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Universidade de São Paulo

Faculdade de Direito
Departamento de Filosofia e Teoria Geral do Direito

ORIGENS ITALIANAS DO “NOVO” MARXISMO


Elementos para uma crítica do Estado e do direito sob a dominação real do capital

Orientador: Professor Associado Alysson Leandro Barbate Mascaro

Leonardo Campos Rodrigues


Nº USP 10776620

São Paulo
2022
Universidade de São Paulo
Faculdade de Direito
Departamento de Filosofia e Teoria Geral do Direito

ORIGENS ITALIANAS DO “NOVO” MARXISMO


Elementos para uma crítica do Estado e do direito sob a dominação real do capital
Tese de láurea, na área de Filosofia e Teoria
Geral do Direito, realizada sob orientação do
Prof. Alysson Leandro Barbate Mascaro e
apresentada à Faculdade de Direito da
Universidade de São Paulo com vistas à
conclusão do curso de graduação em Direito.

Leonardo Campos Rodrigues


Nº USP 10776620

São Paulo
2022
RESUMO
O objeto dessa tese é parte do pensamento marxista italiano da segunda metade do
século XX considerado enquanto uma das fontes do Novo Marxismo. Propõe-se uma
leitura que entrelaça tais desenvolvimentos teóricos com a reestruturação do modo de
produção capitalista em escala global e a transição entre ciclos de luta, entendidos a partir
do par conceitual dominação formal e dominação real do capital. Após a introdução,
quatro capítulos expositivos compõem a parte central, seguida de um capítulo de
sistematização e elaboração teórica e, enfim, a conclusão. Nesse espelho, acredita-se ser
possível superar limites imanentes à teoria do jurista soviético Ievguiéni B. Pachukanis
(1891-1937), entendendo-a em paralelo com desenvolvimentos similares da teoria crítica
enquanto filosofia e da crítica da economia política na mesma janela histórica. Ao fim,
espera-se que sejam encontrados elementos para a reconstrução de uma crítica marxista
do direito e do Estado sob a dominação real do capital.
Palavras-chave: Marxismo; Itália; Galvano Della Volpe; Amadeo Bordiga;
Operaísmo; Gianfranco La Grassa; Crítica do direito;
SUMÁRIO
Introdução ....................................................................................................................................7
Capítulo 1 – Marx entre Rousseau e Kant .................................................................................27
1.1 – A Itália depois de Mussolini ...........................................................................................27
1.2 – O materialismo científico de Galvano Della Volpe .........................................................38
1.2.1 – Della Volpe, seus aliados e seus inimigos ...............................................................38
1.2.2 – Crítica do hegelianismo e reconstrução do materialismo .......................................40
1.2.3 – Aristóteles e Galileu ................................................................................................45
1.3 – Democracia e legalidade: de Della Volpe a Cerroni .......................................................47
1.3.1 – Entre Rousseau e Kant: política e direito em Della Volpe .......................................47
1.3.2. – Umberto Cerroni ...................................................................................................49
1.4 – Decadência e decomposição da escola della-volpeana: Lucio Colletti...........................52
1.4.1 – É possível um marxismo kantiano? .........................................................................53
1.4.2 – Alienação e o esvaziamento do marxismo ..............................................................57
1.4.3 – De um erro a outro .................................................................................................63
Capítulo 2 – O conteúdo original do programa comunista .........................................................65
2.1 – O fio da história .............................................................................................................65
2.2 – Programmismo: Amadeo Bordiga..................................................................................79
2.2.1 – Invariância histórica do programa comunista.........................................................79
2.2.1 – Ciência econômica como programa revolucionário................................................83
2.2.3 – Ditadura proletária e partido de classe ..................................................................85
2.2.4 – O princípio democrático e a pessoa humana ..........................................................88
2.2.5 – Crítica da forma-empresa .......................................................................................94
2.2.6 – Uso capitalista da maquinaria.................................................................................97
2.2.7 – Lições das contrarrevoluções................................................................................101
2.2.8 – Fatores de Raça e Nação .......................................................................................105
2.2.9 – A espécie humana e a crosta terrestre .................................................................107
2.3 – Jacques Camatte e a revista Invariance .......................................................................110
Capítulo 3 – O ponto de vista operário ....................................................................................115
3.1 – Origens do Operaísmo (1956-1964) ............................................................................115
3.1.1 – Contexto histórico e social ....................................................................................115
3.1.2 – Os partidos e a classe ...........................................................................................117
3.1.3 – Crise e renovação: a Mondo operaio (1956-1960)................................................119
3.1.4 – Como nasce uma nova política: Quaderni Rossi (1960-1964) ...............................122
3.2 – Operaismo em sentido estrito (1964-1972).................................................................129
3.3 – Declínio do operaísmo e Autonomia operaia (1973-1979) ..........................................134
Capítulo 4 – Um althusserianismo italiano ...............................................................................138
4.1 – Gianfranco La Grassa ...................................................................................................138
4.2 – Maria Turchetto e sua crítica do operaismo ................................................................146
4.3 – Preve, o memorioso ....................................................................................................155
Capítulo 5 – Um balanço do marxismo revolucionário italiano ................................................160
5.1 – Concepções jusfilosóficas do marxismo italiano ..........................................................160
5.1.1 – Juspositivistas .......................................................................................................160
5.1.2 – Não-juspositivistas ................................................................................................162
5.1.3 – Marxistas ..............................................................................................................165
5.2 – Novo Marxismo na Itália ..............................................................................................174
5.2.1 – Lucio Colletti: o valor como alienação ..................................................................176
5.2.2 – Camatte e o fim do proletariado ..........................................................................178
5.2.3 – Do Operaísmo ao Alternativismo..........................................................................180
5.2.4 – Derivação do Estado no pensamento de Gianfranco La Grassa ............................181
5.3 – Para uma crítica do direito sob a dominação real do capital .......................................185
Conclusão .................................................................................................................................197
Bibliografia ...............................................................................................................................198
A única forma de conhecer o sistema é concebendo sua destruição.
Alberto Asor Rosa (1933-2022)
Introdução

Cheguei ao tema dessa tese, por assim dizer, sem querer. Na verdade, a
ideia original que me veio quando comecei a considerar o que pesquisar para
minha tese de láurea era bastante diferente, envolvia Althusser e Adorno e, se
não me falha a memória, a relação entre temporalidade e a forma-jurídica – tendo
como base, por óbvio, Pachukanis. Acabou não sendo isso. Já na primeira
reunião ficou claro, graças às orientações do professor Mascaro, que França e
Alemanha já estavam, de certo modo, saturadas. Anos antes eu começara a
aprender italiano, em especial para leitura, por causa de um interesse particular,
tanto teórico quanto político, por alguns marxistas italianos, principalmente
Amadeo Bordiga, cuja originalidade e força de pensamento me pareciam
incomparáveis. Dito e feito: o casamento perfeito. Ao invés de França e
Alemanha, o terceiro ângulo daquele acontecimento teórico-político, ainda tão
difícil de nomear, que se operou no marxismo e no movimento comunista em
geral nas décadas de 1960 e 1970.
Por trás desse desfecho que pareceu absolutamente natural se assentam,
pode-se ver, algumas certezas que já estavam pressupostas. Em primeiro lugar,
que algo ocorreu nas décadas de 1960 e 1970. Em segundo, que não foi um
evento isolado, mas compreendeu, pelo menos, França, Alemanha e Itália – na
realidade o mundo todo. No campo teórico marxista, como pode-se achar nos
livros do professor Mascaro, o que aconteceu de novo foi uma dissidência que
acabou por consolidar, pela unidade na diferença, todo um novo campo: o Novo
Marxismo. A esse respeito, estava perfeita afirmativa de que França e Alemanha
estavam saturadas: já não falta literatura, acadêmica ou não, sobre Althusser,
situacionismo, Nova Leitura de Marx, Nova Crítica do Valor e por aí vai, mesmo
com um ou outro ponto cego. Por outro lado, falta – no Brasil, diga-se de
passagem – uma adequada consideração do percurso italiano que levou ao
Novo Marxismo. Agora, vejamos, no que consiste o Novo Marxismo? Há uma
gama de formas de categorizá-los ou traços distintivos que eu poderia enumerar
para tentar prendê-los em uma definição única, mas não me parece a melhor
forma de abordar essa questão. No lugar, é mais fácil entendê-lo ao modo
marxista: no contexto e totalidade de seu momento histórico.
Após o refluxo da onda revolucionária de 1917-1923, que colapsou sob o
peso do stalinismo na Rússia e do fascismo no Ocidente, o primeiro momento
de auge das lutas de classe e do pensamento revolucionário foi precisamente
aquela vibrante janela histórica entre 1968 e 1973. Depois de meio século de
silêncio, as palavras revolução e comunismo voltam à ordem do dia, é o Maio
parisiense, é a Revolução Cultural na China, é o movimento estudantil de
Tlatelolco no México, é a época da Fração do Exército Vermelho na Alemanha
Ocidental, é o incêndio da New Left nos Estados Unidos, é o auge da
solidariedade internacional com o Vietnã contra a agressão imperialista
americana, é o início do moderno movimento antissionista, é Allende e Miguel
Enriquez, é o colapso do salazarismo e a vitória das guerras anti-coloniais, é a

7
reignição das lutas de massas e da guerrilha no Brasil. Nas palavras de Lênin,
era a época das semanas em que décadas acontecem.
Quando a perspectiva revolucionária é recuperada, quando se volta a
pensar que o capitalismo não precisa durar pra sempre, isto é, nos momentos
de pico da luta de classes, é quando a teoria é mais necessária e também mais
fértil. A crítica das armas parece dar munição às armas da crítica tanto quanto o
contrário. Esse período histórico foi, portanto, também o de retomada de fios
interrompidos na história da crítica marxista. Alguns malditos e esquecidos
ressurgem, os derrotados são salvos pelos combatentes das novas gerações. É
aqui que Pachukanis reaparece, o único elemento da minha ideia original de tese
que não mudou, pois é nesse período que termina seu esquecimento, seus
trabalhos começam a ser recuperados, lidos e a influenciar novos teóricos.
Desde então, é sob sua sombra que todos os marxistas no direito vivem. Esse
gigante do marxismo foi uma das melhores mentes de uma das melhores
gerações, precisamente uma daquelas em que a perspectiva revolucionária
estava inflamada e a derrubada da sociedade da mercadoria parecia ao alcance
da mão.
Sua obra foi, de um só golpe, tanto o desmonte das concepções legalistas
do pseudomarxismo da 2ª Internacional como a organização de um paradigma
até hoje não superado. Porém, não foi um atol isolado e desconexo de seu
momento histórico, mas antes um elo de uma conjuntura privilegiada
sobredeterminada pela primeira revolução proletária vitoriosa em capturar o
poder de Estado. A onda revolucionária de 1917 escorre pelas páginas de A
teoria geral do direito e o marxismo. É um caso notável precisamente daquilo
que a epígrafe escolhida argumenta, uma compreensão científica do sistema a
partir da concepção de sua destruição, a ligação íntima entre o entendimento do
presente e a construção do futuro. O trabalho de Pachukanis mais do que uma
teoria crítica do direito é uma crítica teórica do direito, coloca como pedra de
toque da relação que um jurista guarda com o marxismo o princípio da abolição
do direito e mantém, portanto, íntima relação com o problema da transição ao
comunismo1.
A crítica pachukaniana, para ativar de tal modo o significado político de sua
crítica do direito, retomou a crítica marxiana da economia política. As
investigações de Pachukanis para desenvolver uma crítica categorial da forma
sujeito de direitos foi de um pioneirismo ímpar, antecipando o anti-humanismo
teórico dos althusserianos2, a crítica da subjetividade burguesa da Escola de

1
Opto sempre pelo termo comunismo e não pelo tão facilmente vulgarizado socialismo.
Se houve uma época em que, para Marx, o socialismo e o comunismo eram sinônimos
intercambiáveis, as múltiplas vagas do reformismo, bernsteiniano, kautskyista, stalinista,
etc, por vezes viram no socialismo algo muito mais aceitável e digerível. Vide:
“socialismo em um só país”, o “Manifesto Socialista” de Bhaskar Sunkara, o “socialismo
democrático”, e assim por diante.
2
Com efeito, o anti-humanismo althusseriano tem relações próximas com
desenvolvimentos intelectuais do milieu filosófico francês, da recepção de Heidegger e
8
Frankfurt e da Wertkritik3. Como é óbvio, um trabalho com tais repercussões não
poderia ser apenas a “aplicação” de um todo autoevidente que não foi modificado
no processo; a obra pachukaniana ressignificou, desvendou e desenterrou
elementos valiosíssimos dos escritos de Marx, destrancando uma nova
abordagem da teoria marxista. Em vários sentidos, o papel de Pachukanis pode
ser comparado ao do economista nascido na Letônia Isaak Rubin, outro
“maldito” 4 do ponto de vista da ortodoxia do marxismo tradicional por seu
revolucionário estudo sobre a teoria do valor de Marx.
A tese ortodoxa anterior a Rubin, a substancialista ou fisiológica, enxergava
a teoria do valor de Marx como mera confirmação e aprofundamento da teoria
ricardiana, ou seja, assumiam que o valor era quantitativamente determinado
pelo quantum de trabalho incorporado em uma dada mercadoria e que, portanto,
a magnitude do valor poderia ser auferida sem maiores dificuldades pelo tempo
cronológico dispendido na produção desta mercadoria. Coligado a este
entendimento da magnitude estava a concepção do trabalho abstrato, a que
Marx se refere como substância do valor, como mera operação mental de
equiparação dos trabalhos concretos pelo dispêndio genérico de músculos,
nervos, cérebro, enfim, da energia humana em sua naturalidade corporal. Em
ambos os aspectos, magnitude e substância, essa interpretação ortodoxa
aceitava as categorias da Economia Política tal como já postos e enquanto
transhistóricos.
Contra a ortodoxia anterior à Revolução de Outubro, Rubin ressaltou que o
fundamental da obra marxiana e o que a definia como crítica da economia

Hegel (sobretudo a interpretação da Fenomenologia hegeliana feita por Jean Hyppolite)


no pós-guerra, o estruturalismo de Saussure, Jakobson e Lévi-Strauss, chegando até a
teoria literária da Tel Quel, com Barthes, Kristeva, etc, depois Foucault, a esquizoanálise
de Deleuze e Guattari, a Desconstrução de Derrida, etc, para não falar da grande
influência que tiveram no pensamento de Althusser os trabalhos de Jean Cavaillès e
Georges Canguilhem, além da aproximação com Jacques Lacan. Todavia, parece
impreciso atribuir a perspectiva althusseriana ao ambiente estruturalista, o qual serviu
para ele, na realidade, de anteparo crítico e com cuja terminologia ele “coqueteou”
(como afirmou o próprio Althusser em Elementos de Autocrítica); de fato, em Althusser,
o anti-humanismo aparece como resultado de sua reconstrução crítica da dialética
marxiana nos pontos mais altos de sua crítica da subjetivação da substância no sistema
hegeliano e amadurece, em Ler o Capital, com um significativo reexame da crítica da
economia política. Inclusive, não passou despercebido aos próprios althusserianos o
quão próximas eram as teses de Althusser e Pachukanis, e deve-se notar uma viva
simbiose entre elas desde os trabalhos de Bernard Edelman (A legalização da classe
operária) e, mais tarde, de Étienne Balibar (que trata explicitamente de Pachukanis em
A filosofia de Marx).
3
Ver: Razão Sangrenta, de Robert Kurz; A sociedade autofágica, de Anselm Jappe.
4
A arte, essa tão peculiar antecipação da experiência da práxis social, sempre
perambulando entre o conhecimento abstrato e o concreto (como colocou Althusser, em
sua Lettre sur la connaissance de l’Art) nos fornece tantos exemplos de pioneiros como
Pachukanis e Rubin, aqueles que, rechaçados pelo próprio tempo, seriam ainda
abraçados por vanguardistas posteriores: Lautréamont, Rimbaud, Sousândrade, Qorpo
Santo, Jarry, Artaud, etc.
9
política era a análise da forma do valor5, ou seja, como, na sociedade produtora
de mercadorias, o trabalhou chegou a ser representado como valor; assim, Rubin
e todos os por ele influenciados6 abrem, pela exegese do trabalho de Marx, um
novo nível de crítica, para além daquele do socialismo vulgar que aceitava em si
mesmas as categorias constitutivas do modo de produção capitalista. A
reinterpretação de Rubin tornou possível não apenas melhor compreender Marx,
mas efetivamente romper a ligação entre Marx e a Economia política clássica,
abandonando a visão tradicional da 2ª Internacional que via no marxismo na
mais que uma reafirmação das conclusões de Ricardo acrescidas de uma teoria
da exploração cuja crítica ao modo de produção capitalista se limitasse ao
aspecto da distribuição injusta do produto social.

Com Rubin, portanto, mediante a crítica imanente da aparência necessária


das formas sociais da produção capitalista – precisamente em seu ideal, no
momento da circulação em que o capital se apresenta como supremo
equalizador e fonte da justiça e da Razão -, a centralidade se desloca da
naturalização da forma social do valor existente para a forma histórica e
socialmente específica que o trabalho assume para poder tornar-se a substância
do valor. Com esse fim, Rubin vai retomar o conceito de trabalho abstrato, que
havia sido pouco discutido pela literatura marxista até aquele momento. O
argumento de Rubin é que o trabalho abstrato não pode ser confundido com uma
equalização fisiológica de todo trabalho humano7 - com o que não se avançaria
um centímetro além de David Ricardo e a teoria do valor permaneceria pré-social

5
“É certo que a economia política, embora de uma forma muito imperfeita, analisou o
valor e a grandeza do valor. Mas nunca pôs a questão de saber por que é que o trabalho
se representa no valor, e a medida do trabalho pela sua duração na grandeza do valor
dos produtos”, Marx, Capital, volume 1, seção 4.
6
Vale dizer que Rubin não estava solitário e que seus esforços, na década de 1920,
foram ajudados também por outros marxistas, como György Lukács — sobretudo por
meio de sua análise da reificação em História e Consciência de Classe — e Karl Korsch
— em Marxismo e Filosofia. Todavia, isso não significa que estivessem em pleno acordo
e, nos anos 1970, as divergências irromperiam mais claramente. Ainda assim, não deixa
de ser notável a similaridade entre as três abordagens que surgiram autonomamente e
que, lamentavelmente, seriam soterradas pela década de 1930: Rubin, fuzilado em 1937;
Korsch, marginalizado e esquecido, teria seu alcance limitado aos chamados
comunistas de conselho e acabou entrando para a história mais como professor e amigo
de Bertolt Brecht; Lukács, por sua vez, tomaria o caminho de volta à ortodoxia para se
converter em um filósofo-burocrata do “socialismo real”.
7
O exemplo principal de como a ortodoxia até então entendia o trabalho abstrato é
dado pelo próprio Rubin ao descrever o entendimento de Kautsky: “Trabalho abstrato
é o gasto de energia humana como tal, independentemente das formas dadas.
Definido desta maneira, o conceito de trabalho abstrato é um conceito fisiológico, vazio
de todos os elementos sociais e históricos. O conceito de trabalho abstrato existe em
todas as épocas históricas independentemente dessa ou daquela forma social de
produção”. Essays on Marx’s Theory of Value. Disponível em:
https://www.marxists.org/archive/rubin/value/ch14.htm
10
-, pois é uma abstração real8 resultante do processo de metabolismo social na
produção de mercadorias, com os trabalhos concretos (ou úteis) sendo
reduzidos ao que há de comum neles pelo fato de os produtos do trabalho serem
intercambiáveis na condição de mercadorias. Em Rubin, a substância do valor,
o trabalho social abstrato universal, aparece fortemente determinada pelo
momento da circulação, isto é, quando uma mercadoria se relaciona com outra
apenas por sua forma de valor, não de valor-de-uso. Dessa lógica surgiu outra
decisiva contribuição de Rubin, no esclarecimento da teoria do dinheiro de Marx,
ao mostrar como a consideração da forma do valor no Capital nestes termos é o
que permite e condiciona o desenvolvimento necessário do trabalho abstrato até
a forma do equivalente universal, o dinheiro.

Nas palavras do próprio Rubin:

Trabalho abstrato é a designação para a parte do


trabalho social total que foi equalizado no processo da divisão
social do trabalho mediante a equação dos produtos do
trabalho no mercado.

Em meu livro “Ensaios sobre a Teoria do Valor de Marx”,


eu dei mais ou menos essa definição. Acredito que seja
necessário adicionar que a natureza social do trabalho
abstrato não é limitada pelo fato que o conceito de valor
necessariamente resulte desse conceito. Como já esbocei em
meu livro, o conceito de trabalho abstrato leva
incondicionalmente ao conceito de dinheiro também, e do
ponto de vista marxiano isso é inteiramente consistente. Na
realidade, nós definimos trabalho abstrato como trabalho que
foi feito igual através da equiparação geral de todos os
produtos do trabalho, mas a equiparação de todos os
produtos do trabalho não é possível exceto mediante a
assimilação de cada um deles com um equivalente universal.
Consequentemente, o produto do trabalho abstrato tem a
habilidade de ser assimilado com todos os outros produtos
somente na forma em que ele aparece como equivalente
universal ou pode potencialmente ser trocado por um
equivalente universal.9

8
Ainda que Rubin ainda não dispusesse dessa terminologia, que remonta ao trabalho
de Alfred Sohn-Rethel, Trabalho Manual e Trabalho Intelectual e que, hoje, já foi
incorporada pelo marxismo.
9
Abstract labour and value in Marx’s system, disponível em:
https://libcom.org/article/abstract-labour-and-value-marxs-system-isaak-illich-rubin.
Acesso em: 17/10/2022.
11
Desse modo, é possível dizer que o dinheiro é a forma por excelência e
necessariamente desdobrada do valor, que é, a seu turno, a forma social
historicamente específica assumida, sob a produção de mercadorias, pelo
trabalho humano – enquanto trabalho social abstrato. Seria essa linha de
raciocínio de Rubin que, nos anos 1960, seria apropriada e continuada pela
assim chamada Nova Leitura de Marx, na Alemanha, em torno de autores como
Backhaus e Reichelt, que, em virtude dessa derivação necessária do dinheiro,
passariam a referir à teoria de Marx como uma teoria monetária do valor.
Até esse ponto, Rubin – que enfatizava o valor como conceito síntese de
três aspectos: forma, substância e magnitude – só relacionou dois dos aspectos,
forma e substância. Com efeito, é ao abordar a magnitude, a determinação
quantitativa do valor, que o fracasso de Rubin colocará em evidência a antinomia
constitutiva de toda sua teoria, sua limitação. Como rejeitou a concepção
ricardiana do trabalho incorporado, enfatizando, em seu lugar, o trabalho
abstrato como resultado da circulação e, daí, o valor como parte da massa de
valor social total, Rubin termina por colocar o problema da determinação do valor,
isto é, se é possível quantificá-lo na esfera da produção ou apenas na circulação.
A dúvida surge pois: se a substância do valor é o trabalho abstrato e a abstração
ocorre tão somente como resultado da equiparação das mercadorias na troca,
de tal modo que o valor se torna categoria de fundo que estrutura a aparência
fenomênica do preço e a distribuição do mais-valor total na competição entre
capitais, então o valor é indeterminado e aparece são somente através do preço?
É o que sugere Rubin: “E, finalmente, a ‘magnitude do valor’ é a expressão da
divisão social do trabalho, ou mais precisamente do lado quantitativo do
processo de divisão do trabalho” 10, ou seja, a magnitude do valor aparece após,
e não antes, o momento da circulação e da divisão do trabalho entre os
diferentes setores e capitais privados.
É em virtude dessas consequências de sua teoria que Rubin foi acusado
de formalismo e circulacionismo. De fato, ainda que se deva reconhecer que
essa é uma leitura simplificada e unilateral do autor, as contribuições novas
trazidas por ele caminharam nesse sentido11, enquanto sua reticência, que a
modo titubeante fazia lembrar das “forças produtivas”, explica-se por uma
tentativa de aferrar-se à ortodoxia e, nesse sentido, representa a parte da obra
de Rubin que estava mais atrasada, superada. Ou seja, se Rubin supera o
substancialismo e o fisiologismo ricardiano, que acompanhava as concepções
vulgares de marxismo resultando em uma visão distribucionista de socialismo,
aceitando as categorias de base da economia política, por outro ele não foi bem-
sucedido em liquidar por completo essa perspectiva. Rubin supera o
substancialismo, como ele mesmo diz, pelo foco central nas formas sociais,
colocando apenas as formas sociais como objeto do marxismo – o que ele

10
Ibid.
11
KICILLOF, Axel; STAROSTA, Guido. On Materiality and Social Form. Disponível em:
http://www.iesac.unq.edu.ar/wp-content/uploads/2015/11/Starosta-
Kicillof_On_Materiality_and_Social_Form.pdf
12
chama de método sociológico – enquanto a “materialidade” da produção fica
relegada a uma importância menor. Por mais vezes que Rubin invoque
terminologias hegelianas acerca da dialética de forma e conteúdo, a relação
entre forma social e substância, para ele, continua como uma relação externa,
uma mera imposição. Por mais que ele ressalte a especificidade histórica do
trabalho abstrato, ele não saber como levar isso à conclusão lógica – daí criando
a categoria intermediária entre o trabalho abstrato e o trabalho fisiologicamente
equiparado: o trabalho socialmente equiparado, que, ao contrário do trabalho
social abstrato universal, comum a todas as sociedades humanas com divisão
social do trabalho, inclusive a comunista.
Nas palavras usadas por Isaak Dashkovskij, em sua pioneira e notável
crítica de 1925 ao trabalho de Rubin, o a teoria do economista letão tende a
“expulsar do assunto da economia política toda matéria viva, privar o sistema
teórico do marxismo de seu fundamento material” 12. Deve-se concordar com a
crítica de Dashkovskij nesse ponto, ainda que ele acabe por recair em uma forma
de ontologia do trabalho e mesmo, no limite, em uma visão fisiológica do trabalho
abstrato. O trabalho de Rubin precisava ser desenvolvido para além de seus
limites imanentes, ser extrapolado contra a base na qual ele já não cabia. Isso
só se tornaria efetivamente possível com a redescoberta de Rubin e sua teoria
da forma-valor no contexto de uma renovação geral do marxismo a partir da
década de 1960; porém, a causa dessa renovação não é mera escolástica ou
resultado de desenvolvimentos na academia ou no intelecto tão somente: o que
o presente trabalho busca demonstrar, e que será particularmente desenvolvido
com respeito a Pachukanis, é que uma transformação estrutural do modo de
produção capitalista, ao culminar no período 1968-1973, tornou inteligíveis à
teoria crítica as formas sociais desenvolvidas do capitalismo. Mais ainda: que
essa virada crítica se relaciona intimamente com uma perspectiva crítica no
sentido profundo da palavra, ou seja, como uma teoria volta à transcendência do
modo de produção capitalista, como teoria da transição ao comunismo, coisa
que pode ser percebida igualmente, em retrospecto, nos grandes
desenvolvimentos do marxismo da década de 1920, como no próprio Pachukanis.
Imperioso frisar que a crítica que se tornou possível desde aquele momento
de transição e que deve ser aprofundada contra Rubin não deve, contudo, fazer
andar para trás. O momento de verdade em sua teoria, pelo qual Rubin derrubou
o substancialismo-fisiologismo e ressaltou a ruptura entre Marx e a Economia
Política Clássica, é inestimável.
Deste último florescimento do Marxismo crítico na URSS,
quero reter apenas, para os propósitos dessa discussão, a
ênfase de Rubin no fato de que a crítica de Marx à economia
política clássica se firma na distinção entre ‘categorias

12
DASHKOVSKIJ, Isaak. Abstract labour and the economic categories of Marx.
Disponível em: https://libcom.org/library/abstract-labour-economic-categories-marx-
isaak-dashkovskij
13
materiais’ voltadas para os ‘métodos técnicos e instrumentos
de trabalho’, por um lado, e as ‘formas sociais’ voltadas para
as relações especificamente capitalistas, por outro. O ponto
cego da economia política é precisamente sua inabilidade,
evidenciada pela teoria do fetichismo da mercadoria, de
pensar o porquê de essas formas-valor em particular são
geradas na sociedade burguesa, e erroneamente supor que é
em ‘categorias materiais’ transhistóricas – trabalho em geral
no lugar de força de trabalho, troca separada do capital, e
assim por diante – que se poderiam achar pistas para a
estrutura e desenvolvimento do modo de produção. Pelo
contrário, é ‘a função social que é realizada através de uma
coisa que dá a essa coisa um caráter social particular, uma
determinada forma social, uma determinação formal’. 13

Inegavelmente, na medida em que Rubin ressalta a investigação da


economia política como crítica de formas sociais e históricas, e não, portanto,
como uma investigação abstrata de condições eternas ou imutáveis, do trabalho
enquanto trabalho em geral, condizente com qualquer sociedade humana em
qualquer tempo, ele está em perfeito acordo com Marx e, assim, merece os
lauréis por combater as tentativas de criar uma “economia política marxista”
rejuvenescendo a crítica da economia política. Assim dizia Marx:
Uma máquina de fiar algodão é uma máquina para fiar
algodão. Apenas em determinadas relações ela se torna
capital. Arrancada a estas relações, ela é tão pouco capital
como o ouro em si e para si é dinheiro, ou como o açúcar é o
preço do açúcar.14
Rubin, todavia, apesar de suas intenções, não deixa de tornar o trabalho
abstrato uma categoria também transhistórica. Sua definição, ao tornar o
trabalho abstrato da sociedade capitalista definido pela troca, pelo momento da
circulação, cria um conceito abstrato e aplicável a várias épocas nas quais
estava presente a produção de mercadorias. Para exemplificar, pelo conceito
rubiniano, seria possível afirmar que o trabalho abstrato (que pode ser
substância do valor) já existia na Grécia ou em Roma clássicas, onde havia uma
economia mercantil desenvolvida? Esse inesperado resultado dialético emerge
justamente por Rubin desdobrar um raciocínio formalista e abstrato, pelo qual as
formas sociais mantêm relação com o mundo físico apenas externamente, de
onde as condições reais de produção não se consideram senão como uma

13
Materialism without matter: abstraction, absence and social form, Alberto Toscano.
Disponível em: https://www.tandfonline.com/doi/abs/10.1080/0950236X.2014.965901
14
Em Trabalho assalariado e Capital. Disponível em:
https://www.marxists.org/portugues/marx/1849/04/05.htm
14
obrigação da ortodoxia da época, en passant. Em outras palavras, de certo modo,
faltou a Rubin, após passar do concreto ao abstrato, retornar ao concreto.
Daí Rubin não dar atenção alguma para a necessidade material, ignorando
inclusive, por exemplo, a proporcionalidade na produção e distribuição de valor
de uso para a reprodução da economia capitalista tomada em conjunto. Rubin
toma sempre o processo de produção por seu lado de forma social, jamais pelo
lado do processo de trabalho, e, por isso, diz: “Marx descarta como inútil a
questão de que tipo de trabalho é produtivo em geral, em todas as épocas
históricas, independentemente das relações sociais dadas”. Em que pese a
importância histórica dessa afirmação de Rubin no combate ao substancialismo
e ao fisiologismo, ela não é de todo correta. Pelo contrário, diz Marx:
A definição original do trabalho produtivo citada mais
acima [sobre o trabalho como metabolismo entre o homem e
a natureza, a definição abstrata e transhistórica apresentada
no capítulo 5 do Capital], derivada da própria natureza da
produção material, continua válida para o trabalhador coletivo,
considerado em seu conjunto. Mas já não é válida para cada
um de seus membros, tomados isoladamente. 15
Ou, ainda, em um outro trecho:
Pela incorporação do trabalho ao capital, o capital
devém processo de produção; mas, antes de tudo, processo
de produção material; processo de produção em geral, de
modo que o processo de produção do capital não é diferente
do processo de produção material em geral. A sua
determinação formal é completamente extinta. 16
Note-se que, aqui, Marx toma a produção pelo seu aspecto de produção
em geral, produção material. Caso parássemos aqui, faríamos Marx se parecer
com os seus piores vulgarizadores, que tornam o “desenvolvimento das forças
produtivas” uma tendência fora da história, completamente regulada por suas
próprias leis internas puramente “técnicas”. Mas, na verdade, logo após o
parágrafo anterior, continua Marx: “(Ficará evidente que, mesmo no interior do
próprio processo de produção, essa extinção da determinação formal é apenas
aparência)”. De tal modo, Marx vai demonstrando entender a materialidade e a
forma social em sua interpenetração e relação dialética, não como exteriores
entre si, mas como co-determinados. Em Rubin, pelo contrário, a materialidade,
na forma mistificada das todo-poderosas “forças produtivas”, é jogada para
escanteio, marginalizada, atrás do protagonismo concedido à análise das formas
sociais. Por ironia, o resultado, curiosamente, acaba sendo o de, por um lado,
oferecer uma definição tão abstrata e formal de trabalho abstrato que ele volta a

15
Capital, volume 1, São Paulo: Boitempo, 2013, p. 577.
16
Grundrisse, São Paulo: Boitempo, 2011, p. 237.

15
aparecer como transhistórico 17, e, por outro, permitir que a materialidade, na
forma das forças produtivas, ocupe seu trono como tendência fora da histórica,
encarnação de uma crença quase teleológica (ou deveríamos mesmo dizer
teológica?) no progresso técnico. Como argumentam Kicillof e Starosta, falta a
Rubin, que permite a materialidade relacionar-se com a forma social apenas
como determinação quantitativa, dar o salto para analisar qualitativamente as
transformações do processo de produção; como ele não o fez, sua concepção
acaba não tão distante do culto ao crescimento (i.e. quantitativo) das forças
produtivas encontrado na ortodoxia “marxista-leninista”18.
Esse dilema do pensamento de Rubin não advém apenas das capacidades
individuais do autor. Antes, como já dito, o argumento deste trabalho é que o
desenvolvimento teórico estava especificamente ligado à conjuntura histórica por
meio do então estado estrutural do modo de produção capitalista e as tarefas
objetivamente postas à teoria crítica a partir do desenvolvimento e inteligibilidade
das formas sociais, por um lado, e que o salto qualitativo representado pela
geração de 1920 se deve a um momento de transição e tentativa fática de
derrumbe do capitalismo, ou seja, a uma visão da teoria como teoria da transição.
Tal como o stalinismo, e sua conversão do aparato de Estado soviético em
máquina da acumulação originária de capital, não foi produto de uma mera
casualidade ou vontade política, mas por como as batalhas políticas se
codeterminaram com os horizontes postos pela capacidade objetiva de constituir
uma força subjetiva, i.e. da classe, que transcendesse a sociedade capitalista,
também em Rubin os efeitos dessa limitação histórico-política aparecem.
A contraparte da possibilidade então ainda existente para a extensão da
socialização sob o signo do trabalho e, portanto, da modernização retardatária
como acumulação originária era a representação, na teoria, da técnica como a
força transcendente, das forças produtivas como a tendência sobre a qual a
história unilateralmente se constrói. A partir disso, também, a ontologia do
trabalho como forma por excelência da existência humana em sociedade e,
correlata a ela, a ética da produção, a produção como verdade prática e
equivalente da realização na práxis social da Razão, da Ciência, em
continuidade com a qual, também, do ideal ético em si, em outras palavras, na
produção racionalizada já estão postos o Bem e a Verdade. Nessa medida, o
marxismo vulgar era limitado a ser uma continuidade, ainda que crítica e
depurada, do Iluminismo, com sua ideologia do progresso, seu humanismo, a
exaltação do universalismo abstrato, enfim, vários elementos de um discurso que
podemos chamar ainda de tipicamente do “terceiro estado”, ou seja, plebeu-
burguês, ainda que radical, e não exatamente proletário ou comunista.

17
Para uma crítica e interessante solução do dilema em que entrou Rubin ao oferecer sua
definição de trabalho abstrato: MURRAY, Patrick. Marx’s ‘Truly Social’ Theory of Value, in The
mismeasure of wealth. Leiden, Boston: Brill, 2016, pp. 120-155.
18
KICILLOF, A.; STAROSTA, G, Op. cit.
16
Nessa perspectiva, a importância de Rubin com sua crítica das concepções
em que Marx aparece como continuador da teoria do valor-trabalho de Ricardo,
sua crítica imanente do modo de produção capitalista precisamente na
equiparação das mercadorias, na equalização dos trabalhos humanos, ou seja,
da forma-valor brilha mais forte. E igualmente mais relevante é sanar os limites
que a crítica de Rubin, a seu turno, apresenta.
Para retornar ao padroeiro dos juristas marxistas, Pachukanis ocupa um
lugar análogo ao de Rubin. Do mesmo modo que Rubin aponta para a forma do
valor e investiga de que modo Marx rompeu com Ricardo ao perguntar o porquê
do trabalho tomar a forma do valor, Pachukanis se pergunta por que o conteúdo
de classe das normas jurídicas precisa tomar a forma que toma, nesse quesito
distanciando-se de Stuchka e todos os seus outros antecessores. Também como
Rubin, Pachukanis, atentando para a forma mais do que para o conteúdo, vai
apreender os fundamentos da crítica marxista da economia política, o que lhe
permite compreender a crítica do fetichismo contida em Marx, como
autonomização de uma forma social que não é mera inversão, mas constituição
da forma de dominação impessoal sob o capitalismo. Em consequência,
Pachukanis, reagindo contra o conteudismo de Stuchka, cai inadvertidamente
em uma espécie de formalismo, assim como Rubin. A separação entre produção
e circulação, entre materialidade e forma social de Rubin aparece em
Pachukanis na forma da dicotomia entre regulação técnica e regulação jurídica.
Assim como Rubin, ao descartar de sua análise o processo de produção
enquanto tal, acabava por interditar a determinação formal do próprio processo
de produção e parava em uma análise meramente quantitativa das forças
produtivas, também Pachukanis acaba por entronizar a técnica enquanto tal,
como uma força externa à história, à luta de classes, à determinação formal
social, como fonte de uma forma de regulação social. Pachukanis coloca a
regulação jurídica como uma em que os indivíduos subjetivados aparecem em
conflito, em que a equivalência subjetiva, contraparte do fetichismo da
mercadoria e da equivalência objetiva das mercadorias, é convertida no
processo judicial, em uma atribuição de responsabilidade, em que os sujeitos
disputam por seu quinhão. Em contraste, a regulação técnica seria aquela
baseada na unidade de finalidade, em que não há o conflito de sujeitos, mas um
mesmo objetivo comum: “A premissa fundamental da regulamentação jurídica é,
desse modo, a oposição entre interesses privados. (...) Pelo contrário, a unidade
de objetivo constitui a premissa da regulamentação técnica”19.
Uma tal capitulação de Pachukanis ao produtivismo é a mesma concepção
da técnica como uma força transcendente, fora da história e da luta de classes,
cujo desenvolvimento livre, se rompidas as amarras do mercado, realizariam o
socialismo que vêm preparando. O sistema fabril, em virtude da socialização do
trabalho e da expansão da capacidade produtiva do trabalho, passa a ser
elogiado, como se fosse o inimigo do mercado. A transição ao comunismo é o

19
A Teoria Geral do Direito e o Marxismo, São Paulo: Sundermann, 2017, p. 106.
17
combate entre o mercado e a fábrica, entre o planejamento estatal e as relações
de troca, entre a produção e a circulação tão somente.
Em Pachukanis, duas tendências sobre a natureza da
sociedade de transição estão presentes, sendo uma
dominante e a outra subordinada. A tendência dominante
exprime-se na identificação do socialismo com a propriedade
estatal dos meios de produção e com o planejamento, de tal
sorte que a contradição fundamental que atravessa esta
sociedade de transição seria a que opõe o “plano” ao
“mercado”.20
O limite da posição teórica de Pachukanis decorre da
sua concepção de que o socialismo possa conhecer normas
de caráter “técnico”, não afetadas pela luta de classes,
“isoladas” do processo de transformação das relações sociais,
normas rigorosamente “neutras”, do ponto de vista de classe,
do ponto de vista da luta política e ideológica que as massas
travam contra as formas de existência do capital.21
Deve-se admitir que, como ressalta Márcio Bilharinho Naves, Pachukanis
não apresenta apenas essa visão, porém ela é a dominante. Da mesma forma
que Rubin oscila entre seu formalismo e uma ortodoxa invocação do papel das
forças produtivas, Pachukanis oscila entre esse ortodoxo produtivismo e uma
tendencialmente radical denúncia do burocratismo 22 . As investidas
pachukanianas contra o burocratismo não se mantêm apenas no nível da política,
mas chegam, inclusive, a ensaiar uma crítica daquele mesmo produtivismo-
tecnicismo em que ele assentara sua dicotomia entre regulamentação jurídica e
regulamentação técnica.
(...) decorre que o burocratismo não é somente
expressão de nosso atraso organizacional e técnico, mas, nas
nossas condições, é resultado de uma pressão de classe
hostil ao socialismo, que vem de um meio burguês e pequeno-
burguês (...)
Toda a questão está em que nós não somente
aspiramos ao aperfeiçoamento do aparato administrativo,
mas queremos que ele cumpra funções diametralmente

20
NAVES, Márcio Bilharinho. Marxismo e Direito: um estudo sobre Pachukanis. São
Paulo: Boitempo, 2000, p. 116.
21
Ibid., p. 121.
22
Vale abrir parênteses aqui para dizer que apesar de homólogas, essas oscilações
se dão para lados opostos: Rubin oscila entre o passado ortodoxo e sua resposta
parcial, Pachukanis oscila entre sua resposta parcial – que inclui o produtivismo - e
uma resposta radical. Com efeito, isso espelha a diferença política entre esses dois
homens: Rubin fora um menchevique, Pachukanis era um velho bolchevique.
18
opostas àquelas que ele cumpre em qualquer sociedade de
classes.23
A essa altura Pachukanis também cita elogiosamente um trecho notável de
um artigo de Iakov Iakovlev, publicado no nº6 da revista Bolchevik, de 1926: “O
simples aperfeiçoamento do aparato técnico e a transformação dos maus
burocratas em bons significa, em nossas condições, tão somente a preparação
de um bom aparato para a restauração da burguesia”. Esse texto, na verdade
uma conferência proferida em 1929, acabaria sendo como um canto de cisne,
pois no ano seguinte já andava a passos largos o retrocesso de Pachukanis e
sua capitulação ante a vitória da contrarrevolução stalinista.
Assim, Pachukanis, tal qual Rubin, apresentou um equívoco formalista que
o fez dar centralidade analítica à circulação. Porém, uma vez que o objeto de
Pachukanis é a forma-jurídica e não o valor, não se deve transpor diretamente a
avaliação feita de Rubin para Pachukanis. Uma concepção melhorada não sairia
de tentar encontrar no processo de trabalho os fundamentos da forma-jurídica.
Ao contrário, deve-se seguir o processo inverso: Pachukanis estava
absolutamente correto em privilegiar a ligação do Direito com a esfera da
circulação, relação que ele mais descobriu no próprio texto de Marx do que
inovou, o erro, porém, foi presumir que a regulamentação técnica enquanto tal
seria um substituto capaz para a regulamentação jurídica. O Direito, ainda que
baseado na esfera da circulação, não limita seus tentáculos a ela, é convocado
a organizar e regulamentar toda a formação social, em diversos graus de
derivação, mas sempre organizando a reprodução do capital, buscando
organizar a materialidade de acordo com as formas lógicas da circulação
capitalista.
Já vimos até aqui que o capital pressupõe: 1) o processo
de produção em geral, tal como é próprio a todas as
condições sociais, logo, sem caráter histórico, humano, como
se queira; 2) a circulação, que já é ela própria, em cada um
de seus momentos e ainda mais em sua totalidade, um
produto histórico determinado; 3) o capital como unidade
determinada de ambos. Todavia, até que ponto o próprio
processo de produção geral é modificado historicamente, tão
logo aparece exclusivamente como elemento do capital, isso
é algo que tem de resultar do desenvolvimento do capital, da
mesma maneira que da compreensão simples das diferenças
específicas do capital devem resultar seus pressupostos
históricos em geral.24

23
O aparato de Estado soviético na luta contra o burocratismo, in A teoria geral do
direito e o marxismo e Ensaios Escolhidos, Sundermann: São Paulo, 2017, pp. 305-
306.
24
Grundrisse, São Paulo: Boitempo, 2011.
19
Se aceitarmos como ferramenta heurística esse trecho de Marx, ainda que
um pouco esquemático, torna-se mais claro o dilema tratado até aqui. Da
compreensão pré-social da produção em geral, prevalente na ortodoxia vulgar
em concepções neoricardianas da teoria do valor (como na compreensão do
trabalho abstrato como mera equiparação fisiológica), a geração de 1920,
representada aqui por Pachukanis e Rubin, permitiu passar a uma compreensão
mais aprofundada, da circulação, das formas sociais, que, entretanto, quedaram-
se no momento da identidade lógica, dentro do circuito das categorias, sem
operar o retorno ao concreto enriquecido, pela unidade determinada de produção
e circulação no conceito de capital. A tarefa legada por eles passou a ser,
portanto, completar esse salto, reinserir na teoria crítica a materialidade.
A tarefa do Novo Marxismo e da geração das lutas das décadas de 1960-
1970 foi, de certo modo, esta. A princípio, na filosofia, com uma reconsideração
do significado de materialismo, que levou a releituras críticas do projeto de Marx;
em seguida, na teoria do valor, com a redescoberta de Rubin e o desbravamento
de suas antinomias; e, enfim, no campo propriamente político, com a explosão
de novas formas de conceber a prática revolucionária, a organização política e
a própria transição ao comunismo. Louis Althusser, Guy Debord, Jean-Paul
Sartre, Henri Lefebvre, Theodor Adorno, a Teoria Marxista da Dependência25, a

25
Apesar da variação de abordagens na teoria da Dependência, algumas das quais
optam por uma visão mais circulacionista, senão até neo-smithiana, temos aqui em
mente o trabalho de Ruy Mauro Marini, cuja visão teórica a partir do volume III do
Capital recoloca o problema a partir da concepção do modo de produção capitalista
em sua totalidade e da formação social a partir do desenvolvimento concreto das
relações de produção em uma economia dependente para além da mera troca,
olhando para o processo de produção ao colocar como dinâmica central da
dependência a super-exploração do trabalho e negar a possibilidade de
desenvolvimento capitalista e, portanto, de superar a dependência sem uma
transformação qualitativa da produção social, cf. MARINI, Ruy Mauro.
Subdesenvolvimento e Revolução. Florianópolis: Insular, 2013.
20
Teoria da Comunização26, Kozo Uno27, a Nova Leitura de Marx28, a Nova Crítica
do Valor29, o Debate da Derivação do Estado30, o Autonomismo31, todos esses

26
Corrente de ultra-esquerda que se desenvolveu na França a partir do começo da
década de 1970, consolidando em si conclusões tiradas do comunismo de esquerda,
do comunismo de conselhos, do situacionismo e das experiências do maio de 1968.
Destacam-se na Teoria da Comunização uma dicotomia entre uma tendência
humanista e outra anti-humanista; aquela é representada por Gilles Dauvé, Bruno
Astarian, Karl Nesic, enquanto esta desenvolveu-se sobretudo no grupo Théorie
Communiste. Um dos textos fundacionais dessa corrente foi o panfleto Um mundo
sem dinheiro: o comunismo, distribuído pelo grupo Les amis de 4 millions de jeunes
travailleurs. Mais recentemente, a comunização espalhou-se pelos países anglófonos,
pelo resto da Europa e está presente, inclusive, na América do Sul e na China. Para
uma introdução à teoria da comunização recomenda-se a leitura do primeiro número
da revista anglo-americana Endnotes, disponível em www.endnotes.org.uk. Outros
importantes coletivos teóricos ligados à comunização são Friends of the classless
society (Alemanha), Il lato cattivo (Itália), Blaumachen (Grécia), Cuadernos de
Negación (Argentina), Riff-raff (Suécia), Chuang (China e EUA).
27
Uno faz uma contribuição significativa, ainda que mediante uma separação
escolástica entre o campo o puramente teórico-lógico do histórico-contingente, o que
aparece como momento necessário precisamente da reinserção deste último
elemento, cf. UNO, Kozo. Principles of Political Economy: theory of a purely capitalist
society. Harvester Press, 1977. A partir de seu trabalho, surgiu uma importante escola
marxista japonesa, de cujos membros podemos citar Makoto Itoh e Thomas Sekine. A
Escola de Uno ganhou atenção no Ocidente no século XXI, já existindo análises
relevantes desse pensamento, cito, por exemplo, LANGE, Elena Louisa. Value without
Fetish: Kozo Uno’s Theory of “Pure Capitalism” in light of Marx’s critique of political
economy. Leiden: Brill, 2021.
28
Representada sobretudo por Hans-Georg Backhaus e Helmut Reichelt, mas inclui
também, entre outro, Michael Heinrich, que atingiu projeção internacional nos últimos
anos, com várias de suas principais obras tendo ganhado tradução para o inglês, cf.
ELBE, Ingo. Entre Marx, o marxismo e os marxismos: maneiras de ler a teoria de
Marx. Disponível em: https://zeroaesquerda.com.br/index.php/2021/06/01/entre-marx-
o-marxismo-e-os-marxismos-maneiras-de-ler-a-teoria-de-marx-ingo-elbe/. Acesso em:
27/10/2022.
29
Refiro-me aqui tanto ao grupo original da revista Krisis quanto ao aprofundamento
de sua pesquisa após a cisão na revista Exit!, incluindo desse modo autores como
Robert Kurz, Roswitha Scholz, Anselm Jappe, Norbert Trenkle, Ernst Lohoff, Claus
Peter Ortlieb. Para uma visão panorâmica desses autores: LARSEN, Neil, et al (Org.).
Marxism and the Critique of Value. Chicago: MCM’, 2014;
30
No qual intervieram autores como Rudolf Müller, Christel Neusü, Elmar Altvater e
Joachim Hirsch, tendo mais tarde se expandido para o Reino Unido graças à recepção
de John Holloway, Bob Jessop, Sol Picciotto e Simon Clarke, que, aliás, reuniu as
principais contribuições do debate britânico no livro The State Debate, Londres:
Palgrave, 1991.
31
Termo guarda-chuva usado para se referir a uma gama de correntes políticas, não
necessariamente enraizadas no movimento italiano chamado Autonomia operaia,
sobre o qual se falará nesse trabalho. Incluímos aqui autores como John Holloway,
Antonio Negri – em sua fase tardia -, Michael Hardt, Franco Berardi, Silvia Federici,
Harry Cleaver, Maurizio Lazzarato, movimentos como o MST, o MTST, o EZLN,
grupos como os coletivos O Comitê Invisível, Tiqqun, Aufheben. Em termos amplos, as
raízes desse campo político podem ser encontradas no operaismo, na Tendência
Johnson-Forest, no grupo Socialisme ou Barbarie, no Situacionismo.
21
e outros contiveram em seus projetos teóricos, de um modo ou de outro, a
tentativa de superar precisamente o fechamento da dialética marxista nas
categorias formais, no momento da identidade, abrindo o momento lógico para
aquilo que entendiam como sendo a materialidade. Recusando uma visão
simplista de que essa “tarefa” teórica e o desenvolvimento da teoria seriam
produtos desligados da luta de classes, um contínuo fora de histórica do intelecto
e da escolástica, a perspectiva que será defendida aqui é que há uma forte
relação entre uma reestruturação global do modo de produção capitalista, o ciclo
de lutas que atinge seu pico na janela histórica de 1968-1973 e a emergência do
Novo Marxismo contra as concepções ossificadas do marxismo tradicional, já
fora do próprio tempo, girando em falso como mera ideologia justificadora de
aparelhos burocráticos, partidos, Estados e acadêmicos – stalinistas ou social-
democratas, pouco importa.
Quanto ao conteúdo teórico do Novo Marxismo, as diferenças são inúmeras,
mas notam-se tendências e temas recorrentes: a crítica do empirismo e do
sociologismo, a reavaliação do materialismo, a crítica da subjetividade burguesa,
a crítica do humanismo e do historicismo, a crítica da tecnologia e análise do
processo de produção imediato, a crítica da indústria cultural e da cultura de
massas, a crítica do patriarcado e da repressão sexual, a crítica do consumismo
e do estilo de vida da (pequena-)burguesia de modo geral. Uma gama de
correntes e autores é agrupada sob o termo de Novo Marxismo. Vale retomar o
livro do professor Alysson Mascaro, que apresenta uma certa topologia do Novo
Marxismo: podemos entendê-lo como composto por três grandes linhas
principais (derivacionismo, alternativismos e a nova crítica do valor) e um eixo
tangente32.
Como alguns leitores podem achar que essa introdução foi uma digressão
tediosa, talvez até soporífera, retomo aquilo que dizia no começo: proponho
investigar o ângulo ainda pouco estudado no Brasil das origens do Novo
Marxismo, o lado radical do marxismo italiano na segunda metade do século XX
e, com os achados, reconstruir o que poderia ter sido uma crítica teórica do
direito que tivesse superado Pachukanis tanto quanto a crítica da economia
política desde então superou Rubin.
Nos capítulos que seguem alguns momentos cruciais do pensamento
marxista na Itália serão analisados, mas não de forma total, na completude de
suas experiências, muito menos na forma que um historiador faria, mas
perseguindo um fio teórico, uma problemática específica que permitirá
reconstruir um espelho frente ao qual seja possível retrospectivamente voltar a

32
Filosofia do Direito. São Paulo: Atlas, 2019, pp. 508-524. Do derivacionismo, pode-
se dar como exemplo os autores do Debate sobre a Derivação do Estado; do
alternativismo, Negri e Holloway; da Nova Crítica do Valor, Kurz, Jappe, Scholz, além
de outros próximos, como Moishe Postone e Jean-Marie Vincent; quanto aos
tangentes, pode-se pensar em Alain Badiou, Ernesto Laclau e Chantal Mouffe, Slavoj
Žižek, Pierre Bourdieu, Gilles Deleuze e Félix Guattari, Fredric Jameson, Étienne
Balibar, Jacques Rancière (da minha parte, adicionaria ainda Immanuel Wallerstein).
22
analisar Pachukanis, agora para não apenas critica-lo em seus próprios termos,
mas, sim, transcende-lo criticamente, com, espera-se, uma contribuição positiva
para a teoria da transição comunista. Não menos que os autores e movimentos
já citados, Galvano della Volpe, Amadeo Bordiga, o Operaismo, o
Althusserianismo de Gianfranco La Grassa, etc, também se inserem fortemente
no contexto descrito até aqui, relendo o significado de materialismo e reinserindo
a materialidade na teoria crítica, recolocando o marxismo como concepção
revolucionária da transição ao comunismo, em reação tanto às transformações
estruturais do capitalismo italiano e global, bem como às erupções e lutas
operárias e sociais, das greves operárias ao movimento estudantil, da retomada
da teoria revolucionária ao Outono Quente de 1969.
Assim, os capítulos de 1 a 4 serão principalmente expositivos, e não
explicativos, voltados a “peneirar” os momentos-chave do desenvolvimento do
marxismo italiano. Ao fim da parte expositiva, à guisa de conclusão, será feita
uma tentativa de elaborar as principais contribuições estudadas, extraindo do
objeto mesmo a lógica que as une, de modo a iluminar, pelas lentes da
transformação do modo de produção capitalista entre as décadas de 1920 e
1980 como os limites da crítica pachukaniana foram superados pela existência
real da totalidade capitalista e precisa ser extrusada para revelar, na teoria, a
alternativa revolucionária voltada à teoria da transição comunista hoje. Se, por
um lado, esse caminhar vai acompanhar certos teóricos e movimentos, por outro,
vai acompanhar etapas lógicas: a reconfiguração do significado de materialismo
(a partir da escola della-volpeana), a crítica radical da continuidade entre a
revolução burguesa e a proletária e, portanto, do que chamamos de
imanentismo33 (com o programmismo), a apresentação de uma periodização do
desenvolvimento do modo de produção capitalista a partir do conceito de
subsunção do trabalho (nos pós-programistas), a crítica da tecnologia e
concepções tecno-otimistas ou tecno-neutras, o desenvolvimento do conceito de
composição de classe34 (no operaismo), uma nova consideração do conceito de
trabalho abstrato e sua ligação interna com o direito burguês e como ele deve
levar à crítica da divisão social do trabalho a partir da análise concreta do
processo de produção (com a escola lagrassiana).

33
O termo é provisório e tanto quanto pode ser chamado de imanentismo, poderia
chamar-se transcendentalismo, pois falo aqui da visão segundo a qual, no bojo do
capitalismo, o socialismo já está em processo de organização, visão mormente
centrada em um elogio, ou no mínimo falta de crítica, do sistema fabril e da técnica.
Assim, o argumento a ser desenvolvido insistirá que, contrariamente ao capitalismo no
seio do feudalismo, o socialismo só pode estruturar-se a partir da ruptura radical, pela
ditadura de classe do proletariado e o advento do planejamento social consciente de
toda a produção social, sem deixar intocados elementos quaisquer da totalidade
capitalista, nem suas relações reais de produção, nem sua ideologia e aparência
fetichista necessária – condensada no discurso Iluminista, democrático, republicano.
34
Que deve ser contraposto, em substituição, ao conceito idealista e quase místico de
consciência de classe.
23
Cabem aqui alguns avisos. Em primeiro lugar, a exposição do
desenvolvimento teórico do marxismo na Itália aqui feita está muito longe de ser
exaustiva; de fato, trata-se de uma seleção, produto do processo de pesquisa,
que deixou pelos lados muitos teóricos, pensadores, militantes, revolucionários,
que tem um lugar irremovível na histórica do marxismo e do movimento
comunista35. Em segundo, o leitor perceberá que não me aterei necessariamente
a uma continuidade biográfica da exposição teórica, pelo contrário, deixarei que
os conceitos teóricos sejam nosso objeto quase que à despeito de quem os
tenha concebido. Procedo assim tanto por motivos de ordem metodológica
quanto por convicção política; no primeiro caso, trata-se de como o estudo
rigoroso descolou-se por si próprio das vidas individuais, particularmente no caso
do operaismo em que os indivíduos quase desapareceram no turbilhão do
movimento de massas e quando emergiam era na forma de grupos e
publicações coletivas; no segundo caso, é uma assumida influência
principiológica do programmismo e de Amadeo Bordiga, cujos intransigentes
anti-personalismo e anti-individualismo o fizeram rejeitar sempre a ideia de que
seu trabalho intelectual fosse apenas seu: insistia que se tratava do produto do
trabalho coletivo do partido. Tamanha convicção epitomizou-se no pseudo-
testamento de Bordiga:
“Eu não quero o nome Bordiga posto no mercado, como
uma isca estúpida para os que a jogam e os que a mordem,
e estou certo de que isso não ocorrerá após minha morte.
Aquele que não puder compreender a razão disto, não
entendeu uma única palavra de todos os textos e da história
da Esquerda 36 . Penso na minha morte com serenidade e
deixo exorcismos para os supersticiosos. Não tenho medo da
morte, mas temo a possibilidade de que o movimento inteiro
se idiotize para me comemorar. Embora tenha decidido não
deixar qualquer forma de testamento, vocês me forçam a
tomar todas as precauções necessárias de modo a evitar uma
tal super-merda. Quero que qualquer um use os textos
gratuitamente, com a condição de que o nome Bordiga não
seja mencionado. Isso é um problema relativo à práxis

35
Apenas a título de reconhecimento, alguns nomes que, lamentavelmente, não
puderam ser incluídos nessa pesquisa, não obstante pertenceram à janela histórica
investigada: Mario Mieli, Lelio Basso, os althusserianos Cesare Luporini, Ermanno
Krumm e Maria Antonietta Macchiocchi, Piero Sraffa, Claudio Napoleoni, Pier Aldo
Rovatti, Giuseppe Vacca, o sui generis Ludovico Geymonat, teóricas do feminismo e
da teoria da reprodução social como Mariarosa dalla Costa e Leopoldina Fortunati, o
situacionista Gianfranco Sanguinetti, Giacomo Marramao, os fundadores do Il
manifesto, Rossana Rossanda e Lucio Magri, para não falar de artistas-pensadores
como Pier Paolo Pasolini, Nanni Balestrini, Italo Calvino, Cesare Pavese e tantos,
tantos outros.
36
Isto é, a Esquerda Comunista, ou comunismo de esquerda, a corrente histórica
específica a que pertencia Bordiga.
24
burguesa, tanto quanto à práxis comunista. Se vocês fossem
todos maduros, eu poderia não estar preocupado, mas eu
prevejo suas fraquezas. Se estou infringindo algum direito da
História, bem então, eu não dou a mínima especialmente para
a História.”37
Todavia, não é possível, por motivos historiográficos e mesmo científicos,
omitir a questão da autoria – Bordiga esperava que seu partido atingisse tal nível
de unidade orgânica que dispensasse tais questões, mas isso não ocorreu na
prática38. Desse modo, resolvo a questão ao, em vez de apagar os indivíduos
simplesmente, inverter a prioridade e colocá-los no movimento da história da
revolução e da teoria comunistas, privilegiando a linha conceitual acima de seus
autores. Dito isso, prossigamos.
Argumentarei, em conclusão, que esse percurso levará à definição de um
conceito enriquecido de movimento real (wirkliche Bewegung), pois o
reaproveitamento desse conceito, demonstrando suas dupla determinação entre
as tendências imanentes das leis do modo de produção capitalista e a
conformação dos sujeitos políticos concretos capazes de realiza-los, indo além
da polissemia e abstração que o tornou parasitável pelas mais diversas correntes
oportunistas, sobretudo as auto-intituladas realistas, que esforçam-se para
manter-se em continuidade com aquilo que era velho no marxismo, seu substrato
iluminista e hegeliano, que desponta nas interpretações humanistas e
historicistas de vários modos, mormente pelo culto à indústria, à geopolítica, ao
campismo, e gostariam que o movimento comunista fosse o herdeiro por
excelência das revoluções burguesas. Em concreto, os autores aqui estudados
enxergam essas tendências sempre na ortodoxia que dominou o pensamento
italiano sob a tutela do PCI e chegou mesmo a ser igualada ao marxismo italiano,
tout court, aquela “linhagem”39 que é conhecida na Itália como linha De Sanctis-
Gramsci, isto é, a linha que unifica a filosofia hegeliana, historicista e humanista
de Francesco De Sanctis, Bertrando Spaventa, Benedetto Croce, Giovanni
Gentile e Antonio Gramsci, mas que pode ser estendida para trás, até as raízes
em Maquiavel e Vico, e para frente, passando pelo codificador Togliatti e
chegando à mais recente iteração desse pensamento, o popular Domenico
Losurdo40.

