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Revista Da Defensoria Pública Do Estado de São Paulo: V.3 N.2 JUL/DEZ 2021
Revista Da Defensoria Pública Do Estado de São Paulo: V.3 N.2 JUL/DEZ 2021
3V.3 N.2
JUL/DEZ 2021
Escola
da Defensoria Pública
do Estado de São Paulo
VOLUME
3V.3 N.2
JUL/DEZ 2021
REVISTA DA DEFENSORIA PÚBLICA DO ESTADO DE SÃO PAULO | São Paulo v. 3, n. 2, p.1-207, jul./dez. 2021
Revista da Defensoria Pública do Estado de São Paulo / Escola da Defensoria Pública
do Estado de São Paulo. – v. 1, n. 1 (2019)- . – São Paulo : EDEPE, 2019- .
Semestral.
ISSN 2674-9122
CDU 34(05)
Escola
da Defensoria Pública
do Estado de São Paulo
Todos os direitos reservados à Escola da Defensoria Pública do Estado de São Paulo. Os conceitos e opiniões expressos
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REVISTA DA DEFENSORIA PÚBLICA DO ESTADO DE SÃO PAULO
v.3 n.2 JUL./DEZ. 2021
DEFENSOR PÚBLICO-GERAL
Florisvaldo Fiorentino Júnior
EDITOR-CHEFE
Guilherme Krahenbuhl Silveira Fontes Piccina
EDITORES ASSOCIADOS
Giancarlo Silkunas Vay
Peter Gabriel Molinari Schweikert
CONSELHO EDITORIAL
Guilherme Krahenbuhl Silveira Fontes Piccina – DEFENSORIA PÚBLICA DE SÃO PAULO
Giancarlo Silkunas Vay – DEFENSORIA PÚBLICA DE SÃO PAULO
Peter Gabriel Molinari Schweikert – DEFENSORIA PÚBLICA DE SÃO PAULO
Álvaro Luiz Travassos de Azevedo Gonzaga – PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
Ana Elisa Liberatore Silva Bechara – UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
André Ribeiro Giamberardino – UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ
Daniel Nicory do Prado – DEFENSORIA PÚBLICA DA BAHIA
Fabiana Luci de Oliveira – UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO CARLOS
Gustavo Octaviano Diniz Junqueira – DEFENSORIA PÚBLICA DE SÃO PAULO
Humberto Barrionuevo Fabretti – UNIVERSIDADE MACKENZIE
Maíra Cardoso Zapater – UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO PAULO
Marcus Alan Melo Gomes – UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARÁ
Maria Aglae Tedesco Vilardo – TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO RIO DE JANEIRO
Monica de Melo – DEFENSORIA PÚBLICA DE SÃO PAULO
Sérgio Cruz Arenhart – UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ
PROJETO GRÁFICO
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FOTO DA CAPA
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PARECERISTAS 2019 E 2020
Adriana Biller Aparício – UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARINGÁ
Adriana de Britto – DEFENSORIA PÚBLICA DO RIO DE JANEIRO
Alex Gomes Seixas – DEFENSORIA PÚBLICA DE SÃO PAULO
Alice de Barros Gabriel – INSTITUTO FEDERAL DE EDUCAÇÃO, CIÊNCIA E TECNOLOGIA DE GOIÁS
Ana Claudia Pompeu Torezan Andreucci – UNIVERSIDADE PRESBITERIANA MACKENZIE
Ana Paula Pacheco Moraes Maturana – DEFENSORIA PÚBLICA DE SÃO PAULO
Anderson Lincoln Vital da Silva – UNIVERSIDADE FEDERAL DO AMAZONAS
Arleide Costa de Oliveira Braga – FACULDADE DE TECNOLOGIA JARDIM
Bruna Rachel de Paula Diniz – UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
Bruna Schlindwein Zeni – UNIVERSIDADE DE MOGI DAS CRUZES
Caio Santiago Fernandes Santos – UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA
Carlos Humberto Walter – UNIVERSIDADE FUMEC
Carmen Silvia Fullin – FACULDADE DE DIREITO DE SÃO BERNARDO DO CAMPO
Carolina Bessa Ferreira de Oliveira – UNIVERSIDADE FEDERAL DO SUL DA BAHIA
Carolina Salazar L’Armée Queiroga de Medeiros – UNIVERSIDADE CATÓLICA DE PERNAMBUCO
Ciani Sueli das Neves – UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO
Cíntia Aparecida da Silva – MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE SÃO PAULO
Clint Rodrigues Correia – DEFENSORIA PÚBLICA DE SÃO PAULO
Clio Nudel Radomysler – FUNDAÇÃO GETÚLIO VARGAS
Daiana Santos Ryu – TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
Daniela Batalha Trettel – DEFENSORIA PÚBLICA DE SÃO PAULO
Davi Quintanilha Failde de Azevedo – DEFENSORIA PÚBLICA DE SÃO PAULO
Deíse Camargo Maito – FUNDAÇÃO GETÚLIO VARGAS
Diego Hermínio Stefanutto Falavinha – UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO CARLOS
Edilene Mendonça Bernardes – UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
Fernando Machado de Souza – UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MATO GROSSO DO SUL
Fernando Muniz Shecaira – UNIVERSIDADE ANHEMBI MORUMBI
Firmiane Venâncio do Carmo Souza – DEFENSORIA PÚBLICA DA BAHIA
Gabriel Dias Marques da Cruz – UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA
Gabriela de Sousa Moura – UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS
Glauce Passos de Souza Maues – DEFENSORIA PÚBLICA DO RIO DE JANEIRO
Guilherme de Almeida – FUNDAÇÃO GETÚLIO VARGAS
Guilherme Grané Diniz – ESCOLA PAULISTA DE DIREITO
Gustavo Abrahão dos Santos – UNIBR - FACULDADE DE SÃO VICENTE
Gustavo Goldzveig – DEFENSORIA PÚBLICA DE SÃO PAULO
Hamilton Neto Funchal – DEFENSORIA PÚBLICA DE SÃO PAULO
Haroldo de Araujo Lourenço da Silva – UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO
Igor Alves Noberto Soares – PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS
Ingrid Viana Leão – UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MATO GROSSO DO SUL
Irene Maestro Sarrión dos Santos Guimarães – UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
Isabela Rocha Tsuji Cunha – PROGRAMAS DAS NAÇÕES UNIDAS PARA O DESENVOLVIMENTO NO BRASIL
Isadora Brandão Araujo da Silva – DEFENSORIA PÚBLICA DE SÃO PAULO
Janaína Dantas Germano Gomes – PROGRAMAS DAS NAÇÕES UNIDAS PARA O DESENVOLVIMENTO NO BRASIL
Jéssica Gomes da Mata – INNOCENCE PROJECT BRASIL
Joaquim Eduardo Pereira – FACULDADE AUTÔNOMA DE DIREITO - FADISP
José Danilo Tavares Lobato – UNIVERSIDADE FEDERAL RURAL DO RIO DE JANEIRO
José Luiz de Almeida Simão – DEFENSORIA PÚBLICA DE SÃO PAULO
Juliana Andrea Oliveira – DEFENSORIA PÚBLICA DO PARÁ
Juliana de Oliveira Carlos – DEFENSORIA PÚBLICA DE SÃO PAULO
Juliana Garcia Belloque – DEFENSORIA PÚBLICA DE SÃO PAULO
Julio Grostein – DEFENSORIA PÚBLICA DE SÃO PAULO
Katia Regina Cezar – TRIBUNAL REGIONAL DO TRABALHO DA 2ª REGIÃO (SP)
Leonildo Aparecido Reis Machado – DEFENSORIA PÚBLICA DE SÃO PAULO
Lucas Soares e Silva – DEFENSORIA PÚBLICA DE SÃO PAULO
Marcos Antonio Barbieri Gonçalves – DEFENSORIA PÚBLICA DE SÃO PAULO
Maria Eduarda Ribeiro Cintra – DEFENSORIA PÚBLICA DE SÃO PAULO
Mariana Mendonça Raupp – UNIVERSITÉ LAVAL - CANADÁ
Marilia Alves de Carvalho e Silva – FALECK & ASSOCIADOS
Mayara Luiza Pereira – SCUOLA SUPERIORE SANT’ANNA DI STUDI UNIVERSITARI E PERFEZIONAMENTO - ITÁLIA
Melrian Ferreira da Silva – UNIVERSIDADE METODISTA DE PIRACICABA
Otávio Souza e Rocha Dias Maciel – UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA
Patrícia Vicente Dutra – DEFENSORIA PÚBLICA DO PARANÁ
Patrick Lemos Cacicedo – DEFENSORIA PÚBLICA DE SÃO PAULO
Paula Rosana Cavalcante – DEFENSORIA PÚBLICA DE SÃO PAULO
Paula Sant’Anna Machado Souza – DEFENSORIA PÚBLICA DE SÃO PAULO
Paulo César Busato – UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ
Paulo Keishi Ichimura Kohara – DEFENSORIA PÚBLICA DE SÃO PAULO
Rafael Barcelos Tristão – DEFENSORIA PÚBLICA DE SÃO PAULO
Rafael da Mota Mendonça – PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO RIO DE JANEIRO
Rafael Lessa Vieira de Sá Menezes – DEFENSORIA PÚBLICA DE SÃO PAULO
Renata Gomes da Silva – DEFENSORIA PÚBLICA DA BAHIA
Roberto Ferreira Filho – TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE MATO GROSSO DO SUL
Rosângela Teixeira Gonçalves – UNIVERSIDADE FEDERAL DO ABC
Samara dos Santos Carvalho – UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA
Sandro Rogério Monteiro de Oliveira – UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL
Talita Iara Coelho de Melo – PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
Tania Biazioli de Oliveira – DEFENSORIA PÚBLICA DE SÃO PAULO
Tatiane Bottan – DEFENSORIA PÚBLICA DE SÃO PAULO
Thandara Santos – DEFENSORIA PÚBLICA DE SÃO PAULO
Vanessa Alves Vieira – DEFENSORIA PÚBLICA DE SÃO PAULO
Veronica Acioly de Vasconcelos – DEFENSORIA PÚBLICA DO PIAUÍ
Victor Siqueira Serra – ASSOCIAÇÃO SANTO AGOSTINHO
sumário
9 ApresentAção
Artigos
1 MENDEZ, Emílio Garcia. A defesa legal e a legitimidade dos sistemas de administração da justiça
para a infância e juventude. Trad. Giancarlo Silkunas Vay e Gustavo Roberto Costa. In. Boletim de
Direitos da Criança e do Adolescente, n. 8, set/out 2020, IBDCRIA: São Paulo, p. 6-10. Visualizado
em: <https://www.academia.edu/44408810/BOLETIM_DE_DIREITOS_DA_CRIAN%C3%87A_E_DO_
ADOLESCENTE_n_8_ESPECIAL_30_ANOS_ECA>. Acesso em 18/01/2022.
REVISTA DA DEFENSORIA PÚBLICA DO ESTADO DE SÃO PAULO | São Paulo, v. 3, n. 2, p. 9-12, jul./dez. 2021
APRESENTAÇÃO 9
antecipada das medidas, e não a regra de tratamento de presunção da inocência - são
apenas alguns exemplos de uma evidente crise de interpretação que vige no processo
penal juvenil, ainda, por muitos, chamado apenas de “processo de apuração de ato
infracional”, negando-se o aspecto eminentemente penal das medidas socioeduca-
tivas. Aliás, não raras vezes invocada a “especialidade”, a “autonomia” do processo
infracional a evitar aproximações com o Código Penal e o Código de Processo Penal,
sendo que, como já afirmou Luigi Ferrajoli, o pai do garantismo, a única coisa que se
pretende com esse discurso – e que realmente se opera – é tornar o processo penal
juvenil autônomo das garantias constitucionais2.
Defender a aproximação do processo penal de adolescentes com o processo penal
de adultos, longe de implicar glorificar o sistema penal dos adultos ou em querer
rasgar o ECA e lhes aplicar pura e simplesmente o CP ou o CPP, é medida que se impõe
a conferir, no mínimo, as mesmas garantias processuais e materiais penais que são
conferidas aos adultos também aos adolescentes, acrescidas daquelas próprias à sua
condição peculiar de pessoa em desenvolvimento. Portanto, em verdadeira discrimi-
nação positiva, nunca se poderá conferir um tratamento mais gravoso ao adolescente
do que o conferido ao adulto, nem mesmo igualitário, mas sempre menos restritivo,
com as mesmas garantias acrescidas de tantas outras.
Conforme editorial do Instituto Brasileiro de Direito da Criança e do Adolescente
(IBDCRIA):
2 FERRAJOLI, Luigi. Prefácio à obra “Infância, lei e democracia na américa latina: análise crítica do
panorama legislativo no marco da convenção internacional sobre os direitos da criança (1990-1998)”
de organização de Emilio Gárcia Méndez e Mary Beloff. Blumenau: Edifurb, 2001.
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10 APRESENTAÇÃO
na lógica tutelar, vender proteção enquanto efetivamente entregam controle
social”3.
3 IBDCRIA. Editorial. Boletim de Direitos da Criança e do Adolescente, n. 14, set/out 2021, IBDCRIA:
São Paulo, p. 01. Visualizado em: <academia.edu/60600384/BOLETIM_DE_DIREITOS_DA_CRIAN-
ÇA_E_DO_ADOLESCENTE_n_14_ESPECIAL_PROCESSO_PENAL_JUVENIL>. Acesso em 18/01/2022.
4 Jacinto Nelson de Miranda Coutinho, citando Cordeiro, trata do “quadro mental paranóico”, em
que se abre ao juiz a “possibilidade de decidir antes e, depois, sair em busca do material probató-
rio suficiente para confirmar a ‘sua’ versão, isto é, o sistema legitima a possibilidade da crença no
imaginário, ao qual toma como verdadeiro”. In Introdução aos princípios gerais do Processo Penal
Brasileiro. Visualizado em: <https://revistas.ufpr.br/direito/article/viewFile/1892/1587>. Acesso
em 18/01/2022.
REVISTA DA DEFENSORIA PÚBLICA DO ESTADO DE SÃO PAULO | São Paulo, v. 3, n. 2, p. 9-12, jul./dez. 2021
APRESENTAÇÃO 11
Revista da Defensoria Pública
do Estado de São Paulo:
balanço de 2019 a 2021
REVISTA DA DEFENSORIA PÚBLICA DO ESTADO DE SÃO PAULO | São Paulo, v. 3, n. 2, p. 13-14, jul./dez. 2021
REVISTA DA DEFENSORIA PÚBLICA DO ESTADO DE SÃO PAULO: BALANÇO DE A 13
Feito tais registros, aproveito para agradecer, em nome da Escola da Defensoria
Pública de São Paulo (EDEPE), todos aqueles que contribuíram e ainda contribuem, de
forma direta ou indireta, para a produção, avaliação e veiculação da Revista da Defen-
soria Pública de São Paulo, com a firme convicção de que seja um elemento propulsor
para a reflexão e engajamento da sociedade na proteção dos direitos humanos em
prol, especialmente, daquela parcela da população vulnerável atendida diariamente
pela instituição.
REVISTA DA DEFENSORIA PÚBLICA DO ESTADO DE SÃO PAULO | São Paulo, v. 3, n. 2, p.13-14, jul./dez. 2021
14 REVISTA DA DEFENSORIA PÚBLICA DO ESTADO DE SÃO PAULO: BALANÇO DE A
UMA CRÍTICA À SÚMULA
605 DO STJ E AO MODELO DE
PRECEDENTES BRASILEIRO
SEGUNDO DWORKIN* **
A CRITICISM OF STJ’S STATEMENT N. 605 AND THE BRAZILIAN
MODEL OF PRECEDENTS ACCORDING TO DWORKIN
* O processo de avaliação foi conduzido pelo editor-chefe, em razão de um dos autores ser editor-
-assistente deste periódico, garantindo-se o anonimato necessário à avaliação duplo-cega.
** O presente artigo parte de estudo e trabalho desenvolvidos pelo primeiro autor perante a matéria
de Teoria Geral do Direito no curso de pós-graduação stricto sensu (mestrado) na Universidade
Presbiteriana Mackenzie (UPM), ministrada pelos professores Orlando Villas Boas Filho e Silvio
Luiz de Almeida.
*** Defensor Público do Estado de São Paulo. Pós-graduado em Direito Penal e Criminologia (ICPC),
em Direito da Criança e do Adolescente (FMP) e em Direitos Humanos (CEI). Mestrando em Direito
Político e Econômico (UPM). Membro da diretoria do IBDCRIA-ABMP e do grupo de pesquisa CNPq
“CriaDirMack: o direito à vez e à voz de crianças e adolescentes” (UPM). giancarlovay@gmail.com
**** Advogado. Bacharel pela Faculdade de Direito de São Bernardo do Campo/SP, Pós-graduando em
Processo Civil, ex-estagiário da Defensoria Pública do Estado de São Paulo com atuação na área
da infância e juventude. fernandoaugusto_ml@hotmail.com
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UMA CRÍTICA À SÚMULA DO STJ E AO MODELO DE PRECEDENTES BRASILEIRO SEGUNDO DWORKIN 15
socio-educational measures to young adults between 18 and 21 years of age, extending the
Express rule for the measure of restriction of freedom to others, such as semi-restriction
of freedom and assisted freedom. The analysis will be based on the work of Ronald
Myles Dworkin in view of the impossibility of verifying, prima facie, a situation of mere
subsumption of the case to the norm, to which it was concluded, with concern, for the
potential of reproduction of injustices on a large scale, since the content of the Precedent
would be contra-legem and would find its bases not in principles, laws or values, but only
in past decisions, in a self-referential way, legitimized by “tradition”.
KeywoRds Precedents; Juvenile criminal process; Ronald Dworkin.
ObjetO de estudO
O presente trabalho tem como escopo analisar de forma crítica o teor da Súmula de n.
605 do Superior Tribunal de Justiça (STJ) e sua ostensiva aplicação em casos judiciais,
tomando como base a filosofia jurídica pós-positivista de Ronald Myles Dworkin, a
partir das prescrições que o autor faz acerca da teoria do Direito como integridade e
da interpretação criativa.
PressuPOstOs teóricOs
REVISTA DA DEFENSORIA PÚBLICA DO ESTADO DE SÃO PAULO | São Paulo, v. 3, n. 2, p. 15-36, jul./dez. 2021
16 UMA CRÍTICA À SÚMULA DO STJ E AO MODELO DE PRECEDENTES BRASILEIRO SEGUNDO DWORKIN
em que o processo não é um meio de efetivação de um suposto jus puniendi, mas um
freio ao poder punitivo, sendo um caminho necessário para se aplicar a pena.
Parte-se, na análise do nosso objeto de pesquisa, das leituras de Ronald Myles
Dworkin em “Levando os direitos a sério” (2002) e “O Império do Direito” (1999), con-
siderando tanto a crítica feita ao pensamento de Hebert L. A. Hart, quanto o desenvol-
vimento de uma teoria interpretativista do Direito feita pelo autor.
estadO da arte
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UMA CRÍTICA À SÚMULA DO STJ E AO MODELO DE PRECEDENTES BRASILEIRO SEGUNDO DWORKIN 17
or imprisonment of a child shall be in conformity with the Law and shall be used only
as a measure of last resort and for the shortest appropriate period of time4” (art. 37.b,
parte final).
Outras normativas internacionais, não convencionais, reforçam os ideais de preven-
ção e não estigmatização de crianças e adolescentes envolvidos em conflitos penais. Pode-
mos mencionar os arts. 6º5 e 566das Diretrizes de Riad7, bem como o art. 118 das Regras de
Beijing9.
O ECA, por sua vez, dispõe em seu art. 104, parágrafo único, que “são penalmente
inimputáveis os menores de dezoito anos, sujeitos às medidas previstas nesta Lei”
(caput) e “para os efeitos desta Lei, deve ser considerada a idade do adolescente à data
do fato” (parágrafo único). Traz também, em seu art. 2º, que “considera-se criança,
para os efeitos desta Lei, a pessoa até doze anos de idade incompletos, e adolescente
aquela entre doze e dezoito anos de idade” (caput) e “nos casos expressos em lei, apli-
ca-se excepcionalmente este Estatuto às pessoas entre dezoito e vinte e um anos de
idade” (parágrafo único). Também consta do ECA, expressamente, um princípio
muito caro ao Direito Penal, da intervenção mínima, em que “a intervenção deve ser
exercida exclusivamente pelas autoridades e instituições cuja ação seja indispensá-
vel à efetiva promoção dos direitos e à proteção da criança e do adolescente” (art. 100,
parágrafo único, VII).
Do que se pode verificar do Estatuto, existem quatro situações em que o termo
“vinte e um” pode ser encontrado, sendo apenas uma relevante10 para fins do art. 2º,
parágrafo único do ECA, aquela prevista no art. 121, §5º, do ECA. Eis o teor, na íntegra,
do art. 121 do ECA11:
Art. 121. A internação constitui medida privativa da liberdade, sujeita aos princí-
pios de brevidade, excepcionalidade e respeito à condição peculiar de pessoa em
desenvolvimento.
§ 1º Será permitida a realização de atividades externas, a critério da equipe técnica
da entidade, salvo expressa determinação judicial em contrário.
§ 2º A medida não comporta prazo determinado, devendo sua manutenção ser
reavaliada, mediante decisão fundamentada, no máximo a cada seis meses.
§ 3º Em nenhuma hipótese o período máximo de internação excederá a três anos.
§ 4º Atingido o limite estabelecido no parágrafo anterior, o adolescente deverá ser
liberado, colocado em regime de semi-liberdade ou de liberdade assistida.
§ 5º A liberação será compulsória aos vinte e um anos de idade.
§ 6º Em qualquer hipótese a desinternação será precedida de autorização judicial,
ouvido o Ministério Público.
§ 7º A determinação judicial mencionada no § 1 o poderá ser revista a qualquer
tempo pela autoridade judiciária. (Incluído pela Lei nº 12.594, de 2012)
REVISTA DA DEFENSORIA PÚBLICA DO ESTADO DE SÃO PAULO | São Paulo, v. 3, n. 2, p. 15-36, jul./dez. 2021
18 UMA CRÍTICA À SÚMULA DO STJ E AO MODELO DE PRECEDENTES BRASILEIRO SEGUNDO DWORKIN
A título de constatação, há uma outra previsão no ECA para o público maior de 18 e
menor de 21 anos, qual seja a do seu art. 40: “o adotando deve contar com, no máximo,
dezoito anos à data do pedido, salvo se já estiver sob a guarda ou tutela dos adotan-
tes”, a permitir o processamento dessa adoção também perante a Vara Especializada
da Infância e Juventude (art. 148, III). De toda sorte, como essa previsão não guarda
pertinência com nosso objeto de estudo, podemos constatar que apenas o art. 121, §5º,
do ECA nos interessará.
Nessa senda, a súmula ora analisada pretende iluminar uma área nebulosa
deixada entre a maioridade atingida pelo suposto infrator e a (im)possibilidade na
manutenção da medida socioeducativa a ele aplicada.
Quanto à doutrina, é relevante recordarmos o recorte epistemológico que a Con-
venção Internacional dos Direitos da Criança (CIDC) trouxe no cenário mundial e
nacional, superando o tutelarismo menorista que se fundava na doutrina da situação
irregular e que norteou os Códigos de Menores brasileiros de 1927 e 1979, passando-se
a reconhecer crianças e adolescentes como sujeitos de direitos e garantias, inclusive
penais e processuais penais, resultando naquilo que se passou a compreender por
“etapa garantista”, fundada na doutrina da proteção integral (MENDEZ & COSTA,
1994). Se o menorismo encontrou seu marco inicial no Congresso de Menores de
Paris, em 1911, que conferiu poderes quase ilimitados ao Estado-juiz na missão de
proteger a “infância em perigo” em se converter em “infância perigosa” (RIZZINI,
2013), ainda que se aplicando toda sorte de medidas, inclusive coercitivas, a menores
carentes e delinquentes, sem muitas distinções, conforme o “prudente arbítrio” do
“bom pai”, do “médico social” ou do “julgador amoroso”, em vistas a “fazer o bem” para
o menor; na etapa seguinte se apresentam os direitos como limites éticos contra as
“más” e também contra as “boas” intervenções12, incorporando-se ao público infanto
juvenil as garantias processuais penais gerais e especiais como anteparos ao arbítrio
estatal na esfera de liberdade do indivíduo.
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UMA CRÍTICA À SÚMULA DO STJ E AO MODELO DE PRECEDENTES BRASILEIRO SEGUNDO DWORKIN 19
Passemos a analisar sua fundamentação, de vital importância em uma democra-
cia para justificar o porquê o Estado-juiz adota uma ou outra ação que impacte na
esfera de direitos do indivíduo, com base na legislação e na doutrina.
Um juízo de simples subsunção se revela insuficiente para compreendermos a
decisão apresentada, não havendo uma regra para a aplicação das medidas socioe-
ducativas após os 18 anos de idade, exceto a de internação em estabelecimento edu-
cacional13. É possível destacar, também, que não há margem para uma interpretação
extensiva do art. 121, § 5º, do ECA, eis que se extrapolou os dizeres literais da mencio-
nada regra.
Em verdade, distintamente da possibilidade de que seja pacificada controvérsia
quanto à aplicação de uma lei possivelmente passível de interpretações múltiplas, o
que se faz é criar verdadeira regra nova, criada fora do devido processo legislativo.
De primeiro momento, a justificativa mais acatada para a elaboração de uma
Súmula seria a de que nos defrontamos com um dos casos que H. L. A. Hart com-
preende como hardcases – casos difíceis –, em que caberia ao juiz, de modo discri-
cionário, não só decidir, mas criar o direito adequado ao caso em espécie (SHAPIRO,
2007). Os hardcases compreendem o que Hart chama de textura aberta do direito
(HART, 2001) qualificando-se, em suma, pela ausência de direito a ser aplicado(á-
vel) no caso concreto, consubstanciando o que se pode considerar uma verdadeira
anomia. O juiz, diante de tais casos que causam o esgarçamento do “tecido” legal, dei-
xando clara a impossibilidade de que por meio de uma regra prévia se regule todas as
situações possíveis, deverá verdadeiramente criar o direito, já que inexistem ditames
legais que permitam a simples subsunção da norma ao caso concreto14.
Entretanto, não se verifica a possibilidade de que o caso em questão se amolde à
hipótese supratecida. De início, o mais imediato obstáculo a tal conclusão repousa no
fato de que não tratamos de um caso concreto, mas sim de prescrição genérica, que
opera quase de maneira vinculante, no Judiciário, como um todo. Trata-se da impe-
rativa prescrição do legislador no art. 927, inciso IV, do Código de Processo Civil,
que obriga o juiz a observar as uniformizações realizadas através de súmulas pelos
tribunais superiores.
Outrossim, a somar às incongruências internas já acima declinadas, Hart não
deixa claro, mas é perceptível que seu modelo de textura aberta do Direito (open tex-
ture) refere-se ao que Dworkin chama de fatos sociais, ainda que não especificamente
com relação ao Direito. Haveria uma crença positivista de que os juristas discordam
dos fatos sociais ou concretos que envolvem o caso (ou o paradigma), mas não haveria
dúvida com relação ao Direito15.
Na realidade, dúvidas como aquelas que desaguaram na elaboração de tal súmula
seriam impensáveis na teoria hartiana, ou ao menos não previstas. A conclusão a que
REVISTA DA DEFENSORIA PÚBLICA DO ESTADO DE SÃO PAULO | São Paulo, v. 3, n. 2, p. 15-36, jul./dez. 2021
20 UMA CRÍTICA À SÚMULA DO STJ E AO MODELO DE PRECEDENTES BRASILEIRO SEGUNDO DWORKIN
se chega neste momento pode ser inferida através de leitura mais detida em ocasiões
como:
Os filósofos do direito em cuja opinião devem existir regras comuns tentam su-
bestimar a divergência teórica por meio de explicações. Dizem que os advogados e
juízes apenas fingem, ou que só divergem porque o caso que têm em mãos se situa
numa zona cinzenta ou periférica das regras comuns. Em ambos os casos (dizem
eles), o melhor a fazer é ignorar os termos usados pelos juízes e tratá-los como se
divergissem quanto à fidelidade ou reforma do direito, e não quanto ao direito.
Aí está o aguilhão: estamos marcados como seu alvo por uma imagem demasiado
tosca do que deve ser a divergência. (DWORKIN, 1999)
REVISTA DA DEFENSORIA PÚBLICA DO ESTADO DE SÃO PAULO | São Paulo, v. 3, n. 2, p. 15-36, jul./dez. 2021
UMA CRÍTICA À SÚMULA DO STJ E AO MODELO DE PRECEDENTES BRASILEIRO SEGUNDO DWORKIN 21
Cai por terra o famoso “depende”, largamente utilizado por estudantes e profis-
sionais do Direito. Não pode haver diversas linhas interpretativas certas, mas apenas
uma: a correta.
Inicialmente, esclarece Dworkin, cumpre observar que a interpretação a ser feita
não pode ser a que ele conceitua como conversacional, em que nos preocupamos em
interpretar a partir da intenção de quem se comunica17, ou científica, a partir de um
processo empírico de coleta e dados e posterior análise, mas sim “artística”. Interpre-
tação artística nada mais é que a necessidade de se analisar a obra em si, dissociada da
vontade de seu autor (ou legislador). Sobre a interpretação artística, esclarece Meyer:
(...) os críticos interpretam obras de arte com vistas a justificar algum ponto de
vista sobre seu significado, tema ou propósito. Dworkin irá defender que a in-
terpretação das práticas sociais se assemelha por demais com a interpretação
artística, uma vez que ambas interpretam algo criado pelas pessoas como uma
entidade distinta; elas são formas de uma interpretação criativa. A interpretação
criativa deve ser construtiva. A interpretação de obras de arte preocupa-se com
o propósito, não com a causa: esse propósito é o do intérprete, não o do autor. (in
DWORKIN, 2007, p.11)
REVISTA DA DEFENSORIA PÚBLICA DO ESTADO DE SÃO PAULO | São Paulo, v. 3, n. 2, p. 15-36, jul./dez. 2021
22 UMA CRÍTICA À SÚMULA DO STJ E AO MODELO DE PRECEDENTES BRASILEIRO SEGUNDO DWORKIN
norma. A sua aplicação enquanto suporte abstrato constituir-se-ia, de tal forma, uma
distorção no próprio modelo de tripartição de poderes proposto por Montesquieu.
A título de ilustração, surge juiz Hércules, um “juiz filósofo”, dotado de “capaci-
dade, sabedoria, paciência e sagacidade sobre-humanas”, uma figura fictícia utilizada
por Dworkin (1999), alguém para demonstrar como deveria e não se deveria operar
o raciocínio jurídico em cada cenário, como seria o do precedente. O que justifica a
força do precedente? Dworkin começa explicando o que não justifica:
A força gravitacional do precedente não pode ser apreendida por nenhuma teoria
que considere que a plena força do precedente está em sua força de promulgação,
enquanto uma peça de legislação (DWORKIN, 1999, p.165)
Em linhas gerais, não se poderia imaginar que um precedente funcional como tal
por ter alguma força imanente que assim o faça. A utilização do precedente em casos
posteriores deve-se dar, sobretudo, porque se considera que a argumentação capaz
de desaguar naquele tipo de decisão judicial específico é a mais correta e, portanto,
deve ser aplicada em casos posteriores da mesma maneira, garantindo o tratamento
igualitário de sujeitos que se encontrem na mesma situação.
Aqui repousa grande falta de compreensão na jurisprudência sobre o próprio
instituto do precedente, que vem cada vez mais sendo de vital importância para o
operador do Direito. A incessante busca na padronização de decisões pode desaguar
em uma possível e desastrosa reprodução da injustiça em larga escala, sobretudo
porque, como dito, os precedentes cada vez mais passam a ser vistos como lei (sentido
amplo) ou, como identifica Dworkin, algo ainda muito mais abrangente, dotado da
chamada força gravitacional, capaz de influenciar, inclusive, decisões em casos com
distinções daqueles que ensejaram a decisão do precedente.
Em continuidade à explicação da força gravitacional dos precedentes, explica:
A força gravitacional de um precedente pode ser explicada por apelo, não à sabe-
doria da implementação de leis promulgadas, mas à equidade que está em tratar
casos semelhantes do mesmo modo.
Ou seja, uma vez que se decida em tal sentido, o pêndulo passa a pesar para o mesmo
sentido, sobretudo para que se garanta a verdadeira equidade que, no entender de
Dworkin, tende a ligar-se diretamente à dignidade humana, funcionando como pilar
essencial de um estado democrático. Assim, para avaliar a aplicação ou não de um
princípio, avalia o autor, caberá ao juiz Hércules avaliar “os argumentos de princípio
que justificam esse precedente” (DWORKIN, 1999, p.179).
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UMA CRÍTICA À SÚMULA DO STJ E AO MODELO DE PRECEDENTES BRASILEIRO SEGUNDO DWORKIN 23
A distorção produzida pela teratológica aplicação indistinta de precedentes,
aliás, encontra eco no solo brasileiro, como se verifica pela apurada análise de Fredie
Didier, que critica até mesmo a possivelmente equivocada utilização do instituto das
súmulas vinculantes, dotadas de procedimento mais rígido que o das súmulas con-
vencionais, senão vejamos:
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24 UMA CRÍTICA À SÚMULA DO STJ E AO MODELO DE PRECEDENTES BRASILEIRO SEGUNDO DWORKIN
e um) anos, sendo irrelevante a implementação da maioridade civil ou penal no
decorrer de seu cumprimento19
[...] As medidas socioeducativas aplicadas ao menor infrator com base no ECA po-
dem ser estendidas até que ele complete 21 (vinte e um) anos, sendo irrelevante a
implementação da maioridade civil ou penal no decorrer de seu cumprimento20.
Duas certezas são tiradas desses excertos: (1) que é pacífico o entendimento do STJ no
sentido da súmula; (2) que a conclusão de estender os efeitos do art.122, §5°, do ECA,
às demais medidas seria “óbvia”.
As certezas, contudo, parecem ser ofuscadas pelas dúvidas, que não são retiradas
nem mesmo por uma leitura mais detida dos acórdãos na íntegra.
A mais evidente dúvida sem resposta é: por que o entendimento supramencio-
nado é pacífico? Como perguntaria Dworkin: (1) quais são os princípios aplicados ao
precedente? (2) e por que devem ser eles aplicados aos posteriores?
A aplicação indevida e sem fundamentação de precedentes acaba por confundir
seu papel, tratando-os como verdadeiras normas, com características ainda mais
abrangentes.
Assim, se fôssemos o juiz Hércules, balizado pelos ensinamentos de Dworkin, a
aplicação desses precedentes deveria ser desprezada, não necessariamente pela sua
conclusão (que será abordada nos tópicos seguintes), mas sim pela evidente fragili-
dade ou inexistência de construção argumentativa – típica do Direito – para que haja
o consenso necessário à melhor interpretação possível. Seria forçoso, portanto, que
se afastem os precedentes ainda que se conclua no mesmo sentido, sobretudo pelo
fato de que eles não podem sustentar a si próprios, mas sim serem sustentados pelos
princípios que deveriam ser suscitados em sua construção.
O erro maior ao partirmos de uma jurisprudência estática e autorreferenciada é
desconsiderar a sua qualidade construtiva. É o que Dworkin chama de “romance em
cadeia”22, nas palavras de Meyer:
[...] Essa mudança ocorre porque a prática interpretativa é ela mesma um processo:
uma nova forma sugerida de demonstrar deferência aos nobres ou uma tal atitude
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UMA CRÍTICA À SÚMULA DO STJ E AO MODELO DE PRECEDENTES BRASILEIRO SEGUNDO DWORKIN 25
surge a partir de uma interpretação anterior fundamental, contudo, modificando-
-a, em um verdadeiro romance em cadeia. (DWORKIN, 2007, p.11)
[...] são opiniões interpretativas que, por esse motivo, combinam elementos que se
voltam tanto para o passado quanto para o futuro; interpretam a prática jurídica
contemporânea como um processo de desenvolvimento. (DWORKIN, 1999, p.271)
Partindo das balizas colocadas por Dworkin, seria temerário considerar legítima
qualquer decisão que se ampare em nada além de outras decisões judiciais em sentido
análogo, sobretudo pela falta de justificação adequada, ainda que tal decisão chegue
à conclusão que deveria chegar.
Há, sem dúvidas, uma verdadeira confusão no modelo brasileiro ao importar a
lógica de precedentes do Common Law para nosso ordenamento pátrio, de modo que
o caso em questão seria apenas um dos vários exemplos observáveis nas súmulas e
precedentes de Cortes Superiores que agem além de suas atribuições fixando e vincu-
lando os juízes de instâncias inferiores como faria qualquer lei aprovada pelo poder
legislativo, que se pauta pelas chamadas decisões políticas. O que torna todo cenário
mais deletério, contudo, é a ausência de legitimidade (ao menos para tanto) observada
na figura dos ministros que acabam por considerar cada vez mais típica a sua função
legislativa.
Por fim, ainda que considerássemos apenas a crítica do autor por meio do que é
chamada de Tese do Pedigree23, repudiando a ideia de que uma regra de reconheci-
mento pudesse se basear tão somente em um fato social, dissociado da moral, não há
outra conclusão senão a de que decisões judiciais totalmente alheias à moral e equi-
dade enquanto princípios também seriam igualmente repudiáveis.
