isso inclusive entre indigenas de diferentes etnias. ‘Através da rede Indios Online eu pude conhecer a cultura dos povos Pankarar e Tupinambd aqui do Nordeste, que antes eu s6 conhecia por meio de jomais e livros didaticos, e, quando se fala, fala bem poquinho, ou néo fala nada, ou fala mal... até mesmo que a gente aprende nas escolas, naqueles livros que dao pra gente ler... (..) entéo, eu passei a t8 um contato direto com os Povos, com aqueles que colocavam suas histérias veridicas ali ent, esse contato se tornou maior, uniu o Brasil inteiro num s6 canal. (INDIGENAS, 2010) filme mencionado — Indigenas Digitais (2010) — traz falas importantes de outros indigenas também, e que podem nos ajudar a entender como a etnocomunicagao digital indigena— mediante o caso em questdo, mas, certamente, também em casos 0s mais variados — ajuda nao somente na articulagao do ativismo indigena entre os diferentes povos, como serve também a sua protegao mediante a deniincia publica e para manter contato com as autoridades, visando reivindicar os seus direitos: © nosso trabalho com a internet € mais voltado pra contribuir com ‘© nosso movimento, com as nossas lutas, dé mais visibllidade ao que acontece dentro do nosso povo mesmo... jé que a gente passa Por muitas dificuldades, e muitas vezes nao esperar um jornalista chega e fazé uma matéria sobre determinado assunto, a gente mesmo tem a possibilidade e a autonomia de falar o que acontece dentro do nosso povo. ‘A dentincia na internet fica mais facil porque é tipo um registro a nivel mundial... porque ali muitas pessoas vao ter acesso, vao estar lendo, e aquelas pessoas que tém espirito de justica vao estar enviando e-mails para as autoridades competentes, pra estar ‘exigindo do érgao que faca seu papel. A tecnologia, assim, & importante que a gente possa passar a mensagem para 0 Govemo Federal, que ele possa resolver 0s problemas da nossa Terra, a parte dos poceiros, que ta ocupado. para que a gente possa passar informagao para o presidente da FUNAI, para o ministro, e nao s6 para o ministro, como para o préprio presidente e para todos os outros paises... entéo, € importante que a gente fale da nossa terra... que tire 08 poceiros, que faca a demarcacao, nao sé de Pankarart, mas como de outras nagées indigenas. © indigena digital é 0 indio que se apropria da ferramenta, que faz 0 uso dela pra ajudar a sua comunidade, pra té aproximando a sua ‘comunidade, que da voz a sua comunidade, pra apresenta tudo 0 que acontece na sua comunidade (...) pra té fortalecendo a nossa causa, a nossa luta. Percebemos nessas falas a criagao de varias categorias hibridas e interculturais, que a eles e a nés (ndo indigenas) toma inteligiveis suas apropriagdes culturais das NTIC, como a nogao de “indigena digital”, que é ligada nao simples ideia de um \digena que se apropria de uma tecnologia di fal, mas de um agente edup. indigena, “que da voz a sua comunidade”, que quebra velhos esteredtipos e que se utiliza das NTIC para defender sua “causa, a luta em defesa do territério, por satide e educago, entre outros direitos que sao constitucionalmente garantidos aos povos originarios. Assim, para os “indigenas digitais”, a internet e o computador sé0 como © arco e flecha, so seu “arco [e flechal digital’, que ajudam a alimentar e a defender seu povo. Surge aqui um conceito nativo, hibrido e intercultural, ¢ que nos ajuda a compreender a complexidade do que poderia nos parecer uma simples apropriagao instrumental das NTIC. Aqui, as nogdes de “arco digital” e “cagada virtual” sugerem uma analogia das praticas digitais envolvidas no uso de uma ferramenta de busca na Internet e a cagada com arco e flecha na mata, mas extrapolam isso e tem um significado empirico, pois 0 objetivo da internet ligado ao computador é o mesmo do arco e flecha, ¢ alimentar e defender o povo, o que fica claro na fala de