37
16 de novembro de 1962. Disponível em: https://www.quinterna.org/copyright.htm.
Acesso em: 21/08/2022.
38
Falarei especificamente sobre isso no momento apropriado.
39
GENTILI, Dario. Italian Thought: dall’operaismo alla biopolitica. Bologna: il Mulino,
2012, pp. 26-27.
40
Ganha ainda mais relevo conduzir, nesse momento, uma reavaliação do
pensamento marxista na Itália quando, em nosso país, costuma-se achata-lo
precisamente a essa forma de pensamento, que, na realidade, incorpora o que de
mais oxidado existia na ortodoxia do PCI e é contra o que gerações de revolucionários
se levantam desde 1950.
25
Acredito que uma pesquisa desse porte renderá instrumentos conceituais
com os quais transcender limites da teoria pachukaniana, em particular indo além
da dicotomia dogmática entre regulamentação técnica e regulamentação jurídica.
Nesse movimento de inspirar, outra vez mais, vida nas categorias da teoria
crítica, espera-se oferecer, ainda que tão somente como resposta provisória, um
novo paradigma, que destrone as forças produtivas da posição de tirania
transcendental sobre as relações sociais, sem, contudo, aceitar um voluntarismo
subjetivista ou negação abstrata, indeterminada da regulamentação jurídica. Ou,
em outras palavras, nosso objetivo pode ser resumido em recolocar o princípio
de que o comunismo é a abolição do direito.

26
Capítulo 1 –
Marx entre Rousseau e Kant

1.1 – A Itália depois de Mussolini41


Galvano Della Volpe pode ser considerado o primeiro grande pensador do
marxismo italiano no período que segue o final da 2ª Guerra Mundial. Nesse
sentido, deve ser também o primeiro nó da linha histórica que esse trabalho
propõe reconstruir. Porém, esse critério não é meramente cronológico, ou, se o
é, é de uma forma qualificada; com isso quer-se dizer que, tendo em
consideração as particularidades históricas da formação social em que aparece
o pensamento della-volpeano, ele estabelece conexões lógicas necessárias,
estas formando o verdadeiro liame teórico que puxaremos.
A primeira condição da formação do pensamento della-volpeano é a terra
arrasada que a combinação de fascismo e togliattismo fizeram do marxismo
crítico na Itália. Por um lado, Mussolini liquidou física ou politicamente as
principais forças do movimento operário e, por outro, o PCI, agora sob a
liderança de Palmiro Togliatti e sua forma vulgarizada de “gramscismo”,
monopolizou o campo marxista. Assim, natural que o renascimento do marxismo
crítico na Itália se desse na forma de uma polêmica contra Gramsci – ainda que,
na realidade, não se trate aqui de Gramsci como tal, mas antes como símbolo,
anteparo e instrumento do que estava efetivamente em questão.
Por outro lado, as diferenças reais na discussão aberta pela entrada de
Della Volpe no cenário marxista italiano também são condicionadas por uma
conjuntura política e econômica nova, o fascismo e sua queda impuseram ao
capitalismo italiano uma necessidade de reestruturação: o fim da guerra
significou a súbita integração ao mercado internacional, sem mais quaisquer
barreiras protecionistas, de um país ainda largamente agrário 42 ,
tecnologicamente atrasado e com uma baixa média de salários. Em particular no
Sul, o campo ainda se via ocupado por grandes latifúndios com técnicas
primitivas e condições deterioradas de produção, além da prevalência do
campesinato; coisa que na região central mudava apenas por tomar a forma da
parceria, que se tornou dinâmica fundamental das lutas sociais na região. Do
ponto de vista do capital, contudo, esse contexto era uma oportunidade
inigualável de crescimento e lucro, a burguesia italiana, agora sustentada pelo
amplo sistema financeiro centrado nos EUA, estava eufórica. Só um obstáculo

41
Já peço desculpas pela relativamente longa introdução neste capítulo, mas o
contexto histórico e político apresentado aqui será também relevante para os próximos
capítulos, que dispensarão aberturas tão extensas.
42
Mais de 40% da população economicamente ativa da Itália ainda estava
concentrada na agricultura. No Mezzogiorno, esse número chegava a 60%. Cf.
GINSBORG, Paul. A history of contemporary Italy: Society and politics (1943-1988).
Londres: Penguin, 1990, p. 28.
27
poderia acabar com as previsões de uma galopante industrialização italiana: o
renascimento do movimento operário43.
A “velha toupeira”, para desespero da burguesia italiana, representada
politicamente pelos democratas-cristãos do primeiro-ministro Alcide De Gasperi,
havia mostrado sua cabeça com a onda grevista que assaltou o vale do rio Pó
em 1943 e fez nascer o movimento de massas que precipitou a queda do regime
fascista.
O consenso em torno do regime, já em declínio,
colapsou com a chegada dos bombardeios aéreos dos
Aliados, escassez de alimentos e inflação vertiginosa. Seções
da classe trabalhadora industrial foram os primeiros a
expressar abertamente seu descontentamento. Em 5 de
março de 1943, trabalhadores da fábrica Rasetti em Turim
organizaram uma paralisação prolongada na fábrica. A polícia
foi chamada e dez grevistas foram presos. Algum tipo de
protestos também ocorreu na FIAT Mirafiori no mesmo dia.
Em 7 de março, paralisações se espalharam para nove
fábricas na cidade. As exigências dos trabalhadores eram
primariamente econômicas, envolvendo compensação igual
pela destruição dos bombardeios e o alto custo de vista. Um
pequeno número de militantes comunistas, encorajados pelas
notícias de Stalingrado, estavam na dianteira da agitação. Ao
fim do mês, muitos locais de trabalhado nas cidades
nortenhas tinham visto alguma forma de ação grevista, com
alguns 100.000 trabalhadores envolvidos ao todo. Em abril,
os empregadores e o governo anunciaram concessões
substanciais. As greves, as primeiras do tipo na Europa
fascista, causaram uma profunda impressão tanto na Itália
quanto no exterior. Mussolini disse aos líderes fascistas que
seu movimento havia retrocedido vinte anos, Hitler disse que
não entendia como tamanha desobediência havia sido
permitida, a Rádio Londres elogiou os trabalhadores de Turim
por ousarem afirmar seus direitos como seres humanos. 44

Tamanha demonstração de organização e insatisfação dos trabalhadores,


aliada ao desembarque aliado no Sul e os primeiros bombardeios em Roma, teve
seu efeito e Mussolini foi removido do poder pelo Rei em julho. Isso, porém, não
foi o fim do fascismo. O novo regime do Rei e do marechal Badoglio pretendia

43
MONTANO, Mario. On the methodology of determinate abstraction. Telos, 7, abril
1971.
44
GINSBORG, Paul. A history of contemporary Italy: society and politics (1943-1988).
Londres: Penguin, 1990, pp. 10-11.
28
ser uma ditadura militar e buscava evitar a destruição negociando ao mesmo
tempo com os Aliados e com a Alemanha. Inúmeras demonstrações operárias
imediatamente após a queda de Mussolini foram brutalmente reprimidas 45.
Pior ainda, a letargia do novo governo, incapaz de tomar ação decisiva,
permitiu uma rápida invasão da Itália pelo exército nazista. Após uma operação
paraquedista, os nazistas resgataram Mussolini de sua prisão e o instalaram
como chefe de estado simbólico da República Social Italiana, com capital em
Salò. É em meio a esse complicado processo de colapso do regime fascista,
ocupação por alemães e aliados, perda de autoridade da monarquia e do
exército, que as novas forças que dominariam a vida política italiana do pós-
guerra finalmente despontaram com força. O partido tradicional da burguesia, os
Liberais; os anti-fascistas liberais e democratas radicais, no Partido de Ação
(Partito d’Azione); os comunistas, principal força organizada entre os partisans,
por meio das Brigadas Garibaldi, agora sob firme e incontestável liderança de
Palmiro Togliatti; o Partido Socialista, liderado por Pietro Nenni, que enfrentava
uma crise interna, com um grupo de jovens 46 falando a língua da revolução
emergindo em Milão e se opondo à liderança reformista; e os Democratas
Cristãos, a seu turno, que estavam ainda em processo de formação. A união de
todas essas forças se realizou no Comitê de Libertação Nacional e,
posteriormente, no próprio governo, a começar pelo 2º gabinete do marechal
Badoglio, no final de 1944 e, em 1945, com o governo de Alcide De Gasperi.
Enquanto isso, no Norte, o movimento operário continuou ganhando força:
A ocupação alemã de setembro de 1943 em diante
trouxe uma dose adicional de terrorismo e repressão.
Trabalhadores suspeitos de organizar resistência eram
detidos e frequentemente deportados para campos de
trabalho alemães. Mas os nazistas eram incapazes de impor
sua vontade simplesmente pela força. Eles precisavam
gravemente da produção das fábricas italianas para
impulsionar o esforço de guerra e foram forçados a fazer
concessões a uma classe trabalhadora que não seria
silenciada pelo medo. Ocorria de as autoridades ameaçarem
desmontar maquinário das principais fábricas e transportá-lo
para a Alemanha, onde a produção poderia continuar sem
empecilhos. Tais ameaças raramente atingiam seu propósito.

45
Para dar um exemplo do absurdo, foram instaladas metralhadoras nas saídas das
fábricas da Alfa-Romeo para impedir que operários se juntassem às manifestações, cf.
GINSBORG, Paul, Op. Cit, p. 12.
46
É dessa interessante ala esquerda do Partido Socialista que um número significante
de novos revolucionários comunistas vão sair no pós-guerra, entre eles: Lelio Basso
(que romperia com o PSI para fundar o Partido Socialista de Unidade Proletária em
1964; fundido com o PCI em 1972), Raniero Panzieri (“pai” teórico do operaísmo,
fundador dos Quaderni Rossi), Antonio Negri, entre outros.
29
Os trabalhadores responderam com ações grevistas e, in
extremis, com sabotagem do maquinário em questão. 47
Não obstante a escalada repressiva alemã, o período final da guerra
acabou por representar a recomposição de um esforço de ação coletiva que não
se via desde a ascensão de Mussolini. Apesar da escassez e da fome, do inverno
rigoroso, dos bombardeios e da repressão fascista, ações grevistas cada vez
mais decididas continuaram durante todo o ano de 1944. Ao mesmo tempo, a
rede de resistentes do norte da Itália se fortalecia e organizava. Em março, mais
de 300.000 operários foram às ruas de Milão, com palavras de ordem mais
políticas que um ano antes: fim imediato à guerra e à produção bélica para a
Alemanha. Dessa vez, muito além do triângulo industrial, as demonstrações
chegaram ao Vêneto e à Toscana, paralisando cidades como Florença e
Bolonha.
A insurreição nacional que explodiu em abril de 1945 foi o resultado do
contínuo desse ascenso da resistência, tanto operária quanto partisan, e um
igualmente declínio do Eixo, com a Alemanha pressionada pelo Exército
Vermelho ao leste, pelos Aliados ao oeste, o desemprego, a inflação, a
escassez, o mercado negro espalhando-se como a peste pelas cidades do norte
da Itália. Mais que mera resistência, gestou-se ali a guerra civil: acertos de
contas e vendetas entre os civis, armamento dos trabalhadores, a tal ponto que
quando começou o ano, os bairros operários de Milão e Turim já eram
inacessíveis para as tropas fascistas. Ao mesmo tempo em que a linha aliada
lançava uma nova ofensiva, os rebeldes detonavam a insurreição: entre 24 e 26
de abril, Milão, Turim e Gênova se insurgiram. Em Turim, a insurreição foi
precedida por uma enorme greve em curso desde o dia 18; a maior parte dos
confrontos tiveram como palco as fábricas ocupadas. No dia 27, Mussolini foi
preso por partisans tentando fugir para a Suíça; de volta em Milão, foi fuzilado e
pendurado.
No primeiro de maio, todo o norte da Itália estava livre.
O caráter popular e insurrecional da Libertação, que deixou
uma impressão indelével na memória dos que participaram,
foi bem-vindo pela maioria, mas causou em alguns aguda
ansiedade. Houve um terrível acerto de contas, com talvez até
12-15.000 pessoas fuziladas imediatamente após a
Libertação. Quanto aos industrialistas do Norte, eles
esperavam por uma transição indolor de poder dos Fascistas
para as autoridades Anglo-Americanas. Ao invés disso,
encontraram suas fábricas ocupadas, os trabalhadores
armados, e um período de até dez dias entre a insurreição e
a chegada dos Aliados. Alguns dos mais seriamente
comprometidos não ousaram esperar e fugiram para a Suíça.
Ao longo dos meses seguintes, o medo de uma revolução

47
GINSBORG, Paul. Op. Cit, p. 21.
30
social iminente permaneceu muito forte nos círculos
capitalistas.48
A partir daí, os operários no Norte e os partisans no Sul se tornaram uma
ameaça constante à estabilização do Estado italiano e, consequentemente, à
reestruturação econômica do país. Mas, contrariamente ao que poderia ser
esperado, o PCI não se colocou ao lado dessa ameaça. Desde o retorno de
Togliatti da URSS em 1944 e chamada svolta di Salerno, a nova liderança do
partido entendia como tarefa principal aliar-se às forças burguesas democráticas
contra o fascismo49 e, em seguida, para “concluir a revolução burguesa” na Itália,
completando a transição ao capitalismo avançado. Isso não excluía reconciliar-
se com a monarquia50, os anti-fascistas liberais e mesmo os novos anti-fascistas
(quer dizer, os que acabavam de ter saltar do barco furado de Mussolini). Mesmo
a linguagem do PCI estava mudada: nem proletariado, nem ditadura de classe,
nem insurreição, nem abolição da propriedade privada; no lugar, Togliatti fala em
anti-fascismo e democracia, solidariedade nacional e, principalmente, em um
grande bloco nacional. Prontamente, o PCI desarmou as Brigadas Garibaldi – a
força paramilitar dos comunistas – e emitiu chamados aos trabalhadores
“apertarem os cintos em nome da reconstrução nacional” e não fazerem greve.
Talvez o mais simbólico dessa nova orientação do PCI ocorreu em 1948: após
uma tentativa de assassinato contra Togliatti, trabalhadores genoveses lançaram
uma greve de massas; armados, tomaram fábricas e assumiram o controle da
cidade. Togliatti e toda a direção do partido reagiram: ressaltaram a necessidade
de abaixar as armas e respeitar a legalidade burguesa.
Isso significou que no exato momento em que o
movimento dos trabalhadores e dos partisans estava em seu
auge, quando o “vento do Norte” estava soprando com mais
força, os Comunistas aceitaram o adiamento de todas as
questões de natureza política ou social até o fim da guerra.
Todos os problemas críticos acerca da natureza específica da
Itália pós-guerra – as relações entre capital e trabalho, a
natureza do novo Estado, a extensão da reforma social –
foram colocadas na geladeira. Mas não é possível congelar a
história dessa forma. Enquanto os Comunistas adiavam em
nome da honorável unidade nacional, seus oponentes agiram,
decidiram, manobraram e, não surpreendentemente,
triunfaram. O Rei, Badoglio, os Aliados, o Clero, os
latifundiários do Sul, os capitalistas do Norte, cada um deles

48
GINSBORG, Paul. Op. Cit, p. 68.
49
TOGLIATTI, Palmiro. The political situation in Italy. 1944. Disponível em:
https://www.marxists.org/archive/togliatti/1944/political-situation.htm
50
Togliatti não esperou nem mesmo a queda da monarquia: assumiu a posição de
vice-primeiro-ministro no 2º governo Badoglio, com Vitor Emanuel ainda reinando, no
final de 1944.
31
continuou a perseguir seus objetivos com todos os meios à
disposição.51
Longe, de algo exclusivo da Itália, essa foi a tendência geral dos partidos
stalinistas ligados à URSS. Assim resume Fernando Claudín a atuação do
partido francês, por exemplo:
Mas a política do PCF foi a que vimos: cooperar com De
Gaulle na liquidação da Resistência, dizer à classe operária
para apertar os cintos para restaurar a economia capitalista,
frear – quando não algo pior – o movimento de libertação das
colônias francesas, semear ilusões na via parlamentar e
pacífica, continuar idealizando os Aliados. Foi uma nova
edição da política tradicional, reformista e nacionalista da ala
direita da social-democracia francesa.52
E ainda: “A política do Partido Comunista Italiano [PCI] durante a
Resistência, a Libertação e os primeiros anos do pós-guerra, não difere
essencialmente, quanto à sua orientação geral, da do partido francês”. Em outros
termos, o papel principal do PCI, após sua entrada no Comitê de Libertação
Nacional – e mais ainda depois de Togliatti aceitar uma posição minoritária no
governo italiano, em bloco com a democracia cristã e os socialistas de Pietro
Nenni – foi o de domesticar, acalmar e manter sob controle um movimento
operário exaltado e disposto, dadas as circunstâncias, a lutar e, inclusive, pegar
em armas.
Em dezembro, os Comitês de Libertação Nacional se
tornaram Comitês de Administração de Empresa, ou melhor
ele tomaram aqueles órgãos criados sob o corporativismo de
Mussolini. O papel principal de cada CAE era ajudar a colocar
pessoas de volta ao trabalho e reforçar a hierarquia. Seu
método era uma mistura de Taylorismo e Stakhanovismo:
brigadas jovens, grupos de voluntários, incentivos materiais,
bônus por limpeza e manutenção de máquinas... A ideia era
incitar “o entusiasmo das classes trabalhadoras pelo esforço
produtivo”.53
O grande bloco nacional não podia correr o risco de obstaculizar a “marcha
do progresso”, a reconstrução do capitalismo nacional e o estabelecimento de
uma “nova democracia”.
Aberto a coalizões com outros partidos e disposto a
jogar o jogo parlamentar, Togliatti promulgou uma estratégia

51
GINSBORG, Paul. Op. Cit, p. 47.
52
CLAUDÍN, Fernando. Op. cit.
53
DAUVÉ, Gilles; NESIC, Karl. Love of labour? Love of labour lost… 2002. Disponível
em: https://endnotes.org.uk/articles/love-of-labour-love-of-labour-lost.
32
nacional que iria construir em cima da democracia burguesa
em vez de buscar miná-la. Decidido a mostrar seu
compromisso com os meios moderados, ele serviu como
Ministro da Justiça no governo pós-guerra de Alcide De
Gasperi e ajudou a escrever a nova constituição republicana
após a queda de monarquia, que os Comunistas na realidade
nunca buscaram vigorosamente. Uma “via italiana ao
socialismo” específica, ele insistia, podia ser seguida, o que
significava essencialmente retornar à estratégia de Frente
Popular dos anos 1930 de modo a construir um movimento de
massas com raízes profundas na sociedade italiana. Mesmo
depois dos Democratas Cristãos conseguirem chutar o PCI
do governo em janeiro de 1947, Togliatti se manteve leal a
essa estratégia de longo prazo, que seus sucessores até hoje
não abandonaram. 54
Mesmo anos após o fim da guerra, Togliatti não se cansava de reproduzir
a estratégia frentista, em níveis cada vez mais aberrantes, falando muito em
“civilização” e “humanidade”, como em um discurso de 1954:
Se considerarmos a situação dessa forma, já vemos que
assim se abre uma vastíssima possibilidade de dar vida a algo
que eu não quero nem mesmo chamar de fronte (porque é
uma palavra excomungada!), mas um movimento, um
conjunto de forças muitos diversas umas das outras pela
própria natureza, pelo próprio caráter social e político, e que
seria, de fato, um movimento pela conservação da civilização
humana, pela conservação da humanidade mesma. Este é o
problema que está hoje diante de nós, e que está acima de
todos os outros.55
Para Togliatti e a então liderança do PCI, a luta de classes ou mesmo a
perspectiva de subversão e destruição da sociedade capitalista haviam perdido
o sentido. Não se tratava de revolução ou ditadura do proletariado, mas, tão
simplesmente, de organizar uma frente amplíssima pela paz, pela reconstrução,
pela “democracia avançada”, pela unidade nacional, pela “humanidade”, sempre
na linha do último stalinismo, o stalinismo da democracia popular e da
coexistência pacífica que passou a dominar após 1945, sempre excomungando
os “extremistas” e “esquerdistas” com a ameaça de outra guerra mundial e do
enorme poder dos inimigos de classe, diante dos quais não se poderia ousar
mais nada, só defender-se e negociar. Começa uma nova fase do discurso
campista pró-moscovita. No lugar de uma perspectiva revolucionária,

54
JAY, Martin. Marxism and Totality: the adventures of a concept from Lukács to Habermas.
Berkeley: University of California, 1986, pp. 423-424.
55
De um discurso pronunciado no Comitê Central do PCI a 12 de abril de 1954,
intitulado Per un accordo fra communisti e cattolici per salvare la civiltà umana.
33
excomungada como “maximalista”, o PCI assumiu o papel de conciliar reformas
sociais moderadas com a reconstrução de uma ordem liberal democrática; tirou,
sem dúvida, enorme força da expectativa generalizada por reformas econômicas
e sociais, mas, nem por um momento, parece ter acreditado na possibilidade de
tomada de poder ou mesmo em uma estratégia voltada para esse sentido. Pelo
contrário, a tarefa era a “democracia avançada” – e esperar pelos tanques de
Stálin, que trariam o socialismo como os Aliados haviam trazido a democracia.
Unidade nacional, democracia avançada, uma
duradoura coalizão de partidos populares de massas – estes
eram os pontos cardeais da estratégia Comunista. Ao tentar
explicar essas escolhas é importante não superestimar a
originalidade ou autonomia do que ficou conhecido como
“virada de Salerno”. As formulações de Togliatti, na realidade,
eram largamente alinhadas com as teses adotadas pela
Comintern em seu sétimo congresso em julho de 1935. Após
a obliteração do movimento operário alemão por Hitler, o
sétimo congresso abandonou a antiga desastrosa política de
caracterizar os partidos de massas social-democráticos como
“social-fascistas”. No lugar, deu apoio total à criação de
governos de frente popular, baseados na aliança com partidos
democráticos, para combater a ameaça fascista. Essa era a
política que havia sido seguida pelos Comunistas na Espanha
e o programa de Togliatti era a aplicação lógica dele para a
Itália.56
O embasamento para sua visão política e estratégica, Togliatti foi buscar
em Gramsci. Com base em sua análise da história política da Itália, suas
reflexões sobre a “guerra de movimento” em contraste com a “guerra de
posições”, seu conceito de bloco histórico, tudo foi digerido pela liderança do
partido. Mas, ao mesmo tempo, a leitura feita de Gramsci era claramente parcial
e, não só, contava também com adições. Foi de Togliatti a ideia de tomar o
partido dos “pequenos negócios potencialmente progressistas” contra o capital
monopolista; foi também dele a inversão da formação do bloco histórico para
incluir aliança de cima pra baixo, como a coalizão com a Democracia Cristã. De
certo modo, toda a transformação da longa marcha gramsciana pela sociedade
civil em uma longa marcha togliattiana pelo aparelho de Estado.
Esquematicamente falando, a maior decisão que ele
[Gramsci] nunca decisivamente tomou foi entre Croce e Lênin,
humanismo neo-hegeliano e bolchevismo. Gramsci, é claro,
parece ter pensado que uma síntese criativa desses dois
impulsos podia ser forjada. E, de fato, muitos de seus
admiradores posteriores encontraram em seu trabalho
justamente essa integração, assim como alegaram que ele

56
GINSBORG, Paul. Op. Cit., pp. 43-44.
34
havia superado tensões tão tradicionais do próprio marxismo
como voluntarismo contra espontaneísmo e economismo
contra jacobinismo. Mas, para outros, Croce e Lênin pareciam
ser um par muito pouco natural para serem casados por muito
tempo em uma verdadeira síntese. 57
Enfatizando sua dívida para com o idealismo croceano
que ainda dominava a cultura italiana, Togliatti tornou
Gramsci no santo padroeiro de um leninismo domesticado,
humanista e não-muito-revolucionário que iria buscar atrair
um amplo espectro de intelectuais simpatizantes.58
O autor dos Cadernos do Cárcere, em sua análise do Risorgimento,
enfatizou a formação da nação italiana em sua transição para o capitalismo como
um processo incompleto, deixado nas mãos das alas mais moderadas da
burguesia, que nunca teve apoio massivo do campesinato, de tal sorte que a
unificação italiana teria sido meramente formal, mantendo uma enorme
desigualdade entre o Norte e o Sul. Na perspectiva de Gramsci, isso se
relacionava a uma falta de desenvolvimento, um atraso, praticamente um
arcaísmo pré-burguês – chegando a dizer que o Sul estava em dependência
neo-colonial. Togliatti, à frente de um PCI com apoio de massas ao fim da 2ª
Guerra Mundial, invocaria como a tarefa do momento completar a revolução
burguesa e democrática, sanar essas faltas da formação social burguesa na
Itália efetuando, pela primeira vez, um movimento “popular-nacional”.
O relato de Gramsci segue as principais linhas da
historiografia liberal contemporânea e, com exceção de sua
ênfase dúbia nas possibilidades irrealizadas do Risorgimento,
é inteiramente contínua com a análise geral de Spaventa. 59
No campo propriamente teórico, aliás, o PCI não se furtou de continuar
esse mesmo trabalho. Diante da “enorme” tarefa de passar de uma teoria da luta
de classes para uma teoria do espírito nacional, do povo, da democracia, o
gramscismo, que já mantinha desde sempre relações próximas com o neo-
hegelianismo inspirado por Benedetto Croce 60 , foi re-hegelianizado. O
“marxismo” italiano do PCI passa a ser, em realidade, um neo-idealismo em que

57
JAY, Martin. Op. Cit., p. 152.
58
Ibid, p. 424.
59
PICCONE, Paul. Italian Marxism. Berkeley: University of California Press, 1983, p.
38.
60
“Afinal, não é nenhum mistério que Gramsci foi incapaz de conceber o marxismo
senão em uma chave idealista, por isso, ele permaneceu ancorado no historicismo de
Croce (a história como criação do espírito) e em seu conceito de liberdade. Ao
examinar a Revolução de Outubro (L’Avanti! 25 de julho de 1918), Gramsci escreveu
com efeito que: “o desenvolvimento histórico é governado pelo ritmo da liberdade” que
“é a força imanente da história que faz explodir todo esquema preestabelecido”.
DAMEN, Onorato. Gramsci tra marxismo e idealismo. 1988. Disponível em:
https://www.marxists.org/italiano/damen/gramsci/2.htm
35
a luta de classes aparece apenas lateralmente, pois o que vigora é o historicismo
neo-hegeliano. Esse historicismo era perfeitamente conveniente para a
perspectiva geral não apenas de Togliatti, como do movimento comunista oficial
gerado pelo stalinismo: remova o Espírito em direção ao Absoluto, que desdobra
as várias fases da história apenas como verdades parciais e passos necessários
de uma mesma consciência, e coloque em seu lugar as forças produtivas, a
cidadania e a democracia de todo o povo, o espírito nacional ou qualquer outra
platitude que pudesse conciliar os interesses da URSS de então com as
primeiras formas da política de Coexistência pacífica, esboçada por Stálin e
realizada por Khrushchev.
Como afirmou Lucio Colletti em uma entrevista para a New Left Review:
De 1955 em diante, entretanto, eu me envolvi com as
lutas internas sobre política cultural no PCI. Naquela época, a
orientação oficial do Partido girava em torno de uma
interpretação do Marxismo como um “historicismo absoluto”,
uma fórmula que tinha um sentido muito preciso – significa um
modo de tratar o Marxismo como se fosse a continuação e o
desenvolvimento do historicismo do próprio Benedetto Croce.
Era sob essa luz que o Partido também buscava apresentar o
trabalho de Gramsci. A versão de Togliatti do pensamento de
Gramsci não era, é claro, fiel. Mas o fato é que os escritos de
Gramsci eram utilizados para apresentar o Marxismo como
realização e conclusão da tradição do Idealismo Hegeliano
Italiano, em particular o de Croce.61
Precisamente por causa de sua concepção frente-amplista, Togliatti
permitia que no PCI existisse, todavia, uma variedade e diversidade intelectual
distinta da maioria dos partidos ligados a Moscou. Mantidos sob controle, no
período de auge da influência comunista, não incomodavam a liderança,
contanto que resguardados certos limites. Essa conjuntura, porém, chegaria ao
fim e o momento de ruptura: 1956, quando a Revolução Húngara e o início do
“degelo” khrushchevista mobilizariam uma nova militância progressivamente
insatisfeita com a situação do partido. O próprio Togliatti aproveitou para lançar
uma plataforma de reformas no oitavo congresso do partido. Em várias
publicações, como Rinascita, Il contemporaneo e Società, os intelectuais do PCI
passaram a se permitir maiores divergências e debates públicos intensos. Foi a
oportunidade para os opositores internos começarem a radicalizar suas visões,
tornarem públicos seus desacordos com o rumo que o partido vinha tomando há
mais de uma década.

61
A political and philosophical interview. Disponível em:
https://newleftreview.org/issues/i86/articles/lucio-colletti-a-political-and-philosophical-
interview
36
Nenhuma cultura marxista nacional após a Segunda
Guerra Mundial era tão rica e viva quanto aquela que emergiu
das cinzas da Itália de Mussolini. Usando a popularidade
ganha como principal força do movimento partisan,
especialmente no Norte, o Partido Comunista, aparentemente
destruído em 1926 quando Gramsci e a maioria dos outros
líderes foram presos, reconstituiu-se como uma poderosa
força política depois de 1944. 62
Alguns, tentaram salvar Gramsci da interpretação togliattista, como
Rossana Rossanda e Lucio Magri, no jornal Il manifesto – terminaram expulsos
do partido em 1964. Para muitos outros, porém, não valia a pena “salvar”
Gramsci de Togliatti; de fato, passaram a se acumular críticas de Gramsci e,
consequentemente, do historicismo e hegelianismo dominantes na tradição
Comunista do PCI. É aqui que Galvano Della Volpe despontaria no cenário do
pensamento marxista italiano. A princípio aluno do socialista liberal Rodolfo
Mondolfo, passou a ser influenciado por Giovanni Gentile nos anos 20, antes de
então rechaçar o idealismo e o neo-hegelianismo, período em que se aproximou
da filosofia de David Hume, de quem pode-se dizer que herdou a hostilidade ao
pensamento a priori. Na década de 1940, aproximou-se do existencialismo em
voga e da obra de Rousseau, ambas marcando nele a conexão íntima entre
filosofia e política; esse percurso culminou com sua adesão ao marxismo e ao
PCI em 1944. Nas décadas seguintes, Della Volpe63 tornou-se um filósofo maior
da vida intelectual italiana, grande e completo, tanto pela profundidade de seu
pensamento, quanto por sua amplitude: além da epistemologia e da lógica, tratou
da política e da estética – na realidade, um dos poucos pensadores italianos a
oferecer uma teoria tão compreensível da estética, de modo que mereceria um
estudo dedicado tão somente a ela, que está no mesmo nível de articulação que
as de Adorno ou Lukács64. Mas o que interessa agora é o período que vai de
1950 – quando publica Lógica como ciência positiva – a 1968 – ano de sua morte

62
JAY, Martin. Op. Cit., p. 423.
63
As principais obras da fase madura de Della Volpe são Logica come scienza storica,
para o método, lógica e epistemologia; Rousseau e Marx, para a política, democracia
e legalidade – apesar de conter um excelente sumário de sua visão metodológica
como apêndice; e Critica del Gusto, dedicado à estética. Além desses, vale citar
Critica dell’ideologia contemporanea, seleta de ensaios polêmicos sobre os três
grandes eixos de seu pensamento.
64
Não haveria espaço para tratar satisfatoriamente da estética de Della Volpe nesse
trabalho, então me limito a dois comentários: 1) ao trazer as mesmas preocupações de
sua lógica para a estética, Della Volpe desenvolve um conceito interessantíssimo da
arte como campo cognitivo, recusando sentimentalismos românticos, em termos que
lembram a famosa Lettre sur la connaissance de l’Art, de Althusser. 2) também na
estética rompendo com as tautologias e unidades apriorísticas, Della Volpe faz uma
crítica pertinente do conceito de realismo em Lukács, pelo que o italiano parte em
defesa das vanguardas modernistas tão subestimadas pelo húngaro, notavelmente
James Joyce, muito estimado por Della Volpe.
37
–, em que ele, recusando a tradição historicista e voltando-se para uma exegese
atenta do próprio Marx, articulará seu pensamento do marxismo como ciência. 65

1.2 – O materialismo científico de Galvano Della Volpe


1.2.1 – Della Volpe, seus aliados e seus inimigos
Na já citada entrevista, diz Colletti: “Foi nesse contexto que minha relação
com Galvano Della Volpe, que naquele tempo estava efetivamente ostracizado
dentro do PCI, se tornou muito importante para mim”. Não há exagero aqui, pois
contra o par historicismo absoluto e gramscismo-togliattismo, Della Volpe
começou como uma voz solitária dentro do movimento comunista oficial e todo
o seu desenvolvimento teórico nas duas principais linhas que são objeto de
nosso estudo, o método de Marx e a política, precisa ser entendido também
polemicamente, como contraposição do status quo do PCI. Os discípulos de
Della Volpe – entre outros, Umberto Cerroni, Giulio Pietranera, Nicolao Merker,
Mario Tronti66, Mario Rossi e o próprio Colletti - levariam isso ainda mais longe,
pois enquanto o mestre parecia reservar-se ao campo teórico, mantendo firme
disciplina de partido que lhe permitiu ser convidado a compor o comitê editorial
de Società em 1956, della-volpeanos como Colletti fariam a contraposição
explodir no nível político imediato, até o ponto da insustentabilidade – levando,
por exemplo, à saída de Colletti do partido em 1964.
A literatura já reconhece que os problemas teóricos postos pelo della-
volpismo em sua oposição ao historicismo, à linhagem Spaventa-Croce-
Gramsci-Togliatti, rescaldava em um problema político fundamental. O
historicismo, como já dito, mantinha relações fortes com o entendimento das
particularidades nacionais italianas, sobretudo quanto às diferenças regionais e
o atraso do Sul. Os della-volpeanos, pelo contrário, passariam a ser preocupar
com as categorias universais do pensamento marxista, com as leis de
movimento do capitalismo em geral. Nisso já estava contida a oposição entre o
della-volpismo e o historicismo togliattiano. A partir da década de 1960, como
resultado da veloz industrialização da Itália e o avanço do que, nos debates da
época, foi chamado “neocapitalismo”, uma nova geração de marxistas passou a
ver como ultrapassada a concepção política e filosófica do PCI; no lugar, a Itália
passava a ser concebida como plenamente capitalista e, com isso, entrava em

65
PINHEIRO, Vinícius Magalhães. Filosofia e Direito em Galvano Della Volpe. São
Paulo: Alfa-Ômega, 2011. Em todo este capítulo, apoiei-me em grande medida nesse
livro.
66
Que estudaremos mais detalhadamente ao falar do operaísmo, ou seja, de Tronti
após romper com o della-volpismo.
38
declínio a cultura política e filosófica do historicismo, da via italiana, enfim, da
“democracia avançada” e todos os correlatos 67.
A transformação capitalista da Itália tornara
problemática a ideia – na qual o historicismo humanista se
assentava – de que capitalismo e planejamento eram
incompatíveis. Os conceitos de racionalidade, progresso e
universalismo não pareciam mais suficientes para estabelecer
uma clara linha de demarcação com o adversário,
aparecendo no lugar como esferas elas mesmas crivadas de
contradições e precisando de redefinição. Confiança na
continuidade fluída da concepção historicista estava
começando a ser substituída por uma necessidade de
análises baseadas em formas sólidas e bem estruturadas. 68
Ainda mais longe, a originalidade e grande contribuição de Della Volpe é
forçar os marxistas italianos a retornarem ao texto de Marx 69. Uma tradição de
certo modo preguiçosamente acostumada ao croceanismo e à linha oficial do
PCI, repetindo Togliatti, Gramsci, Stálin e, quando muito, Lênin, era enfrentada
com uma nova rigorosa leitura de Marx, em um processo de reinterpretação que
queria ser, mais do que teoria, o desmonte exatamente da tradição que a
precedia. Assim como Althusser mais tarde, Della Volpe quer ressaltar a
originalidade de Marx contra Hegel e o que faz essa originalidade. Em sua
reinterpretação de Marx, Della Volpe toma a perspectiva de um marxismo
científico, mais próximo da sociologia que da filosofia, mais preocupado com uma
forma de conhecimento experimental em geral do que com a produção de um
sistema conceitual e expressivo. Para adiantar a chave de leitura adotada aqui,
Della Volpe é um nome fundamental de um processo global de crítica da
interpretação hegelianizante, humanista e historicista, do marxismo que havia
irrompido nos anos imediatamente posteriores à revolução de 1917, em
contraposição ao mecanicismo do marxismo da 2ª Internacional 70.

67
Isso disse o próprio Colletti, em A political and philosophical interview. Ver também:
BALIBAR, Étienne. Introduction to Cerroni. Economy and Society, vol. 7, nº 3, 1978,
pp. 238-239. Martin Jay, no livro já citado, também fala sobre isso.
68
IZZO, Francesca. Althusser and Italy: a two-fold challenge to Gramsci and Della
Volpe. International Critical Thought, 5:2, 2015, p. 202. Disponível em:
https://www.tandfonline.com/doi/full/10.1080/21598282.2015.1031958.
69
“A lição essencial que aprendi de meu contato com os escritos de Della Volpe era a
necessidade de uma relação absolutamente séria com o trabalho de Marx – baseado em
conhecimento direto e real estudo dos textos originais.”, cf. COLLETTI, Lucio. A political and
philosophical interview.
70
É assim que Althusser descreve o percurso histórico do historicismo e, nessa
medida, seu mérito histórico e a importante tarefa que exerceu mediante o
pensamento de figuras como Rosa Luxemburgo, Karl Korsch, György Lukács, Antonio
Gramsci, entre outros. Cf. ALTHUSSER, Louis; et al. Reading Capital. London: Verso,
2015, pp. 203-205.
39
Como um então discípulo de Della Volpe, Mario Tronti, diria em 1958:
Portanto, a ideia de um Anti-Croce não é uma tarefa
contingente ou de azar, ditada por desenvolvimentos
particulares, culturais, nacionais; ela representa o momento
dominante e global do Marxismo, é a tarefa histórica do
Marxismo em nosso tempo. Se hoje considerarmos que “os
motivos para esse Anti-Croce estão em maior parte
exauridos” (um resumo do relatório de Luporini), precisamos
concluir que o seu resultado é “em maior parte” a exaustão da
problemática Gramsciana no Marxismo.71
E, com efeito, podemos entender nesses termos a grande tarefa filosófica
que os della-volpeanos colocaram para si mesmos.
Desconsiderando as restrições de Lukács e Gramsci
contra Bukharin, eles insistiram que o Marxismo era muito
mais próximo da sociologia, a ciência da sociedade, do que
da filosofia. Hostis à distinção putativa entre as ciências
culturais e naturais eles afirmaram que havia um único
verdadeiro método científico, que Marx compartilhava com
Galileu e outros genuínos cientistas. O “galileanismo moral”
de Marx, como Della Volpe gostava de chamá-lo, não era nem
a pseudociência idealista do “Materialismo Dialético” nem o
positivismo dos empiristas burgueses. No lugar, ele seguia o
método da “abstração determinada”, que evitava os extremos
do apriorismo e do aposteriorismo. Modelado mais em Hume
e Kant que em Hegel ou Espinosa, a ciência marxista era
genuinamente materialista em sua apreciação da disparidade
entre pensamento e seu objeto. E, concomitantemente, ela
empregava um conceito de totalidade que de modo algum
ecoava o holismo metafísico de Hegel ou Espinosa. 72

1.2.2 – Crítica do hegelianismo e reconstrução do materialismo


É, sobretudo, na Crítica da Filosofia do Direito de Hegel, de 1843, que Della
Volpe encontrará a primeira exposição clara e precisa dos fundamentos do novo
método de Marx, sua ruptura radical com Hegel 73. Diz Della Volpe que é a partir

71
TRONTI, Mario. Some questions around Gramsci’s Marxism. 1958. Disponível em:
https://viewpointmag.com/2016/10/03/some-questions-around-gramscis-marxism-
1958/.
72
JAY, Martin. Op. Cit, p. 423.
73
Em todo o trecho que segue me baseei, sobretudo, em Rousseau e Marx, Roma:
Riuniti, 1997. Há uma conhecida tradução inglesa, Rousseau and Marx, London:
Lawrence and Wishart, 1978, porém ela não tem uma interessante, ainda que curta,
seção acerca do positivismo lógico e da dialética não idealista – provavelmente
40
daquele ponto que Marx revela que a filosofia hegeliana não se move nem no
terreno da razão pura, nem da realidade propriamente dita; ao contrário, seria
um movimento de inversão: Hegel, acreditando atingir os conceitos da razão
pura, tal como o conceito de Estado, na verdade apenas decalcava a forma do
Estado prussiano de seu tempo, transfigurado por seu método especulativo. E,
no passo seguinte, o conceito agora elevado pela especulação passa a aparecer
como se fosse a coisa real, a essência da qual o ponto de partida, a realidade,
não passa de um fenômeno74. Assim, o método hegeliano – e, de certo modo,
de todo o idealismo – se baseia na inversão de sujeito e predicado: o sujeito real,
o Estado tal como ele existe, passa a ser apresentado como fenômeno de seu
predicado, o conceito de Estado. A isso Della Volpe dá o nome de hipostatização.
Hipostatização (do grego hypostasis, sinônimo de ousia,
ou substância), a substantificação do pensamento é para
Della Volpe o mecanismo fundamental da dialética idealista.
Primeiro, a especulação reduz a realidade a uma ideia;
depois, ela toma essa ideia pela própria realidade e a
substantifica. Logo, a hipostatização implica a inversão de
sujeito e predicado, de finito e infinito, de matéria e mente 75.
Contrariamente às tentativas de cindir completamente a filosofia hegeliana
das posições políticas tardias de Hegel e do estatuto que o filósofo atingiu sob a
monarquia prussiana, já desde esse momento Marx, citado por Della Volpe,
deixa evidente as implicações conservadoras da hipostatização:
Em outras palavras, Marx quer dizer que assim fazendo,
Hegel faz do estado histórico daquele período genérico, faz
dele a mais universal essência, e assim põe a si mesmo na
posição de ser incapaz de ver mais o que havia ali em sua
estrutura e origem (histórica) que era particular ou específico,
e portanto não o critica. Assim, vê-se como a notória
exaltação de Hegel, ou idealização, da “constitucional”, semi-
feudal monarquia prussiana de 1820 poderia ocorrer. 76

excluída da tradução por ter sido, à época, intervenção de Della Volpe em um debate
específico ao contexto italiano.
74
O exemplo principal de Della Volpe para ilustrar a desmistificação do método
hegeliano por Marx é o da análise da passagem da família e da sociedade civil ao
Estado na Crítica da Filosofia do Direito de Hegel: ao invés de compreender a
construção real do Estado a partir das relações da sociedade, Hegel – acusa Marx –
apresenta a sociedade civil como elemento interno do movimento do Estado,
subsumido a ele. Ver: Rousseau e Marx, Roma: Riuniti, 1997, pp. 140-143; Logica
come scienza storica, Roma: Riuniti, 1969, pp. 125-127. Pode-se conferir o trecho
citado em MARX, Karl. Crítica da filosofia do direito de Hegel, São Paulo: Boitempo,
2010, pp. 29-32.
75
MONTANO, Mario. On the methodology of determinate abstraction. Telos, 7, abril
1971, p. 33.
76
Rousseau e Marx, Roma: Riuniti, 1997, p.143.
41
Agora, o que explica que Hegel possa cair nessa hipostatização? Marx, na
leitura de Della Volpe, teria mostrado que isso seria uma consequência do lado
“místico” inerente à especulação, integral para a dialética hegeliana. Na
especulação hegeliana, o que se faz é uma forma particular de abstração, que
Della Volpe alcunha de abstração genérica ou indeterminada, que descarta
todos os traços concretos, específicos, determinados do objeto, em uma
tentativa excessivamente “direta” de tentar atingir o universal – mas apenas o
formalmente universalista 77 . Note-se que aqui a crítica marxiana (jovem-
marxiana? Marxo-della-volpeana?) à filosofia do direito de Hegel é bastante
similar à crítica feuerbachiana do cristianismo – o cristianismo como inversão de
sujeito e predicado, como culto do “homem” abstrato do qual foram removidos
os traços específicos para torná-lo uma Ideia universal78.
Consequentemente, diz Della Volpe, a divergência central entre Marx e
Hegel é sobre o estatuto do a priori, associado ao momento especulativo da
dialética hegeliana. Em outros termos, a dialética hegeliana é apresentada como
fechada em si mesma, o conceito na forma da Razão é um circuito puramente
lógico. Em Hegel, na medida em que o verdadeiro sujeito é o Espírito que

77
Friso que aqui se trata, principalmente, da leitura della-volpeana de Hegel e não do
Hegel mesmo; a literatura disponível sobre Hegel mostra que, não obstante as
qualidades do della-volpismo e a importância de sua crítica do hegelianismo, não
sobra dúvida que foi uma leitura de certo modo tendenciosa e simplificadora também.
Por exemplo, a crítica que Della Volpe faz da abstração genérica aqui não seria quase
a mesma que o próprio Hegel fez do pensamento abstrato? Ver: "Uma pessoa que
realmente conheça o ser humano (Menschkenner) traça o caminho de formação do
criminoso; ele encontrará na história do criminoso uma educação deficiente; péssimas
relações familiares entre seu pai e sua mãe; alguma punição monstruosa após um
leve delito, que deixa esse homem amargurado com a ordem civil; uma primeira
reação dessa ordem contra ele, excluindo-o da sociedade e possibilitando-lhe a partir
daí a sobrevivência somente através do crime. Provavelmente existem pessoas que
ao ouvirem tais coisas dirão: ele quer isentar o criminoso de sua culpa! (...) Pensar
abstratamente significa isto; ver no assassino somente o fato abstrato que ele é um
assassino e através desta simples qualidade anular toda a essência humana ainda
remanescente nele. (...) No exército ocorre a mesma diferença. Entre os militares
prussianos um soldado pode ser espancado; este é portanto um canalha, pois tudo
que tem o direito passivo de ser espancado é canalha. Desse modo o soldado comum
vale para o oficial como o Abstraktum de ser um sujeito suscetível de ser espancado
(...)" - HEGEL, GWF. Quem pensa abstratamente? 1807. Disponível em:
http://www.mom.arq.ufmg.br/mom/02_babel/textos/hegel-quem-pensa-
abstratamente.pdf
78
Falarei disso em mais detalhes posteriormente, mas, por ora, basta dizer que aqui
aparece o primeiro ponto de divergência interessante para uma leitura comparada de
Della Volpe e Althusser. Della Volpe menosprezava a influência de Feuerbach em
Marx e colocava a data de ruptura de Marx com o hegelianismo em 1843, enquanto
Althusser enfatizava que a problemática humanista do jovem Marx tem muitas
relações com Feuerbach e seu método da inversão de sujeito e predicado, do homem
como raiz do homem etc. Numa ótica althusseriana, poder-se-ia começar a pensar em
uma crítica do della-volpismo como feuerbachiano e, portanto, um materialismo vulgar.
Ver: ALTHUSSER, Por Marx, Campinas: Unicamp, 2015, pp. 44-45.
42
autonomizado precisa subsumir em si a matéria, a experiência, há uma inversão
de Sujeito e Predicado, a Razão abstrata apenas adapta a experiência a suas
tautologias, antes representa o real como racional do que forma o racional pelo
real. Disso resulta a tautologia hegeliana que, afirma Della Volpe, não se deve
meramente às posições assumidas por “Ideia” e “Matéria” – como
hegelianizantes do marxismo colocam –, mas é produto da própria estrutura que
Hegel, ao buscar solucionar o dilema kantiano do conhecimento, adota em sua
filosofia.
Em resumo: a especulação hegeliana cria um predicado a partir do sujeito
que é, em seguida, hipostatizado em sujeito, passando o sujeito real a aparecer
como fenômeno do predicado. Isso resulta do modo de proceder da especulação
hegeliana que cria suas abstrações a partir de sua concepção a priori do
universal, pela qual o Espírito ou Razão precisa assenhorar-se do objeto em
seus próprios termos, organizá-lo. Assim a lógica hegeliana mostra sua
tautologia – sua forma é, em todos os níveis, circular.
A partir dessa crítica a Hegel, Marx/Della Volpe pode então começar a
delinear sua própria concepção dialética:
Marx contrasta positivamente nos termos seguintes seu
próprio método filosófico-histórico com o método filosófico-
especulativo ou dialético apriorístico de Hegel, tão
insuficiente: “Então, a crítica verdadeiramente filosófica da
moderna constituição do Estado – diz Marx ao comentar o §
305 – não indica somente as subsistentes contradições, mas
as explica, compreende sua gênese, sua necessidade
[histórica]. Ela considera as em seu específico significado
[histórico]. Mas este compreender não consiste, como
acredita Hegel, em reconhecer por toda parte as
características do conceito puro, mas sim em capturar a lógica
específica do objeto específico (últimas duas ênfases são
minhas).79
Por essa análise crítica que faz Della Volpe, através de Marx, da lógica
hegeliana aparece ainda o problema das contradições. Uma vez que se
constatou que a lógica hegeliana é tautológica e fechada em si, as contradições
são sempre contradições ideais, ou, em outros termos, são contradições que por

79
Rousseau e Marx, Roma: Riuniti, 1997, p. 143. Interessante notar aqui uma
aproximação entre a ênfase posta por Della Volpe na crítica materialista como
reconhecimento da gênese com aquela noção de Alfred Sohn-Rethel segundo a qual a
desmistificação, a crítica do fetichismo é a “anamnese da gênese” das formas sociais
fetichistas., cf. BONEFELD, Werner. Critical theory and the critique of political
economy: on subversion and negative reason. Londres; Nova York: Bloomsbury, 2014,
p. 54.
43
sempre, teleologicamente, terminarem na unidade, já pressupõem, a priori, a
unidade.
Para Della Volpe, a tarefa de reconstrução do marxismo passa pela
possibilidade de pensar uma contradição real, em oposição à contradição
meramente momentânea da dialética hegeliana que sempre encontra, no fim, a
unidade dos opostos. De tal forma, em Hegel, o Absoluto é sempre posto do
começo ao fim do pensamento, a objetivação do Espírito não passa de um
diálogo consigo mesmo do Conceito. Todo o sistema hegeliano é, portanto,
apriorístico, a Razão [Vernunft], em seu processo de desdobrar em direção ao
Absoluto, não faz outro que esmagar o Entendimento [Verstand]. Pois, claro, em
Hegel a possibilidade do conhecimento passa pela própria racionalização do
Objeto de conhecimento, mas isso apenas enquanto auto-alienação do Sujeito
– o Absoluto, o Todo, é ele mesmo Sujeito-Objeto, o Espírito que retorna a si
mesmo. O caráter circular da lógica hegeliana não era mero acaso ou mesmo
equívoco do filósofo alemão, mas antes projeto, tal era seu caráter sistemático e
unificado, é assim que a Fenomenologia termina onde pode começar a Ciência
da Lógica, assim o Espírito, após auto-alienar-se retorna a si, enriquecido, como
Espírito Absoluto.
Contudo, somente depois de ter na cultura extrusado
sua individualidade, tornando-se desse modo ser-aí, e
fazendo-a prevalecer em todo o ser-aí; [só depois] de ter
chegado ao pensamento da utilidade, e de ter captado na
liberdade absoluta o ser-aí como vontade, é que o espírito
desentranha o pensamento de sua mais íntima profundidade,
e enuncia a essência como “Eu-Eu”.80
Este é o caráter da filosofia hegeliana: uma filosofia da identidade. Resulta
disso o que diz Della Volpe:
Este é um tipo genuinamente materialista de crítica,
argumentamos, uma vez que aquele círculo vicioso e negativo
que ela critica é revelado como a consequência do pensamento
apriorístico. Esse círculo vicioso não é mais do que a
contraparte, e a confirmação, do círculo correto e positivo da
matéria e da razão, e de todo não-a priori, não-dogmático e
científico(-materialista) raciocínio. Isso demonstra, de fato,
como se deve inferir a positividade e a indispensabilidade da
própria matéria como momento epistemológico, ou elemento
do ato de cognição, do erro e infecundidade de todo raciocínio
(apriorístico) que não leve em conta a matéria ou o extra-

80
HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Fenomenologia do Espírito. Petrópolis: Vozes,
2014.
44
racional em geral (Este é uma espécie de postulado crítico ou
axioma da matéria).81
Ou seja, o que faz Della Volpe é abrir o conceito ao não-conceitual, reincluir
o não-racional como momento da dialética materialista. Tal é a tarefa da
reconstrução do marxismo, a reinserção da matéria. Aqui, permitimo-nos abrir
uma breve digressão: essa tentativa que pode ser vista como o impulso mais
forte e principal contribuição histórica do pensamento de Della Volpe não estava
isolada, ainda que nenhum dos envolvidos percebesse claramente. Enquanto
Della Volpe trabalhava na Itália, na Alemanha Theodor Adorno começava a
escrever a Dialética Negativa, cuja crítica imanente da dialética hegeliana
amputaria Hegel do momento final da identidade dos contrários no Espírito
Absoluto e, consequentemente, reabriria a dialética ao não-conceitual. Com
efeito, o objetivo do trabalho teórico adorniano era privilegiar o momento da não-
identidade, a negatividade, recusando o pensamento sistemático e a totalidade
abstrata de Hegel por um pensamento anti-sistemático moldado segundo a
resistência do objeto. A resistência e a primazia do objeto na dialética negativa
adorniana, resguardadas as diferenças inevitáveis dadas as formações distintas
dos dois filósofos, desempenha o mesmo papel crítico que o della-volpeano
postulado da matéria.

1.2.3 – Aristóteles e Galileu


Para reconstruir a dialética marxista, tendo agora como axioma a
importância da matéria, do objeto mesmo, Della Volpe decide traçar um novo
percurso histórico, uma nova herança para Marx. Não mais Hegel e Espinosa,
mas, sim, Aristóteles e Galileu; o primeiro, pela crítica da metafísica platônica,
hipostasiada com formas imóveis e apriorísticas; o segundo, pela crítica
científica à física escolástica e seus discursos apriorísticos 82 . Aristóteles é
colocado como primeiro crítico da dialética mistificada, em que conceitos
apriorísticos que mascaram separações meramente lógico-formais são
apresentados como se reais fossem; essa dialética mistificada é a metafísica de
Platão – que Della Volpe apresenta como substrato profundo do próprio Hegel,
falando em “dialética platônico-hegeliana”. Diz Della Volpe que, em Platão, há
uma inversão dos termos do silogismo, sendo que, ao invés do termo médio ser
menos geral que o extremo, coloca-se ele como sugestão, como petição de
princípio, que pressupõe o resultado a ser atingido. Tanto ao universalizar-
totalizar, como ao dividir-opor, Platão, portanto, seguia um caminho invertido,
tendo como consequência categorias abstratas, lógico-verbais mais do que
concretamente mediadas83. Com Galileu, por sua vez, Della Volpe ressalta que
seu desmonte da física peripatética que se sustentava apenas pelas

81
Rousseau e Marx, Roma: Riuniti, 1997, p. 144.
82
Logica come scienza storica, Roma: Riuniti, 1969, p. 15.
83
Ibid, pp. 101-105.
45
demonstrações lógicas apriorísticas de Aristóteles é o que inaugura um método
experimental, pelo qual sem o sentido da funcionalidade, não existe Razão, ou,
dito de outro modo, que Galileu dá ao princípio da não-contradição um novo
sentido ao incluir os fatos como critério da razão pela negação de outros fatos,
como negatividade84.
O que isso, segundo Della Volpe, auxilia na compreensão de Marx? A
análise de Aristóteles ilustra a diferença estrutural entre uma lógica idealista ou
mistificada, em que as categorias estão hipostasiadas (em que há inversão de
Sujeito e Predicado), e uma lógica materialista. O método científico ou
materialista, aponta Della Volpe, é, assim como o de Aristóteles, o que vai do
concreto ao abstrato e do abstrato ao concreto, o que Della Volpe chama de
círculo metódico ou círculo de indução e dedução. Com Galileu, a seu turno, o
que se ressalta é o postulado da matéria, a infecundidade de qualquer
pensamento que não incorpore ao racional o extra-racional, de toda lógica
apriorística e não experimental.
Por meio da crítica de Hegel e da recuperação de Aristóteles e Galileu,
nestes termos, Della Volpe fez um notável trabalho de reconstrução da dialética
marxista, ou, mais precisamente, na ressignificação do materialismo para o
marxismo – o postulado da matéria, a contradição real, a abertura da razão ao
extra-racional, o circuito concreto-abstrato-concreto. Um momento crucial que
serviria de base para desenvolvimentos posteriores, em particular o operaismo.
Entretanto, o próprio Della Volpe não leva sua pesquisa à conclusão lógica.
O seu lado negativo, a crítica de Hegel, é seu mérito; mas seu lado positivo não
foi mais além que um retorno envergonhado à cisão kantiana de Sujeito e Objeto,
com direito a vários momentos de defesa do positivismo lógico contra o idealismo
a priori dos hegelianos. A Della Volpe faltou uma compreensão mais profunda
de que o erro hegeliano não era no que ele se afastava de Kant, mas no que
dele ele herdou. Mais do que uma solução do dilema kantiano, a filosofia
hegeliana colocou as antinomias kantianas em movimento, é o atravessar do
abismo entre a consciência e a coisa-em-si pela transformação da coisa em mera
objetivação da consciência, esta estranhada de si mesma para, então, tornar-se
objeto de si na consciência. O que faltava a Della Volpe, para concluir sua crítica
do sistema fechado e apriorístico hegeliano, que contém em si a crítica das
filosofias da identidade, era uma crítica consequente da forma do sujeito
burguês, que, como o próprio Hegel demonstra na Fenomenologia, é o ponto
central da filosofia da identidade. Mais do que isso, sem a crítica radical do
Sujeito burguês não se pode sair do campo do idealismo: todo idealismo é, no
fundo, um subjetivismo.

84
Ibid, pp. 230-232.

46
1.3 – Democracia e legalidade: de Della Volpe a Cerroni
A manutenção de a forma burguesa da subjetividade acriticamente é
também o ponto de conexão, ou a ponte, entre as duas metades principais do
pensamento da escola della-volpeana, a lógica (ou o método científico) e a
política. Na seção anterior, voltamo-nos para algumas questões pertinentes em
Colletti, mas para tratar da política e da importância dada nessa tradição de
pensamento às noções de legalidade e democracia, devemos nos ater ao
pensamento de Umberto Cerroni, principal pensador da ciência política e do
Direito na matriz teórica della-volpeana.
Antes, porém, um breve retorno ao próprio Della Volpe, de modo a
recuperar aquilo antes intencionalmente escamoteado, seu pensamento político
e jurídico.