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26 UMA CRÍTICA À SÚMULA DO STJ E AO MODELO DE PRECEDENTES BRASILEIRO SEGUNDO DWORKIN
Mas como agiria o juiz Hércules perante o caso? Passa-se, a partir daqui, a cons-
truir o necessário raciocínio devidamente fundamentado em princípios e harmo-
nioso com o resto do sistema para que cheguemos, de fato, à melhor solução.
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UMA CRÍTICA À SÚMULA DO STJ E AO MODELO DE PRECEDENTES BRASILEIRO SEGUNDO DWORKIN 27
a ausência de texto que permita essa extensão é francamente impeditiva de se seguir
para o segundo estágio de conformidade.
Nesse ponto, para a semiliberdade, cumpre indagar se a expressão “no que
couber” autoriza a transposição das regras temporais de execução de medida socioe-
ducativa de internação também para a semiliberdade.
Como já apresentado previamente, a Constituição Federal traz os princípios da
brevidade, excepcionalidade e respeito à condição peculiar de pessoa em desenvol-
vimento quando da aplicação de qualquer medida privativa de liberdade; a Conven-
ção Internacional dos Direitos da Criança reforça esses argumentos em seu art. 37.b,
parte final; as Diretrizes de Riad e as Regras de Beijing, aplicáveis em nosso ordena-
mento pátrio em virtude de serem normas produzidas pela ONU e que configuram
costumes internacionais, bem como pela Resolução CONANDA 113/0624, trazem prin-
cípios de prevenção, desestigmatização e desjudicialização; o Estatuto da Criança e
do Adolescente traz o princípio da intervenção mínima, além de reiterar em diversos
momentos os princípios de brevidade, excepcionalidade e respeito à condição pecu-
liar de pessoa em desenvolvimento quando da aplicação de alguma medida restritiva
de liberdade25.
Seria possível, diante de todo esse arcabouço, compreender a expressão “no que
couber” constante no art. 120, §2º, do ECA, como possibilitadora de ampliar a inter-
venção estatal na esfera de direitos do adolescente, mesmo diante da regra do art. 2º,
parágrafo único, do ECA? Entendemos que não.
Ao que parece, melhor atende à necessidade de conformação ética a interpretação
de que a expressão “no que couber” guarda relação com o procedimento, o instru-
mento, a forma, e não com a restrição de direitos que a norma implica, com alcance
material, abrangendo uma regra de exceção por extensão, seja porque o art. 2º, pará-
grafo único, do ECA exige que haja menção expressa, na lei, para aplicar-se, excepcio-
nalmente, o Estatuto às pessoas entre dezoito e vinte e um anos de idade, seja porque o
conjunto principiológico mencionado implica na menor rigorosidade penal para com
o adolescente em virtude de sua condição peculiar de pessoa em desenvolvimento.
E mesmo quando o Estatuto trata da medida socioeducativa de internação, o
faz em referência à brevidade, excepcionalidade e respeito à condição peculiar de
pessoa em desenvolvimento, tornando, portanto, ilegal a aplicação e a execução dessa
medida quando feita de modo desnecessário, dentro do espectro de discricionarie-
dade que o Estatuto, infelizmente a nosso sentir, possibilita. A previsão excepcional
da internação para pessoas entre 18 e 21 anos, aliás, ocorre exatamente em virtude do
caráter excepcional da medida de internação atribuído pelo ECA, constatada prin-
cipalmente pela inteligência do parágrafo 2º do art. 122. Tal excepcionalidade não
foi atribuída à medida de semiliberdade, ainda que seja uma medida restritiva de
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28 UMA CRÍTICA À SÚMULA DO STJ E AO MODELO DE PRECEDENTES BRASILEIRO SEGUNDO DWORKIN
liberdade, justamente em razão de sua aplicação ocorrer tão somente até que o ado-
lescente complete 18 anos de idade, nos termos do art. 2º, parágrafo único, do ECA.
Alessandro Baratta (in CURY et. al., 2002, p. 395) ao comentar o art. 120 do ECA
assevera o seguinte: “na dúvida, não se estenderão disposições desfavoráveis aos inte-
resses e aos direitos do adolescente que possam ser consideradas peculiares da inter-
nação, considerada sua maior gravidade.” Conclui-se que a interpretação no tocante
à referida expressão (“no que couber”) deve sempre ser restrita, nunca extensiva,
de modo a respeitar e preservar os direitos do adolescente, especialmente no que se
refere ao seu direito de liberdade. Sendo certo que tal interpretação não se coaduna
com a aplicação extensiva do art. 121, §5º, à hipótese de semiliberdade.
Daí temos que, não apenas na forma, mas também no conteúdo, deparamo-nos
com uma súmula contra-legem, que deveria ser rechaçada através de qualquer conca-
tenação da lei com os princípios que a permeiam e a sociedade como um todo.
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UMA CRÍTICA À SÚMULA DO STJ E AO MODELO DE PRECEDENTES BRASILEIRO SEGUNDO DWORKIN 29
cOnclusãO
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30 UMA CRÍTICA À SÚMULA DO STJ E AO MODELO DE PRECEDENTES BRASILEIRO SEGUNDO DWORKIN
referências
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UMA CRÍTICA À SÚMULA DO STJ E AO MODELO DE PRECEDENTES BRASILEIRO SEGUNDO DWORKIN 33
nOtas de fim
1 AgRg no AREsp 1.022.549; AgInt no REsp 1.573.110; AgInt no REsp 1.618.713; AgInt no
REsp 1.619.769; HC 174.689; HC 229.476; HC 243.524; HC 316.693; HC 318.980; HC 344.160;
HC 345.311; HC 352.662; HC 354.952; HC 371.512; MC 20.401; REsp 1.340.450.
2 HC 243.524.
3 HC 318.980.
4 Tradução constante do apenso ao Decreto n. 99.710/90: “nenhuma criança seja pri-
vada de sua liberdade de forma ilegal ou arbitrária. A detenção, a reclusão ou a
prisão de uma criança será efetuada em conformidade com a lei e apenas como último
recurso, e durante o mais breve período de tempo que for apropriado”.
5 “Community-based services and programmes should be developed for the preven-
tion of juvenile delinquency, particularly where no agencies have yet been establi-
shed. Formal agencies of social control should only be utilized as a means of last
resort”. Tradução livre dos autores: “Serviços e programas com base na comunidade
devem ser desenvolvidos para a prevenção da delinquência juvenil, particularmente
onde ainda não foram estabelecidas agências formais de controle social. As agências
formais de controle social devem ser utilizadas apenas como último recurso”.
6 “In order to prevent further stigmatization, victimization and criminalization of
young persons, legislation should be enacted to ensure that any conduct not conside-
red an offence or not penalized if committed by an adult is not considered an offence
and not penalized if committed by a young person”. Tradução livre dos autores: “Em
vistas a prevenir a continuidade da estigmatização, vitimização e criminalização de
pessoas jovens, deverá ser promulgada legislação que garanta que qualquer con-
duta que não seja considerada um delito ou que não seja punida se cometida por um
adulto, também não seja considerada um delito e não seja punida se cometida por
uma pessoa jovem”.
7 United Nations Guidelines for the Prevention of Juvenile Delinquency (The Riyadh
Guidelines).
8 “11.1 Consideration shall be given, wherever appropriate, to dealing with juvenile
offenders without resorting to formal trial by the competent authority, referred to
in rule 14.1 below. 11.2 The police, the prosecution or other agencies dealing with
juvenile cases shall be empowered to dispose of such cases, at their discretion,
without recourse to formal hearings, in accordance with the criteria laid down for
that purpose in the respective legal system and also in accordance with the princi-
ples contained in these Rules. [...]”. Tradução livre dos autores: “Deve-se considerar,
sempre que apropriado, lidar com adolescentes acusados da prática de delitos sem
recorrer ao julgamento formal pela autoridade competente, referida na regra 14.1.
11.2 A polícia, o Ministério Público ou outras agências e controle formal que tratem de
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34 UMA CRÍTICA À SÚMULA DO STJ E AO MODELO DE PRECEDENTES BRASILEIRO SEGUNDO DWORKIN
processos juvenis devem estar habilitados a dispor desses casos, à sua análise, sem
recorrer a audiências formais, de acordo com os critérios estabelecidos para tanto
no respectivo ordenamento jurídico e também de acordo com os princípios contidos
nestas Regras.”.
9 United Nations Standard Minimum Rules for the Administration of Juvenile Justice
(“The Beijing Rules”).
10 As demais são: 1) a própria previsão do art. 2º, parágrafo único; 2) a que menciona o
requisito etário para ser candidato a conselheiro tutelar; 3) a disposição do art. 142,
caput, de necessidade de assistência dos maiores de dezesseis e menores de vinte e
um anos de idade, dispositivo esse que, conforme a doutrina (ROSSATO; LÉPORE;
CUNHA, 2019), se encontra derrogado no que tange à idade superior a 18 e inferior a
21 anos de idade com a entrada em vigor no Código Civil de 2002 que trouxe a maio-
ridade civil aos 18 anos de idade.
11 Grifos ausentes no original.
12 Emilio García Méndez (2006) elaborou coerente crítica ao aduzir que as maiores
atrocidades contra a infância foram cometidas muito mais em nome do amor e da
compaixão do que em nome da própria repressão. Isso porque em nome do amor não
há limites, mas para a Justiça sim. Por isso, nada contra o amor quando se apresenta
como um complemento à Justiça, mas pelo contrário, tudo contra o “amor” enquanto
um substituto cínico ou ingênuo da Justiça.
13 Art. 112, VI, do ECA.
14 Em definição sintética, Dworkin define o conceito das teorias normativistas/posi-
tivistas (mais especificamente a de Hart) como: O conjunto dessas regras jurídicas
é coextensivo com “o direito”, de modo que se o caso de alguma pessoa não estiver
claramente coberto por uma regra dessas (porque não existe nenhuma que pareça
apropriada ou porque as que parecem apropriadas são vagas ou por alguma outra
razão), então esse caso não pode ser decidido mediante “a aplicação do direito”. Ele
deve ser decidido por alguma autoridade pública, exercendo seu “discernimento
pessoal”. (DWORKIN, 2002, p.28)
15 Sobre isso, PEDRON, 2008, p.765
16 Sobre isso: “o dever do juiz é interpretar a história jurídica que encontra, não é inven-
tar uma história melhor; é seu dever atender a alguma concepção de integridade e
coerência do direito como instituição, e essa concepção irá limitar sua teoria opera-
cional de ajuste, é dizer, suas convicções sobre em que medida uma interpretação
deve ajustar-se ao direito anterior” MOTTA apud PEDRON, p. 142.
17 Tercio Sampaio Ferraz Junior (2015, p. 223) chega a dizer que “levado a um extremo,
podemos dizer que o subjetivismo [análise da vontade do legislador] favorece certo
autoritarismo personalista, a o privilegiar a figura do legislador, pondo sua von-
tade em relevo. Por exemplo, a exigência, na época do nazismo, de que as normas
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UMA CRÍTICA À SÚMULA DO STJ E AO MODELO DE PRECEDENTES BRASILEIRO SEGUNDO DWORKIN 35
fossem interpretadas, em última análise, de acordo com a vontade do ‘Fuhrer’ (era o
‘Fuhrersprinzip’) é bastante significativa”.
18 Neste sentido, Teoria da transcendência dos motivos determinantes, LENZA, 2018,
p.354.
19 AgInt no REsp 1573110 RJ, Rel. Ministro NEFI CORDEIRO, SEXTA TURMA, julgado em
06/06/2017, DJe 13/06/2017.
20 AgRg no AREsp 1022549 ES, Rel. Ministro REYNALDO SOARES DA FONSECA,
QUINTA TURMA, julgado em 23/05/2017, DJe 31/05/2017.
21 AgInt no REsp 1618713 RJ, Rel. Ministro SEBASTIÃO REIS JÚNIOR, SEXTA TURMA,
julgado em 20/09/2016, DJe 06/10/2016.
22 Sobre isso, o autor exemplifica: “Em tal projeto, um grupo de romancistas escreve
um romance em série; cada romancista da cadeia interpreta os capítulos que recebeu
para escrever um novo capítulo, que é então acrescentado ao que recebe o roman-
cista seguinte, e assim por diante. Cada um deve escrever seu capítulo de modo a
criar da melhor maneira possível o romance em elaboração, e a complexidade dessa
tarefa reproduz a complexidade de decidir um caso difícil de direito como integri-
dade.” DWORKIN, 1999, p.276.
23 SHAPIRO, 2007, p. 7: “The latter part places an important restriction on this rule:
the criteria of legality set out by the master rule may refer only to social facts – in
particular, to whether the rule has the appropriate social ‘pedigree’ or source. Such
a rule may, for example, require that the norms related to certain subject matter be
enacted solely by the legislature by majority vote, or it may recognize the actions of
other bodies, such as courts or administrative agencies, in these regards.”. Tradução
livre dos autores: “A última parte impõe uma restrição importante a esta regra: os
critérios de legalidade estabelecidos pela regra mestra podem referir-se apenas a
fatos sociais – em particular, se a regra tem o apropriado “pedigree” social ou fonte.
Tal norma pode, por exemplo, exigir que as normas relativas a determinado assunto
sejam editadas exclusivamente pelo Legislativo, por maioria de votos, ou pode reco-
nhecer a atuação de outros órgãos, como tribunais ou órgãos administrativos, a
respeito”.
24 Art. 4º Consideram-se instrumentos normativos de promoção, defesa e controle da
efetivação dos direitos humanos da criança e do adolescente, para os efeitos desta
Resolução: [...] III - Normas internacionais não-convencionais, aprovadas como Reso-
luções da Assembleia Geral das Nações Unidas, a respeito da matéria.
25 Assim nos arts. 121, caput, e 122, § 2º, por exemplo.
REVISTA DA DEFENSORIA PÚBLICA DO ESTADO DE SÃO PAULO | São Paulo, v. 3, n. 2, p. 15-36, jul./dez. 2021
36 UMA CRÍTICA À SÚMULA DO STJ E AO MODELO DE PRECEDENTES BRASILEIRO SEGUNDO DWORKIN
SELETIVIDADE, CONTROLE E
PUNIÇÃO A ADOLESCENTES
EM CUMPRIMENTO DE
MEDIDAS SOCIOEDUCATIVAS
SELECTIVITY, CONTROL AND PUNISHMENT FOR ADOLESCENTS
IN COMPLIANCE WITH SOCIO-EDUCATIONAL MEASURES
* Mestre em Serviço Social pelo Programa de Pós-graduação em Serviço Social e Políticas Sociais
(PPGSSPS) da Universidade Federal de São Paulo. Agente de Defensoria Assistente Social.
daniela_augusto@hotmail.com
REVISTA DA DEFENSORIA PÚBLICA DO ESTADO DE SÃO PAULO | São Paulo, v. 3, n. 2, p. 37-62, jul./dez. 2021
SELETIVIDADE, CONTROLE E PUNIÇÃO A ADOLESCENTES EM CUMPRIMENTO DE MEDIDAS SOCIOEDUCATIVAS 37
the so-called “resocializing” process, aiming to demystify the discourse of protection
propagated by legal practitioners and demonstrate that the State reproduces oppressions,
violations and structural racism, sometimes using the guaranteeist discourse and, thus,
effective socio-criminal control by punishing the bodies and minds of adolescents and
young people accused of committing an infraction.
Introdução
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Socioeducativas como: “advertência, obrigação de reparar o dano, prestação de ser-
viços à comunidade, liberdade assistida, semiliberdade e internação”.
O Estado, por meio do Poder Judiciário, que é provocado pelo Ministério Público,
seguindo a lógica da seletividade do sistema de justiça, exerce a função de apli-
car as medidas socioeducativas, sob a justificativa da responsabilização de um
público que, desde a primeira infância, segue sem a perspectiva do atendimento
pelas políticas sociais básicas que garantam a reprodução social de forma digna.
(CAMPOS, 2019, p.17)
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A partir do acesso aos prontuários do CAM e das entrevistas realizadas junto
aos Agentes de Defensoria que atuam neste espaço socio ocupacional, foi possível
desmistificar o discurso da proteção e responsabilização difundido pelos operadores
do Sistema Penal Juvenil da capital e demonstrar que, por vezes identificamos resquí-
cios da “doutrina da situação irregular”. Rodrigues (2017) aponta que, sob o signo do
perigosismo, a Justiça Juvenil brasileira - alinhada com as teorias de pena, fundamen-
tadas a partir da lógica da “prevenção especial” - engendrou um arsenal de sanções,
que tinham “corpo de medida de segurança” e “alma de pena” e ofereciam diversas
possibilidades para a atuação do poder punitivo para além do crime (BATISTA, N.,
1996b, p. 302), prática que se perpetua nos dias de hoje.
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A partir da identificação destas demandas é organizado o cotidiano do trabalho e
o diálogo com defensores públicos e profissionais da rede de políticas públicas, não
obstante identificamos nas situações encaminhadas a manifestação da postura e ação
punitiva imposta pelo Poder Judiciário aos adolescentes que apresentam “dificulda-
des” no “enquadramento” idealizado, geralmente pautada no tripé: Escolarização,
Profissionalização e Trabalho; a partir desta observação partimos então para cons-
trução de uma pesquisa que pudesse desmistificar o discurso da proteção social e res-
ponsabilização propagado pelos operadores do direito e demonstrar que, em relação
a esse público, o Estado, por meio das instituições do Sistema de Justiça e Segurança
Pública, fazem o controle sociopenal e reproduzem o racismo estrutural.
A partir dos conceitos da pesquisa social crítica, iniciamos os estudos dos pron-
tuários3 do CAM referentes ao ano de 2017, com o recorte da demanda “descumpri-
mento de medida socioeducativa”; além desta análise documental, que é uma fonte
de informações, uma vez que reúne o registro dos acontecimentos mais relevantes,
também realizamos entrevistas com os agentes de Defensoria que atuam na Regional.
No período delimitado foram encaminhados 409 casos, para atuação do CAM, com as
seguintes demandas especificadas no Gráfico 1.
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Gráfico 1 – Demandas identificadas no CAM em 2017
Violência/Negligência 29
Crianças e adolescentes
Uso de drogas 68
Acolhimento institucional 21
Ameaça de morte 64
Situação de rua 11
Conflito familiar 41
Transtorno mental 28
Assitência social 25
Violência/Negligência - Mulher 3
Quebra de medida
19
socioeducativa
Guarda 3
Outros 26
Suporte psicológico/emocional 9
Negligência institucional 2
Educação 6
Habitação 2
Sem informação 6
0 10 20 30 40 50 60 70 80
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Gráfico 2 – Demandas identificadas na planilha retorno de banca em 2017
Violência/Negligência 18
Crianças e adolescentes
Uso de drogas 28
Acolhimento institucional 16
Ameaça de morte 25
Situação de rua 6
Conflito familiar 12
Transtorno mental 18
Assitência social 6
Violência/Negligência - Mulher 2
Quebra de medida
13
socioeducativa
Guarda 1
Outros 10
Suporte psicológico/emocional 3
Negligência institucional 1
Educação 2
Habitação 1
Sem informação 6
0 5 10 15 20 25 30
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violência-negligência, acolhimento institucional e descumprimento de medida
socioeducativa.
Partimos então a questionar o que significa descumprir a medida socioeduca-
tiva? É possível afirmarmos que um(a) adolescente em situação de violação de direi-
tos, risco social ou até mesmo com demandas graves de saúde mental está (des)cum-
prindo a medida socioeducativa apenas por não estar correspondendo o ideário de
enquadramento aos padrões esperados pelas instituições que compõem o Sistema de
Justiça, especialmente Poder Judiciário e Ministério Público? Estes foram alguns dos
elementos norteadores do estudo ora apresentado.
O Sistema de Justiça Juvenil da capital paulista é composto pelo Poder Judiciário das
Varas Especiais da Infância e Juventude; o Ministério Público da Infância e Juven-
tude; a Regional Infância e Juventude da Defensoria Pública; e operando a seletivi-
dade, os agentes de Segurança Pública, todo um aparato estatal é organizado de modo
a garantir o funcionamento das agências de criminalização secundária.
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seus responsáveis, ou para uma entidade responsável, neste caso, a Fundação Casa,
sendo que na capital paulista, foram organizados em Centros de Atendimento Ini-
cial - CAI Gaivota para adolescentes do sexo masculino e CAI Ruth Pistori destinado
ao sexo feminino-, ambos realizam a recepção e encaminhamento para oitiva pelo
Ministério Público, responsável por dar andamento ao devido processo legal.
Na capital paulista, os promotores de justiça que compõem o Ministério Público
no Fórum das Varas Especiais da Infância e Juventude são divididos nas Varas de
Apuração de Ato Infracional e no Departamento de Execução das Medidas Socioe-
ducativas, realizam após o recebimento do Boletim de Ocorrência a oitiva informal
do(a) adolescente, que consiste em confirmar sua convicção sobre a conveniência de
promover o arquivamento dos autos, conceder a remissão ou representar o(a) adoles-
cente. Além disso, cabe ao Ministério Público a fiscalização dos serviços prestados
pelas instituições executoras das medidas socioeducativas em meio aberto e meio
fechado.
Conforme aponta Terra (2016, p. 45), o Fórum das Varas Especiais da Infância e
Juventude foi criado para abrigar as três Varas Especiais que haviam sido instala-
das para atender aos menores considerados em situação irregular, autores de infra-
ção penal, conforme previa a legislação da época (Código de Menor, Lei 6.697, de 10
de outubro de 1979, Art. 2o, inciso VI). Na atualidade está organizado em 06 Varas
Especiais de Apuração de Ato Infracional-VEIJ e pelo Departamento de Execuções
da Infância e Juventude-DEIJ, são responsáveis pela condução de todos os processos
da área infracional na capital paulista. Importa ressaltar que na capital a existência
de um Fórum específico para a matéria nos faz refletir sobre a hipótese de que essa
especialização traz, de forma mais contundente, uma aproximação do olhar dos ope-
radores do direito com mais ênfase no ato infracional, secundarizando por vezes as
violações de direitos pelas quais estes(as) adolescentes estão submetidos desde tenra
infância.
A Regional Infância e Juventude, segue uma divisão de atuação similar ao Minis-
tério Público e ao Poder Judiciário, os(as) defensores(as) públicos(as) se dividem entre
atuação nas Veijs e no acompanhamento da execução das medidas socioeducativas
vinculada ao Deij. Destaca-se que na realização das oitivas informais (momento
anterior à representação e início do processo) a atuação se dá por meio de convênio
com organização social, no entanto, a partir da representação ofertada pelo Minis-
tério Público, a Defensoria Pública não realiza nomeação de advogados dativos para
atuação nos processos. Cabe apontar ainda a atuação com menor ênfase nas ações de
Tutela Coletiva em Direitos Humanos, por inúmeras razões, dentre elas a necessidade
de priorizar investimentos por parte da administração da instituição.
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Em meio a esta complexa organização das instituições do Sistema de Justiça Juvenil
da capital paulista que nos indagamos sobre o lugar dos(as) adolescentes crimi-
nalizados(as) e selecionados(as) a partir do momento em que ameaçam a “ordem
social”, mas que comumente são invisibilizados no tocante à ausência de seus di-
reitos fundamentais.
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Para Ribeiro e Benelli (2017, p.14), a pobreza, entendida como resultado da explo-
ração da mão de obra da população negra escravizada, coexistiu com a produção
discursiva sobre as raças, que inventou e associou a delinquência à imagem do
jovem negro perigoso. Entretanto, a condição social e o lugar periférico ocupado
por jovens e adultos negros são comumente analisados a partir da perspectiva eco-
nômica, a qual se tem mostrado insuficiente para a compreensão da complexidade
das práticas sociais e discursivas atuais. (CAMPOS, 2019, p.51)
Partindo destas reflexões é possível apontar que o Sistema de Justiça Juvenil na capi-
tal paulista opera de forma seletiva, vocacionado a atingir setores socialmente vul-
neráveis, lidando com a conflitividade social juvenil a partir da criminalização das
condutas de alguns grupos. Como nos aponta Flauzina (2006), a seletividade é marca
estrutural dessa complexidade da rede que consubstancia o direito penal.
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as de Direito para atuação do CAM Brás e que apresentavam a demanda inicial: “des-
cumprimento de medida socioeducativa”.
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Gráfico 3 – Demandas identificadas em 2017 nos prontuários selecionados
Saúde mental 2
Medida socioeducativa 1
Fragilidade da saúde 2
Sem informação 2
Conflito familiar 4
Paradeiro ignorado 2
Situação de rua 1
Ausência de respaldo 2
Não alfabetizado 1
Uso de drogas 4
Ameaça de morte 1
Vulnerabilidade social 3
0 1 2 3 4
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com esse conceito, comumente utilizado de forma acrítica pois, ao não se considerar
que estes(as) meninos(as) são produtos desta sociedade que teoricamente garante
direitos e na prática os negligência, não se trata de ressocializá-los, mas sim de análise
de qual modelo de sociedade estamos forçando o seu enquadramento.
Certamente que do ponto de vista do ordenamento jurídico brasileiro, tivemos
significativos avanços, haja vista o próprio ECA, considerado legislação alinhada com
a perspectiva dos direitos humanos, mas como nos aponta Trindade (2013), direitos
humanos e capitalismo, nascidos como irmãos siameses, terminaram pondo-se em
confronto. Não se cumpriram, assim, as tais “promessas emancipadoras” suscitadas
pela modernidade.
Após realizada a caracterização inicial a análise dos casos, passaremos a desvelar
quais as situações vivenciadas por estes(as) adolescentes que ensejaram, por parte
das equipes técnicas que acompanham a medida socioeducativa, Ministério Público
e Poder Judiciário, a compreensão de que as metas, no contexto da capital paulista
limitadas aos eixos escolarização, profissionalização e trabalho não estavam sendo
atingidas.
Dentre os resultados deste estudo, destacaremos trechos dos registros dos pro-
fissionais do CAM Brás, que apontam vulnerabilidades importantes presentes na
trajetória dos(as) adolescentes.Iniciamos pelos casos de uso de drogas e não adesão
ao tratamento em Centros de Atenção Psicossocial Infantojuvenil (Caps-IJ). O uso de
drogas, além de ser uma das principais demandas recebidas no CAM Brás, tem se
mostrado na expressão do uso problemático, uma das mais prejudiciais violações de
direitos que acomete crianças e adolescentes.
Ela informou que (tarjado) compareceu duas vezes nos atendimentos, sempre apre-
sentando discurso de estar no Caps por ter sido mandado pela juíza. (Prontuário 11).
Ficou alinhado na nossa reunião que seria sugerida a suspensão da medida para que
fosse feito o cuidado de saúde pelo Caps IJ Sé. Na audiência foi colocado pelos técnicos
as sugestões, mas o juiz João não entendeu que (conteúdo tarjado) só cumpriria as
idas ao Caps IJ para cuidado de saúde estando internado na Fundação. Desta forma,
determinou a busca e apreensão do jovem. (Prontuário 1).
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e permanência desses(as) crianças e adolescentes nas ruas, submetidos(as) a situa-
ções de risco social, seja pela exposição à violência urbana, exploração sexual ou
aliciamentos diversos; mas também pelo trabalho infantil, prática da mendicância
e, alguma atividade ilícita que podem trazer consequências irreparáveis ao pleno
desenvolvimento, inclusive com o risco a própria vida.
[...] houve uma situação de conflito entre (tarjado) e um tio que agrediu a irmã, o que
fragilizou ainda mais os vínculos. Após este episódio as meninas saíram de casa sem
dizer para onde iriam e não retornaram. (Prontuário 7).
[...] Realizaram VD à casa do avô (conforme relatório anexo). Ela informou que a
situação da casa é precária e que Sr. (tarjado) não possui qualquer estrutura para
respaldar (tarjado) e seu primo (tarjado), que também tem MSE. (Prontuário 4).
Após internação de (tarjado), o pai se distanciou. Não quer contatar o pai. (tarjado)
recebe vale alimentação do pai, e segundo técnica, não sabe administrar esse valor.
(tarjado) mora com irmãos biológicos, que não desejam a presença de (tarjado) na
casa. (Prontuário 9).
Foi possível observar uma face do controle dos corpos e mentes no Sistema Socioe-
ducativo, onde a adjetivação dos comportamentos, tais como “adere” e “não adere”,
“afetivo” e “agressivo”, estão presentes nos relatos dos(as) técnicos(as), bem como nos
processos de execução da medida socioeducativa:
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Ela informou que no início da MSE (tarjado) tinha bom comportamento, partici-
pava de cursos e ia à escola, porém, após certo período iniciou uso de substâncias e
começou a fraudar bilhete único junto com outros adolescentes, fato que gerou novo
BO. (Prontuário 11).
Genitora suicidou-se, não conheceu o genitor, não tem bons vínculos com irmã e
tia, que não querem se responsabilizar, pelo fato de ter “ dado muito trabalho”.
(Prontuário 3).
Após a morte da mãe biológica (suicídio), o pai pediu ajuda para a Igreja Evangélica.
Entrega cada filho para uma família diferente. (Prontuário 9).
O pai era envolvido com o tráfico e foi assassinado, ou pela polícia ou pelos trafican-
tes, segundo relato do jovem. (Prontuário 10).
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A construção de vínculos é um aspecto desafiador no âmbito do trabalho com ado-
lescentes, considerando trajetórias com vivências de rupturas, perdas, descontinui-
dades de cuidados, abandonos, que muitas vezes não se vincular é uma estratégia de
autoproteção e defesa.
Sugerimos uma reunião de rede para entender melhor o caso do adolescente e pen-
sarmos estratégias de intervenções para que haja um acompanhamento de (tarjado).
A técnica do SMSE não foi muito disponível a essa sugestão, como se de alguma for-
ma já tivesse desistido do adolescente, pois citou que ele decidiu não se vincular aos
serviços- como se isso não pudesse mudar. (Prontuário 10).
Ela disse que o adolescente não possui vinculação com o MSE e nem com nenhum
outro serviço do território. Ele está evadido da escola desde 2014. Em 2010 foi
referenciado na UBS da região, porém, não deu continuidade nos atendimentos.
(Prontuário 10).
Ressaltamos que talvez o aspecto mais emblemático, mas ainda presente no Sistema
de Justiça Juvenil e consequentemente identificado na análise dos casos, seja a vio-
lência, em suas diversas faces, especialmente a reproduzida pelo Estado que expõe
e revitimiza.
Foi apreendida por ser conhecida pelos policiais, não está cumprindo a PSC pois tem
dificuldades de compreensão dos objetivos da Prestação de Serviços à comunidade.
Não é alfabetizada, não está frequentando a Escola, mesmo com as tentativas de
flexibilizar a permanência de (tarjado) no ambiente escolar. (Prontuário 12).
A equipe observa que (tarjado) passa a não querer retornar ao Hospital por ter sido
levada, na ocasião da internação provisória, de algemas para o atendimento médico.
(Prontuário 12).
ConsIderações
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compõem o Sistema Socioeducativo avaliem as metas que, construídas em conjunto
com os(as) adolescentes e suas famílias, são possíveis de atingir, sendo possível sua
reavaliação a qualquer tempo.
No entanto, comprovado o descumprimento “injustificado”, uma série de medidas
podem ser adotadas pelo Poder Judiciário, dentre elas a internação-sanção, onde pas-
sará por nova avaliação da equipe de referência do Centro de Internação Provisória
(Sanção); neste ínterim a medida originalmente imposta poderá ser “reavaliada” e
“substituída” por medida socioeducativa mais ou menos gravosa. Resta-nos refle-
tir a partir das situações anteriormente identificadas, se a aplicação, por exemplo,
da internação-sanção possui caráter punitivo ou socioeducativo? Silva (2011) nos
aponta que esse movimento de progressão, de regressão ou de cumulação das medi-
das muitas vezes parece ser arbitrário, já que não existem critérios objetivos para
tal movimento.
Outrossim, o que se observa na lógica das progressões e regressões de medidas é
a desconsideração muitas vezes da necessidade de aplicação das medidas protetivas
em detrimento da socioeducativa, reproduzindo a insuficiente ação estatal, na pers-
pectiva de proteção social. Nesta perspectiva as medidas socioeducativas são disfar-
çadas pelo caráter protetivo, mas no cotidiano de sua execução trazem elementos do
controle sociopenal.
Cabe especialmente aos profissionais que compõem o Sistema de Justiça Juvenil,
diante da barbárie cotidiana, o compromisso em discutir, na perspectiva dos direi-
tos humanos, o que se entende por direitos e garantias à adolescência e juventude,
sobretudo em tempos de avanço do pensamento conservador, em que vislumbramos
de forma atônita retrocessos de direitos sociais e sobretudo, de recrudescimento do
Estado Penal em detrimento da proteção social.
As reflexões ora apresentadas têm a intenção de destacar aspectos controversos
em relação ao tema descumprimento de medida socioeducativa, do ponto de vista
do Serviço Social, não sendo objetivo deste artigo apontar os aspectos jurídicos que
envolvem a temática.
Nosso papel enquanto agentes de transformação social e na defesa de outra socia-
bilidade está em meio às lutas contra os retrocessos aos direitos conquistados, na
resistência frente a políticas sociais conservadoras, criando formas de resistência
que reforcem o compromisso ético-político na perspectiva da emancipação política.
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58 SELETIVIDADE, CONTROLE E PUNIÇÃO A ADOLESCENTES EM CUMPRIMENTO DE MEDIDAS SOCIOEDUCATIVAS
notas de fIm
REVISTA DA DEFENSORIA PÚBLICA DO ESTADO DE SÃO PAULO | São Paulo, v. 3, n. 2, p. 37-62, jul./dez. 2021
SELETIVIDADE, CONTROLE E PUNIÇÃO A ADOLESCENTES EM CUMPRIMENTO DE MEDIDAS SOCIOEDUCATIVAS 59
7 A Lei 8.069, de 13 de julho de 1990, (Art. 122, § 1o ) aponta: “O prazo de internação na
hipótese do inciso III deste artigo não poderá ser superior a 3 (três) meses, devendo
ser decretada judicialmente após o devido processo legal.
8 Em que pese não ter sido observado, nas legislações sociais da área, o termo “regres-
são de medida” é comumente utilizado pelos operadores do direito e profissionais do
sistema socioeducativo, o que o aproxima ainda mais do Sistema Penal dos Adultos.
9 Lei 12.594, de 18 de Janeiro de 2012, (Art. 43) aponta: “A reavaliação da manutenção,
da substituição ou da suspensão das medidas de meio aberto ou de privação da liber-
dade e do respectivo plano individual pode ser solicitada a qualquer tempo, a pedido
da direção do programa de atendimento, do defensor, do Ministério Público, do ado-
lescente, de seus pais ou responsável. § 1º Justifica o pedido de reavaliação, entre
outros motivos: I - o desempenho adequado do adolescente com base no seu plano de
atendimento individual, antes do prazo da reavaliação obrigatória; II - a inadaptação
do adolescente ao programa e o reiterado descumprimento das atividades do plano
individual; e III - a necessidade de modificação das atividades do plano individual
que importem em maior restrição da liberdade do adolescente.
§ 2o A autoridade judiciária poderá indeferir o pedido, de pronto, se entender insufi-
ciente a motivação. § 3o Admitido o processamento do pedido, a autoridade judiciária,
se necessário, designará audiência, observando o princípio do § 1o do art. 42 desta Lei.
§ 4o A substituição por medida mais gravosa somente ocorrerá em situações excep-
cionais, após o devido processo legal, inclusive na hipótese do inciso III do art. 122 da
Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990 (Estatuto da Criança e do Adolescente), e deve ser:
I - fundamentada em parecer técnico; II - precedida de prévia audiência, e nos termos
do § 1o do art. 42 desta Lei.
10 Conforme aponta a Lei 12.594/12 (Capítulo IV), que trata do Plano Individual de Aten-
dimento (PIA): Art. 52. O cumprimento das medidas socioeducativas, em regime de
prestação de serviços à comunidade, liberdade assistida, semiliberdade ou inter-
nação, dependerá de Plano Individual de Atendimento (PIA), instrumento de pre-
visão, registro e gestão das atividades a serem desenvolvidas com o adolescente.
Parágrafo único. O PIA deverá contemplar a participação dos pais ou responsáveis,
os quais têm o dever de contribuir com o processo ressocializador do adolescente,
sendo esses passíveis de responsabilização administrativa, nos termos do art. 249
da Lei n. 8.069, de 13 de julho de 1990 (Estatuto da Criança e do Adolescente), civil e
criminal. Art. 53. O PIA será elaborado sob a responsabilidade da equipe técnica do
respectivo programa de atendimento, com a participação efetiva do adolescente e de
sua família, representada por seus pais ou responsável. Art. 54. Constarão do plano
individual, no mínimo: I - os resultados da avaliação interdisciplinar; II - os objetivos
declarados pelo adolescente; III - a previsão de suas atividades de integração social e/
ou capacitação profissional; IV - atividades de integração e apoio à família; V - formas
REVISTA DA DEFENSORIA PÚBLICA DO ESTADO DE SÃO PAULO | São Paulo, v. 3, n. 2, p. 37-62, jul./dez. 2021
60 SELETIVIDADE, CONTROLE E PUNIÇÃO A ADOLESCENTES EM CUMPRIMENTO DE MEDIDAS SOCIOEDUCATIVAS
de participação da família para efetivo cumprimento do plano individual; e VI - as
medidas específicas de atenção à sua saúde.