um dos indigenas entrevistados no documentario: © computador... ele serve como um arco... 0 arco tradicional servia pra cagar, pescar e defender o povo (...) ..e computador também faz isso... ele faz a cacada, né? ... uma cagada virtual ...a gente procuramos os ministérios, as ONGs, e enviamos projetos através da internet... a gente elaboramos projetos, planejados com a ‘comunidade... esses projetos a gente elaboramos via internet, e enviamos... e quando esses projetos, eles é aprovado e aplicado na comunidade como fonte de renda pro povo, entao, é como se fosse uma grande cagada... e 0 computador, conectado internet, & como se fosse um arco, que a gente denominamos de arco digital Em conclusao, trago a sinopse de Potyra Té Tupinambé (2010), publicada no blog da REDE indios Online, que sintetiza 0 registrado no documentério curta-metragem Indigenas Digitais: No curta-metragem, integrantes de varias nagées indigenas, como a Tupinamba (BA), a Pataxé Ha Ha Hae (BA) e a Pankararu (PE), relatam como celulares, cameras fotogréficas, filmadoras, ‘computadores e, principalmente, a internet vém sendo ferramentas importantes na busca das melhorias para as comunidades jenas e nas relagdes destas com 0 mundo globalizado. O filme aborda a necessidade do povo indigena de se expressar para 0 mundo e mostra como varias tribos dialogam entre si, conhecendo umas a realidade das outras. Uma espécie de “link” entre a tecnologia ea manutengdo das tradigdes, permitindo a insergo dos indios no mundo globalizado, mas, principalmente, deixando que eles sejam protagonistas de sua propria histéria. “Os indios apelidaram 03 computadores conectados a internet de ‘arco digital porque € assim que eles agora desejam ‘cagar’ a conquista dos ‘seus direitos territoriais, de salide, educagao e de cidadaos do Brasil’, enfatiza Sebastian Gerlic, idealizador e diretor do documentairo. Outra intelectual Tupinamba importante desta leva da REDE indios Online e que pode nos ajudar a compreender como funciona a etnocomunicacdo digital indigena 6 Renata Machado, de jovens comunicadores ativistas indigenas, é fundadora e mantenedora da jomalista especializada em etno-midia, que, junto a um grupo Radio Yandé, um Ponto de Midia Livre, surgido em 2013, como primeira radio on- line indigena do Brasil, hoje uma referéncia. A atuagao da radio 6 na “Comunicagao @ Etnomidia Indigena’. E seu slogan mostra bem 0 que argumentei, em relagao ao digital como forma de preservagao e inovagaio das tradigdes indigenas, e néo como integragao inevitavel 4 sociedade moderna eurocéntrica (e/ou estadunidocéntrica), mas como proposta de uma modernidade alternativa: "O modo tradicional indigena, agora em formato digital” No site da radio, a equipe assim define sua proposta: ‘A Radio Yandé € educativa € cultural. Temos como objetivo a difuséo da cultura indigena através da dtica tradicional, mas agregando a velocidade e 0 alcance da tecnologia e da internet. Nossa necessidade de incentivar novos “correspondentes jenas’ no Brasil, faz com que possamos construir uma ‘comunicagao colaborativa muito mais forte, isso comparada as midias tradicionais de Radio e TV. Estamos certos, de que uma convergéncia de midias & possivel, mesmo nas mais remotas aldeias e comunidades indigenas, e que isso € uma importante forma de valorizagao e manutengo cultural Nossa grade de programacao possui programas informativos € educativos que trazem para o puiblico um pouco da realidade igena do Brasil. Desfazendo antigos esterestipos e preconceitos ‘ocasionados pela falta de informagao especializada em veiculos de ‘comunicacao nao indigenas. No caso do povo Tupinamba em especial, mas 0 que ocorre também com varios outros povos, a comunicagao enviesada tem instigado na populagdo a hostilidade contra os indigenas, questionando inclusive a autenticidade de sua identidade, ao serem tidos por “mestigos” querendo se passar por Tupinambés, como se estes s6 existissem na historia, como fantasmas do passado. Assim sendo, “oferecendo uma cobertura parcializada e discriminatoria, os veiculos de comunicagao hegemér 08 vem contribuindo para a cristalizagao dos esteredtipos sobre os povos indigenas no senso comum”, afirmam Alarcon e Navarr (2014), ao analisarem as publicages da midia convencional sobre 0 povo Tupinamba Diante disso, surge a necessidade de se produzir etno-jornalismo e etno-midia em geral, como partes essenciais do ativismo na etnocomunicagao, que deve combater a desinformacao e, principalmente, a “informagao enviesada’, que cria as imagens degeneradas associadas aos Povos Indigenas na atualidade. Para fechar esta exposigao de conceitos e definir 0 que denominei neste artigo de etnocomunicagao digital indigena, Renata Machado Tupinamba nos fornece uma conceituagao bastante completa de “etnocomunicagao" (e também de “etnomidia"), € reafirma os propésitos ativistas que Ihe so inerentes: Realizar etnocomunicagaio ¢ permitir um novo olhar aos processos ‘comunicativos, relagdes com o piblico e até mesmo novas estruturas de formato jornalistico pautadas pelas visdes da etnia daqueles que a realizam, sejam indigenas, quilombolas, caigaras, romanis, chineses ou italianos. Pode ser aplicada no cotidiano de qualquer grupo. Etnomidia é uma ferramenta de empoderamento cultural e étnico, por meio da convergéncia de varias midias dentro de uma viséo etno. Por isso 0 uso deste prefixo. Ela é uma forma que promove a descolonizagao dos meios de comunicagao, podendo ser executada por diferentes identidades étnicas e culturais. A apropriagao dos meios de comunicar tomou possivel aos povos ‘serem seus préprios interlocutores. (..) A etnomidia [incluindo ai o “ento-jornalismo’] indigena & adotada ‘como estratégia para trazer reconhecimento, visibilidade aos direitos, respeito, noticias de interesse deste piiblico, resgate cultural’ e principalmente € uma forma de quebrar_antigos esteredtipos ou preconceitos ocasionados pela falta de informagao especializada nos principais veiculos de comunicagao. Realizar uma comunicacao alternativa e diferente da convencional abre um leque de possibilidades que séo limitadas na midia tradicional. E uma midia livre de alguns formatos preestabelecidos_e ‘condicionados as estruturas fechadas no jornalismo. (TUPINAMBA, 2016) [comentario nosso} Essa definigo transcende a condico instrumental da razAo ocidental e nos mostra como as culturas reinventam as técnicas, a comunicagao e a propria modernidade, desafiando-nos a ampliar as fronteiras do pensamento cientifico a estados hibridos, de modo a definir o ciberat mo tupinamba no apenas como uma apropriagéio de meios cibernéticos para fins politicos, mas como uma antropofagia da comunicagao € informago digitais e da modernidade técnica, e sua incorporacao ao seu socius, expressando sua forma ciborgue idiossincratica e a aplicagao dessas tecnologias para tentar solucionar os conflitos interculturais que os envolvem, isso, em especial, no Ambito da luta por direitos, nos conflitos interculturais, e na guerra de informagao visando descontruir os esteredtipos e as representagdes degeneradas dos Povos Indigenas no imaginério nacional, entao, “promovendo a descolonizagao dos meios de comunicagao’. Destarte, além de autonomia em relagao a produgao de contetido de interesse dos povos indigenas e a divulgacao de informagao sobre os Povos Indigenas no Brasil, segundo Renata Machado Tupinamba, a “etnocomunicago” os possibilita também uebrar antigos esteredtipos ou preconceitos ocasionados pela falta de informagao especializada nos principais veiculos de comunicagao". A ethocomunicagao ainda se coloca como uma forma de edupolitica, no sentido de que agir para conscientizar 08 Povos Indigenas de seus direitos e para acabar com a ignorancia