1.3.1 – Entre Rousseau e Kant: política e direito em Della Volpe


No campo da política e do direito, Della Volpe aplicou os mesmos princípios
e preocupações em sua leitura de Marx que havia feito no campo do método e
da lógica. Lá, havia, mediante a crítica de Hegel e do idealismo, reconstruído um
materialismo científico voltado ao experimentalismo numa longa tradição anti-
apriorística assentada em Aristóteles e Galileu; na política e no direito, a seu
turno, o grande antecessor de Marx passa a ser Jean-Jacques Rousseau. Mas
a preocupação maior de Della Volpe, precisamente no período em que se
iniciava o abandono – pela direita, frise-se – do stalinismo a partir do “discurso
secreto” de Khrushchev no XX Congresso do PCUS e, no caso especificamente
italiano, pela abertura togliattiana que levaria ao eurocomunismo e a Enrico
Berlinguer, é a de reconciliar a libertas major com a libertas minor, isto é, a
liberdade igualitária com a liberdade formal, em outros termos, a liberdade social
com a liberdade civil, Rousseau com Kant – como realizar o socialismo e
preservar as garantias liberais do indivíduo.
Dispensa mesmo dizer que essa própria forma de colocar o problema é
reminiscente do subjetivismo a que se atava a escola della-volpeana. De uma
forma provocativa, poder-se-ia dizer que os della-volpeanos, em seu conceito de
sujeito e indivíduo, faziam a mesma abstração genérica e hipostatização que
criticavam em Hegel: tomavam a forma de subjetividade burguesa e a elevavam,
por suas características genéricas e indeterminadas, à posição de ser a
particularidade (ou individuação) em sociedade em geral; a partir daí, invertia-se
sujeito e predicado: o sujeito burguês, apresentado na forma de sujeito em geral,
se torna a essência e o pressuposto da política e do conhecimento (como, em
seguida, se verá no conceito de ciência de Lucio Colletti). Não é exagero mesmo
dizer que nessa inversão se assenta a própria problemática humanista da qual
os della-volpeanos nunca se libertaram.
Em outras palavras, de acordo com Marx, essa “certa
classe” não emancipa, de fato, toda a sociedade. Mais tarde,
vemos a conclusão de Marx sobre o “papel de libertador”: ele

47
pertence essencialmente ao proletariado enquanto classe, o
qual, “organizando todas as condições da existência humana
sobre a base da liberdade social” – e não meramente da
liberdade “política” – transforma a emancipação parcial, ou
burguesa, em uma emancipação “geral e humana” do
homem.
Agora, é de todo verdade, e é toda a verdade, que a
revolução burguesa ou “política” (aquela que estabeleceu a
igualdade de todos os cidadãos perante a lei) liberta apenas
aqueles que pertencem à classe burguesa? Que ela não
liberta, do ponto de vista das garantias constitucionais, toda a
sociedade como um Estado? Em outras palavras, é toda a
verdade dizer que apenas a revolução “social” – i.e. aquela
que realiza a liberdade “social” ou a livre expansão da
sociedade em todos os níveis – atinge a libertação “geral e
humana” do homem?85
Em suma, como diz Della Volpe em seguida, o que não poderia continuar
entre os marxistas seria a crítica “juvenil” e “parcial” da revolução burguesa. A
própria forma de colocar a relação entre revolução burguesa e revolução
proletária mostra em Della Volpe a tendência a ver uma como continuação da
outra, favorecendo, assim, uma ligação entre burguesa e proletariado na mesma
missão histórica de um modo ou outro. Pensamos, agora, se, desse modo, as
tentativas do della-volpismo de romper com o historicismo não ficariam
perpetuamente limitadas pela fixação humanista (e pelo empirismo decorrente
de sua limitada concepção de ciência, mas isso discutirei na seção seguinte,
sobre Colletti).
Mas, para compreender até que ponto Della Volpe se colocava essa tarefa,
não basta ver aqui o problema de reconciliar uma liberdade “comunista” com
uma liberdade “capitalista” – o problema é mais profundo, porque, em realidade,
as duas “almas” – como gosta de chamar Della Volpe – pertencem igualmente à
sociedade burguesa. Ao tratar da liberdade social, Della Volpe não se esquiva
de colocar a questão em termos de direitos do indivíduo. Diz ele se tratar da
liberdade que garante a todos os indivíduos o direito de se desenvolver
plenamente enquanto humanos86. O motivo, claro, é a vontade de Della Volpe
de assentar o socialismo em Rousseau para então proceder a reconciliá-lo com
Kant; o equívoco? Acreditar que Rousseau precise ser reconciliado com Kant,
como se já não tivessem uma ligação interna íntima. Na realidade, o próprio
conceito central do contrato social em Rousseau, a vontade geral, pressupõe a
mesma abstração dos indivíduos concreto que o ego transcendental de Kant no

85
Rousseau e Marx, Roma: Riuniti, 1997, pp. 85-86.
86
Ibid, p. 88.
48
campo da epistemologia (da razão pura, portanto) como geral, universal e
necessária.
Para puxar para a terminologia mais propriamente marxiana no campo da
crítica da economia política, a crítica della-volpeana é, acima de tudo, desde seu
princípio, restrita ao campo da circulação e da distribuição, é uma concepção
pré-marxista de socialismo, social-democrática, senão lassalleana,
distribucionista. Como golpe final da ironia, o exemplo maior dado por Della
Volpe, pretendendo ele com isso comprovar seus argumentos, é a União
Soviética, isto é, ele aponta o constitucionalismo soviético, em particular a partir
de 1936 e com a atualização de 1960, como reconciliação das liberdades social
e civil. De minha parte, vejo isso como criticamente instrutivo: ao contrário de ser
a URSS a prova do acerto teórico de Della Volpe, é o fato de Della Volpe ter
encontrado tão perfeito exemplo na URSS que prova o caráter reformista e
atrasado de sua concepção.
No pensamento do próprio Della Volpe, portanto, apesar da violência com
que as questões teóricas começavam a explodir em conflitos políticos latentes,
nunca se dá o passo seguinte. Pelo contrário, ainda que em termos novos,
aristotélico-galileano-rousseauiano-kantianos, Della Volpe faz um périplo de
volta às concepções políticas dominantes no PCI. Mesmo sua concepção de
democracia pós-burguesa não passa de um novo verniz de tinta sobre a noção
togliattiana de democracia avançada, afinal. Um eurocomunista avant la lettre.

1.3.2. – Umberto Cerroni87


Tentarei ser breve e sucinto ao tratar do pensamento do principal teórico
della-volpeano para os assuntos da política e do direito, Umberto Cerroni. Em
duas chaves quero retomar os escritos de Cerroni, ainda que ciente de ser uma
abordagem limitada e restritiva de uma obra de grande fôlego e alcance. Na
primeira chave, quero trazer à baila o papel de Cerroni na redescoberta de
Pachukanis que se operou na década de 1970 – empreitada na qual ele foi uma
figura maior, assim como outro italiano, Antonio Negri 88 - principalmente a partir
de sua obra Il pensiero giuridico sovietico, publicado originalmente em 1969. Na
segunda das chaves, vou analisar o pensamento político de Cerroni, em
particular como articulou uma crítica às concepções instrumentalistas do Estado
com sua visão de democracia pós-burguesa e legalidade socialista.

87
Em minha discussão do pensamento de Cerroni, guiei-me principalmente por
CALDAS, Camilo Onoda. Perspectivas para o direito e a cidadania: o pensamento de
jurídico de Cerroni e o marxismo. São Paulo: Alfa-Omega, 2016. Para questões
biográficas que, por motivos de espaço, não tratarei, remeto a esse trabalho.
88
Ver: Rereading Pashukanis: discussion notes. Stasis, vol. 5, nº 2, 2017 (1973), pp. 8-
49.
49
1.3.2.1 – Cerroni e o pensamento jurídico soviético
Em seu livro de 1969, Cerroni foi pioneiro como reconstrutor dos debates e
tradição do pensamento jurídico da URSS. Passando por nomes como
Petrajítski, Reisner, Stuchka, ele chega a uma das primeiras grandes
reavaliações do pensamento de Pachukanis. Sobre Petrajítski89, Cerroni aponta
corretamente as consequências de seu psicologismo como relação política, e daí
a indeterminação intrínseca à sua compreensão do jurídico. Reisner, a seu turno,
é avaliado por Cerroni como responsável por reduzir o direito a fenômeno
meramente ideal, construção teórica com pouco ou nada a dizer sobre as
relações sociais e produtivas reais. Stuchka, mais original, aparece mediante a
reconstrução de Cerroni como o formulador de uma teoria francamente
politicista: o direito não passaria de um sistema normativo de relações sociais
concebido segundo os interesses da classe dominante – entendida aqui, claro,
como unívoca e monolítica, subjetivada – garantido pelo monopólio da violência
pelo Estado – a concepção sociologista e weberiana por excelência90.
O cerne do trabalho de Cerroni é seu tratamento de Pachukanis, o ponto
que mais nos interessa. Quero ressaltar dois aspectos da apropriação cerroniana
de Pachukanis: 1) o critério metodológico; e, 2) a concepção do Estado.
1) Há que se reconhecer o mérito de Cerroni, ao apropriar-se das reflexões
de Pachukanis, de iniciar mesmo uma ruptura com o historicismo que ainda
caracterizava o pensamento de Della Volpe. Isso se baseia no uso metodológico
que Pachukanis, pioneiro, faz da Introdução de 1857, a Einleitung 91 , e sua
concepção inversa da explicação das categorias: ao invés de buscar um
evolucionismo histórico, é a forma mais avançada que pode ser usada para
iluminar as mais antigas, o homem é a chave para a anatomia do macaco. O
historicismo entendia, ao contrário, o contínuo autoesclarecimento das
concepções históricas como autorreferencias em seu corte seccional; ou, em
outras palavras, impunha a limitação da ciência da história, que era tornada
completamente imanente – no mau sentido da palavra, cativo da ideologia do
tempo presente, vez que a ciência e o “bom senso” eram equiparados. O
historicismo, portanto, negava uma ciência da história propriamente dita. Cerroni,
indo mesmo além de Della Volpe, apropria-se de Pachukanis para propor uma
metodologia propriamente científica do estudo histórico 92.
2) Cerroni utiliza as reflexões de Pachukanis como arma contra o
instrumentalismo, ressalando várias passagens, a crítica pachukaniana de
Stuchka e outros que acreditavam que para uma teoria marxista bastaria inserir
o “momento da luta de classes” e então falar, por exemplo, em normas de
conteúdo burguês por servirem a interesses da classe dominante. Como se

89
CALDAS, Camilo Onoda. Op. cit, pp. 45-47.
90
Il pensiero giuridico sovietico, Roma: Riuniti, 1969, pp. 54-62.
91
Um dos textos metodológicos favoritos de Althusser, citado repetidas vezes em Ler
o Capital.
92
CALDAS, Camilo Onoda, Op. cit., pp. 51-53.
50
sabe, Pachukanis se volta para a análise das formas sociais, para como as
relações sociais específicas de produção se sedimentam em formas sociais
fetichistas como a forma sujeito de direitos. Vale mencionar que Pachukanis
aparece, graças a sua ênfase na teoria das formas sociais, como precursor de
honra da chamada teoria da forma-valor (ao lado de Isaac Rubin) e do anti-
humanismo teórico de Althusser – com o qual Pachukanis apresenta
paralelismo, mesmo terminológicos, impressionantes. Por exemplo, a crítica do
instrumentalismo em Pachukanis aparece como uma crítica da subjetivização na
teoria, que é, a seu turno, uma crítica da tentativa de dissolver as diferentes
relações sociais historicamente específicas em “relações humanas” genéricas
apreendidas pelas intenções de grupos sociais. Ambos os elementos convergem
nas indicações teóricas de Pachukanis para a teoria do Estado, quando busca
explicar o surgimento do Estado, perguntando-se da necessidade de ele assumir
a impessoalidade da forma Estado, a partir das relações de troca mercantil e
equivalência subjetiva delas decorrente. Isso não foi ignorado por Cerroni, que
interpretou com toda a importância o caráter necessário (historicamente) da
equivalência formal dos sujeitos como substrato do Estado moderno 93. E, mais
importante, ele aceita a ênfase pachukaniana no caráter objetivo desse
processo, quer dizer, da objetivação de relações sociais – não apenas nas
genéricas relações humanas que um certo vitalismo de origem lukácsiana 94
ainda faz aparecer em certos autores marxistas.
Isso não significa, de modo algum, que Cerroni seja, simplesmente, um
pachukaniano. Cerroni faz uma série de críticas a Pachukanis, principalmente:
1) ele não teria dado suficiente atenção ao direito público, visto como artificial
diante da predominância do direito privado; 2) em consequência, restaria em
Pachukanis uma concepção voluntaristado Estado. Contra ambas as acusações,
acredito estarem corretas as ressalvas feitas por Camilo Onoda Caldas em seu
estudo sobre Cerroni, assim remeto a seu livro, já citado, e suas demonstrações
de que a visão pachukaniana do direito público, principalmente do direito penal,
é mais complexa e nuançada do que permitia ver a análise de Cerroni.

1.3.2.2 – Estado, democracia, legalidade


A visão de Cerroni de que em Pachukanis faltava uma consideração
suficiente do direito público, em particular do Estado e da norma jurídica, pode
ser extrapolada para sua visão global do marxismo como carente de uma
apropriada ciência política. Essa visão, dominante nos debates italianos e numa
vertente da qual Bobbio foi grande representante, exprimiu em Cerroni a
necessidade de considerar uma apropriada teoria do campo especificamente

93
Ibid., pp. 61-62.
94
Em virtude da confusão do jovem Lukács, em História e consciência de classe, ao
interpretar o fetichismo como uma questão de abstração do pensamento, não
entendendo a existência objetiva das formas sociais fetichistas.
51
político a partir das mesmas noções de socialismo democrático e legalidade
socialista herdadas de Della Volpe.
Mas, ainda mais que Della Volpe, o encontro das duas perspectivas, da
ciência política com a do socialismo democrático, vai produzir uma adesão,
precisamente, à concepção de democracia avançada do togliattismo, ainda que
parafraseada. Assim, podemos citar Cerroni:
É preciso, portanto, que as instituições políticas
burguesas sejam desenvolvidas na direção do fortalecimento
da soberania popular direta e que, contemporaneamente, a
sociedade caminhe para as reformas gerais das estruturas
econômicas: os dois termos do processo revolucionário em
formas pacíficas são interdependentes.95
Aí se encontram perfeitamente unificadas as concepções togliattiana – da
democracia avançada – e della-volpeana – do equilíbrio de liberdade social e
liberdade civil. A partir da década de 1980, o pensamento de Cerroni intensificou
sua crença nesse modelo democrático-civil, chegando às formulações de um
“socialismo de consenso” e mesmo apagando as transformações econômicas,
eclipsadas pela fixação com as garantias liberais 96.

1.4 – Decadência e decomposição da escola della-volpeana: Lucio Colletti


Um dos mais notórios discípulos de Della Volpe, a ponto de ser talvez mais
conhecido a nível internacional que o mestre, foi Lucio Colletti. Com um trabalho
teórico profundo e amplo, seus dois principais livros foram Marxismo e Hegel e
De Rousseau a Lênin. No que concerne ao todo de seu projeto filosófico e
teórico, Colletti era sobretudo um continuador do projeto della-volpeano. De fato,
em vários trechos de Marxismo e Hegel e, notavelmente, de sua Introdução aos
escritos de juventude de Marx, Colletti essencialmente reitera – e apresenta a
um público mais amplo – os fundamentos da crítica della-volpeana de Hegel97.
Em particular, toma importância em Colletti a inversão de sujeito e predicado
criticada por Marx na Crítica da Filosofia do Direito de Hegel e na Crítica da
Doutrina do Estado de Hegel, isto é, a hipóstase, em Hegel, das categorias
abstratas – é com base nessa crítica que Colletti acusará Hegel de ser um
filósofo essencialmente cristão, em seu lugar tentando restaurar uma relação
entre Marx e Kant.
Não pretendemos fazer um destrinchamento completo da obra de Colletti.
Na realidade, ele nos interessa apenas em três pontos de seu trabalho: 1) em
como, ao reatar o marxismo a Kant e ao Iluminismo em geral, ele conclui o
retrocesso lógico que Della Volpe permitiu por meio de sua incapacidade de fazer

95
La prospettiva del comunismo. Roma, Riuniti, 1960, p. 42.
96
CALDAS, Camilo Onoda. Op. cit., pp. 80-81.
97
La cuestión de Stalin y otros escritos. Barcelona: Anagrama, 1977, p. 111.
52
uma crítica do sujeito burguês – nosso argumento é que, pelo contrário, Colletti
acaba por aprofundar o humanismo e o historicismo que Della Volpe mantinha
titubeante; 2) em sua reconstrução da relação entre Marx e Hegel-Feuerbach,
sem abandonar a teoria da alienação, Colletti acaba por, inadvertidamente,
demonstrar a vacuidade teórica desse conceito mesmo quando separado de seu
substrato idealista; 3) em como Colletti passou de um dissidente de extrema
esquerda do PCI a um detrator de direita do marxismo e como isso está
intimamente ligado a sua concepção errônea de marxismo.

1.4.1 – É possível um marxismo kantiano?


Colletti teve uma trajetória diferente para chegar ao marxismo: em uma
Itália com um poderoso Partido Comunista, com um forte movimento partisan,
com ondas de greves operárias, com a figura então hegemônica de Gramsci, o
que o levou ao marxismo foi o controverso Materialismo e Empirio-criticismo de
Lênin. Esse texto o acompanhou em toda sua vida enquanto marxista e depois
de sua conversão à direita, por um motivo simples: a valorização de Kant sobre
Hegel na visão epistemológica de Lênin98.
Nas páginas de Società, a partir de 1952, Colletti
analisou o MEC, mas também usou suas polêmicas anti-
idealistas como ponto de partida para críticas ao historicismo
croce-gramsciano do PCI e à atração da esquerda por figuras
como John Dewey. A prioridade da
matéria/natureza/objetividade sobre o pensamento, e a
necessidade de uma epistemologia da reflexão (ou
correspondência) permaneceu fundamental para combater as
posições que poderiam ser vistas volatilizando a matéria em
espírito, mesmo que o nome desse último fosse práxis ou
prática – posições que, seguindo Lênin, poderiam ser vistas
como a proposta de tantas “terceiras vias” que obscurecem
as distinções entre os campos do materialismo e do
idealismo. Esse trabalho inicial prosseguiu, em boa medida,
sob a égide de Galvano Della Volpe e sua imagem de Marx,
descrito como o inventor de um galileanismo moral [referência
a Galileo Galilei], de um método de abstração determinada.
(...) Apenas a manutenção da forma da “exterioridade do
dado empírico-material” garante que a substituição
hipostática da ideia do objeto real seja evitada. Seguindo

98
Ao menos do Lênin anterior a 1914. Para a relação entre o Materialismo e
Empiriocriticismo e os Cadernos sobre Hegel, ver: TOSCANO, Alberto. Com Lênin
contra Hegel? ‘Materialismo e Empirocriticismo’ e as mutações do marxismo ocidental.
Disponível em: https://ftp.lavrapalavra.com/2020/05/01/com-lenin-contra-hegel-
materialismo-e-empirocriticismo-e-as-mutacoes-do-marxismo-ocidental/.
53
a lição de Della Volpe, a hipóstase deve ser combatida
por uma abstração determinada, na qual a atenção à
individuação e discriminação do material permite um
trabalho de generalização, como encontrado,
exemplarmente, na análise de Marx da formação
socioeconômica burguesa. A generalização depende de
fatores materiais tais que as “generalizações científicas
e o objeto real da análise em O Capital estão em uma
relação dual de distinção-unidade”.
Abstrações determinadas, conceitos empíricos, que
permitem regularidade, iterabilidade, tipicidade, este é o
tipo de simplificação científica que, nesta leitura proposta
Della-Volpeana de Lênin, é proposta por Colletti.99
Recuperando a crítica da hipóstase do pensamento pela confusão das
categorias lógicas abstratas com a ontologia, Colletti busca demonstrar que tal
crítica já estava presente em Kant 100. Ao citar o neo-kantiano Cassirer, Colletti
sugere mesmo:
Nós estamos apenas interessados aqui em apontar
como Cassirer, desenvolvendo sua análise de um ponto de
vista estritamente kantiano, mesmo assim acaba por, quase
inadvertidamente, formular seu julgamento crítico de Hegel
em termos análogos, ou mesmo idênticos, aos usados por
Marx em sua Kritik der Hegelschen Staatsrechts ou no último
dos manuscritos de 1844- um fato ainda mais significante ao
se considerar que Das Erkenntnisproblem apareceu décadas
antes a publicação póstuma desses escritos.101
Mas não é apenas na crítica de Hegel que Colletti vê como frutífero o uso
do neo-kantianismo. Posteriormente, ele chega a reabilitar, segundo uma
releitura, o próprio conceito de coisa-em-si – enquanto função do conhecimento,
não como resignação diante do desconhecido, mas, sim, limitação do uso
suprassensível da razão como instrumento do conhecimento 102. Nessa toada, a
coisa-em-si se torna, para Colletti, uma cunha com a qual abrir a lógica dialética

99
TOSCANO, Alberto. Op. cit.
100
Marxism and Hegel, Londres: NLB, 1973, p. 106.
101
Ibid., p. 108. Todo o capítulo dedicado a Cassirer é de grande relevância se se
quiser fazer uma “leitura sintomal” de Colletti. Em particular, a união da perspectiva
subjetiva – que o neo-kantianismo de Cassirer torna evidente de uma forma que não
era tão gritante no próprio Kant – com a apologia do Iluminismo podem ajudar a
explicar como Colletti, a partir de seu ponto cego que é a forma burguesa de
subjetividade, pôde chegar a uma crítica praticamente lukacsiana dos assim
chamados “irracionalismos” (categoria vaga e abstrata em que Colletti inclui até
mesmo a Escola de Frankfurt).
102
Ibid, p. 111.
54
para a negatividade da matéria, desestabilizando as categorias apriorísticas.
Mas, ao invés de radicalizar sua crítica justamente de modo a perceber que a
coisa-em-si não é uma função do conhecimento por necessidade absoluta e
transhistórica, mas, sim por causa da forma historicamente específica de
formação da subjetividade truncada da sociedade burguesa, ou seja, do sujeito
mônada como locus do conhecimento, que só pode, portanto, conhecer tendo
como pré-condição sua cisão negativa que defina seu isolamento do
metabolismo social e da continuidade entre humanidade e natureza 103, Colletti
aceita essa modalidade essencial do pensamento kantiano. Assim, diz ele:
Realidade, de fato, é aquilo que é objetivo, e o objetivo
– contrariamente ao idealismo – é precisamente aquilo que é
externo à e independente da subjetividade pensante. Não é
menos verdade, todavia – contrariamente ao empirismo ou ao
materialismo ‘primitivo’ – que uma condição indispensável
para discriminar o objetivo do subjetivo e, portanto, realidade
de ilusão, é, certamente, o pensamento – em uma palavra, a
própria subjetividade.104
Tal como em Della Volpe, em momento algum Colletti coloca em xeque a
certeza dessa forma de subjetividade. Pelo contrário, a base empírica e social
da subjetividade, isto é, do indivíduo assujeitado, na sociedade burguesa é
simplesmente aceita ao tratar de sua projeção fantasmagórica, o Eu
transcendental de Kant. Na medida em que é uma crítica de Hegel, o argumento
de Colletti aparece não como a superação de sua mistificação “teológica” pela
efetiva reinserção do não-conceitual como parte do movimento objetivo da
própria subjetividade, ou seja, do objetivo como, mais que separado do Sujeito,
condicionante do próprio conhecimento; ao invés disso, Colletti opera
principalmente uma revalorização do entendimento (Verstand) frente à razão
(Vernunft).
O método do ‘intelecto’105, que, ao preservar o princípio
da não-contradição, parecia então garantir para si mesmo
uma coerência perfeita, prova-se, na realidade, incapaz de

103
A esse respeito, falarei no capítulo seguinte quando chegar à questão do
humanismo em Camatte e seus colaboradores italianos da revista Invariance. Mas, por
ora, é de interesse notar que Althusser, em Por Marx, já falara da cisão
humano/inumano como intrínseca a todo humanismo; pode ser este um ponto
relevante para uma crítica não-kantiana ao hegelianismo (apesar das alegações de um
suposto kantianismo de Althusser), cf. ALTHUSSER, Louis. Por Marx. Campinas:
Unicamp, 2015, pp. 196-197.
104
Marxism and Hegel, Londres: NLB, 1973, p. 119.
105
Nos trechos de Colletti, ‘intelecto’ é o mesmo que o entendimento, isto é, Verstand,
do jargão kantiano. Na tradução das citações, optei por ‘intelecto’ por respeitar a
escolha do próprio Colletti ao verter o conceito ao italiano como inteletto – o que tinha
como objetivo inclusive valorizar este conceito –, mas quando sou eu mesmo
escrevendo, mantive a forma já consagrada em português, “entendimento”.
55
expressar ‘o conceito fundamental da filosofia, o verdadeiro
infinito’, o Logos cristão. O ‘intelecto’ reifica tudo que toca. Ele
transforma aquilo que não é uma coisa no finito. Ele não é o
princípio da filosofia ou idealismo, mas da Unphilosophie. É o
ponto de vista do materialismo.106
É-se obrigado a comentar que pelo proceder de Colletti, já não sobra
espaço para a ideia de uma “dialética materialista”. O campo da dialética parece
ser sempre mais apresentado como essencialmente idealista, que apenas no
campo da razão (Vernunft), como movimento de categorias abstratas, pode o
princípio da não-contradição ser superado. Por outro lado, a realidade, o finito, é
rigorosamente fiel à separação, à divisão, à não confusão de Ser com Não-Ser.
Estática, a realidade é mostrada, acima de tudo, como positiva. Conforme
radicaliza sua ruptura com o marxismo – entendido por ele como condenado a
ser uma pseudo-ciência idealista – Colletti vai precisamente colocar o princípio
da não-contradição – e com ele a convicção de que não podem existir
contradições reais, apenas oposições reais – como a pedra de toque de qualquer
materialismo e de qualquer ciência107.
Em última instância, o caminho reconstruído por Colletti era, para ser direto,
o retorno ao empirismo. Para não deixar mesmo dúvidas, o próprio Colletti disse
que sua interpretação de Kant era a mesma de Hegel – que via Kant como
essencialmente empirista – e a única diferença entre ele, Colletti, e Hegel era
que o que Hegel criticava, ele defendia108. Dizendo que seu interesse por Kant
era inteiramente restrito à epistemologia – demarcando-se assim dos marxistas
kantianos, como Adler, que se interessaram pela ética kantiana – Colletti,
todavia, reduzia seu conceito de ciência109 à noção popperiana de falsicabilidade
– ele, inclusive, cita Popper nominalmente para defender a importância de Kant
na epistemologia. A própria separação aceita aqui por Colletti, no entanto, já era,
aprioristicamente, determinada por essa aceitação de princípios positivistas, pois
dizia ele então que a cultura burguesa havia sido bem-sucedida em criar uma
ciência da natureza, tendo falhado apenas em criar uma ciência da sociedade e
da moralidade: isto é, Colletti faz uma separação entre ciência social e ciência
natural que Della Volpe achava inaceitável como consequência de seu

106
Marxism and Hegel, Londres: NLB, 1973, p. 10.
107
Sobre isso, ver: COLLETTI, Lucio. Marxism and the dialectic. New Left Review,
I/93, 1975.
108
A political and philosophical interview.
109
Apesar das aproximações iniciais, Althusser, que chegou a travar correspondência
com Colletti e elogiar vários méritos do della-volpismo, distanciava-se dos italianos
principalmente nessa questão: seus conceitos de ciência e o que separa a ciência da
ideologia eram bastante distintos. Enquanto Althusser pretendia tornar o marxismo
uma teoria da ciência capaz de ser a linha divisória ela mesma, e assim verificar a
verdade, os della-volpeanos viam nisso apenas metafísica, pois os experimentos
científicos seriam o próprio critério de verdade. Vem daí a crítica de Althusser aos
della-volpeanos como empiristas que haviam falhado em romper com o historicismo.
Ver: IZZO, Francesca. Op. Cit.
56
positivismo que forçava a separação entre sociedade e natureza, entre humano
e inumano, entre matéria e mente. Radicalizando esse “modelo” para os
problemas gerais do marxismo, isso é o mesmo que dizer que Colletti aceita a
necessidade absoluta da técnica da produção, rejeitando apenas a propriedade
e o mercado, enfim, a circulação e super-estrutura – importante manter isso em
mente dado o contexto geral do presente trabalho.
Continuando seu argumento, Colletti relembra110 a crítica de Marx a Hegel:
o filósofo caiu na ilusão de que a realidade era o produto do pensamento auto-
determinante, de motu proprio. O que Colletti não aborda, contudo, é que se isso
pôde se tornar o fator determinante do pensamento idealista hegeliano é tão
somente porque o Espírito é o Ego transcendental em movimento histórico, ou
seja, é o Sujeito, o agente auto-determinante e auto-condicionado da História.
Que, na realidade, tal auto-determinação não existe para os Sujeitos da
sociedade burguesa, é evidente, mas porque, pelos mecanismos típicos e
próprios dessa sociedade, a sujeição toma sempre a forma da agência, da livre
atividade. É mediante a vontade que se realiza a servidão sob o capitalismo e é
mediante as vontades separadas umas das outras que o mercado atua, com os
vários capitais privados subjetivados atuando em concorrência para a realização
da massa de mais-valor global para a reprodução do capital social total frente ao
trabalho vivo total. A astúcia da razão, do mercado, é projetada fantasiosamente
para a filosofia tanto quanto a auto-determinação do Sujeito, isto é, a
subjetividade kantiana tanto quanto o Espírito hegeliano.
Curiosamente, Colletti aparece já aqui, pela primeira vez – mas não a última
–, como um honesto confessor. Sua reivindicação de Kant não é ocasional ou
coincidência: ele desenvolve as tendências necessárias da crítica incompleta de
Della Volpe a Hegel. Graças à dialética, é mesmo nos momentos mais extremos
de retrocesso que se encontra o salto adiante, porém. E aqui não é diferente:
precisamente porque Colletti se vê forçado a reatar com Kant, percebemos a
determinação de fundo da subjetividade, que ele anuncia mesmo sem entender
as consequências.

1.4.2 – Alienação e o esvaziamento do marxismo


Até o final da década de 1960, não obstante seu afastamento do PCI,
Colletti continuou um della-volpeano ortodoxo; a ruptura, de fato, começa com
aquele trabalho que mais notoriedade lhe rendeu internacionalmente: a
avaliação da teoria da alienação a partir de 1967111. Em 1969, quando aparece
o segundo volume de Marxismo e Hegel, Colletti agora defende a mais absoluta
centralidade do conceito de alienação para todo o projeto marxiano. Essa tese
não era, em si, de modo algum uma novidade – pelo contrário, é um lugar comum

110
Marxism and Hegel, Londres: NLB, 1973, p. 120.
111
O assunto aparece pela primeira vez no ensaio Bernstein e o Marxismo da
Segunda Internacional, reunido em De Rousseau a Lênin.
57
dos marxismos humanistas e de todos os deslumbrados pela descoberta dos
Manuscritos de 1844 –, o que de fato interessa na obra de Colletti era o fato de
valorizar a teoria da alienação ao mesmo tempo que buscava eviscerá-la de
qualquer conteúdo hegeliano, mantendo, portanto, uma defesa rigorosamente
della-volpeana do conceito.
No primeiro momento, a retomada por Colletti do conceito de alienação e
as preocupações que, a partir dele, passou a ter com a teoria do fetichismo no
Capital, significou uma virada à esquerda de seu posicionamento. Por exemplo,
Colletti critica Della Volpe por defender que, mesmo no socialismo, permanecem
o valor e o Estado112.
Colletti, precisamente porque crítico de Hegel, é capaz de ver a contradição
na qualificação do conceito de alienação que fizera Lukács em História e
Consciência de Classe.
Ele havia confundido o conceito de alienação em Hegel
– onde significa simplesmente a objetividade da natureza –
com o conceito bem diferente no trabalho de Marx, onde se
refere não aos objetos naturais enquanto tais, mas ao que
ocorre aos produtos do trabalho quando (como resultado de
relações sociais específicas) eles se tornam mercadorias ou
capital.113
Assim procedendo, Colletti coloca em termos muito claros aquilo que no
jovem Lukács114, em que pese seu inegável mérito de ter colocado o conceito de
reificação e do caráter qualitativo e fetichista das formas sociais em discussão,
levava não a Marx, mas uma combinação de Weber com romantismo. Era o que
permitiria, extrapolando sua confusão, considerar, inversamente, que a
alienação não resultava de formas sociais específicas, mas da própria
materialidade técnica, da indústria enquanto tal, da quantificação em geral, das
medidas etc., ao invés do fato de que é por causa da inversão real que opera
sob o fetichismo de certas formas sociais que ocorre a reificação e a abstração
da qualidade em quantidade.

112
From Rousseau to Lenin: studies in ideology and society. Londres; Nova York: Monthly
Review, 1974, p. 92.
113
La cuestión de Stalin y otros escritos, p. 109.
114
Não deixa de chamar atenção que, ao tratar do erro do jovem Lukács ao confundir
os conceitos de alienação de Marx e Hegel, Colletti vê ali hegelianismo, enquanto
Gillian Rose enxerga... neo-kantianismo. Não deixam de ter os dois razão, porque o
problema era justamente a problemática da alienação e aquilo que Kant e Hegel
compartilham: a perspectiva da subjetividade pressuposta, o humanismo. Ver: ROSE,
Gillian. Hegel contra sociology. Londres: Verso, 2009, pp. 32-34. Vale dizer que o
próprio Lukács, em 1967, criticou seu escrito de juventude, concordando com a crítica
de que havia confundido os conceitos de Hegel e Marx.
58
Em seguida, contra Della Volpe, Colletti recoloca a questão da influência
de Feuerbach em Marx.
Mas ao dissociar Marx de Feuerbach tão
completamente, Della Volpe se torna provavelmente
demasiado severo com este último. A crítica de Marx a Hegel
é, sem dúvidas, e à muita distância, a mais clarividente.
Apesar disto, Feuerbach também tem seus momentos de
acerto. Por exemplo, em 1841, viu perfeitamente a realização
que existia entre o idealismo e o positivismo acrítico de Hegel
quando escreveu: “A filosofia que começa com um
pensamento sem realidade termina necessariamente com
uma realidade sem pensamento”. 115
É curioso, entretanto, que depois dessa reavaliação de Feuerbach, Colletti
reafirme a “genealogia” que Della Volpe estabelece de Marx com Aristóteles e
Galileu. Em um caso como no outro, o resultado é apagar completamente qual
era a questão de fundo que marcou a originalidade da crítica marxiana. Tão
próximo Feuerbach – que Colletti descreve como tendo meramente aplicado ao
contexto da filosofia hegeliana o mesmo modelo de crítica de Aristóteles e
Galileu, entre outros – fica de Marx, que também este parece não passar de um
crítico das inversões resultantes da hipóstase das categorias abstratas em
Hegel.
É a essa altura, na década de 1970, que um Colletti cada vez mais
convencido por Kant e da imprescindibilidade de repudiar o conceito de
contradição, cada vez mais, também, insatisfeito com suas tentativas de
interpretar a teoria da alienação em bases della-volpeanas, ele chega à
conclusão de que a teoria da alienação, assim entendida, não pode mesmo ser
separada de sua base hegeliana e feuerbachiana. Ele desiste: proclama a
sobrevivência do hegelianismo em Marx.
Com um porém apenas: segundo Colletti, Marx, ao contrário de Feuerbach,
teria mostrado que a filosofia de Hegel estava com sujeito e predicado invertidos
porque a própria realidade estaria invertida116. Isto é, que a própria sociedade de
Hegel e Marx estava marcada por abstrações hipostasiadas, o que, nesse caso,
diz o próprio Colletti, quer dizer alienação.
A questão, no entanto, não parece enriquecer muito a análise. Como
Colletti busca relacionar o conceito de alienação com as abstrações
hipostasiadas, toda a crítica da economia política se reduz a uma inversão para

115
La cuestión de Stalin y otros escritos, p. 118. Recordo aqui o que já mencionei
sobre a possibilidade de ver o della-volpismo como feuerbachiano: outra vez, Colletti,
porque um discípulo rebelde, decide e coloca às claras aquilo que em Della Volpe
estava apenas latente.
116
Ibid, p.131.

59
colocar sobre seus pés a lógica invertida de Hegel, com o adendo de que essa
inversão existe na realidade.
Colletti recupera integralmente o conceito de alienação como abstração
hipostasiada ao abordar o papel do Cristianismo na filosofia da história de Hegel.
Neste último, diz Colletti, o cristianismo aparece como a dissolução da vida
“orgânica” da antiguidade, emancipando a subjetividade, o particular, da
comunidade étnico-tribal, tornando-se assim pré-condição da liberdade
individual, justamente na medida em que dota todo indivíduo humano do mesmo
valor, enquanto universalismo que transcende as fronteiras nacionais.
Quando Deus é posto como fora da natureza e portanto
também acima e além dos laços naturalísticos de
consanguinidade que são a base das primeiras comunidades
étnico-tribais, isso significa tanto que a unidade interna
dessas comunidades é dissolvida quanto que o laço natural
imediato de uma ascendência comum não é mais
reconhecido como real. Neste caso, Deus é situado acima e
além da comunidade terrena porque o Homem não enxerga
mais essa comunidade como Deus. Ele separa Deus da
comunidade porque ele não reconhece mais sua própria
essência na comunidade, ou porque a própria comunidade –
e portanto as relações dos Homens entre si – já estão
internamente desintegradas.117
Em Hegel, diz Colletti, a polis grega aparece como imediata coincidência
de vontade subjetiva e objetiva, na forma de moralidade costumeira substantiva”
(Sittlichkeit), pois a divindade é a própria totalidade ético-política da comunidade
personificada. Daí que, entre os gregos, não existiria cisão entre o terreno e
extra-terreno, entre indivíduo e comunidade, entre Estado e sociedade.
Inclusive, vale questionar se, desse modo, o papel da dialética em Marx
não se converte apenas na aparência necessária da alienação, pois, como já se
comentou, Colletti dá a entender que apenas no campo das abstrações o
princípio da não-contradição é superado e o movimento da lógica inclui em si a
unidade de opostos, de Ser e Não-Ser; logo, se a alienação é a existência real
das abstrações hipostasiadas, o único critério pelo qual Marx podia encontrar
em Hegel seu momento de verdade, isto é porque a dialética existe enquanto
movimento da própria alienação – e não, portanto, como parte do movimento em
direção à verdade, como dissolução da mistificação, como algo ínsito ao método
de pesquisa de Marx.
Na medida em que está apenas em uma crítica da inversão de sujeito e
predicado, está Colletti além da antropologia filosófica de Feuerbach?

117
Marxism and Hegel. Londres: NLB, 1973, pp. 251-252.
60
A propriedade pode ser uma manifestação, um atributo
do homem, mas se converte no sujeito; o homem pode ser o
sujeito real, mas se converte em propriedade privada. Aqui
encontramos a inversão sujeito-predicado e,
simultaneamente, a formulação com a qual Marx começa a
delinear o fenômeno do fetichismo ou alienação. O lado social
dos seres humanos aparece como característica ou
propriedade das coisas; por outro lado, as coisas parecem
estar dotadas de atributos sociais ou humanos. Este é, em
embrião, o argumento que Marx desenvolverá mais tarde no
Capital ao falar do fetichismo da mercadoria.118
Acreditamos que o equívoco de Colletti aqui é completo. Cometendo o erro
hermenêutico de tentar iluminar o Capital a partir dos escritos de juventude, ele
simplesmente projeta a problemática como solução de si mesma. Ao invés de
acompanhar, justamente como ele defendia no campo da lógica, o
desenvolvimento da teoria a partir do objeto mesmo do estudo, e assim mapear
os estudos concretos que Marx fez durante as décadas de 1840, 1850, 1860,
antes da publicação do Capital, ele simplesmente estende, como um produto
sempre-já pronto, a antropologia feuerbachiana para o todo da obra de Marx. O
erro maior é precisamente a confusão de alienação e fetichismo119. Na realidade,
a teoria do fetichismo que aparece no Capital já não é mais a mesma teoria
antropológica da alienação como inversão de sujeito e predicado, como
abstração hipostasiada. Antes, a teoria do fetichismo é a teoria da própria
formação da subjetividade dativa correspondente à sociedade da produção
generalizada de mercadorias. Pode-se dizer que a problemática do jovem Marx
é a mesma do Capital apenas na medida em que ele continuava tentando
responder às mesmas questões, entretanto o que nos escritos de juventude
aparece como uma explicação que frequentemente recorre à ontologia do
trabalho e conceitos idealistas como Ser Genérico da Espécie (Gattungswesen),
se torna, para o Capital, apenas a forma de aparência. Mais preciso é dizer que
a pergunta que dá ensejo à elaboração da teoria do fetichismo é: por que, sob o
modo de produção capitalista, os produtos do trabalho aparecem como se
alienados? Pois caso se aceite a teoria de que ocorre efetivamente a alienação
do trabalho como perda, do “homem”, do produto do trabalho, se isso já não
existia em todas as outras sociedades em que existia a exploração do trabalho

118
Ibid, p. 137.
119
Há variadas interpretações da teoria do fetichismo e de como ela se relaciona com
a teoria da alienação; a visão de Colletti, tipicamente humanista, se inclui entre
aquelas interpretações da teoria do fetichismo como extensão da teoria da alienação –
assim como Lefebvre, Ollman, Geras, Fromm, Marcuse, entre outros. Para um
detalhamento das várias leituras da teoria do fetichismo e suas relações com
diferentes leituras do marxismo e da dominação social, ver: O’KANE, Chris. Fetishism
and social domination in Marx, Lukács, Adorno and Lefebvre. Tese (Doutorado em
Filosofia) – University of Sussex, 2013.
61
e a extração do mais-produto120. A questão, portanto, não é tanto da separação
efetiva do produtor dos produtos do trabalho, mas, mais precisamente, por que
nessa sociedade o mais-produto precisa tomar a forma de valor, os produtores
precisam ser trabalhadores assalariados (duplamente) livres e o capital não pode
tomar por meio da violência a força de trabalho, mas apenas mediante o
reconhecimento da subjetividade ao trabalhador, por que a força de trabalho
precisa se tornar uma mercadoria?121
Passar a esse nível de análise, que, mais do que apenas clarificar a
diferença entre os conceitos de alienação em Hegel, Feuerbach e Marx,
efetivamente supera a alienação como paradigma teórico para que ela se torne
ela mesma a pergunta a ser esclarecida, significaria, porém encetar a crítica da
forma da subjetividade burguesa e, portanto, do humanismo teórico. Mas, nem
por isso o trabalho de Colletti é dispensável. Outra vez, é precisamente onde ele
se equivoca que sua maior utilidade crítica aparece: não fosse sua tentativa de
salvar o conceito de alienação do hegelianismo, depurando-o de seu substrato
idealista, não ficaria evidente qual é a verdadeira relação entre a alienação e o
fetichismo, isto é, que a alienação é uma forma de aparência necessária também,
que só aparece porque existe a mercadoria força de trabalho. Em outras palavras,
a tentativa de igualar a teoria do valor (fetichismo) com a teoria da alienação
termina por ser a autoliquidação de toda a problemática teleológica, humanista,
historicista baseada na teoria da alienação – ao mesmo tempo que seria a
antessala do abandono de Colletti do marxismo e do comunismo em geral 122. A
explicação científica, então, precisa ir além de Colletti, abandonando o conceito

120
De fato, a única resposta cabível é que na sociedade capitalista o trabalhador é
obrigado não apenas a separar-se do produto do trabalho, mas a alienar a própria
força de trabalho. Optar por essa via, no entanto, faz retornar diretamente à ontologia
do trabalho e a uma concepção transhistórica de trabalho humano. Mas essa questão,
em particular da relação entre a mercadoria força de trabalho, o trabalho enquanto
universalidade, o trabalho abstrato e a formação da subjetividade burguesa será
tratada mais adiante.
121
A “alienação”, portanto, é apenas a aparência necessária da falta estruturante do
sujeito da sociedade burguesa. Tal como o próprio conceito de humano se forma pela
definição do inumano, o sujeito burguês se forma pela separação, pelo isolamento
monádico na sociedade que transformou a força de trabalho em mercadoria – daí já se
começa a vislumbrar a unidade interna entre a forma da mercadoria e o sujeito de
direitos como fantasmagoria.
122
É Costanzo Preve que, ao discutir essa teoria da fusão de teoria da alienação
(filosofia) e teoria do valor/fetichismo (economia) – que ficou conhecida na Itália como
“teoria Colletti-Napoleoni”, em referência ao economista Claudio Napoleoni –, aponta
de forma mt interessante essa autoliquidação: “A descoberta da identidade entre teoria
do valor e teoria da alienação foi para Colletti apenas a antessala da liquidação do
marxismo como pseudociência baseada no pressuposto de uma contradição dialética
originária miticamente derivada de uma Unidade que se inverte e que deve
necessariamente se recompor (no comunismo)”, em: PREVE, Costanzo. La storia di
Lucio Colletti: un modello di estremo interesse teorico. Disponível em:
http://www.kelebekler.com/occ/colletti03.htm.
62
de alienação e toda a problemática humanista como ideológica, optando,
portanto, por um conceito materialista de fetichismo.

1.4.3 – De um erro a outro


Para encerrar, poucas palavras sobre o percurso de Colletti, de seu papel
inicial como jovem rebelde do PCI que tomava as teses della-volpeanas para
lançar uma crítica de esquerda aos rumos direitistas do PCI até o abandono do
marxismo por uma posição positivista e popperiana, para não dizer apertando a
mão de Silvio Berlusconi.
Como diz o próprio Colletti123, as teses della-volpeanas, sua preocupação
com um universalismo científico sobretudo, eram incompatíveis com a visão
dominante do PCI sobre uma via italiana, sobre as especificidades da Itália e,
principalmente, com a ideia, de origem gramsciana, de que ainda haveriam
tarefas burguesas a serem realizadas na Itália que justificariam o modelo do PCI
de “democracia avançada” e um bloco de classes, inclusive politicamente com a
Democracia Cristã. Ainda que próprio Della Volpe, intelectual à moda antiga e
sem militância política ativa, tivesse se mantido leal à linha do PCI, suas teses
eram frequentemente atacadas como ultra-esquerdistas. Colletti seria o jovem
rebelde que daria realidade a essa ameaça. Mas, sua radicalização à esquerda,
depois de se intensificar por toda a década de 1960, é invertida: após sua
conclusão de que Marx seria ainda um filósofo hegeliano que enxergava na
própria estrutura do capital todos aqueles elementos lógicos que, na visão de
Colletti, eram anátema à verdadeira ciência, ele precisa escolher: marxismo ou
ciência? Ciência ou revolução?
O Colletti dos anos 1980 abandona Marx. Prefere Popper, Kelsen,
Trendelenburg, Cassirer. Chega mesmo a dizer que a estrutura dialética do
marxismo significava que toda tentativa de abolir a alienação estava fadada a
degenerar em tirania e despotismo. O Lênin de O estado e a revolução, que ele
havia energicamente elogiado em sua luta contra o revisionismo do PCI, passa
a ser tachado de anarquista. Se antes ele criticara Della Volpe pela esquerda,
agora ele o critica pela direita: ataca Della Volpe por tentar reconciliar sua política
moderada e reformista com o marxismo, pois seria melhor abandonar este
último.
Agora se torna importante fazer o saldo. Colletti não partiu do acerto para
o erro ou do erro para o acerto. Foi de um erro para outro. Partiu da concepção
de ciência limitada do della-volpismo, de sua crítica incompleta de Hegel, de seu
substrato humanista, passou por uma interpretação equivocada da teoria do
fetichismo, rejeitou a noção de corte epistemológico e quis, à força, manter a
unidade entre o Marx de 1843 e o de 1883, isto é, entre o Marx que falava na
exploração do trabalho como roubo e o Marx que zombava dessa fraseologia –

123
A political and philosophical interview.
63
nas Notas marginais a Adolph Wagner – para, em conclusão, exprimir a soma
desses erros em sua virulenta defesa do Iluminismo124, da ciência positivista 125
e da democracia liberal. A decomposição da escola della-volpeana se corporifica
em Colletti: uma bomba no marxismo italiano, destruiu a hegemonia do
historicismo do PCI, mas foi incapaz de consolidar uma alternativa.

124
Geralmente em uma bizarra generalização e pastiche de posições. A
caracterização que Colletti faz da Escola de Frankfurt, de Adorno em particular, é
absurda e beira à simples mentira.
125
“Decidido que estava em defender o método científico em termos della-volpeanos,
foi o próprio Colletti que excluiu a ciência do processo social mais amplo e tornou-a um
método a-histórico aplicável em todas as circunstâncias e sempre com efeitos
positivos.,” JAY, Martin. Op. cit., p. 457.
64
Capítulo 2 –
O conteúdo original do programa comunista

2.1 – O fio da história


Se, como diz Benjamin, é dever do marxista recuperar aquilo esquecido
pela história, deixado cair pelos lados, nada mais relevante para destacar o fio
histórico-teórico que buscamos reconstruir nesse trabalho do que trazer à baila
um dos nomes mais centrais, tanto mais importante quanto mais exorcizado pela
ortodoxia “marxista-leninista”, do marxismo na Itália. O napolitano Amadeo
Bordiga, filho de um agrônomo, foi um aderente de primeira hora do bolchevismo:
já era marxista militante desde 1910126, época em que atuava na juventude do
Partido Socialista Italiano – com a qual rompeu em 1912, formando o Circolo
Socialista Rivoluzionario Carlo Marx, mas para a qual retornou em 1914, depois
da saída dos reformistas da seção napolitana, na condição de líder regional127 –,
tornou-se destacado por defesa intransigente do internacionalismo, colocando-
se contra o nacionalismo e criticando as posições que levariam, dois anos depois,
à capitulação da social-democracia aos interesses imperialistas de seus próprios
países na Primeira Guerra Mundial – tão bem-sucedidos foram os esforços da
esquerda na Itália, que, ao contrário dos partidos da Alemanha e da França, o
PSI não apoiou a guerra, mas, ainda assim, caiu em uma posição centrista,
pregando nem apoio, nem sabotagem. Em 1917, Bordiga defendeu de imediato
a revolução bolchevique e adotou as perspectivas do partido de Lênin, colocando
em pauta a questão da tomada do poder, da transformação da guerra
imperialista em guerra civil. Nos anos seguintes, Bordiga foi, sem exageros, a
principal figura da esquerda do PSI, agitando pela expulsão dos reformistas dos
quadros do PSI e conversão deste em um partido comunista conforme os
princípios da Internacional Comunista, fundada em 1919 – esforços que
culminariam na fundação do Partido Comunista da Itália em 1921. Como
instrumento dessa luta, lidera a fundação do jornal Il soviet, que servirá como
órgão da Fração Abstencionista. Sua atuação nesse período lhe valeu o elogio
o apoio da Comintern:

126
A essa altura, a principal atividade de Bordiga era na oposição ao imperialismo
italiano, tendo começado por opor-se à guerra na Líbia. Curioso notar que, anos mais
tarde, ao buscar iluminar a história da esquerda comunista na Itália, Bordiga vai
colocar sempre como pedra de toque de uma posição revolucionária a oposição ao
imperialismo e ao colonialismo, citando o socialista Andrea Costa, que se opôs ao
colonialismo na África, foi contra a expedição imperialista contra a revolta dos Boxers,
na China, e, quando no parlamento, esteve sempre contra verbas para o exército,
tendo, ademais, levantado em 1894 o famoso slogan "Fora da África!". Cf. BORDIGA,
Amadeo. Storia della Sinistra Comunista, 1964. Disponível em:
https://www.sinistra.net/lib/sto/st1/stor1219ai.html
127
BOURRINET, Philippe. The “Bordigist” current (1912-1952): Italy, France, Belgium,
USA. Disponível em: https://files.libcom.org/files/bordigist(1).pdf.
65
Sim, sem dúvida, o correspondente inglês do jornal
liberal burguês prestou um mal serviço aos senhores, Turati &
Cia. e confirmou de modo excelente o quanto são justas as
exigências do camarada Bordiga e seus amigos do Il Soviet,
que reclamam do Partido Socialista Italiano, se este quer
realmente estar a favor da III Internacional, a expulsão de
suas fileiras, cobrindo-os de opróbrio, dos senhores Turati &
Cia. e sua transformação num Partido Comunista autêntico,
tanto por seu nome quanto por seus atos.128
Nessa época, escreve algumas das principais defesas das concepções
bolcheviques, como É a hora de formar sovietes? (1919), O sistema de
representação comunista (1919), as Teses da Fração Abstencionista do PSI
(1920) e sua famosa crítica do grupo de Gramsci em Tomar o poder ou tomar a
fábrica? (1920). Enquanto o grupo da L’Ordine Nuovo mantinha posições quase
conselhistas, privilegiando a tomada imediata das fábricas pelos conselhos
operários e deixando ao partido um papel secundário ou meramente econômico,
o grupo do Il soviet enxergava de outro jeito: o partido é a organização central e
não pode ser confundido com as organizações econômicas da classe, sua
função de direção política é imprescindível. E, mais ainda, na visão de Bordiga
os sovietes, em si, sem a liderança de uma vanguarda revolucionária, do partido,
podiam muito bem não ser revolucionários e serem absorvidos pela reação 129.
Após a fundação do partido, em 1921, Bordiga foi seu primeiro e
incontestável líder, apesar do jovem PCI – formado por três principais correntes:
os abstencionistas de Bordiga, o grupo da revista L’Ordine Nuovo de Gramsci e
Togliatti e os maximalistas de Fortichiari e Graziadei – estar longe de ser
homogêneo.
Por pelo menos três anos Bordiga foi o líder político
inconteste desse partido, carismático, conhecido e tido em
alta estima em toda a Internacional. Mal tinha o PCI visto a luz
do dia quanto enfrente um exaustivo teste: por um lado,
ataques frontais dos esquadrões fascistas; por outro,
crescente insatisfação com a liderança da Internacional, não
menos acerca da política mais adequada para confrontar os
fascistas.130

128
LÊNIN, V. I. Esquerdismo: doença infantil do comunismo. 1920. Disponível em:
https://www.marxists.org/portugues/lenin/1920/esquerdismo/index.htm#topp.
129
Uma análise que era, à época, fortalecida pelos eventos da Alemanha: em novembro
de 1918, um congresso de conselhos operários havia entregue o poder ao social-
democrata Friedrich Ebert, mais conhecido por ter comandando a sangrenta repressão
à revolta espartacista em janeiro de 1919.
130
BASSO, Pietro (Ed.). The science and passion of communism: selected writings of
Amadeo Bordiga (1912-1965). Leiden; Boston: Brill, 2020, p. 70.
66
Essa situação internacional o colocou em uma posição delicada: por um
lado, bolchevique intransigente que tinha em primeiro lugar a disciplina e o
centralismo; por outro, sua interpretação da conjuntura italiana e do avanço do
fascismo que o jogava para uma posição minoritária na Internacional. Nesses
primeiros anos do partido, a ala de Bordiga, a esquerda, era a maior, mas tinha
um entendimento que ia de encontro com o do Comitê Executivo Central da
Internacional. Além disso, não há exagero em dizer que, em seu esforço de impor
a disciplina centralizada à Internacional, sobretudo para completar a ruptura com
a social-democracia, o partido russo subestimava sua desinformação sobre a
situação dos outros países. Décadas mais tarde, ao escrever sobre (e defender)
o Esquerdismo de Lênin131, é a esse descompasso de informações, que levou a
uma discordância mais tática que estratégica ou de princípios, que Bordiga
atribuiria as críticas dirigidas a ele pelo dirigente russo. Mas, essa ficou sendo a
versão vencida e minoritária, a maioria dos livros passam pelo período em que
Bordiga exerceu a liderança no partido brevemente e o tachando de “esquerdista
dogmático”, “inflexível”, “putschista”, “terrorista”, “maximalista”, entre outras
acusações.
Não é o caso aqui de rememorar em todos os seus detalhes esse período,
como o debate acerca dos Arditi del Popolo, sobre a colaboração com o PSI ou
a diferença em análises do fascismo entre Bordiga e Gramsci. A questão
fundamental é que, não obstante a ala esquerda fosse majoritária no partido
italiano – que, aliás, não se chamada Partido Comunista Italiano ainda, mas
Partido Comunista da Itália; sob Togliatti é que houve a mudança de nome, igual
à que ocorreu ao PCB, no Brasil, e por motivos parecidos -, ela expressava uma
visão minoritária no cenário internacional, tornando impossível uma articulação
da liderança segundo os ditames da Internacional Comunista. São desse período
alguns dos mais famosos textos de Bordiga, que começam a definir, em linhas
gerais, o percurso teórico-político que ele seguiria: Partido e Classe (1921),
Partido e Ação de Classe (1921) e O princípio democrático (1922), e as Teses
de Roma (1922). Esse período de sua maturação teórica, que culmina com Lênin
no caminho da revolução (1924), é marcado por sua defesa da total
independência e autonomia do Partido Comunista frente às forças burguesas e
uma progressiva clarificação de sua teoria como órgão da classe, de certo modo
mesmo constitutiva da classe, assim como a consolidação das bases da análise
bordiguiana do fascismo como complementar e necessário para o capitalismo,
como um produto moderno da derrota do proletariado 132 , pelo qual Bordiga
também aprofundava sua crítica da democracia. A Esquerda da Comintern, que
existia em vários países133 e desempenhou papel fundamental na organização

131
BORDIGA, Amadeo. Il testo di Lenin su “L’estremismo, malattìa d’infanzia del
comunismo”, condanna dei futuri rinegati, 1960. Disponível em:
https://www.sinistra.net/lib/bas/progra/vama/vamakfebui.html.
132
E não, como pensava Gramsci, um movimento feudal e agrário.
133
A ala esquerda da Comintern, que deu origem ao campo político da assim chamada
Esquerda Comunista, não tinha posições homogêneas e, em alguns casos, tinha
posições radicalmente distintas. O que as unia era, fundamentalmente, a oposição, pela
67
dos partidos comunistas, não era tolerada em seu papel de liderança pela
direção da Internacional. Na Itália, não foi diferente. Em 1923, com Bordiga na
prisão, após a primeira onda repressiva de Mussolini, a Comintern interveio no
partido e o expulsou do comitê executivo do PCI, sob alegações de que ele teria
impedido a união com o PSI – vez que Bordiga se opunha à linha de frente única
e governos operários, adotada no III Congresso da Comintern. Seguiu-se uma
intensa campanha entre Bordiga e Gramsci: aquele tentou reagir com um longo
manifesto defendendo a linha seguida pelo PCI até então, que foi enquanto
Gramsci o isolou da liderança. Em 1924, Antonio Gramsci assumiu como
secretário-geral. Ao descrever suas diferenças com Bordiga, Gramsci disse que
aquele tomava o ponto de vista de uma minoria internacional, enquanto ele
pensava ser preciso adotar o da maioria nacional 134.
Mesmo fora da liderança, a ala esquerda de Bordiga mantinha a maioria
absoluta do partido. Na conferência do partido de 1924, 35 das 45 secretarias
regionais e 4 das 5 inter-regionais, apoiaram as teses da Esquerda135. Ao mesmo
tempo, Togliatti, no PCI, e Zinoviev, presidente da Comintern, ofereceram a
Bordiga cargos de vice-liderança. Ele os recusou: não queria cargos em uma

esquerda, à direção da Comintern e as tendências a aceitar as frentes únicas, o


antifascismo democrático, a participação nas eleições, parlamentos e sindicatos.
Bordiga é, historicamente, o representante maior da Esquerda Comunista Italiana, que
será estudada nesse trabalho e, como se demonstrará, se caracterizava por um ultra-
bolchevismo, de intransigente lealdade ao leninismo; além de Bordiga, são conhecidos
membros dessa corrente Onorato Damen, Ottorino Perrone, Bruno Fortichiari, Mario
Acquaviva, Fausto Atti, Bruno Maffi. Por outro lado, a Esquerda Comunista na Alemanha
e na Holanda deu origem ao chamado comunismo de conselhos e, após 1921, tomou
uma firma posição anti-leninista; entre seus principais nomes podemos citar Anton
Pannekoek, Herman Gorter, Otto Rühle, Paul Mattick, Franz Pfemfert, Jan Appel e Karl
Korsch. Entre essas duas posições, em outros países surgiram uma ampla gama de
correntes: na Rússia, o Grupo Operário de Gavriil Myasnikov; na Grã-Bretanha, Sylvia
Pankhurst. Muitas vezes, a abordagem da Comintern se tornou simplesmente destruir
essas alas de esquerda, com efeitos devastadores para os partidos. Dois exemplos: na
Turquia, o partido se dividia com relação à abordagem a tomar para com o kemalismo,
sendo a linha oficial a mais conciliatória, enquanto a ala esquerda, de Nazim Hikmet e
Salih Hacioglu, era mais combatente; apesar da ala esquerda ser majoritária, a
Comintern obrigou o partido a se reconciliar com o kemalismo e os comunistas turcos
pagaram o preço de sangue por isso: toda a liderança do TKP foi assassinada pelo
governo, o partido foi desmanchado e Mustafa Kemal mandou fundar um partido
“comunista” leal ao governo, como fachada, apenas para manter o apoio da URSS – a
Turquia só voltou a ter um partido comunista na década de 1960. Também gritante é o
caso de Portugal: o PCP foi fundado e teve como primeiro líder Henrique Caetano de
Sousa, um “esquerdista” que defendia a imediata independência das colônias; a
Comintern, por intermédio de Jules Humbert-Droz, retirou-o da liderança, que foi
entregue ao arrivista Carlos Rates, que defendia a venda das colônias pela melhor oferta
e, depois de defender uma “aliança antifascista”, entrou para a União Nacional
salazarista em 1931. O PCP foi esmagado e desestruturado depois da instalação da
ditadura portuguesa.
134
BASSO, Pietro (Ed.), Op. cit, p. 52.
135
BOURRINET, Philippe. Op. cit., p. 56.
68
direção que recusava as teses da Esquerda. O ano de 1925 viu a intensificação
da luta no interior do partido e da Internacional: na URSS, a luta contra Trótski;
na Alemanha, a esquerda do KPD, de Ruth Fischer, foi expulsa. Na Itália, a
“bolchevização” marchava. Em reação, membros da Esquerda, como Onorato
Damen, Bruno Fortichiari, Francesca Grossi e Luigi Repossi fundam o Comitato
d’Intesa, um comitê para organizar formalmente a Esquerda. Bordiga, reticente
em dar motivos para expulsão, juntou-se ao grupo mais tarde, mesmo sob
virulentas acusações de fraccionalismo vindas de Gramsci. Esse é um
importante momento, pois foi para o Comitato que Bordiga rascunhou a primeira
crítica geral à política de “bolchevização”: atacou a reorganização do partido em
células de fábrica, criticou o obreirismo e a ideia de que ser operário tornaria um
inatamente menos suscetível a posições ideológicas burguesas. Sob ameaça de
expulsão, entretanto, o Comitato foi dissolvido por seus membros.
1926, com o infame III Congresso do PCI, em Lyon, momento também de
máximo conflito entre os dois dirigentes, foi o ponto de virada. Os dois
escreveram longos documentos, as Teses de Lyon, para esclarecer os dois
possíveis rumos do partido. O congresso, feito na clandestinidade durante um
dos momentos de mais severa repressão, não contou com a presença da maior
parte dos delegados da ala esquerda. O documento da Esquerda criticava
severamente Gramsci: criticado por seu historicismo e idealismo, por ter
influências de Croce, Proudhon, por ter proclamado que a Revolução Russa teria
sido “contra o Capital”, pela aliança com os partidos “antifascistas” após o
assassinato do jornalista Matteotti 136 . Mas não adiantava: agora em minoria
esmagadora, a Esquerda teve menos de 10% dos votos dos delegados
presentes. Começou assim a desagregação da Esquerda do PCI.
É também o ano da última participação de Bordiga no pleno do Comitê
Executivo da Internacional Comunista, momento intenso e conflituoso. Conta-se
que foi nessa oportunidade que Bordiga vociferou contra Stálin, acusando-o de
ser o “coveiro da revolução” e, talvez provocativamente, sugeriu que o governo
da URSS fosse tomado por toda a Internacional, não só pelo Partido russo.
Mussolini a essa altura intensificou a repressão: em fins de 1926, Gramsci
e Bordiga foram presos e enviados para a ilha de Ustica. Os dois rivais
mantiveram laços de amizade137 e conviveram até que Bordiga foi enviado para