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SELETIVIDADE, CONTROLE E PUNIÇÃO A ADOLESCENTES EM CUMPRIMENTO DE MEDIDAS SOCIOEDUCATIVAS 61
O TRABALHO INFANTIL
E O ATO INFRACIONAL
ANÁLOGO AO TRÁFICO DE
DROGAS: UMA ANÁLISE
DO APARENTE CONFLITO
ENTRE A CONVENÇÃO
Nº 182 DA ORGANIZAÇÃO
INTERNACIONAL
DO TRABALHO E O
ESTATUTO DA CRIANÇA
E DO ADOLESCENTE
CHILD LABOR AND THE INFRACTIONAL ACT ANALOGUES
TO DRUG TRAFFICKING: AN ANALYSIS OF THE
APPARENT CONFLICT BETWEEN CONVENTION N° 182
OF THE INTERNATIONAL LABOR ORGANIZATION AND
THE STATUS OF CHILDREN AND ADOLESCENTS
REVISTA DA DEFENSORIA PÚBLICA DO ESTADO DE SÃO PAULO | São Paulo, v. 3, n. 2, p. 63-88, jul./dez. 2021
O TRABALHO INFANTIL E O ATO INFRACIONAL ANÁLOGO AO TRÁFICO DE DROGAS: UMA ANÁLISE DO APARENTE CONFLITO ENTRE A 63
CONVENÇÃO Nº DA ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO E O ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE
em análise. Ao fim, chega à conclusão de que a aplicação de medida socioeducativa se
reveste de um inegável caráter sancionador, o que afasta a razoabilidade de sua aplica-
ção para jovens que podem ser considerados vítimas de trabalho infantil, o que exige,
assim, a aplicação de um juízo de convencionalidade à luz do regramento internacional,
considerando-se a medida proteção do artigo 98 e seguintes do ECA como meio adequado
a concretizar as intenções do artigo 227 da Constituição Federal de 1988.
PalavRaS-ChavE: ato infracional – tráfico de drogas – exploração do trabalho infantil
aBSTRaCT
Through a qualitative bibliographic survey, aiming to verify if, in the end, there is an
apparent conflict between Convention No. 182 of the OTI and the Statute of Children and
Adolescents, this essay considers that the practice of infractions analogous to drug traf-
ficking it ends up encompassing a group of specific social characterizations, from which
trafficking is sometimes seen as a means of promoting livelihoods. In this context, it is
developed by questioning whether the application of a socio-educational measure of de-
tention under Article 121 of the ECA, which occurs in most cases for such infractions, is the
most appropriate measure in light of the provisions of the Convention under analysis. In
the end, he concludes that the application of a socio-educational measure has an undenia-
ble sanctioning character, which removes the reasonableness of its application to young
people who may be considered victims of child labor, which thus requires the application
of a judgment of conventionality in the light of international regulation, considering the
protection measure of article 98 et seq. of the ECA as an adequate means to materialize
the intentions of article 227 of the Federal Constitution of 1988.
KEywORdS infraction – drug trafficking – child labor
INTRODUÇÃO
REVISTA DA DEFENSORIA PÚBLICA DO ESTADO DE SÃO PAULO | São Paulo, v. 3, n. 2, p. 63-88, jul./dez. 2021
64 O TRABALHO INFANTIL E O ATO INFRACIONAL ANÁLOGO AO TRÁFICO DE DROGAS: UMA ANÁLISE DO APARENTE CONFLITO ENTRE A
CONVENÇÃO Nº DA ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO E O ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE
Sustenta-se desta forma pois, consoante o presente ensaio visa elucidar mais a
frente, é inegável que há um recorte social dos adolescentes inseridos na prática de
atos infracionais, ainda mais quando se trata do que é análogo ao tráfico de drogas, o
qual, atualmente, ocupa uma relevante porcentagem de ocupação dos centros socioe-
ducativos do Brasil, consoante se demonstrará no deslinde do presente artigo.
É que, por força de características específicas desses grupos, que envolvem deses-
truturação familiar, falta de acesso à educação e à possibilidade de acesso ao trabalho
formal, o tráfico de drogas acaba por surgir como um meio de desenvolvimento de
renda.
A partir daí, é possível que exista um aparente conflito entre o que dispõe o Esta-
tuto da Criança e do Adolescente e regramentos internacionais.
Nos dias atuais, o Estatuto da Criança e do Adolescente prevê que, quando o Poder
Judiciário depara-se com um adolescente envolvido em atos infracionais, deve lançar
mão dos artigos 112 do diploma normativo, o qual, por sua vez, aduz que, verificada a
prática de ato infracional, a autoridade competente poderá aplicar ao adolescente as
medidas de advertência, obrigação de reparar o dano, prestação de serviços à comu-
nidade, liberdade assistida, inserção em regime de semiliberdade, e internação em
estabelecimento educacional.
De toda sorte, na hipótese de o ato infracional análogo ao tráfico de drogas, diante
das circunstâncias sociais dos adolescentes inseridos neste contexto, caso haja com-
preensão de que ele está inserido no âmbito da traficância em regime análogo ao de
trabalhador informal, sendo utilizado como mão de obra do narcotráfico, é necessá-
rio que se traga à baila da análise judicial a redação da Convenção nº 182 da OIT, que
foi ratificada e adotada pelo Brasil em 2000, por meio do Decreto 6.481/2008, e, hoje,
encontra regulamentação no Decreto n° 10.088/2019, proibindo o emprego de crianças
e adolescentes para exercer qualquer função na Lista das Piores Formas de Trabalho
Infantil (Lista TIP), dentre os quais está inserido o tráfico de drogas.
Pode-se, por consequência da comparação de ambos os diplomas normativos (o
ECA e a Convenção), observar-se um aparente conflito quando da aplicação da medida
socioeducativa em face de adolescente, que, em verdade, pode, em tese, ser vítima de
trabalho infantil.
É o eventual empasse descrito acima que o presente ensaio visa abraçar ao lançar
a seguinte problemática: diante de contextos de marginalização, os adolescentes inse-
ridos em atos infracionais análogos ao tráfico de drogas podem ser considerados víti-
mas de trabalho infantil, exigindo um juízo de convencionalidade entre a Convenção
nº 182 da OIT e o ECA?
Para tanto, o artigo aponta como objetivos específicos: a) identificar qual é o con-
texto social em que os adolescentes que praticam atos infracionais análogos ao tráfico
de drogas estão inseridos; b) verificar se, diante de certos contextos, o adolescente
REVISTA DA DEFENSORIA PÚBLICA DO ESTADO DE SÃO PAULO | São Paulo, v. 3, n. 2, p. 63-88, jul./dez. 2021
O TRABALHO INFANTIL E O ATO INFRACIONAL ANÁLOGO AO TRÁFICO DE DROGAS: UMA ANÁLISE DO APARENTE CONFLITO ENTRE A 65
CONVENÇÃO Nº DA ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO E O ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE
inserido em atos infracionais análogos ao tráfico de drogas podem ser considerados
vítimas de trabalho infantil; c) analisar se há ambiguidade normativa entre a Conven-
ção nº 182 da OIT e o ECA; d) na hipótese de haver conflito, abordar sobre a capacidade
de realização de um juízo de convencionalidade, o que possibilitaria, em tese, a apli-
cação de medida de proteção, ao invés de medida socioeducativa.
Para dedicar-se aos objetivos apontados acima, o artigo divide-se em três capítu-
los, sendo que, ao fim, busca conceder um deslinde à problemática proposta.
Nesse sentido, a infração de maior vulto seria o roubo (34,16%), seguida do tráfico
de drogas (31,50%). Em menor medida, mas ainda com distribuição relativamente
significativa, os adolescentes tiveram trânsito em julgado por infrações análogas
ao furto (9,88%), ao porte e uso de armas (5,63%), bem como ao homicídio (5,28%) e à
receptação (4,68%). Se somados aos números dos atos análogos ao tráfico e à posse
de drogas para uso pessoal, constituem a maior parte das condutas praticadas
REVISTA DA DEFENSORIA PÚBLICA DO ESTADO DE SÃO PAULO | São Paulo, v. 3, n. 2, p. 63-88, jul./dez. 2021
66 O TRABALHO INFANTIL E O ATO INFRACIONAL ANÁLOGO AO TRÁFICO DE DROGAS: UMA ANÁLISE DO APARENTE CONFLITO ENTRE A
CONVENÇÃO Nº DA ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO E O ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE
pelos adolescentes, chegando a quase 50% do universo em análise (CNMP, 2019,
pg. 31).
Nesta toada, com base no contexto narrado alhures, não se pode olvidar que o envol-
vimento dos adolescentes com o tráfico de drogas tem se tornado, há muito, um tema
que necessita ultrapassar o âmbito jurídico e alcançar os núcleos sociais, políticos,
psicológicos, e, claro, um local de destaque na ciência jurídica.
Por isso, o exercício do questionamento sobre o perfil sociocultural do adoles-
cente infrator que comete ato infracional análogo ao tráfico de drogas é indispensá-
vel quando se percebe a relevante expressão da traficância na vida dos jovens bra-
sileiros, principalmente porque, no embalo do que explica Mondini (2011, s/p), “em
realidades marcadas por privação de direitos e escassez de recursos que garantam
o desenvolvimento das estruturas mentais, o psiquismo pode não se desenvolver em
sua máxima potência”, o que expõe, por consequência, os grupos privados de direi-
tos a indicadores de riscos, os quais não aparecem de forma voluntária na vida dos
adolescentes, mas, em verdade, “são expressões de um modelo de organização social
REVISTA DA DEFENSORIA PÚBLICA DO ESTADO DE SÃO PAULO | São Paulo, v. 3, n. 2, p. 63-88, jul./dez. 2021
O TRABALHO INFANTIL E O ATO INFRACIONAL ANÁLOGO AO TRÁFICO DE DROGAS: UMA ANÁLISE DO APARENTE CONFLITO ENTRE A 67
CONVENÇÃO Nº DA ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO E O ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE
marcado por profundas injustiças sociais e privação dos direitos fundamentais”
(GOMES & COLAÇO, 2016, p. 159).
O tema é tão relevante que motiva diversos autores a se destinarem a pesquisar os
motivos da expressividade da traficância nos dados de registro de atos infracionais.
Contudo, é de se atribuir especial atenção aos pesquisadores Galdeano e Almeida
(2018), os quais, em conjunto com o Centro Brasileiro de Análise e Planejamento,
desenvolveram conclusões de extrema relevância ao ponto.
Do referido estudo, já de partida, é de fácil percepção que há conclusão pela vin-
culação dos adolescentes que cometem atos infracionais análogos ao tráfico de drogas
com um contexto sociocultural que envolve pouca oportunidade de desenvolvimento
socioeconômico em atividades lícitas, veja-se:
O tráfico de drogas compõe, juntamente com alguns serviços específicos (tais como
de limpeza, de carga e descarga de mercadorias, de construção, de lava-rápido, de
coleta de material reciclável) o escopo de possibilidades de fontes de renda no qual
essa parcela da mão de obra da população está inserida.
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68 O TRABALHO INFANTIL E O ATO INFRACIONAL ANÁLOGO AO TRÁFICO DE DROGAS: UMA ANÁLISE DO APARENTE CONFLITO ENTRE A
CONVENÇÃO Nº DA ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO E O ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE
No mesmo sentido caminham Pessoa e Coimbra (2020, p. 121):
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O TRABALHO INFANTIL E O ATO INFRACIONAL ANÁLOGO AO TRÁFICO DE DROGAS: UMA ANÁLISE DO APARENTE CONFLITO ENTRE A 69
CONVENÇÃO Nº DA ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO E O ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE
narcotráfico, imbricado com o tráfico de armas, constitui-se em uma das indústrias
mais lucrativas do mundo, “movimentando cerca de R$320 bilhões de dólares por
ano” (MORELL, 2014, online).
A partir daí a conjuntura está orquestrada: ao passo em que os adolescentes, per-
tencentes a um grupo social específico, acabam por se desiludirem da tentativa de
angariar um meio formal de sustento de vida, a traficância aparece como uma das
vertentes possíveis dentre os vínculos informais que lhes restam como oportunidade
de vida.
Esses adolescentes estão envolvidos em um processo que Michel Misse (2010, p. 15)
chama reprodução social da sujeição criminal, isto é, quando se identificam certas
características, perfis, e locais, como focos de suspeição. Nas palavras da autora:
REVISTA DA DEFENSORIA PÚBLICA DO ESTADO DE SÃO PAULO | São Paulo, v. 3, n. 2, p. 63-88, jul./dez. 2021
70 O TRABALHO INFANTIL E O ATO INFRACIONAL ANÁLOGO AO TRÁFICO DE DROGAS: UMA ANÁLISE DO APARENTE CONFLITO ENTRE A
CONVENÇÃO Nº DA ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO E O ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE
A maior parte dos adolescentes autuados por tráfico de drogas em medida socioe-
ducativa são olheiros ou vendedores, segundo Ana Paula Galdeano, coordenadora
da pesquisa do Cebrap. Os olheiros (a quem cabe monitorar a chegada da polícia no
local de vendas) trabalham de 8 a 12 horas por dia, inclusive em período noturno,
recebendo de R$ 50 a R$ 60 diariamente. Já o vendedor recebe uma comissão que
varia de 10 a 12% e também cumpre turnos de 8 a 15 horas de trabalho. (PYL, 2018,
s/p)
Registra-se que esses dados surgem de pesquisa desenvolvida pelo Centro Brasileiro
de Análise e Planejamento (CEBRAP), em parceria com o Fundo Municipal da Criança
e do Adolescente (FUMCAD) e a Secretaria de Direitos Humanos e Cidadania, com
resultado registrado por Galdeano e Ronaldo (2018).
Com a sorte lançada e forçada pelas circunstâncias da vida, esses adolescentes
acabam por ser apreendidos quando da prática do ato infracional análogo ao tráfico
de drogas, e, por consequência, sofrem a aplicação de medida socioeducativa diante
do teor do artigo 112 do Estatuto da Criança e do Adolescente.
Lá, no Centro Socioeducativo, os adolescentes seguem por anos a fio, participando
de processos pedagógicos que tentam refrescar, em pouquíssimo tempo, a percepção
do adolescente sobre si e sobre o mundo, desconstituindo todas as estruturas sociais
que o circundaram até o momento, lançando-o ao contexto da marginalização.
Não há como ignorar que, frente ao desafio desta construção, ainda há repto
maior: a linha entre o caráter pedagógico e sancionatório da medida socioeducativa é
tênue, pois, apesar das boas intenções do ECA, tanto no discurso, quanto na execução,
acaba-se por, no caso de internação, manter-se os adolescentes em celas, em situações
análogas ao sistema prisional.
Veja-se, por exemplo, a situação caótica do Centro Socioeducativo do Ceará, a
qual foi lançada para conhecimento midiático por intermédio do Informe 2017/2018
da Anistia Internacional. No documento, a Anistia Internacional, vinculada a ONU,
relata que:
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O TRABALHO INFANTIL E O ATO INFRACIONAL ANÁLOGO AO TRÁFICO DE DROGAS: UMA ANÁLISE DO APARENTE CONFLITO ENTRE A 71
CONVENÇÃO Nº DA ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO E O ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE
Trata-se, nas palavras de Nicodemus (2006, p. 66), de um sistema de responsabi-
lização punitivo, pois o legislador fez uma opção clara pela norma, pelo processo e
por uma sanção. “A medida socioeducativa, ainda que tenha conteúdo pedagógico,
reveste-se de coerção e sanção”. Sobre esse ponto, diz o autor:
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72 O TRABALHO INFANTIL E O ATO INFRACIONAL ANÁLOGO AO TRÁFICO DE DROGAS: UMA ANÁLISE DO APARENTE CONFLITO ENTRE A
CONVENÇÃO Nº DA ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO E O ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE
de medidas socioeducativas que mais se adequem às condições psicossociais do ado-
lescente em análise, concede ao julgador a faculdade de aplicar advertência e obriga-
ção de reparar o dano, medidas estas que podem ser interpretadas sob o enfoque da
responsabilização social do ato cometido, veja-se:
Quanto a esse ponto, melhor explanação acerca da forma com a qual um processo se
desencadeia a partir da prática de um ato infracional torna-se cabível para melhor
compreensão da missiva.
A dinâmica pode ser exposta de forma breve, apesar de compor uma estrutura
complexa.
Na hipótese de uma pessoa imputável cometer uma das condutas tipificadas na
Lei de Drogas (11.343/2006), acabará sofrendo um processo penal, a partir do qual,
comprovados os pressupostos analíticos do crime, cumprirá uma pena.
O ECA, todavia, compreende que crianças e adolescentes não podem ser inseridos
nessa forma de acompanhamento jurídico, especialmente diante da condição especial
da pessoa em desenvolvimento desse grupo específico.
Essa é a disposição do artigo 103 do ECA:
Art. 103. Considera-se ato infracional a conduta descrita como crime ou contra-
venção penal.
Art. 104. São penalmente inimputáveis os menores de dezoito anos, sujeitos às
medidas previstas nesta Lei. Parágrafo único. Para os efeitos desta Lei, deve ser
considerada a idade do adolescente à data do fato.
Art. 105. Ao ato infracional praticado por criança corresponderão as medidas pre-
vistas no art. 101. (BRASIL, 1990)
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O TRABALHO INFANTIL E O ATO INFRACIONAL ANÁLOGO AO TRÁFICO DE DROGAS: UMA ANÁLISE DO APARENTE CONFLITO ENTRE A 73
CONVENÇÃO Nº DA ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO E O ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE
proteção, na hipótese de cometido por crianças, ou de medidas socioeducativas, na
hipótese de cometido por adolescentes.
As medidas socioeducativas são as acostadas no artigo 112, consoante já apontado
alhures.
Ocorre que, se por um lado o Estatuto da Criança e do Adolescente formaliza em
Lei que, em caso de cometimento de atos infracionais, a imposição de medidas socioe-
ducativas é ação cabível, por outro, há de se reconhecer maior complexidade quando
a medida imposta -que normalmente é de internação no caso de ato infracional aná-
logo ao tráfico de drogas- atinge jovens que, em maioria, fazem parte do contexto
social aqui esboçado, revestido de processos marginalizadores.
Diante da fragilidade social em que se encontram, os adolescentes acabam por
ser via de instrumentalização de tráfico de drogas, por vislumbrar na ação uma pos-
sibilidade informal de renda a partir do seu contexto social. Apesar disso, quando
apreendidos, são responsabilizados com medida socioeducativa, normalmente de
internação, por exercerem o que pode ser compreendido como trabalho infantil, por
força das circunstâncias.
Neste embalo, é de se ponderar que, em tese, o adolescente que pratica ato infracio-
nal análogo ao tráfico de drogas mediante certas circunstâncias sociais, em verdade,
deveria ser beneficiado por certas medidas de proteção- ao invés de sofrer interpo-
sição de medida socioeducativa-, especialmente quando se considera que o trabalho
infantil é prática veementemente combatida em diversos dispositivos legais, sejam
nacionais, sejam internacionais. Sobre esse ponto, alerta Pyl (2018, online):
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emprego de crianças e adolescentes para exercer qualquer função na Lista das Piores
Formas de Trabalho Infantil (Lista TIP).
Nesse sentido, é de se conceder especial relevância ao artigo 4°, inciso III, do
Decreto 6.481/2008, o qual é taxativo em considerar a utilização de crianças e ado-
lescentes como meio de tráfico de drogas é uma das piores formas de promoção de
trabalho infantil, veja-se:
Art. 4o Para fins de aplicação das alíneas “a”, “b” e “c” do artigo 3o da Convenção
no 182, da OIT, integram as piores formas de trabalho infantil:
I - todas as formas de escravidão ou práticas análogas, tais como venda ou tráfico,
cativeiro ou sujeição por dívida, servidão, trabalho forçado ou obrigatório;
II - a utilização, demanda, oferta, tráfico ou aliciamento para fins de exploração
sexual comercial, produção de pornografia ou atuações pornográficas;
III - a utilização, recrutamento e oferta de adolescente para outras atividades
ilícitas, particularmente para a produção e tráfico de drogas; e
IV - o recrutamento forçado ou compulsório de adolescente para ser utilizado em
conflitos armados (grifo nosso).
Observa-se, portanto, uma inegável dicotomia. Ora, se, de um lado, a legislação bra-
sileira reconhece que o recrutamento de jovens e adolescentes para a realização de
tráfico de drogas é uma das piores formas de trabalho infantil existentes no mundo,
de outro, em diploma legislativo diverso, concede ao juiz a possibilidade de impor
medida socioeducativa a partir da prática de ato infracional análogo ao tráfico de
drogas.
Sobre a ambiguidade relatada, pondera PYL (2018, s/p):
Martins (2020), por sua vez, registra que, em que pese o Brasil tenha se comprometido
a combater práticas de trabalho infantil, por vezes, o compromisso de combate acaba
por confundir suas intenções, na medida em que o Poder Judiciário, ao deparar-se
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com o ato infracional de tráfico de drogas, acaba por fixar medida socioeducativa de
internação, o que, nas condições em que se encontram os Centros Socioeducativos do
Brasil, acabam por caracterizar-se de um inegável viés punitivo:
Essa conclusão não se reveste de novidade. É que, lá em 2012, Vieira (2012, p. 150) afir-
mava que existia “uma incoerência entre as leis de proteção e as leis penais – uma
lei define o adolescente que trabalha no tráfico de drogas como vítima, outra, como
infrator”. A mesma lógica é apontada por Galdeano e Almeida (2018, p. 18):
Se o Estatuto da Criança for aplicado ao adolescente pego pela polícia por produzir
ou vender drogas, a sanção será uma medida socioeducativa (internação, Presta-
ção de Serviço à Comunidade, Liberdade Assistida e outras formas punitivas-e-
ducativas). Se os Tratados Internacionais e o Decreto brasileiro sobre as piores
formas de trabalho infantil forem levados em conta, teremos que considerar que
o mesmo adolescente está exposto a uma modalidade específica de trabalho. Na
primeira perspectiva, a categoria “ato infracional”, análoga ao crime, é enfatizada,
enquanto na segunda a perspectiva, o “trabalho infantil” ocupa papel central.
Sob a ótica dos autores, existe, portanto, uma contradição em movimento, o que coloca
em conflito aparente Convenção Internacional ratificada pelo Brasil em face do Esta-
tuto da Criança e do Adolescente. Não é outro o entendimento de Crus e Scherer (2019,
p. 6):
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CONVENÇÃO Nº DA ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO E O ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE
crime tipificado no código penal, o Estatuto da Criança e do Adolescente a conside-
ra um ato infracional e o adolescente um sujeito em conflito com a lei.
Forçoso concluir, portanto, que considerar o adolescente que pratica ato infracional
análogo ao tráfico de drogas como vítima de trabalho infantil é um caminho a ser con-
siderado. A partir daí, o raciocínio acerca da ação a ser tomada por parte do Estado
reveste-se de um caráter de ainda maior complexidade, notadamente porque deve
brindar, para além do ECA, as orientações normativas direcionadas por intermédio
da Constituição Federal de 1988, bem como de diplomas internacionais.
Abarcando esta questão, bem como apresentando um possível deslinde ao busílis,
segue a próxima seção.
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O TRABALHO INFANTIL E O ATO INFRACIONAL ANÁLOGO AO TRÁFICO DE DROGAS: UMA ANÁLISE DO APARENTE CONFLITO ENTRE A 77
CONVENÇÃO Nº DA ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO E O ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE
criança e do adolescente, institucionalizando a prioridade absoluta para este público,
em uma verdadeira rede de proteção.
Neste embalo, a Convenção nº 182 da OIT, ratificada e adotada pelo Brasil em
2000, por meio do Decreto 6.481/2008 - hoje encontra regulamentação no Decreto n°
10.088/2019-, sustenta que a vinculação de crianças e adolescentes na concretização
do tráfico de drogas é uma das piores formas de trabalho infantil, a ser combatida e
extirpada, nos termos da Constituição Federal de 1988.
É de se considerar, ainda, que ao assinar a Agenda 2030, aprovada pelas Nações
Unidas em 2015, o Brasil comprometeu-se a erradicar todas as formas de trabalho
infantil até 2025. Contudo, na ausência de políticas públicas que caminhem nesse sen-
tido, a juventude empobrecida segue sendo duplamente penalizada.
Dentro desta perspectiva, bem como asseverado no tópico acostado alhures,
quando um adolescente que praticou ato infracional análogo ao tráfico de drogas bate
às portas do Poder Judiciário, existe uma inegável complexidade na aplicação da Lei.
Sustenta-se desta forma porque, diante das circunstâncias sociais desses jovens,
bem como da forma em que as medidas socioeducativas são aplicadas no Brasil, a
concretização dos valores constitucionalmente assegurados ganham singular difi-
culdade, na medida em que, em verdade, a aplicação da medida socioeducativa de
internação acaba por revestir-se de um inegável viés punitivo.
Essa realidade demonstra que, cada vez mais, a situação do adolescente inserido
na prática de atos infracionais análogos ao tráfico de drogas, exige, em verdade, uma
interpretação da Lei em consonância com o que estabelece a Convenção nº 182 da OIT.
Inclusive, a interpretação do artigo 121 do ECA à luz da Constituição Federal de
1988 e da Convenção nº 182 da OIT é medida necessária diante do atual momento jurí-
dico-social neoconstitucionalista, em que, em razão da força normativa da Constitui-
ção Federal, suas normas devem irradiar-se por todo o sistema normativo, consoante
ensina Barroso (2013, s/p):
Quanto ao papel da norma, verificou-se que a solução dos problemas jurídicos nem
sempre se encontra no relato abstrato do texto normativo. Muitas vezes só é possí-
vel produzir a resposta constitucionalmente adequada à luz do problema, dos fatos
relevantes, analisando topicamente. Quanto ao papel do juiz, já não lhe caberá
apenas uma função de conhecimento técnico, voltado para revelar a solução con-
tida no enunciado normativo. O intérprete torna-se coparticipante do processo de
criação do Direito, complementando o trabalho do legislador, ao fazer valorações
de sentido para as cláusulas abertas e ao realizar escolhas entre possíveis soluções.
A partir dessa premissa, bem como do contexto até aqui narrado, em que há uma dico-
tomia aparente entre a aplicação da medida socioeducativa de internação em razão
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da prática de ato infracional análogo ao tráfico de drogas e a proteção garantida pela
Convenção nº 182 da OIT, é que se começa a pensar em um possível controle de con-
vencionalidade que possibilitará a concretização dos valores constitucionalmente
protegidos.
Antes de avançar nesse tema, é preciso ponderar que alguns tratados interna-
cionais de direitos humanos ingressam no ordenamento aprovados por decreto
legislativo em procedimento ordinário de votação, ou seja, por maioria simples (CF,
artigo 47). Nesta hipótese, por força do artigo 5º, §2º, da CF, ficarão em posição inter-
mediária, abaixo da Constituição, já que não possuem força de emenda constitucio-
nal, mas acima das leis e atos normativos.
A partir daí, quando da aplicação da Lei, o intérprete precisa atentar-se a duas
espécies de controle: constitucionalidade e convencionalidade, o qual, nas pala-
vras de Martins (2019, p. 449), diferencia-se do controle de constitucionalidade na
medida em que controle de verificação da compatibilidade das leis com a Constitui-
ção “é o já conhecido controle de constitucionalidade. O controle de verificação da
compatibilidade das leis com os tratados e convenções supralegais é o controle de
convencionalidade”.
Esse controle guarda um caráter duplo, notadamente porque há um controle de
convencionalidade externo, realizado de forma concentrada nos Tribunais encarre-
gados da observância e interpretação da norma internacional, e um controle interno,
que, aplicado ao Brasil, poderá ocorrer de modo difuso, pelos juízes e tribunais da
justiça ordinária, e concentrado, no Supremo Tribunal Federal (LEAL; ALVES, 2017,
p. 11).
É possível dizer, portanto, que a ideia de controle de convencionalidade passa pela
interpretação de que, quando da aplicação de uma Lei, a observância de regimentos
internacionais é devida. Essa é a conclusão de Leal e Alves (2017, pg.14):
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§ 2º, da Constituição) ou formalmente equivalentes às emendas constitucionais
(Art. 5º, § 3º, da Constituição).
Caso a norma esteja de acordo com a Constituição, mas não com eventual tratado
já ratificado e em vigor no plano interno, poderá ela ser até considerada vigente
(pois, repita-se, está de acordo com o texto constitucional e não poderia ser de outra
forma) – e ainda continuará perambulando nos compêndios legislativos publica-
dos –, mas não poderá ser tida como válida, por não ter passado imune a um dos
limites verticais materiais agora existentes: os tratados internacionais em vigor
no plano interno. Ou seja, a incompatibilidade da produção normativa doméstica
com os tratados internacional em vigor no plano interno (ainda que tudo seja com-
patível com a Constituição) torna inválidas as normas jurídicas de direito interno.
(MAZUOLLI, 2009, p. 96)
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Nesse sentido, entende-se que o controle de convencionalidade deve ser exercido
pelos órgãos da justiça nacional relativamente aos tratados aos quais o país se
encontra vinculado. Para realizar o controle de convencionalidade ou de legalida-
de das normas infraconstitucionais, os tribunais locais não requerem qualquer
autorização internacional. Tal controle passa, doravante, a ter também caráter
difuso, a exemplo do controle difuso de constitucionalidade, pelo qual qualquer
juiz ou tribunal pode-se manifestar a respeito. À medida que os tratados forem
sendo incorporados ao direito pátrio, os tribunais locais – estando tais tratados em
vigor no plano internacional – podem, desde já e independentemente de qualquer
condição ulterior, compatibilizar as leis domésticas com o conteúdo dos tratados
(de direitos humanos ou comuns) vigentes no país.
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CONVENÇÃO Nº DA ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO E O ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE
De toda sorte, quando a análise de convencionalidade vai para o controle concen-
trado há maior complexidade. É que, consoante aduz Mazuolli (2009), ele só pode ser
realizado caso o tratado internacional que é o parâmetro de interpretação tenha sido
ingressado no Brasil sob a condição de emenda constitucional.
Sobre o controle de convencionalidade realizado no âmbito da justiça da criança
e do adolescente, no HC 143.988/ES o Supremo Tribunal Federal endossou a neces-
sidade de, em casos de socioeducação, serem respeitados os dispositivos legais per-
tinentes, garantindo a preservação dos direitos e a dignidade dos socioeducandos.
Na ocasião, o STF elencou os tratamentos internacionais sobre o tema da juven-
tude encarcerada, bem como reforçou o entendimento acerca da necessidade de res-
peito do status supralegal dos tratados internacionais.
A justiça da criança e do adolescente é uma área especial com um Juiz que con-
centra a análise dessa matéria. Em grandes comarcas, existem juízes específicos
que lidam com todas as questões relacionadas à criança e ao adolescente (guarda,
alimentos, medidas socioeducativas, perda de poder familiar). Em comarcas meno-
res, muitas vezes os juízes concentram essas funções com outras matérias de direito.
De toda forma, quando da aplicação da Lei na análise da aplicação da medida
socioeducativa, é possível que o juízo realize um controle difuso de convenciona-
lidade, analisando o teor da Lei brasileira (no caso o ECA) frente aos regramentos
internacionais que circundem o tema.
É possível, assim, que diante de um critério que promova o controle de convencio-
nalidade junto à Convenção nº 182 da OIT, o Poder Judiciário, identificando a autoria
e a materialidade do ato infracional análogo ao tráfico de drogas, convença-se de que
o adolescente infrator, é, na verdade, vítima de uma arquitetura socialmente organi-
zada que promove o abuso da mão de obra infantil de jovens inseridos em contextos
de marginalização.
Ao compreender dessa forma, é possível que, ao contrário de lançar mão das medi-
das socioeducativas elencadas no artigo 112 do ECA, o Poder Judiciário, fazendo-se
valer das garantias constitucionalmente asseguradas às crianças e aos adolescentes,
aplique as medidas de proteção elencadas a partir do artigo 98 do ECA, quais sejam:
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II - orientação, apoio e acompanhamento temporários;
III - mat rícula e freqüência obrigatórias em estabelecimento oficial de ensino
fundamental;
IV - inclusão em serviços e programas oficiais ou comunitários de proteção, apoio
e promoção da família, da criança e do adolescente;
V - requisição de tratamento médico, psicológico ou psiquiátrico, em regime hos-
pitalar ou ambulatorial;
VI - inclusão em programa oficial ou comunitário de auxílio, orientação e trata-
mento a alcoólatras e toxicômanos;
VII - acolhimento institucional;
VIII - inclusão em programa de acolhimento familiar;
IX - colocação em família substituta (BRASIL, 1990)
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Anual SINASE (BRASIL, 2016), os números mostram um total de 26.450 adolescentes
em cumprimento de medidas de meio fechado em 2016.
Segundo levantamento do Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo
(BRASIL, 2016), dentre os mais de 26 mil adolescentes cumprindo medidas socioedu-
cativas em unidades de restrição e privação de liberdade, roubo e tráfico de drogas
são as principais causas de internação. Os adolescentes encarcerados em unidades de
internação teriam praticado 27.428 atos infracionais em 2015, sendo que desses, 46%
(12.724) seriam tipificados como análogo ao roubo e 24% (6.666) foram classificados
como análogo ao tráfico de drogas.
De toda sorte, o presente ensaio demonstrou que a internação, muitas vezes con-
siderada a primeira mão por diversos aplicadores de direito, por considerarem o ato
infracional análogo ao tráfico de drogas revestido de violência, deve ocupar a posição
de última via, utilizada tão somente no vértice das necessidades.
E não é só. Há, consoante o que está exposto, uma necessária envergadura da
compreensão dos adolescentes infratores como sujeitos de direito, vítimas da utili-
zação de mão de obra barata em atividade laborativa não regulamentada, revestida
de abusos, incongruências e ilegalidades.
Sob esse prisma, a aplicação de medidas socioeducativas, enquanto forem revesti-
das de um caráter penalizador, precisa ser ponderada não só frente ao ECA, mas espe-
cialmente em atenção integral aos valores constitucionalmente consagrados, e, mais,
a compreensão da OIT de que a prática de tráfico de drogas por menores de 18 (dezoito)
anos, para além de um ato infracional, é, em seu âmago, um mecanismo de violência.
CONCLUSÃO
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adolescentes que atualmente cumprem medida socioeducativa de internação, uma
relevante porcentagem é pela prática de ato infracional análogo ao tráfico de drogas.
Quando os adolescentes que praticam ato infracional análogo ao tráfico de drogas
são apreendidos, o Poder Judiciário, em posse das disposições do ECA, aplica em face
do menor infrator uma das medidas socioeducativas do artigo 112, sendo que, em atos
infracionais desta natureza, o artigo mostra que a aplicação da medida socioeduca-
tiva de internação é a mais contumaz.
Ocorre que, durante o ensaio, pôde-se observar que diversos autores assumem o
caráter penalizador da medida socioeducativa, ainda mais quando aplicada no Brasil,
local no qual o cumprimento da internação, por vezes, reveste-se por característica
similar ao do sistema prisional.
Para muitos autores, ao fixar a medida socioeducativa o Poder Judiciário inverte
a lógica das garantias constitucionalmente consagradas aos menores de 18 (dezoito)
anos, na medida em que, tratando-se do tráfico de drogas, muitas vezes, uma via de
exploração do trabalho infantil, haveria a necessidade de que outros dispositivos
legais fossem atraídos para aplicação no caso em concreto, a exemplo das medidas
protetivas do artigo 98 do ECA.
Essa ação seria a concretização do que se denomina “juízo de convencionalidade”
em referência à Convenção nº 182 da OIT foi ratificada e adotada pelo Brasil em 2000,
por meio do Decreto 6.481/2008, e, hoje, encontra regulamentação no Decreto n°
10.088/2019, a partir da qual o Brasil comprometeu-se a combater todas as práticas de
exploração do trabalho infantil, dentre as quais o tráfico de drogas foi considerada
como uma das piores formas.
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REFERÊNCIAS
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CONVENÇÃO Nº DA ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO E O ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE
DIREITO PENAL JUVENIL:
UMA ANÁLISE ACERCA
DA JUSTIÇA PENAL
JUVENIL BRASILEIRA
JUVENILE CRIMINAL LAW: AN ANALYSIS OF
BRAZILIAN JUVENILE CRIMINAL JUSTICE
REVISTA DA DEFENSORIA PÚBLICA DO ESTADO DE SÃO PAULO | São Paulo, v. 3, n. 2, p. 89-104, jul./dez. 2021
DIREITO PENAL JUVENIL: UMA ANÁLISE ACERCA DA JUSTIÇA PENAL JUVENIL BRASILEIRA 89
INTRODUÇÃO
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90 DIREITO PENAL JUVENIL: UMA ANÁLISE ACERCA DA JUSTIÇA PENAL JUVENIL BRASILEIRA
que, no âmbito da legislação brasileira, se consolidou uma proteção especial e espe-
cífica, bem como se reafirmou os princípios constitucionais aplicáveis às crianças e
aos adolescentes.
