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O Processo Penal Brasileiro

O Código de Processo Penal

Após a vigência das Ordenações do Reino de Portugal , nossa primeira legislação


codificada foi o Código de Processo.

A perspectiva histórica que mais nos interessa, exatamente porque até hoje ainda nos
alcança, situa-se em meados do século XX, mais precisamente no ano de 1941, com a
vigência do nosso, ainda atual , Código de Processo Penal. Inspirado na legislação
processual penal italiana produzida na década de 1930, em pleno regime fascista, o
Código de Processo Penal brasileiro foi elaborado em bases notoriamente
autoritárias, por razões óbvias e de origem. Na redação primitiva do Código de Processo
Penal, até mesmo a sentença absolutória não era suficiente para se restituir a liberdade
do réu, dependendo do grau de apenação da infração penal . Sobretudo no Brasil, onde a
onda policialesca do Código de Processo Penal produziu uma geração de juristas e de
aplicadores do Direito que, ainda hoje, mostram alguma dificuldade em se desvencilhar
das antigas amarras.

É claro que é – e sempre será – muito difícil compatibilizar interesses tão opostos como
aqueles representados pela necessidade de aplicação da lei penal e o exercício da
liberdade individual.

A ampliação ilimitada da liberdade de iniciativa probatória do juiz, justificada como


necessária e indispensável à busca da verdade real, descaracterizou o perfil acusatório
que se quis conferir à atividade jurisdicional. Na década de 1970, mais precisamente nos
anos 1973 e 1977, houve grandes alterações no aludido Código, iniciadas, aliás, com a
Lei n 5.349/67, por meio das quais foram flexibilizadas inúmeras regras restritivas do
direito à liberdade. Já nesse século, então, com as Leis n os 11.689, 11.690 e
11.719, todas de junho de 2008, e também com a Lei n 13.964/19, a legislação
processual penal sofreu novos e grandes ajustes, cujas alterações serão apreciadas a seu
tempo e no espaço temático adequado.

A Constituição da República de 1988 e o Processo Constitucional

A nova ordem passou a exigir que o processo não fosse mais


conduzido, prioritariamente, como mero veículo de aplicação da lei penal, mas, além e
mais que isso, que se transformasse em um instrumento de garantia do indivíduo em
face do Estado. O devido processo penal constitucional busca, então, realizar uma
Justiça Penal submetida à exigência de igualdade efetiva entre os litigantes. O processo
justo deve atentar, sempre, para a desigualdade material que normalmente ocorre no
curso de toda persecução penal, em que o Estado ocupa posição de
proeminência, respondendo pelas funções investigatórias e acusatórias, como regra, e
pela atuação da jurisdição, sobre a qual exerce o monopólio.
Disso decorrerá também a vedação das provas obtidas ilicitamente necessidade de
respeito às regras do Direito, mas como proteção aos direitos individuais, normalmente
atingidos quando da utilização ilícita de diligências e dos meios probatórios.

O sistema acusatório

A acusação criminal ficava a cargo de outro órgão que não o juiz, característica já


essencial do sistema acusatório. No findar de 2019, nosso legislador optou por adotar
um sistema similar a este, ao introduzir a figura do «juiz de garantias» na Lei
13.964/19, com atuação restrita à fase de investigação. Ali se criou o juiz das garantias e
se esculpiu a estrutura acusatória de processo. Embora a determinação de criação do juiz
de garantias tenha ocupado a preferência nos debates, o grande passo dado pela Lei
13.964/19 foi na direção de um maior esclarecimento legislativo em torno da estrutura
acusatória de processo.