136
Em 1924, o jornalista antifascista Giacomo Matteotti foi assassinado por Camisas
Negras. Em resposta, os partidos Comunista, Socialista, Liberal e Popular saíram do
parlamento. Bordiga foi contra essa posição. Em 1925, o parlamento, agora dominado
pelos fascistas, simplesmente passou a lei que deu a Mussolini poderes ditatoriais e os
opositores tiveram seus mandatos cassados. É um dos casos, aliás, que mostra que a
ideia de Bordiga como um abstencionista “em princípio”, acusação que grudou após
Lênin repeti-la em seu famoso livro, não é tão precisa.
137
Sobre a relação pessoal de Bordiga e Gramsci e a convivência nos anos de Ustica,
ver o já citado livro de Bourrinet. Após a guerra, anos depois da morte de Gramsci,
Bordiga escreveria sempre em defesa da pessoa de Gramsci e da relação pessoal que
69
outra ilha prisional, a de Ponza, em 1928. Em fevereiro de 1929, Bordiga e ouros
37 militantes do partido se recusaram a apoiar a classificação de Trótski como
“inimigo da Internacional Comunista”: no começo de 1930, foram expulsos do
partido.
Desse ponto até fins da Segunda Guerra Mundial, Bordiga parece não ter
se envolvido mais com política. Seus antigos camaradas do Comitato d’Intesa
continuavam a se organizar politicamente do exílio, na França e na Bélgica,
fizeram desenvolvimentos teóricos autônomos, entraram em contato com a
Esquerda alemã, os conselhistas, flertaram com influências teóricas de Rosa
Luxemburgo e passaram por uma crise durante a Guerra Civil Espanhola, com
uma minoria considerável de seus membros se alistando nas fileiras do POUM
para lutar, enquanto a maioria considerou o conflito como inter-imperialista e
inter-burguês. Em virtude de tudo isso, a própria Esquerda sempre rejeitou as
etiquetas de “bordiguista” ou mesmo “italiana” – seus trabalhos teóricos eram
coletivos e tinham ojeriza ao culto da personalidade, e durante esse longo exílio
haviam se internacionalizado efetivamente –, então, no lugar, chamavam-se de
Fração Italiana da Esquerda Comunista Internacional138 e publicavam os jornais
Prometeo e Bilan e a revista teórica Octobre. Ao mesmo tempo, as ideias da
Esquerda Italiana se difundiam, mesclavam-se com as da Esquerda Alemã,
fazendo surgir grupos novos na França, como os das revistas Réveil communiste,
a princípio animado por Michelangelo Pappalardi, e Ouvrier communiste, de
André Proudhommeaux. Enquanto isso, Bordiga entendeu o momento histórico
como absolutamente contra-revolucionário e que não havia um curso de ação
possível ainda. Alguns atribuíram isso à intensa vigilância a qual ele estava
submetido: era frequentemente interrogado, mantido preso e, ao menos por
alguns anos, era seguido por dois policiais todo o tempo. Houve várias tentativas
de puxá-lo para um lado ou outro: o ex-comunista Nicola Bombacci, agora
simpatizante do fascismo, o convidou para participar de uma revista pró-
Mussolini, outros o chamavam para fugir para a França e reorganizar a Fração
de Esquerda. Ele não aceitou nada. Mesmo contatos ele cortou quase todos: dos
antigos comunistas, falava apenas com alguns poucos amigos, como o cirurgião
Ludovico Tarsia – então vivendo no Brasil, em São Paulo.
No entanto, seria equivocado dizer que não é um período importante do
pensamento de Bordiga. Entre um ou outro fragmento, na verdade, é possível
perceber o surgimento de certos temas. Por exemplo, nessa época surgem as
primeiras referências de Bordiga aos Estados Unidos como “centro da
contrarrevolução” e maior inimigo dos revolucionários, posição que ele manterá
até o fim da vida. Também com relação ao fascismo sua análise se consolida:

tiveram, apesar da rigorosa rivalidade política, inclusive contestando a interpretação


oficial do PCI de Togliatti do legado gramsciano.
138
Como se deve ter notado, optei pelo nome programmismo para designar a corrente
de Bordiga. Esse termo não é sinônimo de Esquerda Comunista Italiana, é mais
específico e será explicado adiante. Mas, essa explicação anterior é válida para
entender o porquê de se ter evitado “bordiguismo”.
70
não considerava os regimes do Eixo uma possibilidade duradoura ou estável, via
eles como o lado fraco do capitalismo mundial e que, mesmo se vencessem a
guerra, colapsariam pouco depois. Reafirma a convicção de que o fascismo era
uma fase, temporária e necessária ao mesmo tempo, do capitalismo,
completamente imanente ao desenvolvimento capitalista e, inclusive,
internamente aliado à democracia.
Com relação à sua relevância política, apesar da inação total por mais de
uma década, os investigadores fascistas apontaram, em julho de 1939: “Bordiga
em Nápoles está sempre ganhando novos simpatizantes, mesmo entre seus
adversários, e está obtendo agora amplo apoio na classe média intelectual”. E,
em 1942: “Bordiga é e sempre será um bolchevique comunista” 139. Mesmo um
historiador como Paolo Spriano, conhecido por representar a versão oficial do
PCI e incluir em seus trabalhos uma posição claramente anti-Bordiga não oculta
a notoriedade que mantinha Bordiga, fazendo notar, inclusive, que ainda
naqueles anos de afastamento política, jovens militantes iam visitar Bordiga,
querendo se fazer “catequizar” 140.
Sobre essas bases, por volta de 1944, Bordiga retornou à ação política:
surgiu no Mezzogiorno, no Sul, reunindo antigos militantes comunistas que ainda
se lembravam e aderiam às posições da Esquerda, alienados da direção do PCI
que ficou anos no exterior, a Fração de Esquerda de Comunistas e Socialistas.
Como o próprio nome indica, parecia tratar-se de uma tentativa de atrair
militantes do PCI e PSI, ainda reticente em formar um novo partido.
Paralelamente, no Norte, em Milão, desde 1943 membros da Esquerda 141 ,
alguns retornados do exílio, outros recém libertos da prisão, fundaram o Partido
Comunista Internacionalista e haviam relançado o jornal Prometeo. O
crescimento de ambos foi espetacular, sobretudo entre a classe operária
extenuada e, em menor grau, em certos grupos de partisans. Seria, enfim, em
1945 que os dois grupos, PCInternacionalista no Norte e a Fração no Sul, seriam
fundidos. Bordiga, entretanto, decidiu não entrar imediatamente, permaneceu na
órbita do novo partido, escreveu para sua imprensa e redigiu documentos
internos importantes, mas só se filiou formalmente em 1949.
Independentemente do longuíssimo exílio “interno” imposto pelo regime
fascista e pela expulsão da atividade política, o nome de Bordiga não
desapareceu.
Apesar da postura de espera de Bordiga, seu espectro
ainda pairava sobre o partido italiano [i.e., o PCI de Togliatti]
em 1937-38, provocando uma série de autocríticas por parte

139
Ambas as citações: BOURRINET, Philippe. Op. cit., p. 70.
140
SPRIANO, Paolo. Storia del partido comunista italiano, III: i fronti popolari, Stalin, la
guerra. Turim: Einaudi, 1971, pp. 432-433.
141
Principal líder dessa reorganização foi Onorato Damen, que havia passado quase 15
anos em prisões fascistas, tendo mesmo liderado uma rebelião de presos em 1933, até
ser solto pelo regime Badoglio.
71
de seus líderes, que não teriam combatido o ‘bordiguismo’ e
o trotskismo até o fim, bem como a decisão da Comintern de
dissolver todo o Comitê Central e substitui-lo com um
confiável Centro Organizador de sua escolha. Mesmo quando
Togliatti desembarcou em Nápoles em março de 1944, uma
de suas primeiras perguntas foi, “E Bordiga? O que Bordiga
está fazendo?” e quando ouviu a reconfortante resposta de
que ele não estava fazendo nada, respondeu: “Isso é
impossível, tente descobrir”.142
Na visão de Togliatti, pelo contrário, lutar contra o espectro do “bordiguismo”
parecia uma tarefa urgente, era a própria construção da linha política do PCI por
meio da mitologia. Togliatti dizia que o partido não havia combatido o trotskismo
e o “bordiguismo”, que era preciso voltar a chamá-los de alas auxiliares do
fascismo, de inimigos da revolução143.
A marca do stalinismo na Terceira Internacional havia
sido a falsificação da história e a propagação de mentiras
descaradas para justificar mudanças de linha política ou
liquidação de oponentes. Isso também encontrou lugar na
prática do PCI. Enquanto Gramsci e Togliatti se tornaram os
pais fundadores oficiais do partido, o papel de Amadeo
Bordiga foi ou minimizado ou vilanizado.144
Começa aqui o segundo e, para nós, mais importante período da produção
de Bordiga. De 1945 até 1965, Bordiga trabalhou febrilmente, em ritmo e
sistematicidade impressionantes, tendo em vista o que ele entendia como a
restauração do conteúdo invariante do programa comunista. Essa nova fase é
bastante diferente da primeira: já não é mais um Bordiga internacionalmente
conhecido e à frente de um partido de massas em um momento histórico
revolucionário, mas, sim, um Bordiga marginalizado, parte de um milieu político
extremista e, na maior parte do tempo, minoritário. Além disso, isso era
compreendido pelos próprios membros, em primeiro lugar o próprio Bordiga: ele
tinha perfeita convicção de que não era um momento revolucionário e nem havia
perspectivas de agitação revolucionária no curto prazo. As agitações operárias
de 1943-1948, como as ondas grevistas, atraíram os nortistas do PCInt, como
Damen e Vercesi 145 , mas Bordiga não via ali nada parecido com a onda
revolucionária de 1917-1923. Em certa medida, pode-se mesmo falar em um
pessimismo quase frankfurtiano nesse Bordiga da segunda fase, isto é, não
fosse sua certeza matemática de que as crises do capitalismo são inevitáveis,
que viria um novo momento revolucionário e que era fundamental estar

142
BASSO, Pietro (Ed.). Op. cit, p. 69.
143
SPRIANO, Paolo. Storia del partito comunista italiano, III: i fronti popolari, Stalin, la
guerra. Turim: Einaudi, 1971, pp. 217-218.
144
GINSBORG, Paul. Op. cit., pp. 198-199.
145
Ottorino Perrone, Vercesi era seu pseudônimo.
72
preparado, passar o conhecimento e as experiências de uma geração de
militantes revolucionários para outra.
Assim fala Pietro Basso sobre Bordiga após as derrotas pesadas dos anos
1920:
A extrema dureza da derrota sofrida por Bordiga e
Esquerda Comunista Italiana deve ser vista principalmente
em relação com a profundidade do ciclo contrarrevolucionário
que começou na primeira metade dos anos 20, e que refletia
a esmagadora força material e ideológica do capitalismo
internacional dirigido pelos estados democráticos. Enquanto
a revolução vitoriosa na Rússia permaneceu isolada no mais
desfavorável ambiente social, a construção das seções
nacionais da Internacional Comunista, entre dificuldades ao
confrontar a contra-ofensiva burguesa, mostrava um caráter
frágil devido ao ciclo anterior de desenvolvimento do
movimento operário. É verdade que a revolução se expandiu
pelo Oriente, mas o vão entre o proletariado da Europa
Ocidental e as massas oprimidas dos países coloniais e semi-
coloniais continuava impossível de superar no curto prazo. 146
Além disso, se antes, na década de 1920, como era costumeiro no jargão
bolchevique, falava-se frequentemente em “decadência do capitalismo”, “crise
final”, e em outros termos teleológicos ou mesmo milenaristas, ideias que tão
profundamente impactaram o pensamento de comunistas como Gramsci e
Trótski, após a Segunda Guerra Mundial inicia-se um novo ciclo de acumulação,
com um desenvolvimento capitalista veloz e forte. Em particular na Europa é a
época dos “trinta gloriosos”, o período de ouro do capitalismo europeu em
moldes fordistas, entre 1945 e 1975, é a época da affluent society de que
falariam Galbraith e Marcuse, da “sociedade administrada” segundo Horkheimer
ou do “neocapitalismo” na terminologia de Raniero Panzieri. O Estado havia se
tornado mais presente, em todos os países um grau de planejamento era
adotado, ao lado de estatizações, formação de grandes e influentes sindicatos
com legislação trabalhista correspondente. O Plano Marshall, de um lado, e o
Comecon, do outro, associavam os capitais nacionais inclusive no mais alto grau
de internacionalização.
A participação de Bordiga no PCInt tomou, a princípio, principalmente a
forma de mentor ideológico e teórico. Escrevia documentos importantes, artigos
para a imprenso, textos de clarificação, e presidia conferências. Seus escritos se
voltam para questões programáticas, organizacionais, táticas e estratégias,
redige textos como Teses Características do Partido, Ditadura proletária e
partido de classe, Teoria e ação na doutrina marxista, Fundamentos para uma
Orientação Marxista e Força, Violência e Ditadura na Luta de Classes. No ano

146
BASSO, Pietro (Ed.). Op. cit., p. 70.
73
em que se juntou formalmente ao partido, 1949, começou a publicar no jornal da
organização, Battaglia Comunista, uma série de ensaios sobre temas diversos
chamada Sul filo del tempo, com a finalidade de demonstrar a invariância
histórica do marxismo abordando. É nesses trabalhos que Bordiga expande
muito seu escopo teórico, escrevendo sobre coisas tão distintas como tática e
estratégica políticas dos comunistas, sindicatos, a questão nacional e colonial,
religião e anticlericalismo, reforma agrária, a “questão” do Mezzogiorno, guerra
e imperialismo, a bomba atômica, ecologia, teoria marxista do valor, teoria da
história, além de começar a desenvolver sua análise madura do caráter
econômico da União Soviética. É a época em que se escrevem textos
memoráveis como Homicídio dos Mortos, Marxismo e pessoa humana, A
doutrina do corpo possuído pelo demônio, e Avante, bárbaros!
Esse período, de maturação intelectual e política, em que o pensamento
de Bordiga ganha, enfim, suas formas definitivas é também o de
desenvolvimento de uma forma especial. Apesar dos seguidores internacionais
de Bordiga, incluindo os que hoje ainda são militantes de partidos que
reivindicam seu legado, não darem atenção a esse aspecto, não é raro que
italianos, principalmente os mais eruditos, comentem sobre o estatuto peculiar
da prosa bordiguiana. Como já se percebe inclusive pelos títulos de seus artigos,
há uma preocupação especial com imagens, metáforas, escolhas verbais que
colocam sempre um ritmo e um tom especiais. Em certos momentos, a escrita
de Bordiga quase passa para o campo da prosa poética. A esse ritmo bastante
único se acrescenta ainda um vocabulário incomum, mistura de jargão técnico e
do dialeto napolitano. Há ainda uma outra questão de forma: em todos os artigos
escritos a partir da série Sul filo del tempo, Bordiga adota uma estrutura única,
organizando seus textos em três partes: Ontem, Hoje e Amanhã, sempre como
forma de enfatizar o caráter invariante da teoria marxista.
Como exemplo, um comentário de Pietro Basso acerca dos defeitos das
traduções inglesas de textos de Bordiga:
Uma razão para isso é a dificuldade objetiva de fazer
justiça à prosa de Bordiga – às vezes áspera, sempre vibrante
e pessoal, e recheada de neologismos, aforismos e
expressões dialetais que fizeram alguns compará-lo ao
grande escritor italiano Carlo Emilio Gadda. 147
Ou ainda Costanzo Preve, que brinca com o compromisso de Bordiga com
o anonimato e sua rejeição de toda forma de individualismo:
A coisa é engraçada, porque Bordiga é um dos
prosadores mais expressivos e reconhecíveis de toda a
literatura italiana do século XX, com seu inimitável “estilo
misto” de dialeto napolitano, léxico de engenheiro e linguajar

147
BASSO, Pietro. Op. cit., p. 3.
74
político marxista, e mesmo sem assinar continua
reconhecibilíssimo.148
Esse linguajar de engenheiro não era mero floreio da pena, aliás.
Engenheiro e arquiteto de formação, especialista em cálculos de probabilidade
e estatística, Bordiga deixa bastante notável a influência de um certo gosto pelo
exato e pelo concreto em seu pensamento. Raramente termina-se uma leitura
sem que se tenha entendido exatamente o que ele quer dizer, por mais
sofisticado e próprio que seja seu estilo. Muito pelo contrário, o raciocínio de
Bordiga já lhe valeu acusações de esquematismo, em particular pelo seu uso de
modelos e gráficos em algumas conferências do partido. Conta-se mesmo uma
anedota que, certa vez, estando Bordiga detido pelos alemães durante a guerra,
por volta de 1943, ele teria descarrilhado o interrogatório aproveitando o
momento para provar matematicamente que o Eixo estava, invariavelmente,
condenado à derrota149. Nem por isso, entretanto, Bordiga era um racionalista;
muito pelo contrário, vemos nele alguém bastante diferente de um Lukács ou
mesmo de Della Volpe: Bordiga colocava um grande peso no momento da
intuição, da fé inclusive:
Arte e Ciência em certos momentos se encontram. São
dois aspectos análogos da consciência humana. A diferença
não é posta então entre arte e ciência, entre intuição e
inteligência. É com a intuição que a humanidade sempre
avançou, porque a inteligência é conservadora e a intuição é
revolucionária. A inteligência, a ciência, a consciência têm
origem no movimento que avança (abandonemos o ignóbil
termo “progressivo”). Na parte decisiva de sua dinâmica a
consciência toma seus movimentos sob a forma de uma
intuição, de uma consciência afetiva, não demonstrativa; virá
depois a inteligência com seus cálculos, sua contabilidade,
suas demonstrações, suas provas. Mas a novidade, a nova
conquista, a nova consciência não teve necessidade de
provas, teve necessidade de fé! Não tem necessidade de
dúvida, tem necessidade de luta! Não tem necessidade de
razão, tem necessidade de força! Seu conteúdo não se
chama Arte ou Ciência, chama-se Revolução!150
Em 1952 tornou-se inadiável uma cisão na Esquerda. Desde a própria
unificação desentendimentos programáticos vinham consolidando duas alas
principais no PCInt. Uma, organizada principalmente em torno de Onorato
Damen, Luciano Stefanini e Aldo Lecci, via a necessidade de reconstruir um
partido de massas, com contato direto com o proletariado, levando-os mesmo a

148
PREVE, Costanzo. Note critiche sul bordighismo.
149
CHIARADIA, John E. The spectral figure of Amadeo Bordiga. Tese (Doutorado em
Filosofia) – New York University, 1972, p. 123.
150
Dal mito originario alla scienza unificata del domani, in n+1, nº 15-16, 2004, p. 111.
75
defender participar de eleições em 1946 e 1948; eles também se viam como
continuadores dos “desenvolvimentos” teóricos que haviam ocorrido no exílio,
nas páginas do jornal Bilan, em particular: rejeição completa de apoio às lutas
de libertação nacional, oposição à presença em sindicatos reformistas, crítica da
“ditadura do partido” em favor da “democracia dos conselhos”, adesão à “teoria
da decadência” 151 . Bordiga, contrário à incorporação dessas posições no
programa do partido, defendia o retorno à plataforma de 1921 e, portanto, apoiou
o bloco formado por Bruno Maffi e Ottorino Perrone. A cisão foi consumada: o
grupo de Damen, para um lado, manteve a revista teórica Prometeo e fundou
um jornal retomando o nome Battaglia Comunista e os “descendentes” dessa
tradição hoje estão organizados na Tendência Comunista Internacional 152 ; o
grupo de Bordiga, para o outro, organizou-se no Partido Comunista
Internacional153 e fundou o jornal Il programma comunista.
Agora pode-se explicar o nome mais indicado para se referir,
especificamente, à corrente política de Bordiga. Não “bordiguismo”, mas
programmismo (em italiano, mas por que não adaptar para o lusófono
programismo?). A escolha do nome do jornal no qual Bordiga passaria a publicar
seus escritos por mais de uma década após essa cisão não era ao acaso,
exprimia justamente aquilo que se tornaria a coluna vertebral de sua
compreensão do marxismo: a invariância do programa comunista.
Bordiga dedicou-se ao Partido dali até seu falecimento, em 1970, pouco
depois de dar sua primeira entrevista televisiva, hoje disponível no Youtube, em
que fez uma recolecção geral de sua vida política, com uma inabalável fé nas
mesmíssimas posições que defendera desde fins da década de 1910. O caminho
que tomou seu desenvolvimento teórico e intelectual nesse último período é

151
Isto é, decadência do capitalismo, a ideia de que a partir de certo ponto de seu
desenvolvimento, o capitalismo se torna incapaz de continuar a desenvolver as forças
produtivas e precisa, pelo contrário, destruí-las, tornando-se completamente decadente
ou parasitário. É similar à visão exposta por Trótski no Programa de Transição, de 1938,
e possui fortes vínculos com o economicismo; era comum no discurso revolucionário
anterior à Segunda Guerra Mundial, mas perdeu seu prestígio com o fracasso das várias
previsões do “colapso final” do capitalismo. Bordiga era forte crítico das teorias da
decadência e dizia que estavam enraizadas no gradualismo, ver: Theory and action in
Marxist doctrine, 1951, disponível em: https://libcom.org/article/theory-and-action-
marxist-doctrine-amadeo-bordiga.
152
http://www.leftcom.org/en.
153
O PCInternacional continuou existindo como organização única, apesar de cisões,
até a década de 1980, quando divergências sobre a situação do capitalismo mundial e
em torno do nacionalismo árabe e a questão palestina levaram a uma verdadeira
explosão do partido. Existe hoje uma multiplicidade de partidos sob o nome
PCInternacional reivindicando o legado de Bordiga. Menciono apenas três: o do jornal
Le prolétaire (https://pcint.org/, ativo na Itália, na Espanha e na França), o do jornal Il
partito comunista (https://www.international-communist-party.org/, na Itália, no Reino
Unido e nos Estados Unidos) e o que publica Il programma comunista
(https://www.internationalcommunistparty.org/index.php/it/, Itália e Alemanha).
76
menos dramático, apresenta mudanças, sim, mas não rupturas, tomando mais a
forma de um contínuo aprofundamento, particularmente após 1960.
A década de 1950 é o tempo de consolidação, em que os fundamentos
mais importantes da teoria comunista são recolocados, tal como em
Fundamentos do Comunismo Revolucionário; mas Bordiga não parte da mera
repetição do que os próprios comunistas italianos já sabiam, e, sim, do retorno à
análise detida dos textos do próprio Marx, pela reconstrução de toda a linha
histórica em que se desenvolveu a teoria marxista, particularmente após a cisão
de 1952. Por isso, é a época em que Bordiga escreve suas pioneiras análises
sobre os Manuscritos de 1844, sobre os Grundrisse – dando particular atenção
para o Fragmento sobre as máquinas – e sobre o Capítulo VI “inédito” do Capital,
são exemplos O espírito do cavalo-vapor, No turbilhão da anarquia mercantil,
Questões fundamentais de economia marxista e Trajetória e catástrofe da forma
capitalista. Devido a esses escritos, tendo sempre como objetivo a reconstrução
do programa comunista invariante, ele foi por alguns considerado um dos
maiores especialistas nas obras de Marx do século XX, comparado a Rubin,
Rosdolsky e Rubel. Tendo forte domínio da questão agrária, Bordiga olha
também, nesse período, para assuntos que hoje chamaríamos de ecologia ou
ambientalismo; seu radicalismo e pioneirismo também chamam a atenção aqui,
podendo ser lidos como exemplos Espaço contra cimento, A espécie humana e
a crosta terrestre e o breve Programa imediato da revolução, em que ele coloca
claramente as medidas para abolição do capital no Ocidente: desinvestimento
de capital, suspensão do processo de valorização, redução das jornadas de
trabalho, aumento dos custos de produção, subprodução, enfim, ditadura sobre
o consumo.
Com a aceleração do movimento anti-colonial e das revoluções do Terceiro
Mundo, Bordiga também passa a se dedicar estuda-las e entender seu papel
histórico, escrevendo a essa altura um de seus mais longos trabalhos, o livro
Fatores de Raça e Nação na Teoria Marxista, em 1953, além de outros textos
menores, mas valiosos, como Pressão racial do campesinato, pressão de classe
dos povos de cor, As revoluções múltiplas e Doutrina dos Modos de Produção.
Também desse período é sua elaboração da análise da formação social da
União Soviética, com um trabalho longo e profundo – pioneiro e talvez até hoje
inigualável em seu cuidado com dados empíricos e foco nas transformações da
agricultura na Rússia – analisando política e economia em seu desenvolvimento
simultâneo, Estrutura econômica e social da Rússia de hoje, publicado em
fascículos de 1955 a 1957; outros textos mais curtos sobre o mesmo assunto
escritos nessa época são Diálogo com Stálin, Diálogo com os mortos – na
ocasião do discurso secreto de Khrushchev –, Rússia na grande revolução e na
sociedade contemporânea e, um dos mais notáveis, Lições das
contrarrevoluções, que resume não apenas a análise bordiguiana da URSS, mas
também os fundamentos de suas principais preocupações teóricas do período,
como as revoluções duplas e o centralismo marxista. Nesse contexto, pode-se
citar ainda sua crítica do grupo Socialisme ou Barbarie, A batracomiomaquia, e
de sua concepção da burocracia.

77
Outra questão tratada por Bordiga a essa altura é a do individualismo, ou
melhor, do anti-individualismo que marca centralmente todo seu pensamento.
Expressa-o em textos como O conteúdo original do programa comunista e O
battilocchio na história. Sua crítica do individualismo também se alinha com outro
objeto de seus textos da década de 50, o ativismo, que ele critica como a
valorização da ação pela ação, crendo ela ser tão importante, senão mais, que
a teoria, e essa visão como distorção voluntarista da concepção marxista; essa
crítica aparece sobretudo em O falso recurso do ativismo e Ativismo, ambos de
1952.
A análise de Bordiga de que sua época era objetivamente
contrarrevolucionária se intensifica na década de 1960, levando-o a escrever
Considerações sobre a atividade orgânica do partido quando a situação geral é
historicamente desfavorável, em que introduz a diferenciação conceitual entre
“partido histórico” e “partido formal”. As conclusões colocadas nesse texto,
aliadas com a maior elaboração de sua noção “utópica”, de antecipação e
descrição do comunismo pelos marxistas, como apresentada em Ciência
econômica marxista como programa revolucionário, vai levar Bordiga e seu
partido a radicalizarem, ainda mais, a crítica da democracia, abandonando
permanentemente todos os instrumentos democráticos no interior da
organização. Essa retomada da crítica da democracia se alinha também ao
aperfeiçoamento, agora em um nível quase antropológico, de seu anti-
individualismo radical, exemplificado pelo texto Em Janitzio não se teme a morte.
Esse anti-individualismo é parte de um ataque mais geral às formas de
pensamento e ideologia do Iluminismo, integradas em um aprofundamento de
sua teoria da consciência, particularmente em Programa do comunismo integral
e teoria marxista da consciência. Em novos comentários a textos de Marx,
particularmente em Tábuas imutáveis da teoria comunista do partido, sobre os
manuscritos de 1844, Bordiga sintetiza esses vários aspectos de seu
pensamento. Sendo a última década de sua atividade política, Bordiga deu
também mais atenção para escritos sobre a história do movimento comunista,
dando origem à sua História da Esquerda Comunista, bem como o texto sobre o
Esquerdismo de Lênin, Condenação dos futuros renegados.
De modo geral, o Partido e Bordiga não deram grande importância para os
movimentos típicos da década de 1960, nem para os guerrilheiros urbanos da
Itália, nem para o movimento de maio de 1968 em Paris, que viram como um
movimento interclassista, liderado pelos estudantes pequeno-burgueses. Há,
entretanto, exceções: Bordiga olhou mais atenção para a revolta de Watts em
1965, sobre a qual ele escreveu A raiva negra abala os podres pilares da
civilização burguesa, analisando a relação entre opressão de classe e opressão
de raça que desencadeou a revolta e saudando a revolta como expressão
revolucionária proletária e internacionalista.
Mesmo assim, o PCInternacional não ficou incólume aos ventos do tempo.
Novos militantes em um momento de intensa agitação da juventude empurrou o
partido para novas atividades, principalmente nas seções francesas do partido.
Em Marselha, por exemplo, o PCInternacional, sob a liderança de Suzanne

78
Voute, dedicou-se à luta dos trabalhadores imigrantes e de apoio à Argélia em
sua guerra de independência. Em 1964, alguns militantes ansiosos por sair da
hibernação teórica a que Bordiga havia fechado o partido – ao menos até a
explosão da crise que ele havia previsto para 1975, com base em análises da
taxa média de lucros das principais economias – fizeram uma cisão para fundar
Rivoluzione Comunista.
Um outro grupo, acreditando, pelo contrário, que o partido estava
caminhando para o ativismo, romperia em 1966. Neste último grupo estava
Jacques Camatte, de quem falarei mais adiante, mas, por ora, basta dizer que
suas visões pouco ortodoxas da interpretação do marxismo, a partir já de textos
que se pretendiam fielmente programistas como Origem e função da forma
partido, de 1961, causavam discórdias e controvérsias no PCInternacional; esse
escrito só foi publicado porque o próprio Bordiga interveio em sua defesa.
Em todo caso, é verdade que nem Bordiga, nem o PCInternacional
atingiram grande repercussão em seu tempo histórico, nunca estiveram à frente
de movimentos de massa ou levantes armados – à exceção do período de
Bordiga no PCItaliano, nos anos 1920 – e, com o tempo, a desagregação das
organizações dessa corrente política levou a sectos que se intitulam “partidos”.
Alguns poderiam questionar a relevância de trazer à tona figuras tão marginais,
das franjas da história política e mesmo do marxismo. Quanto ao próprio Bordiga,
em que pese a maior parte de sua produção estar no período posterior à 2ª
Guerra Mundial, é tratado sempre como uma nota de rodapé em histórias da
década de 1920 ou como um espantalho contra o qual Gramsci é defrontado. Já
são poucos, principalmente no Brasil, que conhecem Bordiga; dos que
conhecem, não é exagero dizer que a maioria parece achar que ele morreu em
1930. Um maldito. Creio que a profundidade e radicalidade do pensamento que
analisarei nas páginas seguintes responderão por si mesmas. E, então, como
disse um outro italiano: “Enquanto houver alguém odiado, desconhecido,
ignorado, na vida há algo a se fazer: aproximá-lo”154.

2.2 – Programmismo: Amadeo Bordiga


2.2.1 – Invariância histórica do programa comunista
O princípio central do pensamento político bordiguiano é
aquele da invariância histórica do marxismo. O marxismo para
Bordiga é uma teoria que se formou de forma completa e
definitiva pela metade do século XIX, junto com o surgimento
do proletariado, classe cujos interesses e tarefas históricas
são expressos nessa teoria. Tal teoria, fixa em uma série

154
O poeta Cesare Pavese (1908-1950), “Fin che ci sarà qualcuno odiato, sconosciuto,
ignorato, nella vita ci sarà qualcosa da fare: avvicinare costui.”, em Il mestiere de vivere
(1935-1950), Turim: Einaudi, 1997, p. 189.
79
estável de princípios e de normas de ação, acompanhará de
forma invariante a classe proletária por todo o período
histórico pelo qual se realizará a luta desta classe, até o
abatimento do modo de produção capitalista e a instauração
da sociedade comunista. 155
A invariância do programa é a coluna vertebral, a fonte de coesão de todo
o pensamento de Bordiga. Isto porque o marxismo não é produto da mente de
um homem, uma filosofia entre outras ou um capricho intelectual: é a doutrina e
a teoria que dá forma aos interesses e tarefas históricos de uma classe dentro
de um modo de produção concreto, é a expressão do movimento real.
As palavras de Bordiga bastam para colocar de cabelo em pé todas aquelas
gerações de marxistas que cresceram acostumados à ideia de precisar dizer que
o marxismo se transforma, adapta, aprende, que se procura um marxismo do
século XXI, porque, claro, o marxismo de Marx, por algum motivo, deve estar
ultrapassado. Contra isso, Bordiga declara sempre: “Negadores, falsificadores,
atualizadores. Nós combatemos os três e mantemos que hoje os últimos são os
piores” 156 Isto porque, explica Bordiga, ainda que seja verdade que nenhum
“sistema” de pensamento pode prever e conter em si toda a história da
humanidade, certos sistemas, certas ideologias mantêm sua validade por
períodos muito longos, porque não tiram sua verdade da pura razão de um
homem concreto, nem pertencem a ele, mas sim do modo de produção, do
período histórico e suas relações sociais, com relação às quais determinados
sistemas de pensamento, mesmo que ulteriormente desmentidos e revelados
em sua mistificação e parcialidade, não eram por isso menos necessários em
seu período histórico, nem podiam ser corrigidos por um ou outro indivíduo sem
que a própria realidade social tivesse sido transformada.
Curiosamente, portanto, Bordiga não se afasta tanto do historicismo ao qual
Gramsci também se vinculava, apesar de dar a ele um significado bastante
diferente. Bordiga, tanto quanto Gramsci, havia sido influenciado em sua
recepção do marxismo pelo trabalho de Antonio Labriola, que se mantinha
precisamente no campo do hegelianismo e do historicismo, por mais brilhante
que tenha sido seu contributo – talvez o melhor marxista do século XIX, inclusive.
No entanto, é bastante claro que Bordiga não aceitava de todo essas variantes
idealistas; assim, ao passo que elogia Labriola, condena Croce – bem como
sempre condenou a presença da influência de Spaventa, Croce, Gentile no
pensamento de Gramsci –, como podemos ver em um curioso texto que ele
escreveu sobre Einstein:
Os antimaterialistas não cessam de causar irritações
nos outros partidos europeus. Todo o Bernstein, o pai do

155
GRILLI, Liliana. Amadeo Bordiga: capitalismo sovietico e comunismo. Milão: La
Pietra, 1982, p. 200.
156
BORDIGA, Amadeo. La “invarianza” storica del marxismo, 1953, disponível em:
https://www.sinistra.net/lib/bas/progco/qioe/qioennobei.html.
80
revisionismo, é voluntarismo e pragmatismo; na França, o
ortodoxo Lafargue combate o idealista histórico Jaurès, para
não falar do inglês Webb; e, na Itália, apesar de ainda faltar
examinar a conduta filosófica do caro Antonio Labriola, nós
arriscamos, vocês bem sabem, ter como mestre em marxismo
simplesmente don Benedetto Croce, cuja escola fortemente
influenciou, em razão da paixão comum pela unidade da
pátria, o subalpino ordinovismo.157
O que sobra de historicismo em Bordiga é santificado por ele como arma
de guerra, torna-se o meio pelo qual não é mais necessário acreditar que se
busca uma verdade absoluta revelada por Deus ou por uma Razão
transcendental e pura; ao contrário, o que importa é que, por mais histórico e
historicamente limitado que seja, o Marxismo expressa as tarefas históricas
necessárias a que é forçado o proletariado 158 e, portanto, assume seu caráter
necessário como consciência e ciência da transição para o comunismo.
Desse entendimento decorre que o trabalho teórico dos comunistas não
consiste em fazer inovações, atualizações ou qualquer coisa assim, mas, na
verdade, na contínua redescoberta e reconstrução do programa, limpando-o de
todos os escombros históricos deixados pelas ondas oportunistas – a social-
democracia, o stalinismo etc. Em cada período revolucionário, o conteúdo da
revolução comunista precisa ser redescoberto para que o movimento da classe
não se limite nem a ficar à deriva da crise capitalista, nem ao espontaneísmo da
classe em suas frações parciais.
Esse trabalho de reconstrução aparece nos escritos de Bordiga como a
constante reafirmação daquilo que é mais radical no marxismo, daquilo nele que
é absolutamente incompatível com a sociedade burguesa; com aquilo que, nos
termos bordiguianos, é anti-formista159, isto é, que luta contra as antigas formas
sociais, pela sua destruição, à diferença dos conformistas e reformistas, aqueles
lutando diretamente pela conservação e, estes, apenas se aproveitando dos
momentos de crise para fazer reformas que liberem a tensão da luta. A burguesia
em seu percurso histórico também atravessou essas três fases, seu anti-
formismo correspondendo à época da destruição das formas sociais pré-
capitalistas; exaurido esse ciclo, acabou seu papel histórico revolucionário.
O anti-formismo é reiterado por Bordiga de várias maneiras:

157
Relatività e determinismo. 1955. Disponível em:
https://www.sinistra.net/lib/bas/progra/vala/valafcudei.html.
158
A concepção bordiguiana não é de todo distante daquela que seria apresentada por
Althusser em 1978 e chamada por ele de “marxismo como teoria finita”. Ou seja, talvez,
a aceitação completamente consciente de uma determinação histórica elimine a seu
turno o historicismo, a historicização do historicismo elimina-o. Ver:
https://viewpointmag.com/2017/12/14/marxism-finite-theory-1978/.
159
Sobre isso, ver: Fundamentos para uma Orientação Marxista. 1946. Disponível em:
https://www.marxists.org/archive/bordiga/works/1946/orientation.htm.
81
Portanto, no centro da visão marxista se encontram o
Partido e o Estado. Aceita-se tudo ou nada. Procurar a classe
fora de seu partido e de seu Estado é uma tentativa vã, privá-
la destes significa dar as costas ao comunismo e à revolução.
Essa tentativa de loucos, que os “atualizadores” consideram
um descobrimento original posterior à Segunda Guerra
Mundial, já havia sido efetuada antes do “Manifesto” e
aniquilada – também antes dele – com o formidável panfleto
polêmico de Marx contra Proudhon: “Miséria da Filosofia”.
Essa obra fundamental destrói a concepção, muito avançada
para a época, de que a transformação social e a abolição da
propriedade privada são conquistas realizáveis fora da luta
pelo poder político. Ao final, encontra-se a famosa frase: não
diga que o movimento social não é um movimento político, o
que conduz à nossa tese inequívoca: a política não é uma luta
pacífica de opiniões ou, pior ainda, uma contenda
constitucional, mas o “choque corpo a corpo”, a “revolução
total” e, enfim, com todas as palavras da poetisa Sand: “o
combate ou a morte”.160
Temos o direito de seguir essas seculares teses
econômicas: sem salários, sem dinheiro, sem troca, sem valor;
e as não menos antigas e originais teses sociais: sem Deus,
sem Estado, sem família. 161
Evitarei comentar e exaurir a demonstração da invariância de Bordiga
nesse momento, pois vários desses elementos reaparecerão nas seções
seguintes.
Essa concepção rende, de fato, um produto único: o pensamento de
Bordiga aparece como um cristal de toda uma época do movimento comunista,
a forma mais purificada das concepções do marxismo revolucionário e do
bolchevismo, em que todos os elementos contingentes aparecem claramente
descritos como tais, demarcados do que é o núcleo necessário e inamovível.
Quaisquer críticas que se possam posteriormente fazer à consequência disso
para a prática política de Bordiga à parte, o fato é que todos os marxistas podem
facilmente encontrar nos escritos dele uma âncora, um lembrete de
intransigência revolucionária.

160
I fondamenti del comunismo rivoluzionario marxista. 1957. Disponível em:
https://www.sinistra.net/lib/bas/progra/vali/valiidodii.html.
161
Tavole immutabili della teoría comunista del partito. 1960. Disponível em:
https://www.marxists.org/archive/bordiga/works/1960/immutable-tablets.htm.
82
2.2.1 – Ciência econômica como programa revolucionário
A concepção do programa invariante como correspondente às tarefas
específicas do período que dão forma objetiva aos interesses de uma classe
geram em Bordiga também algo de um “utopismo” concreto, uma certa
disposição a antecipar o futuro, descrever o comunismo, que, no entanto, não
abre margens para visões transcendentais de uma Razão descarnada. Antes,
isso toma a forma de uma relação intima entre ciência econômica e programa
revolucionário.
Em todos os escritos marxianos e em particular no
Capital não encontramos apenas a análise científica do modo
de produção capitalista: tal análise é também indicação da
necessidade de superação desse modo de produção,
antecipação das características da futura organização
social.162
À diferença da maioria dos marxistas, Bordiga vê no Capital diretamente
um programa revolucionário, um documento militante no qual a crítica científica
delineia a revolução e o comunismo.
Socialismo científico não é desinteressar-se pelas
características da sociedade futura e calar-se sobre suas
“discriminações” das da forma social presente, e limitar-se ao
estudo descritivo das leis desta forma, da atual economia
capitalista. Socialismo científico é prever não segundo planos
racionais nem preferências sentimentais ou morais, tanto os
desdobramentos dos fenômenos da forma social burguesa
quanto os processos históricos pelos quais passarão, e a
nova e diferente dinâmica das forças econômicas que a essas
seguirá, não apenas, mas se contraporá, na dialética da
pesquisa doutrinal e do combate revolucionário. 163
Ao invés dessa perspectiva gerar um subjetivismo historicista, no entanto,
ela se torna, em Bordiga, justamente o contrário: uma forma de destronar
concepções de ideias eternas e imutáveis, grandes e altissonantes conceitos
como “Justiça”, “Igualdade”, “Liberdade” etc. No lugar, o futuro que a ciência
econômica pode delinear é produto da luta de classes e das tendências
imanentes do modo de produção presente: não existe nada fora da história.
O erro do utópico consiste em, depois de verificar os
defeitos da sociedade contemporânea (que, em alguns dos
mestres utópicos, Marx respeitosamente elogia), ele não

162
GRILLI, Liliana. Op. cit., p. 204.
163
BORDIGA, Amadeo. Traiettoria e catastrofe della forma capitalistica nella classica
monolitica costruzione teorica del marxismo. 1957. Disponível em:
https://www.quinterna.org/archivio/1952_1970/traiettoria_catastrofe1.htm.
83
deduz o quadro geral da sociedade futura de uma
concatenação dos processos reais que formam uma corrente
ligando o passado ao futuro, mas da própria cabeça, da razão
humana e não da realidade social e natural. O utópico acredita
que o ponto de destino do curso da evolução social precisa
estar contido no espírito do homem. Seja o Deus criador que
eles induziram no espírito humano, ou a crítica filosófica
introspectiva que eles descobriram no espírito humano, são
sistemas ideológicos compostos de Justiça, Igualdade,
Liberdade etc., que compõem as cores da paleta na qual o
idealista socialista mergulha seu pincel para representar o
mundo de amanhã como ele deveria ser.164
A dimensão utópica do pensamento de Bordiga permite-nos inclusive
compará-lo a outros marxistas do mesmo período, sobretudo Walter Benjamin,
Theodor Adorno e Ernst Bloch. Assim como nesses autores, o programa
invariante em Bordiga é um arpão disparado para o futuro que o impede de cair
seja para o lado do economicismo, seja para o do politicismo 165 , mas, ao
contrário, atua como uma espécie de corda bamba na fronteira entre o
econômico e o político, entre a necessidade e a contingência, uma fronteira e
uma estrada ao mesmo tempo. Em particular semelhança com a teoria crítica de
Adorno, inclusive, a utopia ganha mesmo uma função teórica, é aquilo que
permite à teoria marxista permanecer em si mesmo, um direcionamento que lhe
é necessário e constante: é mais do que a superação da “neutralidade” dos
positivistas, é dizer que a teoria só pode ser verdadeiramente científica e atingir
o conhecimento da sociedade presente enquanto superação latente desse modo
de produção, enquanto crítica que olha para o futuro que dele começa a brotar.
Entre um lado e o outro, determinação recíproca, mútua, contínua de
tendências imanentes do modo de produção e a atuação real do movimento
proletário, com toda a violência e a fúria que o momento revolucionário pode
trazer, esse conceito permite a Bordiga distinguir aquilo que efetivamente tende
à superação das formas sociais capitalistas, que as extravasa e é incompatível
com a permanência dessa forma de sociedade.
O objetivo de nosso estudo sobre Marx, quer dizer sobre
o programa da revolução comunista internacional, é
estabelecer que nenhuma separação existe entre as teses
econômicas, históricas, filosóficas ou políticas, entre tal ou
qual escrito, estudo, análise, programa ou proclamação e que

164
BORDIGA, Amadeo. Il programma rivoluzionario della società comunista elimina
ogni forma di proprietà del suolo, degli impianti di produzione e dei prodotti del lavoro.
1958. Disponível em:
https://www.quinterna.org/archivio/1952_1970/programma_rivoluzionario.htm.
165
Ver: MASCARO, Alysson Leandro. Ernst Bloch hoje. 2021. Disponível em:
https://aterraeredonda.com.br/ernst-bloch-hoje/.
84
se, nas páginas do Capital, encontra-se ciência bastante para
fazer tremer as veias dos cãezinhos acadêmicos,
encontramos também a cada linha e a cada etapa todo o
inflamado programa da revolução anticapitalista. Nossa
ciência não é a resposta à pergunta imbecil: “O que é o
capital?”, mas a demonstração de que o capital morrerá e de
que sua morte será violenta; mais ainda, como veremos, o
capitalismo de hoje – o hoje de Marx tanto como o nosso – já
está morto e não existe. Bem diferente da biologia do capital,
nossa ciência é sua necrologia.166

2.2.3 – Ditadura proletária e partido de classe


Bem ao contrário de outros dissidentes da Esquerda da Comintern, Bordiga
não rejeitava a liderança do partido comunista, muito pelo contrário. Para ele, o
papel do partido é mais que necessário, é inevitável, inscrito no próprio
desenrolar das lutas de classe e corresponde ao momento em que a classe
atinge determinada consciência e organização e pode entrar enquanto sujeito
político na história. Entenda-se bem, porém, que em momento algum nem a
classe, nem o partido, para Bordiga, são convertidos em sujeitos da História; ele
segue fielmente seu esquema da limitação histórica que o modo de produção
especificamente dado impõe e, portanto, entende-os sempre como sujeitos
políticos, mas determinados dentro de um processo que, podemos dizer, é o
verdadeiro sujeito de si mesmo: é a própria relação que determina, não a vontade
de um polo ou de outro. Daí Bordiga também superar a dualidade entre líderes
e massa, vendo o partido mesmo como órgão da classe proletária.
A classe operária estatisticamente definida portanto não
é de grande interesse. Pouco mais a classe operária que em
grupos se move para desvendar suas divergências de
interesses com as outras classes (são sempre mais de duas).
A nós interessa a classe que tomou a ditadura, ou seja que
chegou ao poder, que destruiu o Estado burguês, que erigiu
o seu próprio, como Lênin professoralmente cutucava
envergonhando os “esquecidos” do marxismo da 2ª
Internacional. Como, sobre uma classe, pode-se apoiar um
poder de Estado ditatorial totalitário, uma máquina de Estado
oposta à velha, como o exército vencedor nas posições do
derrotado? Por meio de que órgão?
O órgão da ditadura e operador do Estado-arma é o
partido de classe; o partido ao qual, por meio de sua doutrina

166
Scienza economica marxista come programa rivoluzionario. 1960. Disponível em:
https://www.quinterna.org/archivio/programma-comunista/1960/12/19600708_scienza-
economica-marxista1.htm.
85
e sua contínua ação histórica, foi potencialmente atribuída
atarefa, própria da classe proletária, de transformar a
sociedade. Nós não dizemos apenas que a luta e a tarefa
histórica da classe não podem ser realizadas sem as duas
formas: Estado ditatorial (i.e., a exclusão, enquanto elas
existam, das outras classes que estão derrotadas e
submetidas) e partido político, dizemos também – em nossa
costumeira linguagem revolucionária e dialética – que só se
pode começar a falar de classe – de estabelecer a ligação
dinâmica entre a classe oprimida na sociedade atual e a futura
forma social revolucionada, e tomando em consideração a
luta entre a classe que controla o Estado e a classe que
deverá derrubá-lo – apenas quando a classe não é mais um
frio termo estatístico no miserável nível do pensamento
burguês, mas uma realidade, feita manifesta em seu órgão, o
Partido, sem o qual não tem nem vida nem força para lutar.
Não se pode, portanto, desconectar o partido da classe
como se a classe fosse o elemento principal e o partido
apenas acessório. Ao colocar a ideia de um proletariado sem
partido, de um partido que é esterilizado e impotente, ou ao
buscar substitutos para ele, os últimos corruptores do
Marxismo de fato aniquilaram a classe, privando-a de
qualquer possibilidade de lutar pelo socialismo, ou, mesmo,
de lutar pela miserável migalha de pão.167
Fica claro em suas referências, negativas, às concepções de classe como
um dado estatístico que Bordiga dá ênfase à concepção política de classe. Abro
aqui um breve parêntese: as concepções econômica e política da classe
coexistem no pensamento marxiano, podendo ser remontadas a depender dos
trechos. A questão maior era como a classe pode deixar de ser o mero dado
econômico, o objeto passivo do capital, para se tornar um agente político
consciente de sua tarefa, a força subjetiva que destrói a sociedade capitalista.
Historicamente, isso gerou um número de diferentes correntes e como
entendiam essa passagem, algumas mais economicistas, acreditando que as
demandas parciais e imediatas levariam, sem um salto qualitativo, ao momento
revolucionário; outras mais subjetivistas, vendo em órgãos externos a origem
dessa organização revolucionária da classe. É tentando reconciliar essas duas
existências do proletariado que surgiram teorias como a da consciência de
classe e a da composição de classe168.

167
I fondamenti del comunismo rivoluzionario marxista.
168
Discutirei particularmente esse assunto no capítulo sobre o Operaísmo, pois o
conceito de composição de classe é a alternativa dos operaístas ao conceito de
consciência de classe. Acerca disso, ver: MOHANDESI, Salar. Class consciousness or
86
Bordiga não esconde sua preferência pela concepção política da classe,
fazendo pouco caso da existência meramente econômica, dada. Esse
posicionamento é antigo e remonta a uma série de polêmicas na vida política
dele, a começar pelo contra Gramsci e o ordinovismo acerca dos conselhos de
fábrica; posteriormente, as críticas ao conselhismo alemão, ao sindicalismo, às
várias formas de marxismo “autogestionário”. Na visão bordiguiana, como eu
dizia, nem o partido, nem a classe “dada” são sujeitos do processo histórico, ao
contrário, é uma questão da relação que se desdobra para os dois elementos,
isto é, o partido é o produto objetivo do desenvolvimento da luta de classes ao
longo de uma época, não o resultado subjetivo e voluntarista de círculos de
militantes. O partido surge e cresce no período adequado a isso, quando a classe
está em condições de lutar. Por isso, para ele, não existe dualidade entre o
partido e a classe, é o partido que pode animar a ditadura de classe e exercer
toda a violência necessária para a destruição da sociedade capitalista.
Violência, aliás, que Bordiga não limita por garantias pré-determinadas ou
constitucionais. A visão dele é rigorosamente realista, quase crua: as
constituições e seu marco estrutural permanecem enquanto permitir a relação
de forças das classes em luta. O proletariado revolucionário não tem, portanto,
constituição nenhuma a propor, sua tarefa histórica é o esmagamento da
sociedade de classes. Não existe, para Bordiga, a menor possibilidade de
reconciliação entre direito e socialismo. Talvez um pouco provocativamente,
Bordiga se refere à ditadura proletária inclusive como “totalitária” frequentemente,
com isso dizendo que serão tomadas, despoticamente, todas as medidas
necessárias para a abolição do capitalismo, que a ditadura não se imporá, a priori,
limitações legais e que o proletariado revolucionário não irá compartilhar o poder
com nenhuma outra classe.
Mais ainda, o Bordiga em seu pensamento maduro já não vê sequer a
possibilidade de existirem partidos comunistas nacionais. Pelo contrário, na sua
visão, o partido deve ser desde logo uma organização mundial, centralizada, que
exercerá a ditadura de classe onde quer que a revolução irrompa. É a
consolidação, em teoria, da proposta, não se sabe se real ou apócrifa, que ele
teria feito a Stálin em 1926, de colocar a URSS sob o governo de toda a
Internacional Comunista.
Não há, entretanto, engano algum sobre a realidade da influência do partido:
Bordiga esteve sempre plenamente consciente de que não organizaria toda a
classe, nem mesmo a maioria.
O partido não apenas não inclui em suas fileiras todos
os indivíduos que compõem a classe proletária, mas nem
mesmo a maioria, mas sim aquela minoria que adquiriu a
preparação e maturidade coletiva teórica e de ação

class composition? Science & Society, Guilford Press: Nova York, Vol. 77, Nº 1, pp. 72-
97, janeiro, 2013. Disponível em: https://www.jstor.org/stable/41714416.
87
correspondente à visão geral e final do movimento histórico,
em todo o mundo e em todo o curso que vai da formação do
proletariado até sua vitória revolucionária. 169

2.2.4 – O princípio democrático e a pessoa humana


Bordiga tem, acima de tudo, uma visão fortemente centralista e
universalista do comunismo, portanto. Já em 1922, em O princípio democrático,
ele dizia: “A democracia não pode ser um princípio para nós. O centralismo o é
indiscutivelmente, já que as características essenciais da organização partidária
devem ser unidade de estrutura e ação”. Após a Segunda Guerra Mundial, essa
visão se amplia para uma crítica geral da democracia enquanto forma e
mecanismos. Por um lado, ele vai rejeitar a democracia em geral, sobretudo
desenvolvendo argumentos a partir de Marx e Lênin para demonstrar que a
democracia é intrinsecamente ligada ao período da revolução burguesa, que é a
realização do Estado impessoal que se apresenta de forma mistificada, por meio
da igualdade de todos os cidadãos perante a lei. De fato, a democracia como tal
só é possível pela separação de todos os indivíduos em públicos e privados, em
que aparece a máscara do cidadão, apenas atrás da qual se descobrirá se se
trata de um burguês ou um proletário. No período das revoluções burguesas,
que podem ser justamente chamadas de democráticas e nacionais, é claro que
a democracia era uma palavra de ordem revolucionária, justamente porque
correspondia não à emancipação do proletariado e à abolição da sociedade de
classes, mas à emancipação do Terceiro Estado, da plebe em geral, em que se
inclui tanto a burguesia quanto o proletariado, é a formação da sociedade civil
moderna. Nessa medida, diz Bordiga, Lênin estava plenamente correto ao falar
em democracia na Revolução Russa, precisamente na medida em que ali ainda
era uma revolução com mais de uma classe, uma revolução que, a princípio,
unia o proletariado e todo o campesinato; mas, sobre isso, falarei mais depois,
agora o essencial é fixar que, para Bordiga, na Europa essa fase já estava
largamente ultrapassada.
Agora, a democracia tornara-se puramente contrarrevolucionária, o
instrumento mistificador para manutenção da ditadura da burguesia. Nessa
etapa, a missão dos comunistas, a forma que tomará a ditadura do proletariado,
nada tem a ver com democracia: é, pelo contrário, a violação do princípio
democrático ao afirmar a ditadura de uma classe sobre a outra abertamente, sem
mistificações, sem ilusões.
Em seguida, apontando que não existe antagonismo entre democracia e
fascismo, como acreditou-se na década de 1920, demonstra que com o fascismo

169
Tesi caratteristiche del partito. 1951. Disponível em:
https://www.sinistra.net/lib/bas/progra/vami/vamimfebii.html.
88
não se retirou a burguesia do poder, apenas se transformou a forma de
dominação, Bordiga afirma:
Os fascistas perderam a guerra, mas o fascismo ganhou.
Os principais Estados capitalistas salvaram sua integridade e
sua continuidade histórica frente a essa terrível crise, o
mundo burguês pôde fazer um esforço enorme para dominar
as forças que o ameaçavam. Usando da farsa democrática a
uma escala gigantesca, eles não recorreram menos ao
estabelecimento de um sistema que os permite controlar mais
e mais estreitamente os processos econômicos, imobilizar e
privar da mínima independência todo movimento social e
político capaz de perturbar a ordem constituída. 170
Desde 1922, Bordiga argumentava que a concepção leninista de
“centralismo democrático” não era um princípio como a ortodoxia soviética havia
consagrado. Na realidade, era uma combinação de um lado necessário com
outro contingente, o centralismo como princípio e a democracia como
“compromisso”, inevitável dado o nível de desenvolvimento do movimento
comunista russo, para além do fato dele ter se formado a partir de círculos
heterogêneos, e sua existência enquanto partido de massas. Contra a
sacralização do centralismo democrático propugnada pela Comintern, Bordiga
defendeu o conceito de centralismo orgânico, que manteve por mais de 40 anos.
Em essência, ainda que se note um aprofundamento desse conceito ao longo da
vida de Bordiga – notavelmente na década de 1960 –, de um ponto de vista
programista isso não correspondeu a uma revisão do conceito, mas a uma
invariância dele acompanhada por transformações da realidade. Assim, vejamos,
primeiro, a concepção que já aparecia nas Teses de Roma, em 1922:
A integração de todos os impulsos elementares em uma
ação unitária ocorre em virtude de dois fatores principais: um
de consciência crítica, da qual o partido extrai seu programa;
o outro da vontade, expressado no instrumento com o qual o
partido age, sua organização disciplinada e centralizada.
Seria errôneo considerar esses dois fatores de consciência e
vontade como poderes que podem ser obtidos por, ou são
esperados de, indivíduos já que são realizáveis apenas

170
A visão de Bordiga sobre o fascismo é bastante similar em alguns pontos àquela de
Adorno, em particular sobre o não antagonismo entre democracia e fascismo, mas
antes a dependência mútua entre eles (se bem que será apenas Robert Kurz que, a
partir de Adorno, chegará a conclusões tão radicais quanto as de Bordiga). Além
disso, o que Bordiga descreve nesse trecho será mais tarde aprofundado por Jacques
Camatte, que dirá que o fascismo foi uma das formas da transição da dominação
formal para a dominação real do capital. Ver: Il ciclo storico del dominio politico della
borghesia. 1947. Disponível em:
https://www.sinistra.net/lib/bas/promet/veji/vejiacacii.html.
89
através da integração da atividade de vários indivíduos em um
organismo coletivo unitário.171
Já fica claro que Bordiga tem em mente um conceito de unidade do partido
que não pode ser a mera organização de vários indivíduos, com as próprias
vontades e consciências, mas antes um partido que nasce como novo organismo,
como sujeito, a partir de tal organização de indivíduos. O partido, como resultado
da centralização unitária e disciplina deve tender a se tornar ele mesmo um
organismo dotado de consciência e vontade, consciência e vontade estas que
não são extraídas dos indivíduos, mas que nascem do momento da centralização
unitária do partido. A questão voltou a ser tratada, em termos mais explícitos e
definidos, no pós-guerra, começando pela famosa plataforma redigida em 1944
para o Partido Comunista Internacionalista:
5 – Exigência de primeira ordem na presente situação
mundial é a reunião em um organismo político internacional
de todos os movimentos locais e nacionais que não tenham
nenhuma dúvida e nenhuma hesitação em se por fora dos
blocos pela liberdade burguesa e pela luta antifascista
genérica, que estejam fora de toda sugestão da propaganda
burguesa de guerra das duas partes do fronte, que decidam
reconstruir a autonomia do pensamento, de organização e de
luta das massas proletárias internacionais, e que entendam
por unidade do proletariado não o híbrido contato entre
grupos de dirigentes, que exprimem programas
desordenadamente discordantes, mas a segura e orgânica
superação de todos os impulsos particulares despertados
pelo interesse de grupos proletários, distintos por categoria
profissional e por pertencimentos nacionais, em uma força
sintética agente no sentido da revolução mundial.172
À primeira vista, isso pode parecer, da parte de Bordiga, a defesa de um
dogmatismo monolítico e burocrático, mas a prática concreta do partido
mostrava ser exatamente o contrário. Na análise de Bordiga, a democracia não
era inimiga da burocratização: era sua arma e sua causa. Os partidos da Terceira
Internacional haviam sucumbido à burocratização stalinista não pela falta de
democracia, mas pelo excesso, era justamente a democracia que permitiu o
esmagamento e a exclusão das minorias, que levou à substituição das
Esquerdas em vários partidos. Os instrumentos democráticos é que permitiam
que um desacordo fosse resolvido apenas por uma questão numérica, impondo
a um lado a autoridade sobre o outro. Para Bordiga, o centralismo orgânico
implicava, ao contrário, a obrigação de buscar a formação de uma cultura comum,