Ademais, através da referida lei se estabeleceu um subsistema de Direito Penal
juvenil, que acentuou a confluência entre os seus próprios dispositivos e o Direito
Penal, de forma que o Estatuto da Criança e do Adolescente se tornou, sem dúvidas, a
principal ferramenta na busca pela proteção dos direitos e das garantias fundamen-
tais da criança e do adolescente.
Antes de discorrer acerca dos principais aspectos relacionados à justiça penal juvenil
brasileira, é essencial engendrar algumas considerações a respeito da evolução do
Direito Penal juvenil para fins de contextualização.
A doutrina apresenta uma perspectiva histórica acerca da evolução do Direito
Penal juvenil, na qual a tutela penal juvenil é explicada em três fases distintas: Etapa
Penal Indiferenciada, Etapa Tutelar e a Etapa Garantista.
A Etapa Penal Indiferenciada, também denominada Modelo Punitivo, teve início
no século XIX, com os códigos penais liberais da época, até as legislações do século
XX, época na qual “o direito buscava responder de forma proporcional à ofensa come-
tida, e não reformar ou reeducar o delinquente” (SPOSATO, 2013, p.76).
Nessa etapa, no que diz respeito à responsabilização penal, os menores de idade
eram tratados da mesma forma que os adultos, sendo submetidos às mesmas regras,
diferenciando-se apenas pelo fato de que poderia haver redução de pena. Sérgio Salo-
mão Shecaira aponta que essa fase histórica “caracteriza-se por considerar os meno-
res de idade praticamente da mesma forma que os adultos, fixando penas atenuadas e
misturando nos cárceres adultos e menores na mais absoluta promiscuidade” (2008,
p. 28.).
No mesmo sentido, Karyna Batista Sposato explica que a Etapa Penal Indiferen-
ciada teve por característica o tratamento jurídico conferido às infrações cometi-
das por menores de idade no âmbito das mesmas legislações e diplomas legais que
tratavam da responsabilidade penal dos adultos, a imposição das mesmas sanções
jurídico-penais cominadas aos adultos, e a execução das penas nos mesmos estabe-
lecimentos determinados para o cumprimento de sanções pelos adultos (2013, p. 21).
Esse período perdurou até a promulgação da Constituição de 1824, que inovou
apresentando a previsão da criação de um Código Criminal que fosse pautado na
equidade e justiça, excluindo as penas cruéis e determinando ausência da possibili-
dade de que uma pena passasse da pessoa condenada para outros. O art. 179, incisos
XIX e XX, apresentavam a seguinte redação:
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DIREITO PENAL JUVENIL: UMA ANÁLISE ACERCA DA JUSTIÇA PENAL JUVENIL BRASILEIRA 91
Desde já ficam abolidos os açoites, a tortura, a marca de ferro quente, e todas as
mais penas cruéis. Nenhuma pena passará da pessoa do delinquente. Por tanto não
haverá em caso algum confiscação de bens, nem a infamia do Réo se transmittirá
aos parentes em qualquer gráo, que seja (BRASIL, 1824).
Essa visão inovadora da seara criminal, influenciou o Código Criminal de 1830 que,
além de substituir as penas corporais por penas de prisão, determinou, em seu artigo
10, que os menores de quatorze anos não seriam julgados criminosos, desde que não
se observasse neles o discernimento para a prática do delito (BRASIL, 1830). Dessa
forma, o inimputável em que se verificasse discernimento sofreria a privação de
sua liberdade pelo tempo que o magistrado determinasse, não podendo apenas o
condenado permanecer nessa situação de recolhimento após ultrapassar a idade de
dezessete anos. Adotou-se, portanto, um critério biopsicológico para determinação
ou não de aplicação de punição ao menor, consubstanciado na presença ou ausência
de discernimento.
Com a edição do Código Penal de 1890, foi estabelecido a inimputabilidade plena
aos nove anos de idade. Essa realidade estava estabelecida no artigo 27, § 2º, que dis-
punha: “art. 27. Não são criminosos: § 1º Os menores de 9 annos completos; § 2º Os
maiores de 9 e menores de 14, que obrarem sem discernimento” (BRASIL, 1890).
Assim, não mais havia possibilidade de uma criança com menos de nove anos
sofrer condenação alguma na esfera penal, sendo certo que entre a idade de nove e
quatorze anos aplicava-se o já mencionado critério do discernimento. A avaliação do
referido critério era realizada pelo magistrado que, se entendesse que o menor em
questão compreendia a ilicitude do ato, poderia imputar-lhe a aplicação de punição.
A superação dessa etapa se deu após o surgimento de legislações específicas que
resultaram na autonomia de tratamento em casos de condutas originalmente tratadas
pelo código penal, quando cometidas por crianças ou adolescentes.
Iniciou-se a Etapa Tutelar, ou Modelo de Proteção, precisamente com o advento da
Lei Federal nº 4.242/1921, cuja redação constante do artigo 3º autorizava o governo a
“organizar o serviço de assistência e proteção à infância abandonada e delinquente”
(BRASIL, 1921).
Emílio Garcia Mendez (2006, p. 9) explica que essa fase teve sua origem nos Esta-
dos Unidos no final do século XIX, e foi uma reação de profunda indignação moral
com as condições precárias em que viviam os jovens infratores nas prisões e muito
particularmente contra a promiscuidade do alojamento de adultos e menores nas
mesmas instituições.
A partir daí, foram adotadas medidas especializadas em relação aos menores de
idade envolvidos com condutas tipificadas como crimes. Além de as penas serem dife-
renciadas, os menores de idade passaram a ser mantidos em locais distintos de onde
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92 DIREITO PENAL JUVENIL: UMA ANÁLISE ACERCA DA JUSTIÇA PENAL JUVENIL BRASILEIRA
os adultos ficavam. A pena passou a ter um caráter educativo, porém, mantendo-se
a rigidez.
Criou-se a ideia de que os jovens tidos por delinquentes necessitavam de algo além
de correção, de uma figura que espelhasse a perspectiva de paternidade. Assim, o
juiz deveria ser investido de um poder familiar, de forma que se legitimou certa dis-
cricionariedade na atuação do magistrado, no sentido de que este passou a ser visto
como um “autêntico médico penal que exerce a cura das almas, e para tanto não estará
condicionado às exigências legais do contraditório para desempenhar seu papel dis-
cricionário” (2011, p. 66).
Nesse cenário, em 20 de dezembro de 1923, foi aprovado o Regulamento de Assis-
tência e Proteção aos Menores Abandonados e Delinquentes e criado o Juízo de Meno-
res do Distrito Federal, o que gerou alteração em relação à inimputabilidade plena.
Até então, como mencionado alhures, a inimputabilidade plena era até os nove
anos de idade, nessa fase, porém, foi estendida aos quatorze anos, de forma que, con-
forme o artigo 68 do mencionado regulamento, crianças ou pré-adolescentes com
idade inferior não poderiam ser submetidos a nenhuma espécie de processo criminal.
Aqueles que tivessem entre quatorze e dezoito anos seriam submetidos a um pro-
cesso penal dotado de um caráter especial, de acordo com o artigo 1º cuja disposi-
ção apresentava que “o menor, de qualquer sexo, abandonado ou delinquente, será
submettido pela autoridade competente ás medidas de assistencia e protecção insti-
tuidas neste regulamento” (BRASIL, 1923). A esse respeito, Sérgio Salomão Shecaira
pondera que para aplicação das medidas constantes do artigo 1º, não havia distinção
entre o menor abandonado e o delinquente, de forma que “ambos estavam sujeitos,
por exemplo, a ser internado em asilo ou orfanato” (2008, p. 37).
Em 12 de outubro 1927, foi criada a primeira legislação específica abordando o
atendimento de menores no Brasil, conhecida como Código de Menores. A referida
legislação, em seu artigo 1º, fixou a responsabilidade penal plena dos adultos em 18
(dezoito) anos.
Com o advento do Código Penal, em 1940, o legislador adotou o critério estrita-
mente etário, de forma que “em lugar de se permitir a verificação da maturidade, caso
a caso, optou-se pelo critério cronológico, isto é, ter mais de 18 anos” (NUCCI, 2013, p.
315). Julio Fabbrini Mirabete (2001) explica que a adoção de um critério puramente
cronológico não considera o desenvolvimento mental do autor, de forma que este não
está sujeito à sanção penal ainda que entenda plenamente a ilicitude do fato praticado.
Em suas palavras:
Trata-se de uma presunção absoluta de inimputabilidade que faz com que o menor
seja considerado como tendo desenvolvimento mental incompleto em decorrência
de um critério de política criminal. Implicitamente, a lei estabelece que o menor
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DIREITO PENAL JUVENIL: UMA ANÁLISE ACERCA DA JUSTIÇA PENAL JUVENIL BRASILEIRA 93
de 18 anos não é capaz de entender as normas da vida social e agir conforme esse
entendimento (2001, p. 216).
Em 1979 foi promulgado o segundo Código de Menores – Lei n° 6.697/79, que sustentou
de forma plena a Doutrina da Situação Irregular. Em seu artigo 2º, o referido disposi-
tivo considerava em situação irregular o menor que estivesse vivenciando situação
de privação de condições essenciais à sua subsistência, saúde e instrução obrigatória;
fosse vítima de maus tratos ou castigos imoderados impostos pelos pais ou responsá-
vel; estivesse privado de representação ou assistência legal, pela falta eventual dos
pais ou responsável; demonstrasse desvio de conduta, em virtude de grave inadapta-
ção familiar ou comunitária; ou, por fim, fosse autor de infração penal.
Com efeito, a partir desse novo Código de Menores, o ordenamento jurídico bra-
sileiro e as políticas direcionadas ao atendimento de adolescentes autores de atos
infracionais sofreram um forte impacto, considerando que “a informalidade dos
mecanismos de controle sociopenal dos adolescentes foi a marca decisiva da Etapa
Tutelar do Direito Penal Juvenil, que contou finalmente com a Doutrina da Situação
Irregular para legitimar seu exercício” (SPOSATO, 2013, p.33).
Com a promulgação da Constituição Federal de 1988, teve início a Etapa Garan-
tista, ou Modelo de Responsabilidade. A principal característica do referido modelo
foi o nascimento da percepção do menor de idade como sujeito de direitos com capa-
cidade de exercê-los, bem como a combinação entre o aspecto educativo e o aspecto
judicial na esfera da tutela penal juvenil.
Nessa etapa, ganhou destaque o princípio da proteção integral, originário de
documentos internacionais, especialmente da Convenção das Nações Unidas de
Direito da Criança, que consagraram os direitos da criança e do adolescente, e das
Regras Mínimas das Nações Unidas para a Administração da Justiça de Menores –
Regras de Beijing (1985), entre outros.
Posteriormente, como resultado de significativas mobilizações realizadas pelos
movimentos sociais e sociedade civil que lutavam pela garantia dos direitos das crian-
ças e dos adolescentes e defendiam a ideia de estes serem também sujeitos de direitos
merecedores do acesso à cidadania e proteção, entrou em vigor a Lei 8.069/1990, deno-
minada Estatuto da Criança e do Adolescente, reafirmando os princípios constantes
da Constituição federal de 1988, refletindo fundamentos da Convenção Internacional
das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança, e elencando medidas socioeducativas
aplicáveis aos adolescentes infratores.
Sequencialmente, foi editada a Lei nº 12.594/2012, instituindo o Sistema Nacional
de Atendimento Socioeducativo - Sinase, com o objetivo de regulamentar a execução
das medidas socioeducativas constantes do Estatuto da Criança e do Adolescente.
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94 DIREITO PENAL JUVENIL: UMA ANÁLISE ACERCA DA JUSTIÇA PENAL JUVENIL BRASILEIRA
2. Medidas de proteção e medidas socioeducativas
A conduta dos que negam a existência de um Direito Penal Juvenil, a par de contri-
buir na construção do mito da impunidade, implica necessariamente no abandono
dos conceitos introduzidos pelas normas do próprio Estatuto da Criança e do Ado-
lescente (especialmente no que respeita à responsabilidade com sancionamento de
medida socioeducativa e de condição de sujeito de direitos ostentada pelo adoles-
cente). Não consideram o conjunto da Normativa Internacional e, especialmente,
a Ordem Constitucional estabelecida, que contamina o sistema como única forma
de lhe emprestar legitimação e que afirma a condição cidadã do adolescente, não
se construindo cidadania sem responsabilidade. A não admissão de um sistema
penal juvenil, de natureza sancionatória, significa o apego aos antigos dogmas do
menorismo (assim identificada a corrente dos defensores da doutrina tutelar, da
situação irregular, que norteava o antigo Código de Menores) que não reconhecia
no “menor” a condição de sujeito1.
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DIREITO PENAL JUVENIL: UMA ANÁLISE ACERCA DA JUSTIÇA PENAL JUVENIL BRASILEIRA 95
com finalidade pedagógica, contida na Medida Socioeducativa, decorre da própria
sistemática adotada pelo Estatuto da Criança e do Adolescente com fundamento na
Doutrina da Proteção Integral de Direitos da Criança” (SILVA, 2006, p. 70).
Nessa linha, considera-se a existência de caráter sancionatório na medida socioe-
ducativa, mesmo que possua em sua essência um viés pedagógico. Esses autores
defendem também o Direito Penal juvenil. Por este ângulo, temos a compreensão
de que a natureza da medida socioeducativa, assim como a sanção penal, configura
um mecanismo de defesa social, se distinguindo, no entanto, quanto à pena, pois, a
medida socioeducativa possui carga pedagógica em detrimento da função punitiva,
porém, ambas com caráter retributivo (SARAIVA, 2010, p. 112).
Antônio Fernando do Amaral Silva aduz que “a expressão pena pertence ao
gênero das respostas sancionatórias e que as penas se dividem em disciplinares,
administrativas, tributárias, civis, inclusive socioeducativas”2. Assim, são classifica-
das como criminais quando equivalem a delitos praticados por pessoa de dezoito anos
ou mais, imputável frente ao Direito Penal tradicional. Embora possua um caráter
predominantemente pedagógico, as medidas socioeducativas, pertencendo ao gênero
das penas, não passam de sanções determinadas aos jovens.
Resta claro, portanto, que o entendimento predominante a respeito da natureza
jurídica das medidas socioeducativas é de que existe caráter sancionatório, porém,
condicionado à finalidade pedagógica. Assim, a função pedagógica deve sobressair
sobre a perspectiva retributiva, justamente para o fim de efetivação das garantias
fundamentais e alcance de humanização da resposta estatal frente aos adolescentes
autores de ato infracional.
Conforme mencionado alhures, para adolescentes entre 12 e 18 anos que cometam
ato infracional é aplicável medida socioeducativa, de outra maneira, se uma criança
abaixo de 12 (doze) anos praticar ato infracional, será cabível medida de proteção. A
diferença entre uma medida e outra tem um relevante significado.
A medidas de proteção estão reguladas pelo artigo 98 do Estatuto da Criança e
do Adolescente. O referido dispositivo prevê que as medidas de proteção à criança e
ao adolescente são aplicáveis sempre que houver ameaça ou violação dos direitos da
criança, reconhecidos pelo Estatuto, por meio por ação, ou omissão, da sociedade ou
do Estado, por falta, omissão, ou abuso, dos pais ou responsável, ou ainda em razão
de sua conduta (BRASIL, 1990).
A relação de medidas protetivas aplicáveis às crianças estão previstas nos arti-
gos 105 e 101 e envolvem: encaminhamento aos pais ou responsável, mediante termo
de responsabilidade; orientação; apoio e acompanhamento temporários; matrícula
e frequência obrigatórias em estabelecimento oficial de ensino fundamental; inclu-
são em programa comunitário ou oficial de auxílio à família, à criança e ao adoles-
cente; inclusão em serviços e programas oficiais ou comunitários de proteção, apoio
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e promoção da família, da criança e do adolescente; requisição de tratamento médico,
psicológico ou psiquiátrico, em regime hospitalar ou ambulatorial; inclusão em pro-
grama oficial ou comunitário de auxílio, orientação e tratamento a alcoólatras e toxi-
cômanos; abrigo em entidade; acolhimento institucional; inclusão em programa de
acolhimento familiar; colocação em família substituta.
Quanto aos adolescentes autores de ato infracional, o Estatuto da Criança e do
Adolescente impõe sanções aptas a interferir na liberdade dos jovens, razão pela qual
devem ser aplicadas respeitando todos os parâmetros de um devido processo legal,
“sob princípios que são extraídos do direito penal, do garantismo jurídico, e, especial-
mente, da ordem constitucional que assegura os direitos de cidadania” (SARAIVA,
2006, p. 93.)
As medidas socioeducativas constantes do artigo 112, são: advertência; obrigação
de reparar o dano; prestação de serviços à comunidade; liberdade assistida; inserção
em regime de semiliberdade; internação em estabelecimento educacional; qualquer
uma das previstas no art. 101, I a VI do Estatuto.
O § 1 do referido artigo determina que a medida aplicada ao adolescente deve levar
em conta a sua capacidade de cumpri-la, as circunstâncias e a gravidade da infração.
O § 2º esclarece que, em hipótese alguma e sob pretexto algum, será admitida a pres-
tação de trabalho forçado. Por fim, o § 3º apresenta a previsão de que os adolescentes
portadores de doença ou deficiência mental receberão tratamento individual e espe-
cializado, em local adequado às suas condições.
Podemos aferir que o propósito das referidas medidas socioeducativas é a
chamada ressocialização para reintegração do jovem à sociedade, diferentemente das
medidas protetivas que visam proteger crianças autoras de atos infracionais, consi-
derando que estas se encontram em situação de vulnerabilidade acentuada. Assim,
temos que a medida socioeducativa diz respeito à aplicação de sanções voltadas para a
educação e as medidas de proteção serão aplicadas unicamente em casos envolvendo
crianças, tendo em vista que não possuem idade suficiente para que lhes sejam apli-
cadas as medidas socioeducativas.
A Lei nº 12.594/12 instituiu o Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo
- Sinase, que regulamenta a execução das medidas socioeducativas destinadas a ado-
lescente que pratique ato infracional (BRASIL, 2012). Em seu artigo 2º, a referida lei
estabelece que o Sinase será coordenado pela União e integrado pelos sistemas esta-
duais, distrital e municipais, responsáveis pela implementação dos seus respectivos
programas de atendimento a adolescente ao qual seja aplicada medida socioeduca-
tiva, com liberdade de organização e funcionamento. Os poderes Executivo, Legisla-
tivo e Judiciário, em conjunto com a sociedade civil de modo geral, devem contribuir
e promover as ações relacionadas aos princípios e normas que regem a política de
atenção a crianças e adolescentes promovidas pelo Poder Público.
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DIREITO PENAL JUVENIL: UMA ANÁLISE ACERCA DA JUSTIÇA PENAL JUVENIL BRASILEIRA 97
A respeito das medidas socioeducativas, o Sinase determina que se tratando de
medida de advertência, reparação de dano, prestação de serviços à comunidade e
liberdade assistida, a execução ocorrerá em meio aberto e com acompanhamento
por equipe multidisciplinar, inclusive mediante a elaboração de um Plano Individual
de Atendimento do adolescente nos dois últimos casos.
As medidas de inserção em regime de semiliberdade e internação em estabeleci-
mento educacional, por serem consideradas privativas de liberdade, só podem ser
aplicadas mediante determinação de autoridade judiciária com decisão devidamente
fundamentada. Para estas medidas, também há necessidade de elaboração de Planos
Individuais de Atendimento (BRASIL, 1990).
O referido dispositivo acrescenta que ao aplicar a medida ao adolescente, deve-se
considerar sua capacidade de cumpri-la, as circunstâncias e a gravidade da infração,
sendo vedada a prestação de serviço forçado, e, por fim, estabelece que haja trata-
mento individual e especializado aos adolescentes portadores de doença ou deficiên-
cia mental.
Só há ato infracional se houver figura típica penal que o preveja. E este conceito,
para submeter-se o adolescente a uma medida socioeducativa, manifestação de
Poder do Estado em face de sua conduta infratora, esta ação há de ser antijurídica
e culpável. O garantismo penal impregna a normativa relativa ao adolescente in-
frator como forma de proteção deste em face da ação do Estado. A ação do Estado,
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autorizando-se a sancionar o adolescente e infligir-lhe uma medida socioeduca-
tiva, fica condicionado à apuração, dentro do devido processo legal, que este agir
típico se faz antijurídico e reprovável – daí culpável (2006, p. 76).
Luís Fernando Camargo de Barros Vidal (1997, p. 88), explica que a lei opera com o
fenômeno da criminalidade na visão parcial do Direito Penal ao definir o ato infracio-
nal como conduta criminosa ou contravencional, pois “se vale justamente da noção de
mínimo ético que o define”. O autor prossegue mencionando que “consequentemente,
derivam do direito penal as regras de interpretação do ECA quanto ao ato infracional.
O estabelecimento de garantias processuais, de hipóteses absolutórias, etc., previstas
no ECA, comprova o raciocínio” (VIDAL, 1997, p. 88).
Isto posto, cumpre salientar que além de todas as cautelas imprescindíveis na ins-
trução de processos criminais instaurados em face de adultos imputáveis, em relação
aos procedimentos específicos para apuração do ato infracional deve-se observar a
medida mais adequada, visando a proteção integral do adolescente, nos termos do
disposto nos artigos 1º a 6º, da Lei nº 8.069/90, com o respeito efetivo aos direitos fun-
damentais inerentes à pessoa humana.
Estabelecida a conceituação de ato infracional, cabe destacar os principais aspec-
tos que permeiam as normas reguladoras da responsabilidade dos menores de idade
que comentem atos infracionais.
De antemão, salienta-se que legislação relacionada à responsabilização penal
juvenil, frente a um ordenamento jurídico de um Estado Democrático, deve primar
pelas garantias individuais e limite do exercício punitivo por parte das autoridades
judiciais e das agências administrativas.
Conforme estabelece o item 4.1 das Regras Mínimas das Nações Unidas para a
Administração da Justiça da Infância e Juventude, ou Regras de Beijing,
Do ponto de vista objetivo, estabeleceu-se um sistema que não pode prescindir dos
atos aos quais correspondem condutas descritas como crimes ou contravenções.
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Porém é variável a intensidade da responsabilização, porquanto há uma relativiza-
ção do princípio da proporcionalidade em função do superior interesse da criança.
Mas, reafirma-se, a dualidade da identificação entre ato infracional e crime ou
contravenção não passa de um eufemismo, que na essência permite ainda mais
compreender o estudo do tema como de um ramo do Direito Penal (SHECAIRA,
2008, p. 169).
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CONSIDERAÇÕES FINAIS
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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DIREITO PENAL JUVENIL: UMA ANÁLISE ACERCA DA JUSTIÇA PENAL JUVENIL BRASILEIRA 103
NOTAS DE FIm
REVISTA DA DEFENSORIA PÚBLICA DO ESTADO DE SÃO PAULO | São Paulo, v. 3, n. 2, p. 89-104, jul./dez. 2021
104 DIREITO PENAL JUVENIL: UMA ANÁLISE ACERCA DA JUSTIÇA PENAL JUVENIL BRASILEIRA
DIREITOS HUMANOS
E EMPRESAS:
PARADIGMAS ATUAIS
BUSINESS AND HUMAN RIGHTS: CURRENT PARADIGMS
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DIREITOS HUMANOS E EMPRESAS: PARADIGMAS ATUAIS 105
veral relevant efforts to improve the effectiveness of human rights at the intersections
with business activities.
KEYWORDS Business. Human Rights. UNGPs.
INTRODUÇÃO
REVISTA DA DEFENSORIA PÚBLICA DO ESTADO DE SÃO PAULO | São Paulo, v. 3, n. 2, p. 105-126, jul./dez. 2021
106 DIREITOS HUMANOS E EMPRESAS: PARADIGMAS ATUAIS
negócios; acesso aos remédios, porque mesmo os esforços mais concentrados não
podem impedir todas as violações (RUGGIE, 2008, p. 190-191).
Esses Princípios Orientadores se aplicam a todos os Estados e a todas as empresas,
devendo ser entendidos como um todo coerente. Devem ser interpretados, individual
e conjuntamente, de acordo com seus objetivos de aprimorar normas e práticas na
relação entre direitos humanos e empresas, sem criar novas obrigações de direito
internacional, nem limitar ou reduzir quaisquer obrigações legais das quais o Estado
esteja sujeito em matéria de direitos humanos (UNITED NATIONS, 2011b, p. 1).
O Guia contém trinta e um princípios orientadores sobre empresas e direitos
humanos, organizados nos três parâmetros de sua estrutura e em princípios fun-
damentais e operacionais, com comentários apresentando seus respectivos signi-
ficados e possíveis desdobramentos. Almejam englobar todos os direitos humanos
reconhecidos internacionalmente e se aplicam a todos os Estados e a todas as empre-
sas. Embora não criem novas obrigações jurídicas, suas pretensas forças normativas
derivam dos seus endossos pelos Estados e do apoio de outras partes interessadas,
incluindo empresas.
Os princípios — costumeiramente chamados de UNGPs ou POs — buscam pres-
crever o que e como deve ser feito pelos governos e pelas empresas para gerenciar
melhor os riscos aos direitos humanos motivados por elas. Possuem estreita relação
com os chamados ODS — Objetivos de Desenvolvimento Sustentável estabelecidos
pela ONU —, até porque também buscam servir de base para o fortalecimento das
ações de conduta empresarial responsável, ou das ações da considerada antiga noção
de responsabilidade social empresarial (BRASIL, s.d.).
Outra consequência relevante do mandato de seis anos do Representante Especial
do Secretário Geral — comumente chamado de RESG — é o fato de que seu trabalho
manteve o debate sobre o tema direitos humanos e empresas tanto nas Nações Unidas
como no campo acadêmico. Porém, pesquisadoras têm argumentado que ainda há
necessidade de criação de parâmetros mais robustos e de mecanismos efetivos para
assegurar a responsabilização das condutas empresariais (FENNEY, 2009, p. 186).
Como é perceptível, pessoas vivem e atuam em um mundo de instituições, e con-
siderável parte de suas oportunidades e perspectivas dependem crucialmente das
instituições que existem e do modo como elas funcionam (SEM, 2000, p. 188). Empre-
sas não só podem contribuir para a efetivação dos direitos humanos como também
suas funções podem ser avaliadas levando em conta suas contribuições positivas e
negativas.
Atualmente, os Parâmetros Proteger, Respeitar e Reparar das Nações Unidas e,
consequentemente, seus Princípios Orientadores sobre Empresas e Direitos Huma-
nos são muito provavelmente os principais marcos da temática direitos humanos
e empresas. Um fortíssimo indício dessa afirmativa é demonstrável por meio de
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DIREITOS HUMANOS E EMPRESAS: PARADIGMAS ATUAIS 107
pesquisa de revisão de literatura sobre a temática (MARTIAN; MEDEIROS, 2020), a
partir da qual será possível constatar a quase absoluta referenciação dessa categoria
de literatura àqueles marcos.
Partindo da plausível hipótese de pesquisa de que os Parâmetros são o marco da
matéria mais difundido atualmente, eles serão utilizados neste artigo como referen-
ciais para a sistematização de elementos jurídicos dos temas padrões — paradigmas
— da temática direitos humanos e empresas.
Neste artigo, o problema de pesquisa é a demonstração de elementos jurídicos
dos temas paradigmas da temática direitos humanos e empresas. O objetivo geral é
a descrição desses elementos, os objetivos específicos são as demonstrações de dife-
rentes proposições doutrinárias e normativas sobre os temas. De forma qualitativa,
ao investigar fundamentos teóricos, esta revisão bibliográfica utiliza a técnica de
análise bibliográfica e documental de marcos teóricos e normativos dos temas.
Para evitar confusões quanto às análises sobre a temática, que não costumam
considerar as seguintes distinções como variantes de seus escopos, este artigo não
distinguirá acepções ou extensões de direitos humanos (LEWANDOWSKI, 1984) e
de direitos fundamentais (SOUZA, 2014).
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108 DIREITOS HUMANOS E EMPRESAS: PARADIGMAS ATUAIS
instrumento internacional vinculante para regular as atividades das transna-
cionais e de outras empresas à observância aos direitos humanos (ROLAND et al.,
2018, p. 402–403).
Enquanto isso, diversos indivíduos da academia, do setor público, da sociedade
civil e de empresas, do sul e do norte global, já discutem como deveria ser a legislação
de devida diligência obrigatória e de responsabilidade empresarial da União Euro-
peia. (BUSINESS & HUMAN RIGHTS RESOURCE CENTRE, 2020). No ano de 2017, a
França introduziu em sua legislação a obrigação de plano e meios de devida diligência
para grandes empresas (FRANCE, 2017); e neste ano de 2021, a Alemanha aprovou pro-
jeto de lei federal sobre devida diligência corporativa em cadeias de valor (DEUTS-
CHER BUNDESTAG, s.d.).
A criação de uma estrutura jurídica que possa criar essa pretensa referência
internacional é tida como uma possível ferramenta fundamental para a expansão
do cumprimento dos direitos humanos no mundo (BÉRRON, 2014, p. 133). Serviria
inclusive como importante fundamento do diálogo exegético entre regras comerciais
e ambientais, que é teleologicamente orientado pela pessoa humana como valor-fonte
supremo na complementariedade de normas e regras (AMARAL JÚNIOR, 2015, p. 31).
Mas aparentemente não se deve concentrar os maiores esforços na elaboração de
um possível tratado somente em aspectos sociais e jurídicos, seria preciso entender
o comportamento de Estados e de empresas na política e no processo de negociação
de obrigações. Pesquisadores têm buscado demonstrar que empresas e Estados resis-
tem consistentemente a padrões que são fortes e amplos, como o estabelecimento de
mecanismos de reclamação independentes e fortes para amplas gamas de direitos,
por exemplo (KIRKEBØ; LANGFORD, 2018, p. 159–160).
De qualquer forma, é prevalente o entendimento de que o direito internacional
deve e pode prever tais obrigações, e de que essas obrigações devem ser determina-
das na medida das características das atividades empresariais. Assim, seria mais evi-
dente que empresas têm obrigações legais, conforme suas autorias ou participações
em violações aos direitos humanos (RATNER, 2001, p. 449).
No âmbito nacional brasileiro, o dever da República Federativa do Brasil quanto
à proteção dos direitos humanos é explícito em diferentes tipos normativos. De todo
modo, os seguintes dispositivos da Constituição brasileira são provas máximas e sufi-
cientes desse dever, estão previstos nos artigos: 1º; 3º, I, III, IV; 4º, II; 5º, caput, §1º, §2º
(BRASIL, 1988).
O terceiro Programa Nacional de Direitos Humanos — PNDH-3 — também esta-
belece o interesse público de propor medidas que possam condicionar empresas a
cumprirem os direitos humanos. Especialmente na exposição do Eixo Orientador II,
ao considerar fundamental a fiscalização do respeito aos direitos humanos nos pro-
jetos implementados pelas empresas transnacionais e em seus impactos; na Diretriz
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DIREITOS HUMANOS E EMPRESAS: PARADIGMAS ATUAIS 109
5, no objetivo estratégico I, ao abordar a participação sindical nos processos de licen-
ciamento ambiental de empresas, e no objetivo estratégico II, ao propor a instituição
de código de conduta em direitos humanos para ser considerado no âmbito do poder
público como critério para a contratação e financiamento de empresas; e no objetivo
estratégico IV da Diretriz 8, ao abordar a responsabilidade das empresas em suas
organizações e cadeias produtivas quanto a ações de enfrentamento da exploração
sexual e de combate ao trabalho infantil (BRASIL, 2009).
Mas a mencionada proposição do objetivo estratégico II da Diretriz 5 do PNDH-3
é a menos disciplinada no país. A criação de código de conduta proposto pelo Plano
poderá suprir a atual ausência de normatização desse tema ao regulamentar a obser-
vância dos direitos humanos pelos particulares nas relações econômicas com a admi-
nistração pública.
O então Ministério de Direitos Humanos brasileiro criou por meio de portaria de
2018 seu Código de Conduta e de Respeito aos Direitos Humanos para Fornecedores de
Bens e de Serviços do Ministério dos Direitos Humanos. O Código diz ser obrigatória
a adoção dos seus princípios, diretrizes e responsabilidades por ocasião da publica-
ção de editais, e a inclusão de cláusulas nos contratos, convênios e instrumentos con-
gêneres, a fim de orientar empresas e entidades no cumprimento das exigências nele
previstas, inclusive aquelas que eventualmente prestem serviços e forneçam bens
às empresas contratadas e parceiros institucionais do Ministério (BRASIL, 2018c).
Entretanto, o “Segundo Relatório de Acompanhamento das Recomendações ao
Brasil do Grupo de Trabalho da ONU sobre Empresas e Direitos Humanos”, da orga-
nização não-governamental Conectas Direitos Humanos, aponta que o Código não
regrou medidas específicas para ampliar a transparência e a responsabilidade,
como: consideração da lista suja do trabalho escravo na seleção de empresas subcon-
tratadas ou na aquisição de bens e serviços; garantia de controle social e de transpa-
rência no enfrentamento do trabalho escravo, comprometendo-se em manter lista de
fornecedores diretos, atualizada periodicamente e disponível publicamente online;
estabelecer padrões mínimos a serem cumpridos em devida diligência em direitos
humanos (CONECTAS DIREITOS HUMANOS, 2019, p. 24).
Também em 2018, o mesmo Ministério de Direitos Humanos criou por meio de
portaria procedimentos para a assinatura de termo de compromisso com sociedades
empresariais no âmbito do Programa de Proteção aos Defensores de Direitos Huma-
nos do Ministério dos Direitos Humanos. A Portaria permite que o Ministério con-
tate diretamente e estabeleça tratativas com as sociedades empresariais mencionadas
como possíveis violadoras de direitos humanos no âmbito do Programa de Proteção
aos Defensores de Direitos Humanos(PPDDH)do Ministério (BRASIL, 2018a).
Parcela da sociedade civil tem indicado que a minuta dessa portaria não foi sub-
metida à consulta pública, o que reduziu a capacidade de participação da sociedade
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110 DIREITOS HUMANOS E EMPRESAS: PARADIGMAS ATUAIS
civil na necessária formação plural dos procedimentos para o termo de compromisso.
Essa parcela indica ainda que o rito extrajudicial regrado na portaria, fundamentado
no entendimento direto entre o Ministério e empresa potencialmente violadora de
direitos humanos, não prevê a participação dos afetados pela atividade empresarial
lesiva, impossibilitando a influência desses afetados nos aspectos a serem pactuados
no termo de compromisso (CONECTAS DIREITOS HUMANOS, 2019, p. 25).
Ainda em 2018, foi publicado o decreto federal que estabelece as Diretrizes
Nacionais sobre Empresas e Direitos Humanos, que orienta em eixos de obrigação
do Estado, de responsabilidade das empresas, de acesso a mecanismos de remediação,
e monitoramento e avaliação das suas diretrizes (BRASIL, 2018d). Pesquisadoras, pes-
quisadores e o terceiro setor mencionam que embora o decreto traga alguns avanços,
ele tem fragilidades graves que muito comprometem sua capacidade de contribuir
para regular a atividade empresarial em conformidade aos direitos humanos. A
seguir, alguns aspectos destacados nessas pesquisas.
O decreto estabelece que as responsabilidades das empresas regradas nas diretri-
zes são de implementação voluntária, pouco adequado às forças normativas pétreas
dos direitos fundamentais e da necessária supremacia dos direitos humanos. Outro
tema controverso é a criação de um selo “Empresa e Direitos Humanos” destinado às
empresas que facultativamente implementarem as diretrizes, premiando empresas
que cumpram normas essenciais e cogentes de observância aos direitos humanos,
sem regrar a possibilidade de revogação do selo em caso de retrocesso na implemen-
tação das diretrizes ou das demais normas consoantes ao seu escopo.
A equipe da Conectas Direitos Humanos aponta a ausência de disponibilização da
versão preliminar do texto do decreto, mencionando que não foi aberto prazo para
que contribuições ao conteúdo dele fossem apresentadas pela sociedade civil, redu-
zindo a possibilidade de pessoas e comunidades afetadas ou potencialmente atingidas
pelas atividades empresariais participarem do processo de construção da matéria
legislada (CONECTAS DIREITOS HUMANOS, 2019, p. 25–26).
Em 2020, o Conselho Nacional dos Direitos Humanos, por meio de resolução,
resolveu instituir diretrizes nacionais para uma política pública sobre direitos
humanos e empresas (BRASIL, 2020). Entre outros motivos, o Conselho considerou
ser necessário complementar e aprimorar as Diretrizes Nacionais sobre Empresas e
Direitos Humanos estabelecidas por meio do decreto supramencionado.
De fato, a Resolução institui de forma mais incisiva aspectos costumeiramente
relativizados pelo voluntarismo das atuais legislações específicas sobre o tema, como
ao consagrar a supremacia dos direitos humanos frente aos negócios. No geral, ela
demonstra tentar ser uma fonte formal mais compatível com a ordem jurídica brasi-
leira, na qual nenhum direito está acima dos direitos humanos e fundamentais.
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DIREITOS HUMANOS E EMPRESAS: PARADIGMAS ATUAIS 111
Nesse sentido, são muito relevantes os progressos dos esforços para aperfei-
çoamento da efetividade dos direitos humanos em intersecções com as atividades
empresariais. Como também é o caso da Nota Técnica sobre Proteção e Reparação de
Direitos Humanos em Relação a Atividades Empresariais (BRASIL, 2018b), proposta
em 2018 pela Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão, do Ministério Público
Federal.