Ao estipular a vedação expressa da iniciativa judicial como substitutiva do ônus


acusatório que recai no autor da ação penal, vem consagrar, em definitivo, o modelo
acusatório no processo penal brasileiro, deixando claro que o juiz não é detentor de
iniciativa probatória autônoma, mas apenas para fins de esclarecimento de dúvida
surgida na instrução. Com efeito, a despeito das limitações semânticas que o texto
comporta, resta claro que a proibição da atuação probatória do juiz na fase de processo
se refere àquela voltada para a produção de prova não requerida pelas partes, sendo-lhe
vedado atuar em substituição do órgão da acusação, que tem o ônus processual de
provar tudo o quanto tenha alegado na denúncia. Assim, não poderá o juiz determinar a
produção de prova, ainda quando importante ou mesmo essencial à descoberta dos
fatos, se tais elementos estavam à disposição da acusação ou eram acessíveis ao seu
conhecimento, pela natureza dos fatos e dos meios e fontes de prova conhecidos e
possíveis. Todavia, todas as normas referentes ao juiz das garantias encontram-se
suspensas, por força de decisão liminar nas ADIs 6.298, 6.299, 6.300 e 6.305, motivo
pelo qual não nos debruçaremos sobre elas.

O Supremo Tribunal Federal, por exemplo, e, acertadamente, já teve oportunidade de


decidir pela impossibilidade de o juiz poder requisitar de ofício novas diligências
probatórias, quando o Ministério Público se manifestar pelo arquivamento do
inquérito. 156 do mesmo CPP, na qual se confere ampla liberdade de iniciativa
probatória conferida ao juiz, frequentemente legitimada pelo decantado princípio da
verdade real.

Com efeito, a igualdade das partes somente será alcançada quando não se permitir mais
ao juiz uma atuação substitutiva da função ministerial, não só no que respeita ao
oferecimento da acusação, mas também no que se refere ao ônus processual de
demonstrar a veracidade das imputações feitas ao acusado. A iniciativa probatória do
juiz deve limitar-se, então, ao esclarecimento de questões ou pontos duvidosos sobre o
material já trazido pelas partes, nos termos da nova redação do art.
Não se quer nenhum juiz inerte, mas apenas o fim do juiz investigador e acusador, de
tempos, aliás, já superados. 3-A do CPP, que, apesar de se localizar topograficamente na
seção de «juiz das garantias» da Lei 13.964/19, extrapola em muito o âmbito daquela
figura, delineando os contornos da estrutura acusatória que o legislador desejou
imprimir ao processo penal brasileiro. Portanto, o fundamento utilizado para suspender
as normas referentes ao juiz das garantias não seria aplicável a este artigo
específico. 156 do CPP, permite ao juiz, de ofício, ordenar, mesmo antes de iniciada a
ação penal, a produção de provas consideradas urgentes e relevantes.

Não cabe ao juiz tutelar a qualidade da investigação, sobretudo porque sobre


ela, ressalvadas determinadas provas urgentes, não se exercerá jurisdição. Violação
patente do sistema acusatório. Isso não impedirá, por certo – daí não se aceitar também
o aprisionamento ou a limitação indevida da função jurisdicional –, que o Juiz
Criminal, na fase de processo, e quando for necessário e possível, diligencie em
direção, não só do esclarecimento de dúvidas sobre as provas produzidas, mas também
na busca de eventuais provas da inocência do acusado. O processo penal moderno já
superou o modelo do duelo, disputa ou de luta, no qual, a partir de uma suposta e
discutível premissa da igualdade entre as partes, vence aquele que atua melhor e de
maneira mais eficiente.

Para nós, este é um modelo medieval, típico de ambientes que se utilizam da retórica da


igualdade como reforço de legitimidade de um sistema que só aparentemente é
democrático. Ainda voltaremos ao tema do sistema acusatório umas tantas vezes ao
longo deste trabalho, não só por sua manifesta relevância, mas também por ser um dos
pilares do sistema de garantias individuais postos pela Constituição de 1988. O juiz
inerte, como é a regra no denominado sistema de partes do direito
norteamericano, normalmente classificado pela doutrina como modelo acusatório
puro, encontra fundamentação em premissas e postulados valorativos absolutamente
incompatíveis, não só com nossa realidade atual, mas com a essência do processo
penal. Em sistemas como este, do juiz inerte, há que se conviver, em maior ou menor
grau, com a possibilidade de condenação de alguém pela insuficiência
defensiva, reputada, a priori, igual à atividade acusatória.