dos nao-indios a respeito deles, é fazer politica atuando direto na (in)formacao das pessoas, criar lagos mais fratemos e reais e menos estereotipados de identidade e diferenga com outras culturas no Brasil e no mundo, é um movimento de ocupacao do imaginario nacional com representagSes mais fiéis e justas para com os Povos Indigenas, é, pois, descolonizar a comunicagao, o saber e o poder nas relagées interculturais. Discussao Em uma democracia multicultural e pés-colonial como no Brasil, portanto, o advento do ciberespago redistribui “o poder da comunicagao” néo somente entre individuos como eixos da nova comunicagao de massas na internet, criando-se uma espécie de “intercomunicagao individual” — como propde Castells (2015) -, mas também e entre as identidades e etnicidades, jé que, mais do que nunca, a imaterialidade da cultura e do social se cristaliza nas virtualidades das midias e do digital. Assim, sob © rétulo identitario genérico (e outrora até pejorativo) de ‘indios’, agora apropriado ‘como simbolo da luta unificada de seus diversos povos, os individuos amerindios passam a se identificar com as historias de seus antepassados e a se articular em movimentos culturais ¢ de ciberativismo politico, buscando tanto 0 reconhecimento de suas identidades étnicas, como a luta recente dos tupinambas por seu territério © por sua re-existéncia, e, com isso também, contrapor aos efeitos duradouros da colonizagao — sob a forma de “colonialidade do poder" (QUJANO, 2005) — suas novas estratégias de descolonizagao e empoderamento por meio do ciberespaco. Com 0 advento do ciberespago, renova-se o didlogo entre as sociedades nacionais eas etnias excluidas ou marginalizadas da modernidade hegeménica, esta, entao, pretensamente cosmopolita, porém, constituida e instituida ao modo eurocéntrico; e se resgata 0 valor das outras matrizes participantes no processo de globalizagao cultural das Américas, considerando projetos de modemidade alternativos e plurais, inspirados na propria diversidade cultural e nao em modelos eurocentrados Pensando as possibilidades libertarias da internet como meio de comunicagao, esta possibilita também aos individuos colonizados/modernizados se desprenderem de formas de dominacao plutocraticas e verticais dos sistemas simbdlicos, que criam um verdadeiro sistema de hierarquizacao cultural. Este efeito ideol6gico, produ-o a cultura dominante dissimulando a fungao de comunicagéo: a cultura que une (intermediario de ‘comunicacao) ¢ também a cultura que separa (instrumento de disting&o) e que legitima as distingdes compelindo todas as culturas (designadas como subculturas) a definirem-se pela sua distancia ‘em relagao a cultura dominante, (BOURDIEU, 2010, p.10-11) Portanto, a libertagao proporcionada pela horizontalidade da comunicagéo em um meio amplo como a World Wide Web (WWW) significa reconsiderar a condigao de ubculturas” dada aos individuos e grupos subalternizados, os quais tm buscado encontrar referéncias e sentidos perdidos em um passado de dominacao, e assim criar novos sentidos definidores de si, Essa reviravolta encaminha um proceso de descentralizagao dos dispositivos de “distingao" que investiriam nos individuos e nas culturas “simbolos” de “poder” e status, deixando de ser uma questo exclusiva das classes sociais préprias do capitalismo para se tornar novamente uma questéo de diferenca, ou seja, das etnicidades, do individuo tomado coletivamente, em sua identidade cultural, em um processo de redefinicao da antiga légica que globalizava valores especificos de uma elite em nome do Universal, disfarce da cultura europeia ocidental e dos seus mecanismos de manutengao da dominagao e hegemonia. A medida que saberes contra-hegeménicos passam a ser quase instantaneamente criados e distribuidos em redes sociais digitais, os individuos e os seus coletivos passam a compartilhar