Em síntese, são desejados debates substanciais, com participação consistente da
sociedade civil, especialmente das pessoas atingidas por violações de direitos huma-
nos, que considerem os conhecimentos já obtidos, tudo para a elaboração das alme-
jadas normas legítimas sobre direitos humanos e empresas (HOMA – CENTRO DE
DIREITOS HUMANOS E EMPRESAS, 2018, p. 17).
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112 DIREITOS HUMANOS E EMPRESAS: PARADIGMAS ATUAIS
objetivam: que seus aderentes apoiem e respeitem os direitos humanos reconhecidos
internacionalmente e que assegurem não participar de violações desses direitos; que
seus aderentes cumpram seus deveres de apoiar a liberdade de associação, o reconhe-
cimento efetivo do direito à negociação coletiva, a eliminação de todas as formas de
trabalho forçado ou compulsório, a abolição efetiva do trabalho infantil, a eliminação
das discriminações no trabalho; que seus aderentes cumpram os deveres de apoiar
abordagens preventivas sobre degradações ambientais, de desenvolver iniciativas
de responsabilidade ambiental, de incentivar tecnologias ambientalmente amigá-
veis; que seus aderentes cumpram o dever de combater a corrupção em todas as suas
formas (PACTO GLOBAL, s.d.).
Outro daqueles instrumentos é a Agenda 2030, um plano de ação de 2015 a 2030,
para todos e destinado ao desenvolvimento sustentável aliado aos direitos humanos.
Em 2015, os 193 países-membros da ONU aprovaram, por consenso, a Agenda 2030
(UNITED NATIONS, 2015b). Ao adotarem o documento Transforming our world: the
2030 Agenda for Sustainable Development (UNITED NATIONS, 2015a), as nações se
comprometeram a tomar medidas para promoção da Agenda até 2030.
O plano indica 17 ODS — os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável — e 169
metas derivadas deles. Diferentemente dos seus antecessores — os Objetivos de
Desenvolvimento do Milênio, ODMs, projetados para a ação global entre os anos
2000 e 2015 —, os ODS convocam explicitamente todas as empresas a utilizarem suas
criatividades e inovações para contribuírem na resolução dos desafios de desenvol-
vimento sustentável aliada aos direitos humanos (GLOBAL REPORTING INITIATIVE;
UN GLOBAL COMPACT; WORLD BUSINESS COUNCIL FOR SUSTAINABLE DEVELO-
PMENT, s.d., p. 6–9).
Porém, são voluntários e adotados conforme as prioridades dos aderentes. Mesmo
assim, é um plano para todas as instituições e pessoas, e de certo modo, é para todo
o planeta. Aliás, quem integra o Pacto Global também assume a responsabilidade de
contribuir para o alcance dos ODS e das metas derivadas destes.
A Declaração sobre Investimento Internacional e Empresas Multinacionais, da
Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico — OCDE —, é mais um
daqueles instrumentos muito relevantes. Pois as famosas diretrizes da OCDE para
empresas multinacionais fazem parte dessa Declaração aprovada em 1976, diretri-
zes dirigidas pela Organização e países aderentes às empresas multinacionais que
operam dentro ou a partir desses países, fornecendo princípios e padrões voluntá-
rios para condutas empresariais responsáveis.
As diretrizes são compostas por onze capítulos, que fornecem princípios e
padrões voluntários sobre: conceitos e princípios; políticas gerais; divulgação; direi-
tos humanos; relações trabalhistas e industriais; ambiente; combate ao suborno,
solicitação de suborno e extorsão; interesses dos consumidores; ciência e tecnologia;
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DIREITOS HUMANOS E EMPRESAS: PARADIGMAS ATUAIS 113
concorrência; e tributação (ORGANISATION FOR ECONOMIC CO-OPERATION AND
DEVELOPMENT, 2021).
Segundo as diretrizes, as empresas devem estar e se mostrar compromissadas em
respeitar os direitos humanos internacionalmente reconhecidos, buscando evitar ou
mitigar impactos adversos com os quais possam estar envolvidas direta ou indireta-
mente; já os países aderentes à Declaração assumem o compromisso vinculante de
implementá-las em conformidade com a decisão do Conselho da OCDE sobre as Dire-
trizes da OCDE para as Empresas Multinacionais (ORGANISATION FOR ECONOMIC
CO-OPERATION AND DEVELOPMENT, 2021).
A Declaração Tripartida de Princípios sobre Empresas Multinacionais e Política
Social da Organização Internacional do Trabalho (OIT) , originalmente adotada em
1977, é mais um daqueles instrumentos relevantes, pois seus princípios oferecem
orientações que se baseiam nos princípios contidos em convenções e recomendações
internacionais sobre trabalho.
A consagrada Declaração da OIT sobre os Princípios e Direitos Fundamentais no
Trabalho e seu Seguimento, adotada em 1998, também baseia as orientações propos-
tas na Declaração sobre as empresas multinacionais, considerando que esta passou
por algumas alterações. Inclusive, em seu Anexo I é apresentada uma lista de con-
venções e recomendações internacionais do trabalho relevantes para ela, e em seu
Anexo II são referenciados instrumentos operacionais adotados pelo Conselho de
Administração do Bureau Internacional do Trabalho.
As partes interessadas têm a oportunidade de seguir os princípios da Declara-
ção Tripartida como orientações e diretrizes para aperfeiçoar os efeitos nos planos
sociais e laborais das atividades e dos mecanismos de governança das empresas mul-
tinacionais, buscando alcançar o trabalho digno para todas e todos, objetivo univer-
sal consagrado na Agenda 2030 (ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO,
2017).
Mas no cotidiano as obrigações ou responsabilidades de instituições por suas
observâncias aos direitos humanos são consideradas em razão de seus impactos
adversos potenciais ou reais. Esses impactos podem se estender desde instalações
até ao entorno de operações e ao longo de cadeias, podem variar conforme tipos e
setores de empreendimentos e até conforme peculiaridades de negócios. Por isso,
devem considerar seriamente os riscos decorrentes de atuações e vulnerabilidades
existentes, objetivando estabelecer medidas de prevenção e remediação adequadas
e efetivamente capazes de reduzir os riscos aos direitos humanos e aos negócios
(CENTRO DE DIREITOS HUMANOS E EMPRESAS DA FGV, 2017, p. 29).
Com efeito, a devida diligência em direitos humanos — sinteticamente, o processo
pelo qual se identifica, previne, mitiga e esclarece os impactos adversos aos direitos
humanos com os quais a empresa ou instituição está envolvida — tem sido objeto de
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114 DIREITOS HUMANOS E EMPRESAS: PARADIGMAS ATUAIS
maiores análises pelas partes interessadas. O conceito de devida diligência tem sido
bastante difundido entre empresários, advogados, governos, acadêmicos e parte da
sociedade civil. No entanto, devida diligência é normalmente entendida de forma
diversa por advogados de direitos humanos e por empresários.
Pesquisadores têm argumentado que advogados de direitos humanos entendem
devida diligência como um padrão de conduta necessário para cumprir determina-
das obrigações, enquanto os empresários normalmente entendem devida diligência
como um processo para gerenciar riscos de negócios. Para esses pesquisadores, os
UNGPs invocam ambos os entendimentos em diferentes pontos sem reconhecer a
existência de dois conceitos bastante diferentes e sem aparentemente explicar como
os dois conceitos se relacionam entre si no contexto de negócios e direitos humanos
(BONNITCHA; McCORQUODALE, 2017, p. 900–901).
Outros pesquisadores alegam que em razão da função que os UNGPs desempe-
nham, é especialmente importante que as interpretações dos principais estudiosos
reflitam totalmente a letra e o sentido dos POs, principalmente quando se trata do
conceito de devida diligência em direitos humanos em setores corporativos. Segundo
essas alegações, nesse caso é devido interpretar conceitos e contextos jurídicos com
base nos procedimentos do setor privado para assimilar elementos essenciais na
lógica e nas disposições dos POs, evitando inconsistências com o escopo dos Princí-
pios e desconsiderações de como estes estão sendo implementados atualmente pelas
principais partes interessadas (RUGGIE; SHERMAN III, 2017, p. 922).
Em várias partes do mundo estudos têm investigado a devida diligência em direi-
tos humanos — no idioma inglês: human rights due diligence, HRDD —, em muitos
casos buscando mostrar como e quantas empresas estão tentando conduzir HRDDs
que sejam consistentes com os UNGPs. Inclusive há estudo apontando que HRDDs com
finalidades específicas possuem muito mais probabilidade de identificar impactos
adversos aos direitos humanos do que HRDDs com finalidades mais generalizadas
(McCORQUODALE; SMIT; NEELY; BROOKS, 2017, p. 221).
De 2013 a 2017, estudos de dados de companhias listadas no segmento do Novo
Mercado da BM&F BOVESPA concluíram que as empresas, apesar de saberem dos
benefícios que gestões aliadas à proteção aos direitos humanos poderiam trazer, não
atribuíam grandes esforços no estabelecimento de mecanismos de implementação
efetiva de políticas de proteção aos direitos humanos em seus formulários de refe-
rência. As companhias analisadas mostraram comportamentos voláteis e políticas
de direitos humanos fluidas, que mudavam conforme o cenário social, econômico e
político que vivenciavam (GOUVÊA; GÄRNER; GUERRA, 2019, p. 153–155).
Programas de compliance — programas institucionais internos de conformidade
às normas em vigência e de gerenciamento de riscos (SOUZA, 2019, p. 236–237) —
também estão sendo propostos como mecanismos de proteção de direitos humanos
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DIREITOS HUMANOS E EMPRESAS: PARADIGMAS ATUAIS 115
em empresas. O princípio orientador de número 17 costuma ser o fundamento dessas
proposições, ao orientar no sentido de que as empresas devem ter processo(s) contí-
nuo(s) de devida diligência em direitos humanos, entre outras características gerais
e específicas de HRDD (SILVA; MOREIRA, 2020, p. 6).
No tocante a instrumentos mais específicos, a avaliação de impacto em direitos
humanos — human rights impact assessment, HRIA — no campo dos negócios e direi-
tos humanos — business and human rights — tem recebido muita atenção, em parte
devido aos UNGPs, pois estes orientam as empresas a usarem processos de devida
diligência em direitos humanos, embora não especifiquem precisamente como os
processos devem ser.
A fim de preencher essas e outras lacunas, há estudo que propõe cinco critérios
que devem embasar as metodologias usadas para avaliar impactos de atividades
empresariais em direitos humanos, são eles: aplicação de padrões internacionais de
direitos humanos; consideração da extensão completa dos impactos; adoção de pro-
cessos baseados em direitos humanos; garantia de responsabilidade; e abordagem
dos impactos em direitos humanos de acordo com a gravidade (GÖTZMANN, 2017).
Critérios que podem fornecer parâmetros úteis para desenvolvimento, implementa-
ção e avaliação de metodologias e práticas de HRIAs.
Outros trabalhos, atentos aos fatos de que HRIAs são avaliações cada vez mais
utilizadas por empresas, governos e comunidades, propõem uma espécie de HRIA
em colaboração. Esta avaliação é um processo conjunto realizado pela empresa e por
representantes ou pelas pessoas afetadas pelo projeto ou atividades, com a possibi-
lidade de envolvimento do governo anfitrião e de outras partes interessadas, para
investigar, medir e responder a impactos em direitos humanos. Para efetivar tudo
isso, projetam processos formais para viabilizar a tomada de decisão coletiva entre
as partes interessadas participantes, que em conjunto concebem e conduzem o pro-
cesso de HRIA (COLUMBIA CENTER ON SUSTAINABLE INVESTMENT; DANISH
INSTITUTE FOR HUMAN RIGHTS; SCIENCES PO LAW SCHOOL CLINIC, 2017, p. 7).
De todo modo, também estão sendo estudadas as responsabilizações de corpo-
rações e de outros tipos de empreendimentos por violações aos direitos humanos,
assim como dos controladores e prepostos, com especial atenção para a causalidade,
o conhecimento e a proximidade. Nesses termos e sinteticamente, a responsabiliza-
ção deverá comprovar: a contribuição deles para a violação de direitos humanos; o
conhecimento e as condições para que eles soubessem ou se eles assumiram o risco de
contribuir com as violações; e o grau de influência que eles tinham sobre as práticas
ilícitas (WEICHERT, 2008, p. 185–187).
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116 DIREITOS HUMANOS E EMPRESAS: PARADIGMAS ATUAIS
3. Acesso a mecanismos de reparação
Por muitos anos a discussão internacional sobre a temática business and human
rights tem sido dominada pela análise dos obstáculos à responsabilização de empre-
sas e às garantias do direito de reparação às vítimas; no entanto, pouco foi alcançado
em termos de mudanças legais, políticas e práticas efetivas (AMNESTY INTERNA-
TIONAL, 2014, p. 11).
O parâmetro de acesso a mecanismos de remediação/reparação, embora essen-
cial, não tem recebido muita atenção quando comparado aos outros parâmetros da
estrutura (CENTRO DE DIREITOS HUMANOS E EMPRESAS DA FGV, 2017, p. 45).
Mesmo assim, em diversos países estão ocorrendo pesquisas que objetivam apontar
possíveis instrumentos de remediação/reparação de casos de violações aos direitos
humanos que envolvem empresas.
Quanto ao Brasil, análises tanto da doutrina quanto da legislação brasileira estão
sendo feitas com o intuito de identificar instrumentos de reparação aptos a serem
utilizados para responsabilizar empresas por violações de direitos humanos, como
instrumentos: judiciais civis e penais; quasi judiciais, como inquérito civil, termo de
ajustamento de conduta, comissão parlamentar de inquérito; administrativos, como
multa, interdição de estabelecimento e atuação das agências reguladoras; e políticos,
como consultas e audiências públicas (COMISSÃO INTERNACIONAL DE JURISTAS,
2011, p. 2).
Além do acesso a mecanismos de reparação estatais judiciais e extrajudiciais, tor-
naram-se inclusos nas análises os chamados mecanismos não-estatais de denúncia,
sob o crescente entendimento de que o acesso a mecanismos de reparação também é
responsabilidade das empresas, sendo devido que empresas, por si só ou juntamente
com partes interessadas, ofereçam mecanismos de monitoramento e de solução de
controvérsias de impactos e de violações em estabelecimentos e decorrentes das ati-
vidades ou operações em cadeia e ao entorno (CENTRO DE DIREITOS HUMANOS E
EMPRESAS DA FGV, 2017, p. 45).
A responsabilização civil de empresas é um dos temas há muito destacado, seja
pela possibilidade de inexistência de distinções substanciais entre pessoas naturais
e jurídicas; por conta das hipóteses de responsabilidade civil contratual e extracon-
tratual e subjetiva e objetiva; pela responsabilidade do empregador por seus empre-
gados ou prepostos; pela responsabilidade civil do Estado; ou até pelas responsabili-
dades civis por ato ilícito e lícito. Nesse sentido, as modalidades de desconsideração
da personalidade jurídica têm recebido maiores observações.
Em matéria ambiental, as discussões sobre responsabilização pela degradação
ambiental, além de se aterem à responsabilidade objetiva, têm-se concentrado na
teoria do risco integral, abordando atividades potencialmente lesivas e os riscos
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DIREITOS HUMANOS E EMPRESAS: PARADIGMAS ATUAIS 117
criados. Concentram-se igualmente no tratamento das responsabilizações penais e
administrativas em relação às infrações e aos delitos ambientais, com destaque para
a única possibilidade do direito brasileiro em que pessoa jurídica pode ser respon-
sabilizada penalmente, por delito ambiental.
No que se refere à responsabilização administrativa em geral, as principais
discussões se concentram nas espécies de sanções administrativas — advertência,
multa, cassação de licença, declaração de inidoneidade para licitar —, nos termos
de ajustamento de conduta e nos termos de compromisso de cessação (COMISSÃO
INTERNACIONAL DE JURISTAS, 2011, p. 10).
Análises têm incidido até mesmo sobre o direito consumerista, ao abordarem a
responsabilização do fornecedor — nos âmbitos civil, penal e administrativo — pelo
dano causado ao consumidor, a responsabilidade solidária pela reparação dos danos
previstos nas normas de consumo e a extensão da defesa dos direitos dos consumido-
res (COMISSÃO INTERNACIONAL DE JURISTAS, 2011, p. 15).
Questões propriamente processuais se tornaram mais exploradas, estudos pas-
saram a investigar desde o significado do acesso à justiça; delimitações de interesses
transindividuais, difusos, coletivos e individuais; usos de instrumentos processuais;
interesse de agir; prova do dano; inversão do ônus da prova; extraterritorialidade;
litígio estratégico; assistência jurídica; até aspectos deontológicos de sujeitos do
processo.
No geral, pesquisadoras destacam a necessidade de mais pesquisas que possam
tratar das responsabilidades das empresas ao longo de suas cadeias; de possíveis ins-
trumentos de prevenção e de controle de riscos de violações a direitos no entorno de
operações; de desafios e oportunidades de acesso de vítimas à justiça; e de análises
de violações de direitos humanos de forma interseccional, ou seja, baseadas nos dife-
rentes marcadores identitários das pessoas afetadas (BARBIERI; SCABIN; PASQUA;
IZIDORO, 2018, p. 288).
Por fim, ao se observar sistemas econômicos e o mercado global, torna-se dedutí-
vel que os atuais interesses de parcelas cada vez mais expressivas de agentes econô-
micos almejam condutas empresariais responsáveis ou de responsabilidade social
empresarial que vão além do mero cumprimento do dever legal. São provas ou fortes
indícios dessa afirmativa os marcos normativos mencionados neste artigo.
Já não basta mais que agentes apenas cumpram seus deveres de observância dos
direitos humanos, parcelas muito relevantes de agentes econômicos passaram a con-
dicionar seus consumos, investimentos e incentivos à promoção e ao apoio do aper-
feiçoamento constante da eficácia desses direitos.
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118 DIREITOS HUMANOS E EMPRESAS: PARADIGMAS ATUAIS
CONCLUSÃO
Conforme foi observado neste estudo, é possível concluir que existem vários esforços
relevantes para aperfeiçoamento da efetividade dos direitos humanos em intersec-
ções com as atividades empresariais.
Essencialmente, esses esforços podem e costumam ser condensados no dever
do Estado de proteger os direitos humanos contra abusos de terceiros, incluindo os
cometidos por empresas; na responsabilidade das empresas de respeitar os direitos
humanos; e na necessidade de acesso mais eficaz aos remédios contra violações aos
direitos humanos, ou seja, remediar/reparar.
Por isso que diante do atual estágio das discussões na área comumente denomi-
nada como business and human rights, os Parâmetros Proteger, Respeitar e Reparar
das Nações Unidas podem ser utilizados como referenciais para a sistematização
de elementos jurídicos dos temas paradigmas — os temas que se tornaram padrões
nas atuais discussões, estudos e normatizações — da temática direitos humanos e
empresas.
Assim, as descrições desses elementos jurídicos ocorrem conforme a aderência
dos temas aos Parâmetros, que neste artigo foram organizados em capítulos, a saber:
O Dever do Estado de Proteger os Direitos Humanos, A Responsabilidade das Empre-
sas de Respeitar os Direitos Humanos, Acesso a Mecanismos de Reparação.
Recebido: 24/06/2021
Aprovado: 21/07/2021
REVISTA DA DEFENSORIA PÚBLICA DO ESTADO DE SÃO PAULO | São Paulo, v. 3, n. 2, p. 105-126, jul./dez. 2021
DIREITOS HUMANOS E EMPRESAS: PARADIGMAS ATUAIS 119
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126 DIREITOS HUMANOS E EMPRESAS: PARADIGMAS ATUAIS
OS DESAFIOS DO
DIREITO À EDUCAÇÃO
NO BRASIL DURANTE A
PANDEMIA DE COVID-19
E O PAPEL DA INTERNET
COMO FERRAMENTA
NECESSÁRIA DE ACESSO
The challenges of The righT To educaTion in
Brazil during The covid-19 pandemic and The role
of inTerneT as a necessary Tool of access
REVISTA DA DEFENSORIA PÚBLICA DO ESTADO DE SÃO PAULO | São Paulo, v. 3, n. 2, p. 127-146, jul./dez. 2021
OS DESAFIOS DO DIREITO À EDUCAÇÃO NO BRASIL DURANTE A PANDEMIA DE COVID-19 127
E O PAPEL DA INTERNET COMO FERRAMENTA NECESSÁRIA DE ACESSO
ses several barriers. This paper aims to address the difficulties towards the realization of
the fundamental right to education during the COVID-19 pandemic in Brazil between the
years 2020 and 2021, making a comparison with the pre-pandemic scenario. The impacts
on basic education, State’s measures during the pandemic and the role of the internet as
a guarantee tool for securing remote education will be analyzed. In this sense, the gap
between the creation of laws that provide for the availability of digital tools and their
practical effectiveness will be considered. It is concluded by the impact of this scenario
on the deepening of educational inequalities, as well as by the need for the debate concer-
ning the right to internet access as a fundamental right in material sense, following the
material opening clause.
KeywoRds Right to education; Remote learning; Pandemic; Digital Inequalities.
INTRODUÇÃO
REVISTA DA DEFENSORIA PÚBLICA DO ESTADO DE SÃO PAULO | São Paulo, v. 3, n. 2, p. 127-146, jul./dez. 2021
128 OS DESAFIOS DO DIREITO À EDUCAÇÃO NO BRASIL DURANTE A PANDEMIA DE COVID-19
E O PAPEL DA INTERNET COMO FERRAMENTA NECESSÁRIA DE ACESSO
Diante das restrições e das limitações impostas ao direito à educação nos últi-
mos meses, o acesso à internet se tornou imprescindível para a garantia do acesso à
educação remota. Dessa forma, além de analisarmos o panorama geral do direito à
educação no Brasil, será estudada também a interdependência do direito de acesso à
internet e à educação: como, em tempos de pandemia, a proteção de um é fundamen-
tal para a garantia do outro. Em suma, buscaremos compreender o impacto da atual
crise sanitária no direito à educação básica no Brasil, as medidas estatais tomadas
e as normas editadas, bem como a necessidade de garantir o acesso à internet como
ferramenta fundamental para a educação remota, tendo em vista as peculiaridades
e as desigualdades sociais impostas.
REVISTA DA DEFENSORIA PÚBLICA DO ESTADO DE SÃO PAULO | São Paulo, v. 3, n. 2, p. 127-146, jul./dez. 2021
OS DESAFIOS DO DIREITO À EDUCAÇÃO NO BRASIL DURANTE A PANDEMIA DE COVID-19 129
E O PAPEL DA INTERNET COMO FERRAMENTA NECESSÁRIA DE ACESSO
reserva do possível. A título exemplificativo, temos o agravo regimental da 2ª turma
do Supremo, em 2011, estabelecendo que a cláusula da reserva do possível não pode
ser invocada pelo Poder Público com o propósito de fraudar, frustrar e inviabilizar
a implementação de políticas públicas, já definidas pela Constituição (BRASIL, 2011).
Afinal, encontra limitação na garantia do mínimo existencial, que representa, no
ordenamento positivo, uma emanação direta do postulado da dignidade da pessoa
humana.
Sarmento (2016, p. 226), que discorda de tal tese (pelo fato de ver na escassez um
fato concreto, de forma a inexistir intervenção jurídica que consiga reverter tal
quadro), reconhece que o mínimo existencial deve ser tratado como forte priori-
dade em relação às demais despesas estatais. A Constituição cuidou de tratar a esse
respeito no seu art. 212, determinando que uma parcela da receita proveniente de
impostos (18% da União e 25% dos demais entes federativos) seja destinada ao desenvol-
vimento do ensino. Assim, vale destacar que é dever do Estado atuar positivamente
na efetivação deste direito, existindo, portanto, a judicialização do direito, por meio
da responsabilização de autoridades diante de suas omissões da obrigação de fazer.
O ensino a distância (EaD) da educação básica no Brasil é regulado pela Lei n° 9.394/96
(BRASIL, 1996), que oferece diretrizes e bases gerais da educação, e pelo Decreto n°
9.057/2017 (BRASIL, 2017), que regula especificamente disposições quanto à educação
a distância. O art. 32, §4 da Lei n° 9.394/96, estabelece que o ensino fundamental deve
necessariamente ser atendido presencialmente, salvo em situações emergenciais,
como a atual pandemia, nas quais o ensino a distância poderá ser complementado.
Quanto ao ensino médio, o art. 36, §11, estipula a possibilidade de convênio com insti-
tuições a distância com notório reconhecimento, mediante comprovações estabele-
cidas nos incisos do art. 4, §11.
Quanto à carga horária, a Resolução n° 3 de 21 de novembro de 2018 (BRASIL, 2018)
estabelece o limite máximo de 30% da carga horária total para EaD em cursos notur-
nos e 20% em cursos diurnos. Quanto aos cursos superiores, o ensino a distância é
limitado a 40% da carga horária total, independente do turno, de acordo com a Porta-
ria n° 2.117/2019 (BRASIL, 2019).Diante da sua regulamentação estrita, percebe-se que,
ao passo que o método EaD era pouco utilizado pelas instituições de ensino básico,
havia ganhado espaço no ensino superior. Dessa forma, a mudança drástica ocasio-
nada pela pandemia obrigou o ensino básico a se transformar substancialmente,
dando protagonismo às ferramentas digitais que se tornaram essenciais para a con-
tinuidade do ensino.
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130 OS DESAFIOS DO DIREITO À EDUCAÇÃO NO BRASIL DURANTE A PANDEMIA DE COVID-19
E O PAPEL DA INTERNET COMO FERRAMENTA NECESSÁRIA DE ACESSO
Enquanto o ensino a distância possui um formato próprio de ensino-aprendi-
zagem e é considerado uma modalidade do ensino, as aulas remotas não possuem a
mesma qualificação. O ensino remoto é uma adaptação do modelo presencial e tradi-
cional de ensino ao formato virtual, em que as aulas são, muitas vezes, ministradas ao
vivo e não contam com uma plataforma específica em que os cursos são estruturados,
diferentemente do ensino EaD.
Diante da eminente pandemia, viu-se no ensino remoto uma alternativa de mini-
mizar os impactos do fechamento de escolas e garantir a continuação do aprendizado,
de forma a resguardar o direito à educação. Nesse sentido, segundo Patrícia Verônica
de Souza e Ricardo Maurício Soares (2020, p. 460-461), o aprendizado online deve ser
utilizado como ferramenta redutora do impacto imediato da perda do tempo normal
da escola. Para tanto, as escolas devem garantir os direitos e a privacidade da criança
diante do uso de tecnologias.
Vale ressaltar que as dificuldades encontradas pelos alunos para o acesso às aulas
e aos materiais tornam-se um empecilho: resta prejudicado o aprendizado, o qual
deveria ser desenvolvido, em boa parte, durante o período escolar, de forma a concre-
tizar o exercício da cidadania, como versa o artigo 205 da Constituição. Nesse sentido,
o papel da educação de qualidade é também fonte eficaz de garantia da cidadania na
formação dos direitos políticos dos estudantes, como bem destaca Mendes (2020, p.
962).
Outrossim, há ainda a problemática em razão da desigualdade social (assunto este
que, por sua importância, será tratado em um tópico único), motivada pela falta de
infraestrutura digital, que, antes mesmo da pandemia, já era deficitária. Segundo
pesquisa realizada pela TIC Educação em 2019 (CETIC, 2019), 39% dos alunos de escolas
urbanas matriculados na rede pública de ensino não dispunham de computador ou
tablet, e apenas 14% dessas instituições possuíam uma plataforma de ensino virtual
específica. À vista da pandemia, a diferença entre os que detêm recursos tecnológicos
e os que não os detêm torna-se ainda mais grave, uma vez que a educação digital se
tornou um meio essencial de acesso à educação.
Outro ponto importante diz respeito aos efeitos psicológicos gerados pela falta de
contato social com outras crianças e o excessivo uso das telas. Há, nesse sentido, um
forte fator de dispersão e cansaço (VC S/A, 2020), que prejudica o aprendizado das
crianças que possuem condições mínimas de acompanhar as aulas remotas, abrindo
um questionamento quanto à real efetividade do ensino remoto na educação básica.
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OS DESAFIOS DO DIREITO À EDUCAÇÃO NO BRASIL DURANTE A PANDEMIA DE COVID-19 131
E O PAPEL DA INTERNET COMO FERRAMENTA NECESSÁRIA DE ACESSO
e a garantia da efetivação com base em padrões considerados indispensáveis ao
desenvolvimento do ensino e da aprendizagem. O dever de oferecer educação acessí-
vel para toda a comunidade também se encontra na esfera constitucional (DUARTE,
2007, p. 691-713) e internacional (BRASIL, 1992) do Estado. Como bem assinala o pro-
fessor Tavares (2020, p. 962), o Estado possui a obrigação de atuar positivamente, por
meio da criação normativa que se adeque ao exercício deste direito, ou por meio das
garantias institucionais: a criação de estruturas, instituições e recursos humanos.2
No Brasil, de acordo com o art. 211 da carta magna, tal dever se encontra dividido
entre os entes federativos: aos municípios, cabe a gestão dos programas pré-escolares
e do ensino fundamental I; aos governos estaduais, do ensino médio; aos municípios
e aos estados, em conjunto, do ensino fundamental II. À união, cabe o gerenciamento
financeiro e logístico do sistema de ensino.
Devido à calamidade social causada pela propagação da COVID-19, e à necessidade
de isolamento social como forma de conter os índices de propagação e fatalidade, foi
publicada, no dia 6 de fevereiro, a Lei nº 13.979/2020, que dispunha acerca da possi-
bilidade por parte das autoridades de estabelecer medidas restritivas à circulação
de pessoas, e de limitações aos serviços públicos e a atividades essenciais. Quanto ao
fechamento de escolas, coube aos entes subnacionais a decisão de fechamento ou não,
em conformidade com a ADI 6.341 julgada pelo STF em 15 de abril de 2020 (BRASIL,
2020), conferindo competência aos entes federativos na tomada de decisões do com-
bate à COVID-19.
Uma das primeiras normas vinculadas ao combate da pandemia data de 17 de
março de 2020: o Ministério da Educação editou a Portaria nº 343, substituindo o
ensino presencial pelo ensino remoto, estabelecendo o tempo de duração da autori-
zação de acordo com as orientações do Ministério da Saúde e dos órgãos de saúde dos
entes federativos.
Vale destacar que a mera edição de normas não é suficiente para colocar em prá-
tica uma política efetiva de combate ao vírus e preservação da vida da população.
De acordo com dados publicados pelo CEPEDISA e CONECTAS (2020), durante todo
o ano de 2020, foram editadas 3.049 normas relacionadas à COVID-19 no âmbito fede-
rativo. Contudo, o alto número de normas e o conteúdo que elas abarcam acabaram
por enfraquecer a adesão da população e criar resistência por parte dos demais entes
federativos. Segundo os editores da pesquisa, as 3.049 normas coletadas na pesquisa
concernentes à COVID-19 corroboram a ideia de que onde há normas excessivas, há
escassez de direito. Assim, o direito brasileiro e suas decisões judiciais, durante a
crise sanitária, serviram tanto para a proteção dos direitos humanos, como para o
ataque (CEPEDISA; CONECTAS, 2021).
De acordo com estudo realizado pela FGV que traçou e avaliou os programas de
educação pública remota no Brasil durante a pandemia da COVID-19 (BARBERIA;
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132 OS DESAFIOS DO DIREITO À EDUCAÇÃO NO BRASIL DURANTE A PANDEMIA DE COVID-19
E O PAPEL DA INTERNET COMO FERRAMENTA NECESSÁRIA DE ACESSO
CANTARELLI; SCHMALZ, 2021), a má implementação de um sistema efetivo de edu-
cação, em grande parte ocasionado pela falta de coordenação do Governo Federal,
se liga a 1) atrasos significativos na introdução de programas de educação; 2) planos
desenhados com importantes deficiências; 3) tipos de programas introduzidos que
escancaram desigualdades educacionais preexistentes. Embora a educação remota
demande recursos adicionais para desenvolvimento de plataformas, capacitação de
professores e disponibilização de meios de acesso, o Ministério da Educação teve, em
2020, o menor orçamento para a educação básica dos últimos anos (FOLHA DE SÃO
PAULO, 2021).
Com o resultado da má gestão de um sistema EaD durante a pandemia em todas as
esferas nacionais, o estudo (BARBERIA; CANTARELLI; SHCMALZ, 2021) ranqueou,
partindo de uma classificação de 0 a 6, em 2,38 a média estadual dos planos de EaD. Já
nas capitais, a média do EaD foi inferior: 1,6.
A educação surge, segundo a Lei nº 9.394 (BRASIL, 1996), como dever da família e do
Estado. Portanto, da mesma forma que cabe ao Estado instituir e efetivar medidas
públicas que possibilitem o acesso amplo à educação, cabe também às famílias parti-
ciparem ativamente desse processo. No mesmo sentido, de acordo com Melo, Barros e
Melo (2020, p. 44) a Constituição, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional e o
Estatuto da Criança e do Adolescente conferem obrigação às famílias, de forma a obte-
rem ciência do processo pedagógico e participarem das propostas educacionais das
suas crianças. Desta forma, a obrigatoriedade não se vincula somente no plano estatal
e social, mas também no plano familiar, sendo este o núcleo de formação do cidadão.
Diante da pandemia, as falhas na efetivação do ensino remoto se aprofundam,
ligando-se a questões que envolvem infraestrutura, acompanhamento familiar,
ambiente propício para realização de atividades e organização. Todos esses pontos
se interligam intrinsecamente a uma estrutura familiar saudável e se evidenciam
diante das dificuldades encontradas por pais e tutores no acompanhamento dos
filhos. A sobrecarga mental e física durante a pandemia, gerada por jornadas duplas
ou triplas de trabalho, ou pelo iminente desemprego e a perda de renda, bem como
a administração do lar, conjugada a trabalho e cuidados, que muitas vezes se mistu-
ram durante o isolamento social, ampliam os efeitos negativos da ausência do núcleo
familiar no acompanhamento do aprendizado das suas crianças.
Vale destacar que muitas famílias em situação de vulnerabilidade social são
classificadas como analfabetas funcionais. De acordo com dados baseados em testes
cognitivos aplicados em 2.002 pessoas residentes em áreas urbanas e rurais de todo
o país, 29% delas podem ser consideradas analfabetas funcionais, não superando o
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OS DESAFIOS DO DIREITO À EDUCAÇÃO NO BRASIL DURANTE A PANDEMIA DE COVID-19 133
E O PAPEL DA INTERNET COMO FERRAMENTA NECESSÁRIA DE ACESSO
nível básico de proficiência. Apenas 12% da população é considerada “proficiente”
(AGÊNCIA BRASIL, 2019). Dessa forma, esta relevante parcela apresenta dificuldades
de compreender textos e realizar operações matemáticas, por mais que reconheça
números e letras.
Somado a isso, o analfabetismo funcional acaba, em muitos casos, se aliando
ao analfabetismo digital, tornando-se uma missão complexa o incentivo por parte
dessas famílias na educação remota dos seus filhos. Em muitos desses casos, a escola
é uma saída para a melhoria das condições de vida, por meio da entrada do educando,
futuramente, no mercado de trabalho ou no ensino superior.
Deparamo-nos, portanto, com uma via de mão dupla: de um lado, profissionais
que tentam suprir as necessidades das escolas e dos alunos, apesar de dificuldades
logísticas e técnicas; do outro, famílias sem condições e estrutura para auxiliar as
crianças no processo de implementação dessa nova forma de ensino.
Os efeitos dos obstáculos diante das aulas remotas se traduzem em números: segundo
estudo da Pnad Contínua (CNN BRASIL, 2021), a quantidade de alunos do ensino fun-
damental e médio que abandonou as instituições de ensino foi de 1,38 milhão, o que
representa 3,8% do total de estudantes. Essa taxa superou a média nacional de 2% em
2019. Somado a isso, 4,12 milhões de estudantes (11,2%) não receberam quaisquer ati-
vidades escolares durante o período de aulas.
Este panorama, somado à desigualdade digital, impede muitos estudantes de aces-
sarem efetivamente meios de ensino, por falta de recursos tecnológicos. Há aqui um
ferimento ao princípio constitucional da igualdade (GOMES, 2001, p. 86-123): enquanto
estudantes de redes privadas de ensino detêm meios de acesso aos estudos e a uma
rede de apoio da instituição de ensino, o ano letivo de alunos de escolas públicas resta
prejudicado. A ausência de um sistema que garanta a inclusão de alunos de diversas
camadas sociais faz com que muitos estudantes sejam obrigados a abandonar a escola
(QUEIROZ, 2006, p. 38-69), o que corrobora para a constatação de que as dificuldades
reverberaram de maneiras distintas no ensino público e privado.
Um reflexo dessa desigualdade, somado ao temor do contato presencial, em vir-
tude da pandemia, se reverbera no acúmulo de recordes de abstenção do ENEM 2020:
no primeiro e no segundo dia de aplicação da prova, respectivamente, os índices de
abstenção chegaram a 72,2% e 72,6%. Quanto ao ENEM Digital, aplicado pela primeira
vez no mesmo ano, a abstenção alcançou um patamar de 68,1% e 71,3% no primeiro e
no segundo dia, respectivamente. É possível visualizar um aumento substancial em
comparação ao ano anterior, em que os índices alcançaram a marca de 52,5% e 55,3%
(GUIA DO ESTUDANTE, 2021).