Sistemas processuais incidentes: o modelo brasileiro

No que se refere à fase investigativa, convém lembrar que a definição de um sistema


processual há de limitar-se ao exame do processo, isto é, da atuação do juiz no curso do
processo. E porque, decididamente, inquérito policial não é processo, misto não será o
sistema processual, ao menos sob tal fundamentação. De outra parte, somente quando a
investigação fosse realizada diretamente perante o juízo seria possível vislumbrar
contaminação do sistema, e, mais ainda, e, sobretudo quando ao mesmo juiz da fase de
investigação se reservasse a função de julgamento. A atuação judicial na fase de
inquérito há de ser para fins exclusivos de tutela das liberdades públicas.
É por essa razão que sempre sustentamos a impossibilidade de decretação de prisão
preventiva ex oficio na fase de investigação , embora a aceitemos no decorrer da ação
penal . É que, como o principal requisito para qualquer prisão cautelar é o da existência
de indícios veementes de autoria e materialidade, deve-se reservar referida valoração
apenas para a fase de jurisdição, salvo provocação dos interessados, na mesma linha da
proteção das liberdades públicas. A Lei n 12.403, de 4 de maio de 2011, caminhou
exatamente nesse sentido, ao permitir ao juiz, de ofício, na fase de processo – jamais na
de investigação –, a imposição de medidas cautelares pessoais diversas da
prisão, podendo, inclusive, substituí-las ou, em último caso, decretar a
preventiva. Entretanto, a Lei 13.964/19 deu um passo além, ao vedar em todas as
hipóteses a imposição de cautelares de ofício, ou seja, inclusive durante a fase
processual .

Observe-se que em matéria penal não se disponibiliza a nenhum órgão do Estado a


exclusividade na identificação do interesse público. Sendo pública a ação penal, o
Ministério Público deve submeter a questão ao Judiciário, desde que convencido da
existência do crime e da presença das condições da ação e pressupostos processuais. Eis
aqui regra expressa quanto à não exclusividade da imposição de resposta penal em mãos
do autor da ação, no horizonte de um Direito Penal de ultima ratio, destinado à proteção
de direitos fundamentais.

Convém insistir que o inquérito policial, bem como quaisquer peças de informação


acerca da existência de delitos, destina-se exclusivamente ao órgão da acusação, não se
podendo aceitar condenações fundadas em provas produzidas unicamente na fase de
investigação. As exceções ocorrem em relação às chamadas provas
irrepetíveis, necessariamente realizadas na fase de investigação e de impossível
reprodução e repetição no processo. Igualdade processual, abstrata ou concreta, justifica
um processo de partes exclusivamente em matéria não penal, no bojo do qual se discute
a titularidade de direitos subjetivos. Em processo penal, jamais.

De todo modo, e, sobretudo, a partir da possibilidade de participação do acusado e de


seu defensor no ato do interrogatório, não vemos como não se reconhecer, ou não
vemos por que abdicar de um conceito acusatório de processo penal na atual ordem
constitucional. Com efeito, não é porque o inquérito policial acompanha a denúncia e
segue anexado à ação penal que se pode concluir pela violação da imparcialidade do
julgador ou pela violação ao devido processo legal.

A chegada do atual Código de Processo Civil prenunciou a correta fundamentação que


deve estruturar uma sentença . Rogerio Schietti Cruz, em excelente artigo chamado
«Dever de motivação das decisões judiciais no atual Código de Processo Civil e
reflexos na jurisdição criminal». 489, § 1, daquele diploma ao processo penal, e a ela
fazíamos coro .

A legislação processual penal foi reformada em 2019 pela Lei n 13.964, e passou a
adotar o mesmo texto do diploma processual civil, sedimentando de vez a questão.

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