171
Tesi di Roma, 1921-22. Disponível em:
https://www.sinistra.net/lib/pre/rasseg/wiei/wieiafizui.html.
172
Piattaforma politica del partito, 1945. Disponível em:
https://www.sinistra.net/lib/pro/piattafori.html.
90
de laços orgânicos de camaradagem e da construção diária da compreensão da
teoria e do programa. Mais ainda, o centralismo orgânico repudiava a reprodução,
no interior do partido, de divisões da sociedade burguesa, como entre trabalho
intelectual e trabalho manual, pelo que todos os militantes deveriam
desempenhar todas as funções, sem distinção entre dirigentes e massa. O
centralismo orgânico significava também uma tentativa desesperada de manter
a unidade a todo custo, cisões e rupturas eram vistas como recurso de último
caso, devendo ser evitadas enquanto fosse possível173. Em suma, o centralismo
orgânico era um veto à possibilidade de resolver conflitos internos pela simples
contagem de votos, o veto a permitir que a maioria esmagasse a oposição, uma
luta total contra o fraccionalismo e, enfim, uma luta, tomando todas as
precauções, contra centralizações burocráticas e mecânicas da atividade do
partido.
Por esses motivos Bordiga retomou, na década de 1950, a crítica à
“bolchevização” forçada dos partidos da Comintern, nos anos 20. Segundo ele,
um dos grandes problemas foi a obrigação de abandonar a estrutura em células
territoriais por uma organização em locais de trabalho, núcleos de fábrica, o que
impedia a realização de uma unidade orgânica, mantendo os militantes
separados por categoria profissional, além de forçar operários a focarem em
questões imediatas da luta econômica, enquanto a teoria e o programa ficavam
a cargo dos intelectuais174. Outra crítica à bolchevização era quanto à ideia de
proletarização dos militantes comunistas, crítica que ele também dirigia à
Esquerda Alemã – os comunistas de conselho –, dizendo que o partido
comunista é o partido do proletariado mundial não por ser composto de
proletários, mas por seu programa revolucionário, que a ideia obreirista de que
o partido deveria ser composto apenas de indivíduos saídos do proletariado era
imediatismo.
A década de 1960 exigiu de Bordiga maiores clarificações sobre o conteúdo
e a prática do centralismo orgânico, bem como uma explicação sobre sua
necessidade naquele período histórico. Aparecem então dois importantes textos
sobre esse assunto: em 1964, Appunti per le tesi sulla questione
dell’organizzazione, na verdade um texto preparatório para o que apareceria no
ano seguinte, mas, mesmo assim, de relevância individual também; e, em 1965,
Considerazioni sulla organica attività del partito quando la situazione generale è
storicamente sfavorevole. O primeiro oferece uma inestimável reconstrução da

173
Um dos exemplos mais marcantes ocorreu durante a Guerra Civil Espanhola. A
fração italiana no exílio chegara a uma posição de maioria de não participar do conflito,
levantando a bandeira de derrotismo revolucionário. Uma minoria, insatisfeita, não
queria aceitar a posição, defendia apoiar a República. Para evitar a cisão, a maioria
permitiu que uma parte considerável da imprensa do partido fosse reservada para a
minoria, onde publicavam textos defendendo suas teses e noticiando sobre a guerra na
Espanha. Muitos membros da minoria acabaram mesmo indo até a Espanha - onde se
juntaram ao POUM para lutar linhas de frente – sem sofrer sanção alguma do partido.
174
Tesi caratteristiche del partito, 1951. Disponível em:
https://www.sinistra.net/lib/bas/progra/vami/vamimfebii.html.
91
história do centralismo na organização dos comunistas, remontando à Primeira
Internacional e ao papel que nela desempenhou Marx, bem como às teses de
Lênin e Zinoviev na Comintern e quais desacordos separaram a Esquerda
Italiana de Moscou. Já o segundo busca justificar o centralismo orgânico e o
completo abandono dos mecanismos democráticos no interior da organização
partidária pela análise da situação histórica concreta.
É tese fundamental da Esquerda que o nosso partido
não deve renunciar a resistir, mas deve sobreviver e transmitir
a chama ao longo do histórico “fio do tempo”. É claro que será
um partido pequeno, mas não por escolha ou desejo nosso,
mas pela inelutável necessidade. Pensando na estrutura
desse partido também na época de decadência na III
Internacional, e em polêmicas inumeráveis, havíamos
rejeitado, com argumentos que não vale repetir, várias
acusações. Não queremos um partido de seita secreta ou de
elite, que recuse todo contato com o exterior por mania de
pureza. Rejeitamos toda fórmula de partido operário ou
trabalhista que queira excluir todos os não-proletários;
fórmula que pertence a todos os oportunistas históricos. Não
queremos reduzir o partido a uma organização de tipo cultural,
intelectual ou escolástico, conforme as polêmicas que datam
já de mais de meio século; tampouco acreditamos, como
certos anarquistas ou blanquistas, que se possa pensar em
um partido de ação armada conspiratória e que teça
conjurações.175
O mais importante desse texto de 1965, no entanto, é a introdução do par
conceitual partido histórico/partido formal.
Marx diz: partido em seu significado histórica, no sentido
histórico, e partido formal, ou efêmero. No primeiro conceito
reside a continuidade, e dela derivamos as teses
características da invariância da doutrina desde sua
formulação por Marx; não como a invenção de um gênio, mas
como uma descoberta de um resultado da evolução humana.
Mas os dois conceitos não são metafisicamente opostos, e
seria tolo expressá-los pela pobre doutrina: “Viro minhas
costas ao partido formal, já que vou em direção ao histórico”.
Quando tiramos da doutrina invariante a conclusão de que a
vitória revolucionária da classe trabalhadora só pode ser
atingida com o partido de classe e sua ditadura; quando, com
base nas palavras de Marx sustentamos que sem o partido
comunista e revolucionário, o proletariado até pode ser uma

175
Considerazioni sulla organiva attività..., 1965. Disponível em:
https://www.sinistra.net/lib/bas/progra/vana/vanaabicoi.html.
92
classe para a ciência burguesa, mas não é para nós e para o
próprio Marx; então a conclusão a ser deduzida é que, de
modo a atingir a vitória, será necessário ter um partido digno,
ao mesmo tempo, de ambas as características, do partido
histórico e do partido formal, isto é, ter solucionado na
realidade da ação e da história a aparente contradição – que
dominou por um longo e difícil passado – entre o partido
histórico, portanto quanto ao conteúdo (histórico, programa
invariante), e o partido contingente, que é quanto à forma,
operando como uma força e uma práxis física de uma parte
decisiva do proletariado em luta.176

De certo modo, assim, Bordiga almeja completar, de uma vez por todas, a
ruptura entre Lênin e Kautsky, aqui apresentando uma alternativa à fórmula
social-democrata (segundo-internacionalista) de fusão entre a teoria socialista e
o movimento operário. A questão passa a ser da coincidência entre o partido
histórico – que é o partido-programa, o conteúdo invariante da doutrina
comunista – e o partido formal – a organização efêmera e concreta propriamente
dita. Essa forma de por as questões do partido, da democracia e do programa
tiveram repercussões importantes que veremos na seção dedicada ao pós-
programismo.
A crítica radical que Bordiga desenvolve da democracia o leva, a seu turno,
a uma crítica geral da ideologia do Iluminismo e seu centramento na figura da
pessoa humana isolada, bem como da sociedade como interação de indivíduos
livres, produto posterior de entes antes completamente separados. Isso dá início
a um certo anti-humanismo sui generis, que nunca é de fato realizado, porém,
pois Bordiga remove a figura estável do sujeito burguês para substitui-la com a
existência da espécie. Assim, do anti-democratismo Bordiga passa a um anti-
individualismo extremo.
O que nos incomoda é que existam pretensos marxistas
e socialistas convencidos de que a emancipação socialista
não é outra coisa que uma etapa de um caminho que
inaugurou a pessoa humana, assegurando-lhe
posteriormente todas as liberdades. Eles jogaram fora toda a
nossa construção que põe no caminho não a pessoa ou o
homem e muito menos a humanidade ou a sociedade, mas
agrupamentos e organizações de homens, que são um dos
processos da natureza interligada; e vê nesse caminho não
uma mística longa purificação em direção à graça, mas uma
série de rupturas e de embates, e investiga as condições e as
forças que iniciam a formação de um sistema social

176
Ibid.
93
organizado com características diferentes daquelas que,
ostentando novas doutrinas sobre a valorização do espírito da
pessoa humana, apenas de formas sempre novas pisotearam
e oprimiram as classes desfavorecidas.177
A essa altura, é válido um comentário: posteriormente, como se verá,
Camatte vai focar suas críticas a Bordiga nesse ponto, argumentando que ele
havia se tornado excessivamente anti-individualista, levando a um certo
misticismo e que, na realidade, o comunismo precisa ser entendido como
máxima realização da individualidade reconciliada com o universal – e que o
próprio capitalismo havia começado a anular a individualidade. Acredito que
Camatte descobriu onde estava o erro de Bordiga, mas deu a resposta errada.
O próprio Camatte extraiu consequências bastante equivocadas de seu
realinhamento de indivíduo e espécie, fortalecendo o humanismo que Bordiga
havia enfraquecido. O que faltava a Bordiga, uma peça que aparece por sua
sombra em seus escritos até, é a crítica do sujeito de direitos, do fetichismo
jurídico e sua correspondente ideologia, nos termos de Pachukanis. O sujeito de
direitos, decalque do “ser humano” do humanismo é exatamente a membrana
que permite ver como a forma democrática se liga à atomização dos indivíduos
em sociedade sem, por outro lado, cair em uma negação dos indivíduos
concretos, dos corpos biológicos dos seres humanos, mas antes
compreendendo a forma social dessa subjetivação. Colocando em outros termos:
a democracia é a política mediada pelo direito. Bordiga tinha uma avançadíssima
crítica da democracia e seu caráter mistificatório, sua qualidade de querer
realizar uma falsa comunidade sem classes; ele tinha também uma avançada e
especial leitura da crítica da economia política que oferecia um substrato para
ver a necessidade da separação dos indivíduos pela separação e a dominação
da troca; mas não tinha uma adequada crítica do direito para unir esse nível
político com o nível da crítica da economia política.

2.2.5 – Crítica da forma-empresa


Um dos trechos mais famosos de Bordiga é uma frase breve que, para
transmitir o mesmo sentido do italiano, traduzo livremente como “A merda é a
empresa, não o fato de que ela tem um patrão”178. Isso é dito no contexto de uma
crítica do comunismo de conselhos, parte em que Bordiga critica o imediatismo
das concepções que querem a direta e não-mediada apropriação dos meios de

177
Chama atenção que há uma grande semelhança entre Bordiga e Althusser na
forma de enxergarem a primazia das classes e, portanto, do antagonismo, da
diferença, no processo revolucionário. Essa visão política era central para o anti-
humanismo teórico de Althusser e também o é para Bordiga: não há preocupação com
ideais perfeitos e metafísicos, a questão é a classe, separada das outras, em combate.
Marxismo e persona umana. 1949. Disponível em:
https://www.sinistra.net/lib/bas/battag/ceju/cejumjuzui.html.
178
I fondamenti del comunismo rivoluzionario marxista.
94
produção por seus produtores diretos, portanto, a autogestão das empresas.
Assim como as concepções de restauração de formas pequeno-burguesas de
produção, como agricultura camponesa e familiar ou pequenos negócios de
artesãos, essas perspectivas, que confundem no plano estratégico a função dos
órgãos econômicos e dos órgãos políticos da classe 179, são imediatistas, isto é,
que prescindem da mediação insubstituível, imaginando a expropriação dos
meios de produção como reconstituição de uma ligação direta entre produtores
e seu local de trabalho direto, preservando, portanto, a forma-empresa das
unidades produtivas isoladas.
No pós-guerra, essa questão passará a ocupar permanentemente as
preocupações de Bordiga, que desenvolverá muito de sua leitura da crítica da
economia política como uma crítica do isolamento das unidades produtivas,
enfatizando a necessidade de abolição da forma-empresa, isto é, da abolição da
separação das várias unidades produtivas, mas não apenas no campo jurídico,
também no campo fático-produtivo, ou seja, a realização da máxima integração
e centralização do processo produtivo para abolir a troca e, com ela, a forma do
valor. Segundo ele, a ideia da autogestão imediata não era comunista, na
verdade podia mesmo ser reacionária, o retorno a um estado anterior ao
capitalismo. Ao contrário, o programa comunista é a reunificação, a apropriação
coletiva da produção de toda a sociedade e a abolição das classes. Caso se
realizasse a sociedade autogerida, mas separada, o que se verificaria não seria
diferente de cooperativas que existem hoje, sob o capitalismo: a auto-exploração
dos trabalhadores na medida em que, mesmo sem um patrão, seriam obrigados
a continuar a acumular capital a partir do mais-valor e seguir toda a disciplina
capitalista necessária para se manter competitivo no mercado capitalista.
Isoladamente, é impossível romper a lógica capitalista, é preciso abolir a
produção generalizada de mercadorias como um todo, pela centralização social
da produção e supressão da troca.
Em Propriedade e Capital, um de seus principais textos dedicados à crítica
da economia política, Bordiga diz:
A revolução produtiva capitalista separou violentamente
os trabalhadores de seu produto, de suas ferramentas de
trabalho, de todos os meios de produção, no sentido em que
suprimiu seu direito de dispor diretamente, individualmente. O
socialismo condena esta espoliação, mas não postula a
restituição de todos os trabalhadores de suas ferramentas e
do objeto de consumo que com esta manipulou, para mandá-
la ao mercado trocar-se por sua subsistência. Em um certo

179
Não menos imediatista e equivocada é a concepção adotada pelo grupo de Damen
de rejeitar participação em sindicatos reformistas. Na visão bordiguiana, isso era projetar
nos órgãos econômicos tarefas do órgão político e, como resultado, cortava a ligação
do partido com a classe. A defesa do programa revolucionário é tarefa do partido, o
sindicato tem um papel diverso.
95
sentido a separação brutalmente feita pelo capitalismo é
historicamente definitiva. Mas na nossa perspectiva dialética
tal separação será superada em um plano mais distante e
mais amplo. As ferramentas e o produto estavam à disposição
do artífice livre e autônomo; passaram à disposição do patrão
capitalista. Deverão retornar à disposição da classe dos
produtores. Será uma disposição social, não individual, e
muito menos corporativa. Não será mais uma forma de
propriedade, mas de organização técnica geral, e se
quisermos até afinar a fórmula devemos falar de disposição
por parte da sociedade e não de uma classe, por tal
organização tende a uma sociedade sem classes. 180
Toda essa lógica se assenta em sua qualificação específica da forma de
propriedade dos meios de produção sob o capitalismo. Não é a mera propriedade
direta ou pessoal, mas é transformação da própria propriedade em uma
coletividade ideal de bens, uma construção social que se projeta juridicamente e
permite uma autonomização ainda maior do capital. A isso Bordiga dá o nome
de forma-empresa, pois a questão maior é não só o liame entre uma pessoa e
uma coisa, ou mesmo entre pessoas mediado por uma coisa, mas dessa
coletividade reunida na unidade produtiva isolada, ocorre uma socialização
virtual dos meios de produção, que não vem a se realizar completamente. A
análise que Bordiga desenvolve da forma-empresa é importantíssima e antecipa
a retomada dos debates sobre a forma do valor e a dominação impessoal do
capital, já que, na visão dele, não é questão de uma mera oposição entre grupos
sociais, entre o capitalista, o patrão, e os trabalhadores, é uma questão da forma
social autonomizada que se corporifica no patrão, mas este não é absolutamente
necessário, pode ser substituído ou mesmo descartado, sem que isso desnature
o caráter capitalista da produção ou interrompa a exploração do trabalho.
Até esse ponto da análise, Bordiga nutre várias similaridades com
Pachukanis, ainda que não tenha chegado a uma crítica tão profunda do
especificamente jurídico. O que diz Bordiga sobre a transformação da
propriedade em mera organização técnica geral soa muito como a distinção
pachukaniana entre regulamentação técnica e jurídica, permanecendo ali
inclusive a mesma ideia da abolição do direito como realização da
regulamentação técnica. Bordiga chega inclusive às mesmas, corretas,
conclusões de Pachukanis sobre a gradual transformação do proprietário em
rentista, na medida em que se afasta do processo técnico-produtivo, e assim o
capital se torna domínio impessoal. Na questão da forma-empresa, contudo,
Bordiga está já um pouco além de Pachukanis, porém. Pachukanis havia
chegado à conclusão de que enquanto as empresas públicas soviéticas ainda
atuassem enquanto entes autônomos, separados, religados apenas pela

180
Proprietà e capitale. 1950. Disponível em:
https://www.sinistra.net/lib/bas/promet/vejo/vejohdaboi.html.
96
circulação e pelos contratos, mas não pela submissão técnica, a forma jurídica
persistiria, assim como a forma do valor181. Ou seja, estava ali plenamente posta
a possibilidade de uma economia estatizada continuar capitalista, inclusive, em
certa medida, de um capitalismo sem burguesia alguma. Entretanto, para
Pachukanis era tão somente uma questão da circulação, não se questionava a
unidade produtiva enquanto tal, a administração científica ou o emprego do
maquinário. Bordiga, tendo chegado ao mesmo patamar que Pachukanis, vai
também aprofundar a crítica.

2.2.6 – Uso capitalista da maquinaria


Um texto como O espírito do cavalo-vapor pode nos servir como transição
da análise do isolamento da unidade produtiva para a do despotismo da
fábrica:
O crescimento gigantesco da potência do trabalho
humano é acompanhada pela degradação, não a edificação,
do homem trabalhador. A “Jenny mule” foi o nome dado à uma
máquina de fiar com fusos inumeráveis. Com o progresso
tecnológico em 1863, graças a um motor com pouco mais do
que um cavalo de potência, dois trabalhadores e meio eram o
bastante para 450 rotativos e fiavam 1662 quilos de algodão
em uma semana. Com uma roda de fiar manual, a mesma
quantidade de algodão levaria 27 mil horas de trabalho invés
de 150: a produção cresceu por 180 vezes! Não é possível
aqui nos aprofundarmos nestas comparações levantadas por
Marx, por exemplo, para calcular quantos trabalhadores foram
substituídos por máquinas de escavação e terraplanagem
importadas pelos americanos para a construção de rodovias
e estradas depois da guerra.
Uma comparação feita por Fourier compara a fábrica
com um cativeiro em menor escala, semelhante a uma galé,
os remadores eram incorporados a estes navios,
acorrentados pelo resto da vida a seus bancos: eles tinham
de remar ou afundar com a embarcação.
A pessoa física do mestre individual assim não é
necessária, e pouco a pouco ele desaparece nos poros do
capital social, dos conselhos administrativos, da estrutura
política e administrativa do Estado, que se tornou (já há
tempos) empreendedor e produtor, e na mais recente forma
do Estado que finge ser “os próprios trabalhadores” e que

181
PACHUKANIS, Ievguiéni. A teoria geral do direito e o marxismo e Ensaios escolhidos
(1921-1929). São Paulo: Sundermann, 2017, pp. 160-161.
97
assim pode amarrá-los aos pés dos sinistros autômatos de
metal.
O despotismo da fábrica terá suas raízes cortadas pela
revolução comunista, mas apenas quando cessarem as
interferências intoxicantes nas “lutas pela liberdade política” e
outras miragens populares, denunciadas desde o início pelo
industrialismo burguês e acompanhadas por revoluções
verdadeiras da classe, mas que foram engolidas pela terrível
mentira democrática.182
Esse notável texto de Bordiga foi absolutamente pioneiro, muito
provavelmente o primeiro marxista a começar a olhar para a dimensão qualitativa
do desenvolvimento técnico e industrial com atenção, não mais como uma força
fora da história que estava limitada pelas amarras do mercado e da propriedade,
mas, sim, uma forma socialmente determinada do desenvolvimento técnico. A
analogia feita entre o desenvolvimento social e o tipo específico de
desenvolvimento técnico, a forma como a técnica determina a dominação sobre
os homens, não poderia ficar mais clara:
Os últimos dos fantasmas liberais; autocracia e ditadura,
“em vida” e não na pálida mentira legal, não começaram com
Mussolini, Hitler, Franco… nem mesmo com Stalin e seus
cônsules, nem com Truman, Eisenhower e os escravos
estúpidos de uma Europa Unida: eles são um fato técnico em
sintonia com o ritmo dos geradores centrais que operam nos
bancos do Hudson, do Tâmisa, do Moscou e do Rio da Pérola.
Em outro texto, Trajetória e catástrofe da forma capitalista, de 1957,
Bordiga apresentou o primeiro comentário aos Grundrisse de que se tem notícia,
mais de uma década antes do famoso livro de Roman Rosdolsky; mais
impressionante ainda, sua interpretação do Fragmento sobre as Máquinas
pondo em relevo o conceito de uso capitalista da maquinaria antecipou-se em
quatro anos à publicação do primeiro número de Quaderni Rossi – que, sob a
direção de Raniero Panzieri, foi o gatilho do operaismo precisamente ao
introduzir esse conceito –, sete anos ao quarto número, em que estava a primeira
tradução italiana desse escrito de Marx. Certos autores chegaram a considerar
a possibilidade de ter havido uma influência, mesmo que indireta, de Bordiga
sobre Panzieri e, por extensão, o operaísmo. Por exemplo: “Talvez, por meio de
Danilo Montaldi e outros seja possível identificar uma certa genealogia ou
conhecimento indireto entre o groupo dos Quaderni Rossi e esses escritos de
Bordiga”183. Também Liliana Grilli apontou que certas formulações de Panzieri

182
O espírito do cavalo-vapor. 1953. Disponível em:
https://proelium.medium.com/esp%C3%ADrito-do-cavalo-vapor-d1c9f4eee7a3.
183
BELLOFIORE; Riccardo; TOMBA, Massimiliano. The “Fragment on Machines” and
the Grundrisse: the Workerist Reading in Question. Também Liliana Grilli
98
são muito próximas das de Bordiga e, mais, que ele tinha conhecimento dos
escritos deste último184.
Mais importante, todavia, é o conteúdo das reflexões sobre o processo de
trabalho e o maquinário:
Bordiga ataca o otimismo progressivista do reformismo
que enxerga no progresso tecnológico e científico um novo
passo em diante um maior bem-estar. O que Bordiga coloca
em discussão não é o progresso científico como tal, mas
antes seu caráter de classe: o fato de que a produção de bem-
estar produz ao mesmo tempo o mal-estar de outra classe. 185
Nestas palavras escritas agora já faz um século, ou seja,
quando as “ideias do século XVIII” da qual Marx fala na
introdução tinham sobre o mundo um poder de sugestão
imenso, e em todo caso constituíam uma etapa histórica
inegável então ainda ameaçada pela restauração, refletem-se
os que ainda hoje se prostram em adoração à Ciência em
geral, e convidam os trabalhadores, instilando neles esse
temor reverencial, esquecendo que essa é, antes de tudo,
ciência e superioridade tecnológica sob monopólio de uma
minoria exploradora; e no fim das contas enquanto as
relações de produção continuam mercantis, monetárias e
salariais todo o Sistema da maquinaria automática forma um
monstro que esmaga sob o peso de sua opressão uma
humanidade escravizada e infeliz, e esse é o Monstro que
domina todo o quadro traçado por Marx da sociedade
presente, o Capital mesmo, despersonalizado, e enfim
“desclassado” como nossas frequentes conclusões, em
resposta aos delírios de que em um terço do mundo teria
desaparecido a classe inimiga, a burguesia. 186
Como sublinha Liliana Grilli, a abordagem de Bordiga não se restringe,
portanto, ao fato da exploração capitalista acabar na expropriação individual do
lucro, mas se estende à materialização do capital impessoal na forma do capital
fixo, isto é, da maquinaria enquanto domínio sobre os trabalhadores, como

184
“Tendo Panzieri chegado a conhecer, de modo não apenas ocasional, as posições
bordiguianas (um testemunho nesse sentido foi dada por um dos membros do grupo
original dos Quaderni Rossi – Dario Lanzardo), se pode mesmo avançar a hipótese,
toda por verificar, de uma possível influência indireta de Bordiga sobre o
desenvolvimento de suas posições teórico-políticas”, em GRILLI, Liliana. Op. cit., p. 253.
185
BELLOFIORE; TOMBA. Op. cit.
186
Traiettoria e catastrofe della forma capitalistica, III, 1957. Disponível em:
https://www.quinterna.org/archivio/1952_1970/traiettoria_catastrofe1. “Desclassado” foi
a alternativa para verter ao português a palavra declassato, que se refere à privação de
uma natureza de classe, assim como da pessoal. É similar à palavra francesa déclassé.
99
opressão dentro do próprio processo de produção. O capital, no entendimento
de Bordiga, pode ser visto como uma força social que aqui reflete um processo
de expropriação que não parou no nível jurídico da despossessão da
propriedade dos meios de produção; antes, a expropriação continua no nível
material, interno do próprio processo de produção imediato, refletindo-se no
infindável crescimento da força da técnica e da ciência contra os trabalhadores
e os interesses das classes exploradas187.
Essas análises do desenvolvimento monumental do maquinismo e da
ciência são usadas por Bordiga como ainda outra evidência contra as correntes
imediatistas, prova da impossibilidade de conceber a apropriação coletiva dos
meios de produção pelos trabalhadores em termos do operário individual – o
pagamento do inteiro fruto de seu trabalho, como colocam lassalleanos e outros
socialistas vulgares – ou mesmo de uma única empresa – caso de várias formas
de socialismo autogestionário e, às vezes, até de conselhistas –, pois, na
verdade, o proletariado só seria capaz de se apropriar do processo de produção
e geri-lo enquanto uma coletividade totalizante que tende a se tornar no homem
social, resultado da abolição da sociedade de classes.
Como coloca Liliana Grilli:
O ponto fundamental é o modo em que, segundo
Bordiga, deve ser entendido – para ser usada uma expressão
famosa – o “uso capitalista da máquina” e a sua possível
superação. Isso não consiste no fato de que elas sejam
propriedade privada de empreendedores capitalistas privados,
para as quais bastaria transferir a propriedade ao Estado
(mesmo que fosse para um Estado proletário); e nem mesmo
o fato de que o ‘sistema automático das máquinas’ esteja sob
o controle de uma especial técnica burocrática em vez de sob
o ‘controle operário’, isto é, sob o controle da coletividade dos
operários da empresa. Uma mudança do sujeito que detém a
propriedade ou a gestão da empresa, isto é, da forma jurídica
ou da forma de controle ou direção, não é suficiente para que
as máquinas não funcionem mais no processo produtivo
como capital fixo. Para que isso venha a ocorrer é necessário
que desapareça a própria forma de produção da empresa
como unidade produtiva distinta com seu balanço de
orçamento, e isso só pode acontecer quando mudar a
natureza social do processo de produção, isto é, quando esse
deixar de ser um processo de produção de valor.188
Assim fica evidente que Bordiga nem ignora os aspectos produtivos
inerentes ao lado interno do processo de produção – que ele capta como

187
GRILLI, Liliana. Op. Cit., p. 263.
188
GRILLI, Liliana. Op. Cit., p. 264.
100
expropriação real dos produtores – nem confunde a materialidade com a forma
social, captando a interligação entre ambos os lados enquanto processo de
produção capitalista – ou seja, como processo de trabalho subsumido ao
processo de valorização.

2.2.7 – Lições das contrarrevoluções


Um dos temas de mais ativa intervenção de Bordiga, que ele usou para
desenvolver e expor suas próprias conclusões, é o da análise do processo pelo
qual passou a Revolução Russa e que formação social ela gerou, ou seja, qual
era a natureza da União Soviética. A esse assunto ele dedicou, inclusive, alguns
de seus mais famosos textos, como o longo livro Estrutura econômica e social
da Rússia de hoje e os artigos Diálogo com Stalin e Dialógo com os mortos, além
de documentos partidários.
A análise bordiguiana é bastante diferente do resto do marxismo,
empregando sua crítica da forma-empresa e da dominação impessoal do capital,
bem como sua rigorosa reconstrução do percurso político do bolchevismo para
separar o conteúdo necessário e principiológico das formas contingentes e
táticas. Para resumir, Bordiga defende o papel histórico da Revolução de
Outubro como uma revolução proletária que organizou uma ditadura do
proletariado – ao contrário da Esquerda Alemã que chegou a vê-la como
revolução burguesa que reprimiu o proletariado189 –, mas que, ao mesmo tempo,
também precisava ser, em seu conteúdo econômico, uma revolução burguesa,
isto é, antifeudal.
Tal como a revolução alemã de 1848, a Revolução
Russa devia ser a integral de duas revoluções: antifeudal e
antiburguesa. Em sua luta política e armada, a revolução
alemã fracassou no cumprimento de ambos os objetivos, mas
socialmente prevaleceu a primeira, a antifeudal, isto é, a da
transição às formas capitalistas. A Revolução Russa triunfou
política e militarmente em ambas as revoluções e por essa
razão chegou mais longe. Mas no plano econômico e social
permaneceu no mesmo nível que a revolução alemã,
limitando-se a levar adiante a industrialização capitalista no
território que controlava.190
Ao contrário de uma visão relativamente comum na esquerda anti-stalinista,
para Bordiga, nunca houve uma regressão do socialismo ao capitalismo. Nunca
houve a organização de uma economia socialista ou algo do tipo. Mesmo o

189
Posição, aliás, a que chega Charles Bettelheim no terceiro volume de sua obra A luta
de classes na União Soviética.
190
Lecciones de las contrarrevoluciones, 1953. Disponível em:
https://www.sinistra.net/lib/upt/elproc/moqa/moqankecus.html.
101
“comunismo de guerra”, na verdade, não tinha nada diferente do que qualquer
força militar em estado de emergência precisa impor; Bordiga refere-se às
medidas adotadas por Trótski no comando do Exército Vermelho como aquelas
de uma cidade sitiada. A NEP, portanto, para Bordiga não tinha nada de
retrocesso também; argumenta Bordiga que estava plenamente de acordo com
o que os bolcheviques sempre haviam dito que seria necessário, pois no campo
econômico e social a tarefa não era construir imediatamente o comunismo –
ainda mais sob o cerco imposto pelas potências imperialistas -, mas, sim,
eliminar a produção camponesa, artesanal e os últimos traços de economia
feudal no campo. Daí o próprio fato basilar do poder soviético ter se assentado
em uma aliança entre o proletariado e o campesinato (a princípio todo o
campesinato, na fase da “ditadura democrática”, de outubro de 1917 até julho de
1918; e, depois do estabelecimento dos Comitês de Camponeses Pobres,
apenas a camada mais baixa). Em Estrutura econômica e social da Rússia de
hoje, Bordiga chega, inclusive, a dizer que o programa econômico mais correto
e alinhado ao marxismo, no contexto das disputas faccionais após a morte de
Lênin, era o de Bukharin, que colocava a ênfase na aceleração da transformação
econômica do campo, para acumular capital de giro que pudesse ser investido
no aumento do capital fixo e transferido para a indústria, ao mesmo tempo em
que garantia o apoio do campesinato médio para a manutenção do poder da
ditadura proletária191.
Tudo isso se consolida na visão de Bordiga de que o conteúdo proletário e
comunista da revolução bolchevique estava principalmente em um âmbito
político, por ter sido a revolução que colocou o poder nas mãos do proletariado
e de seu partido comunista, por ter sido a revolução internacionalista que
transformou a guerra imperialista em guerra civil, por ter sido o primeiro estouro
de uma onda revolucionária global que foi sentida em todos os cantos do mundo
e criou em cada país uma seção da Internacional Comunista, uma organização
mundial do proletariado restaurada do revisionismo da Segunda Internacional.
Para Bordiga, dizer que o conteúdo econômico não foi comunista não é uma
acusação; pelo contrário, nada diverso era sequer possível, e, portanto, não tira
nenhum mérito dos bolcheviques ou da própria Revolução Russa, que ele
considera o mais grandioso evento da história moderna.
Em todo caso, a questão era que os acontecimentos vieram a bloquear o
desenvolvimento esperado pelos bolcheviques. A revolução foi reprimida na
Alemanha, na Hungria, na Itália; o exército soviético parou às margens do rio
Vístula. A revolução ficou presa num só país. No entendimento bordiguiano, a
questão passava a ser sobrevivência, estender pelo máximo possível a vida da

191
A esse respeito, ver: Struttura economica e sociale della Russia d’oggi, parte III,
capítulo XXVI, disponível em:
https://www.sinistra.net/lib/bas/progra/stru/parter/valeqhadai.html#ua. Sugiro também:
GOLDNER, Loren. Amadeo Bordiga, the Agrarian Question and the International
Revolutionary Movement, 1995, disponível em: https://libcom.org/article/loren-goldner-
amadeo-bordiga-agrarian-question-and-international-revolutionary-movement..
102
ditadura proletária como farol da revolução mundial até que as condições
mudassem, pelo que a aliança do proletariado russo com o campesinato tornava-
se outra vez imprescindível e inadiável; completamente justificada a NEP,
portanto. Mas, isso não era uma resposta definitiva, Bordiga diz, pois o
campesinato só poderia ser aliado do proletariado por uma fase passageira, na
resolução das tarefas burguesas da revolução e, mais cedo ou mais tarde,
nasceria um antagonismo entre eles e o poder proletário.
Bordiga dedicou-se de forma especial à questão agrária soviética. Não
apenas porque fosse filho de um agrônomo, mas porque sua concepção de
transição do feudalismo ao capitalismo se assentava em uma importância central
para a revolução agrária, isto é, a dissolução das grandes propriedades
fundiárias e a transformação da terra em mercadoria, com a consequente
“libertação” – no duplo sentido – dos antigos camponeses, agora prontos para a
proletarização 192 . A distribuição das terras como resultado da revolução não
fazia parte integral do programa bolchevique, diz Bordiga, antes era fruto do
compromisso entre bolcheviques e socialistas-revolucionários de esquerda que
tornara operativa a aliança operário-camponesa no período entre outubro de
1917 e julho de 1918. Graças a essa medida, que colocou as vastas massas do
campesinato ao lado do proletariado, é que foi possível vencer a guerra civil. Mas
foi uma medida inteiramente parte da revolução burguesa, fortaleceu, e não
enfraqueceu, a propriedade privada. Mesmo que a terra agora fosse,
juridicamente, propriedade estatal, isso não fazia diferença: o que importa é a
gestão e a produção in concreto, não a propriedade jurídica, lembra Bordiga.
Assim, na visão de Bordiga, a vitória do stalinismo, na segunda metade dos
anos 1920, representou não a regressão do socialismo ao capitalismo, mas uma
derrota política da classe proletária, transformando o Estado em máquina da
acumulação capitalista, abandonando a perspectiva da revolução mundial. A
pergunta que vem a partir daí é: que tipo de sociedade a URSS se tornou sob o
stalinismo? A concepção bordiguiana é um desenvolvimento bastante lógico dos
conceitos já aclarados: o stalinismo completou a passagem ao capitalismo,
terminou de eliminar elementos feudais e desenvolveu um industrialismo de
estado. Para esclarecer o uso de Bordiga dessa frase é importante ter em mente
que não é um modo de produção, é mais uma descrição do fato que, na URSS,
ele entendia que apenas a indústria havia sido elevada ao controle centralizado
do Estado, enquanto o campo havia sido mantido preso por uma forma atrasada:
o kolkhoz. Segundo Bordiga, o objetivo era passar pelas diferentes formas
históricas, ultrapassando a produção artesanal e camponesa e o capitalismo
privado para consolidar um verdadeiro capitalismo de estado – não tido por
Bordiga como uma exceção ou anormalidade, mas a tendência intrínseca do
capitalismo, enunciada desde a Primeira Guerra Munudial. O stalinismo,
entretanto, havia falhado nessa tarefa.

192
Ver: Le capitalisme – révolution agraire, 1954, disponível em:
https://www.sinistra.net/lib/bas/progra/vaku/vakuabedef.html.
103
Ou seja, para Bordiga não apenas o termo “capitalismo de Estado” não é
elevado à condição de um novo conceito, como se fosse diferente do capitalismo
em geral, ele considera que a URSS, na realidade, nunca realizou o capitalismo
de Estado, estava aquém dele – motivo pelo qual, na década de 1950, ele
considerava a URSS como uma forma mais atrasada de capitalismo em relação
aos Estados Unidos – que eram, para ele, a capital da contrarrevolução e a
verdadeira grande ameaça ao proletariado mundial.
Uma vez classificada a União Soviética como simplesmente capitalista,
surge a questão da classe dominante. A visão mais comum, vista na maior parte
das correntes de esquerda193 – o comunismo de conselhos de Anton Pannekoek
ou Otto Rühle, o trotskismo não-ortodoxo em Tony Cliff e Max Shachtman, os
“anti-burocratismos” como em Ante Ciliga, Bruno Rizzi e Cornelius Castoriadis –
é que a URSS se tornou um capitalismo de Estado governado pela burocracia,
isto é, que, de algum modo, a burocracia se tornou uma nova classe em alguma
capacidade. Outra corrente, representada principalmente pelo maoísmo de
Charles Bettelheim, enxerga o nascimento de uma burguesia de Estado. Bordiga
vai contra todas essas interpretações, e aqui mostra a relevância de sua crítica
da forma-empresa, para dizer simplesmente que não existia burguesia na URSS
e que a burocracia não havia se tornado uma classe, que não existia, no sentido
próprio do termo, uma classe capitalista na URSS194. O que acontecera é que o
Estado e a sociedade como um todo haviam assumido o papel de capitalista
social, a função-capitalista continuava sendo exercida por funcionários
assalariados – como em grandes empresas do Ocidente – e a burocracia
desempenhava a mesma função que desempenha em qualquer país capitalista,
como “excrescência” (para usar a palavra de Marx) típica de qualquer sociedade
de classes.
Ainda que Bordiga tenha permanecido no campo da luta de classes e do
marxismo como teoria do proletariado, essa análise da URSS teve um ponto de
radicalidade que foi decisivo para posteriores desenvolvimentos da Ultra-
esquerda pós-1968 na medida em que dizia que era perfeitamente possível a
reprodução das relações sociais capitalistas a partir do polo do trabalho. Que
uma sociedade proletária, que generalizou a condição de proletário inclusive,
podia manter uma organização social capitalista, podia inclusive abolir a
existência social da burguesia. E mesmo assim manter a relação-capital.

193
Interessante, sobre esse assunto, o livro organizado por Bruno Bongiovanni e que se
tornou uma referência na extrema-esquerda italiana da década de 1970: L’antistalinismo
di sinistra e la natura sociale dell’URSS, Milão: Feltrinelli, 1975. Também é relevante o
longo texto do grupo Aufheben, What was the USSR?, que pode ser lido em:
https://libcom.org/article/what-was-ussr-aufheben.
194
The doctrine of the body possessed by the devil, 1951, disponível em:
https://www.sinistra.net/lib/bas/battag/ceke/cekeogezue.html.
104
2.2.8 – Fatores de Raça e Nação
Consolidada a contrarrevolução na URSS e estabilizado definitivamente o
capitalismo no Ocidente após a Segunda Guerra Mundial, Bordiga virou-se para
os únicos eventos revolucionários então em curso: o movimento anti-colonial. A
partir da análise que ele desenvolvera da Rússia, ele tentou aplicar o conceito
de revoluções duplas para mostrar em que estava preso o Terceiro Mundo em
face do período totalmente contrarrevolucionário do capitalismo mundial.
Um dos desacordos que levaram à ruptura de 1952 foi quanto ao estatuto
dos movimentos de libertação nacional. Por um lado, o grupo do Battaglia
Comunista tomava a posição de Rosa Luxemburgo e via esses movimentos
como puramente burgueses e nos quais os comunistas não tinham interesse; os
programistas, dentre os quais Bordiga, tomaram o lado de Lênin e reafirmaram
a importância da libertação nacional como evento revolucionário e progressista
no esquema geral do desenvolvimento mundial.
A análise que foi desenvolvida por Bordiga aparece em textos tais como
Oriente (1951), As revoluções múltiplas (1953), Fatores de Raça e Nação na
Teoria Marxista (1953), Pressão “racial” do campesinato, pressão de classe dos
povos de cor (1953) e Doutrina dos modos de produção (1958).
Em suma, a concepção de Bordiga estendia o mesmo esquema histórico
já aplicado na comparação entre a Rússia de 1917 e a Alemanha de 1848:
exceto que, em 1950, agora eram os países coloniais e semi-coloniais passando
por suas revoluções nacional-democráticas. Na época em que a revolução
socialista global ainda estava em curso, antes do colapso da ditadura proletária
russa, as revoluções anti-coloniais podiam ter a perspectiva de pular o
desenvolvimento capitalista, fazendo a revolução dupla de que Bordiga falara.
Após a contrarrevolução, contudo, o horizonte se viu limitado e condicionado à
esperança de, num futuro próximo, a crise geral permitir o renascimento do
movimento revolucionário nos países imperialistas. Bordiga não estava otimista
quanto a isso, porém, de modo que os povos colonizados teriam que fazer tudo
sem apoio da Europa, como efetivamente aconteceu.
Isto, entenda-se, vai aplicado para a França de 1793 ou
para a Alemanha de 1848. Mas, com qual coerência se
rejeitaria aplicá-lo aos revolucionários chineses de 1953, que
além do mais derrotam de quebra o imperialismo capitalista
mais maduro? Por óbvio, resta o problema da correta conexão
entre a desapiedada luta contra o imperialismo nas colônias e
nas metrópoles. Essa perspectiva de Lênin os stalinistas
substituíram com a vergonhosa aliança com os franceses,
ingleses e americanos, sendo seu derrotismo responsável
pela ineficácia das lutas desesperadas dos explorados e

105
oprimidos de cor, a quem traíram e condenaram ao
silêncio.195
O interessante é que não obstante seu desejo proclamado de não inovar,
Bordiga não parece se restringir apenas a aplicar o modelo. Além do ânimo e
exaltação pelos movimentos do Terceiro Mundo que parecem sair do papel
graças ao estilo de Bordiga, ele ainda elabora mais claramente uma noção de
“pressão de classe” das lutas raciais e nacionais e, ao mesmo tempo, da
sobredeterminação dos fatores raciais e nacionais às lutas de classe. Ou seja,
na completa contramão dos que tentaram ler em Bordiga um esquematismo
morto e mera repetição da velha ortodoxia do comunismo branco europeu, ele
coloca uma atualidade nas lutas dos, como ele chama, “povos de cor”.
Um exemplo notável – tão notável que mantém uma violenta atualidade
até os dias de hoje – é o texto que Bordiga escreveu a respeito da revolta de
Watts, em 1965. Essa revolta foi uma das primeiras insurreições dos americanos
negros contra a violência da supremacia branca daquele país em sua forma
moderna – que ecoou mais tarde nas revoltas de Los Angeles em 1994,
Ferguson em 2014 e, mais recentemente, na onda de rebeliões que irrompeu em
reação ao assassinato de George Floyd em 2020 – e foi marcada por saques,
pilhagens, violência direta contra a polícia. Aconteceu apenas três anos antes da
revolta de maio de 1968, mas, ao contrário da parisiense, que os programistas
considerariam como distúrbios de pouca importância mais relacionados aos
estudantes de classe média, Bordiga escreveu um inflamado artigo em apoio à
revolta negra:
E ao fim de tudo, uma vez passada a erupção da “revolta
negra” na Califórnia, o conformismo internacional “soterrou” o
evento sob uma grossa camada de silêncio; enquanto os
“esclarecidos” burgueses ainda ansiosamente buscam
descobrir as “misteriosas” causas que perturbaram a
operação do “normal e pacífico” mecanismo democrático,
qualquer observador de qualquer dos lados do Atlântico pode
ser consolado se lembrando que afinal de contas, as
explosões de violência coletiva do “povo de cor” não são nada
de novo na América e, por exemplo, que uma explosão séria
ocorreu em Detroit em 1943, sem nenhuma consequência
importante.
Mas algo profundamente novo aconteceu fundo nesse
episódio incendirário de uma raiva, não vagamente popular,
mas proletária de natureza, algo a ser acompanhado não com
a fria objetividade, mas com paixão e esperança. E é isso que

195
Pressione “razziale” dei contadiname, pressione classista dei popoli colorati, 1953,
disponível em: https://www.sinistra.net/lib/bas/progra/vako/vakoiducii.html.
106
nos faz dizer: a revolta negra foi esmagada; vida longa à
revolta negra!196
Bordiga então diz o óbvio: o que os negros ganharam esperando por
décadas e décadas pelas concessões magnânimas dos brancos? Nada. Pelo
contrário, aprenderam a verdade de que nada na história de todos os países
deixou de ser resolvido pela força, que não existe direito que não é resultado do
combate, às vezes sangrento. Muito interessante é também a conclusão do
artigo:
E então o que é isso, se não a experiência das classes
oprimidas sob todos os céus, não importa a cor de sua pele e
sua origem “racial”? O negro, não importa se ele é um
proletário ou um subproletário, que gritou em Los Angeles:
“Nossa guerra é aqui, não no Vietnã”, expressou uma ideia
nada diferente daquela dos homens que lançaram um
“assalto aos céus” na Comuna de Paris ou da daqueles em
Petrogrado, verdadeiros coveiros dos mitos da ordem, do
interesse nacional, das guerras civilizadoras, e que finalmente
anunciavam uma civilização humana.197
Valiosíssima e interessante a interação apontada entre classe e raça nesse
texto, como se a luta de classes então aparecesse como luta de raças e a luta
racial sobredeterminada pela luta de classes. Tal forma de colocar o problema
parece quase antecipar o conceito operaísta de composição de classe198, que
discutiremos em mais detalhes no próximo capítulo e que, de resto, também
ecoa Bordiga em sua recusa de entendimentos estáticos, estatísticos de classe,
olhando antes para a classe em movimento, como indissociável da luta de
classes.

2.2.9 – A espécie humana e a crosta terrestre


O multifacetado pensamento de Bordiga, não obstante tratasse dos mais
diversos assuntos e se aprofundasse neles com todo o rigor, voltava sempre a
uma temática que parece dar a ele uma base forte e vigorosa. Era sua
concepção, que se pode até chamar filosófica, da existência humana enquanto
espécie e sua relação com a natureza. Melhor seria dizer mesmo a existência da
espécie humana na natureza.

196
“Black” anger shakes the rotten pillars of bourgeois and democratic “civilization”,
1965, disponível em: https://www.pcint.org/07_TP/012/012_ab-black-anger.htm.
197
Ibid.
198
Por sinal, o conceito de composição de classe foi aplicado para questões de lutas
nacionais e raciais de uma forma muito similar à de Bordiga. Um exemplo fantástico é a
análise da questão palestina feita por Asad Haider (Land and existence in Gaza, 2021,
disponível em: https://viewpointmag.com/2021/05/27/land-and-existence-in-gaza/).
107
Tanto por via do extremado anti-individualismo quanto da crítica da
tecnologia e da civilização burguesa, era esse o ponto culminante de seu
pensamento. Caracterizava-se por uma intransigente crítica de toda a ideologia
moderna do progresso, de tudo quanto se assente sobre a ideia da Terra como
propriedade, mesmo que toda a espécie humana coletiva e igualitariamente. O
pensamento maduro de Bordiga definiria a libertação da humanidade do reino
da necessidade não como apropriação da natureza, mas como usufruto,
incluindo, obviamente, um dever de cuidar e entregar às gerações futuras, uma
noção de cuidado com o inumano.
Para concluir a análise do pensamento bordiguiano quero então ressaltar
alguns aspetos desse substrato.
Herbert Marcuse, no famoso prefácio político de 1966 a seu livro Eros e
Civilização, levantou a hipótese de que a revolução emancipadora nos países
superdesenvolvidos do centro imperialista talvez já não significasse, como em
outros tempos e lugares, um crescimento ainda maior e mais racional das forças
produtivas; talvez fosse necessária, pelo contrário, “a eliminação do
superdesenvolvimento e de sua racionalidade repressiva” 199. O que Marcuse
talvez não soubesse é que Amadeo Bordiga tinha chegado exatamente a essa
conclusão – em 1952, senão antes. Naquele ano ele escrevera um texto, para
muitos ainda escandaloso, chamado O programa imediato da revolução200, no
qual, depois de breve apresentação, enumera uma lista de medidas
antimercantis e anticapitalistas que a revolução comunista no Ocidente deveria
implementar. Dentre as medidas propostas: o desinvestimento de capital –
colocar uma parcela muito menor do produto social na reprodução e expansão
dos bens de produção, e não de consumo; a elevação dos custos de produção
– aumentando salários por jornadas de trabalho mais curtas; ditadura sobre o
consumo – combatendo todas as modas publicitárias e impondo um plano de
“subprodução”; congelamento da construção civil em áreas urbanas – para
estimular a dispersão populacional, a desurbanização; combater a
especialização profissional – proibindo a possibilidade de obter títulos e fazer
carreira; diminuição da velocidade dos transportes e da logística.
Outro texto de 1952 foi dedicado à questão da urbanização. A espécie
humana e a crosta terrestre. Muito mais do que simplesmente olhar para as
péssimas condições da urbanização sob o regime capitalista, Bordiga critica o
próprio desequilíbrio inevitável em todo o processo técnico que o capitalismo
alega ser inevitável e puramente científico. Da imensa poluição do ar das cidades
ao problema de lidar com lixo e rejeitos humanos, Bordiga olha para todas essas
questões não do ponto de vista da economia simplesmente, mas como parte de

199
MARCUSE, Herbert. Eros e Civilização. Rio de Janeiro: Zahar, 1975, p. 17.
200
BORDIGA, Amadeo. The immediate program of the revolution, 1952. Disponível em:
https://libcom.org/library/immediate-program-revolution-amadeo-bordiga.
108
um metabolismo de toda a natureza, aquilo que a civilização capitalista imobiliza,
ao invés de permitir retornar aos ciclos naturais.
O sistema capitalista e sua suposta modernização dos
mais antigos sistemas quer algo para a crosta do nosso
planeta que é completamente irracional. A questão não é mais
sobre dividir o produto de tal empreitada. Não é mais uma
questão da economia, entendida como disputa sobre riqueza
mercantil ou monetária. É uma questão de introduzi
fisicamente um tipo totalmente diferente de equipamento
técnico para o solo e o subsolo. Talvez possamos deixar algo
do equipamento atual parado lá por motivos arqueológicos,
algumas obras-primas da época burguesa talvez, só para que
aqueles que completarem o trabalho secular, apenas possível
depois da explosão revolucionária mundial, possam se
lembrar delas.201
Em um texto de singular beleza poética, escrito em 1961, Bordiga abordou
uma temática não muito convencional – ainda mais para alguém, como ele, tão
enfático sobre a cientificidade do marxismo –, a relação entre a percepção da
morte e as relações sociais humanas. O texto é Em Janitzio não se teme a morte,
e principia falando dos povos pré-colombianos da atual América Latina, em
particular um povo do moderno México que, segundo Bordiga, não parece
conceber como real a morte do indivíduo. A explicação dada é a sobrevivência
de traços do comunismo primitivo, da comunidade, apesar da conquista
espanhola, apesar da modernidade – uma comunidade que em todo o resto do
mundo foi dissolvida pela penetração das relações mercantis e monetárias. Com
um toque de anticapitalismo romântico, conclui Bordiga:
No comunismo, ao qual ainda não se chegou, mas de
que temos a certeza científica, se reconquista a identidade do
singular e de seu destino com o da espécie, destruindo todos
os limites de família, raça ou nação. Com essa vitória termina
todo temor da morte pessoal, e apenas então todo culto dos
vivos e dos mortos, sendo pela primeira vez a sociedade
organizada para o bem-estar e para a alegria e para a redução
da dor, do sofrimento e do sacrifício ao mínimo racional,
removendo todo caráter misterioso e sinistro à sucessão
harmoniosa das gerações, condição natural para a
prosperidade da espécie.202

201
The human species and the Earth’s crust, 1952. Disponível em:
https://libcom.org/article/human-species-and-earths-crust-amadeo-bordiga.
202
A Janitzio la morte non fa paura, 1961, disponível em:
https://www.sinistra.net/lib/bas/progra/vame/vameqgodii.html.
109
2.3 – Jacques Camatte e a revista Invariance
Nascido perto de Marselha em 1935, Jacques Camatte entrou no Partido
Comunista Internacional – Il programma comunista – por volta de 1953,
aparentemente sem experiências políticas anteriores. Daquele momento em
diante, tornou-se permanentemente ligado à influência de Amadeo Bordiga e da
Esquerda Comunista Italiana. No entanto, longe de ser outro aderente ortodoxo,
Camatte se mostrou um desbravador dos limites e conclusões lógicas da própria
compreensão teórica do Partido e de Bordiga. O seu primeiro texto notável,
Origem e função da forma partido, de 1961, já mostrava uma capacidade de
sistematização e radicalização teóricas. Um trabalho polêmico por sua ênfase na
dicotomia partido histórico/partido formal, acabou influenciando o próprio Bordiga,
que interveio para que o texto fosse publicado na imprensa do partido, apesar
de ter desagradado muitos outros militantes.
A princípio engajado principalmente na questão da Guerra da Argélia, que
estava então em seu ponto mais alto, publica artigos em apoio à independência
argelina entre 1959 e 1961. Depois, agora no núcleo de Paris do partido, começa
em 1963 a criticar aquilo que via no PCInternacional como uma “degeneração
trotskista” e “ativista”. A partir de 1964 começou um de seus trabalhos mais
importantes, a redação de uma série de artigos sobre o Capítulo VI Inédito do
Capital, também chamado de Resultados do Processo de Produção Imediato.
Esses textos, coligidos, compuseram o livro que veio a ser publicado sob o nome
de Capital et Gemeinwesen203.
1966 foi o ano em que pôs fim a sua militância no PCI, rompendo com um
pequeno grupo que incluía também Roger Dangeville, editor de numerosas
obras de Marx e Engels em francês. No ano seguinte, rompe também com
Dangeville, mas dá início ao seu projeto mais duradouro, a revista Invariance.
Ao longo de várias décadas, foi nas páginas dessa revista que registrou todo seu
percurso teórico e intelectual, bem como suas colaborações com um grupo de
teóricos radicais próximos, sobretudo italianos como Giorgio Cesarano, Gianni
Collu e Gianni Carchia. O que unia todos os colaboradores da Invariance era,
acima de tudo, a percepção de que se vivia um momento de transição, a
percepção de uma mudança profunda no modo de produção capitalista que
anunciava não apenas uma nova onda revolucionária mundial, mas a

203
O termo Gemeinwesen é de difícil tradução. Em inglês foi vertido simplesmente como
“Community”, mas é impreciso, pois Gemeinwesen na verdade se refere a uma forma
comum de Ser, ou, melhor dizendo, um Ser comum da coletividade unificada. Tentando
salvar esse espírito, um grupo italiano fortemente influenciado pelos escritos de Camatte
utilizou como tradução o termo “Comontismo”, isto é, um Ontos comum. Aliás, a editora
oficial na Itália nem tentou traduzir, o título do livro saiu como Il capitale totale.
110
transformação da natureza de toda atividade revolucionária. Eles eram, para
colocar brevemente, revolucionários de 1968.
Mesmo após sua ruptura com o PCInternacional, Camatte não deixou de
escrever tendo como importante referência não só Bordiga, como todo o aparato
conceitual do programismo. Sem dúvidas, ele rompeu com o programismo e
mesmo com o marxismo, mas o fez sempre retomando-os como referência
conceitual, como substrato e fonte de suas reflexões.
O percurso de Camatte após a fundação da Invariance pode ser resumido
em dois grandes períodos: um que vai de 1967 até meados da década de 1970,
marcado por uma visão relativamente otimista da revolução em processo e das
perspectivas de uma nova onda revolucionária, marcada pela emergência de
uma classe universal com base nas experiências de 1968; e outro, a partir de
meados dos anos 70, que a ideia de luta de classes é abandonada por completo,
a formação da comunidade material do capital enquanto totalidade é dada como
completa e qualquer possibilidade de escapar ao capitalismo deixa de ter como
horizonte um processo revolucionário e se torna uma ideia de separação, de “sair
deste mundo”.
Ao invés de tentar reconstruir toda a complexa reflexão de Camatte, vou
apenas ressaltar os momentos mais importantes para se compreender seu papel
nesse estudo.
Sem dúvida, o maior mérito de Camatte e sua grande contribuição para a
teoria crítica foi a introdução de um método de periodização baseado nos
conceitos de subsunção formal e real do trabalho sob o capital. O conceito
apareceria mais tarde em um muitos outros autores, sobretudo Antonio Negri e
a assim chamada Teoria da Comunização, na França. Em certa medida, as
elaborações de Camatte sobre a transição à dominação real é que o tornam um
ponto axial, inevitável, para o surgimento da Ultra-esquerda após 1968.
Essa periodização foi desenvolvida ao longo dos anos em que escreveu
sobre os Resultados do Processo de Produção Imediato para o livro Capital et
Gemeinwesen, entre 1964 e 1966, sendo mais tarde apresentada de forma
sintética e mais acabada em textos como Transition, co-escrito com Gianni Collu
em 1970.
Em linhas gerais, a análise camattiana se volta para o capital enquanto
movimento do valor que busca se autonomizar ou, como diz ele, valor em
processo. A origem do capital está relacionada à dissolução das relações das
comunidades primitivas; motivo pelo qual Camatte retraça, por exemplo, as
referências de Marx ao surgimento da troca mercantil nos limites das
comunidades antigas. No processo de seu desenvolvimento, a partir da
dissolução das comunidades, o capital pode subsumir o processo de trabalho,
submetendo-o à sua valorização. Porém, não basta ao capital subsumir o
processo de trabalho sob o processo de valorização, a tendência do capital é
sua contradição entre absorver e incluir trabalho vivo como fonte de sua
valorização e buscar sempre expelir o trabalho vivo ao aumentar a produtividade

111
do trabalho para aumentar correspondentemente sua margem de lucros, a taxa
do mais-valor. Entretanto, o que ocorre é o contrário, a diminuição da parte
representada pelo trabalho vivo no processo de produção leva à tendencial
queda da taxa de lucros, fator que subjaz aos grandes ciclos da produção
capitalista, entre as quais a crise só pode ser evitada por um salto que coloca
massas ainda maiores de valor em movimento para superar o abismo aberto
entre a taxa de lucros e as necessidades da reprodução.
Esse processo se exprime na tentativa do capital de controlar não apenas
o processo de produção imediato, mas o todo da sociedade, seus momentos de
circulação e reprodução também. É a transposição das contradições intrínsecas
ao capital para o nível da sociedade, na tentativa de dominar a lei do valor a
partir da expansão do capital fictício, do crédito, dos sistemas financeiros, da
especulação e de uma generalização da condição proletária, isto é, do
assalariamento para todos os setores da sociedade, não apenas para o trabalho
produtivo. Ou seja, a certa altura do acúmulo de capital na forma do capital
constante, o capital precisa extrapolar seus limites se for sobreviver e constituir
a si mesmo enquanto uma comunidade material, um sujeito verdadeiro,
autodeterminado, independente do trabalho.
Assim, se a subsunção formal do trabalho sob o capital, originalmente,
referia-se tão somente ao processo imediato de produção, sendo a fase em que
o capital submete o processo de trabalho sem transformar seus fundamentos em
profundidade, enquanto a subsunção real seria a partir do ponto que o processo
de trabalho é transformado pelo capital para atender às necessidades da
valorização, com o emprego de máquinas, organização e técnica modernas,
desarticulando as formas de produção anteriores ao capital, os conceitos de
dominação formal e real são mais amplos, referindo-se à relação entre capital e
trabalho na escala da sociedade. A dominação formal indica um período em que
o trabalho, isto é, a classe trabalhadora e produtiva ainda mantinha uma
existência, mesmo que parcial, fora do capital, a relação entre trabalho e capital
era de externalidade, sua reprodução não era inteiramente dependente do
capital e do ciclo de valorização. A dominação real, por outro lado, é o momento
em que o capital consegue fechar seu ciclo em si mesmo, o trabalho passa a ser
um conceito interno ao capital e sua reprodução só é possível como momento
de realização de mais-valor, todas as esferas da sociedade agora servem à
valorização do valor e são, portanto, transformadas pelo ciclo do capital de modo
à melhor servir esse propósito. Mesmo os setores improdutivos passam a ser
organizados como trabalho assalariado e sob a disciplina de fábrica.
Porém, para realizara sua transição à dominação real, o capital precisou de
uma longa janela histórica, basicamente correspondente à primeira metade do
século XX, na qual várias formas políticas e econômicas específicas serviram de
via para a realização da comunidade material do capital. Ao contrário de Bordiga,
que parecia não ver originalidade significativa no fascismo – apesar de sua
afirmação de que o fascismo teria sido absorvido por todos os países após o fim
da guerra –, Camatte enxerga o fascismo como uma das vias típicas da transição
para a dominação real. Não necessariamente uma fase permanente, mas as

112
medidas emergenciais pelas quais o capital superou uma fase de crise indo para
outro nível de sua dominação sobre a humanidade, inclusive modernizando à
força, eliminando inúmeros resquícios pré-capitalistas. O fascismo não teria sido
a única forma de realizar isso, porém; o keynesianismo também foi fundamental,
assim como várias formas de social-democracia e reformismo, principalmente na
medida em que transformavam antigas formas de organização e luta do
proletariado em mecanismos para absorvê-lo, neutralizá-lo e, enfim, dissolvê-lo
em uma massa de sujeitos-cidadãos, podendo-se aí pensar no fim que levaram
os sindicatos e órgãos como comitês de fábrica no período do pós-guerra.
Nesse processo, o capital realiza, virtualmente, várias das “demandas” do
movimento operária tal qual ele existia na época da dominação formal. Camatte
aponta que a perspectiva mais imediata do processo revolucionário na visão dos
comunistas da época da dominação formal era a da ditadura do proletariado –
isto é, o proletariado tornado classe dominante – generalizando a condição de
proletário para toda a sociedade, obrigando todos ao trabalho igual, mas que se
trabalhasse menos. Era, em suma, uma visão de afirmação do proletariado
enquanto classe, no entendimento de que isso resultaria em seu oposto dialético,
a generalização da condição proletária terminaria sendo também a abolição da
sociedade de classes, a abolição do próprio proletariado. Entretanto, Camatte,
argumenta, com a formação de sua comunidade material o próprio capital já
realizou isso, destruindo a pequena-burguesia proprietária e cindindo a função-
capitalista do proprietário, em termos jurídicos, do capital. A condição proletária
pelo assalariamento já teria sido realizada. Inclusive às custas da expansão de
novas camadas médias improdutivas sustentadas apenas pela realização de
valor extraído nos setores produtivos, enfim, todos os funcionários do capital
empregados na função da circulação e da realização do valor, dos advogados
aos publicitários, toda a camada de profissionais que servem ao capital para
facilitar a circulação do valor. A consequência disso, diz Camatte, é uma
aparente dissolução do proletariado na mistificação de uma sociedade em que
todos são assalariados; claro, o proletariado enquanto os trabalhadores
produtivos não desapareceu, mas sua identidade de classe não mais se confirma
pelo polo da reprodução, eles são confundidos com toda a massa de
assalariados, fazendo que a própria luta de classes enquanto luta do proletariado
fique borrada.
Dentre as consequências da fase da dominação real estão a assimilação
de todos os campos da existência social humana à forma do capital, tudo precisa
passar a servir aos mesmos mecanismos básicos da valorização e do sucesso
na competição do mercado. Nisso se inclui a arte, a religião, a filosofia, o lazer,
inclusive as organizações ditas revolucionárias, que passam a atuar agora tão
somente como gangues, disputando espaços para o sucesso de suas
propagandas em um mundo dominado pela lógica da valorização – motivo de
Camatte, a partir desse momento, recusar-se a constituir grupos políticos ou
tentar refundar um partido.
Na primeira fase das novas reflexões de Camatte, durante a primeira série
da Invariance (1967-1970), essa aparente dissolução do proletariado era

113
entendida apenas como resultando na formação de uma classe universal
potencial. O proletariado, agora ao lado de vários estratos do subproletariado e
das novas classes médias, além dos estudantes, já não teria como tarefa
revolucionária a generalização da condição proletária e o maior desenvolvimento
das forças produtivas. Ao invés disso, estaria posta a possibilidade do
comunismo como produto imediato do processo de transição a partir da recusa
do trabalho. Essa classe universal, que não existiria de forma estática, mas
apenas no processo de luta, apareceria enquanto uma espécie de frente única
do momento revolucionário a partir dessa união em torno da recusa do trabalho
– completamente ao contrário da visão tradicional da revolução como afirmação
do trabalho. Com efeito, segundo Camatte a concepção de revolução do
marxismo tradicional estava inteiramente condicionada por sua existência na
dominação formal do capital, alinhada com o período de expansão das forças
produtivas do capital que faltaria apenas “organizar”, “planejar”, contra a
anarquia do mercado – a visão de organização e planejamento, diz Camatte,
seria mesmo um fator chave de todo o desenvolvimento capitalista; para o
capitalismo, tudo é questão de organização, pensa ele, e o fascismo foi a mais
completa expressão dessa tendência.
De certo modo, pode-se dizer que é esse o ponto em que Camatte rompe
com o marxismo tradicional sem, todavia, sair de todo do campo do marxismo.
Ele aponta que na fase da dominação formal, o socialismo aparecia como
continuação da revolução burguesa, precisamente por ainda se basear no
desenvolvimento das forças produtivas e na organização do trabalho, uma
perspectiva tornada obsoleta na fase da dominação real. Ou seja, se antes o
trabalho era externo ao capital e, por isso, a revolução podia se apresentar como
uma tarefa interna – como movimento dialético, como luta do trabalho contra o
capital –, na dominação real é o contrário: o capital tornou-se interno, de modo
que a revolução precisa ser uma tarefa externa. E, assim, deve romper
completamente com a ideologia do progresso, do Iluminismo, da modernização,
do trabalho e assim por diante.
Conforme o refluxo do movimento de 1968 a partir de 1973 tornou-se claro,
os escritos de Camatte se tornaram em geral mais pessimistas, apontando que
a realização da comunidade material estava completa e que a partir daquele
ponto iniciava a própria antropomorfização do capital. A questão portanto já
poderia nem mesmo passar por uma revolução ou pensar em termos de luta de
classes, a única alternativa era a separação e a saída do mundo do capital. É a
época de textos como Esse mundo que devemos abandonar e Contra a
domesticação. Colocando as últimas esperanças em um certo fundo biológico
da espécie humana, Camatte passa a investigar aquele campo que hoje
convencionou-se chamar de biopolítica; ele quer entender como o Capital, a
partir do momento de comunidade material, começa a desbravar mesmo os
limites da existência biológica dos seres humanos, tentando domesticá-los ao
seu metabolismo, o processo de valorização.