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134 OS DESAFIOS DO DIREITO À EDUCAÇÃO NO BRASIL DURANTE A PANDEMIA DE COVID-19
E O PAPEL DA INTERNET COMO FERRAMENTA NECESSÁRIA DE ACESSO
Finalmente, no início de 2021, tornou-se possível vislumbrar um cenário melhor,
diante da aplicação de vacinas, mesmo que a passos lentos. Nesse panorama, muitas
cidades no Brasil retornaram às aulas híbridas – com capacidade reduzida, por meio
de rodízio de dias a serem frequentados – no primeiro trimestre de 2021. Houve forte
pressão por parte de escolas particulares para a volta às aulas. Vale destacar grande
ativismo por parte da Federação Nacional das Escolas Particulares (FENEP), que ela-
borou um plano de retomada das atividades educacionais do segmento educacional
privado.
Contudo, a volta às aulas não foi isenta de críticas. Mesmo diante do início da vaci-
nação de estudantes no segundo semestre de 2021, persiste ainda o risco da rápida
contaminação pelo vírus nas escolas, bem como a dificuldade de cumprimento de
protocolos sanitários por escolas da rede pública. A título de exemplo, em nível esta-
dual, a Secretaria de Estado de Minas disponibilizou, em março de 2021, R$32 milhões
(o que representa a primeira e a segunda parcelas do repasse de manutenção e cus-
teio do ano escolar) para mais de 3.600 escolas da rede pública estadual de ensino, de
forma a custear a compra dos itens do checklist necessários para cumprimento do
protocolo sanitário (SECRETARIA DE ESTADO DE EDUCAÇÃO DE MINAS GERAIS,
2021).
No âmbito da edição de normas visando a reabertura de escolas, vale destacar o PL
5595/20, aprovado pela Câmara dos Deputados e em fase de tramitação no Senado. O
projeto inclui a educação presencial do ensino básico e do ensino superior como ser-
viço essencial, de forma a proporcionar o retorno às aulas presenciais. Entretanto,
é visível, ao se analisar o projeto na íntegra, a ausência de comprometimento por
políticas que visem o investimento na adaptação da infraestrutura educacional. A
justificativa do projeto, de autoria das deputadas Paula Belmonte (CIDADANIA/DF)
e Adriana Ventura (NOVO/SP), baseia-se, de maneira generalista, na necessidade de
garantia de educação a todos, assim como realiza um comparativo com outros setores
de economia abertos, como o comércio, alegando a necessidade prioritária de aber-
tura das escolas.
De tal forma, as autoras do projeto alegam que devemos ter a educação como um
serviço e, portanto, atividade essencial, visto que esta não pode ser negada com base
nos problemas transitórios enfrentados pela sociedade. As deputadas alegam estar-
mos diante de um absurdo, ao presenciarmos a atual gestão de governadores e pre-
feitos, que definem diversas atividades como essenciais e deixam de lado a educação.
Concluem evidenciando que o descaso com a educação deve ser combatido no sentido
de a tratarmos como essencial e prioritária (BRASIL, 2020).
Um retorno presencial que não visa garantir condições mínimas sanitárias, bem
como reconhecer as diferentes necessidades do ensino público e privado, revela-
-se irresponsável e imprudente. A comparação com demais setores da sociedade é
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OS DESAFIOS DO DIREITO À EDUCAÇÃO NO BRASIL DURANTE A PANDEMIA DE COVID-19 135
E O PAPEL DA INTERNET COMO FERRAMENTA NECESSÁRIA DE ACESSO
imprecisa: o que deve ser levado de fato em consideração são as condições estruturais
e logísticas das escolas, para que assim suas portas sejam reabertas. Segundo dados
de agosto de 2020 levantados em relatório conjunto da OMS e da UNICEF (2021), no
Brasil, 39% das escolas não dispõem de estruturas básicas para lavagem de mãos. Já
estudos dos Dados do Censo Escolar de 2018 (BRASIL, 2019) apontam para a falta de
abastecimento público de água em 26% das escolas e quase metade (49%) não possui
saneamento básico. Projetos baseados em tais dados, que traçam estratégias efetivas
de disponibilização de estrutura e equipamentos, são essenciais no debate de volta
às aulas presenciais. Somente assim será possível um retorno seguro e responsável.
Resta-nos evidente, portanto, que as dificuldades impostas pela pandemia impac-
tam a crescente desigualdade na educação brasileira. Em curto prazo, essas conse-
quências agravam, por exemplo, a evasão escolar. Por conseguinte, a longo prazo,
será perpetuador das disparidades sociais e raciais históricas do país.
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136 OS DESAFIOS DO DIREITO À EDUCAÇÃO NO BRASIL DURANTE A PANDEMIA DE COVID-19
E O PAPEL DA INTERNET COMO FERRAMENTA NECESSÁRIA DE ACESSO
online, seja pela facilidade de serviços de entrega a domicílio. É nessa seara que se
torna imprescindível a análise da relação da necessidade do acesso à internet, com a
garantia do direito à educação.
Levantamento realizado pelo Centro Regional de Estudos para Desenvolvimento
da Sociedade da Informação (CETIC, 2019), em 2019 (um ano antes da pandemia de
COVID-19), demonstrou que 46 milhões de brasileiros não possuíam acesso à internet.
Desse total, 45% relataram que a causa se encontrava no preço alto do serviço e para
37%, a causa era a falta de um aparelho para acessá-la. Quando se trata de espaços
geográficos (CETIC, 2019), 75% da zona urbana é usuária de internet, em contraste com
pouco mais da metade da zona rural (51%). Há, nesse cenário, portanto, uma evidente
falta de acessibilidade de internet conforme a região em que se vive.
Nas regiões mais afastadas das grandes capitais, a falta deste acesso está relacio-
nada a valores absurdos cobrados por servidores que chegam até as localidades, tor-
nando, para muitos, a compra desse serviço impraticável. Em muitas regiões, o acesso
se dá via rádio, o que gera uma maior instabilidade em comparação à internet a cabo.
A fibra óptica, uma das melhores opções do mercado atualmente, é um serviço muito
caro para uso tanto nas grandes cidades, quanto nos interiores. É a falta de internet,
assim como sua precariedade, que impedem que muitos estudantes, nesse momento
de isolamento social, consigam acesso ao ensino remoto.
À vista da efetivação do acesso à internet para todos, torna-se imprescindível a
criação de políticas públicas que ofereçam um serviço de internet acessível. Assim,
constrói-se uma via que garanta minimamente a aprendizagem nesse momento
delicado.
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OS DESAFIOS DO DIREITO À EDUCAÇÃO NO BRASIL DURANTE A PANDEMIA DE COVID-19 137
E O PAPEL DA INTERNET COMO FERRAMENTA NECESSÁRIA DE ACESSO
Brasil seja parte”. Existe a possibilidade, desse modo, do reconhecimento de direitos
fundamentais implícitos, ou seja, no sentido material, dado o seu valor e a sua essen-
cialidade para a manutenção de estruturas básicas da sociedade e do Estado, sempre
partindo da perspectiva do respeito ao princípio da dignidade da pessoa humana
(MENDES; BRANCO, 2008, p. 962).
No que concerne à possibilidade de reconhecimento de direitos fundamentais no
sentido material, leciona Sarlet (2009, p. 84) que, ao garantir direitos “decorrentes do
regime e dos princípios”, a Constituição deu um passo além, no sentido de garantir
direitos fundamentais não-escritos, por meio da interpretação.
Nesse ponto, a historicidade – uma das principais características dos direitos fun-
damentais – torna-se evidente, haja vista o reconhecimento, por parte da cláusula de
abertura material, da mutabilidade dos direitos fundamentais de acordo com o con-
texto histórico vivido. À época dos trabalhos da Assembleia Constituinte, entre 1987
e 1988, seria difícil prever o desenvolvimento extraordinário da internet nas décadas
seguintes, assim como sua incorporação cotidiana nas sociedades.
Atualmente, a internet é parte da organização social e do desenvolvimento
humano em países do mundo inteiro: tornou-se instrumento de pesquisas, intera-
ção social, comunicação, acesso à cultura, transações financeiras e trabalho, assim
como de transparência, em que o cidadão se torna sujeito ativo da informação
pública. Nesse sentido, o cidadão transforma-se em protagonista na fiscalização dos
seus representantes políticos. No que se refere à educação, a internet tem se tornado,
em passos largos, um meio fixo de ensino e aprendizado. Cabe destacar também os
diversos serviços disponibilizados online, como bibliotecas digitais, inscrição para
vestibulares e demais concursos públicos, emissão de certidões, internet banking,
agendamento no SAC (Serviço de Atendimento ao Cidadão) e diversas modalidades
de atendimento em órgãos públicos.
Durante a pandemia, a necessidade do uso da internet demonstrou-se evidenciada
no Decreto n° 10.282, de 20 de março de 2020, estabelecendo, entre demais assuntos,
que a telecomunicação e a internet são consideradas serviços de natureza essencial
durante a crise sanitária de COVID-19. Houve uma grande transição do Poder Judi-
ciário aos meios virtuais, o que já havia ocorrido gradativamente durante os últimos
anos, como demonstrado na Lei 11.491/2006, que regulou o processo eletrônico na
esfera trabalhista, penal e civil. Durante a pandemia, a Defensoria Pública disponi-
bilizou meios de comunicação via WhatsApp3, e diversos canais digitais de delegacia
foram abertos4.
Para Symonides (2003, p. 52), é possível vislumbrar a internet como um dos pro-
tagonistas do acesso à educação de uma maneira positiva: a educação a distância e o
aprendizado interativo se tornam, assim, ferramentas que fortalecerão o direito à
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138 OS DESAFIOS DO DIREITO À EDUCAÇÃO NO BRASIL DURANTE A PANDEMIA DE COVID-19
E O PAPEL DA INTERNET COMO FERRAMENTA NECESSÁRIA DE ACESSO
educação, permitindo o acesso a uma educação de qualidade para pessoas em locali-
dades isoladas, criando oportunidade de aprendizado permanente para todos.
Todavia, vale apontar que, visando a efetivação do acesso universal à internet,
é preciso atravessar os desafios da desigualdade e da exclusão digital, que se ligam
a fatores micro e macrossociais, e que distanciam cada vez mais as classes sociais
da igualdade de oportunidades. Como visto, diante da pandemia, esse contraste se
agrava.
É, nesse sentido, que se torna essencial o tratamento do direito de acesso à internet
como um direito fundamental em sentido material, uma vez que este se liga estrei-
tamente à proteção da dignidade humana. Afinal, o direito de acesso à internet se
tornou, principalmente nas últimas décadas, essencial à efetivação do direito à igual-
dade (OLIVEIRA, 2012), bem como a outros direitos basilares para o pleno desenvolvi-
mento humano, como a educação, a cultura e a cidadania. Há, aqui, a necessidade de
levarmos em consideração que a internet se tornou um fenômeno social transforma-
dor, criando um novo espaço social que necessita, portanto, de regulação e proteção
legal.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
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OS DESAFIOS DO DIREITO À EDUCAÇÃO NO BRASIL DURANTE A PANDEMIA DE COVID-19 139
E O PAPEL DA INTERNET COMO FERRAMENTA NECESSÁRIA DE ACESSO
de 2021. Analisamos os possíveis impactos – tanto positivos quanto negativos – gera-
dos pela volta às aulas. Os impactos da pandemia e o mal gerenciamento da crise,
apesar de já agravarem atualmente os índices de evasão escolar e abstenção no
ENEM, tendem a se aprofundar em um momento futuro, refletindo no mercado de
trabalho e no ingresso ao ensino superior. Apesar desse cenário negativo, faz-se cru-
cial a luta pela consolidação do acesso amplo à educação, o que já há tanto se encontra
garantido pela Constituição.
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140 OS DESAFIOS DO DIREITO À EDUCAÇÃO NO BRASIL DURANTE A PANDEMIA DE COVID-19
E O PAPEL DA INTERNET COMO FERRAMENTA NECESSÁRIA DE ACESSO
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144 OS DESAFIOS DO DIREITO À EDUCAÇÃO NO BRASIL DURANTE A PANDEMIA DE COVID-19
E O PAPEL DA INTERNET COMO FERRAMENTA NECESSÁRIA DE ACESSO
NOTAS DE FIm
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OS DESAFIOS DO DIREITO À EDUCAÇÃO NO BRASIL DURANTE A PANDEMIA DE COVID-19 145
E O PAPEL DA INTERNET COMO FERRAMENTA NECESSÁRIA DE ACESSO
Teses Institucionais
Aprovadas no Encontro
Estadual dos Defensores
Públicos do Estado de 2021
Cível
Assunto
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TESES INSTITUCIONAIS APROVADAS NO ENCONTRO ESTADUAL DOS DEFENSORES PÚBLICOS DO ESTADO DE 147
Fundamentação jurídica
Ora, não poderia ser diferente, uma vez que o CDC tem como finalidade dentro do
ordenamento jurídico dar concretude infraconstitucional a mandamentos constitu-
cionais. Com efeito, estabelece o texto da Carta Magna:
Assim sendo, sua observância é cogente não apenas aos particulares, mas também
aos agentes estatais.
Não há que se afastar a aplicação do CDC aos contratos de crédito, visto serem as
instituições financeiras também fornecedoras. Com efeito, a lei é clara ao afirmar em
seu art. 3º, em especial seu §2º, que:
Art. 3º. Fornecedor é toda pessoa física ou jurídica, pública ou privada, nacional ou
estrangeira, bem como os entes despersonalizados, que desenvolvem atividade de
produção, montagem, criação, construção, transformação, importação, exporta-
ção, distribuição ou comercialização de produtos ou prestação de serviços.
(...)
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148 TESES INSTITUCIONAIS APROVADAS NO ENCONTRO ESTADUAL DOS DEFENSORES PÚBLICOS DO ESTADO DE
§2º. Serviço é qualquer atividade fornecida no mercado de consumo, mediante re-
muneração, inclusive as de natureza bancária, financeira, de crédito e securitária,
salvo as decorrentes das relações de caráter trabalhista.
Art. 113. Os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos
do lugar de sua celebração.
Art. 422. Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato,
como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé.
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TESES INSTITUCIONAIS APROVADAS NO ENCONTRO ESTADUAL DOS DEFENSORES PÚBLICOS DO ESTADO DE 149
A renegociação de contrato bancário ou a confissão da dívida não impede a possi-
bilidade de discussão sobre eventuais ilegalidades dos contratos anteriores.
Importante esclarecer que essa revisão em cadeia é necessária para que seja possível
entender exatamente as consequências do pagamento a maior realizado pelo/a con-
sumidor/a em razão das cláusulas abusivas que fixaram taxa de juros anual muito
superior à média praticada pelo mercado no mesmo período.
A importância da análise em cadeia dos contratos fica evidente quando se percebe
que a redução à média de mercado da taxa de juros praticada irá representar anteci-
pação do pagamento do principal.
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150 TESES INSTITUCIONAIS APROVADAS NO ENCONTRO ESTADUAL DOS DEFENSORES PÚBLICOS DO ESTADO DE
Art. 6º. São Direitos básicos do consumidor:
VIII – a facilitação da defesa de seus direitos, inclusive com a inversão do ônus
da prova, a seu favor, no processo civil, quando, a critério do juiz, for verossímil
a alegação ou quando for ele hipossuficiente, segundo as regras ordinárias de
experiências;
V – a modificação das cláusulas contratuais que estabeleçam prestações despro-
porcionais ou sua revisão em razão de fatos supervenientes que tornem excessi-
vamente onerosas;
Art. 51. São nulas de pleno direito, entre outras, as cláusulas contratuais relativas
ao fornecimento de produtos e serviços que:
(...)
IV - estabeleçam obrigações consideradas iníquas, abusivas, que coloquem o con-
sumidor em desvantagem exagerada, ou sejam incompatíveis com a boa-fé ou a
eqüidade;
Assim, é possível a discussão no âmbito do Poder Judiciário da taxa de juros dos con-
tratos de crédito, evitando-se que o consumidor assuma uma contraprestação exces-
sivamente onerosa. Necessário ressaltar que a onerosidade excessiva da taxa de juros
não é analisada pela capacidade de pagamento do devedor, mas por sua discrepância
ante a prática do mercado no momento da celebração do contrato.
O Superior Tribunal de Justiça entende que a fixação da taxa de juros acima da
média do mercado configura a existência de onerosidade para o consumidor. Nesse
sentido, pode-se citar os seguintes julgados:
1. A taxa média de juros do mercado pode ser considerada para fins de apuração
da abusividade da taxa de juros remuneratórios cobrada do consumidor, devendo
ser considerado, que a tal perquirição não é estanque, o que impossibilita a adoção
de critérios genéricos e universais.
2. A revisão dos fundamentos do acórdão estadual no tocante à inexistência de
abusividade na taxa de juros pactuada, exigiria a alteração das premissas fático-
-probatórias estabelecidas pelo acórdão recorrido, com o revolvimento das provas
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TESES INSTITUCIONAIS APROVADAS NO ENCONTRO ESTADUAL DOS DEFENSORES PÚBLICOS DO ESTADO DE 151
carreadas aos autos, o que é vedado em sede de recurso especial, nos termos do
enunciado da Súmula 7 do STJ.
3. Agravo interno não provido.
(STJ – AgInt no Recurso Especial nº 1.846.548/RS – Quarta Turma – Rel. Min. Luis
Felipe Salomão – Data do Julgamento: 04/05/2020)
AGRAVO INTERNO NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DE REVISÃO
DE CONTRATO DE FINANCIAMENTO. JUROS REMUNERATÓRIOS. LIMITAÇÃO.
OMISSÃO INEXISTENTE.
1. Recurso especial interposto contra acórdão publicado na vigência do Código de
Processo Civil de 1973 (Enunciados Administrativos nºs 2 e 3/STJ).
2. Na hipótese, não subsiste a alegada ofensa ao art. 1.022 do CPC/2015, pois o tri-
bunal de origem enfrentou as questões postas, não havendo no aresto recorrido
omissão, contradição ou obscuridade.
3. As instituições financeiras não se sujeitam à limitação dos juros remuneratórios
que foi estipulada pela Lei de Usura (Decreto nº 22.626/1933), em consonância com a
Súmula nº 596/STF, sendo também inaplicável o disposto no art. 591, c/c art. 406, do
Código Civil para esse fim, salvo nas hipóteses previstas em legislação específica.
A redução dos juros dependerá de comprovação da onerosidade excessiva - capaz
de colocar o consumidor em desvantagem exagerada - em cada caso concreto, ten-
do como parâmetro a taxa média de mercado para as operações equivalentes, de
modo que a simples estipulação de juros remuneratórios superiores a 12% (doze
por cento) ao ano, por si só, não indica abusividade, nos termos da Súmula nº 382/
STJ. Precedente.
4. Agravo interno não provido.
(STJ – AgInt no Agravo em Recurso Especial nº 1;015.505/BA – Terceira Turma –
Rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva – Data do Julgamento: 18/02/2019)
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152 TESES INSTITUCIONAIS APROVADAS NO ENCONTRO ESTADUAL DOS DEFENSORES PÚBLICOS DO ESTADO DE
juros remuneratórios por parte do credor por um capital que ainda lhe é disponível
representaria enriquecimento sem causa (quiçá ilícito, a depender do caso).
Se há a redução da taxa de juros contratual para a média de mercado sem que
ocorra alteração no prazo para a quitação do financiamento (manutenção do número
de parcelas originalmente contratado), verifica-se que os pagamentos feitos são foram
em valores muito superiores àqueles que seriam necessários para remunerar corre-
tamente o capital emprestado.
Dessa forma, haverá pagamento a maior toda vez que o valor pago for superior ao
valor da parcela equivalente à média da taxa de juros do mercado. Esse pagamento
a maior, decorrente da boa-fé do/a devedor/a e realizado em razão de estipulação de
cláusula abusiva por parte da instituição financeira, deve ser interpretado como
pagamento antecipado da dívida, ou seja, abatido do valor do principal.
Por sinal, quando da imputação ao pagamento, o Código Civil estabelece que:
Art. 354. Havendo capital e juros, o pagamento imputar-se-á primeiro nos juros
vencidos, e depois no capital, salvo estipulação em contrário, ou se o credor passar
a quitação por conta do capital.
A boa-fé objetiva exige que as partes pautem seu comportamento não só no momento
de celebração do contrato, mas durante sua execução e, em alguns casos, após cum-
pridas as obrigações contratuais.
“Os deveres de conduta são conduzidos pela boa-fé ao negócio jurídico, destinan-
do-se a resguardar o fiel processamento da relação obrigacional em que a presta-
ção integra-se. Eles incidem tanto sobre o devedor como sobre o credor, a partir
de uma ordem de cooperação, proteção e informação, em via de facilitação do
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TESES INSTITUCIONAIS APROVADAS NO ENCONTRO ESTADUAL DOS DEFENSORES PÚBLICOS DO ESTADO DE 153
adimplemento, tutelando-se a dignidade do devedor, o crédito do titular ativo e a
solidariedade entre ambos.” (sem destaque no original)2
“Pela máxima venire contra factum proprium non potest, determinada pessoa não
pode exercer um direito próprio contrariando um comportamento anterior, de-
vendo ser mantida a confiança e o dever de lealdade decorrentes da boa-fé objetiva,
depositada quando da formação do contrato.”4
Art. 884. Aquele que, sem justa causa, se enriquecer à custa de outrem, será obri-
gado a restituir o indevidamente auferido, feita a atualização dos valores mone-
tários.
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154 TESES INSTITUCIONAIS APROVADAS NO ENCONTRO ESTADUAL DOS DEFENSORES PÚBLICOS DO ESTADO DE
(...)
Art. 885. A restituição é devida, não só quando não tenha havido causa que justi-
fique o enriquecimento, mas também se esta deixou de existir.
Art. 886. Não caberá a restituição por enriquecimento, se a lei conferir ao lesado
outros meios para se ressarcir do prejuízo sofrido.
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TESES INSTITUCIONAIS APROVADAS NO ENCONTRO ESTADUAL DOS DEFENSORES PÚBLICOS DO ESTADO DE 155
(considerando a média da taxa de juros praticada pelo mercado); b) a amortização
da parcela do principal referente àquela prestação; e c) para a diferença entre o que
foi pago e o valor efetivamente devido reconhecido judicialmente, uma amortização
antecipada do principal.
Essa mesma lógica deve ser aplicada em cada renegociação posterior.
Uma vez operada a revisão dos juros contratados (flagrantemente abusivos) para se
aplicar os juros praticados pelo mercado ao tempo da contratação para a linha de
crédito, verifica-se que os valores pagos a maior pelo/a consumidor/a serviram, em
um primeiro momento, para amortizar e quitar a dívida.
Desta feita, após a quitação total do valor devido, os valores subsequentes, indevi-
damente cobrados pela instituição financeira, e efetivamente pagos, devem ser res-
tituídos em dobro, com correção monetária e juros legais, por força da expressa
previsão contida no parágrafo único do art. 42 do CDC.
Referida norma, que estabelece o dever de restituição em dobro dos valores pagos
a mais (após a total quitação da dívida principal), frise-se, é devidamente acolhida
pelo mais atualizado entendimento do STJ, consoante abaixo demonstrado.
Cumpre aqui registrar, no que se refere à devolução EM DOBRO dos valores inde-
vidamente cobrados, que o STJ em recente decisão dada em embargos de divergên-
cia em agravo em recurso especial nº 664.888/RS (2015/0035507-2) assentou entendi-
mento que que a devolução – tal como prevista em lei – deva ser em dobro. O julgado
fora assim ementado:
REVISTA DA DEFENSORIA PÚBLICA DO ESTADO DE SÃO PAULO | São Paulo, v. 3, n. 2, p. 147-207, jul./dez. 2021
156 TESES INSTITUCIONAIS APROVADAS NO ENCONTRO ESTADUAL DOS DEFENSORES PÚBLICOS DO ESTADO DE
está dissonante da compreensão aqui fixada. Impõe-se a devolução em dobro do
indébito.
(...)
CONCLUSÃO. Com essas considerações, conhece-se dos Embargos de Divergência
para, no mérito, fixar-se a seguinte tese:
A REPETIÇÃO EM DOBRO, PREVISTA NO PARÁGRAFO ÚNICO DO ART. 42
DO CDC, É CABÍVEL QUANDO A COBRANÇA INDEVIDA CONSUBSTANCIAR
CONDUTA CONTRÁRIA À BOA-FÉ OBJETIVA, OU SEJA, DEVE OCORRER IN-
DEPENDENTEMENTE DA NATUREZA DO ELEMENTO VOLITIVO. Embargos
de Divergência providos
Fundamentação fática
REVISTA DA DEFENSORIA PÚBLICA DO ESTADO DE SÃO PAULO | São Paulo, v. 3, n. 2, p. 147-207, jul./dez. 2021
TESES INSTITUCIONAIS APROVADAS NO ENCONTRO ESTADUAL DOS DEFENSORES PÚBLICOS DO ESTADO DE 157
Em muitos desses casos, ocorre a chamada “troca com troco”, ou seja, o/a usuá-
rio/a ainda possui parcelas a pagar e é procurado/a pela instituição financeira que
oferece não somente a renegociação dessa dívida como também um novo valor a ser
emprestado.
Os/as consumidores/as, com frequência, entendem que esse novo negócio é van-
tajoso simplesmente porque passam a ter mais tempo para quitar a sua dívida. No
entanto, em análise aprofundada, verifica-se que a taxa de juros do contrato finan-
ciado é igualmente abusiva, como já acontecia no primeiro contrato, e o/a consumi-
dor/a acaba sendo mais lesado.
Ao fazer a revisão da cláusula contratual que institui a taxa de juros, o judiciário
recorrentemente aplica a taxa média de juros do mercado e calcula a diferença entre
a prestação efetivamente paga (com taxa de juros abusiva) e a prestação que deveria
ter sido paga (com taxa de juros da média do mercado), somando ao fim a diferença
de todas as parcelas e condenando a instituição financeira a devolver esse montante.
No entanto, entendemos que que a forma correta de analisar esse tipo de prática
é considerar que todo valor pago a maior em cada uma das parcelas deve ser conside-
rado uma antecipação do pagamento da dívida, ocorrendo, por consequência, a sua
amortização, até que, ao fim, haja a quitação.
Havendo a quitação, todo valor pago em momento posterior a ela deve ser devol-
vido em dobro ao/à consumidor/a, com correção monetária e juros legais, como
dispõe o art. 42, parágrafo único, do CDC.
Diante da divergência exposta, faz-se importante a utilização de tese institucional
nos termos aqui propostos para que todos os órgãos e instâncias julgadoras unifor-
mizem o seu entendimento no sentido de considerar todo pagamento a maior como
amortização da dívida, e de condenar a instituição a devolução em dobro, com corre-
ção e juros legais, de todo valor pago após a quitação.
Sugestão de operacionalização
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158 TESES INSTITUCIONAIS APROVADAS NO ENCONTRO ESTADUAL DOS DEFENSORES PÚBLICOS DO ESTADO DE
Com a resposta, é então possível elaborar a peça, com base no modelo já disponi-
bilizado pelo Nudecon, e, caso necessário, pode-se previamente oficiar a instituição
financeira solicitando cópia dos contratos.
Caso os cálculos sejam complexos, na ausência de agente de contabilidade na
Unidade da Defensoria Pública, sugere-se pedir ao juízo a remessa dos autos ao/à
contador/a do juízo, a fim de constatar o saldo credor em favor da Parte Requerente
(pagamento a maior), cabendo à instituição financeira a devolução de tal quantia em
dobro, com correção monetária e juros legais.
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TESES INSTITUCIONAIS APROVADAS NO ENCONTRO ESTADUAL DOS DEFENSORES PÚBLICOS DO ESTADO DE 159
Notas de fim
1 Por óbvio, isso não significa que o valor nominal da taxa de juros constante na cláu-
sula contratual é aquela efetivamente praticada. Há situações em que o Custo Efetivo
Total do contrato não representa a taxa de juros indicada no contrato, o que também
pode configurar uma cláusula abusiva por si só.
2 FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de direito civil: obriga-
ções. 12ª ed. Versão ampliada e atualizada. Salvador: JusPodivm, 2018, p. 145.
3 TARTUCE, Flávio. Direito civil, v.3: teoria geral dos contratos e contratos em espécie.
13ª ed., versão atualizada e ampliada. Rio de Janeiro: Forense, 2018, p. 114.
4 TARTUCE, Flávio. Idem, p. 116.
5 Decisão proferida nos autos do Processo nº 1007603-60.2020.8.26.0664 – disponi-
bilizada no dia 06/06/2021.
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160 TESES INSTITUCIONAIS APROVADAS NO ENCONTRO ESTADUAL DOS DEFENSORES PÚBLICOS DO ESTADO DE
Cível
Assunto
Fundamentação jurídica
A Constituição Federal estabelece em seu artigo 6º que “São direitos sociais a edu-
cação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segu-
rança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos
REVISTA DA DEFENSORIA PÚBLICA DO ESTADO DE SÃO PAULO | São Paulo, v. 3, n. 2, p. 147-207, jul./dez. 2021
TESES INSTITUCIONAIS APROVADAS NO ENCONTRO ESTADUAL DOS DEFENSORES PÚBLICOS DO ESTADO DE 161
desamparados, na forma desta Constituição’’. Os direitos fundamentais são indivisí-
veis e interdependentes; dessa forma, evidencia-se que o direito à moradia está inti-
mamente relacionado à garantia de outros direitos, como a saúde e a educação. Além
disso, a Constituição prevê, em seu artigo 227, que é dever do Estado, da família e da
sociedade garantir os direitos das crianças, com absoluta prioridade.
A situação de déficit habitacional [1] e extrema vulnerabilidade socioeconômica
de parcela significativa da população brasileira deve ser considerada no contexto das
políticas públicas e das relações jurídicas. Esse é o entendimento enfatizado, também,
pelo Estatuto da Criança e do Adolescente: Art. 4º É dever da família, da comunidade,
da sociedade em geral e do poder público assegurar, com absoluta prioridade, a efe-
tivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte,
ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à con-
vivência familiar e comunitária.
Parágrafo único. A garantia de prioridade compreende:
a) primazia de receber proteção e socorro em quaisquer circunstâncias;(...)
Art. 5º Nenhuma criança ou adolescente será objeto de qualquer forma de negli-
gência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão, punido na forma
da lei qualquer atentado, por ação ou omissão, aos seus direitos fundamentais.
Assim, caso haja crianças ou adolescentes residentes em imóveis ameaçados
de despejo ou remoção, configura-se desproporcional e inconstitucional qualquer
medida precipitada em favor do despejo ou remoção, uma vez que, sem um teto e sem
alternativa habitacional, crianças e adolescentes não têm seus direitos e sua digni-
dade respeitados.
Nesse sentido, em 2019 foi publicada a Resolução nº 130, do CMDCA, a qual dispõe
sobre “parâmetros e diretrizes para os procedimentos de atenção a crianças e adoles-
centes durante remoções, envolvendo situações de risco, despejos, reintegrações de
posse e conflitos fundiários realizados na cidade de São Paulo.”. O documento indica
que:
“Art. 9º. A Administração Pública deve produzir protocolo de prevenção, mitiga-
ção de riscos e intervenção em casos de remoções de famílias com crianças e adoles-
centes, no período de 02 (dois) anos, a partir da vigência da presente resolução, por
meio de discussões intersetoriais e participativas’’.
Esta disposição, somada à regra constitucional da prioridade absoluta, torna
obrigatória a criação e implementação de um protocolo específico de atenção aos
direitos de crianças e adolescentes em casos de possibilidade de despejo ou remoção
de imóveis, visando a máxima mitigação da violência e a preservação prioritária de
seus direitos. Ainda, faz valer a Resolução nº 10, de 17 de outubro de 2018, do Conselho
Nacional dos Direitos Humanos, que destaca:
“Art. 14 [...]
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162 TESES INSTITUCIONAIS APROVADAS NO ENCONTRO ESTADUAL DOS DEFENSORES PÚBLICOS DO ESTADO DE
§2º Não deverão ser realizadas remoções que afetem as atividades escolares de
crianças e adolescentes, o acesso à educação e a assistência [...]
Art. 16 O plano de remoção, de responsabilidade do/a juiz/a da causa, deverá
necessariamente observar as seguintes diretrizes:
IV - Verificada a presença de grupos com necessidade de cuidado (como por exem-
plo, crianças, mulheres, idosos, pessoas com deficiência, população LGBTI e imigran-
tes), devem ser tomadas medidas de proteção e acompanhamento específico;
VII - Durante a remoção devem estar presentes representantes dos órgãos locais
de assistência social (CRAS e CREAS), de proteção à criança e ao adolescente (Conse-
lho Tutelar), de controle de zoonoses e demais órgãos responsáveis justificados pelas
peculiaridades da população atingida (...)’.’
O papel da Defensoria Pública na exigência do não deferimento de remoções ou
despejos sem protocolo de proteção dos direitos de crianças e adolescentes é essen-
cial, e evidencia-se em razão da Lei Complementar nº 80/94, que prevê como funções
institucionais da Defensoria Pública o exercício da defesa dos interesses individuais
e coletivos da criança e do adolescente, bem como da Lei Complementar 988/2006 do
Estado de São Paulo, incisos III e VI, alínea ‘c’ do artigo 5º, que atribui à Defensoria
Pública do Estado: “representar em juízo os necessitados, na tutela de seus interesses
individuais ou coletivos, no âmbito civil ou criminal, perante os órgãos jurisdicionais
do Estado e em todas as instâncias, inclusive os Tribunais Superiores”, e “promover
a tutela individual e coletiva dos interesses e direitos da criança e do adolescente”.
REVISTA DA DEFENSORIA PÚBLICA DO ESTADO DE SÃO PAULO | São Paulo, v. 3, n. 2, p. 147-207, jul./dez. 2021
TESES INSTITUCIONAIS APROVADAS NO ENCONTRO ESTADUAL DOS DEFENSORES PÚBLICOS DO ESTADO DE 163
idosos e crianças entre as ações possessórias coletivas de bens imóveis. Esse é mais
um indicativo da baixa permeabilidade do conflito de fundo nas decisões judiciais
bem como da indeterminação das partes coletivas nas ações possessórias.” (INSPER,
Instituto Pólis, 2021, p. 96) [3]
Ainda, a pesquisa destaca que “mesmo nos casos em que foram detectadas men-
ções a crianças e idosos não há necessariamente relação direta com a garantia de
seus direitos.” (Ibidem, p. 108). Por fim, o referido documento constata e avalia o forte
potencial de agravamento de vulnerabilidades que a maneira predominante como
ocorrem as remoções e despejos causa:
“Na medida em que as famílias ocupam o imóvel e quanto maior o tempo de per-
manência, a tendência é de vinculação a políticas públicas ou serviços no próprio
território, como matrícula de crianças e adolescentes em escolas próximas à ocupa-
ção, atendimento nas unidades básicas de saúde, vinculação ao programa de saúde
da família na região, atendimento pelo sistema de assistência social, entre outros. A
determinação judicial da reintegração na posse e a consequente retirada das famílias
do imóvel tem, portanto, um forte potencial de ruptura do atendimento e de agrava-
mento da situação de vulnerabilidade dessas coletividades.” [...] e “Crianças e idosos,
eventualmente mencionados para que haja mais cautela, são citados sem que sejam
mobilizados direitos referentes a códigos ou estatutos específicos desses grupos. Não
raramente, a providência de um cadastramento habitacional e/ou de algum tipo de
solução provisória, bem como o acompanhamento de representantes da Prefeitura
durante a reintegração, são aspectos apontados nas publicações lidas”. (Ibidem, p. 107
e 185)
A realidade, portanto, da operacionalização de despejos e remoções no Brasil é
absolutamente violadora de direitos humanos e das normativas mencionadas ante-
riormente, em especial da regra constitucional da prioridade absoluta e das resolu-
ções que dispõem sobre diretrizes nesse tema. O risco de perda súbita da moradia
com o qual milhares de pessoas de baixa renda convivem transcende a esfera da casa
e, no caso de crianças e adolescentes, têm o potencial de afetar drasticamente várias
dimensões da sua vida, como a educação, a saúde e sua integridade física e mental,
impactando sobremaneira seu desenvolvimento integral.
Sugestão de operacionalização
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164 TESES INSTITUCIONAIS APROVADAS NO ENCONTRO ESTADUAL DOS DEFENSORES PÚBLICOS DO ESTADO DE
protocolo de proteção de direitos da criança e do adolescente. Adicionalmente, suge-
re-se a exigência e participação ampla na construção de protocolo com este objetivo.
RefeRêNCias
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TESES INSTITUCIONAIS APROVADAS NO ENCONTRO ESTADUAL DOS DEFENSORES PÚBLICOS DO ESTADO DE 165
CRimiNal
Autores/as: Bruna Gonçalves da Silva Loureiro, Daniel Mobley Grillo, Leila Rocha
Sponton e Vanessa Alves Vieira
Assunto
Art. 5º, III e IX, da Lei Complementar 988/06 e art. 4º, I e V, da Lei Complementar
80/94,
Art. 5º São atribuições institucionais da Defensoria Pública do Estado, dentre outras:
(...)