sua diferenga e identidade, elementos ocultos ou perdidos em passados de dominagao, e passam também a se engajar em novos movimentos socioculturais, e na luta por seus direitos, assim como na promogao de suas ideias e sua cultura como um todo, pois foi somente a partir do surgimento da WWW e das midias digitais que estes conquistaram certa autonomia para a comunicagao e © alcance difusivo necessarios para se fazer movimentos sociais expressivos de forma apartidaria (fora dos partidos ou sem seu apoio) e com baixo custo — pois, nos sistemas capitalistas e coloniais, os fluxos de poder (e conhecimento) estarao sempre atrelados aos de capital (QUIJANO, 2005). A distribuigao desigual de aparatos tecnoldgicos e dos conhecimentos necessarios a um acesso satisfatério a internet 6 determinada pela ‘centralidade’ econémica, infraestrutural e geopolitica das grandes metrépoles urbanas e das comunidades que produzem de fato os simbolos das culturas hegeménicas, que formatam as linguagens dominantes no ‘ciberespaco’ de base ocidental — grande parte destas se concentra no Vale do Silicio, na Califérnia (EUA), e quando digo ocidental isto se deve ao fato de que a internet tem outras referéncias no Oriente, sendo a China e a india praticamente mundos a parte —, assim como, também, adquirem certas caracteristicas locais/regionais, formando hibridos com as matrizes dominantes em nivel global, 0 que revela as “territorialidades” da internet. (MARTEL, 2015) E interessante notar que, nesse sentido, a internet, as midias e o ciberespago como: um todo no sao eminentemente emancipater izam 0 acesso & s, mas potenci informagao e aos recursos comunicacionais, seja para estabelecer novas formas de controle e poder para a hegemonia estabelecida, seja para possibilitar a grupos contra-hegeménicos forjar novos dispositivos de reconhecimento e mudanga social. O ciberespago (em especial, com a internet) tem permitido aos movimentos sociais © grupos étnicos divulgar informagées e compartilhar patriménios culturais digitais, e tem sido utilizade como canal de articulagéo dos movimentos ‘socioculturais’. A Web os possibilita compartilhar de sua arte, musica, vivéncias, posts jornalisticos, dentincias e uma infinidade de outros contetidos (em textos, audios, videos, etc.), divulgando seus saberes e a condigao daqueles que tém sido subaltemnizados na formagao das sociedades capitalistas pés-coloniais, e protestando contra as formas de exclusdo a que sao submetidos, inclusive a ‘exclusao digital’. © proprio uso da expressao ‘exclusao digital’ (j4 vulgarizado no Brasil e no mundo em sua versao em lingua inglesa [digital divide) — como um derivado do conceito de “exclusao social", cuja definicao, inspirada nas ponderagées de Gohn (2005), coloca-nos diante de um processo de obnubilacao da diversidade cultural, que nega aos excluidos e aos marginalizados 0 conhecimento da prépria cultura e histéria, e, portanto, também, a consciéncia critica necessdria para reconhecerem a prépria condigo de exclusao socioeconémica — de forma tao difundida como se vé atualmente ja demonstra 0 quanto as NTIC sao necessarias @ integridade social e a integralidade dos sujeitos de direito na contemporaneidade Assim, apesar da grande necessidade de ‘incluséo digital’, as novas possiblidades de expressao cultural e de interagao advindas com as NTIC tém funcionado como idades de catalisadoras das mudangas socials. Vislumbremos exemplos e possi Teaco das pessoas em toro de causas identitarias ou em tomo da luta por direitos. Tem-se movimentos sociais estruturados e formas mais efémeras de mobilizacao, que vao do ativismo organizado aos “smart mobs”, com grupos que se articulavam espontaneamente, antes, utilizando-se de SMS (Short Message System) em seus telefones celulares (hoje, com os aplicativos de mensagens em seus smartphones), tal como no caso das “tribos