114
Capítulo 3 –
O ponto de vista operário

3.1 – Origens do Operaísmo (1956-1964)


3.1.1 – Contexto histórico e social
Fazer uma exposição suficiente do operaísmo não é fácil. Por um lado, não
há um ou dois grandes autores que se compreendêssemos bastaria para ter uma
visão geral. Por outro, o operaísmo tampouco teve, de fato, uma existência
estável, pelo contrário, por sua própria natureza, existiu sempre em processo de
mutação, de modo que todas as exposições conceituais são parciais. Para
coroar o problema, o operaísmo não pode nem mesmo ser reduzido a sua
existência enquanto acontecimento teórico; muito mais do que isso, o operaísmo
tornou-se um verdadeiro movimento de massas no qual convergiam greves
operárias, guerrilhas urbanas, contestações estudantis, além de um contraponto
constante entre o papel dos intelectuais públicos e a exaltação da ação
espontânea das massas e um constante vai-e-vem pela porosa membrana entre
os partidos de esquerda e o indefinido campo da esquerda extraparlamentar.
Tamanha a complexidade do operaísmo como movimento que se é
obrigado a escolher entre uma exposição histórica exaustica e detalhada que
tomaria potencialmente dezenas de páginas e uma exposição bastante resumida,
quase simplista, delineando apenas os contornos mais importantes. Opto pela
segunda opção e deixo recomendações de onde se pode ler mais204. Dado o
referido caráter de pensamento em mutação do operaísmo, também parece
pouco produtivo introduzir, como nos capítulos precedentes, uma separação
entre exposição histórica e exposição teórica. Ao invés disso, será preciso fazer
as duas coisas ao mesmo tempo.
A pré-história do operaísmo se relaciona intimamente a combinação de
velozes transformações sociais e econômicas que ocorreram na Itália ao longo
da década de 1950 e uma série de rupturas que colocaram em cheque a
continuidade da hegemonia do PCI de Togliatti. Deve-se recordar que no começo
dos anos 50, a Itália ainda era um país bastante atrasado em comparação com
o resto da Europa. Se tomarmos dados de 1951 205, apenas 7,4% das casas

204
A grande referência a nível internacional para a história do operaísmo é o
primoroso livro de Steve Wright (Storming Heaven: class composition and struggle in
Italian Autonomist Marxism, Londres: Pluto, 2002). Também essencial é o clássico co-
escrito pelo grande romancista Nanni Balestrini com o escritor operaísta Primo Moroni
(La horde d’or, Italie 1968-1977, Paris: L’éclat, 2017). Em português, pode-se conferir
o capítulo sobre o operaísmo no livro de César Altamira (Os marxismos do novo
século, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008, pp. 115-211) e também a
excelente história do autonomismo de Marcello Tarì (Um piano nas barricadas:
autonomia operária (1973-1979), Lisboa: Antipáticas, 2013).
205
GINSBORG, Paul. Op. Cit., pp. 210-211.
115
tinham, simultaneamente, eletricidade, água encanada e um lavatório interno;
não só a agricultura ainda empregava mais de 40% da classe trabalhadora (60%
se considerarmos apenas o Sul), a produtividade média desse setor era menor
que as da Iugoslávia e da Grécia; na questão da estrutura fundiária, o país
também era dramaticamente dividido: modernas fazendas capitalistas no Norte,
predomínio de parceiros e meeiros no Centro e a dominância de grandes
latifúndios pouco produtivos no Sul e na Sicília – e mesmo o aumento de
pequenas propriedades entre 1948 e 1955 não significou prosperidade para os
camponeses, mas antes estagnação, pois a divisão da terra condenou-os a
pequenos lotes de baixa produtividade e rentabilidade. O resultado? Uma
pesquisa parlamentar de 1953 concluiu que a classe trabalhadora rural estava
drasticamente desocupada: 48% no Sul, 43% no Centro e 41% no Veneto. Como
consequência óbvia, a década de 1950 foi um período de intensa emigração,
tanto para o exterior quanto do campo para as cidades.
A resposta para a estagnação e o atraso italianos seria dada por um intenso
influxo de capitais, ao mesmo tempo que o país foi integrado ao mercado mundial
em uma verdadeira era de ouro do comércio internacional. Mesmo antes do
choque ser sentido em escala nacional, os principais centros industriais
começaram a ver melhorias de suas infraestruturas técnicas, como as
expansões da FIAT em Turim e o incremento da indústria petroquímica. Some-
se a isso uma favorável disposição do Estado italiano a oferecer crédito barato
ao mesmo tempo que muitas obras de infraestrutura pública esquentavam a
economia. Mas, acima de tudo e decorrente do atraso agrário, a força de trabalho
italiano era de baixíssimo custo. Essas condições ideais levaram o
desenvolvimento industrial da Itália a decolar a partir de 1958. Nos cinco anos
de 1958 até 1963, a produção industrial italiana mais que dobrou, as inversões
em bens de capital aumentaram em média 14% ao ano, o PIB atingiu uma taxa
de crescimento média de mais de 6% e o percentual da produção italiana
exportada para o Mercado Comum Europeu foi de 23% para mais de 40%. Essa
transformação é particularmente notável não apenas quantitativamente, mas
qualitativamente: a Itália dos anos 40 era uma produtora de alimentos e tecidos,
a Itália de 1960 era um polo industrial de eletrodomésticos; em 1951 foram
produzidas pouco mais de 18.000 geladeiras, em 1967 foram 3.200.000; em
1947, produzia-se uma máquina de lavar por dia, vinte anos depois produzia-se
uma máquina de lavar a cada 15 segundos; no final da década de 60, a Itália era
a maior fabricante de geladeiras, máquinas de lavar e lava-louças da Europa –
no mundo estava atrás apenas de Estados Unidos e Japão.
Os dados ajudam a pintar uma imagem da nova Itália que se construía
nesse período, mas ainda mais importante é pontuar como isso impactava a
sociedade italiana como um todo. Ao invés de continuar confinada ao Triângulo
da Lombardia e do Piemonte, o parque industrial se espalhou em direção ao sul,
para Bolonha, para a costa do Adriático, para Val Padana, Ravenna e Porto
Marghera. Em 1961, a população trabalhadora empregada na agricultura havia
declinado para 30%, a dos serviços marcava 32% e, principalmente, a classe
operária nas indústrias atingira a cifra de 38%. Essa modernização econômica e
produtiva, baseada em mão de obra barata e foco em exportação de bens de
116
consumo, significou uma enorme distorção social, de modo que a condição social
da população italiana, sobretudo dos setores recém proletarizados, melhor muito
pouco e não acompanhou o crescimento econômico. Ainda havia falta de
elementos básicos de infraestrutura pública, assim como necessidades coletivas
e sociais – saúde, educação, transporte, moradia de baixo custo. Mas, o mais
importante, é que a desigualdade fundamental do país, entre o Norte altamente
industrializado e o Sul agrário e pobre, persistia. Assim, a migração se
intensificou a níveis inéditos, com uma gigantesca massa camponesa se
movendo para os centros urbanos do Centro e do Norte.

3.1.2 – Os partidos e a classe


Portanto, é num contexto de mudanças rápidas e profundas, da
transformação de um país agrário em um industrial e urbano, às custas de uma
intensa exploração de mão de obra barata em condições de grande exploração
e em boa parte migrante206, que se deve pensar nas origens do Operaísmo. A
esse substrato, deve-se também entender o contexto político: o PCI havia se
convertido em um partido rigorosamente comprometido com o parlamentarismo,
uma constante fé na possibilidade de realizar o programa da democracia
avançada e na vitória, no longo prazo, do bloco socialista. Como já mencionado
no capítulo sobre Della Volpe, o grande papel do PCI no imediato pós-guerra
havia sido o de controlar uma classe operária que havia ganhado espaço e se
tornado mais ousada no processo de luta contra o regime fascista em 1943-1945.
Contra as ocupações de fábricas e novos órgãos de controle operário, o urgente
era garantir a restauração da disciplina para que a classe capitalista reassumisse
o controle e o projeto de união nacional do PCI fosse possível.
Verdadeiros filhos da Comintern, para quem a
organização e a forma da produção eram essencialmente
neutras em termos de classe, a liderança do PCI não viu
problema em conceder – em nome de uma “unitária”
reconstrução econômica – a restauração da prerrogativa
gerencial nas fábricas. Afinal, não era a produtividade em
última instância um problema de técnica? As fábricas devem
ser ‘normalizadas’, argumentava o boletim da federação
partidária de Milão em julho de 1945.207
O outro grande partido da esquerda italiana, o PSI, acaba tomando um
papel importante nesse período. Com uma linha política inconstante e incoerente,

206
E as duas coisas se complementavam: o regime fascista promulgou em 1939 uma
lei que impediu a migração interna, sobretudo para coibir a urbanização, e que só foi
revogada em 1961, de modo que o período inicial do grande êxodo rural foi com uma
grande massa de migrantes clandestinos, logo, vulneráveis às piores condições de
trabalho.
207
WRIGHT, Steve. Storming Heaven, Londres: Pluto, 2002, p. 9.
117
resultado de sua composição heterogênea, o partido tornou-se muito ligado ao
PCI na época da resistência, mas também foi um refúgio para dissidentes de
esquerda em busca de autonomia com relação à política e à hegemonia
historicista de Togliatti. Mais ainda, após a expulsão da esquerda do governo por
De Gasperi e o início da Guerra Fria, a esquerda do PSI, sob a liderança de
Rodolfo Morandi208, assumiu a liderança e reorientou o partido para uma posição
de campismo pró-soviético, a qual só se intensificou com a eclosão da Guerra
da Coreia. Ao mesmo tempo, porém, essa esquerda do PSI apresentava uma
certa pretensão de tomar o manto revolucionário que o PCI deixara cair e, por
isso, uma nova geração de dissidentes de esquerda era abrigada sob sua asa.
O ano de 1956 foi o decisivo. Para Togliatti, a desestalinização de
Khrushchev foi a oportunidade perfeita para livrar o PCI dos restantes stalinistas
ortodoxos que, mesmo sob uma forma distorcida, representavam o último
resquício de uma política de classe. No PSI, por outro lado, foi um choque terrível,
levou verdadeiramente ao colapso da esquerda morandista e permitiu o
fortalecimento da direta sob o comando de Pietro Nenni, que ambicionava acima
de tudo afastar o PSI do PCI e criar as condições para uma coalizão com a
Democracia Cristã. Os jovens da esquerda socialista que viam o modelo
stalinista colapsar diante de seus olhos precisavam de uma alternativa, muitos
diagnosticaram uma crise dos partidos de esquerda e, de forma mais geral, do
movimento operário italiano.
Como já vimos, o mais substancial desafio à ortodoxia até esse momento
era representado pela escola della-volpiana no campo da filosofia, mas Della
Volpe não tinha a menor pretensão de romper com Togliatti na política – pelo
contrário, é precisamente com a virada de 1956 que ele é convidado a compor o
comitê editorial da revista Società. Ainda assim, ele era o primeiro sinal de um
tremor por vir – e não apenas das polêmicas radicais de Colletti. Anos mais tarde,
em uma entrevista, um dos maiores nomes do operaísmo, Mario Tronti diria:
Havíamos encontrado um tipo de marxismo diferente
daquele oficial, da ortodoxia de então, daquele que, ao menos
no âmbito comunista, girava em torno da tradição historicista,
idealista, gramsciano-croceano-desanctisiana: no lugar nós
tivemos a sorte de cair no marxismo de Della Volpe, que era
um marxismo anti-historicista, materialista, que teorizava uma
ruptura entre Marx e Hegel, não uma continuidade. Era um

208
Morandi é uma figura curiosa, marxista heterodoxo, buscou uma via média entre a
social-democracia e o bolchevismo e acabou a encontrando em Rosa Luxemburgo,
sob cuja influência se aproximou de visões mais “conselhistas”, recusando-se a limitar
a política socialista aos partidos, tinha uma visão “de baixo pra cima”. A situação muda
com a Guerra Fria, porém, e Morandi torna-se um stalinista linha-dura que impõe uma
ortodoxia rígida ao PSI, mais leal aos ditames de Moscou que o PCI, inclusive.
118
marxismo muito aberto, que já dava uma indicação de
pesquisa além das coisas adquiridas naquele período.209

3.1.3 – Crise e renovação: a Mondo operaio (1956-1960)


Simbólico, portanto, que no final da década de 1940 Della Volpe tenha
conhecido um jovem que chegara à Sicília para participar das lutas camponesas
pela terra então efervescentes na região. Este era Raniero Panzieri, nascido em
Roma de pais judeus, militante do PSI desde 1944, no qual se alinhava à
esquerda morandista, jurista de formação pela Universidade de Urbino,
tornando-se mais tarde docente de direito na Universidade de Messina – onde
ministrará, em 1949, um curso sobre a “crise do jusnaturalismo” – por referimento
do próprio Della Volpe. É possível que tenha havido certa compatibilidade desde
logo, pois, ao contrário da maioria dos marxistas italianos, Panzieri não tivera
formação historicista ou idealista, nunca tendo se relacionado à tradição italiana
do neo-hegelianismo210. Em todo caso, a questão é que a influência de Della
Volpe sobre Panzieri a partir daí é notada por um número de estudiosos, alguns
chegando a dizer ser uma das principais tendências que confluíram na formação
de seu pensamento, confirmando uma dedicação ao marxismo como ciência
ancorada em um método lógico rigoroso centrado na abstração determinada211.
Panzieri viria a se tornar membro do Comitê Central do PSI em 1953, e,
quando da morte de Morandi em 1955, chegou mesmo a ser considerado seu
mais provável “sucessor”212 na liderança do partido. Inicia-se assim o breve auge
de sua influência no partido, representada pela sua tomada da direção da revista
Mondo operaio, em 1957, que rapidamente transforma em um espaço para
pensar a crise do partido e do movimento operário italiano, publicando e
debatendo trabalhos antes proscritos, como de Trótski, Luxemburgo e do jovem
Lukács. Na análise de Panzieri, a crise – colocada às claras pela virada de 1956
e da qual era preciso encontrar uma saída à esquerda, por uma crítica marxista
do stalinismo, contra as vias tanto de Nenni quanto de Togliatti - se devia a uma
ossificação do pensamento revolucionário a partir da ortodoxia, pela qual se
operara uma verdadeira cisão entre a classe e o partido; contra isso, tornava-se
necessário restaurar a autonomia da pesquisa teórica, reatar a teoria às
condições reais da classe operária – esse debate, que tomou a forma de um
desacordo sobre a “liberdade da cultura” com relação às instituições do

209
GENTILI, Dario. Italian Theory: dall’operaismo alla biopolitica. Bolonha: il Mulino,
2012, p. 34. Outros comentários similares foram dados também por Tronti em seu
relato biográfico Noi operaisti.
210
PANZIERI, Raniero. La ripresa del marxismo-leninismo in Italia, Roma: Nuove
Edizioni Operaie, 1977, p. 7
211
BIANCHI, Sergio; MARUCCI, Alessandro (Org.). Raniero Panzieri: Prima, durante e
dopo “Quaderni Rossi”, p. 14.
212
A influência de Morandi no pensamento inicial de Panzieri é notável, sobretudo sua
ênfase na democracia direta e na auto-atividade da classe operária.
119
movimento operário, é o início das reflexões panzierianas sobre a relação entre
a classe e a ciência.
Conforme as pesquisas na Mondo operaio avançavam, Panzieri aprofunda
e detalha sua visão, partindo fundamentalmente da visão de que
O processo de renovação no qual está empenhado o
movimento operário se manifesta, por um lado, como
restituição do método marxista aos seus termos originais e
como confirmação de alguns princípios fundamentais do
socialismo, por outro como tomada de consciência de um
novo desenvolvimento da realidade, como dissolução da
cristalização dogmática da estratégia e, portanto, como
enriquecimento qualitativo do próprio método e de seus
resultados. A afirmação do processo atual como ruptura
constitui-se assim o único modo de afirmar a continuidade
histórica do movimento.213
Ao longo dos anos de 1957 e 1958, o tema que efetivamente domina a
Mondo operaio e a cabeça de Panzieri é o da democracia direta da classe
trabalhadora, dos conselhos operários, do “sovietismo”, dos comitês de fábrica,
enfim, do que ele chamará, sinteticamente, de controle operário. Será essa a
plataforma que servirá de ponto de partida para a crítica do reformismo dos
partidos da esquerda e a ponta de lança de suas intervenções políticas, que
culminam com a publicação, em 1958, das Sete teses sobre o controle operário,
co-escritas por ele e Lucio Libertini:
Nesse terreno emerge a prática e a ideologia do
monopólio contemporâneo (recursos humanos, organização
científica do trabalho, etc.), que almeja subordinar de forma
integral espírito e corpo – o trabalhador ao patrão, reduzindo-
o a uma pequena engrenagem no mecanismo de uma grande
máquina cuja complexidade é desconhecida para ele. A única
forma de quebrar esse processo de total sujeição da pessoa
do trabalhador é, da parte do trabalhador mesmo, começar se
tornando consciente da situação tal como ela é em termos
empresarial-produtivos; e de contrapor à “democracia
empresarial” dos patrões e à mistificação dos “recursos
humanos” a reivindicação de um papel consciente do
trabalhador no complexo empresarial; a reivindicação da
democracia operária. 214

213
PANZIERI, Raniero. Appunti per un esame sulla situazione del movimento operaio,
in Scritti 1956-1960, Milão: Lampugnani Nigri, 1973, p. 65.
214
PANZIERI, Raniero. Sette tesi sulla questione del controllo operaio, 1958, in Scritti
1956-1960, Milão: Lampugnani Nigri, 1973, p. 112.
120
Esse tema ainda se insere em um âmbito maior, dentro de polêmicas a
respeito do papel a ser desempenhado pelo proletariado como um todo nas
transformações em processo na sociedade italiana. A visão do PCI sob Togliatti,
essencialmente de que o proletariado tem a missão de se coligar com os setores
progressistas da burguesia para realizar uma democracia burguesa completa, é
alvo da polêmica de Panzieri. Contra ela, porém, ele não avança apenas a ideia
de que o proletariado deveria liderar a realização da democracia burguesa, mas,
sim, que a tarefa fundamental era a construção de uma democracia proletária.
Em suma, era sobre a ruptura entre a revolução burguesa e a revolução
proletária. Nesse sentido, Panzieri aprofundava a mesma questão de fundo que
opunha o significa político da revolta filosófica do della-volpismo contra o
historicismo de Togliatti: o método della-volpiano levou o marxismo italiano além
das especificidades nacionais, além daqueles atrasos usados desde muito para
justificar a coalizão com a burguesia pela unidade nacional, daí seu potencial
subversivo no PCI, como disse Colletti; Panzieri fez estourar o invólucro filosófico
e colocou a questão diretamente na política.
Entretanto, a essa altura, importante dizer, Panzieri ainda acreditava ser
possível recuperar o PSI para uma posição revolucionária, que no vácuo aberto
pelo colapso das convicções stalinistas dos herdeiros de Morandi era possível
construir uma alternativa de esquerda. Como legado intelectual de Morandi,
ademais, Panzieri tinha como objetivo também realizar a unidade entre o PSI e
o PCI, reunificar os partidos de esquerda com uma nova plataforma. Mas, a
questão central, condição para essas transformações no nível político, era a
questão da própria classe operária, de modo que era preciso primeiro localizar e
unificar a classe operária, compreender sua situação real, para, em seguida,
unificar seus partidos políticos.
O otimismo de Panzieri nesse aspecto não se provou nada justificado. Ao
mesmo tempo que radicalizava suas pesquisas e intervenções por meio da
Mondo operaio, aumentava seu isolamento no aparato do partido. Foi, primeiro,
removido de todas as funções oficiais; depois, da Direção nacional do partido;
enfim, do próprio Comitê Central. Enfim, em 1959, Panzieri foi removido da
direção da Mondo operaio – era condição para que a virada para a direita
almejada por Nenni fosse possível. Em carta de outubro daquele ano para Danilo
Montaldi, reclamava do isolamento e do deslumbramento da maioria do partido
com a possibilidade de entrar no governo em coalizão com a Democracia Cristã
- "até Libertini foi completamente assimilado”215, escreveu.
Próximo do final do ano, Panzieri abandonou a política partidária do PSI.
Aproveitando uma oportunidade de emprego na editora Einaudi, deixou Roma e
foi para Turim, a monumental urbe da indústria piemontesa, então inchada com
as ondas de migrantes em busca de emprego nas fábricas. Para sua surpresa,
no entanto, não foi isolamento ou calmo trabalho intelectual que ele encontrou
após sair da direção do PSI; acabou, pelo contrário, conhecendo toda uma nova

215
WRIGHT, Steve. Storming Heaven, Londres: Pluto, 2002, p. 20.
121
geração, jovens militantes, bem mais novos que ele, descontentes com o
reformismo e o quietismo das direções partidárias, dissidentes de esquerda que
tinham contato direto com as lutas no chão de fábrica. Alguns vinham de células
da juventude do próprio PSI, como Luciano Della Mea, em Milão, e Antonio Negri,
em Pádua; havia também dissidentes da ala esquerda dos núcleos universitários
do PCI, como Mario Tronti e Alberto Asor Rosa, em Roma; não faltavam outros
com percursos ainda mais excêntricos, como Danilo Montaldi 216 e Romano
Alquati.

3.1.4 – Como nasce uma nova política: Quaderni Rossi (1960-1964)


Em uma carta do final de 1959, Raniero Panzieri explicou a Alberto Asor
Rosa os pontos fundamentais da nova orientação de pesquisa e ação política:
1) necessidade de exprimir e articular uma posição
unitária fora das brigas e lutas das correntes e grupos nos
partidos e sindicatos; 2) essa posição unitária exige a
perspectiva de políticas e instrumentos unitários da classe
operária, constata sem reticências a involução e deformação
das atuais políticas e modos de ação e ao mesmo tempos
tenta influencias explicitamente os organismos existentes,
considerando-os disponíveis para uma política revolucionária;
3) a rejeição da falsa alternativa reformismo-catastrofismo
(nas versões recentes) se substancia na reivindicação e linha
da democracia direta (controle operário); 4) os temas da
democracia direta devem emergir de uma análise
determinada das condições da luta de classes no plano
interno e no plano internacional (nesse sentido é considerada
superada a experiência do nosso Mondo operaio); 5) no
centro das pesquisas deve estar portanto o exame positivo
das condições materiais e de consciência da classe operária
na Itália e a destruição precisa e documentada dos correntes
mitos do neo-reformismo (ideologias do "consumo", ideologia
"sociológica", etc.)217

216
Filho de um programmista, Montaldi participou da resistência antifascista em grupos
organizados pelo PCI, partido no qual entrou em 1945 e do qual saiu já no ano
seguinte. A partir de então, seguiu um percurso individual, colaborando, sem nunca
aderir integralmente, com os mais diversos grupos e organizações: o Partido
Comunista Internacionalista – dos programistas, mencionado no capítulo anterior -, o
francês Socialisme ou barbarie, de Castoriadis e Lefort; o grupo holandês Spartakus;
fundou, o Grupo de Unidade Proletária, em Cremona; na década de 60, conheceu
Giangiacomo Feltrinelli, fundador da editora homônima, com quem passou a colaborar
estreitamente.
217
PANZIERI, Raniero. La ripresa del marxismo-leninismo in Italia, Roma: Nuove
Edizioni Operaie, 1977, pp. 14-15.
122
Sobre essas bases, e com seus novos colaboradores, Panzieri fundou um
novo órgão de pesquisa, os Quaderni Rossi. Firmemente guiados pelo princípio
político de que a classe operária devia ter primazia, da necessidade de
compreender sua situação real, foi necessário ao grupo fazer um retorno à teoria,
agora com um novo horizonte de renovação da crítica da economia política. Uma
das primeiras linhas impulsionadoras do novo projeto foi a recepção por parte
deles da sociologia.
O uso da sociologia foi principalmente no sentido de introduzir na
metodologia dos Quaderni Rossi (QR) um método científico e rigoroso para
compreender a realidade material da classe operária italiana. Havia um
consenso de que ela, em particular o operariado de migração recente, não era
mais o mesmo sujeito social que a classe trabalhadora de antes do fascismo ou
mesmo dos anos da Resistência. Não só os partidos, mas mesmo os sindicatos
já não representam uma enorme parte do proletariado italiano; a CGIL
(Confederação Geral Italiana do Trabalho) era composta principalmente pelos
especialistas, operários altamente qualificados e bem pagos 218 , isto é, uma
minoria do proletariado em um país onde a massa agora eram migrantes de
origem camponesa. Por isso o grupo dos QR focaria, a princípio, no
desenvolvimento do que seria chamado de enquete operária, que pode ser vista
como uma forma de etnografia da nova classe operária.
A ideia da enquete não era exatamente nova, muito pelo contrário, era o
resgate de uma enquete que havia sido feita pelo próprio Marx, à pedido da
Revue Socialiste, em 1880, para circular entre operários franceses. A pesquisa
de Marx era exatamente um questionário, bastante longo, aliás, com 101
perguntas. Foi a primeira tentativa de desenvolver propriamente um estudo
empírico da classe operária. Os italianos dariam a essa proposta uma
abordagem nova. A ideia parece ter aparecido pela primeira vez entre eles por
sugestão de Danilo Montaldi, que também fez as primeiras enquetes
operaístas219. Na visão de Montaldi, era bem mais do que coletar dados, era
entender a vida e as lutas da classe a partir do ponto de vista da própria classe,
era entender a experiência do proletariado e o que organiza a classe a partir de
seu substrato econômico, na fábrica, para além das representações burocráticas
dos partidos ou do sindicato; era um meio de dar à classe uma ciência para
entender a si mesma contra os órgãos burocratizados e absorvidos pelo Estado
burguês. Mais ainda, o método de Montaldi propunha uma nova forma de
entender a dicotomia organização/espontaneidade; ele não fazia um elogio de
uma suposta ação aleatória e repentina, provava, na verdade, que tudo aquilo
que aparece como “espontâneo” é tornado possível um “microssistema” da
própria classe, relações, culturas de luta, experiências, órgãos de vários tipos,
mesmo não políticos. Foi de Montaldi que um jovem Romano Alquati teve seu

218
MANOLO, Quaderni Rossi e Classe Operaia: notas para um história do operaísmo.
2017. Disponível em: https://passapalavra.info/2017/07/114103/.
219
HAIDER, Asad; MOHANDESI, Salar. Enquete operária: uma genealogia, parte 7.
2013. Disponível em: https://passapalavra.info/2020/03/130322/.
123
primeiro contato com o marxismo revolucionário, no Grupo de Unidade Proletária,
em Cremona.
Alquati, sociólogo por formação, veio a integrar o grupo dos Quaderni Rossi,
onde o método da enquete foi aperfeiçoado para atingir os objetivos científicos
de Panzieri. Entretanto, havia desde logo uma divergência precisamente quanto
até que ponto se poderia depender da metodologia sociológica. Enquanto uma
ala, representada por Panzieri e Vittorio Rieser, era mais favorável a sociologia,
vendo nela fermento para a renovação do movimento operário, o próprio Alquati
achava que era apenas um passo inicial e temporário, e que deveria levar a uma
forma completamente diferente, que ele batizaria de copesquisa (conricerca).
Um dos primeiros textos de Alquati trazendo claramente a problemática das
enquetes foi um artigo sobre a FIAT, “Relato sobre as ‘Novas Forças’”, que saiu
no primeiro número da Quaderni Rossi, em 1961. As “novas forças”
mencionadas são justamente os operários da nova geração, submetidos a um
processo intenso e alienante de organização científica do trabalho, além de
relativamente desqualificados, mas que começavam a apresentar um novo nível
de combatividade contra os métodos de organização capitalista. Foi a partir
desse relato de Alquati que Panzieri escreveu um de seus mais influentes textos
do período, “O uso capitalista das máquinas: Marx contra os objetivistas”.
Partindo da exposição e das conclusões de Alquati, de que havia um verdadeiro
desejo entre os operários por um controle da classe sobre a produção e contra
aquela forma de organização do trabalho, Panzieri se põe a estudar a relação
que ele detecta entre o uso capitalista da maquinaria e o desenvolvimento
tecnológico.
Um dos primeiros elementos foi apontar a constituição de uma
subjetividade de classe não fora, mas dentro da relação com o capital.
O trabalhador, enquanto proprietário e vendedor de sua
força de trabalho, entra em relação com o capital apenas
como indivíduo; a cooperação, o relacionamento mútuo entre
trabalhadores, apenas começa com o processo de trabalho,
mas até lá eles deixam de pertencer a si mesmos. Ao entrar
no processo de trabalho eles são incorporados no capital.220
Essa visão, cujas importantes repercussões serão retomadas adiante,
inova ao não ver o proletário em luta contra o capital simplesmente como uma
subjetividade pressuposta que é então ataca por um inimigo externo. Uma
concepção reminiscente de formas pequeno-burguesas de socialismo. Antes,
Panzieri quer entender o proletariado moderno, o que nasce como resultado da
organização da produção capitalista, que é socialmente reproduzido com relação
às formas de produção existentes. Ou seja, é uma conexão entre a existência do
proletariado enquanto valor de uso/força de trabalho para o capital e a existência

220
PANZIERI, Raniero. Sull’uso capitalistico delle macchine nel neo-capitalismo, in La
ripresa del marxismo-leninismo in Italia, Roma: Nuove Edizioni Operaie, 1977, p. 148.
124
do proletariado enquanto classe ativa, com agência, subjetividade e potencial de
luta política.
Sua análise foi radical para a época e se dirigia principalmente contra as
várias formas de otimismo progressista com a tecnologia, vista de forma
“prometeica” como ilimitada e uma força transcendente que inevitavelmente
destruiria as relações sociais atrasadas do capitalismo. Ao contrário, a tal ponto
a máquina se tornava a forma de dominação do capital sobre os trabalhadores
que o próprio desenvolvimento da tecnologia obedece a uma percurso e formas
específicos; a tecnologia torna-se uma forma de existência do capital enquanto
tal.
Pode-se então estabelecer, entre outras coisas: 1) que
o uso capitalista das máquinas não é, por assim dizer, a
simples distorção ou desvio de um desenvolvimento "objetivo"
em si mesmo racional, na verdade ele determina o
desenvolvimento tecnológico; 2) que "a ciência, as imensas
forças naturais e o trabalho social de massa... são
encarnados no sistema das máquinas e... com isso
constituem o poder do 'patrão'". Então, frente ao operário
individual "esvaziado", o desenvolvimento tecnológico se
manifesta como desenvolvimento do capitalismo.221
A essa forma de imposição de uma organização do trabalho pretensamente
científica e objetiva pelo despotismo capitalista, Panzieri dá o nome de
racionalidade tecnológica. Não era nem mesmo uma questão apenas do
maquinário ou da tecnologia empregada; Panzieri já vê a essa altura uma
progressiva expansão da planificação capitalista, não apenas no chão de fábrica,
mas também como tendência a se expandir para toda a sociedade. A isto ele dá
o nome de neocapitalismo.
No uso capitalista, não apenas as máquinas, mas
também os "métodos", as técnicas organizativas, etc, são
incorporadas ao capital, contrapõem-se aos operários como
capital: como "racionalidade" estranha. A "planificação"
capitalista pressupõe a planificação do trabalho vivo, e quanto
mais essa se esforça para se apresentar como sistema
fechado, perfeitamente racional de regra, tanto mais ela é
abstrata e parcial, pronta para ser usada em uma organização
apenas de tipo hierárquico.222
Desse modo, Panzieri sublinha a contradição inerente a esse
desenvolvimento pretensamente científico. Na potencialidade, aumenta
objetivamente a capacidade dos trabalhadores associados controlarem a
produção, mas, na prática, o que se vê é a exasperação da exploração e do

221
Ibid., pp. 150-151.
222
Ibid., pp. 157-158.
125
controle do capital sobre o processo produtivo. A única forma, coloca Panzieri,
de inverter essa relação, de transformar o próprio desenvolvimento tecnológico,
passa pela imposição do uso socialista das máquinas e pelo controle operário –
este último não sentido que os reformistas então davam ao termo: Panzieri
submete a uma crítica impiedosa a ideologia nacionalista e democrática que, nos
anos após a queda de Mussolini, fora utilizada para subordinar os conselhos
operários nas fábricas aos comitês de gestão, em que operário e patrões
participavam em pé de igualdade; não é disso que fala Panzieri, ele defende o
controle operário como medida política revolucionária, como preparação do
poder duplo e como medida da transição socialista, como ditadura de classe.
Isso também revela o caráter intrinsecamente político das investigações de
Panzieri, com sua necessidade de provar que não existe uma antítese entre
capitalismo e desenvolvimento – como argumentava a ortodoxia do PCI, para
justificar sua linha desenvolvimentista –, mas que o capitalismo é
desenvolvimento e desenvolvimento nada mais é que a reprodução ampliada do
capital, com todas as suas características, incluindo o despotismo sobre os
trabalhadores despossuídos.
Como mais tarde diria Maria Turchetto, o método de crítica ao
desenvolvimento tecnológico de Panzieri foi uma verdadeira revolução
copernicana. Também Gianfranco La Grassa reconheceria que esse foi um dos
mais importantes desenvolvimentos na teoria política marxista na Itália, um
resultado não apenas original e antidogmático, mas também um golpe enorme
contra o economicismo da velha ortodoxia223. A simpatia dos lagrassianos pelo
método consolidado por Panzieri não para no nível da similaridade das críticas
ao “tecnicismo”, Panzieri era também um inimigo ácido do historicismo e do
idealismo dos marxismos “hegelianizantes”. Como disse ele em uma conferência
de 1964, sobre os usos da enquete operária:
Nos Manuscritos Econômicos e Filosóficos de Marx e
outros escritos anteriores o ponto de comparação é o ser
alienado (“o trabalhador sofre em sua própria existência, o
capitalista no lucro de seu Mamon morto”) e a crítica da
economia política é relacionada com uma concepção histórica
e filosófica da humanidade e da história.
Contudo, O Capital de Marx abandona essa perspectiva
metafísica e filosófica e a crítica posterior é feita
exclusivamente a uma situação específica que é o capitalismo,
sem afirmar ser uma anticrítica universal da unilateralidade da
economia política burguesa.224

223
LA GRASSA, Gianfranco. Dalla fabbrica alla società. L’ideologia della pianificazione
globale del capitale, in CAPPELLETTI, Franco (org.), Circolazione e forme del politico,
Milão: Franco Angeli, 1980, p. 9.
224
PANZIERI, Raniero. Uso socialista della inchiesta operaia, in La ripresa del
marxismo-leninismo in Italia, Roma: Nuove Edizioni Operaie, 1977, p. 316
126
Reconhece-se aqui não só aquilo que Panzieri pode ter herdado de Della
Volpe, mas alguns desenvolvimentos de próprio corte. Em outros escritos,
Panzieri tornou-se crítico do humanismo, coisa que Della Volpe não chegara a
fazer. É o caso de um artigo chamado “O socialismo ‘humanista’ na França”, no
qual escreve:
A divisão e o desvio do movimento proletário, este, com
efeito, é o propósito verdadeiro de todo mais ou menos
elaborado e modernizado revisionismo “humanista”. A
falsificação doutrinal, pela qual se recorre à “noção” de
“homem” e ao “verdadeiro ser do homem” para “compreender
a noção do proletariado”, invertendo completamente a
posição de Marx e Engels, corresponde a um preciso objetivo
político: a deformação do marxismo, para dividir e
enfraquecer a classe operária.225
Outro importante texto desse período é de autoria de Mario Tronti. La
fabbrica e la società saiu na segunda edição da QR, em 1962, e foi um dos
primeiros trabalhos a colocar seriamente a possibilidade de uso da categoria da
subsunção do trabalho como instrumento de análise da sociedade, focando nas
consequências da generalização do mais-valor relativo a partir da formação do
capital social. De uma forma muito interessante, aqui Tronti já antecipava certos
desenvolvimentos que faria Camatte em Capital et Gemeinwesen apenas alguns
anos depois, particularmente a ideia de que com o desenvolvimento do
capitalismo, pelo aumento contínuo do capital constante como força que domina
o trabalho vivo, passa a atuar uma tendência do capitalismo, após conquistar
todos os territórios externos, não-capitalistas, a conduzir uma colonização
interna, que é quando as outras esferas da sociedade passam a ser absorvidas
pelas relações sociais da fábrica. Com isto se quer dizer que a fábrica, e sua
disciplina, passava a absorver a esfera da circulação, estendendo seu regime
por toda a sociedade do capitalismo avançando, isso podendo tomar, por
exemplo, a forma do planejamento capitalista para garantir a reprodução do
capitalismo. Tronti já falava, também, da mistificação das classes, pois esse
processo de absorção da sociedade pela fábrica significaria a generalização da
condição proletária e, sob ela, o apagamento aparente da separação entre o
proletariado e as novas classes médias – daí a memorável frase de Tronti,
“quando toda a sociedade é reduzida a uma fábrica, a fábrica mesma tende a
desaparecer”.
Algumas diferenças vale salientar, no entanto. Em primeiro lugar, Tronti
analisa o desenvolvimento capitalista, e sobretudo o que o motiva, do ponto de
vista do proletariado; quer dizer, para ele, o motivo principal para os saltos
técnicos do capital, com os incrementos do capital constante, era a luta da força

PANZIERI, Raniero. Il socialismo ‘umanista’ in Francia, in BIANCHI, Sergio;


225

MARUCCI, Alessandro (Org.), Raniero Panzieri: prima, durante e dopo i “Quaderni


Rossi”, Roma: DeriveApprodi, 2021, pp. 111-112.
127
de trabalho, que obrigava o capital a se desenvolver. Em segundo lugar, o que
para Camatte seria o fim de qualquer autonomia dos níveis políticos, com a
formação da dominação real do capital, para Tronti aparece como o contrário:
conforme as lutas dos operários obrigavam as relações do capital a se
recomporem em níveis mais altos, mais socializados, as relações econômicas
tendiam a tomar um caráter diretamente político – Tronti chega mesmo a dizer,
sobre a luta entre capital e trabalhadores pela jornada de trabalho, que “direito
contra direito, quem decide é a força”226; na fase em que toda a sociedade é
subsumida pela fábrica, a gradual transformação do Estado em capitalista
coletivo também implica em uma autonomia do político. Finalmente, Tronti toma
uma perspectiva diametralmente oposta à de Camatte quanto à relação entre a
subjetividade revolucionária do proletariado e sua integração ao capital; se para
Camatte a integração do proletariado significa que ele deixa de ser revolucionário,
para Tronti é o contrário, é apenas na integração que surge a subjetividade
proletária. A consequência desse entendimento, curiosamente, para Tronti, é
bastante similar à de Camatte: ele não deduz, dessa posição, que seria
necessário voltar a falar em libertação do trabalho, ele fala, ao invés, da
necessidade de o proletariado entender a si mesmo como parte do capital, ver a
força de trabalho como a parte ativa da relação capital e, consequentemente,
passar a lutar contra o próprio trabalho. Tanto Camatte como Tronti chegam à
conclusão de que é preciso recusar o trabalho, lutar pela auto-abolição do
proletariado enquanto proletariado.
Essa fase inicial na Quaderni Rossi foi essencial, realmente colocou os
fundamentos de uma nova prática científica e política. Além disso, vários dos
elementos de pesquisa do trabalho de Panzieri colocam ele firmemente no
terreno de pensadores como Althusser e Adorno227, operando diretamente em
temáticas caras à nova esquerda então em gestação, de modo que seria
produtivo olhar para esse período não apenas como prefácio do que veio depois,
mas pelo que ele desenvolveu em si. Mas, assim que o ciclo de luta dos
trabalhadores italianos começou a se intensificar, a começar pelo ataque dos
operários aos escritórios da União Italiana do Trabalho em 1962, o grupo
começou a se dividir. De um lado, Tronti, Alquati e Negri acreditavam que uma
nova fase da luta de classes já havia começado e na qual era urgente embarcar
e participar com todo ânimo. Panzieri, por outro lado, mesmo que pudesse
reconhecer a obsolescência dos sindicatos como forma organizativa, não estava
confiante na luta autônoma como fonte de modelos duradouros de organização

226
TRONTI, Mario. La fabbrica e la società, in Quaderni Rossi #2, 1962, p. 12.
227
Há alguns paralelos importantes entre Panzieri e a Escola de Frankfurt,
particularmente a análise das dinâmicas de reestruturação do capitalismo. O próprio
Panzieri citou não poucas vezes Friedrich Pollock e sua aproximação da sociologia,
bem como ceticismo quanto à ação política autônoma naquele momento,
assemelham-no a Adorno e Horkheimer. Para um tratamento mais profundo, ver o
interesse texto de Andrea Cengia que saiu na revista Viewpoint (Krahl, Panzieri, and
Technological Capitalism. Viewpoint, 2018, disponível em:
https://viewpointmag.com/2018/04/14/krahl-panzieri-and-technological-capitalism/.)
128
política, insistindo na necessidade de perdurar na pesquisa teórica e sociológica.
Desse impasse viria, em fins de 1963, a ruptura no grupo dos QR, com a facção
mais exaltada deixando Panzieri para fundar o jornal Classe operaia como órgão
de intervenção política e prosseguimento da busca por novas formas políticas
adaptadas ao ciclo de lutas que começava. Pouco depois, em 1964, a morte
prematura e súbita de Panzieri abalou o grupo que sobrara na revista; em 1966,
a QR parou de ser editada.

3.2 – Operaismo em sentido estrito (1964-1972)


Rigorosamente, todo o período anterior à fundação do jornal Classe operaia
ainda não é o operaísmo, mas apenas seu período preparatório. O operaísmo
enquanto tal, primeiro episódio da nova esquerda na Itália, se constitui mesmo a
partir do grupo de Tronti, Asor Rosa, Negri e Alquati que rompeu com Panzieri
nos fins de 1963 tendo como objetivo a construção de uma nova política
revolucionária tomando como premissas os achados e conclusões das
pesquisas do período na Quaderni Rossi. O novo jornal era para ser um
instrumento de intervenção entre as massas, não mais uma revista teórica; tinha,
além disso, alguns pontos fundamentais já delimitados: a) a centralidade dos
operários do processo de produção imediato, b) o potencial revolucionário da
luta salarial, e c) a certeza de que a classe operária era a força motora de toda
a sociedade.
O termo operaismo – que, em italiano, tinha o mesmo sentido da palavra
obreirismo, antes do surgimento da escola operaísta – era bastante apto, afinal,
eles, especialmente Tronti, recuperaram de Lukács a insistência no
desenvolvimento de toda a teoria do ponto de vista do proletariado, sendo este
último entendido apenas como os trabalhadores produtivos, nos setores de
extração do mais-valor. Entretanto, não era o mesmo obreirismo vulgar que, por
exemplo, havia sido invocado pelo stalinismo dos anos 30. Muito pelo contrário,
o grupo do Classe operaia rejeitava desde logo a ideia de um sujeito pressuposto,
não examinado e era nesse ponto que criticavam Della Volpe e dele se
distanciavam, alegando que era preciso assentar a nova teoria revolucionária em
uma compreensão do sujeito concreto a que ela se destina e que pode agir
politicamente228. Logo, era preciso entender quem era esse sujeito.
O texto fundacional do operaísmo colocava essa tarefa claramente. Era o
famoso ensaio de Tronti “Lênin na Inglaterra”, mais tarde incorporado a
“Operários e Capital”. Logo na abertura, dizia ele:
Uma nova era está começando na luta de classes. Os
trabalhadores a impuseram aos capitalistas, por meio da

228
GENTILI, Dario. Op. Cit., pp. 46-47.
129
realidade violenta de seu poder organizado nas fábricas. A
balança de poder parece dura e a relação de forças é
desfavorável. E ainda assim, precisamente nos pontos em
que o domínio do capital parece mais dominante, mais fundo
penetra a ameaça da classe trabalhadora. É fácil não a ver.
Precisamos examinar a situação da classe trabalhadora de
perto. A sociedade capitalista tem suas leis de
desenvolvimento: economistas as inventaram, governos as
aplicaram, e trabalhadores sofreram sob o jugo delas. Mas
quem vai formular as leis do desenvolvimento da classe
operária?
Nós também vimos o desenvolvimento capitalista
primeiro e os trabalhadores em segundo. É um erro. Agora
precisamos colocar o problema de cabeça para baixo, mudar
a orientação, e começar de novo dos primeiros princípios, o
que significa focar na luta da classe operária. No nível do
capital socialmente desenvolvido, o desenvolvimento
capitalista é subordinado às lutas da classe trabalhadora.. 229
A visão de Tronti nessa época era de que a industrialização, ainda muito
recente, havia desestruturado com sucesso a classe trabalhadora anterior, mas
a nova ainda estava em processo de formação. A classe que então estava
surgindo ficaria conhecida como operário-massa, sendo marcada pela
homogeneização em virtude do uso mais intensivo de maquinário avançado,
exigindo menos qualificações dos operários. Esse novo operário tinha uma alta
combatividade e potencial de luta, mas ainda não tinha formado seus próprios
órgãos de luta, pelo que ainda usavam, mesmo com falta de ânimo e vontade,
os partidos e os sindicatos deixados pelo ciclo de lutas anterior. Tronti estava
confiante, porém, de que era uma fase passageira, um período de transição,
após o qual o desenvolvimento da luta operária poderia atingir novos níveis.
Enquanto não surgissem novas formas de organização e luta, porém, os
sindicatos tinham uma face dupla: por um lado, eram um campo inevitável d e
intervenção política, mas, por outro, seriam um dos mais importantes
instrumentos para o controle e a absorção da classe ao plano do capital. De certo
modo, pensar a questão dos sindicatos é que levou Tronti de volta às reflexões
sobre o partido. Sem o partido, a afirmação da autonomia dos sindicatos seria
prejudicial, não benéfica para a luta operária; seria a mais rápida integração da
burocracia sindical ao plano de reconsolidação do capital. No fim das contas,
Tronti não apresenta nenhum traço de espontaneísmo ou obsessão com a
“desorganização”. Pelo contrário, para ele o movimento operário nem mesmo
era necessariamente anticapitalista – suas lutas jogavam pra frente tanto o
capital quanto o partido, podiam acabar sendo usadas tanto para a

229
TRONTI, Mario. Lenin in England, in Workers and Capital, Londres: Verso, 2019, p.
145.
130
reconsolidação do capitalismo em novo nível, quanto para o salto revolucionário,
mas, para este último, seria preciso que, no momento agudo de embate entre as
forças, houvesse a intervenção decisiva do partido comunista, no momento
chave. Voltarei depois às reflexões de Tronti sobre o partido; por ora,
continuemos sobre a questão de como o Classe operaia prosseguiu as
pesquisas sobre a classe.
Alquati aprofundou o método da enquete operária durante sua análise das
“greves selvagens” que aconteceram na FIAT em 1963. Quanto à questão do
método, Alquati comprometeu-se inteiramente com a copesquisa, entendida
nesse momento como a criação de uma confiança mútua entre pesquisa-
intelectual e operários para melhor compreender a situação real e as relações
sociais da fábrica; note-se que à diferença de práticas vulgarmente obreiristas,
Alquati não pensava que se devia abandonar a posição de intelectual, ao
contrário, o intelectual, na medida em que tiver conhecimentos e técnicas de fato
úteis ao movimento operário deve participar e não fingir ser um operário. Em
certa medida, a abordagem de Alquati tinha algo da visão leninista da teoria
trazida de fora para a classe, mas não como um ensinamento paternalista sobre
o que é lutar, e, sim, como o aparelho teórico necessário para aprender da
própria classe e, em troca, contribuir com a organização e esclarecimento teórico
dela. Durante as pesquisas na FIAT, Alquati, notando a enorme combatividade
que aparecia, viu naquela luta autônoma não um comportamento aleatório e
desorganizado, mas antes o movimento de uma “vanguarda invisível”. Essas
greves também chamaram atenção pelo conteúdo das exigências dos
trabalhadores, ou, melhor dizendo, pela falta de conteúdo das exigências. Os
operários não exigiam nada concreto, nada que os patrões pudessem entregar
facilmente e pôr fim ao movimento, e se recusavam a propor quaisquer
exigências positivas aos patrões. Na visão de Romano Alquati, isso era uma
mobilização em curso tendo em vista uma batalha total e final pelo poder político
geral contra o capital230.
Nesse momento, a continuação das pesquisas com a enquere operária
abriu ao grupo do Classe operaia uma nova perspectiva. Nasceu aí o conceito
de composição de classe. Ao invés da visão de consciência de classe, entendida
de uma forma quase mística ou idealista a cosmovisão da classe esperando para
ser atingida pelo trabalhador individual, os operaístas passam a propor que a
classe, na verdade, educa a si mesma no processo de luta compondo-se em
uma rede de relações que organiza os trabalhadores individuais em uma massa.
A classe passava a ser vista como um organismo formado concretamente, com
relações “invisíveis” que, no nível micro, união os operários entre si.
O que Alquati diagnostica empiricamente por meio de suas pesquisas nas
fábricas, Tronti substanciou com a publicação, em 1966, do ensaio inédito, que
se tornou a maior parte de Operai e capitale, “Marx, força de trabalho, classe
trabalhadora”. Esquematicamente, a visão de Tronti é que os proletários

230
WRIGHT, Steve. Op. Cit., pp. 76-77.
131
individuais só se tornam uma classe trabalhadora a partir do momento que a
força de trabalho é subsumida pelo capital no processo de produção e que, a
subsequente luta coletiva dos trabalhadores contra a redução deles à posição
de mercadoria força de trabalho é o que estimula a formação de uma classe de
capitalistas coesa.
Evidente que um dos limites do operaísmo era aquele que o próprio
Panzieri havia advertido quando da ruptura entre ele e Tronti: o de supervalorizar
o momento da classe operária industrial e ontologizar o trabalho em uma filosofia
da história. O foco do Classe operaia nessa fração da classe trabalhadora, na
fábrica, no Primeiro Mundo – eles tendiam a subestimar as lutas da periferia
global, já que lá o operariado era numericamente menor – seria, inclusive, a
causa da dissolução do operaismo nos anos seguintes. Mas, há que se entender
também o motivo para essa ênfase: afirmar a classe operária industrial era negar
a generalização do “povo” 231 usado pelo PCI desde Togliatti e, portanto,
combater todas as tentativas de deixar cego o corte da crítica marxista
dissolvendo em visões democráticas a luta de classes. Colocar a fábrica como
locus central era, para Tronti, recusar reconciliações.
Entretanto, ele mesmo sabia que essa separação do operariado não era
benéfica no longo prazo. A partir da segunda metade da década de 1960, o foco
de Tronti vai virar para a ideia fixa de reconquistar o PCI para a luta do
proletariado, acreditando que é imprescindível um partido já organizado para
intervir decisivamente e mudar a relação de forças no momento crucial. No final
da década, a visão de Tronti passa a ser já obsessivamente politicista: o rumo
do PCI passou a ser o rumo do partido, caso a linha de Giorgio Amendola de
tornar o partido uma organização social-democrática ampla fosse vitorioso, a
classe estaria condenada à integração ao plano do capital.
Esse mesmo politicismo de Tronti não se manifestava apenas em sua visão
do partido. Mesmo nos melhores momentos de Operai e capitale, ele, ao tentar
aprofundar as posições da época da Quaderni Rossi, enfatizava a necessidade
de “ver as relações econômicas como relações políticas”. Apesar de uma
rigorosa e importante releitura da crítica da economia política, Tronti parece não
dar importância alguma para temas como o fetichismo, de modo que em suas
análises o especificamente econômico simplesmente desaparece em meio à luta
de forças políticas. Já nos anos 1970, Tronti estaria de volta ao PCI e convicto
da autonomia do político, colocando o partido como peça central da política
revolucionária.
Enquanto isso, os operaistas ligados ao Classe operaia localizados em
cidades do Norte, tomavam o caminho contrário. Principalmente Antonio Negri e
Sergio Bologna começavam a colocar a ênfase nas lutas operárias mais radicais
dentro do próprio local de trabalho, na esfera da produção outra vez. O abismo
entre eles e o grupo mais próximo de Tronti, que não acreditava na possibilidade

231
TRONTI, Mario. Workers and Capital, Londres: Verso, 2019, p. 133.
132
de dar seguimento à luta sem o partido político, levaria a uma nova cisão. No
final de 1967, Classe operaia chegou ao fim.
A partir desse ponto, o operaismo começou a se espalhar para se constituir
como um campo político não limitado a um ou dois jornais. Surgiram várias
organizações em diferentes pontos da Itália. Potere operaio, Lotta continua,
Contropiano, e assim por diante. O movimento operário continuou seu ascenso
em direção ao fatídico 1968. A Itála teve um movimento bastante diferente
daquele da França e outros países do capitalismo avançado, com a fase de lutas
diretas se estendendo por um período mais longo, em que o movimento
estudantil, as lutas operárias e o início da guerrilha urbana se misturaram, tendo
como pico o Outono Quente, em 1969.
Esse período foi de multiplicação das perspectivas políticas, teóricas e
organizacionais, de expansão da reflexão dos operaístas e do campo de
influência de suas teses. O número de grupos e autores dentro dessa
problemática se expande. É também um período de mudanças qualitativas para
o interior da teoria operaísta, Negri começa a publicar sobre o keynesianismo e
o Estado-plano, além de passar a abordar a ideia de operário-social como
sucessor do operário-massa do operaísmo clássico; a teoria da reprodução
social e o feminismo a ela ligado, como na obra de Mariarosa dalla Costa,
passam a analisar a esfera da reprodução social, saindo do trabalho produtivo
para ir ao trabalho reprodutivo. Outra novidade foi a expansão do movimento
estudantil, forçando os operaístas a pensarem além dos limites da fábrica.
Ocupações de universidades e demonstrações não
eram incomuns na Itália de meados da década de 1960. O
ciclo de lutas que se abriu no começo de 1967, porém, era
muito mais profundo em escala do que qualquer outra coisa
de antes, envolvendo em seu auge milhares de estudantes
universitários e secundaristas pela Itália urbana, e
rapidamente paralisando o sistema educacional. Vibrante e
combativo, o novo movimento era notável não apenas por seu
tamanho, mas também por seus esforços para redefinir a
própria noção de política, construindo formas de organização
– sobretudo, a “assembleia” permanente – que simples e
brutalmente varreram os órgãos estudantis tradicionais.232
A essa altura, Asor Rosa comentou que essa onda de lutas estudantis foi o
primeiro movimento de massas da Itália do pós-guerra fora do controle dos
partidos. Dessas lutas estudantis, emergiu o Movimento Studentesco, que, por
volta de 1969, já colapsou em dúzias de organizações regionais e locais, das
quais vale mencionar apenas as maiores, com expressão nacional: Lotta
continua, Potere operaio, Il manifesto, Avanguardia operaia. A perspectiva
política desses grupos começava a se inclinar decididamente para além do

232
WRIGHT, Steve. Op. Cit., p. 89.
133
leninismo; em particular o Potere operaio, que nesse período adotou uma forma
particularmente firme de antiparlamentarismo e desprezo pelos partidos e
sindicatos, o que motivou alguns, como Steve Wright, a compará-lo ao KAPD do
comunismo de conselhos alemão da década de 1920: ainda formalmente
alinhado ao bolchevismo, mas apenas isso.
O momento posterior ao Outono Quente levou a uma intensificação dessas
tendências. Muitos grupos da ala radical do operaismo, em particular Potere
Operaio e Lotta continua, chegaram à conclusão que o fracasso do movimento
de colocar uma ameaça decisiva ao poder do capital naquele ano exprimia uma
necessidade de romper com a tradição política da Terceira Internacional. Talvez
a diferença fique clara citando um trecho de um texto publicado pela Potere
operaio em 1973:
Disse um operário da FIAT-Mirafiori:
“Essa ocupação é diferente daquela que os
trabalhadores fizeram em 1920. Em 1920 eles disseram,
“vamos ocupar, mas vamos trabalhar, vamos mostrar que
sabemos gerir a produção nós mesmos”. As coisas são
diferentes hoje. Na nossa ocupação, a fábrica é o ponto de
partida para a organização revolucionária dos trabalhadores
– não um lugar pra trabalhar!”233

3.3 – Declínio do operaísmo e Autonomia operaia (1973-1979)


No período 1973-1974, o contexto político dentro do qual
o movimento havia se desenvolvido começou a desintegrar.
Em uma curta janela de tempo, houve múltiplas rupturas no
movimento, agudas mudanças de perspectiva política e
mudanças nas próprias condições do conflito mesmo. Essas
mudanças se deviam a um número de fatores. O primeiro era
a mudança na política do Partido Comunista, que agora
percebia o fechamento de possibilidades a nível internacional,
tornando necessária uma “solução política” imediata para os
distúrbios sociais dentro dos limites das condições dadas.234
Os termos do operaísmo se transformaram rapidamente a partir do refluxo
do movimento de 1967-1972, a principal mudança sendo o desaparecimento das
perspectivas de “usar” os órgãos oficiais já existentes dos partidos e dos

233
Italy, 1973: workers’ struggles in the capitalist crisis, Potere operaio, 1973.
Disponível em: https://libcom.org/article/italy-1973-workers-struggles-capitalist-crisis-
potere-operaio.
234
CASTELLANO, Lucio, et al.; Do you remember the Revolution?, 1983, in HARDT,
M; VIRNO, P. Radical Thought in Italy, Minneapolis: University of Minnesota, 1996, pp.
225-240.
134
sindicatos, bem como de reorganizar a classe trabalhadora em nível nacional,
em um partido ou outro órgão que agisse como tal. A tese da fábrica social,
levantada pela primeira vez dez anos antes por Tronti, foi retomada, agora com
outro nível de seriedade e percebendo as implicações mais claras das
transformações pelas quais passara a sociedade italiana: o desaparecimento da
fábrica enquanto tal dentro da fábrica social começava a apagar a centralidade
do operariado industrial que era tão fundamental para definir o operaísmo em
seu período clássico.
Como diria mais tarde Sergio Bologna235, o operaísmo propriamente dito
era um produto do Fordismo, dependia dele para se manter pois era ele seu
objeto de análise e intervenção. O conceito de operário-massa no qual se
assentava toda a teoria operaísta dos tempos de Classe operaia e Potere
operaio era a composição de classe correspondente à organização fordista do
processo de produção. O fim do Fordismo, portanto, significaria logicamente o
fim do operaísmo.
Se as teses centrais que estruturam a teoria e a política do operaísmo
haviam sido delineadas por Mario Tronti, na fase seguinte o papel recaiu sobre
Antonio Negri, que desde 1968 delineava a imagem da nova composição de
classe: o operário social. Agora, a visão era de que o sujeito político possível de
qualquer movimento não se encontrava mais em um locus privilegiado, antes
podia agora ser encontrado em qualquer ponto da sociedade que se sujeitasse
à crescente expansão da disciplina fabril de controle sobre a sociedade como
um todo.
Mais que isso, a perspectiva portanto não podia mais nem ter como objetivo
a centralização ou totalização de um movimento para uma reorganização da
sociedade. A derrota política que vinha sendo sofrida intensificou a negatividade
inerente às formas de organização política e muitos dos espaços ocupados pelo
movimento agora se entendiam em termos de localismo. Havia nisso uma
particular influência do novo movimento feminista:
O movimento feminista, com suas práticas de
comunalismo e separatismo, sua crítica da política e do poder,
sua profunda desconfiança de qualquer representação “geral”
e institucional das necessidades e dos desejo, e seu amor
pelas diferenças, era emblemático dessa nova fase do
movimento. Ele serviu de inspiração, explícita ou
implicitamente, para os vários itinerários da juventude
proletária de meados dos anos 70. O referendo sobre o

235
Workerism beyond Fordism: on the lineage of Italian workerism, 2014. Disponível
em: https://viewpointmag.com/2014/12/15/workerism-beyond-fordism-on-the-lineage-
of-italian-workerism/.
135
divórcio, em 1974, deu a primeira indicação da tendência que
veio a ser chamada “autonomia do social”.236
Ao longo de textos como A crise do Estado-plano e Marx além de Marx,
Negri representou na forma mais acabada essa nova forma de entender o
movimento comunista pela perspectiva do pós-operaísmo. Ao invés de uma luta
na qual a classe trabalhadora tenta se apropriar do capital e, então, por meio de
sua ditadura sobre ele faz cessar a valorização, tornou-se uma questão de
separatismo, de abandonar o processo de trabalho. Como o trabalho vivo era o
lado ativo do capital, o comunismo passou a ser pensado como a transição pela
afirmação imediata da diferença entre o capital e ele. Agora a autonomia se
tornava o refúgio imediato do movimento da classe operária, não uma parte do
processo de transição. Daí Negri dizer: não era tanto pensar a transição como
comunismo quanto o comunismo como transição. A autonomia era o próprio
comunismo. Sobre algumas consequências dessa nova perspectiva, falarei no
capítulo 5, sobretudo com relação ao conceito de alternativismo político.
Há várias maneiras de entender o percurso tomado pelo operaísmo a partir
das derrotas que sofreu – 1969, 1972, 1977 – e as análises feitas de dentro, pelo
próprio operaísmo quase sempre vão preferir enxergar que diante de diante dos
obstáculos eles souberam seguir pela via correta. Porém, acredito que seja mais
preciso ver no operaísmo um processo de internalização da derrota; isto é, de
conversão da derrota política em derrota teórica, inclusive de uma involução.
Isso não seria inédito: no fundo, a teoria do “socialismo em um só país” era a
internalização teórica e formalização da derrota sofrida pela classe proletária em
levar a revolução para além de um só país; o limite era transformado em virtude,
uma espécie de identificação com o sintoma. Mas, claro, isto porque os limites a
que consegue chegar o proletariado frequentemente se tornam armas contra ele
próprio, se tornam o ponto de partida da contrarrevolução. Assim também foi
após a Segunda Guerra Mundial, quando órgãos e aparatos conquistados pelos
trabalhadores no processo da luta contra o fascismo foram convertidos em
instrumentos do Estado para integrar e desorganizar a classe, absorvê-la ao
plano do capital. Talvez o grande erro dos militantes daquela época tenha sido
insistir no otimismo inerente ao princípio básico do operaísmo de que a classe
operária tem sempre a iniciativa do desenvolvimento capitalista no longo prazo,
que ela seria, no fundo, o verdadeiro sujeito. Se é mesmo assim, não existe
opção senão aceitar as derrotas como fatos e explicá-los como “recomposição
interna” da classe: a derrota do proletariado em oferecer uma solução política
geral e destruir o Estado burguês – sendo desarticular e decomposto no
processo – é convertida em uma vitória parcial, cujos frutos acabaram não sendo
aproveitados, e a autonomia, o isolamento, a fragmentação passam a ser
afirmados como princípio de luta. Mas, não há muito horizonte nisso.
Acredito que a crítica ao operaísmo que sugiro aqui está, grosso modo, em
continuidade com a avaliação crítica feita em 1980 por Raffaele Sbardella, em

236
Ibid, p. 231.
136
seu texto A NEP do Classe operaia237. Sbardella volta até o momento em que o
jornal Classe operaia foi fundado pelos dissidentes da revista Quaderni Rossi
com base no princípio básico de Tronti da centralidade da subjetividade operária;
para ele, o problema já estava ali, a semente do percurso final do operaísmo –
não como uma essência que meramente se expressou nas décadas seguintes,
mas como a base da qual os operaístas em geral nunca se separaram e que,
por isso, determinou como eles reagiriam aos eventos das lutas dos anos 60 e
70. De uma forma bastante dura, inclusive, Sbardella diz que o fundamento do
pensamento de Tronti era idealista, fundamentalmente Gentileano, baseado na
absolutização da Subjetividade, de fato em sua hipostatização, sobretudo na
forma em que Tronti concebe o partido como entidade monolítica que encarna a
classe em si, sem a separação que era fundamental para Lênin para não apagar
a subjetividade da própria classe. Em suma, um partido que materializa a classe,
partido e classe reunidos como identidade fechada.
Esse lado, o lado fraco e idealista do operaísmo, e de Tronti em particular,
não desmerece com isso o lado forte das pesquisas feitas naqueles anos
conturbados por esses militantes revolucionários. A descoberta de um conceito
científico como composição de classe, por exemplo, que, à diferença do conceito
trontiano de partido, nos afasta do idealismo (do conceito de “consciência de
classe”) e permite entender as descontinuidades da subjetividade da classe que
nunca existe fora da História e da sociedade mesma, mas é constituída dentro e
pela luta de classes. É esse lado do operaísmo a que não se pode renunciar.