III - representar em juízo os necessitados, na tutela de seus interesses individuais ou
coletivos, no âmbito civil ou criminal, perante os órgãos jurisdicionais do Estado e em
todas as instâncias, inclusive os Tribunais Superiores;
IX - assegurar aos necessitados, em processo judicial ou administrativo, o contradi-
tório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes;
Art. 4º São funções institucionais da Defensoria Pública, dentre outras:
I – prestar orientação jurídica e exercer a defesa dos necessitados, em todos os graus;
(...)
V – exercer, mediante o recebimento dos autos com vista, a ampla defesa e o con-
traditório em favor de pessoas naturais e jurídicas, em processos administrativos e
REVISTA DA DEFENSORIA PÚBLICA DO ESTADO DE SÃO PAULO | São Paulo, v. 3, n. 2, p. 147-207, jul./dez. 2021
166 TESES INSTITUCIONAIS APROVADAS NO ENCONTRO ESTADUAL DOS DEFENSORES PÚBLICOS DO ESTADO DE
judiciais, perante todos os órgãos e em todas as instâncias, ordinárias ou extraordi-
nárias, utilizando todas as medidas capazes de propiciar a adequada e efetiva defesa
de seus interesses;
Assim, a presente tese tem por espoco garantir ao(à) acusado(a) pelo delito de tráfico
de drogas o direito ao benefício da colaboração premiada nos casos em que tenha
contribuído voluntariamente para a localização das drogas, ainda que não tenha
delatado supostos coautores ou partícipes, adotando-se uma interpretação sistêmica
do instituto previsto no art. 41 Lei de Drogas, à luz da Lei de Organização Criminosa.
Fundamentação jurídica
O art. 41, da Lei nº 11.343, de 23 de agosto de 2006, conhecida como Lei de Drogas,
estabelece que o(a) indiciado(a) ou acusado(a) que colaborar voluntariamente com a
investigação policial e o processo criminal na identificação dos demais coautores ou
partícipes do crime e na recuperação total ou parcial do produto do crime, no caso de
condenação, terá pena reduzida de um terço a dois terços.
Analisando o texto legal é possível observar a existência de três requisitos: i)
a voluntariedade da colaboração; ii) a recuperação total ou parcial do produto do
crime; e iii) a identificação dos coautores ou partícipes do crime.
Inicialmente, cabe pontuar que a voluntariedade não se confunde com a espon-
taneidade, pois enquanto esta última exige que a atitude colaborativa tenha partido
do íntimo do autor, de sua própria consciência, sem que ele tenha sofrido qualquer
influência externa, a voluntariedade pode ocorrer mesmo que a colaboração do
agente tenha sido motivada por fatores externos.
No que tange aos requisitos relacionados ao resultado da colaboração, consisten-
tes na identificação dos coautores ou partícipes do crime e na recuperação do produto
do crime, faz-se necessário por primeiro delimitar o conceito da expressão “produto
do crime” trazida pelo referido dispositivo legal.
Embora a Lei nº 11.343/2006 não defina o que é “produto do crime”, ela o diferencia
da ideia de “proveito” previsto no art. 60 desse diploma normativo.
Guilherme de Souza Nucci estabelece, especificamente no contexto do art. 41 da
Lei de Drogas, que “produto do crime” é a droga e não o lucro ou vantagem que a sua
inserção no mercado acarretaria: “Menciona a norma do art. 41 o produto do delito e
não o proveito. Logo, é a substância entorpecente, que necessita ser recuperada, total ou
parcialmente [...]” (NUCCI, 2017, p. 979).
No mesmo sentido, Heráclito Antônio Mossin e Júlio César Mossin salientam que
para melhor efeito de ordem analítica, a lei aqui examinada cravou, no conteúdo da
norma incriminadora do art. 33, o termo “droga” a título de elemento normativo do
REVISTA DA DEFENSORIA PÚBLICA DO ESTADO DE SÃO PAULO | São Paulo, v. 3, n. 2, p. 147-207, jul./dez. 2021
TESES INSTITUCIONAIS APROVADAS NO ENCONTRO ESTADUAL DOS DEFENSORES PÚBLICOS DO ESTADO DE 167
tipo. Concluem, tendo isso em mente: “A ‘droga’ é exatamente o que o legislador quer
dizer como sendo ‘produto do crime’; ou seja, a substância entorpecente que é vendida
pelo traficante.” (MOSSIN, H.; MOSSIN, J., 2018, p. 77).
Não se nega a existência de certa divergência sobre o conceito de “produto do
crime” na Lei de Drogas, havendo autores como Andrey Borges de Mendonça e Paulo
Roberto Galvão de Carvalho que consideram que a droga não seria o produto de todos
os delitos previstos na referida Lei, mas apenas daquelas condutas que envolvem
prepará-la, produzi-la e fabricá-la. No caso do tráfico, portanto, o entorpecente seria
objeto material do crime (coisa sobre a qual incide a conduta delitiva) e o dinheiro
recebido em contraprestação, seu produto (MENDONÇA; CARVALHO, 2012, p.
190-191).
Contudo, mesmo sob este olhar, tais autores sustentam que a interpretação do
requisito “produto do crime” deve ser ampliativa, abarcando também as substâncias
qualificadas como ilícitas: “[...] deve-se ampliar a expressão utilizada pela nova Lei
para abarcar não apenas o “produto” do crime, mas também a droga.” Assim, apesar
do termo empregado pelo legislador, deve-se entender que é aplicável a causa de redu-
ção de pena tanto quando o agente auxilia na localização da droga quanto quando
entrega o dinheiro oriundo da venda da droga (MENDONÇA; CARVALHO, 2012, p.
191).
Uma vez compreendido que a expressão “produto do crime”, contida no art. 41 da
Lei nº 11.343/06, se refere à substância entorpecente propriamente dita, quer a con-
duta praticada consista em fabricar, preparar, armazenar, quer se referia aos atos de
comércio, tem-se que o(a) acusado(a) que voluntariamente colaborar para a recupe-
ração total ou parcial da droga fará jus ao redutor de pena.
A grande controvérsia do dispositivo recai sobre a cumulatividade ou alternati-
vidade do requisito relacionado à identificação dos coautores ou partícipes do crime.
Sabe-se que alguns autores entendem que os requisitos para a aplicação da mino-
rante prevista no art. 41 da Lei de Drogas seriam cumulativos. Todavia, mesmo para
os doutrinadores que efetivamente sustentam a cumulatividade dos requisitos, a
própria situação fática deve efetivamente descrever uma possibilidade de incidência
simultânea de tais requisitos.
A impossibilidade de incidência simultânea dos requisitos se verifica, por exem-
plo, quando o delito de tráfico é praticado tão somente por um indivíduo, não havendo
qualquer menção a eventual concurso de agentes ou a pessoas não localizadas que
teriam praticado o crime juntamente com o primeiro. Nessa hipótese, por impossibi-
lidade lógica, afasta-se o requisito consistente na delação de coautores ou partícipes,
sem prejuízo da validade do voluntário e efetivo auxílio dado pelo(a) acusado(a) para
que a autoridade policial possa localizar e apreender entorpecentes.
REVISTA DA DEFENSORIA PÚBLICA DO ESTADO DE SÃO PAULO | São Paulo, v. 3, n. 2, p. 147-207, jul./dez. 2021
168 TESES INSTITUCIONAIS APROVADAS NO ENCONTRO ESTADUAL DOS DEFENSORES PÚBLICOS DO ESTADO DE
Em termos diretos, a cumulatividade dos requisitos a um só tempo (i) feriria o
princípio da proporcionalidade ao não valorar o efetivo auxílio prestado pelo acu-
sado à autoridade policial; (ii) retiraria a efetividade da norma legal quando o trá-
fico não fosse praticado em concurso de pessoas; (iii) colidiria com os objetivos do
legislador ao prever a colaboração como meio de produção de provas e (iv) repre-
sentaria indevida confusão entre os institutos da delação premiada e da colaboração
premiada, na medida em que aquele é espécie deste último, que tem incidência mesmo
que não se delate qualquer comparsa.
Assim, de forma a conferir racionalidade e proporcionalidade à norma contida no
art. 41 da Lei de Drogas, faz-se necessário uma interpretação sistêmica e teleológica
do instituto da colaboração premiada, analisando-o a luz da normativa prevista na
Lei de Organizações Criminosas.
Com efeito a Lei nº 11.343, de 2006, foi uma das primeiras legislações a instituir o
benefício da colaboração premiada, ainda de maneira embrionária. Posteriormente,
outros diplomas legais passaram a prever benefícios semelhantes, tendo sido a Lei
nº 12.850, de 02 de agosto de 2013, que, em seu art. 4º, regulamentou de forma mais
abrangente o instituto, trazendo a alternatividade dos requisitos legais para a sua
aplicação, com o evidente escopo de ampliar suas hipóteses de incidência e facilitar
a obtenção provas.
O artigo 4º da Lei nº 12.850/13 prevê cinco formas alternativas – segundo o caput
do artigo − por meio das quais o acusado poderá colaborar com a investigação e com o
processo: (i) identificar os demais coautores e partícipes da organização criminosa e
as infrações penais por eles praticadas; (ii) revelar a estrutura hierárquica e a divisão
de tarefas da organização criminosa; (iii) prevenir as infrações penais decorrentes
das atividades da organização criminosa; (iv) recuperar total ou parcialmente o pro-
duto ou o proveito das infrações penais praticadas pela organização criminosa e (v)
localizar o paradeiro de eventual vítima com sua integridade física
De acordo com o regime jurídico da Lei de Organizações Criminosas, é suficiente,
portanto, que apenas uma dessas situações esteja preenchida para que o(a) acusado(a)
faça jus ao perdão judicial, à redução ou à substituição da pena, sendo evidente que
aquele que colaborar em maior medida será beneficiado com maiores benefícios.
Com o advento de tal lei, restou pacificado que a delação premiada é apenas uma
das espécies do gênero colaboração premiada. Na primeira, o(a) acusado(a) colabora
com os agentes “delatando” os coautores ou partícipes. Todavia, a colaboração pre-
miada também poderá ocorrer em outras hipóteses em que não haja a identificação
de coautores ou partícipes, como na situação em que o agente não delata ninguém,
mas fornece, por exemplo, todas as informações necessárias para que as autoridades
recuperem o dinheiro desviado com o esquema criminoso.
REVISTA DA DEFENSORIA PÚBLICA DO ESTADO DE SÃO PAULO | São Paulo, v. 3, n. 2, p. 147-207, jul./dez. 2021
TESES INSTITUCIONAIS APROVADAS NO ENCONTRO ESTADUAL DOS DEFENSORES PÚBLICOS DO ESTADO DE 169
Cleber Masson e Vinicius Marçal argumentam ser conveniente a aplicação da sis-
temática de diálogo das fontes inaugurada pela Lei nº 12.850/2013, nos seus artigos 4º a
7º, já que este seria o único diploma normativo a ter definido um procedimento para
corporificar o acordo de colaboração premiada, constituindo, segundo eles, uma
espécie de lei geral procedimental. Seriam, pois, “perfeitamente aplicáveis” na esfera
da Lei de Drogas diversos regramentos da Lei nº 12.850/2013 (MASSON; MARÇAL, p.
165).
Para Claudia Lima Marques, entre a Lei de Drogas e a Lei de Organizações Cri-
minosas há um diálogo de influências recíprocas sistemáticas, existente quando os
conceitos estruturais de uma lei são influenciados por outra. “É a influência do sis-
tema especial no geral e do geral no especial, um diálogo de doublé sens (diálogo de
coordenação e adaptação sistemática)” (MARQUES, 2007, p. 91).
Destarte, adotando-se uma interpretação sistêmica e teleológica do art. 41
da Lei de Drogas, em consonância com a normativa geral posteriormente trazida
pela Lei de Organizações Criminosas, faz-se imprescindível admitir a alternati-
vidade dos requisitos da colaboração premiada, aplicando-se o redutor de pena
quando o auxílio d(a) acusado(a) resultar na recuperação total ou parcial da droga,
independentemente da delação de outros agentes.
Essa tese vem encontrando supedâneo nos Tribunais de Justiça Estaduais e no
Superior Tribunal de Justiça, que inclusive já reconheceu a possibilidade de incidên-
cia cumulativa das minorantes previstas pelos artigos 33, § 4º, e 41, ambos da Lei
de Drogas, conforme se verifica do julgado abaixo colacionado:
Ilustrativamente: (...).
Desse modo, passo ao novo cálculo da dosimetria das penas do paciente. Na pri-
meira fase, mantenho a exasperação em 1/3, ficando as sanções estabelecidas em 6
anos e 8 meses de reclusão, e 666 dias-multa. Na segunda etapa, ausentes circuns-
tâncias agravantes e atenuantes, as penas permanecem inalteradas. Na terceira
REVISTA DA DEFENSORIA PÚBLICA DO ESTADO DE SÃO PAULO | São Paulo, v. 3, n. 2, p. 147-207, jul./dez. 2021
170 TESES INSTITUCIONAIS APROVADAS NO ENCONTRO ESTADUAL DOS DEFENSORES PÚBLICOS DO ESTADO DE
fase, reconhecida a incidência da causa especial de diminuição de pena, prevista
no § 4º do art. 33 da Lei n. 11.343/2006, reduzo as sanções em 2/3, fixando-as em 2
anos, 2 meses e 20 dias de reclusão, além de 222 dias-multa e, incidente também, a
redutora prevista no art. 41, da LAD, mantenho a fração de redução de 1/3, ficando
as reprimendas definitivamente estabilizadas em 1 ano, 5 meses e 23 dias de reclu-
são, e 148 dias-multa. (HC 596.930 – STJ; Leonardo Pires Ferreira)
Fundamentação fática
É comum o(a) Defensor(a) Público(a) que atua na área criminal se deparar com casos
de tráfico de drogas em que o(a) próprio(a) acusado(a) indica o local onde estavam
escondidos os entorpecentes. Embora algumas vezes o(a) réu(ré) negue a colaboração
e até mesmo a autoria delitiva, é certo que há diversas situações em que ele(a) não
apenas admite a prática do tráfico, como também confirma ter indicado a localização
das drogas.
Não se deve confundir essa situação com aquela em que os entorpecentes são
encontrados no interior da residência do(a) acusado(a) após os policiais terem inva-
dido sua casa ilegalmente, isto é, sem autorização, judicial ou do morador, e sem a
existência de fundada suspeita de crime. Aqui estamos diante de evidente caso de
violação de domicilio, o qual acarreta a ilicitude da prova
No entanto, a alegação de ofensa à inviolabilidade do domicílio não obsta a aplica-
ção da tese ora defendida, a qual pode ser pleiteada de forma subsidiária na hipótese
de o juiz entender que a entrada dos policiais na residência foi franqueada e que fora
o(a) acusado(a) quem indicou aos policiais o local onde estavam as drogas.
REVISTA DA DEFENSORIA PÚBLICA DO ESTADO DE SÃO PAULO | São Paulo, v. 3, n. 2, p. 147-207, jul./dez. 2021
TESES INSTITUCIONAIS APROVADAS NO ENCONTRO ESTADUAL DOS DEFENSORES PÚBLICOS DO ESTADO DE 171
A minorante também se mostra cabível em situações outras, tais como aquelas em
que as drogas estão ocultas na via pública, armazenadas em cima do telhado de uma
edificação, em um terreno baldio, no matagal, dentro de bueiro, bastando que tenha
havido o necessário auxílio para a localização dos entorpecentes.
Nesses casos, ainda que o(a) acusado(a) não tenha delatado a participação de
outros agentes no tráfico, a despeito de existirem indícios da traficância em coauto-
ria, deverá ser aplicada a minorante prevista no art. 41 da Lei de Drogas, porquanto
foi a sua colaboração que possibilitou a apreensão dos entorpecentes (produto do
crime) e a obtenção da prova da materialidade do crime, tendo sido, portanto, atin-
gido o objetivo do legislador ao editar a norma em questão.
De fato, não seria proporcional e razoável desprezar o auxílio daquele que, volun-
tariamente e de forma cooperativa, aponta o local exato de armazenamento dos entor-
pecentes, se autoincriminando ou, eventualmente, deslocando sua conduta do crime
de porte de entorpecentes para consumo pessoal (quando abordado inicialmente
com pequena quantidade de entorpecentes, opta por mostrar o restante das drogas
ao agente de segurança pública) para o delito de tráfico de drogas.
Ante o acima exposto, vê-se que a causa de diminuição de pena do art. 41 da Lei de
Drogas deve ser interpretada em conjunto com as demais normas que versam sobre
a colaboração premiada, em especial tomando-se por base o regramento instituído
pela Lei de Organização Criminosa que prevê a alternatividade dos requisitos da
colaboração.
Sugestão de operacionalização
A tese descrita tem por finalidade estabelecer um critério racional para a aplicação da
causa de diminuição de pena prevista no art. 41 da Lei de Drogas, interpretando-se os
requisitos legais do referido dispositivo de forma alternativa, a fim de que o(a) acusa-
do(a) que voluntariamente colaborar para a recuperação total ou parcial das drogas
descritas na denúncia venha a fazer jus ao redutor de pena, mesmo nos casos em que
não haja identificação de outros agentes por não haver coautoria ou participação.
Sugere-se que a tese seja alegada em sede de alegações finais, até mesmo de forma
cumulativa com a aplicação do redutor de pena previsto no art. 33, § 4º, da Lei nº
11.343/06, porquanto as referidas causas de diminuição não se mostram excludentes,
conforme precedente acima transcrito do STJ.
Eventualmente, não sendo a tese acolhida em primeira instância, sugere-se que
seja arguida em razões de apelação, e até mesmo em sede de recurso especial por
negativa de vigência ao art. 41, da Lei nº 11.343/06.
Também não se descarta a impetração de Habeas Corpus, porquanto a não
aplicação do redutor gera patente ilegalidade na fixação da pena, que, caso venha
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a ser redimensionada, poderia permitir uma série de benefícios tanto no processo
de conhecimento quanto no de execução criminal, a exemplo da (i) readequação
do regime inicial de cumprimento de pena, (ii) a substituição da pena privativa de
liberdade por restritiva de direitos, (iii) a detração penal, (iv) a elaboração de novos
cálculos de progressão do regime inicial de cumprimento de pena e (v) o livramento
condicional.
RefeRêNCias
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TESES INSTITUCIONAIS APROVADAS NO ENCONTRO ESTADUAL DOS DEFENSORES PÚBLICOS DO ESTADO DE 173
NUCCI, Guilherme de Souza. Leis Penais e Processuais Penais Comentadas. 10ª ed (Apple
Books). Revista, ampliada e atualizada. Rio de Janeiro: Forense, 2017.
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174 TESES INSTITUCIONAIS APROVADAS NO ENCONTRO ESTADUAL DOS DEFENSORES PÚBLICOS DO ESTADO DE
CRimiNal
Assunto
V – exercer, mediante o recebimento dos autos com vista, a ampla defesa e o con-
traditório em favor de pessoas naturais e jurídicas, em processos administrativos e
judiciais, perante todos os órgãos e em todas as instâncias, ordinárias ou extraordi-
nárias, utilizando todas as medidas capazes de propiciar a adequada e efetiva defesa
de seus interesses;
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TESES INSTITUCIONAIS APROVADAS NO ENCONTRO ESTADUAL DOS DEFENSORES PÚBLICOS DO ESTADO DE 175
III - representar em juízo os necessitados, na tutela de seus interesses individuais ou
coletivos, no âmbito civil ou criminal, perante os órgãos jurisdicionais do Estado e
em todas as instâncias, inclusive os Tribunais Superiores;
Fundamentação jurídica
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176 TESES INSTITUCIONAIS APROVADAS NO ENCONTRO ESTADUAL DOS DEFENSORES PÚBLICOS DO ESTADO DE
O próprio Manual do CNJ sobre atuação nas Audiências de Custódia – diga-se de
passagem destinado a orientar a prática de magistrados e magistradas do país- impõe
que as audiências de custódia sejam um momento “de controle da legalidade das pri-
sões, que demanda apreciação sobre violência/tortura contra a pessoa custodiada
(...) Sendo possível constatar indícios dos elementos essenciais para caracterização
da tortura ou maus-tratos por meio das informações do auto de prisão em flagrante,
do exame de corpo de delito cautelar, das condições de apresentação da pessoa custo-
diada e, principalmente, do relato na audiência de custódia, os deveres que derivam
da proibição absoluta da tortura devem se fazer presentes”
Tal imposição deriva de uma série de tratados de direitos humanos e dispositivos
constitucionais que vedam absolutamente a prática de tortura e maus tratos.
A Constituição Federal proíbe a tortura no art. 5º, inciso III. No mesmo sentido,
vedação à tortura é reconhecida como uma norma de jus cogens, a partir da interpre-
tação do art. 5º da Convenção Americana sobre Direitos Humanos e art. 1º da Conven-
ção Interamericana para Prevenir e Punir a Tortura, art. 7º do Pacto Internacional
de Direitos Civis e Políticos, art. 2º Convenção das Nações Unidas Contra à Tortura,
entre outros tratados de direitos humanos sobre a matéria.
A Convenção Interamericana para Prevenir e Punir a Tortura define a tortura
como: todo ato pelo qual são infligidos intencionalmente a uma pessoa penas ou sofri-
mentos físicos ou mentais, com fins de investigação criminal, como meio de intimi-
dação, como castigo pessoal, como medida preventiva, como pena ou com qualquer
outro fim. Entender-se-á também como tortura a aplicação sobre uma pessoa, de
métodos tendentes a anular a personalidade da vítima, ou a diminuir sua capacidade
física ou mental, embora não causem dor física ou angústia psíquica”(art. 2).
Da mesma forma, a lei brasileira tipifica como crime a tortura no art. 1º da Lei
9.455/1997, constituindo crime de tortura, dentre outras condutas, “submeter alguém,
sob sua guarda, poder ou autoridade, com emprego de violência ou grave ameaça, a
intenso sofrimento físico ou mental, como forma de aplicar castigo pessoal ou medida
de caráter preventivo” (art. 1º, inciso II).
Assim, tanto as normas internacionais quanto as normas nacionais de direitos
humanos deixam claro que a atuação judicial é vinculada e deve observar as obriga-
ções internacionais assumida pelo Estado brasileiro perante os sistemas regional e
global de proteção de direitos.
Além das medidas que devem ser adotadas pelos órgãos judiciais em casos de indí-
cios de tortura e/ou mais tratos, previstas na já citada Resolução 213 do CNJ, é possível
afirmar que a ocorrência de violência policial macula a prisão e todas as evidências
eventualmente coletadas com ela, que venham a servir para subsidiar a justa causa
da ação penal (prova da materialidade e indícios de autoria).
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TESES INSTITUCIONAIS APROVADAS NO ENCONTRO ESTADUAL DOS DEFENSORES PÚBLICOS DO ESTADO DE 177
Com efeito, a violência policial na prisão prejudica o controle epistêmico das
evidências, na medida em que sendo ela própria uma violação a uma regra consti-
tucional (art. 5º, XLIX), a construção da tese acusatória é abalroada pela ilicitude das
circunstâncias de coleta da evidência, ensejando o não preenchimento do standard
de validade da prova.
A violência policial na abordagem é inequívoca alteração na fonte da prova e con-
tamina a credibilidade do elemento submetido na qualidade de prova ou de legitima-
ção da constrição da liberdade.
Por hipótese, imagine-se um auto de prisão em flagrante por tráfico de drogas em
que na audiência de custódia é constatada a violência policial e, posteriormente, em
audiência de instrução, a única prova apresentada acerca da materialidade e autoria
é a oitiva dos agressores.
Neste caso, parece evidente que a fonte da prova foi contaminada pela violação de
regra constitucional que veda o emprego de violência, maculando todos os elementos
e evidências que deste contexto exsurgem.
Ainda nesse norte, essas evidências contaminadas não podem ser utilizadas pelo
órgão acusatório para subsidiar a justa causa da ação penal, visto que não passam
pelo standard de validade da prova.
Com efeito, standard probatório é um pressuposto fundamental para adoção de
uma teoria racionalista da prova (KNIJNIK, Danilo. A prova nos juízos cível, penal e
tributário. Forense, 2007, p. 37).
O padrão de conduta dos agentes de segurança pública nos procedimentos de
abordagem e prisão de cidadãos é um standard de validade para preservação da fonte
de prova que decorre das referidas prisões em flagrante.
E nesse contexto, tem-se que a própria Polícia Militar está atenta ao padrão de
conduta que condiciona a validade da atividade, já que possui Procedimentos Opera-
cionais Padrão (POP), visando justamente assegurar escorreita observância aos seus
deveres institucionais e ao exercício da atividade de policiamento ostensivo dentro
de um Estado que se diz Democrático de Direito.
Nesse sentido, havendo violência policial na abordagem, não bastasse a violação
à regra constitucional, o próprio padrão de conduta definido pelo aparato estatal é
violado, mais uma demonstração da irregularidade que recai sobre a fonte da prova,
que contamina a justa causa da ação penal.
Nesse sentido, já se pronunciou o E. Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, em acór-
dão assim ementado:
“EMENTA: HABEAS CORPUS. PACIENTE PRESO EM FLAGRANTE PELA PRÁ-
TICA EM TESE DO CRIME DE ROUBO. PRISÃO EM FLAGRANTE CONVERTIDA EM
PRISÃO PREVENTIVA. AGRESSÃO POR PARTE DOS POLICIAIS. LAUDO DE EXAME
DE CORPO DE DELITO ATESTANDO AGRESSÕES FÍSICAS EM DESFAVOR DO
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178 TESES INSTITUCIONAIS APROVADAS NO ENCONTRO ESTADUAL DOS DEFENSORES PÚBLICOS DO ESTADO DE
PACIENTE. DECISÃO DESFUNDAMENTADA. CONSTRANGIMENTO ILEGAL CON-
FIGURADO. Consoante se infere dos elementos trazidos aos autos, especialmente
das fotografias carreadas aos autos pelo zeloso Defensor Público, observo que há,
de fato, fortes indícios de existência da apontada ilegalidade na constrição da liber-
dade do paciente. Com efeito, o paciente apresentava lesão em um dos olhos, o que,
como bem pontuado pelo impetrante, é absolutamente incompatível com o relato dos
milicianos no sentido de que custodiado teria se lesionado durante a fuga. Todavia,
foi proferida decisão pelo juízo da Central de Audiências de Custódia, indeferindo
o pleito libertário, transferindo ao paciente o ônus de uma prova que lhe é impossí-
vel de fazer: demonstrar que as lesões sofridas não decorreram de uso legítimo da
força. Com a devida vênia, constatada a ocorrência de lesões no momento da prisão, o
ônus de provar o uso legítimo da força é do Estado, e tal fundamento não se encontra
na decisão atacada que, assim, é desfundamentada. Assim, diante da existência de
indícios da atuação irregular dos militares que realizaram a prisão do paciente, me
parece prudente relaxar a questionada prisão em flagrante, em face da existência de
dúvida quanto ao estado de flagrância, máxime considerando a evidente falta de fun-
damentação a contaminar em especial a decisão que indeferiu a liberdade provisória,
o que torna ilegal o constrangimento. ORDEM CONCEDIDA. (TJRJ – HC n. 0066877-
53.2019.8.19.0000 – 7ª Câmara de Direito Criminal – Rel. Des. Joaquim Domingos de
Almeida Neto)”
Conforme destaca-se do voto do i. Desembargador Relator do precedente acima
mencionado, “quando há suspeitas de que tal violência policial foi empregada, colo-
ca-se em dúvida o contexto em que ocorreu tal prisão”. (fls. 05 do voto)
É oportuno ser destacado que a vinculação da violência policial ao rompimento
do standard de validade probatório em razão da alteração da fonte da prova não se
trata perquirir, parafraseando Agostinho Ramalho Marques Neto (apud Aury Lopes
Jr, 2019), a bondade dos bons ou a maldade dos maus.
Antes, funda-se a discussão em controles epistêmicos e, por consequência, de viés
racional, buscando justamente extirpar-se do processo penal discussões subjetivis-
tas, que invariavelmente escoam nos espaços impróprios do decisionismo, ecoado há
muito por Lenio Streck.
Como explica Aury Lopes Jr:1 “O cuidado é necessário e justificado: quer-se
impedir a manipulação indevida da prova com o propósito de incriminar (ou isen-
tar) alguém de responsabilidade, com vistas a obter a melhor qualidade da decisão
judicial e impedir uma decisão injusta. Mas o fundamento vai além: não se limita a
perquirir a boa ou má-fé dos agentes policiais/estatais que manusearam a prova. Não
se trata nem de presumir a boa-fé, nem a má-fé, mas sim de objetivamente definir um
procedimento que garanta e acredite a prova independente da problemática em torno
do elemento subjetivo do agente.”
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TESES INSTITUCIONAIS APROVADAS NO ENCONTRO ESTADUAL DOS DEFENSORES PÚBLICOS DO ESTADO DE 179
Aliado a todo o exposto, tem-se que recentemente a Corte Interamericana de Direi-
tos Humanos, ao julgar o caso Fernandez Prieto y Tumbeiro vs. Argentina, definiu
que a detenção deve obedecer a fundamentos legais e que, quando é realizada à ausên-
cia de elementos objetivos, a atividade passa a ser desenvolvida pelas agências de
controle estatal de forma discriminatória e arbitrária, orientada por estereótipos e
preconceitos que transbordam à truculência, dando vazão ao sistema penal subter-
râneo, categorizado por Eugenio Raúl Zaffaroni.
Com efeito, na medida em que a atuação policial é vinculada à observância de um
padrão de conduta balizado pelas garantias convencionais, constitucionais e legais do
cidadão em face à força estatal, constituindo-se em standard de validade probatória,
o descumprimento deste, através do exercício irregular do poder punitivo estatal,
rompe a cadeia de custódia probatória e, com ela, a tão aclamada presunção de legiti-
midade da atuação, seja para justificar a prisão, a própria justa causa da ação penal
ou a prova de materialidade e autoria delitiva para fins de condenação.
Desta forma, tem-se que ocorrência de violência policial, por desviar-se da legali-
dade, inflige ao menos um estado de dúvida sobre a dinâmica dos fatos.
A partir disso, ausentes outros meios probatórios totalmente independentes da
fonte contaminada – Fruit of the poisonous tree doctrine - toma-se forma a preponde-
rância do estado de dúvida favor rei, não se podendo considerar como preenchidos
os parâmetros racionais de valoração probatória, o que conduz à nulidade da prisão,
à ausência de justa causa para a ação penal e à insuficiência probatória para fins de
condenação criminal.
Cabe mencionar que tal tese foi recentemente acolhida pela 5ª Câmara de Direito
Criminal do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, em atuação da Defensoria
Pública, com fundamentação nos seguintes termos:
“Como se vê, há relevante dissonância entre as versões fornecidas pelo réu e pelos
milicianos no que concerne à origem dos graves ferimentos: o acusado sustentou vio-
lência policial; os servidores afiançaram que as contusões se deram em virtude de
autolesão e de choque com “palanques” que estavam em meio à mata.
É de se reconhecer, todavia, que os funcionários fardados não elucidaram a con-
tento o infortúnio acometido ao réu - sequer explicaram a altura, composição mate-
rial e disposição dos “palanques”, o preciso modo como teria ocorrido o abalroamento
e em que teriam consistido as autoagressões.
Assim, diante da extensão do prejuízo físico suportado pelo sentenciado - lesões
na testa, no lábio superior, em região supralabial, no tórax, no abdome, na coxa, e
fratura de dente incisivo - e da insatisfatória explanação trazida pelos servidores,
não há como rechaçar peremptoriamente a hipótese trazida por [nome do réu] de
que houve excesso na conduta dos policiais, o que, inexoravelmente, suscita dúvida
quanto à eficácia probatória dos depoimentos por eles prestados.
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180 TESES INSTITUCIONAIS APROVADAS NO ENCONTRO ESTADUAL DOS DEFENSORES PÚBLICOS DO ESTADO DE
Destarte, limitando-se a prova de autoria às declarações dos milicianos, há
inconteste precariedade probante, pelo que o grau de certeza, absolutamente
imprescindível para que se proclame condenação criminal, não se alcança neste
processo.
Em decorrência, meu voto dá provimento ao apelo de [nome do réu] a fim de
absolvê-lo da incursão no artigo 33, caput, c/c o artigo 40, inciso III, ambos da Lei
nº 11.343/06, com fulcro no artigo 386, inciso VII, do Código de Processo Penal.”
(TJ-SP - APR: 15003046020208260571 SP 1500304-60.2020.8.26.0571, Relator:
Geraldo Wohlers, Data de Julgamento: 12/04/2021, 5ª Câmara de Direito Criminal,
Data de Publicação: 12/04/2021)”
Nessas circunstâncias, conclui-se que a violência policial no momento da aborda-
gem macula a prisão, ensejando o seu relaxamento nos moldes do art. 310, I, do CPP.
As evidências eventualmente coletadas sob o contexto de agressão constituem prova
ilícita, implicando na ausência de justa causa para a ação penal (art. 395, III, CPP). Por
fim, durante a instrução processual, ausentes outros meios probatórios absoluta-
mente independentes da fonte contaminada há rompimento do standard probatório,
o que implica na improcedência da ação penal (art. 386, VII, CPP).
Fundamentação fática
São recorrentes as prisões realizadas com o uso da violência policial, o que fica evi-
dente durante a realização das audiências de custódia, seja pelo relato do preso ou
pela sua própria aparência, já que, comumente, as lesões são visíveis.
Não obstante, o Judiciário e o Ministério Público validam e corroboram as pri-
sões, tendo-as como legais, o que, ao fim, acaba por legitimar a violência estatal, já que
tem prevalecido o entendimento de que a violência não gera prejuízos à persecução
penal (tampouco, cabe dizer, reais consequências aos agentes envolvidos, facilmente
acobertados pela tese da legítima defesa).
Tendo em vista esse quadro, cabe à Defensoria Pública chamar tais órgãos à res-
ponsabilidade, para que o controle judicial da legalidade das prisões seja feito de
forma efetiva, e não apenas formal e burocrática, para que as ações ilegais e violentas
do aparato policial ostensivo tenham consequências, reconhecendo-se a ilegalidade
da prisão e das provas que dela decorrerem.
Sugestão de operacionalização
REVISTA DA DEFENSORIA PÚBLICA DO ESTADO DE SÃO PAULO | São Paulo, v. 3, n. 2, p. 147-207, jul./dez. 2021
TESES INSTITUCIONAIS APROVADAS NO ENCONTRO ESTADUAL DOS DEFENSORES PÚBLICOS DO ESTADO DE 181
De início, na audiência de custódia, a ilegalidade da prisão em razão da violência
policial pode ser arguida como fundamento para o relaxamento da prisão, com fun-
damento no art. 310, I, do CPP.
A matéria também pode ser abordada na resposta à acusação, requerendo-se o
trancamento da ação penal por ausência de justa causa (art. 395, III, CPP).
Após a finalização da instrução processual, seja em sede de alegações finais ou
apelação, o contexto de violência policial por ocasião da prisão pode ser arguido como
fundamento para a ilegalidade das provas que decorreram da ação, bem como para
questionar a validade dos depoimentos dos agentes que a tenham praticado. Assim,
pode ser fundamento para o pedido de absolvição por falta de provas (art. 386, VII,
CPP).
Cabível, ainda, tratar da matéria em recurso especial, diante da violação ao art.
157 do Código de Processo Penal, bem como em recurso extraordinário, em razão da
afronta ao art. 5º, incisos III, LVI e LXV, da Constituição Federal.
REVISTA DA DEFENSORIA PÚBLICA DO ESTADO DE SÃO PAULO | São Paulo, v. 3, n. 2, p. 147-207, jul./dez. 2021
182 TESES INSTITUCIONAIS APROVADAS NO ENCONTRO ESTADUAL DOS DEFENSORES PÚBLICOS DO ESTADO DE
Notas de fim
1 Direito processual penal / Aury Lopes Jr. – 16. ed. – São Paulo : Saraiva Educação,
2019. Pág. 502.
REVISTA DA DEFENSORIA PÚBLICA DO ESTADO DE SÃO PAULO | São Paulo, v. 3, n. 2, p. 147-207, jul./dez. 2021
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CRimiNal
Assunto
Fundamentação jurídica
Em todo sistema jurídico, é necessário determinar questões de fato, embora cada sis-
tema jurídico tenha diferentes formas de cumprir essa tarefa (HAACK, 2013: 66). His-
toricamente, mesmo em períodos regidos por distintas racionalidades, os sistemas
jurídicos precisaram estabelecer os “fatos” em disputa de algum modo (GARRAUD,
1913; TARUFFO, 2016: 19 e ss.). Muito possivelmente em razão de estarmos inseridos em
REVISTA DA DEFENSORIA PÚBLICA DO ESTADO DE SÃO PAULO | São Paulo, v. 3, n. 2, p. 147-207, jul./dez. 2021
184 TESES INSTITUCIONAIS APROVADAS NO ENCONTRO ESTADUAL DOS DEFENSORES PÚBLICOS DO ESTADO DE
uma cultura atravessada pela racionalidade empírica, existe relativo consenso, nos
sistemas de justiça ocidentais, acerca da ideia de que em processos judiciais deve-se
estabelecer se fatos aconteceram ou não e que as provas servem precisamente para
resolver esse problema (TARUFFO, 2011: 21).