urbanas’ de jovens (RHEINGOLD, 2002), ou em torno de eventos controversos que evoquem as suas causas politicas e de engajamento com base na identidade cultural. Por exemplo, o caso de uma mobilizagao em apoio a alguém que sofreu ‘discriminagao racial’, por meio de hashtags de protesto contra a violéncia ou ainda de apoio aos violentados, tal qual ocorreu recentemente com a jomalista de um grande veiculo de midia do Brasil, Maria Jilia Coutinho, mulher ‘afro-brasileira’, que, apés sofrer com atos de racismo em suas paginas pessoais nas midias sociais, teve em contra o surgimento espontaneo de uma campanha em seu apoio, abominando os ataques rai tas, por meio de cédigos ativistas e que articularam as pessoas, como a hashtag “#somostodoscontraopreconceito”; e, um outro exemplo, nos EUA, em protesto ao assassinato de pessoas afro-americanas por poli “#Blacklivematters” — caso interessante para se pensar o papel da midias socials com uma hashtag que fez unissonas as vozes dos grupos indignados: do controle do Estado em relacdo a informacao e aos movimentos socials, pois, a0 mesmo tempo em que os atos de protesto eram por meio destas midias articulados, a policia se utilizava do seu acesso privilegiado do Estado ‘americano’ a privacidade dos ativistas nas midias sociais (como no Facebook), e se antecipava para reprimir as manifestagdes. E interessante também como as mobilizagdes em rede vo incorporando outras em ‘ondas’, como no caso do fenémeno que contribuiu as revoluges democraticas no norte da Africa e no Oriente Médio, conhecido como a ‘Primavera Arabe’ — em que manifestantes se utilizaram de SMS e midias sociais na internet para sensibilizar a comunidade internacional e para mobilizar a sociedade civil em tomo de passeatas, greves e manifestagées politicas contra o autoritarismo e a censura aos meios de informagao e comunicacao por parte dos Estados monrquicos e militarizados de que eram reféns; 0 que contagiou toda a regiao cultural, estimulando movimentos pela democracia e derrubada dos governos autoritérios. Na arena das lutas por igualdade de género ocorreram fendmenos que geraram ondas com formatos interessantes nesse sentido; como, por exemplo, a utilizagao de um “filtro de perfil” colorido em mengo ao arco-fris (simbolo do ativismo LGBT) nna foto de perfil da midia social Facebook, como ato de apoio & causa dos direitos civis de parceiros homoafetivos. E também em se formando ‘redes’ de dentincias ‘espontaneas’ com relagao a violéncia de género, tal como, por exemplo, a que se formou a partir da hashtag #MeuAmigoSecreto, que nao foi uma campanha, mas uma construgao “espontanea” do Coletivo Nao Me Kahlo (2016), e que estimulou mulheres a revelarem casos de assédio, abuso e violéncia que sofreram ou sofrem em seu cotidiano, e que repercut muito gerando impacto em suas midias sociais (contavam com 800 mil seguidores no Facebook & época) ao dar rostos corajosos aos nuimeros frios e elevados das estatisticas sobre a violéncia contra a mulher no Brasil E interessante também notar esse efeito em ‘ondas’ de informacao pela rede ouem sua “viralidade” (MALINI, 2015) nas manifestagdes de junho de 2013 no Brasil, ou ‘jomadas de junho de 2013", que foi relacionado a um movimento especifico contra © aumento de prego da passagem no transporte piblico e que incorporou a causa @ se articulou ao Movimento Passe-Livre, na luta pela ‘gratuidade’ do transporte pilblico como um direito & cidade, porém, sua maneira de operar e uma andlise das redes durante os levantes revelam a variedade de sujeitos envolvidos e a crise de representacao politica que levara varios grupos a participar desta manifestacai 8 surge ai uma influéncia inesperada, a das resisténcias indigenas Guarani e Kaiowa, que sofriam varias formas de violéncia com as investidas do setor sulcroalcooleiro sobre seus territérios 4 época, desencadeando