237
The NEP of Classe operaia, 1980. Disponível em:
https://viewpointmag.com/2016/01/28/the-nep-of-classe-operaia/.
137
Capítulo 4 –
Um althusserianismo italiano

4.1 – Gianfranco La Grassa


Na Itália da década de 1970, em que a hegemonia da ortodoxia historicista
do PCI havia sido finalmente quebrada, desenhava-se, agora, um antagonismo,
pois havia, enfim, sido formada outra tradição não menos italiana com o
operaismo. Entretanto, o início do refluxo de 1972-73 levou à decomposição do
operaismo propriamente dito, o início da transição à Autonomia, e uma grande
dispersão do pensamento marxista, assim como o recebimento de novas
influências de fora. Consolida-se assim espaços influenciados pelo
situacionismo francês – seus aderentes italianos ficaram conhecidos como pro-
situs -, mas também pelo althusserianismo. Além de nomes mais conhecidos do
althusserianismo italiano, como Maria Antonietta Macchiocchi ou Cesare
Luporini, discípulos ortodoxos, foi Gianfranco La Grassa um dos mais inovadores
e originais continuadores da problemática althusseriana 238.
Olharemos aqui tão somente para o período do trabalho de La Grassa que
convencionou-se chamar de “marxismo crítico” e que compreende, mais ou
menos, o decênio 1972-1982. Nesse período, a matriz do pensamento
lagrassiano vai, por um lado, colocar-se simultaneamente contra o historicismo
togliattiano e o operaísmo, e, por outro, sorver influências, além do
althusserianismo, dos escritos de Charles Bettelheim – sob quem La Grassa
estudou em Paris, em 1970-71 – e do marxismo-leninismo de corte maoísta que
chegara à Itália com os ventos da Revolução Cultural 239. Costanzo Preve, que
se tornaria de certo modo discípulo de La Grassa, chega mesmo a dizer que este
poderia ser considerado como expoente do “maoísmo teórico” na Itália, juntando
um lado filosófico de Althusser com um econômico do Bettelheim.
No começo dos anos 80, La Grassa foi o principal nome na formação do
“Centro de Estudos do Materialismo Histórico”, do qual participaram Maria
Turchetto, Costanzo Preve, Augusto Illuminati, Mimmo Porcaro, entre outros.
Vinha orbitando grupos marxistas-leninistas extraparlamentares desde seu
afastamento do PCI, em fins da década de 60, mas abandona-os também nos
anos 80. Sua perspectiva já vinha se movimentando, no interior do marxismo,
para privilegiar uma concepção de racionalidade estratégica dos agentes
intercapitalistas na concorrência e organização produtivas – período designado
sob o conceito de “capitalismo lavorativo” –, mas no começo da década de 90

238
Para todo o trecho que segue, introduzindo La Grassa, amparei-me muito em:
PREVE, Costanzo. Una introduzione al pensiero marxista di Gianfranco La Grassa.
Disponível em: http://www.kelebekler.com/occ/lagrassa1.htm.
239
Em si, nada estranha nessa aproximação, de Althusser com Bettelheim e com o
Maoísmo, visto que na França também ocorreu, basta lembrar das origens do
pensamento de Alain Badiou ou do trabalho de Robert Linhart sobre o taylorismo.
138
ocorre a ruptura definitiva, La Grassa abandona o marxismo, passando a analisar
em termos sociológicos e geopolíticos a atuação dos agentes em nível
estratégico para a reorganização da sociedade no capitalismo
contemporâneo.240
Assim, o foco aqui recairá sobre os trabalhos escritos por La Grassa entre
1973 – ano de Struttura economica e società – e 1980 – quando escreve Il valore
come astrazione del lavoro –, pois os livros publicados posteriormente já se
inscrevem em outro paradigma teórico e conceitual. Nesse período sob análise,
a matriz teórica de La Grassa, ao integrar a problemática teórica do
althusserianismo, a análise econômica de Bettelheim e as questões e
preocupações políticas do maoísmo (especificamente aquela ala do maoísmo
europeu que olhava para o que havia de novo e subversivo na experiência da
Revolução Cultural, e não para o maoísmo como reafirmação do stalinismo
contra Khrushchev), passa a operar uma releitura e reconstituição das categorias
fundamentais da crítica marxiana da economia política a partir do ponto de vista
da transição ao comunismo. Com isto se quer dizer uma nova e específica visão
da transição ao comunismo, isto é, a visão da primazia das relações de produção
e da não neutralidade da técnica no processo de produção imediato, a
necessidade de uma crítica determinada da divisão social do trabalho – o
paradigma da Revolução Cultural.
O que as intervenções de Mao e a prática da Revolução
Cultural em certa medida permitiram conhecer - e nisso
podemos ver um verdadeiro retorno à inspiração originária de
Marx - é que não é suficiente para a ultrapassagem do
capitalismo a simples transferência da titularidade dos meios
de produção da burguesia privada para o Estado, porque o
capital não é uma relação jurídica, uma relação de
propriedade, mas uma relação social de produção, valor que
se valoriza, como diz Marx, de modo que o seu fim depende
da cessação do processo de valorização. Para que isso possa
ocorrer é necessário que os trabalhadores tenham o controle
efetivo do processo de produção, isto é, que eles não mais
estejam separados dos meios de produção, o que significa
superar a divisão entre o trabalho manual e o trabalho
intelectual e superar a divisão entre as tarefas de direção e as
tarefas de execução no processo de trabalho, permitindo-lhes

240
Ainda que não seja do escopo desse trabalho, sinto necessário clarificar que o
afastamento de La Grassa e alguns de seus colaboradores, como Preve, do marxismo
foi mais do que uma ruptura teórica, foi também política e social. Desde os anos 90,
fizeram uma virada para a direita, geralmente na forma de uma “terceira posição”
nacionalista. No caso específico de Preve, aproximou-se do comunitarismo italiano e
da Nouvelle Droite francesa de Alain de Benoist, e seus discípulos, como Diego
Fusaro, são, em nome da simplicidade da palavra, neo-fascistas.
139
a reapropriação das condições objetivas e subjetivas da
produção.241
Essa interpretação e influência da Revolução Cultural 242 no pensamento de
La Grassa e seus colaboradores foi decisiva, é a pedra de toque para
compreender todo o amplo trabalho desenvolvido por ele na reconstrução das
categorias marxianas, pois agora se orienta pela questão fundamental de como
podem os produtores, a classe trabalhadora, se apropriar das condições da
produção, suprimir o despotismo do capital na produção, fazer cessar o processo
de valorização. Sem com isso em vista, como horizonte da própria teoria, La
Grassa precisou fazer um retorno às categorias da mercadoria do valor,
propondo que “não existe produção em geral”, apenas produção dada, concreta,
específica – no caso, a produção capitalista. Consequentemente, ele quer tirar
qualquer possibilidade de categorias do modo de produção capitalista serem
compreendidas fora desse mesmo modo de produção, quer se desfazer de todo
transhistoricismo.
Assim, diz, por exemplo, que Marx estava equivocado ao falar em capital
antes do capitalismo, como quando fala em capital mercantil ou capital usurário.
Na verdade, La Grassa rejeita mesmo a ideia de que a forma-mercadoria ou o
valor existissem enquanto tais antes do capitalismo, pois “só existe valor onde
se produz mais-valor”, e apenas no capitalismo, quando a força de trabalho é
mercadoria, o mais-produto é apreendido como mais-valor, logo temos um
sistema fechado243. Esse fechamento se deve à análise propriamente dita das
formas sociais, que pode ser vista como mérito maior da análise lagrassiana,
pois a partir do processo de produção permite olhar precisamente para a
especificação dessas relações de produção na medida em que se objetivam e
reificam. Isso orienta, em parte, a rejeição lagrassiana do politicismo e outras
vertentes que perdem de vista aquilo que é especificamente econômico, que
passam então a confundir o político e o econômico, o estrutural e o
superestrutural.
Por isso, também, a crítica de La Grassa a ideia politicista corrente de que
a lei do valor não estaria mais operante no capitalismo avançado:
Os autores que falaram da decadência da lei do valor, e
da dominação do nível político-ideológico, não fazem outra
coisa que refletir, a um nível meramente fenomênico e
empírico (no sentido mais limitante desse termo), a

241
NAVES, Márcio Bilharinho. Mao – o processo da revolução. São Paulo: Brasiliense,
2005, p. 101.
242
Por sinal, sobre isso falou Maria Turchetto: “Precisou-se chegar à Revolução
Cultural para encontrar, depois de tanto consenso em torno ao taylorismo, as primeiras
tentativas de produzir uma crítica da divisão capitalista do trabalho”, cf. TURCHETTO,
Op. Cit, p. 7.
243
LA GRASSA, Gianfranco; TURCHETTO, Maria. Dal capitalismo alla società di
transizione, Milão: Franco Angeli, 1978, pp. 14-15.
140
transformação das formas da circulação. Como Marx criticou
os economistas clássicos por sua caída no “fetichismo da
mercadoria”, hoje podemos com bom direito criticar muitos
marxistas (ou pseudo) contemporâneos por seu fetichismo do
político e do ideológico (ou, em certos casos, fetichismo do
dinheiro, do capital monetário) 244
Visível aqui a possibilidade de se extrair da reflexão de La Grassa uma
explicação para a decomposição do operaísmo e sua transformação em
autonomismo ao longo da década de 1970, um desenvolvimento que deve ser
sempre visto no pano de fundo da própria escola lagrassiana. Assim, a
incompreensão da transformação de formas de circulação produz a confusão
que dissolve as diferenças entre o político-ideológico e o especificamente
econômico, permitindo que as relações econômicas sejam tomadas por relações
políticas, o avanço do politicismo, a lei do valor inoperante e sob controle. Urge,
então, desfazer as confusões que permitiram esse mascaramento.
O valor, diz La Grassa, é a forma da conexão social específica ao modo de
produção capitalista. Todavia, ele não se realiza apenas pela circulação, que é
apenas o lado extrínseco da conexão social, correspondente ao mercado, à
concorrência intercapitalista. Sobre essa conexão extrínseca, La Grassa
aproveita para fazer outra crítica imputável ao autonomismo: a de ignorar os
conflitos entre capitais privados, concebendo assim de um “cérebro social” seja
em um capital social global imediatamente dado, seja no Estado. Pelo contrário,
essa unidade entre os agentes econômicos separados, entre os capitais
privados, não é realizada senão pela concorrência e pelo conflito entre eles,
nunca de forma unívoca, estável, monolítica 245. Assim, fica impossível conceber
a luta de classes, como acabam por fazer certos pós-operaístas, como uma luta
entre um grande Capital subjetivado, consciente e uniforme e um grande
Trabalho, igualmente subjetivado, consciente e uniforme.
Conceber o Capital e o Trabalho como esses grandes sujeitos conscientes
causa também confusões adicionais sobre a luta de classes. Destaca La Grassa:
Todavia, é sobretudo grave a contínua confusão (e
comistão) entre conflitualidade interna ao campo da
reprodução das relações capitalistas (enquanto reprodução
dos nexos circulatórios da distribuição das atividades e dos
produtos) e conflitualidade antagonista entre as classes pela
saída do modo de produção capitalista. A conflitualidade
implicada no mecanismo conectivo – sendo este reduzido à
síntese imediata (e não internamente articulada) do Comando

244
LA GRASSA, Gianfranco. Il valore come connessione sociale, in Lavoro scienza
potere, Milão: Feltrinelli, 1981, p. 114.
245
Ibid, p. 119.
141
capitalista – vem ipso facto pensada como antagonismo de
classe.246

Ou seja, encontra-se aqui a crítica de La Grassa ao foco autonomista na


esfera da reprodução como locus da luta de classes, produto do conceito de
operário-social. Ao mesmo tempo, ao diferenciar entre lutas imanentes e
transcentes ao modo de produção capitalista, La Grassa oferece inclusive um
quadro teórico para generalizar a crítica que Lênin já fizera, desde O que fazer?,
ao economismo247 e à consciência trade-unionista.

A este gênero de conflitualidade (interna ao espaço da


conexão social enquanto esfera da circulação, da interação
entre “sujeitos atômicos”) pertence inclusive a luta dos
operários contra o capital enquanto não sair de seu âmbito
trade-unionístico, seja a nível de fábrica (salários, ritmo e
condições de trabalho, emprego de tecnologia, informações
sobre a gestão, etc), seja a nível social mais amplo (pensões,
assistência, etc).248

O emparelhamento dessas teses com Lênin foi notado, por exemplo, por
Mimmo Porcaro, que, em artigo dedicado ao pensamento de Charles Bettelheim,
de quem os lagrassianos receberam influência por sua crítica do economismo,
diz:

Deve-se notar, de fato, que a “dedução” do partido


oriunda da crítica anti-economicista permite fundar a
necessidade do partido e, sobretudo, a distinção entre este
último e a classe, de maneira mais rigorosa do que deixa de
fazer a teoria (já que na prática essa diferença está sempre
presente) do dirigente bolchevista. Questionando os supostos
efeitos positivos da organização de fábrica sobre a classe
operária e, ao mesmo tempo, a ideia da neutralidade da
ciência e dos aparelhos em que ela é produzida, a posição
anti-economicista torna impossível qualquer remoção
idealista da diferença entre partido e classe, fundada, seja na
exaltação do “papel objetivo do proletariado”, seja na idéia
que o partido, enquanto lugar de elaboração da verdade
científica, represente ipso facto os interesses gerais da classe

246
Ibid, p. 119.
247
“Economismo” no contexto do livro de Lênin não tem o mesmo sentido que
economismo na crítica feita por Althusser, Bettelheim, La Grassa, etc. No texto de
Lênin, economismo era a corrente política que privilegiava as lutas imediatamente
econômicas da classe. Porém, não parece exagero dizer que a formulação a que
chega La Grassa permite explicar os economistas russos com uma crítica teórica mais
geral do economismo enquanto tal.
248
Ibid, p. 120.
142
e não esteja submetido às leis que regulam a reprodução
burguesa do conhecimento. 249

A essa altura vale ressaltar uma certa similaridade, que não pode ser
ignorada, entre La Grassa e Bordiga, talvez mesmo um certo a um olhar objetivo
que se esqueceu durante a época operaísta que separa os dois. Bordiga, como
pioneiro na Itália do estudo concreto do processo de produção, antecipou,
portanto, não apenas o operaísmo, como já se mencionou, mas também La
Grassa. À diferença, entretanto, do operaísmo, Bordiga não subjetivava o
processo de transformações técnicas como puro produto da luta de classes, pelo
contrário, sua perspectiva era auto-intitulada determinística. Daí um foco
persistente na teoria bordiguiana de que o partido, não obstante sua centralidade
no processo revolucionário – ao ponto de sugerir que a ditadura do partido é a
forma da ditadura de classe –, não é um verdadeiro sujeito da história, vez que
sua formação não é produto da vontade, mas de determinações objetivas do
processo de luta de classe, correspondente a um momento histórico
revolucionário e no qual esse partido poderá intervir. Ou seja, já em Bordiga
encontra-se uma compreensão de ligação mútua entre partido e classe como
desenvolvimento de uma relação. É a mesma perspectiva aqui retomada por La
Grassa e Porcaro:
Antes de tudo, essa “fundação” da teoria do partido
implica que nem a classe, nem o partido, sejam o “sujeito” da
revolução: o sujeito revolucionário é, antes de mais nada, a
relação que se estabelece entre os dois termos, sem que em
nenhum deles resida a garantia metafísica da “justeza” desta
relação, na medida em que todos eles estão submetidos
intimamente à dinâmica capitalista.250
Também ecoa o pensamento de Bordiga na recusa de La Grassa em ver
nas lutas econômicas um potencial inerentemente revolucionário e em precisar
sempre separar o econômico e o político. Bordiga reagia, a partir dos anos 20,
contra o quase conselhismo da corrente ordinovista de Gramsci, cujo foco era a
tomada das fábricas pelos conselhos, sugerindo ao contrário a necessidade do
a partido para a tomada do poder e a imposição da ditadura de classe,
perspectiva a partir da qual desenvolveu a sua crítica do imediatismo e de ideias
autogestionárias, como vimos. La Grassa, de maneira similar, tornou sua crítica
do economismo uma crítica do trade-unionismo, uniu Althusser-Bettelheim a
Lênin.
Para resolver esse dilema e voltar a colocar no lugar as concepções que
os autonomistas confundiram, La Grassa coloca prioridade em analisar as
relações produtivas dentro do próprio processo de produção. Irônico que esse

249
PORCARO, Mimmo. Charles Bettelheim: um longo adeus, in Outubro, nº 5, 2001,
pp. 65-66.
250
Ibid, p. 66.
143
tenha sido, justamente, o primeiro passo do operaísmo, abandonado pelo
autonomismo em seguida. Assim, o argumento proposto é que, ao contrário da
concepção segundo a qual a reprodução garante a produção pela subsunção do
processo imediato de produção sob o processo de valorização, é a produção que
coloca os termos da reprodução, ao separar, dentro do próprio processo de
produção, produtores diretos e meios de produção, como um contínuo
aprofundamento da relação-capital, não bastando um aumento linear,
quantitativo, da massa do valor 251.
A partir desse ponto, La Grassa oferece mesmo uma certa periodização
histórica a partir das transformações do processo de produção. Há uma diferença
importante entre a expansão do capitalismo pela destruição de antigas formas
de produção pré-capitalista e a forma de expansão uma vez que esse
crescimento para fora não é mais possível e precisa ser transformado em
crescimento intensivo, ao invés de extensivo. Para La Grassa, esse
desenvolvimento intensivo toma a forma de intensificação da separação em
geral, não apenas entre produtores e condições de produção, mas do próprio
processo de trabalho, com a constante fragmentação e parcelização da técnica,
a qual é refletida na fragmentação crescente da sociedade mesma 252.
É a partir de reflexões como esta que La Grassa vai, progressivamente,
chegar à conclusão de que o capitalismo não condensa, concentra e realmente
proletariza toda a sociedade igualmente; na realidade, pensará ele mais tarde, o
capitalismo dispersa, desagrega e separa, tanto no polo do capital, quanto no do
trabalho, com o contínuo aparecimento de novos setores a partir de funções
antes integradas em outro processo de trabalho, mas que a revolução das
condições de produção mecanizou e transmutou, analítica e sinteticamente, em
novas composições do processo de trabalho. Mas, por ora, retorno ao argumento
original de La Grassa.
Essa lógica de La Grassa, mostrando que a valorização do capital só pode
acontecer na medida em que aprofunda a separação – tanto vertical, como
separação dos produtores de seus meios de produção, quanto horizontal, pela
dispersão da cadeia produtiva com novas divisões técnicas do trabalho e novos
agentes econômicos, novos capitais privados, em unidades produtivas isoladas
– ecoa, de certo modo, tanto Camatte quanto Pachukanis. Recorda Camatte na
medida em que enfatiza a necessidade do capital de dissolver todas as relações
que não sejam mediadas por ele mesmo, de separar todos os indivíduos e todas
as comunidades anteriores a ele mesmo e passar a ser o interstício da sociedade
e, eventualmente, a própria sociedade. A Pachukanis, a seu turno, assemelha-
se pela ênfase no fato de que o capital só pode existir enquanto mediação de

251
LA GRASSA, Il valore come connessione sociale, in Lavoro scienza potere, Milão:
Feltrinelli, 1981, pp. 131-132.
252
Ibid.
144
sujeito separados, pelo que a extração violenta e direta do mais-trabalho seria a
negação da forma especificamente capitalista de produção.
O valor de troca deixa de ser valor de troca, e a
mercadoria deixa de ser mercadoria, se a proporção de troca
é definida por uma autoridade situada fora das leis imanentes
do mercado. A coerção, como ordem de um homem dirigida a
outro e reforçada pela força, contradiz a premissa
fundamental da relação entre possuidores de mercadorias. 253
A diferença mais importante, entretanto, é que, enquanto Pachukanis
concebe a separação como uma relação que se desenvolve no mercado, ou seja,
como a troca da mercadoria força de trabalho pelo salário, a quota do dinheiro
que o capitalista avança, transformando-a em capital, La Grassa entende essa
separação como se desenvolvendo na própria técnica, no próprio processo de
produção imediato, que é a base e a explicação da separação ao nível da
circulação – e não o contrário.
Como implicação dessa abordagem de La Grassa, aparece a importância
que passa a ser posta na reformulação do conceito de trabalho abstrato. La
Grassa rejeita definitivamente concepções fisiológicas de trabalho abstrato,
querendo mostrar, pelo contrário, que o trabalho abstrato é produto histórico e
especificamente social de certa organização do processo de produção. Não é
um aspecto natural, nem eterno, mas resultado da contínua despossessão do
proletário mesmo já no interior da produção capitalista, pelo qual a atividade do
trabalhador é continuamente abstraída e tornada em movimentos inespecíficos,
fungíveis254, intercambiáveis, completamente regulados pelo maquinário. No fim,
o progresso capitalista, a acumulação, só pode continuar pela crescente e sem
fim expropriação dos trabalhadores, inclusive em seu domínio técnico 255.
Nessa toada, La Grassa chega a propor que o capital termina por separar
trabalho concreto do trabalho abstrato: o trabalhador individual em uma linha de
produção é o portador do trabalho abstrato, enquanto a objetivação em valor de
uso específico só é possível pela cooperação, o trabalho conjunto de todo o
trabalhador coletivo, logo, o trabalho concreto só se realiza como síntese dos
trabalhos abstratos, pela organização, mando e ciência do capital, obra sua 256.
De todo modo, já estamos em condições de destacar, ainda que bastante
preliminarmente, as principais contribuições do pensamento lagrassiano. Este já

253
PACHUKANIS, Evguiéni. A teoria geral do direito e o marxismo e Ensaios
escolhidos (1921-1929). São Paulo: Sundermann, 2017, p. 174.
254
Outra semelhança com Camatte, vez que este acentuava a luta do capital para
“fungibilizar” tudo sob seu domínio, para esmagaro valor de uso sob o valor de troca.
255
LA GRASSA, Gianfranco. Lavoro “concretto” e lavoro “astratto”, in: Il piccolo Hans,
V, nº 19, 1978, p. 83.
256
Esses conceitos, friso, são ainda da fase marxista de La Grassa, mas não é difícil
ver como tais colocações levaram à concepção tardia de fim da luta de classes e
privilégio estratégico da estrutura produtiva como um todo.
145
não deixa espaço algum para vários mitos de boa vontade do marxismo
tradicional: opor mercado e planificação, querer fundar uma sociedade justa
sobre o valor de uso contra o valor de troca (e, com isso, a ideia, que aparece
em Negri, na forma da “autovalorização operária”, da satisfação imediata da
necessidade como revolucionária, transcendente), bem como a ideia do
capitalismo como sociedade “invertida” ou “desviada”. Por outro lado, também já
óbvias aparecem as limitações do pensamento lagrassiano, fronteiras estas que
acabaram por derrota-lo: um foco privilegiado quase imposto de fora para dentro
na produção como “base”, talvez esquecendo, no processo, as implicações da
apropriação althusseriana da sobredeterminação no processo social. La Grassa
prefere ver a circulação sempre como epifenômeno, determinado
unidirecionalmente pela produção. Em última instância, as proposições clássicas
de La Grassa se mostraram incapazes, por exemplo, de antecipar ou
compreender as transformações do capitalismo após a reestruturação dos anos
70, sobretudo sua visão da contínua expropriação do trabalhar em movimentos
sempre mais abstratos e inespecíficos257. Curiosamente, as conclusões de La
Grassa também foram o abandono de seu ponto de partida: se antes partia da
rejeição do economismo para reincluir na produção a luta de classes, terminou
por negar a luta de classes, por ver a produção como pura técnica, justamente o
que ele buscara refutar.

4.2 – Maria Turchetto e sua crítica do operaismo


Para evidenciar o que separa a abordagem proposta por Gianfranco La
Grassa daquela outra que também investigou o processo de produção imediato
e avançou uma crítica da técnica, o Operaísmo, é útil olhar para a crítica deste
movimento proposta por Maria Turchetto, uma importante continuadora das
teses lagrassianas. Como se verá, nesse processo surgem também as
contribuições originais e próprias de Turchetto. Ainda que toda a escola
lagrassiana, na realidade, tivesse uma hostilidade para com o operaismo – que
culmina, por exemplo, no tratamento dispensado por Costanzo Preve a eles
como “ridículos” e parte de um “espetáculo” da instituição de esquerda na Itália 258
–, foi Turchetto que se debruçou mais atentamente sobre o tema, em particular
no excurso ao artigo L’organizzazione del lavoro nella dinamica attuale del modo
di produzione capitalistico259, de 1981, cuja temática mais tarde foi retomada no
artigo From “mass worker” to “Empire”: the disconcerting trajectory of Italian

257
Toda a organização de formas de produção pós-fordistas no setor industrial, como
o Toyotismo e o Volvismo, foi no sentido contrário, enfatizando autonomia do
trabalhador e altíssima qualificação da mão de obra. No caso da Volvo, chegou ao
ponto dos operários circularem, em rodízios, por toda a escala de produção,
conhecendo o processo inteiro.
258
PREVE, Costanzo. Riflessioni critiche sul profilo teorico di Gianfranco La Grassa.
2008. Disponível em: https://www.ariannaeditrice.it/articolo.php?id_articolo=21600.
259
Lavoro Scienza Potere. Milão: Feltrinelli, 1981.
146
Operaismo260 e apareceu em português com o título Antonio Negri e o triste fim
do “operarismo” italiano261.
O fato de se tratar de uma crítica – que não se pretende misericordiosa ou
covarde – não impede Turchetto de reconhecer, em primeiro lugar, os méritos
do operaismo e a base comum a ele e à escola lagrassiana. No artigo de 2008,
ela escreve que o trabalho de Panzieri constituíra uma verdadeira “revolução
copernicana”, que recuperou aspectos da análise marxista até então ignorados
– sobretudo o Fragmento sobre as Máquinas, nos Grundrisse, e variados temas
da parte IV do volume I do Capital –, que assim se superava a ideia do
capitalismo como conjugação de propriedade privada, numa acepção
verdadeiramente jurídica, e mercado; ou seja, com Panzieri, passou-se a olhar
para o processo de produção em suas modalidades concretas de distribuir e
organizar o trabalho para a otimização da extração de mais-valor. Mas, as
críticas já estavam postas de forma bastante sintética no texto de 1981:
É preciso dizer que a única tentativa de conectar a
análise do processo de trabalho ao problema da acumulação
de capital é o operaísta. Isso acabou, todavia, assumindo uma
conotação exasperadamente subjetivista: o desenvolvimento
capitalista se torna função das lutas operárias, as inovações
técnicas e organizativas do capital são interpretadas
univocamente como resposta subjetiva e consciente da
classe capitalista às conquistas da classe trabalhadora. O
resultado é uma imagem metafísica da luta de classes e de
seus protagonistas: uma “vontade de potência” do capital
explícita e unívoca, que cancela todo aspecto de
conflitualidade intercapitalista, à qual se contrapõe uma
igualmente unívoca “resistência” operária, superando os
problemas da composição de classe, da estratificação social,
da consciência e da estratégia revolucionária. O resultado
“politicista” – a ideia do exaurimento da lei do valor, a
teorização da transformação do comando capitalista em
domínio extraeconômico, puramente político – é a essa altura
inevitável.262
Nesse sintético parágrafo, Turchetto já havia encapsulado os resultados
possíveis do operaísmo. Por um lado, havia o caminho ao politicismo voluntarista
de Tronti, que desde meados da década de 1970 buscava casar Lênin e Schmitt
– a dissolução de um conceito do especificamente econômico é justamente o

260
BIDET, Jacques; KOUVELAKIS, Stathis. Critical Companion to Contemporary
Marxism. Leiden; Boston: Brill, 2008, pp. 285-308.
261
Em Crítica Marxista, nº 18, 2004, pp. 84-99.
262
Lavoro Scienza Potere. Milão: Feltrinelli, 1981, p. 13.
147
que alinha Tronti à perspectiva não-juspositivista de Schmitt263, isso pode ser
atribuído à ausência, na teoria operaísta, da crítica, presente em Marx, das
formas sociais fetichistas, pelas quais as relações sociais são objetivadas; em
vez disso, todos os problemas podem ser dissolvidos em “relações humanas”,
“relações de poder”, e, enfim, na indeterminação a-histórica e a-social. Por outro,
restava o populismo igualmente voluntarista do Negri tardio, cuja perspectiva,
mais especificamente, pode ser descrita por outro trecho do texto de Turchetto:
A incapacidade teórica (e a dificuldade prática) de
produzir a crítica do modelo de organização capitalista do
trabalho posterior ao taylorismo acaba por conduzir à sua
aceitação apologética. 264
Para compreender a que ponto isso se aplica a Negri é importante lembrar
que nos desenvolvimento mais tardios de sua obra, em particular com a
retomada do conceito de “comuns”, Negri começou a enxergar a dissolução do
fordismo-taylorismo no estabelecimento da fábrica social como a abertura de
espaços abandonados pelo capital e nos quais voltava a aparecer a possibilidade
do comunismo imediato como autonomia – bizarramente, precisamente no
momento mais avançado da subsunção real do trabalho sob o capital, Negri
volta a colocar o problema em termos da acumulação originária, de espaços não-
capitalistas cercados pelo Império265. Assim, Turchetto foi quase clarividente em
sua crítica, afinal, em 1981 Negri, preso, mal havia começado a estudar
seriamente Espinosa, publicara Marx além de Marx dois anos antes, de modo
que os traços que seu pensamento tem hoje ainda estavam por definir.
Mas em quais problemas conceituais específicos Turchetto assenta sua
crítica? Diz ela que o limite do operaísmo se apresentava pela convergência de
suas “absolutizações”: por um lado, o operaísmo tomava o taylorismo como
forma final da organização capitalista do trabalho no processo de produção
imediato; por outro, o operaísmo assumia a fábrica como forma por excelência e
final da exploração capitalista, como forma de organização capitalista da
sociabilidade. Daí que os operaístas tenham ficado desorientados quando 1) o
taylorismo chegou ao fim sem que seu sucessor fosse o comunismo, mas, sim,
outra forma de organização capitalista do trabalho, outra onda de reestruturação
e subsunção real do trabalho sob o capital; 2) iniciou-se a desindustrialização,
o crescimento do setor de serviços, da importância relativa do capital fictício, etc,

263
Ver MASCARO, Alysson Leandro. Filosofia do Direito. São Paulo: Atlas, 2019, p.
357-373.
264
Lavoro Scienza Potere. Milão: Feltinelli, 1981, p. 17.
265
Esse problema a que chegou o autonomismo ganha tons ridículos em outro autor,
Franco “Bifo” Berardi, que, por exemplo, mesmo reconhecendo a ausência de
qualquer emancipação real na desregulação e “flexibilização” do trabalho desde o fim
do fordismo, ainda tenta apresentar a reestruturação capitalista desde 1968-1973
sempre sob a ótica da subjetividade operária e como uma vitória dos trabalhadores.,
cf. What is the meaning of autonomy today?, 2003, disponível em:
http://transform.eipcp.net/transversal/1203/bifo/en.html. Acesso em: 04/11/2022.
148
de modo que foi preciso concluir que havia uma extensão da fábrica para toda a
sociedade – o que, se soava agradável e elegante em sua arquitetura teórica,
gerava contradições insanáveis, pois, como bem diz Turchetto, a importância da
ênfase na fábrica era não permitir uma compreensão do capitalismo como mera
circulação mercantil na equivalência, mas esse mérito é perdido se se anula seu
oposto e o momento da equivalência desaparece, restando apenas o despotismo
da produção (o que, claro, para os operaístas foi mais motivo para ressaltar o
caráter político das relações de produção, às custas das considerações
econômicas das formas sociais).
Consequentemente, os conceitos de fábrica social e operário social que
surgem no período posterior a 1972 são, sobretudo, “mistificações consolatórias”,
menos conceitos concretos e científicos da nova realidade social e muito mais
“desculpas” para não retomar a análise do processo de produção imediato em
sua nova situação, após a nova reestruturação, em que começavam a despontar
as questões da robotização e da eletrônica. Ou seja, o operaísmo em
decomposição, de Negri, quer evitar fazer precisamente aquilo que havia feito o
operaísmo em ascensão, de Panzieri.
É neste ponto que podemos começar a passar daquilo que era a mera
crítica de Turchetto ao operaísmo para olhar para as contribuições específicas
da escola lagrassiana. Turchetto, em resposta aos erros do operaísmo, começa
a delinear uma teoria substituta, que não tenha os mesmos pontos cegos.
Enquanto os operaístas enxergavam as relações de classe na produção como
um combate entre dois polos monolíticos, unívocos e conscientes, Turchetto
ressalta que a organização técnica da produção mantém uma ligação íntima com
a circulação por ser o que define e determina a distribuição do trabalho social
entre os diferentes setores da produção social global. Em outras palavras, as
condições de extração do mais-valor assentam os termos das disputas
intercapitalistas e as relações de força entre capitais privados. Precisamente
invocando aqui a formulação conceitual de La Grassa, Turchetto diz:
(...) as condições de extração do mais-valor (e daí a
configuração técnico-organizativa do processo de trabalho),
mas estas últimas decidem as relações de força
intercapitalistas e as formas segundo as quais os diversos
capitalistas se relacionam reciprocamente.
(...) no processo de produção imediato do capital reside
a determinação profunda dos movimentos mediadores da
produção fragmentada. Em outras palavras, é possível
reconstruir as formas da circulação e da distribuição a partir
do processo de produção imediato (da análise das condições
de valorização e reprodução do capital enquanto relação

149
social de produção), enquanto o percurso inverso acaba
sendo conceitualmente incorreto. 266
Nesse nível começa o aspecto mais interessante da teoria avançada por
Turchetto. O objetivo é compreender o processo de produção imediato como
âncora do modo de produção capitalista sem perder as outras determinações do
movimento global da formação social. Necessário, portanto, repropor o próprio
conceito de modo de produção, que já não pode ser visto como a conjugação
exterior 267 , o encaixe, de relações de produção entendidas como circulação,
como troca, com um substrato “material” representado por uma noção
produtivista-tecnicista das forças produtivas, um encontro entre partes que não
se interpenetram e codeterminam. Ao contrário, deve-se buscar o modo de
produção capitalista, em todas as determinações de suas relações sociais, na
sua determinação em última instância no processo de produção imediato. A título
de exemplificação, Turchetto cita Balibar e sua proposição de uma compreensão
nova da transição do feudalismo ao capitalismo, menos como generalização das
relações de troca, mas, sim, como modalidade técnico-organizativa do processo
de trabalho específica, transformada a certa altura para condicionar as formas
sociais típicas do capitalismo. É aqui que Turchetto introduz a importância dos
conceitos de subsunção formal e real do trabalho sob o capital 268.
A compreensão que a escola lagrassiana exibe do conceito de subsunção
do trabalho é bastante discutível. A implicação mais direta é que o próprio
trabalho abstrato, enquanto substância do valor, não existiria antes da
subsunção real, e isto porque a escola lagrassiana, nessa interpretação, não
reconhece mesmo o modo de produção capitalista antes da subsunção real –
que seria a própria transformação do processo de produção imediato segundo
as formas e fins do capital para tornar o processo de trabalho em processo de
valorização, isto é, a subsunção do processo de produção de valores de uso à
produção de mais-valor e, com isso, o estabelecimento do capital (da relação-
capital, capital enquanto separação entre trabalhador e meio de produção) no
interior do próprio processo de produção imediato. Essa é uma questão maior
para a teoria marxista em geral e para a teoria marxista do direito em particular,
definir o momento em que surge o trabalho abstrato enquanto categoria social
praticamente válida (trabalho abstrato produtor de valor, não apenas enquanto
operação mental, e portanto transhistórica, de abstração) significa definir o
momento em que o direito burguês enquanto forma de contabilidade específica
do trabalho pelo tempo e pelo quinhão que lhe corresponde aparece, é definir o

266
Lavoro Scienza Potere. Milão: Feltrinelli, 1981, p. 23.
267
“(...) em uma concepção não-economista, não é concebível um nexo de
‘exterioridade’ entre forças produtivas – condições da produção – e relações de
produção”, TURCHETTO, Maria. As características específicas da transição ao
comunismo, in: NAVES, Márcio Bilharinho (Org.). Análise marxista e sociedade de
transição, Campinas: Unicamp, 2005, p. 9.
268
Lavoro scienza potere, Milão: Feltrinelli, 1981, p. 34.
150
próprio momento onde nasce a equivalência objetiva e a equivalência subjetiva
mediante a equivalência das mercadorias.
A concepção tradicional tem que a subsunção formal é o momento em que
o processo de produção é submetido ao capital, que passa a ter condições de
aumentar a extração de mais-valor absoluto justamente porque ele passa a estar
presente como direção do processo de produção. Quer dizer, a esse nível a força
de trabalho já aparece como mercadoria, a produção de mercadorias pode se
generalizar. A escola lagrassiana, por outro lado, entende que a visão tradicional
mantém uma relação meramente externa, não necessária entre produção e
circulação, argumentando que apenas com a subsunção real poder-se-ia
efetivamente falar da abstração do trabalho e, portanto, de sua conversão na
forma generalizada da mercadoria. Frise-se: essa “reconstrução” do conceito de
subsunção ocorre pela tentativa de dar uma ligação interna e necessária entre
produção e circulação, de modo que o momento em que a força de trabalho se
torna mercadoria deve ser antecedido pela reestruturação do processo de
produção imediato para separar as condições subjetivas e objetivas da produção.
Na medida em que essa separação rompe a relação entre o trabalhador e os
instrumentos específicos do seu trabalho, bem como sua antiga fixação em uma
função específica, a separação entre trabalhador e meio de produção também
aparece historicamente como o surgimento do trabalho abstrato enquanto
categoria praticamente válida, na terminologia de Marx, enquanto abstração real.
Segundo o entendimento lagrassiano, tal transformação do processo de
produção imediato é pré-condição para que surja a indiferença, para o
trabalhador, pelo trabalho concreto a ser desempenhado, pois agora o trabalho,
reduzido à sua dimensão abstrata, pode ser subsumido ao capital, o processo
de trabalho pode ser subsumido ao processo de valorização, a força de trabalho
pode aparecer para o trabalhador como valor de troca e para o capital como valor
de uso. Para a teoria crítica do direito, a consequência é que o direito enquanto
tal só pode existir a partir do momento da subsunção real do trabalho sob o
capital.
Continuemos com Turchetto. Esses fundamentos teóricos levam à seguinte
conclusão: a máquina e o comando capitalista da produção coincidem. Por óbvio,
disso não se tiram conclusões “neo-ludditas”, contra a tecnologia em geral, mas
sim a compreensão da determinação formal da técnica e da determinação
técnica das formas sociais. Agora, assim como esses conceitos aparecem, num
primeiro momento, usados na análise da transição do feudalismo ao capitalismo,
eles são revertidos para uma análise da transição ao comunismo.
Em outras palavras, a crítica da ideia de que a
superação do modo de produção capitalista pode consistir em
atribuir finalidade diferente para as tecnologias existentes não
pode desaguar em uma indicação para “abolir” a tecnologia
mesma. Mas agora colocam-se novos problemas. Não é mais
suficiente definir a máquina como “capitalista”, contentar-se
com aplicar esta etiqueta; é necessário perguntar-se por que,
em que sentido preciso, mediante quais modalidades

151
específicas a relação capitalista se incorpora na estrutura
material da máquina. E, ainda outra vez, deve-se referir ao
princípio da divisão do trabalho. A parcelização das tarefas é
de fato o pressuposto do maquinismo e a própria máquina
recebe sua marca capitalista na incorporação da
decomposição-reorganização do processo de trabalho
operada pelo capital. A máquina, isto é, é a objetivação da
divisão técnica do trabalho, e neste sentido preciso é, além
disso, objetivação do domínio capitalista que sobre a divisão
do trabalho se baseia.269
Mas, continua Turchetto, essa reestruturação não é um evento único; pelo
contrário, é um processo cíclico, o capital precisa continuamente retomá-lo,
continuamente, a cada novo ciclo é preciso voltar a decompor o processo de
trabalho e reorganizá-lo com nova técnica, nova divisão do trabalho recomposta
pelo capital – e cita Bachelard sobre o caráter não natural das atividades de
trabalho modernas270. Esse processo cíclico ou espiralado não pode ser tornado
em uma nova teoria historicista que produziria o ponto culminante em que tudo
se resolveria por si mesmo: a contrapartida da absolutização operaísta do
taylorismo era a ideia de que a certa altura a desqualificação dos trabalhadores
de suas habilidades teria produzido o trabalhador social ou o intelecto geral
capaz de reapropriar a produção em novo nível, estaria pronto o sujeito do
comunismo a partir da negação e destruição levados à cabo pelo capital. Contra
uma interpretação desse tipo, que recria internamente o historicismo, Turchetto
descreve o processo de reestruturação como reiteração cíclica das etapas de
subsunção formal e real, em que sempre há novo mais-valor absoluto (na forma
de intensificação da jornada ao eliminar ineficiências e momentos mortos do
trabalho) e de mais-valor relativo, com a aplicação propriamente dita do
maquinário e da ciência na produção. Assim, se o operário-massa aparece como
desqualificado em comparação com o artesão do passado, o operário-massa se
assemelha a um artista quando comparado com o operário de fases ainda mais
recentes, posteriores a novos ciclos de reestruturação.
Todas essas reflexões levam Turchetto a um ponto que a nós é
particularmente caro: a distinção entre divisão técnica e divisão social do trabalho.
A distinção entre divisão social e divisão técnica do
trabalho é traçada por Marx nas páginas dedicadas à
manufatura: a divisão do trabalho na unidade produtiva
singular é imposta despoticamente pelo plano do capital, a

269
Ibid, p. 35.
270
Que é um aspecto importante, pois enfatiza que sob a subsunção real do processo
de trabalho, as transformações técnicas não são mera imitação ou cópia do trabalho
tal como era antes, as máquinas não são antropomórficas, tudo é transformado.
152
divisão social do trabalho é imposta caoticamente e de forma
anárquica pelo mercado.271
Sublinho esse estágio da discussão de Turchetto porque, como pode ter
ficado claro desde logo, essa distinção é útil para a crítica do direito, ressoa por
homologia, ao menos, naquela distinção importante para Pachukanis entre
regulamentação técnica e regulamentação jurídica. Para Pachukanis não era
marca da regulamentação técnica a unidade de propósito? Pois, para Turchetto
é a marca da divisão técnica. Para Pachukanis não era característica da
regulamentação social o conflito, o litígio entre os sujeitos? Pois, para Turchetto
isso é típico da divisão social do trabalho. Para Turchetto a divisão do trabalho,
técnica ou social, aparece como forma de organização, de conexão social, do
particular com o universal e dos particulares entre si.
Temos portanto duas diversas formas de conexão:
despótica, rígida e “matematicamente” sincronizada no
interior do processo de trabalho singular (no processo de
produção de uma única mercadoria); exterior, aberta a
descontinuidades e mediações a nível social, no processo de
circulação das mercadorias (isto é, no processo de
recomposição da quota singular na qual é fragmentada a
produção capitalista global). 272
No terreno do despotismo da fábrica, a relação antagonista entre capital e
trabalho. No da circulação das mercadorias, da divisão social, o da
conflitualidade intercapitalista, uma relação, ainda que conflituosa, não
antagonista273.
Com um porém, contudo: Pachukanis olhava ainda para uma concepção
quase naturalística do processo de produção, olhava para o processo de trabalho
em geral; Turchetto olha para a subjetivação do capital nesses processos, como
tanto a unidade da fábrica quanto a anarquia do mercado dizem respeito ao
processo de trabalho subsumido no processo de valorização. E mais: a
compreensão de Turchetto da centralidade que adquire o processo de produção
sob a análise lagrassiana é transposta para as próprias categorias lógicas, vez
que a produção, terreno do conflito antagonista e não solucionável, é o campo
da negatividade, da não-identidade. A circulação, a divisão social, ao contrário,
é o campo em que os conflitos intercapitalistas podem ser resolvidos sem a
destruição das formas sociais existentes, é o momento da identidade - no
começo e no fim, mesmo que precise haver a separação no meio. Isso nos leva

271
Ibid, p. 49.
272
Ibid, pp. 49-50.
273
Vale citar que entre os lagrassianos, tanto quanto entre os althusserianos, certas
categorias lógicas são “emprestadas” de Mao Zedong. A noção de contradições
antagonistas e não-antagonistas que aparece aqui é um exemplo. Ver: MAO Zedong,
Sobre o tratamento correto das contradições no seio do povo. 1957. Disponível em:
https://www.marxists.org/portugues/mao/1957/02/27.htm.
153
de volta ao argumento da introdução: que Pachukanis, reagindo ao
substancialismo-fisiologismo caíra num formalismo-circulacionismo. Por óbvio,
formalismo e circulacionismo não são a mesma coisa, mas, em Pachukanis e
Rubin, convergem e se identificam pela homologia estrutural. Pachukanis
privilegia o momento da identidade e, portanto, da estabilidade da forma sujeito
de direitos. Como também já foi dito, não estava equivocado em relacionar o
direito diretamente à esfera da circulação, estava equivocado ao, nesse passo,
ignorar que a própria esfera da circulação não é senão momento, ainda que
necessário, da crítica marxista e que, portanto, era um equívoco colocar a
regulamentação jurídica em oposição à regulamentação técnica, esta última
vista como neutra e antecipadora do comunismo.
Arremata Turchetto: “Queremos aqui propor a hipótese de que é a divisão
técnica do trabalho a determinar a divisão social do trabalho” 274 e, com base
nisso, sugere a fundação para uma análise da articulação social global da
sociedade capitalista, partindo da divisão técnica do processo de trabalho, até a
noção geral de sistema de conexões sociais.
Gostaria de sugerir, inclusive, que se aplica a Pachukanis uma crítica que
fizera Turchetto em um outro texto, I caratteri specifici della transizione al
comunismo, em que ela diz, a respeito do economicismo:
Em outras versões, por fim, no que diz respeito
especificamente às relações capitalistas de produção, a ideia
das "relações entre homens mediadas por coisas" vem
retomada, mas referida somente à mediação por parte das
coisas representada pela circulação mercantil generalizada,
portanto, ao "fetichismo da mercadoria", ao invés da
específica relação entre produtores e condições objetivas da
produção que, na sociedade burguesa, funda o mais
"profundo" - e essencial - "fetichismo do capital", base real da
exploração capitalista. Tudo isso significa, substancialmente,
reduzir as relações de produção a relações de troca; e tal
redução, de fato, sempre caracterizou o "economicismo", em
qualquer de suas versões. 275
Uma crítica em tais termos nos permite também integrar a crítica marxiana
do idealismo, o compromisso materialista, com a crítica da economia política em
um nível estrutural. Permanecer na esfera da troca, da circulação generalizada
de mercadorias e do fetichismo da mercadoria, sem descer à produção, é o
mesmo que ficar preso à pureza das categorias lógicas e das tautologias
hegelianas, em outros termos, é restringir-se ao momento da identidade. Pelo

274
Lavoro scienza potere, Milão: Feltrinelli, 1981, p. 52.
275
NAVES, Márcio Bilharinho (org.) Análise marxista e sociedade de transição.
Campinas: Unicamp, 2005, p. 10. Em italiano, esse texto apareceu como 5º capítulo
do livro co-escrito por Turchetto e La Grassa em 1978, Dal capitalismo alla società di
transizione. Milão: Franco Angeli, 1978.
154
contrário, Marx vai precisamente até o momento em que a estabilidade das
formas sociais é rompida pela não-identidade, na produção, quando a igualdade,
tão formal quanto necessária e essencial, se converte no despotismo da fábrica,
na exploração. Mas, como argumenta bem Turchetto, não é nem uma questão,
como quer o socialismo vulgar, de trazer a democracia da circulação para a
produção, nem de levar a racionalidade da produção para o anárquico mercado.
Esses dois polos já existem em unidade interna, codeterminada, um necessário
ao outro precisamente no que os distancia. A unidade se realiza pela contradição
entre eles, e, portanto, pelo eterno potencial de crise.

4.3 – Preve, o memorioso


Dentre os vários colaboradores de La Grassa em seu período chave,
aquele que vai da revista Metamorfosi até o Centro de Estudos do Materialismo
Histórico, um dos mais notáveis foi Costanzo Preve. Mas, muito ao contrário de
Turchetto, Preve pode ser visto como tudo menos um continuador das teses
lagrassianas: seu pensamento, muito mais filosófico do que econômico, é dotado
de uma grande e quase inigualável originalidade, para o bem e para o mal. Preve,
na realidade, chegou tardiamente a colaborar com La Grassa: conheceram-se
apenas em 1978, quando a maior parte do “núcleo duro” da escola lagrassiana
já estava reunida, sobretudo nomes como Maria Turchetto e Augusto Illuminati,
ligados ao althusserianismo e ao maoísmo. Também durou pouco sua estadia,
pois já em meados da década de 1980 Preve havia se distanciado do
althusserianismo e da maior parte das teses estruturantes do lagrassianismo. No
lugar, Preve desenvolveu um pensamento marcado pelo ecletismo, recuperando,
no primeiro momento desse reposicionamento, o pensamento de Lukács, em
particular a Ontologia do Ser Social. Preve, para todos os efeitos, abandona a
perspectiva anti-humanista, aceitando, inclusive, a “teoria Colletti-Napoleoni” (a
interpretação da teoria do valor como teoria da alienação).
Em que então se manteve a ligação de Preve ao grupo lagrassiano? A
primeira e menos importante explicação é a pessoal: La Grassa e Preve
tornaram-se amigos íntimos apesar do crescente distanciamento teórico 276. A
segunda é a política ou, como prefiro dizer, político-existencial: ambos La Grassa
e Preve, principalmente a partir da curiosa colaboração que desenvolveram na
década de 90 nos seminários de Carrara, adotam uma perspectiva de crítica e
superação de tudo que entendem sob o termo guarda-chuva “comunismo
histórico novecentista” 277, em particular a noção de proletariado como sujeito

276
La Grassa mesmo chega a dizer que, na realidade, nunca considerou Preve um
althusseriano, mas sempre um lukácsiano. “Circa il profilo teorico previano, non saprei
bene cosa dire in breve. Comunque, lo ritenni sempre sostanzialmente un lukacciano;
secondo me, mai stato un althusseriano”, in: MONCHIETTO, Alessandro (org.). Invito
allo straniamento, II: Costanzo Preve marxiano. Pistoia: Petite Plaisance, 2016, p. 156.
277
É o que une ambos na escrita no livro La fine di una teoria: il colasso del marxismo
storico del novecento, em 1996. Nessa altura, empreendem uma releitura do
155
político. Com efeito, o que passa a unir os dois teóricos a partir de certa altura é
a convicção de que o proletariado não é revolucionário e não tem potencial de
transcender o modo de produção capitalista; para La Grassa, em particular, o
que passava a interessar era a visão de um “trabalhador coletivo” que incluísse
mesmo os gerentes, administradores, etc., enfim, toda a cadeia produtiva, do
mais alto patrão ao mais baixo servente, como um único corpo. Isso, na visão de
La Grassa, substituiu o proletariado 278.
Daí em diante, acreditando que, com o desaparecimento do proletariado,
não haveria mais qualquer importância nas lutas de classe para definir o futuro
do capitalismo, La Grassa passou a se interessar mais, como já adiantado, pelos
conflitos inter-capitalistas, sobretudo na forma da geopolítica, colocando como
centro de articulação de seu pensamento político a defesa da multipolaridade,
isto é, o combate específico à hegemonia estadunidense no mundo.
O caminho tomado por Preve, a seu turno, não é muito distinto, mas é mais
ativo, mais virulento. Vendo com o fim do “comunismo histórico novecentista” e
do proletariado a homogeneização social promovida pela penetração da
mercadoria em todas as estruturas sociais, como a dissolução de todos os laços
humanos, com os indivíduos se tornando átomos isolados em uma poça, Preve
recupera o conceito de comunidade. No entanto, em um sentido muito diverso
daquele já estudado neste trabalho em Camatte, Preve dá ao termo comunidade
de fato um sentido mais comum, quando não mesmo “vulgar”, ao contrário da
camattiana Gemeinwesen, de tão complexa tradução. Contra a marcha da
mercadoria, Preve reage defendendo a nação, a família, a tradição, todos os
sustentáculos de um “ser” estável, fixo.

capitalismo a partir de suas origens, destacando, por exemplo, a dualidade constante


entre o trabalho produtivo e a propriedade, aquela representando o artesão, esta o
mercador, desde os tempos do fim do feudalismo. Perigosa análise que guarda
semelhanças com a visão para-fascista sobre a relação entre trabalho produtivo (ou
capital produtivo, quando completamente submetidos ao fetichismo do capital) e o
capital parasitário, financeiro, que passa efetivamente a ser especialmente atacado
por La Grassa e Preve. No livro citado, ver pp. 178-180.
278
Abro aqui um parêntese para aventar uma hipótese: uma das grandes fontes de
erros e desvios do marxismo no século passado e na Itália em particular parece ter
girado em torno de entender se o sujeito revolucionário capaz de derrotar o
capitalismo nasce dentro ou fora dele. Alguns, desejosos de criticar as noções
progressistas e teleológicas, segundo as quais o capitalismo cria seus algozes
necessários e produz a socialização da produção que bastará expropriar, acabaram
por ver o proletariado como revolucionário apenas enquanto estivesse exterior ao
capital. É o caso de La Grassa e Preve (mas também de Camatte), que chegaram a
afirmar que o proletariado só fora revolucionário e insurrecional no período da
industrialização, na época em que estavam sendo forçados do campo para as cidades,
portanto, não realmente subsumidos ao capital. Muito diversa é a visão, por exemplo,
de Negri, para quem, como vimos, a subjetividade operária tem como pré-condição a
subsunção real sob o capital. Ainda que seja um debate muito complexo para ser
resolvido aqui, posiciono-me mais favoravelmente à posição de Negri.
156
As posições de La Grassa e Preve, apesar das diferenças de ênfase, estão
longe de serem incompatíveis. Pelo contrário, são justamente os dois polos da
nova direita europeia 279 surgida desde finais da década de 1980 na Europa,
como uma forma de novo fascismo ou nova “terceira posição”. A ênfase
geopolítica e multipolar de La Grassa poderia ter sido emprestada de um
Aleksandr Dugin; o comunitarismo desaguando no etnonacionalismo de Preve é
perfeita cópia do pensamento de seu amigo francês Alain de Benoist.
Não vou me alongar na catástrofe em que terminam suas vidas280 esses
dois autores, melhor retroceder e olhar: que há, enfim, de aproveitável no
trabalho de Preve? Bem, mesmo antes de sua deriva fascista, o pensamento de
Preve foi marcado por uma certa inconstância fundamental. A brevidade de seu
período althusseriano não foi excepcional: Preve raramente se mantinha em uma
posição estável por muito tempo, pelo contrário, no campo da filosofia, o que se
nota é, para ser gentil, um impulso anti-sistemático281, fragmentário. Por outro
lado, essas mudanças frequentes e esse fragmentarismo, alinhados à forma
panorâmica e veloz de Preve de discorrer dão a seus escritos uma aparência de
diletantismo, além de um radical ecletismo. Em que medida esse dilentatismo é
aparência ou não é difícil dizer, pois o que falta a Preve no campo teórico-
conceitual ele compensa com o que de mais brilhante desponta em seus escritos:
um sentido histórico, catalogador raríssimo. Não deixa dúvidas de que o maior
fôlego do raciocínio de Preve é em sua forma de condensar a história do
marxismo, principalmente o italiano, e criar, com a história, o eixo unificador para
seu pensamento. Ou seja, não é na teoria, mas na história, que Preve atinge sua
coerência.