Superados os sistemas da prova legal e da íntima convicção, estabeleceu-se o sis-
tema do livre convencimento (GOMES FILHO, 1997: 17-40). Não significa, contudo uma
valoração livre e incontrolável das provas pelos juízes (GASCÓN ABELLÁN, 2010:
142; NOBILI, 2001), mas uma garantia epistemológica: isto é, livre de vínculos formais,
mas baseada na lógica da probabilidade e inspirada em critérios científicos e do senso
comum, flexível e adaptável às exigências da verdade empírica (TARUFFO, 2011: 387-
403). Como bem adverte Gustavo Badaró, o livre convencimento deve ser entendido,
atualmente, como garantia inerente ao devido processo legal, embora seu conteúdo
deva ser complementado pela necessária adoção de uma racional e motivada valora-
ção das provas legitimamente produzidas (BADARÓ, 2019: 76).
Nesse contexto, surgiu, nos últimos anos, uma profícua discussão acerca dos stan-
dards de prova em diversos países, de diferentes tradições jurídicas. A formulação
e aplicação de standards de prova em processos judiciais levanta uma quantidade
razoável de divergências teóricas e práticas, dentre as quais pode-se destacar o grau
de objetividade (LAUDAN, 2011-b), a perspectiva (se interna ou externa – HO, 2008),
a variabilidade/flexibilidade (TRENTO, 2015) e a multiplicidade (FERRER BELTRÁN,
2020) dos standards. A despeito das divergências e dificuldades teóricas que perpas-
sam o tema dos standards de prova, há uma ideia comum que está presente, no âmbito
da doutrina e da jurisprudência, em diversos países, de distintas tradições jurídicas:
o nível de suficiência probatória para condenação em processos criminais é o mais
alto possível (NIEVA FENOLL, 2013: 68; CARLIZZI, 2018: 88-99; TARUFFO, 2016: 253;
SOUSA, 2017: 175-180; BOHLANDER, 2012: 209; CHOO, 2018: 44-47; CLERMONT, 2013:
14; MAIER, 2016: 463). A doutrina brasileira compartilha dessa visão (TAVARES;
CASARA, 2020; LOPES JR., 2016: 369- 373; BADARÓ, 2003).
Seguindo essa linha, em um dos principais trabalhos sobre a prova no processo
penal brasileiro, Gustavo Badaró sugere para condenação em processos criminais, a
utilização de um standard de prova que exija o preenchimento dos seguintes requisi-
tos: (i) há elementos de prova que confirmam, com elevadíssima probabilidade, todas
as proposições fáticas que integram a imputação formulada pela acusação; (ii) não há
elementos de prova que tornem viável ter ocorrido fato concreto diverso de qualquer
proposição fática que integre a imputação (2019: 259). Por sua vez, no mais completo
trabalho sobre standards de prova publicado no país, Ravi Peixoto adere à formu-
lação anterior e propõe uma formulação resumida: elevadíssima probabilidade da
hipótese fática acusatória e inexistência de suporte probatório para a hipótese de
inocência do réu (2021: 227).
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TESES INSTITUCIONAIS APROVADAS NO ENCONTRO ESTADUAL DOS DEFENSORES PÚBLICOS DO ESTADO DE 185
Ainda que o reconhecimento de pessoas seja realizado por procedimentos ade-
quados (alinhamento justo) e com o uso de instruções corretas, a fim de diminuir o
risco de um falso reconhecimento, erros ainda são possíveis (CLARK, 2012; CLARK;
GODFREY, 2009). Mesmo que todas as recomendações corroboradas por evidências
científicas sejam seguidas, não há procedimento que possa ser considerado, a priori,
totalmente confiável (NATIONAL RESEARCH COUNCIL, 2014; WELLS et al., 2020;
CECCONELLO; STEIN, 2020). Diante desse cenário, estudiosos do tema sugerem uma
avaliação que não presuma a veracidade das provas dependentes da memória (FER-
NANDES, 2020; MASSENA, 2019) e um abandono da confiança do sistema de justiça
criminal na percepção e na memória humana (BENFORADO, 2016: 259-264). Em tese
dedicada ao tema, Vitor de Paula Ramos, considerando o baixo grau de confiabili-
dade que possui a prova dependente da memória humana, defende uma versão não
presuntivista da prova testemunhal e impossibilidade de que ela, por si só, supere
o standard de prova necessário para condenação em casos criminais (2018: 134-137).
Em trabalho específico sobre o reconhecimento de pessoas, Manuel Miranda
Estrampes destaca que, diante das altas porcentagens de erros, não se pode conside-
rar superado o standard de prova para condenação em processos criminais quando
o reconhecimento de pessoas constitua a única prova de acusação ou a prova mais
relevante. Por esse motivo, destaca o autor, se faz necessário estabelecer uma regra
de corroboração que responda a um modelo de verificação objetiva e extrínseca, no
qual os dados ou elementos de corroboração se obtenham de outras fontes proba-
tórias distintas do próprio reconhecimento de pessoas (MIRANDA ESTRAMPES,
2014: 144). Portanto, ainda que realizado conforme as melhores práticas sugeridas
pelos estudiosos da psicologia do testemunho, levando-se em conta a fragilidade da
memória humana e os diversos fatores que podem contribuir para um falso reco-
nhecimento, não se pode dizer que o reconhecimento de pessoas seja capaz de, iso-
ladamente, alcançar uma confirmação com elevadíssima probabilidade da hipótese
fática acusatória.
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186 TESES INSTITUCIONAIS APROVADAS NO ENCONTRO ESTADUAL DOS DEFENSORES PÚBLICOS DO ESTADO DE
da América verificou que entre 1989 e 2020 o reconhecimento de suspeitos foi uma
prova presente em 767 condenações de inocentes, resultando em 9.385 horas de prisão
injusta para os envolvidos (THE NATIONAL REGISTRY OF EXONERATIONS). Se con-
sideradas apenas as 143 revisões criminais contabilizadas no ano de 2019 nos Esta-
dos Unidos da América, 33% delas tiveram como causa falhas em reconhecimentos de
pessoas (THE NATIONAL REGISTRY OF EXONERATIONS, 2020). No Chile, 30% dos
66 casos de revisão criminal realizada pelo Proyecto Inocentes, criado em 2013 pela
Defensoria Penal Pública, decorreram de identificações pessoais equivocadas (PRO-
YECTO INOCENTES). Já no Brasil, os dados são ainda incipientes. O Innocence Project
Brasil surgiu em 2017 e, apesar dos casos noticiados e dos muitos requerimentos de
ajuda (MARTINS, 2019), até o momento não apresenta dados relativos ao êxito das
revisões criminais e às causas das condenações errôneas. Não obstante, como destaca
Vieira (2019), breve consulta aos jornais é mais do que suficiente para perceber que o
problema dos erros judiciais em decorrência do mau uso de provas dependentes da
memória não é alheio à realidade brasileira.
Dados como esses têm levado a que se classifique o reconhecimento de pessoas
como o procedimento mais comumente atrelado a erros judiciários. Pesquisadores
ao redor do mundo se dedicam a entender e a evitar a ocorrência do falso reconhe-
cimento (WELLS et al., 1998, 2020). Atualmente é sabido que algumas variáveis que
aumentam o risco do falso reconhecimento são dependentes do funcionamento da
memória (e.g., esquecimento) ou de características do crime (e.g., o crime ocorreu em
um local pouco iluminado).
Contudo, outras variáveis que aumentam o risco de falso reconhecimento depen-
dem exclusivamente do sistema de justiça, como a maneira que o suspeito é apresen-
tado para o reconhecimento e as instruções dadas à testemunha para o procedimento
(CECCONELLO; STEIN, 2020; WELLS, 1978).
O trabalho conjunto de pesquisadores e atores do sistema de justiça tem possibi-
litado a reforma dos procedimentos de reconhecimento, buscando obter uma prova
mais confiável a partir da memória da testemunha. Nos Estados Unidos e no Reino
Unido, por exemplo, foram atualizadas legislações que regem o reconhecimento de
suspeitos, a fim de abarcar as recomendações da Psicologia do Testemunho (NATIO-
NAL INSTITUTE OF JUSTICE TECHNICAL WORKING GROUP FOR EYEWITNESS
EVIDENCE, 1999; POLICE EXECUTION RESEARCH FORUM, 2013; VALENTINE;
HUGHES; MUNRO, 2009). Já no Brasil, o procedimento de reconhecimento de pes-
soas segue o artigo 226 do Código de Processo Penal, com redação originária de 1941.
Os procedimentos previstos no art. 226 encontram-se desatualizados em relação às
recomendações científicas, além de não serem seguidos com rigor por atores do sis-
tema de justiça. Diversos casos criminais são julgados sem que sejam observados os
procedimentos previstos no Código de Processo Penal (STEIN; ÁVILA, 2015; MATIDA
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TESES INSTITUCIONAIS APROVADAS NO ENCONTRO ESTADUAL DOS DEFENSORES PÚBLICOS DO ESTADO DE 187
et al., 2020). Em 2015, a Secretaria de Assuntos Legislativos do Ministério da Justiça
publicou importante relatório acerca dos procedimentos para coleta de testemunho
e reconhecimento de pessoas nas cinco regiões do país. A pesquisa, desenvolvida por
Lilian Milnitsky Stein e Gustavo Noronha de Ávila, foi realizada com juízes e apon-
tou que, para a maioria dos participantes, o reconhecimento era muito relevante no
conjunto probatório; e 77% dos participantes indicaram que o reconhecimento de pes-
soas muitas vezes basta para que haja condenação (STEIN; ÁVILA, 2015). O relatório
também aponta que policiais militares costumam realizar procedimentos informais,
com pouco rigor acerca de como apresentar o suspeito ou instruir a testemunha,
sendo tais reconhecimentos posteriormente chancelados pela polícia civil. O rela-
tório também aponta que policiais civis muitas vezes se valem da apresentação de
métodos inadequados para o reconhecimento, como o álbum de suspeitos, no qual são
apresentadas várias pessoas suspeitas ao mesmo tempo para a testemunha. Por fim,
o relatório também constata que mesmo em um cenário em que o reconhecimento é
coletado por meios inadequados, a maioria dos juízes considera o reconhecimento
uma prova importante para a tomada de decisão judicial. Nesse cenário, é possível
afirmar com alguma segurança que o reconhecimento de pessoas no Brasil encon-
tra-se como um obstáculo para uma decisão justa, pois ao mesmo tempo em que é
coletado com pouco rigor, é frequentemente utilizado como fundamento principal
em sentenças condenatórias, o que leva a um alto risco de condenações de inocentes.
A despeito dessas considerações, é possível afirmar que, apesar de ser atrelado
a condenações injustas quando realizado por meio de procedimentos inadequados,
o reconhecimento de pessoas não constitui uma prova absolutamente frágil e envie-
sada (CECCONELLO; STEIN, 2020; WELLS et al., 2020; WIXTED; WELLS, 2017). Até
o momento, em nenhum país o procedimento de reconhecimento foi abolido como
prova. Ao revés, foram investidos esforços para que o reconhecimento seja reali-
zado de forma adequada, a fim de torná-lo um meio de prova justo e confiável. No
limite, pode-se afirmar que o reconhecimento é tão confiável quanto os métodos rea-
lizados para obtê-lo. Portanto, é importante observar movimentos feitos em outros
países com o objetivo de assegurar o direito das pessoas envolvidas em um processo
criminal.
Sugestão de operacionalização
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188 TESES INSTITUCIONAIS APROVADAS NO ENCONTRO ESTADUAL DOS DEFENSORES PÚBLICOS DO ESTADO DE
eXeCUÇÃo CRimiNal
Assunto
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TESES INSTITUCIONAIS APROVADAS NO ENCONTRO ESTADUAL DOS DEFENSORES PÚBLICOS DO ESTADO DE 189
III - representar em juízo os necessitados, na tutela de seus interesses individuais
ou coletivos, no âmbito civil ou criminal, perante os órgãos jurisdicionais do Estado
e em todas as instâncias, inclusive os Tribunais Superiores;
VII - atuar nos estabelecimentos policiais, penais e de internação, inclusive de
adolescentes, visando a assegurar à pessoa, sob quaisquer circunstâncias, o exercício
dos direitos e garantias individuais;
Fundamentação fática/jurídica
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190 TESES INSTITUCIONAIS APROVADAS NO ENCONTRO ESTADUAL DOS DEFENSORES PÚBLICOS DO ESTADO DE
III- 12 (doze) meses para as faltas de natureza grave.
Artigo 90 - o cometimento de falta disciplinar de qualquer natureza, durante o perío-
do de reabilitação, acarreta a imediata interrupção do tempo até então cumprido.
Parágrafo único - com a prática de nova falta disciplinar, exige-se novo tempo para
reabilitação que deve ser somado ao tempo estabelecido para a falta anterior, sendo
detraído do total o período já cumprido.
É importante deixar claro que a regra estabelecida não possui qualquer exceção;
pouco importando se a pessoa executada possui 1 (um) ou 100 (anos) a cumprir.
O que acontecia, em muitos casos, é que a pessoa executada criminalmente, por
conta dessa somatória de faltas disciplinares cumpria a pena sem a possibilidade
apresentar qualquer pedido perante a Autoridade Judiciária pela falta do requisito
subjetivo mínimo previsto em lei, o que fere os princípios da proporcionalidade e até
o mesmo o direito de petição previsto no artigo 5º, XXXIV da Constituição Federal.
Como se sabe, até por reconhecimento do estado inconstitucional de coisas na
ADPF 347, a situação dos estabelecimentos prisionais do país é extremamente degra-
dante. Pessoas são empilhadas e submetidas a um tratamento cruel com a superlota-
ção e toda degradação dela decorrente.
Exige-se da pessoa encarcerada uma série de obrigações quando, na verdade, não
se lhe garante os direitos previstos na mesma Lei de execuções penais.
Não apenas as pessoas presas estão expostas a essas condições degradantes; os (as)
Servidores (as) Agentes Prisionais também estão e possuem como única “proteção”
a “caneta”; criando-se o caldo perfeito para os mais diversos exageros na imposição
das punições disciplinares.
Assim, muitas pessoas presas acabam cometendo, muitas vezes, 2 (duas), 3 (três),
4 (quatro), 5 (cinco), 6 (seis), 10 (dez) ou mais infrações em curto período (as vezes no
mesmo mês), o que ocasiona um período totalmente desproporcional no prazo de rea-
bilitação da “boa” conduta carcerária. Imagine-se a situação da pessoa que cometeu 5
(cinco) faltas disciplinares graves no mesmo mês; nesse caso, descontada a pequena
detração ente uma falta e outra, teria de esperar 5 (cinco) anos para ter o seu compor-
tamento reabilitado por causa de uma semana ruim de sua vida.
Pois bem, sempre houve uma luta incessante para que os dispositivos acima cita-
dos da resolução SAP/SP 144/2010 tivessem sua inconstitucionalidade declarada,
todavia, salvo raríssimas exceções, como o julgado abaixo citado, o entendimento,
via de regra, é por sua legalidade e constitucionalidade:
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TESES INSTITUCIONAIS APROVADAS NO ENCONTRO ESTADUAL DOS DEFENSORES PÚBLICOS DO ESTADO DE 191
de natureza grave, média ou leve, em patamares distintos, conforme o regime pri-
sional em que cumpre pena (art. 72e 73).
A falta de disposição em lei específica, tem-se adotados prazos ali estipulados, mas
apenas como parâmetro. Em tema de reabilitação, no quadro que se apresenta, há
que se levar também em consideração também as particularidades de cada caso
concreto, sem jamais olvidar o princípio da razoabilidade. [...]
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192 TESES INSTITUCIONAIS APROVADAS NO ENCONTRO ESTADUAL DOS DEFENSORES PÚBLICOS DO ESTADO DE
Art. 83 - O juiz poderá conceder livramento condicional ao condenado a pena pri-
vativa de liberdade igual ou superior a 2 (dois) anos, desde que:
[...]
III - comprovado:
a) bom comportamento durante a execução da pena;
b) não cometimento de falta grave nos últimos 12 (doze) meses;
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TESES INSTITUCIONAIS APROVADAS NO ENCONTRO ESTADUAL DOS DEFENSORES PÚBLICOS DO ESTADO DE 193
impostas ao livramento condicional, tal lapso temporal não seja igualmente obser-
vado. 3. Com a publicação da Lei 13.964/2019 – Pacote Anticrime –, o art. 83, III, b, do
Código Penal passou a exigir o não cometimento de falta grave nos últimos 12 meses
para a concessão do livramento condicional. 4. In casu, considerando-se a data da
última falta praticada, no ano de 2016, imperioso notar que há decurso considerável
de tempo a se concluir pela reabilitação do apenado, dada a natureza progressiva
do cumprimento da pena. 5. Agravo regimental improvido. (Superior Tribunal de
Justiça (6. Turma). Agravo Regimental no Habeas Corpus nº 549.649/SC. Agra-
vante: Ministério Público Federal. Agravado: Arvelino Pereira. Relator: Ministro
Nefi Cordeiro. Data de Julgamento: 2 jun. 2020. Data de Publicação: 8 jun. 2020.
Brasília, DF: Superior Tribunal de Justiça, 2020a. Disponível em: https://processo.
stj.jus.br/processo/revista/documento/mediado/?componente=ITA&sequencial=1
948694&num_registro=201903622278&data=20200608&peticao_numero=20200017
8384&formato=PDF. Acesso em: 23 mar. 2021).
Mesmo com a nova disposição legal inserida no artigo 83 do Código Penal, muitos
Juízos de Primeira Instância, com o respaldo dos Tribunais, mormente o Egrégio Tri-
bunal de Justiça do Estado de São Paulo entenderam por não aplicar o entendimento
de reabilitação anual sem a possibilidade de somatória das faltas disciplinares.
Pois bem, a questão restou resolvida no dia 19 de abril de 2021 quando o Congresso
Nacional promoveu a derrubada diversos vetos de dispositivos da Lei 13.964/19 e,
entre estes vetos, o que se destaca para que se propõe foi o dispositivo que introduzia
o parágrafo 7º no artigo 112 da Lei de Execuções Penais (Lei Nacional 7.210/84):
Ao contrário da alteração do artigo 83, III, “b” do Código Penal que, como dito, ainda
suscita questionamentos jurisprudenciais, o dispositivo do § 7º do artigo 112 da Lei
de Execuções Penais, de maneira categórica, estabelece um prazo anual para reabili-
tação das faltas disciplinares para progressão de regime, como regra; com a possibi-
lidade de reabilitação mesmo antes deste período, desde que preenchido o requisito
objetivo.
A inovação legislativa trazida pelo §7º do artigo 112 da Lei de Execuções Penais
além de pacificar a questão do prazo anual para reabilitação e impedir a somató-
ria nefasta desses períodos de reabilitação, trouxe a possibilidade de reabilitação
mesmo antes desse prazo anual. Isso ocorre há o preenchimento do requisito objetivo
antes do período de 1 (um) ano, tendo como data-base o dia do cometimento da falta
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194 TESES INSTITUCIONAIS APROVADAS NO ENCONTRO ESTADUAL DOS DEFENSORES PÚBLICOS DO ESTADO DE
disciplinar grave, nos termos do §6º do artigo 112 da Lei de Execuções Penais, também
introduzido pela Lei 13.964/2019.
Diante dessa breve e suscinta explanação fático/jurídica, a qual é sustentada
por artigo escrito e aceito para submissão pela Revista da Defensoria Pública do Rio
Grande do Sul (documento anexo), propõe-se a presente tese Institucional.
Sugestão de operacionalização
Entende-se que de maneira simultânea e não sucessiva devem ser tomadas as seguin-
tes medidas:
I. Entende-se que deve haver uma comunicação a todos os Membros da Carreira
sobre a questão; sobretudo aos que lidam com temática de execução criminal.
II. Entende-se que deve haver uma comunicação ao Núcleo de Situação Carcerária
e à Assessoria Criminal da DPG para que concentre esforços para atuação em
âmbito administrativo junto ao Governo do Estado, através sua Secretaria de
Administração Penitenciária, a fim de que:
a. Os Boletins Informativos e atestados de conduta já sejam encaminhados pe-
los Estabelecimentos Prisionais ao Judicário observando a nova legislação.
b. Seja formulado pedido para que a SAP encaminhe relação de todas as pes-
soas com “mau” comportamento carcerário por conta da somatória indevi-
da dos prazos de reabilitação ou pessoas presas com o requisito objetivo já
preenchido mesmo sem o prazo anual de reabilitação.
III. Entende-se que deve haver uma comunicação à Assessoria de Convênios da DPG
para que informe a FUNAP, principal conveniada na atuação na área de execu-
ção criminal (dentro dos presídios) sobre a tese Institucional para que sejam
feitos pedidos pelos (as) Advogado (as) daquela Fundação com base na referida
tese, mesmo que não haja o atestado de “boa” conduta carcerária, a fim de que
a questão seja discutida em âmbito judicial para que seja garantido o direito da
pessoa presa.
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TESES INSTITUCIONAIS APROVADAS NO ENCONTRO ESTADUAL DOS DEFENSORES PÚBLICOS DO ESTADO DE 195
eXeCUÇÃo CRimiNal
Assunto
Fundamentação jurídica
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196 TESES INSTITUCIONAIS APROVADAS NO ENCONTRO ESTADUAL DOS DEFENSORES PÚBLICOS DO ESTADO DE
privativa de liberdade será executada quando cumprido “o lapso temporal fixado
em lei, a depender de o crime ter sido praticado antes ou depois da entrada em vigor
do Pacote Anticrime – Lei n° 13.964/2019 (requisito objetivo)1 e “ostentar boa conduta
carcerária, comprovada pelo diretor do estabelecimento”2 (requisito subjetivo).
Depreende-se que o exame criminológico não consta como requisito legal para
fins de execução da pena privativa de liberdade, sendo suficiente a avaliação do dire-
tor do estabelecimento prisional para que o requisito subjetivo seja preenchido.
Caso assim não o fosse, o(a) reeducando(a) estaria exposto a grave risco de cons-
trangimento ilegal, eis que, em razão dos trâmites burocráticos, acaba por ficar
mais tempo do que o previsto em regime mais gravoso ao que legalmente lhe cabia,
como apontado pelo acórdão do Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas nº
2103746- 20.2018.8.26.0000 de relatoria do Desembargador Péricles Piza.
Conforme firmado pelo referido IRDR, a progressão do regime de cumprimento
de pena possui natureza declaratória e não constitutiva. Assim, o marco inicial a ser
considerado do implemento dos requisitos do art.112 da LEP é a data em que o(a) ree-
ducando(a) efetivamente preencheu os requisitos e não a data em que foi colocado no
regime a que cumpre pena.
No mesmo sentido, a Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) no HC
638.702/SP, de relatoria do Ministro Nefi Cordeiro, reafirmou em março de 2021 que,
além de não ser requisito legal para concessão de benefício, o exame criminológico
apenas atesta (como uma segunda opinião) a condição do sujeito.
Por esse motivo, fixou-se na decisão que o exame criminológico não deve ser
considerado para fins do cálculo da data-base para futuras progressões de regime:
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TESES INSTITUCIONAIS APROVADAS NO ENCONTRO ESTADUAL DOS DEFENSORES PÚBLICOS DO ESTADO DE 197
favorável ao apenado, uma vez que antes mesmo da elaboração do laudo técnico,
o requisito subjetivo, ou seja, o bom comportamento, já havia se implementado.
3. Habeas corpus concedido para determinar que o Juízo das Execuções Criminais
estabeleça, como data-base para futura progressão de regime, o dia em que o pa-
ciente efetivamente preencheu os requisitos objetivo e subjetivo, e não a data de
apresentação do exame criminológico favorável ao apenado. (HC 638.702/SP, Rel.
Ministro NEFI CORDEIRO, SEXTA TURMA, julgado em 09/03/2021, DJe 15/03/2021)
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do requisito subjetivo, seguindo orientação fixada quando do julgamento dos
Embargos de Declaração no Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas nº
2103746- 20.2018.8.26.0000
“A decisão que defere a progressão de regime tem natureza declaratória, e não cons-
titutiva. O termo inicial para a progressão de regime deverá ser a data em que preen-
chidos os requisitos objetivo e subjetivo descritos no art. 112 da Lei de Execução Penal,
e não a data em que efetivamente foi deferida a progressão. Importante ressaltar que
referida data deverá ser definida de forma casuística, fixando-se como termo inicial
o momento em que preenchido o último requisito pendente, seja ele o objetivo ou o
subjetivo. Vale dizer, se por último for preenchido o requisito subjetivo, independen-
temente da anterior implementação do requisito objetivo, será aquele o marco para
fixação da data-base para efeito de nova progressão de regime”.
Por sua vez, tão pouco a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça resolve, em
definitivo, essa violação de dignidade e equidade entre os presos, já que as Quinta3
e Sexta4 Turmas apresentam entendimentos opostos, o que novamente leva a uma
loteria do judiciário: caso o reeducando esteja sob a jurisdição de um juízo de execu-
ção criminal que não tenha por entendimento requerer o exame criminológico, ele
ganhou, caso contrário, perdeu; caso seu processo seja julgado na Sexta Turma, ele
ganhou, caso seja a Quinta Turma, ele perdeu. Não há, assim, segurança jurídica.
Portanto, a tese proposta objetiva uma atuação estratégica para que o Tribunal
de Justiça de São Paulo e os juízos das Varas de Execução Criminal do Estado de São
Paulo acolham o entendimento da súmula ora proposta.
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TESES INSTITUCIONAIS APROVADAS NO ENCONTRO ESTADUAL DOS DEFENSORES PÚBLICOS DO ESTADO DE 199
Fundamentação fática e importância da proposta
O Brasil figura no ranking dos cinco países do mundo com a maior população do sis-
tema prisional. Em 2020, segundo a plataforma “Monitor da Violência”, o número de
pessoas presas correspondia a 682,1 mil. Este número expressivo considera as pes-
soas em prisão provisória e nos regimes semiaberto e fechado. Mesmo sem conside-
rar o regime aberto e os que estão em carceragens de delegacias, essa população já
ultrapassa a capacidade de vagas do sistema, resultando em um déficit de 241,6 mil
vagas.
O próprio Supremo Tribunal Federal já reconheceu o contexto de violações sis-
temáticas de direitos humanos ao qual são submetidas as pessoas privadas de liber-
dade, declarando o estado de coisas inconstitucional sobre o sistema carcerário bra-
sileiro na ADPF 347.
A superlotação, as péssimas condições estruturais, a falta de acesso à higiene e à
saúde foram recentemente agravadas pela pandemia da covid-19. O Conselho Nacio-
nal de Justiça (CNJ) tem monitorado os impactos da doença sobre pessoas privadas de
liberdade e agentes penitenciários publicando quinzenalmente boletins com registro
de contágios e óbitos. A despeito dos indícios de subnotificação, vale ressaltar que em
junho de 2021 o número de casos confirmados totalizou 81.214 pessoas contaminadas.
Diante desse cenário de risco à vida e à saúde das pessoas sob custódia do Estado,
faz-se necessário combater imposições que obstaculizem direitos subjetivos, como a
progressão de regime e outros benefícios da execução penal.
O poder Judiciário, caso não observe a legalidade, pode contribuir para a super-
lotação e encarceramento em massa. Em concreto, o entendimento de alguns magis-
trados de que a data-base para a futura progressão de regime seria aquela constante
no laudo do exame criminológico, prolonga de forma ilegal e excessiva a estadia da
pessoa em privação de liberdade nestes estabelecimentos precários e em condições
inaceitáveis.
Toda a problemática aqui enfrentada poderia ser sanada com o simples cumpri-
mento dos ditames circunscritos na lei, a qual limita a execução progressiva da pena
a dois requisitos obrigatórios: lapso temporal e boa conduta carcerária, atestada pelo
diretor da unidade prisional.
Sugestão de operacionalização
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200 TESES INSTITUCIONAIS APROVADAS NO ENCONTRO ESTADUAL DOS DEFENSORES PÚBLICOS DO ESTADO DE
Por isso, recomenda-se a realização de requerimentos nas VECs e via impetração
de habeas corpus ou agravo de execução no Tribunal de Justiça e recursos e ações
constitucionais nos Tribunais Superiores para que os cálculos sejam realizados a
partir da data em que efetivamente tiverem sido cumpridos os requisitos objetivo e
subjetivo previstos na LEP.
Notadamente, adotar o lapso temporal do exame criminológico resulta na perpe-
tuação da estadia do(a) reeducando(a) no presídio e ofende os princípios da dignidade
da pessoa humana e da humanidade (art.1°, III, e art. 5°, XLVII, CRFB). Assim, recomen-
da-se o acionamento de Tribunais Superiores, com viável possibilidade de produção
de súmula de entendimento dominante em apoio a tese proposta.
RefeRêNCias
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TESES INSTITUCIONAIS APROVADAS NO ENCONTRO ESTADUAL DOS DEFENSORES PÚBLICOS DO ESTADO DE 201
Notas de fim
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202 TESES INSTITUCIONAIS APROVADAS NO ENCONTRO ESTADUAL DOS DEFENSORES PÚBLICOS DO ESTADO DE
VII - 60% (sessenta por cento) da pena, se o apenado for reincidente na prática de crime
hediondo ou equiparado; (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019) (Vigência)
VIII - 70% (setenta por cento) da pena, se o apenado for reincidente em crime hediondo
ou equiparado com resultado morte, vedado o livramento condicional. (Incluído pela
Lei nº 13.964, de 2019) (Vigência)
2 A Lei n° 13.964/2019 manteve o mesmo requisito subjetivo ao dar nova redação ao §
1° do artigo 112, da LEP, mantendo a essência do caput da redação anterior (“ostentar
bom comportamento carcerário, comprovado pelo diretor do estabelecimento”).
3 AGRAVO REGIMENTAL NO HABEAS CORPUS. IMPUGNAÇÃO DEFENSIVA. OFENSA
AO PRINCÍPIO DA COLEGIALIDADE. INOCORRÊNCIA. PREVISÃO DE JULGA-
MENTO EM DECISÃO MONOCRÁTICA NO ORDENAMENTO JURÍDICO. PROGRES-
SÃO DE REGIME.
DECISÃO DE NATUREZA DECLARATÓRIA. ENTENDIMENTO DO SUPREMO TRIBU-
NAL FEDERAL. ORIENTAÇÃO DESTA CORTE SUPERIOR. DATA-BASE PARA FUTU-
RAS PROGRESSÕES. DATA NA QUAL IMPLEMENTADOS OS REQUISITOS OBJETIVO
E SUBJETIVO DO ART. 112 DA LEI DE EXECUÇÃO PENAL. ANÁLISE CASUÍSTICA
PARA DEFINIR O MOMENTO EM QUE PREENCHIDO O ÚLTIMO REQUISITO PEN-
DENTE. AGRAVO IMPROVIDO.
1. Segundo reiterada manifestação desta Corte, não viola o princípio da colegialidade
a decisão monocrática do Relator calcada em jurisprudência dominante do Superior
Tribunal de Justiça, tendo em vista a possibilidade de submissão do julgado ao exame
do Órgão Colegiado, mediante a interposição de agravo regimental. [..] (AgRg no HC
650.370/RS, Rel. Ministra LAURITA VAZ, SEXTA TURMA, julgado em 13/04/2021, DJe
29/04/2021)
2. V- A data-base para verificação da implementação dos requisitos objetivo e subjetivo,
previstos no art. 112 da Lei n. 7.210/1984, deverá ser definida de forma casuística, fixan-
do-se como termo inicial o momento em que preenchido o último requisito pendente,
seja ele o objetivo ou o subjetivo. VI - In casu, ante a determinação de realização de
exame criminológico, o requisito subjetivo somente restou implementado no momento
da realização do exame favorável ao paciente, razão pela qual deve ser considerado
como data-base para nova progressão, mesmo estando o requisito objetivo preenchido
em momento anterior. Habeas corpus não conhecido. (HC 414.156/SP, Rel. Ministro
FELIX FISCHER, Quinta Turma, julgado em 21/11/2017, DJe 29/11/2017).
3. Na hipótese vertente, o decisum agravado, em consonância com tal diretriz juris-
prudencial, considerou como data-base para a nova progressão de regime prisional o
dia em que foi realizado o exame criminológico, e se implementou, em consequência, o
último requisito (subjetivo)
4. Agravo improvido.
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TESES INSTITUCIONAIS APROVADAS NO ENCONTRO ESTADUAL DOS DEFENSORES PÚBLICOS DO ESTADO DE 203
(AgRg no HC 662.160/SP, Rel. Ministro REYNALDO SOARES DA FONSECA, QUINTA
TURMA, julgado em 11/05/2021, DJe 14/05/2021)
4 “HABEAS CORPUS. EXECUÇÃO PENAL. PROGRESSÃO DE REGIME. DATA-BASE
PARA FUTURAS PROGRESSÕES. DATA NA QUAL EFETIVAMENTE IMPLEMEN-
TADOS OS REQUISITOS OBJETIVO E SUBJETIVO DO ART. 112 DA LEI DE EXECU-
ÇÃO PENAL. OCORRÊNCIA DE CONSTRANGIMENTO ILEGAL. HABEAS CORPUS
CONCEDIDO.
1. Desde a edição da Lei 10.792/03, a realização de exame criminológico deixou de cons-
tar do rol dos requisitos legais para a progressão de regime, não podendo a data-base
para a concessão do benefício ficar atrelada à emissão de laudo pericial favorável ao
reeducando, sob pena de se criar uma exigência não prevista em lei, em manifesta
afronta ao princípio da reserva legal.
2. Possuindo o reeducando bom comportamento carcerário, deve-se considerar
como data-base para a progressão de regime o dia em que efetivamente preenchido
o requisito objetivo e não a data de conclusão do exame criminológico favorável ao
apenado, uma vez que antes mesmo da elaboração do laudo técnico, o requisito sub-
jetivo, ou seja, o bom comportamento, já havia se implementado.
3. Habeas corpus concedido para para determinar que o Juízo das Execuções Crimi-
nais estabeleça, como data-base para futura progressão de regime, o dia em que o
paciente efetivamente preencheu os requisitos objetivo e subjetivo, e não a data de
apresentação do exame criminológico favorável ao apenado.
(HC 638.702/SP, Rel. Ministro NEFI CORDEIRO, SEXTA TURMA, julgado em
09/03/2021, DJe 15/03/2021)”
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204 TESES INSTITUCIONAIS APROVADAS NO ENCONTRO ESTADUAL DOS DEFENSORES PÚBLICOS DO ESTADO DE
iNfÂNCia e JUveNtUde
Assunto
Fundamentação jurídica
De modo algum a inimputabilidade penal etária aos dezoito anos é óbice para que se
reconheça, também no Justiça Juvenil, situações de inimputabilidade por sofrimento
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psíquico (ou deficiência psicossocial), quando o adolescente for pessoa nesta condi-
ção, no que seria enquadrável, segundo a legislação vigente, no art. 26, CP.
A despeito de não haver, até o momento, uma regulamentação normativa espe-
cífica para o tratamento deste tipo de situação, encontram-se reflexões relevantes
na doutrina especializada no sentido de, no caso de adolescente selecionado/a pela
Justiça Juvenil com deficiência psicossocial, dever ser extinta a medida socioeduca-
tiva aplicada, sobretudo por ser este adolescente titular de mais direitos e garantias
em função de sua maior vulnerabilidade [1]. Neste norte, é evidente a necessidade
de cumprimento rigoroso da Lei Antimanicomial e de toda a legislação protetiva de
pessoas com deficiência (o que já se defende para o sistema penal comum) também no
âmbito juvenil, respeitando-se todas as garantias que essa condição atravessada por
múltiplos estigmas e opressões demanda [2].
Além disso, é importante trazer recente julgado do STJ que enfrentou exatamente
este tipo de situação. No HC nº 564.183/MS, julgado em 2020 pela 5ª Turma, Relatoria
do Min. Felix Fischer, em função do quadro de deficiência psicossocial verificado em
adolescente em cumprimento de internação, converteu-se a medida em liberdade
assistida, justificando-se que o paciente, tendo em vista sua condição, não poderia
cumprir a medida socioeducativa imposta, já que lhe faltava o “discernimento neces-
sário” para a compreensão do objeto tanto do ato ilícito como da sanção aplicada.
Por fim, importante ressaltar que se trata de imperativo de proporcionalidade:
por exemplo, não apenas deve-se atentar que uma mesma deficiência psicossocial
pode acometer adultos e adolescentes de forma diferenciada, como podem ocorrer
consequências peculiares em adolescentes em razão de condições de desenvolvi-
mento e amadurecimento próprias desse período da vida. Nesta situação individual
e social extremamente sensível, não há outra alternativa, condizente ao sistema legal
e constitucional brasileiro, que não a de primar pela mínima intervenção e pelas
demais garantias de que é titular o/a adolescente, sob pena de retrocesso a ideias
menoristas preconstitucionais e, pior do que isso, causar danos gravíssimos à per-
sonalidade e ao desenvolvimento do/a adolescente.
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Defensoria Pública enquanto instituição vocacionada à defesa dos direitos dos mais
vulneráveis.
Sugestão de operacionalização
RefeRêNCias
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