assassinatos por milicias e surtos de suicidio coletivo em suas comunidades, fato que mobilizou milhares brasileiros, 08 quais se solidarizaram substituindo os seus sobrenomes nos perfis do Facebook por Guarani-Kaiwod. Como constatou Fabio Malini (2015), rastreando as principais hashtags ligadas as manifestagdes na midia social Twitter e focando naquelas que mais influenciaram os levantes de junho (a saber: #SomosTodosGuaraniKaiowas € #GenocidioGuaraniKaiowas), “foram gerados 73.812 tweets, mobilizando 23.519 pessoas (usudrios). Mais de 11 mil links de noticias e posts foram compartilhados” (sin). E isso se deu nao em relagao somente & mobilizagao em si, mas, em especial, pelo modo de se fazer ativismo, Segundo Malini (2015): "O ato de resisténcia dos Guarani Kaiowas, difundido pelas redes sociais, fez eclodir um modelo de protesto que se articula em rede, sincroniza atos e marchas, em todo pais" (s/n). Segundo © autor, a luta e 0 formato instituido pela hashtag #SomosTodosGuaraniKaiowas “abriu ondas de protestos baseados na defesa dos direitos de minorias” (s/n), Entre os casos historicos mais marcantes, vale destacar uma atuagao pioneira em se tratando de ciberativismo indigena na intemet, aquela empreendida pelo Ejercito Zapatista de la Liberacién Nacional (EZLN) no México, um dos mais conhecidos importantes movimentos sociais indigenas da historia contemporanea. Foi fuloral a ia do EZLN, tendo sido apropriada culturalmente e como dispositive de poder paralelo na organizagao do seu ativismo, e na divulgagao de suas causas e exigéncias, e ainda no sentido importancia da internet para a unificagao, subsisténcia e resis de dar visibilidade internacional a sua situagao de indignagao, além de denunciar as ofensivas do governo contra o movimento, e nao s6 como canal de informagéo alternativo para os guerrilheiros, mas, principalmente, estabelecendo novas redes sociais de comunicagao, aleangando 0 apoio da comunidade académica, de outros movimentos sociais locais e globais, de autoridades e intelectuais com visibilidade, em canais interculturais até entao nunca utilizados em estratégias de articulago, e que fizeram 0 governo levar a sério este movimento e a recuar em suas tentativas de ataque, uma vez que estava sendo vigiado pelo ‘mundo todo’ Segundo Ford & Gil (2004, p. 293), quando, em 1994, o EZLN declara guerra ao governo mexicano, o uso da WWW para notabilizar as suas lutas acaba impedindo @ 0s canais oficiais de tentar invisibi a “grande mid indigena, ou até de distorcer suas ar as agées do movimento is @ termos de negociagao aos olhos tanto da sociedade nacional, como, também, da comunidade internacional; e isso obrigou © governo a estabelecer didlogo com os indigenas, pois, até entéo, o mesmo tinha muito “éxito” em “controlar o contetido e a distribuigo das noticias pelo pais"; de modo que a principal “estratégia de comunicagao do EZLN consistiu (...) em tomar ages que garantissem ao movimento a imediata atengao nacional e internacional, incluindo a publicagao de suas exigéncias nas midias impressa e eletronica’. Sendo assim, (...) a estratégia de articulagao mais poderosa empregada pelo EZLN foi transmitir suas exigéncias sem o filtro da midia oficial Essa abordagem foi orucial para a sua sobrevivéncia. Se nao houvesse uma audiéncia internacional acompanhando de maneira ativa e constante os movimentos do governo mexicano contra os Zapatistas, é bem provavel que 0 EZLN tivesse sido suprimido logo nos seus primeiros anos. Os zapatistas inspiraram 0 desenvolvimento de uma rede préspera, extensa e diversificada de ‘comunicagao radical que hes deu a oportunidade de comunicar-se diretamente com a sociedade civil. O resultado foi que a sociedade sentiu-se motivada e apta a responder diretamente aos pedidos do EZLN para que os cidados participassem de seu projeto. A prépria existéncia dos zapatistas dependeu da integracdo dessa rede de rmidia, cujo controle e operacéo eram auténomos. A crucial dessas midias, entretanto, foi a Internet. (FORD: GIL, 2004, p. 294) E interessante notar que em casos como esse ¢ como o dos Guarani-Kaiowa, essa exposico como uma vigilia constante por meio das NTIC influencia as reagdes das pessoas e autoridades que se importam com a situagao destes povos, pois se ndo fosse pelas dentincias dos indigenas na internet, ndo assistiriamos ao movimento que tomou conta de parte consideravel dos usuarios de Facebook brasileiros, que alteraram os seus nomes de perfil, substituindo os sobrenomes pelo nome Guarani- Kaiow, mobilizando 0 argumento que diante desta causa ‘somos todos Guarani- Kaiowa’ — ou ‘zapatistas’, inspiragao primordial para varios movimentos. Portanto, tais formas de ciberativismo articularam seus grupos e deram lade a situacdo de violéncia e indignacao que viviam estes grupos indigenas, pressionando agentes dos governos a tomarem providéncias a respeito de suas reivindicagées, e também 0s contendo em suas ages ilegais e racistas, suportadas ¢ ocultadas pelos canais de midia convencionais, servigo das culturas hegeménicas, Conclusao Para além das apropriagées para a articulacdo politica, as NTIC assumem novas linguagens e propésitos igualmente importantes no fortalecimento das lutas contra- hegeménicas dos indigenas; destacando-se, portanto, trés frentes principais de uso das TIC, a saber: (1) para estabelecer canais e espacos de comunicagao dentro do grupo, fortalecendo lagos e compartilhando simbolos, renovando a sua identidade; (2) para articular os grupos indigenas em ambito nacional e internacional, visando ages de reivindicagao de direitos e politicas publicas; e (3) estabelecendo praticas de educagao ndo-formal e informal para a preservagao, a atualizacao e a promogao das culturas indigenas através de praticas de compartilhamento, ensino, registro e divulgagao de seus patriménios culturais (anal6gicos ¢ digitais) no ciberespaco. Indissociaveis, estas frentes séo separadas aqui apenas coma finalidade de melhor ilustrar 0 fendmeno que pretendo descrever. De maneira geral, e assim como nas midias comunitarias, as formas de comunicagao indigenas se caracterizam por um processo de empoderamento, no sentido do exercicio ao direito a comunicacao, € ‘como uma pratica de “educomunicagao”, que s4o proprios dos movimentos sociais comunitarios, como argumenta Peruzzo (2009, p. 374): © exercicio do direito & comunicagao popular e comunitaria I se entrelaga aos modos de educagao informal (processada no dia a dia e por meio de praticas no ambito da comunicagao) e 0 nao- formal (participagao em treinamentos, oficinas propiciadas por instituigdes) que ocorrem no contexto das lutas sociais e possibiltam rico processo de educomunicagao. Similarmente ao que ocorre com a comunicagéo comunitaria, além de estimular 0 engajamento com as causas politicas, as praticas de etnocomunicagao e de etno- midia mostram o cotidiano das comunidades e o fazer movimento social pelo olhar dos iduos e grupos engajados, estratégia que entendo como ligada & busca por reconhecimento e pela valorizacao de sua identidade cultural, e sua autonomia, em um movimento que também 6 de ocupagdo do imaginario nacional e reescrita da historia, visando a superagao dos velhos esterestipos e preconceitos raciais. Referéncias ALARCON, Daniela Fernandes; NAVARR, Patricia. Os indios Tupinambé e a cobertura enviesada. In: Observatorio da Imprensa, 25 mar. 2014, edicao 791 Disponivel em: http:/Jobservatoriodaimprensa.com.br/imprensa-em- questao/_ed791_os_indios_tupinamba_e_a_cobertura_enviesada/. Acesso em: 3 dez. 2018. BOURDIEU, Pierre. O poder simbélico. 14. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2010. 322 p. BRASIL. Ministério da Cultura. 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