279
Movimento de renovação da extrema-direita europeia, focado na rejeição da
modernidade e na restauração de um comunitarismo etnonacionalista, tradicional e
orgânico. Cresce a partir da Nouvelle Droite de Alain de Benoist na França, depois
ganhando aderentes em outros países: Forza Nuova na Itália, Neue Rechte na
Alemanha. Além dessa corrente, uma outra, surgida na Rússia na década de 90, é o
Eurasianismo, em torno de Aleksandr Dugin, saído do “nacional-bolchevismo”.
Costanzo Preve foi próximo de ambas as linhas, um de seus mais famosos discípulos
hoje é o rosto da convergência entre ambos os lados. Na Itália, esses novos fascistas
que se apresentam como combinando posições de esquerda e direita, comunitaristas
e soberanistas, ficaram conhecidos como “rossobruni”, isto é, vermelho-marrons.
280
Sustento que toda semelhança entre o tratamento dado ao conceito de comunidade
por Preve e Camatte é meramente formal. De fato, a Preve poder-se-ia aplicar como
crítica um trecho de Camatte: “O Homem está completamente perdido, e quando ele
pensa que pode redescobrir a si mesmo nas representações antagonistas do capital,
ele é ainda mais absorvido por seu inimigo, que se tornou o espelho de todas as
representações e que também se tornou mito”. O lado territorializado, nacional,
tradicionalista que Preve escolhe não é um inimigo real da globalização capitalista, são
apenas dois polos, duas representações antagonistas do capital. Ver: CAMATTE,
Jacques. Capital and Community. Londres: Unpopular Books, 1988, p. 177.
281
Acusação esta, aliás, já negada pelo próprio Preve com vigor, mas que não parece
ter perdido a validade por isso, cf. Una approssimazione al pensiero di Karl Marx,
Saonara: Il Prato, 2007, p. 93.
157
A coerência histórica de Preve não é de modo algum a do historiador. Ele
não se pretende em momento algum construir uma história imparcial, focada nos
fatos ou mesmo considerando as múltiplas narrativas. Preve é mais memorialista
que historiador. Escreve como um velho combatente reformado. E escreve muito.
Em livros como Ideologia italiana percorre mesmo os autores menos conhecidos,
trata de todos os que falei nessa tese até o momento: Della Volpe, Colletti,
Bordiga, Panzieri, Asor Rosa, Cacciari, Tronti, Negri, La Grassa, e outros, como
Napoleoni, Labriola, Gentile, Mondolfo, Gramsci, Togliatti, Berlinguer, Ingrao,
Rossanda, Luporini, Bobbio, Del Noce, Timpanaro, Severino, Geymonat, Vattimo,
Pesenti, Sraffa, Labini, Bontempelli, sem falar dos não italianos, como Bloch,
Adorno, Althusser, Lukács.
Impossível condensar todas as análises de Preve em um resumo sintético
como aqui pretendo, de modo que mais vale apresentar e referir-se aos
momentos cruciais, fulcrais, do que ele descreve como o percurso do marxismo
na Itália, das origens ao fracasso – pois, para Preve, fracassou.
Preve enquanto estudioso da filosofia se debruça sobre toda a história
ocidental, mas a nós é mais imediatamente relevante o marxismo. Assim, vale
começar por Marx. Na leitura de Preve, ele é um inseparável discípulo de Hegel,
um filosófo idealista acima de tudo, para quem o capital faz as vezes de geist ao
ser a articulação de passado, presente e futuro282. Na verdade, Preve vai mesmo
ao ponto de assumir como verdadeiras posições hegelianizantes de Marx que
mesmo os mais típicos representantes do marxismo humanista e historicista
nunca tiveram coragem:
O fundamento do pensamento de Marx (...) é
propriamente uma filosofia universalista da história na qual
toda a humanidade, pensada como um único sujeito
transcendental reflexivo (e pensada então de um modo
necessariamente “idealista”), persegue sua emancipação
através da superação das alienações que a própria história
produziu.283
A interpretação previana é que a matéria para Marx tinha um papel
praticamente metafórico. Sobre as Teses sobre Feuerbach, ele diz que ali não
se encontra materialismo, mas idealismo fichteano com pretensões
revolucionárias. Em seguida, Preve rejeita a ideia de que, para Marx, o sujeito
revolucionário seria o proletariado: não, é o trabalhador coletivo do dirigente ao
servente, toda a estrutura produtiva. Claro, continuação da conclusão a que já
havia chegado durante sua colaboração com La Grassa. Mas, acrescida de seu
redescoberto comunitarismo: apenas na transformação dessa estrutura
produtiva em comunidade solidária pode ser realizada a liberdade. Os elementos

282
ZYGULSKI, Piotr. Op. cit., p. 38.
283
PREVE, Costanzo. Una approssimazione al pensiero di Karl Marx. Saonara: Il
Prato, 2007, p. 100.
158
do pensamento previano aqui já são francamente fascistizantes: afirma-se a
falsa comunidade – nacional, comunitária – sem a abolição real das classes pela
luta de classes, ao mesmo tempo em que se valoriza o trabalho “produtivo” e os
elementos “produtivos” da sociedade.
Consequentemente, Preve mostra Marx não apenas como continuador de
Hegel, mas também de Rousseau, apenas tornando a origem unitária de
Rousseau em um final unitário no comunismo. Sem rupturas, sem cortes, sem
inversões. Mas, a realização mais consequente deles. Ambas as visões
convergindo no uso que faz Preve da noção de ontologia do ser social, a partir
de Lukács, para mostrar o pensamento marxiano como pensamento da inteira
sociedade burguesa, unitária e coerente.
Após Marx, Preve periodiza o marxismo em fases284: de 1875 a 1914, com
o protagonismo de Engels e Kautsky, o surgimento das dicotomias materialismo-
idealismo e dialética-metafísica, pesadamente criticadas por Preve; de 1914 a
1931, período da primeira crise, com as inovações de Lenin, mas também os
trabalhos de Gramsci e o “sectarismo integralista” de Bordiga; de 1931 a 1956,
com a dogmatização do materialismo dialético de Stalin pelos meios burocráticos;
de 1956 a 1991, período da segunda crise geral, em que não foi possível
nenhuma renovação, que provou o marxismo incurável, apesar de alguns
interessantes desenvolvimentos por Lukács (a ontologia do ser social), Althusser
(a nova epistemologia) e Marcuse (a leitura de Hegel e de Freud). Preve rejeita
integralmente o operaísmo, justamente por sua ênfase na luta de classes como
motor do desenvolvimento capitalista.
Ao concluir Ideologia italiana, Preve sentencia: o “marxismo italiano” está
acabado, finito. Irreversivelmente. O processo de internacionalização, a
destruição do sistema político-partidário que existiu na Itália de 1945-1992, a
quebra da hegemonia do PCI (e mesmo o desaparecimento desse partido),
assim como a verdadeira prescrição das análises historicistas, togliattianas e
gramscianas, sobre as particularidades nacionais italianas e a via italiana ao
socialismo, tudo isso, decretou a morte do “marxismo italiano”. Para Preve, já
não faz mais sentido falar em um “marxismo italiano”, com raízes ou uma
problemática especificamente italiana. Para muitos das tradições clandestinas e
radicais do marxismo na Itália, isso é motivo de comemoração, não de lamento.
Bordiga, que insistia na frase “o bolchevismo é uma planta para todos os climas”,
estaria agora dizendo: o marxismo italiano nunca fez sentido, era uma criação
precisamente da corrente oportunista e nacionalista do PCI e suas ideias de
“particularidades nacionais”.

284
ZYGULSKI, Piotr. Op. cit., pp. 43-45.
159
Capítulo 5 –
Um balanço do marxismo revolucionário italiano

Concebi esse capítulo menos como parte de um raciocínio orgânico e mais


como um instrumento, uma muleta até. Finalizada a parte expositiva, faz sentido
oferecer um balanço, uma síntese, tanto de um ponto de vista arquitetônico, para
destacar a conexão interna, histórico-teórica, que me obrigou a fazer este
percurso, quanto de um ponto de vista, digamos, didático, para tornar mais
visíveis ligações que nos capítulos precedentes podem ter ficado apenas
sugeridas.

5.1 – Concepções jusfilosóficas do marxismo italiano


No que concerne especificamente à teoria do direito, parece-me de grande
utilidade recorrer a uma classificação das vertentes da filosofia do direito
contemporânea proposta por Alysson Mascaro em Filosofia do Direito 285. Na
contemporaneidade, as filosofias do direito seguiram por três grandes vias: o
juspositivismo (ou formalista, liberal, institucional), o não-juspositivismo (ou
realista, existencialista, ou até filosofias do direito do poder) e o marxismo
(filosofia crítica). De acordo com esse modelo, no que segue buscarei aproximar
as concepções jurídicas das correntes teóricas do marxismo italiano estudadas
a cada uma dessas três vias da filosofia do direito contemporânea.

5.1.1 – Juspositivistas
O juspositivismo é a visão dominante na prática mesma do direito e é o que
melhor exprime as concepções necessárias que resultam do fetichismo jurídica
e é a expressão mais acabada da ideologia que lhe é correspondente. Pode-se
mesmo pensar em dizer que tal qual o capitalista não enxerga as condições de
produção em termos de valor, mas, sim, em de custos de produção, o jurista
enxerga o direito como normas estatais, como um sistema fechado,
autorreferencial e tautológico que trabalha para representar, como uma
imposição externa, toda a vida social em seus ditames. Os aspectos privilegiados
das filosofias juspostivistas são o formal e o objetivo, pelo que o direito aparece
como fixo, estável, produto da incansável classificação da realidade em
categorias de criação do intelecto. A forma mais acabada do juspositivismo é o
normativismo encontrado em Hans Kelsen, mas também em Norberto Bobbio e
Herbert Hart, ainda que exista uma pluralidade de formas híbridas.

285
Filosofia do Direito. São Paulo: Atlas, 2019, pp. 271-278.
160
Os della-volpeanos, do próprio Della Volpe até o momento mais radical de
Colletti, passando por Cerroni, são de todos os analisados os únicos que se
firmam solidamente no campo do juspositivismo. O della-volpismo nunca foi
capaz de romper com o liberalismo e o formalismo burguês que marcavam o
marxismo do PCI. Isso se apresenta na reafirmação de Della Volpe do socialismo
como continuação dos ganhos da revolução política burguesa, portanto como
preservação das liberdades civis, assim como na importância particular que
Cerroni atribui ao direito público e à agência do Estado – em suas críticas a
Pachukanis. As reflexões jurídicas dos della-volpeanos aparecem sempre como
o elogio do trabalho de equivalência e sistematização do direito, sem nunca o
criticar de forma imanente, mas apenas pelo suposto fracasso do capitalismo em
entregar suas promessas, com formulações como “o direito de propriedade
privada dos meios de produção degenerou em privilégio” 286, ao invés de criticar
precisamente a aparência, não menos necessária por ser aparência, da
sociedade capitalista. Não há aqui, ainda, uma crítica decisiva da sociedade
burguesa por inteiro, apenas naqueles pontos em que ela parece “falhar”, os
della-volpeanos não tomam tanto uma posição comunista quanto a posição da
ala radical dos democratas. Não é a revolução proletária que aparece quando
eles falam de direito ou do Estado, mas a última fase da revolução burguesa.
Prova cabal do caráter positivista da filosofia do direito dos della-volpeanos é o
curioso uso que faz Della Volpe da constituição soviética como prova de suas
teorias: pronto, erigiu-se a norma estatal em verdade do direito 287.
O mais próximo que o della-volpismo chegou de escapar ao juspositivismo
foi na fase radical de Colletti, quando se inicia a crítica, pela esquerda, do próprio
della-volpismo. Porém, como já discutido, antes que isso pudesse dar frutos o
próprio Colletti tomou o caminho contrário, não apenas retornando ao ponto de
início, mas também liquidando tudo de produtivo que havia nele.
Parece-me importante relembrar que essas concepções políticas e
jurídicas do della-volpismo não eram acidentes desconectados dos outros
aspectos da filosofia de Della Volpe. Ainda que Colletti dissesse não estar
interessado pelo lado ético de Kant, é a ele que ele retorna, assim como Della
Volpe já havia feito em sua engraçada tentativa de reconciliar Kant e Rousseau
– engraçada porque tentava reconciliar duas partes que nunca haviam se
separado. Em um caso como no outro, o que estava no centro dos problemas
era a forma da subjetividade burguesa: ignorar a forma do sujeito de
conhecimento para recair em uma teoria da ciência como experimentalismo puro
fez Colletti acabar popperiano, tanto quanto a ausência de uma crítica da forma
da subjetividade burguesa tem um papel na visão della-volpeana de um
socialismo reconciliado com as liberdades civis da revolução burguesa.

286
DELLA VOLPE, Galvano. Rousseau e Marx. Roma: Riuniti, 1997, p. 97.
287
A própria noção de legalidade socialista tão cara aos della-volpeanos traz a
assinatura de Andrei Vyshinsky.
161
5.1.2 – Não-juspositivistas
As filosofias do direito não-juspositivistas são a primeira forma de crítica do
reducionismo positivista que encerra o fenômeno jurídico nas normas estatais e
nos silogismos do raciocínio dos juristas. Por vias diversas, buscam uma
compreensão do direito como parte de um todo social, esfera cujo fundamento
está alhures e precisa ser desvendado, ao invés de aceitar a tautologia de um
sistema fechado. Entretanto, à diferença do marxismo, as correntes “realistas”
tomam aquilo que aparece como relações gerais, entre pessoas, relações
humanas desqualificadas e fluídas, como o fundamento, aceitando, portanto, a
forma de subjetividade e a estruturação das relações interpessoais subjacentes
à formação social. Ou, ainda, em outra modalidade, ainda que não sejam
ingênuas quanto à subjetividade burguesa, operam com uma análise generalista
carente de uma conceito apropriado para o fenômeno da objetivação das
relações sociais em uma estrutura sobredeterminada, pelo que apresentam a
sociedade como plana, formada por uma teia de relações facilmente reduzíveis
ao mesmo conteúdo, à mesma substância, sem consideração pela forma social.
Podem ter negado o lado objetivo e sólido da sociabilidade capitalista, mas não
o subjetivo e fluído. Daí a ênfase que essas filosofias colocam em noções como
poder, vontade, decisão – são as filosofias do direito de Schmitt e Foucault, o
decisionismo e a microfísica do poder.
A afinidade do operaísmo com essas jusfilosofias estava posta desde o
começo. A escolha, já na época dos Quaderni Rossi, por um ponto de vista do
proletariado, desde já subjetivado, colocava a possibilidade de enxergar a
sociabilidade como produto da ação de sujeitos pressupostos. Com a
apresentação, por Panzieri, da inversão da lei geral de acumulação capitalista
para colocar no centro a luta operária, ao invés do capital, como motor das
transformações técnicas e econômicas, o que acontece é a dissolução da esfera
do econômico em relações políticas. O especificamente econômico começa a
aparecer então como algo supérfluo, que pode simplesmente ser descartado
para se analisar o que está subjacente, a luta de classes. Inegável que esse
método operaísta teve seus frutos, mas as limitações são igualmente evidentes.
A partir da decomposição do operaísmo, na sequência das derrotas
políticas de 1972-1973, é precisamente o lado fraco desse movimento que se
tornará hegemônico. A explicação operaísta para as transformações sociais,
falando em fábrica-social, intensificam os problemas e a proximidade do
operaísmo com as jusfilosofias realistas. Agora, não é apenas no nível da fábrica
que o econômico se dissolve no político, isso passa a dissolver toda a sociedade.
Em cima dessa confusão, soma-se outra, que foi apontada por Maria Turchetto:
se o operaísmo inicial merece elogios por ter se voltado para a análise do
processo de produção imediato e do despotismo da fábrica, toda a qualidade
analítica do conceito é perdida se o seu oposto, o momento da equivalência na
circulação, é eliminado. Como o pós-operaísmo vê toda a sociedade como
dominada pelo despotismo da fábrica, já não há espaço para uma análise da
troca, do valor, da equivalência, enfim, tudo é luta política direta entre dois
grandes sujeitos unívocos, Capital e Trabalho.

162
Assim, o pós-operaísmo se mostra completamente incapaz de
compreender o resultado da reestruturação capitalista e deve, no lugar, apenas
insistir em suas posições originais. Por isso, simplesmente nega as novas
hierarquias sociais e produtivas, assim como nega que essas transformações
tenham sido derrotas da classe trabalhadora: no máximo, foram vitórias cujo
butim não conseguiram aproveitar antes deste ser virado contra ela mesma.
A deriva de Tronti a partir da década de 1970 é o coroamento das
afinidades operaístas com o não-juspositivismo, é a época em que ele começou
a buscar em Schmitt o que sentia faltar em Lênin. Sua crítica da democracia é
um exemplo claro: rompe com a homogeneização formalista que de que a
democracia é central realização, ataca as concepções otimistas do liberalismo
sobre o futuro do “Império da Lei”, mas não o faz mediante uma crítica profunda
das formas sociais fetichistas que estruturam os níveis da economia, do direito
e da política, muito menos recupera o caráter radical e anti-jurídico da crítica
marxiana; no lugar, Tronti assume, explicitamente, uma crítica elitista, isto é,
reacionária288 da democracia, ele precisa de Schmitt para criticar a democracia.
Vejamos o que diz o próprio Tronti:
Toda a discussão sobre a “autonomia do político” – que
começou no operaismo e se espalhou de lá – era sobre isso.
As lutas operárias determinam o curso do desenvolvimento
capitalista; mas o desenvolvimento capitalista usará essas
lutas para seus próprios fins se nenhum processo
revolucionário organizado se abrir, capaz de mudar a relação
de forças.289
Entre uma força social e outra, nesse momento de exceção, é preciso quem
tome a decisão. Desse ponto até Schmitt é um caminho direto.
A outra via aberta para o operaísmo em decomposição foi a do
autonomismo de Antonio Negri. Nessa questão, Negri não é tão simples e
imediato quanto Tronti, a começar pelo engajamento sério que desenvolveu
diretamente com a obra de Pachukanis, da qual ele pode justamente ser
considerado um dos redescobridores da década de 1970 – ao lado de Umberto
Cerroni. Porém a leitura de Negri efetua de Pachukanis é inteiramente
decorrente de seu panorama político e da origem do autonomismo; consoante o
entendimento das formas sociais como dialética capitalista, que mantém unidas
ainda que antinômicas as faces inimigas da sociabilidade, Negri enxerga a
superação do direito burguês na radicalização dessa antinomia, no alargamento
da fissura até dissolver a relação. Por isso, Negri não pensa em lutar apenas fora

288
Ainda que Tronti considere a classe operária tradicional uma aristocracia, mas isso
é porque ele vê sua consolidação em identidade definida e afirmativa sob o fordismo –
ou, sob a dominação formal do capital - como uma casta, o que é um equívoco.
289
TRONTI, Mario. Nous les operaïstes. Paris: L’Éclat, 2013, p. 46.
163
do direito, nem enxerga lutas por direitos como imanentes à ordem capitalista;
no lugar,
Para Negri, a luta contra o direito no capitalismo
igualmente é “dentro e contra” o sistema jurídico vigente. A
luta não deixa de ser pelos direitos. Por outro direito, mas um
outro que já existe em estado de latência, habitando a relação
do capital (...) A luta de classe não necessita situar-se
absolutamente fora do direito vigente, como se fosse um
produto exclusivo da classe dominante, como mera corrente
de transmissão do capital.
(...) em consequência, segundo uma perspectiva de
transformação, não se deve renunciar simplesmente ao
campo do direito, mas, sim, radicalizar o caráter destrutivo e
irreconciliável da luta dos direitos e pelos direitos, contra a
exploração capitalista e o racismo de classe, contra o estado
e o mercado dessa sociedade.290
Ainda que partindo de Pachukanis, Negri acaba, entretanto, por retornar a
uma visão que não compreende a natureza intrinsecamente capitalista da forma-
jurídica. Pelo contrário, assim como havia dissolvido as relações econômicas em
relações políticas, agora parece se operar uma dissolução do campo
especificamente jurídico em uma concepção política. Tal como o primeiro
operaísmo via a luta operária como motor do desenvolvimento capitalista, aqui
Negri passa a vê-la como motor do sistema jurídico. Claro, ele sabe que o direito
é necessário à ordem capitalista, que sem ele haveria uma regressão ao pré-
capitalismo, mas, aplicando a mesma lógica que usou para descrever a relação
entre o Império e os Comuns, Negri enxerga a relação entre o direito enquanto
necessário para a reprodução do capital e o direito como conquista das lutas dos
subalternos como uma de colonização291.
Por isso mesmo Negri precisa também fazer uma crítica a Pachukanis: ele
teria exagerado em sua conexão entre o direito e a esfera da circulação. Essa
crítica é, sem dúvidas, bem-intencionada e começa de uma intuição correta – a
ideia que percorre toda essa tese é precisamente a de que Negri faz parte da
geração da teoria marxista que superou o formalismo-circulacionismo -, mas
apreende uma determinação equivocada. Afinal, o erro de Pachukanis não é ter
notado a relação privilegiada entre direito e circulação – com efeito, é na
circulação que se assenta o direito –, o erro de Pachukanis é não perceber que
o aspecto técnico-material no interior do processo de produção não é

290
CAVA, Bruno. Pachukanis e Negri: do antidireito ao direito do comum. Revista
Direito e Práxis, vol. 4, nº 6, 2013, p. 15
291
De modo geral, é um processo análogo a todo o raciocínio de Negri desde o ponto
da exploração do trabalho, em que ele vê a relação entre trabalho vivo e capital como
uma de externalidade, roubo, antagonismo.
164
socialmente neutro292, com as várias consequências de que falarei no momento
apropriado.
Em conclusão, por uma via bastante longa Negri faz um retorno a uma
concepção do direito bastante similar à de Stuchka: “o direito é expressão das
relações sociais da classe dominante, sustentando-se na força organizada”293.
Vale também lembrar que era Stuchka294 que queria ver no direito a expressão
direta das relações de produção – na forma do seu assim chamado “direito
concreto”. Por fim, assim como Stuchka, Negri é francamente politicista e acaba
por dissolver o especificamente jurídico no político, a forma jurídica parece tomar
uma posição secundária e o protagonismo é tomado pela luta entre o direito do
capitalismo e o direito do comum. Não é à toa que a partir dos anos 80 ele tenha
tornado o pós-estruturalismo francês uma referência filosófica explícita,
empregando conceitos de Deleuze, Guattari e Foucault.

5.1.3 – Marxistas
As concepções marxistas são, para nós, as mais relevantes. A crítica
marxista do direito – melhor até do que dizer teoria crítica – não é apenas estar
contra o direito, mas implica na apreensão das determinações concretas desse
fenômeno em sua especificidade e na revelação da gênese e do papel social
que ocupa na totalidade social. Não basta, desse modo, analisar o direito nem
como um todo estável e fechado em si mesmo, nem como uma ilusão parte de
uma totalidade orgânica e indiferenciada – um e outro erros são característicos,
respectivamente, do juspositivismo e do não-juspositivismo. Pode-se mesmo
dizer que o marxismo, na teoria do direito não menos que no campo da lógica, é
a rejeição, ao mesmo tempo, da metafísica dogmática e do nominalismo;
caminhar nessa corda bamba é, em certo sentido, o desafio do materialismo.
Por exclusão, se os della-volpeanos foram apontados como juspositivistas
e os operaístas como não-juspositivistas, sobram os programistas (e pós-
programistas) e os lagrassianos. São, de fato, as duas perspectivas de mais

292
A bem da verdade, isso é algo que Negri também aponta em suas críticas, aliás,
inclusive citando positivamente os trabalhos de Charles Bettelheim sobre a Revolução
Cultural na China. Ver: NEGRI, Antonio. Rereading Pashukanis: discussion notes.
Stasis, vol. 5, nº 2, 2017 (1973), pp. 8-49.
293
MASCARO, Alysson. Filosofia do Direito. São Paulo: Atlas, 2019, p. 404.
294
Claro, Stuchka era marxista, tal qual Negri, e, sem dúvidas, desempenhou papel
crucial no desenvolvimento da crítica marxista do direito, mas apenas isso, por si,
significa que sua concepção jurídica é marxista? Apenas em nome da simplicidade,
dado que é uma discussão muito complexa para ser exaurida aqui, escolhi Pachukanis
como a fronteira: os socialistas pré-Pachukanianos não atingem, ainda, uma
concepção marxista do direito e caem, portanto, no campo do não-juspositivismo
(como o psicologista Reisner e o politicista Stuchka) ou do juspositivismo (como o
“socialista jurídico” Anton Menger, o estatista Ferdinand Lassalle, o neo-kantiano
austro-marxista F. A. Lange ou o stalinista Andrei Vyshinsky).
165
próximo chegaram das determinações concretas do fenômeno jurídico naquele
período do marxismo italiano, mas de formas diferentes.

5.1.3.1 – A concepção de direito do programismo


O programismo, em particular Bordiga, tem a contínua ênfase, que
perpassa sobretudo todos os textos diretamente políticos dessa corrente, na
ditadura implacável do proletariado contra as formas sociais burguesas e a
necessidade de desmanchar, de uma vez, os mitos da democracia burguesa,
superar todas as formas de justificação moralista e universalizante, assim como
um desprezo pelo formalismo de outras correntes marxistas e seus fetiches
institucionalistas em certas formas organizacionais – caso dos conselhistas.
Essas ideias já estavam presentes desde sua fase mais embrionária:
Em todo caso, estamos tentando deixar claro que não
atribuímos qualquer valor intrínseco a essas formas de
organização e representação. Isso se traduz na tese marxista
fundamental: a revolução não é um problema de formas de
organização. Pelo contrário, a revolução é um problema de
conteúdo, um problema do movimento e da ação das forças
revolucionários em um processo sem fim, que não pode ser
teorizado e cristalizado em qualquer esquema para uma
imutável “doutrina constitucional”. 295
No pós-guerra, procedeu-se também a uma análise mais geral, relacionada
ao retorno à crítica da economia política. Uma das questões centrais que anima
a Esquerda Comunista nesse segundo período é a da relação entre o capitalismo
e a propriedade, inclusive para melhor analisar tanto as transformações do
capitalismo ocidental – o Estado de Bem-Estar Social, o dirigismo, as
nacionalizações, elementos que se difundiram nos anos 50 – quanto para
explicar a União Soviética. Bordiga vai iniciar então um trabalho bastante
sofisticado, principalmente em Propriedade e Capital, no qual demonstra que o
capitalismo não tem necessidade da propriedade direta em sentido jurídico, que
é perfeitamente possível manter a exploração capitalista do trabalho sem que o
gerente ou supervisor seja o proprietário – sendo o caso de uma empresa estatal
ou mesmo de uma companhia de capital aberto, por ações, em que os cargos
com a função de gerir a extração de mais-valor são ocupados, a rigor, por
funcionários assalariados, não pelo proprietário direto do capital.
Precisamente por causa da análise da propriedade nessa época, Bordiga
faz alguns comentários sobre o direito e a propriedade enquanto uma categoria
jurídica:

295
BORDIGA, Amadeo. The democratic principle. 1922. Disponível em:
https://www.marxists.org/archive/bordiga/works/1922/democratic-principle.htm.
166
Nos vários povos e nas várias épocas devemos
entender qual foi o avanço da técnica produtiva em termos da
capacidade do homem de intervir sobre as coisas ou matérias
primas, qual o mecanismo da produção e da distribuição das
atividades e esforços produtivos entre os membros da
sociedade, qual o jogo da circulação dos produtos de mão em
mão, de casa em casa, de país a país até o consumo. A partir
de tais dados podemos passar a compreender as formas
jurídicas correspondentes, e que tendiam a coordenar as
regras de tais processos, atribuindo a determinadas
organizações a disciplina dos mesmos e a possibilidade de
impor constrições e sanções aos transgressores. 296
Por um lado, parece ter havido um progresso: já não se pensa o direito
como mera relação de forças, como uma imposição política mistificada pela
propaganda. Por outro, não se chega ainda a uma decisão firme sobre a gênese
da forma que é especificamente jurídica. Mais ainda, parece ser justo dizer que
Bordiga nunca solucionou de fato essa questão, apenas, nos anos seguintes,
aproximando-se dela, sem nunca ousar penetrar no tema. Ainda assim, as
conclusões a que chegou, em particular ao começar a articular sua crítica da
forma-empresa, são notáveis – sobretudo para alguém sem formação jurídica –
e, em alguns casos, idênticas a certas formulações de Pachukanis.
A partir da crítica da forma-empresa, Bordiga faz perceber que não há
equivalência entre um indivíduo da espécie Homo sapiens e a personalidade
jurídica necessária para atuar segundo as necessidades de circulação do capital.
Ele nota isso ao analisar, sempre com base em Marx, que o capitalismo pode se
desfazer dos proprietários e simplesmente descentralizar vários aspectos
produtivos: o prédio da fábrica pode ser alugado, as máquinas podem ter sido
financiadas, os salários podem ser pagos com empréstimos e assim por diante.
Longe de excepcional, essa é a tendência geral do capitalismo: colocar o
dinheiro, essa forma por excelência do valor, para circular, não o deixar imóvel.
Mesmo a concentração cada vez maior de capitais – nos bancos, nas holdings,
no Estado – nada mais faz do que facilitar justamente a circulação do valor.
Enfim, se o valor não tem mais nem mesmo necessidade de um indivíduo
Homo sapiens para vestir a máscara da propriedade, então o que é a
subjetividade jurídica? É uma subjetividade de todo dativa, que só faz sentido
enquanto assujeitamento, é a forma na qual os indivíduos relacionam-se na
sociedade civil uns com os outros enquanto corporificações do capital. Bordiga
não chega jamais a entender exatamente o papel que o direito, assentado na
forma do sujeito de direitos, desempenha aqui, mas ele capta precisamente os
dois polos que são unidos pelo direito: ele capta a circulação do valor, por um
lado, e ele capta a democracia, a forma por excelência da dominação burguesa.

296
BORDIGA, Amadeo. Proprietà e capitale, parte I, 1948. Disponível em:
https://www.sinistra.net/lib/bas/promet/vejo/vejohdaboi.html.
167
Só faltou a ele o termo intermediário, mas, de resto, ele estava pronto e, por isso,
ele pôde fazer uma análise tão precisa do caráter impessoal, e necessariamente
impessoal, da dominação capitalista.
A consequência de não ter apreendido o papel do fetichismo da forma
jurídica, e de sua ideologia correlata, na mediação entre o nível econômico e o
político implicou a Bordiga a necessidade de dar uma resposta de outra maneira.
Foi isso que, em certa medida, determinou o caminho, digamos, místico que
tomou seu anti-individualismo a partir de certa altura. Apesar de, na falta de um
conceito apropriado da forma de subjetividade burguesa, ele ter recorrido a uma
noção um tanto naturalística e pré-social de individualidade, a abordagem
bordiguiana da formação da subjetividade a partir da dissolução da comunidade
primitiva continua fascinante e, de forma alguma, precisa ser descartada; pelo
contrário, pode ser reinterpretada em termos melhores e aproximada dos
conceitos marxistas.
Finalmente, o que se pode então concluir quanto ao programismo e seu
conceito de direito? Que ele era transicional. Bordiga oscilava, tinha um pé em
uma crítica marxista e, outro, em concepções não-juspositivistas, de caráter
politicista. A mesma coisa se pode dizer sobre o estatuto do humanismo em
Bordiga: graças à seu anti-individualismo e um conhecimento muito aprofundado
do método marxiano, há trechos que são verdadeiramente anti-humanistas – tal
como o texto Marxismo e pessoa humana –, mas, por outro lado, Bordiga nunca
abandonou uma forma de “humanismo da espécie”, que, se bem que não se
manifestava nos indivíduos enquanto ainda existe a sociedade de classes,
orienta sua concepção do comunismo como a unidade não-mediada e a
reconquista da natureza humana na comunidade.

5.1.3.2 – A concepção de direito do pós-programismo


Nos escritos de Camatte o direito pouco aparece, é preciso fazer um
verdadeiro esforço para perceber os momentos em que a problemática das
relações jurídicas é latente, mais como sintoma, como ausência, do que como
parte integrante do pensamento camattiano. O mais importante é que na medida
em que Camatte, como já dissemos, pode ser visto como um Bordiga
historicizado, em que as categorias da teoria são colocadas em movimento,
encontramos certas reflexões mais acuradas e mais bem definidas da mesma
“intuição” teórica que Bordiga já parecia ter.
Assim, gostaria de ressaltar alguns momentos mais importantes para o
direito a partir dos escritos de Camatte.
Em primeiro lugar, sua crítica total da democracia como mistificação
desenvolve as determinações que Bordiga já havia compreendido, mas agora
também no polo subjetivo: Camatte percebe a dualidade que a democracia
impõe à sociedade e a todos os indivíduos que a compõem. A democracia
enquanto forma de estado só é possível na medida em que 1) os indivíduos
foram isolados da Gemeinwesen; 2) eles são bipartidos em bourgeois e citoyen;

168
3) eles são reintegrados, mas agora sob a organização da democracia. Por isso
mesmo, Camatte percebe que há uma determinação objetiva impessoal à
própria organização das subjetividades.
No fundo, toda a análise que Camatte desenvolve da democracia pode ser
lida como uma análise do direito, ele mesmo chega a dizer “o horizonte estreito
do direito burguês é também o horizonte democrático que pressupõe um homem
cindido frente a uma riqueza que se deve dividir”. Disso podem ser feitas
algumas inferências:
1) Pode-se começar a definir a democracia como a política mediada pela
forma jurídica, pois mesmo que carente do jargão, Camatte vai deixando
bastante evidente a relação entre a democracia e a conformação de uma
subjetividade específica atuando como membrana entre a circulação das
mercadorias e a superestrutura: é o campo do jurídico;
2) Pode-se estender, portanto, a análise do papel histórico da democracia,
que Camatte desenvolve em A mistificação democrática, para o direito e, daí,
portanto, para uma análise do papel específico da forma-jurídica na transição da
dominação formal para a dominação real do capital; adiante analisarei mais
detidamente as implicações dessa importante analogia.
Noutro nível de leitura, um ponto importante que nos permite ligar Camatte
à crítica do direito é quanto à formação do ser humano como parte do rito do
capital, isto é, o homem ele mesmo como fetichismo da circulação, como produto
que, a partir da formação da comunidade material do capital, se torna a máscara
necessária e exaltada do capital, um polo interno da relação capital que nada
tem a oferecer como antagonismo a ele. Assim, Camatte, se bem que não rompe
completamente com o humanismo, também não vê saída por meio de um
humanismo positivo e o diz abertamente: tanto o trabalho quanto o próprio
humano agora são faces do capital, subsumidos tornaram-se parte do rito de
valorização dele e não há salvação afirmando esse polo contra o outro. Ele não
investiga o papel das relações jurídicas nessa representação, mas captura
plenamente suas consequências, daí dizer, por exemplo, que sob a dominação
real do capital, o humanismo se tornou uma justificativa ideológica tanto quanto
o cientificismo297.

5.1.3.3 – A concepção de direito dos lagrassianos


Não resta dúvida de que a questão central para os lagrassianos, e talvez a
única que é comum a todos os membros da “escola”, é a da centralidade do
processo de trabalho na determinação das relações sociais do modo de
produção capitalista. É o meio pelo qual, ainda que reconhecendo os méritos do
operaísmo, eles prosseguiram na investigação do aspecto técnico-material do

Déclin du mode de production capitaliste ou déclin de l’humanité?, 1973. Disponível


297

em: https://revueinvariance.pagesperso-orange.fr/declin.html.
169
processo de produção, portanto no interior do processo de produção imediato,
sem cair no subjetivismo que condicionava os métodos operaístas. Agora, o
método lagrassiano tem implicações para a análise do direito distintas das de
Negri, que acusou Pachukanis de exagerar a ligação do direito com a circulação?
A pedra de toque da abordagem lagrassiana é sua reconstrução das
categorias da crítica marxiana tendo como princípio a centralidade do processo
de produção, de modo que antes de chegar às categorias propriamente jurídicas,
o contributo dos lagrassianos é o efeito em cascata de toda essa reconstrução.
O momento chave é a redefinição do trabalho abstrato a partir apenas da
subsunção real, quando a reestruturação interna do processo de trabalho reduz
todos os operários à operação de atividades inespecíficas, abstratas não apenas
enquanto forma social, mas enquanto movimento corpóreo também. A
importância de um conceito adequado do trabalho abstrato para pensar o direito
aparece de duas maneiras:
a) Por um lado, desde a Crítica do programa de Gotha, reconheceu-se que
existe quase uma relação contabilística entre o trabalho abstrato, como a forma
prática a que são reduzidos os vários trabalhos e a repartição do produto social,
e o direito. Útil aqui citar Marx por extenso:

Apesar deste progresso, este igual direito está ainda


constantemente carregado com uma limitação burguesa. O
direito dos produtores é proporcional ao seu fornecimento de
trabalho; a igualdade consiste em que ele é medido por
uma escala igual: o trabalho. Mas um [indivíduo] é física ou
espiritualmente superior a outro; fornece, portanto, mais
trabalho no mesmo tempo ou pode trabalhar durante mais
tempo; e o trabalho, para servir de medida, tem que ser
determinado segundo a extensão ou a intensidade, senão
cessaria de ser escala [de medida]. Este igual direito é direito
desigual para trabalho desigual. Não reconhece nenhumas
diferenças de classes, porque cada um é apenas tão
trabalhador como o outro; mas, reconhece tacitamente o
desigual dom individual — e, portanto, [a desigual]
capacidade de rendimento dos trabalhadores — como
privilégios naturais. E, portanto, um direito da desigualdade, pelo
seu conteúdo, como todo o direito. O direito, pela sua natureza,
só pode consistir na aplicação de uma escala igual; mas, os
indivíduos desiguais (e não seriam indivíduos diversos se não
fossem desiguais) só são medíveis por uma escala igual,
desde que sejam colocados sob um ponto de vista igual,
desde que sejam apreendidos apenas por um
lado determinado, por exemplo, no caso presente, desde que

170
sejam considerados como trabalhadores apenas e que se não
veja neles nada mais, desde que se abstraia de tudo o resto.
Além disso: um trabalhador é casado, o outro não; um tem
mais filhos do que o outro, etc., etc. Com um rendimento de
trabalho igual — e, portanto, com uma participação igual no
fundo social de consumo — um recebe, pois, de facto, mais
do que o outro, um é mais rico do que o outro etc. Para evitar
todos estes inconvenientes, o direito, em vez de igual, teria
antes de ser desigual.

Mas, estes inconvenientes são inevitáveis na primeira


fase da sociedade comunista, tal como precisamente saiu da
sociedade capitalista, após longas dores de parto. O direito
nunca pode ser superior à configuração económica — e ao
desenvolvimento da cultura por ela condicionado — da
sociedade.

Numa fase superior da sociedade comunista, depois de


ter desaparecido a servil subordinação dos indivíduos à
divisão do trabalho e, com ela, também a oposição entre
trabalho espiritual e corporal; depois de o trabalho se ter
tornado, não só meio de vida, mas, ele próprio, a primeira
necessidade vital; depois de, com o desenvolvimento
omnilateral dos indivíduos, as suas forças produtivas terem
também crescido e todas as fontes manantes da riqueza co-
operativa jorrarem com abundância — só então o horizonte
estreito do direito burguês poderá ser totalmente ultrapassado
e a sociedade poderá inscrever na sua bandeira: De cada um
segundo as suas capacidades, a cada um segundo as suas
necessidades!298

Ou seja, enquanto ainda for necessário o trabalho abstrato como mediação


entre trabalhos privados, isto é, enquanto ainda não existir o trabalho como
imediatamente social – pois na sociedade capitalista ele foi socializado, mas
mediatamente apenas – então deve existir ainda a equivalência nos termos do
direito burguês, ainda existe a régua rígida e abstrata, que é o tempo de trabalho,
escala de magnitude do trabalho abstrato. A socialização do trabalho que
acontece sob o capitalismo é sempre mediada pela troca: os vários trabalhos
são reduzidos ao trabalho abstrato porque as mercadorias por eles produzidas

298
Crítica do programa de Gotha, III, 1875. Disponível em:
https://www.marxists.org/portugues/marx/1875/gotha/index.htm.
171
são igualadas na troca. Na apresentação de Marx, a fase inferior do comunismo
é apresentada como a abolição da produção generalizada de mercadorias, mas
em que ainda subsiste o direito burguês pois o trabalho abstrato continua
enquanto meio de contabilidade: a cada um segundo seu trabalho. Até aqui
chega-se ao ponto de reconhecer que há uma relação entre a troca de
mercadorias, o trabalho abstrato e o direito, mas apenas pelo ângulo da
distribuição, de modo que não se apreende, ainda, a determinação fundamental
das relações jurídicas.
b) Pachukanis parte principalmente do capítulo 2 do Capital para
demonstrar a relação entre a célula-mãe do direito, a forma jurídica propriamente
dita, que é o sujeito de direitos, e a forma da mercadoria. Porque a questão é
que não basta que as mercadorias sejam equivalentes – e, por extensão, os
trabalhos –, é preciso que se estabeleça uma relação de reconhecimento entre
os proprietários de mercadorias, pois “as mercadorias não podem ir por si
mesmas ao mercado”. Assim sendo, para realizar o processo de troca e a forma
da mercadoria enquanto mercadoria, é preciso excluir a apropriação violenta e,
ao contrário, estabelecer a relação jurídica, pela qual uma mercadoria só se
aliena como um ato volitivo de ambas as partes. Em sociedades antigas com
economias mercantis mais ou menos desenvolvidas, a forma jurídica aparecia
de forma quase ad hoc, sem, todavia, erigir-se em esfera de regulamentação
social como ocorre na sociedade burguesa; para explicar essa transformação,
Pachukanis recorre à principal relação de troca do modo de produção capitalista:
aquela entre o capitalista e o operário, entre capital produtivo e a força de
trabalho. O contrato só se torna a forma principal de regulação social entre
indivíduos a partir do momento que passa a ser necessário para regular toda a
atividade produtiva da sociedade, em que, sem ele, não existiria o processo de
valorização – pois a extração do mais-valor depende da independência formal
do trabalhador – e, portanto, o processo de produção. É a partir da generalização
da produção de mercadorias, com a transformação da capacidade de trabalho
em mercadoria, que o direito também se generaliza, a partir do que “a própria
sociedade se apresenta como uma cadeia infinita de relações jurídicas”.
A visão apresentada até aqui é questionada por La Grassa, no entanto. A
equivalência dos trabalhos, a redução deles a trabalhos abstratos, diz ele, não
ocorre tão somente em virtude da esfera da circulação, isto é, não depende
apenas da transformação da força de trabalho em mercadoria: requer a
transformação interna do processo produtivo, para que o processo de trabalho
seja decomposto e recomposto, mas agora desagregado e administrado para
atender às necessidades da valorização. Daí o emprego do conceito de
subsunção: no primeiro momento, o capital assume o controle da produção, mas
ela ainda ocorre como era antes, o capital apenas copia as formas de produção
anteriormente existentes; é com a subsunção real que, de modo a aumentar a
extração de mais-valor relativo, revolucionam-se as formas de produção, tanto
pelo emprego da técnica quanto da administração científica, o processo de
trabalho então é decomposto, suas partes adquirem uma nova organização, as
máquinas são empregadas como materialização dessa nova organização, a
produtividade da força de trabalho aumento na medida de sua despossessão,
172
de sua inabilidade própria. Conforme aumenta a parte do capital constante em
relação ao capital variável na produção, mais dependente do maquinário se torna
o trabalho, o artesão que dominava todo o processo de produção desaparece e
é substituído por um operário que só participa de uma parte ínfima da cadeia
produtiva. La Grassa alega que é só por meio dessa longa transição que o
trabalho abstrato ganha uma existência prática, pelo condicionamento dos
trabalhadores ao exercício de atividades inespecíficas, iguais.
O ‘trabalho abstrato’, portanto, se realiza praticamente,
concretamente, na moderna sociedade burguesa, baseada no
maquinismo industrial. A abstração do ‘trabalho em geral’, que
– como categoria puramente pensada – não é característica
típica de uma sociedade em particular, mas é válida, ao
contrário, nessa sua abstração, para todas as formações
sociais, se torna ‘praticamente verdadeira’ apenas na
sociedade capitalista completamente desenvolvida. O
‘trabalho abstrato’ é, portanto, a ‘abstração do trabalho em
geral’ concretizada no âmbito do modo de produção
especificamente capitalista; e, ao realizar-se praticamente, o
‘trabalho abstrato’ se torna uma característica peculiar apenas
desse modo de produção.299
Dentre as implicações do método lagrassiano para a crítica marxista do
direito, é particularmente notável o uso que alguns autores têm feito dessa
conceituação para desvelar, portanto, uma conexão necessária entre a
subsunção real e a especificidade histórica do direito, como forma social da
sociedade capitalista desenvolvida. Porém, ao contrário de Negri, e com grande
vantagem sobre ele, não se implica que houve erro de Pachukanis ao relacionar
direito e circulação, pois, de fato, o direito é diretamente determinado pela esfera
da circulação, e mediatamente pelo processo de produção imediato ou, em
outras palavras, o direito é determinado pelo processo de produção imediato em
última instância 300 . Isso ocorre porque as formas circulação da sociedade
capitalista, a troca entre o capital produtivo e força de trabalho qua mercadoria,
são determinadas pelas relações dentro do processo de produção; é só com uma
determinada reestruturação da produção em seu interior que a força de trabalho
é, de certo modo, reduzida à capacidade de efetuar trabalho abstrato; uma vez
feita essa redução, então podem se desenvolver as formas da circulação
capitalista, a partir das quais desenvolve-se o direito enquanto forma de
regulação social – ao contrário do papel intersticial que o direito desempenha em
sociedade pré-capitalistas, ocorrendo apenas na superfície, nos espaços
mercantis da sociedade.

299
LA GRASSA, Gianfranco. Valore e formazione sociale. Roma: Riuniti, 1975, p. 31.
300
NAVES, Márcio Bilharinho. Marxismo e direito: um estudo sobre Pachukanis. São
Paulo: Boitempo, 2008, pp. 76-77.
173
5.2 – Novo Marxismo na Itália
Na Introdução, foi proposta uma forma específica de pensar o Novo
Marxismo. O modo de produção capitalista atravessou um período de transição
que culminou em uma reestruturação de escala global no momento em que
concluiu o processo de expansão extensiva, territorial, por todo o planeta;
concomitantemente, os ciclos de lutas de massas escalaram progressivamente
até atingir um pico, tanto quantitativo quanto qualitativo, na janela de 1968-1973.
O refluxo das lutas a partir daquele momento, fosse pela derrota total, fosse por
vitórias parciais reabsorvidas, acompanhou o rápido processo de transformação
de toda a sociedade mundial, transformações sociais, políticas, econômicas e
técnico-produtivas.
Também foi dito na Introdução que a Itália teve um papel na formação do
Novo Marxismo, que olhar para o que ocorreu na Itália na segunda metade do
século XX, para o marxismo revolucionário naquele país, poderia adicionar mais
peças ao quebra-cabeças do Novo Marxismo em escala global. Daí chamar-se
essa tese “Origens italianas do ‘novo’ marxismo”. Se não tratamos, portanto, de
um fenômeno unicamente italiano, algo que não se trata de uma especificidade,
mas, antes, de uma parte com uma conexão necessária de um todo, é valido
buscar deixar essas ligações também mais evidentes. Nesta seção e na próxima
é isso que se propõe. Nesta, faço uso de uma ferramenta heurística de grande
utilidade, já citada na Introdução, que é a classificação, proposta por Alysson
Mascaro em Filosofia do Direito, do Novo Marxismo em uma arquitetura
fundamental: três grandes eixos e uma tangente301. Para recordar do que foi dito
na introdução, o Novo Marxismo se compõe, em seus eixos centrais, de
derivacionismo, alternativismo e nova crítica do valor.
Antes, contudo, por óbvio que se falamos em origens do Novo Marxismo, é
porque houve um momento de ruptura, um ponto em que o Novo Marxismo se
separa do “antigo Marxismo” – pelo que me refiro, principalmente, à ortodoxia
stalinista/marxista-leninista.
Galvano della Volpe, por mais que tenha sido fundamental como influência
teórica, não pertence ele mesmo ao Novo Marxismo; pelo contrário, em sua
concepção política ele se reintegrou completamente à linha do PCI – e o Novo
Marxismo não é apenas teórico, ele envolve uma profunda reconsideração da
própria prática política do marxismo – de tal modo que ele, ainda que tenha tido
problemas com a linha oficial historicista em dado momento, de forma alguma
opera uma ruptura. O grande papel de Della Volpe é ter, em sua releitura do
método de Marx e do conceito de materialismo, iniciado a destruição do dualismo
entre materialismo e dialética, ainda que sob a forma da destruição da dialética
– da dialética mistificada do hegelianismo – sob o choque da negatividade da
matéria, isto é, pela abertura do conceito ao não-conceitual. A maior parte da
escola della-volpeana se insere, assim, como parte ainda das velhas

301
MASCARO, Alysson. Filosofia do Direito. São Paulo: Atlas, 2019, p. 510.
174
concepções, incluindo Umberto Cerroni, que, não obstante ensaie uma crítica
das concepções instrumentalistas do Estado que poderia tê-lo aproximado de
uma compreensão da derivação da forma política estatal, ele retrocede para o
nível da legalidade e do positivismo, como se vê em sua crítica a Pachukanis por
não, alegadamente, dado suficiente ênfase para o Estado, a norma e o direito
público. Como veremos, Lucio Colletti acaba sendo única exceção e tão somente
na segunda fase de sua produção intelectual, quando passa a interpretar a teoria
do valor como teoria da alienação.
Caso especial é o de Amadeo Bordiga e do programismo de modo geral. À
diferença da maior parte do Novo Marxismo, os programistas, na realidade,
nunca fizeram parte da ortodoxia stalinista, formaram a própria tradição política
ainda na década de 1920, contra o refluxo da onda revolucionária de 1917-1923.
Então de que modo os relacionar com o surgimento do Novo Marxismo? É
preciso incluir outro critério: a concepção da luta de classes. Um marco
fundamental na ruptura de 1968 é o abandono do terreno da luta de classes
concebida com base na classe operária da fase da dominação formal do capital
– assunto que retomarei na seção seguinte – gerando várias abordagens para
lidar com a reestruturação capitalista, alguns negando a luta de classes tout court,
outros buscando o sujeito revolucionário em novas composições. Outra questão
fundamental que também pode ser incluída na ruptura de 1968 é a visão da
obsolescência do socialismo, ou, dito de outro modo, na ideia de que já não faz
sentido pensar em uma fase inferior do comunismo, pensar em vouchers de
trabalho; pelo contrário, surgirão vários pensadores falando em transição
imediata, comunismo como transição, transição pela imposição de medidas
comunistas e assim por diante – uma perspectiva que na França ganhou o termo
bastante representativo de comunização.
Amadeo Bordiga, é verdade, pode ser visto como um antecipador de vários
problemas do Novo Marxismo: seus artigos sobre o entrelaçamento de raça e
classe trazem formulações que ecoam o conceito de composição de classe dos
operaístas, assim como ele, corretamente vendo que o capitalismo jamais irá
reduzir a sociedade a apenas duas classes, afirma que fazem parte do processo
revolucionário o subproletariado, nos países centrais, e o campesinato, no
Terceiro Mundo. Também antecipadora é sua visão de centralismo orgânico
como estrutura do partido, pois nega-se então a necessidade de continuar as
mediações burguesas – a democracia – dentro do partido de classe, principal e
mais importante órgão da transição revolucionária, pelo que é como falar em
uma prefiguração ou realização imediata de relações comunistas.
Entretanto, Bordiga nunca faz a ruptura. A ruptura iria exigir, em larga
medida, o abandono de sua concepção programática, da forma em que ele ainda
concebia o processo revolucionário e a ditadura de classe. A visão dele, sem
sombra de dúvidas, era muito mais avançada que a de marxistas-leninistas e
trotskistas, mas não rompia com o bolchevismo, que é a expressão fundamental
da forma de pensar o marxismo revolucionário no período da dominação formal
do capital. Bordiga é uma influência fundamental para o Novo Marxismo, não
apenas na Itália, mas a ruptura quem fez não foi ele, foi Jacques Camatte.

175
A história do Operaísmo pode ser lida como a história do parto do Novo
Marxismo na Itália. Após a incubação nos Quaderni Rossi, a ruptura de Tronti
com Panzieri para fundar o Classe operaia, em 1964, é o primeiro episódio do
Novo Marxismo, mas, como nada nasce pronto, essa primeira forma, o
operaísmo em sentido estrito, era ainda a transição: a ruptura com a ortodoxia
do “marxismo tradicional” foi feita, sobretudo por abandonar o elogio do trabalho,
mas o produto estava por definir. A definição se atingiu após 1972, no período
da decadência e do refluxo. Se o operaísmo em sentido estrito rompeu com a
concepção antiga de luta de classes, o pós-operaísmo, ou autonomismo, seria a
ruptura com a ideia de revolução em etapas; epitomizado nos escritos de Negri,
o pensamento dessa fase é o do comunismo como transição, sem fase inferior,
mas separação e afirmação do comum imediatamente.
Quando La Grassa começa o seu período intelectual mais fértil, o Novo
Marxismo já era uma realidade e, em vários sentidos, seu trabalho todo pode ser
visto como uma resposta ao Operaísmo – tanto na teoria quanto na política. Não
há dúvidas de que La Grassa já não pertence ao marxismo tradicional e, pelo
contrário, opera uma tentativa de reconstruir várias das categorias fundamentais
da crítica da economia política, bem como sua recusa explícita ao que ele
entende como paradigma do marxismo da 2ª Internacional – no qual o próprio
Lênin ainda estaria incluso –, que repousa sobre a primazia das forças produtivas.
Esse percurso teórico o vai levar de um paradigma pós-althusseriano – similar a
Edelman, Balibar, Bettelheim e Linhart – e maoísta – metabolizando as lições da
Revolução Cultural – a uma forma de pós-marxismo que culmina na negação da
luta de classes a partir de meados da década de 1980.
Temos assim mais bem definida a fronteira, concluindo-se que Lucio
Colletti, Jacques Camatte e pós-programismo, o Operaísmo e, enfim, a Escola
Lagrassiana encontram-se no terreno do Novo Marxismo. Como é o objetivo
chamar atenção para o que há de internacional e geral, não de especificamente
italiano, torna-se útil uma aproximação entre o Novo Marxismo Italiano e as
correntes do Novo Marxismo como definidas por Mascaro.

5.2.1 – Lucio Colletti: o valor como alienação


Propus que Colletti pode ser visto como parte do Novo Marxismo e agora
quero dar alguns elementos do porquê. Entretanto, apesar de manter uma
afinidade com a problemática que determinou a ruptura com o marxismo
tradicional, Colletti tampouco deu às suas reflexões características estáveis, de
tal forma que não é possível situá-lo em aproximação com nenhum dos três
grandes eixos. Pelo contrário, Colletti aparece sobretudo como um pensador
solitário – ao menos em seu período mais fértil, posterior ao afastamento do
della-volpismo. Assim, parece acertado dizer que Colletti seria parte da tangente,
ainda que com a maior parte dos autores da tangente ele não compartilhe
temáticas.

176
Assim como foi o della-volpismo em geral, Colletti é, acima de tudo, uma
bomba. O seu pensamento original, o da segunda fase, abre para a Itália uma
série de problemáticas que já estavam em processo no resto da Europa a partir
das redescobertas do jovem Lukács, de Korsch, de Rubin, de Pashukanis e de
Rosa Luxemburgo, bem como da influência das publicações dos escritos de
juventude de Marx e estudos importantes, como o Gênese e Estrutura do Capital
de Marx, de Roman Rosdolsky. Retomar a teoria da alienação naquele momento,
apesar de sua força mistificante em uma análise mais detida, significava ao
menos propor o retorno ao Marx que escreve uma crítica da economia política e,
portanto, das formas sociais fetichistas do modo de produção capitalista, ao
invés de aceitar Marx apenas como um continuador da tradição de Smith e
Ricardo, um cientista da economia.
A economia política clássica, tomando a existência da
mercadoria como ‘natural’ e portanto um fato não-
problemático, restringiu-se a investigar as proporções em que
as mercadorias são trocadas umas pelas outras,
concentrando a análise no valor de troca em vez de no valor
em sentido estrito: “a análise da magnitude do valor absorve
quase completamente a atenção de Smith e Ricardo”, Marx
escreveu. Para Marx, ao contrário, o problema essencial,
antes mesmo daquele da proporção de troca das mercadorias
é explicar o porquê de o produto do trabalho tomar a forma da
mercadoria, o porquê de o ‘trabalho humano’ aparecer como
‘valor’ de ‘coisas’. Daí a importância decisiva para ele das
análises do ‘fetichismo’, ‘alienação’ ou ‘reificação’
(Verdinglichung): o processo pelo qual, enquanto o trabalho
humano ou social subjetivo é representado na forma de uma
qualidade intrínseca às coisas, essas coisas mesmas,
dotadas de suas próprias qualidades sociais, subjetivas,
aparecem ‘personificadas’ ou ‘animadas’, como se fossem
sujeitos independentes.302
Talvez esse seja o maior mérito de Colletti e a contribuição positiva – ao
contrário das negativas, isto é, contra sua própria intenção, que já destaquei no
capítulo dedicado ao della-volpismo – deixada por ele que coloca seu nome no
curso do desenvolvimento do marxismo dos últimos 50 anos. É por isso, muito
mais do que por seus ensaios em neo-kantianismo epistemológico, que Colletti
ainda merece ser lido. Por óbvio, com isso não se deve esquecer que, no fundo,
Colletti ainda não conseguiu ler corretamente a teoria do fetichismo em Marx,
motivo pelo qual ele a remetia à teoria da alienação. Isso não pediu que
desenvolvesse em alguns sentidos importantes uma crítica da ortodoxia
“marxista”.

302
COLLETTI, Lucio. From Rousseau to Lenin: studies in ideology and society. Nova
York: Monthly Review, 1974, pp. 77-78.
177
Por exemplo, Colletti já percebia que a ortodoxia, justamente por
transformar o marxismo em continuação da economia política, sem atenção para
a crítica dirigida às formas sociais, passava a conceber o materialismo como
tecnologismo ou produtivismo, a relação de dominação do homem sobre a
natureza é colocada como motor fundamental da História humana, todo o resto
não passando de epifenômenos do avanço dessa dominação.
A produção social é assim transformada em ‘técnicas de
produção’; o objeto da economia política se torna o objeto da
tecnologia. Já que essa ‘técnica’, que é a ‘produção material’
no sentido estrito do termo, é separada daquela outra
produção simultânea efetuada pelos homens, a produção de
suas relações (sem as quais, para Marx, aquela outra não
existiria), a concepção materialista da história tende a se
tornar uma concepção tecnológica da história. 303
Independentemente da leitura equivocada da teoria do fetichismo, Colletti
apresenta uma crítica correta do produtivismo – no fundo só outra forma de
historicismo, onde há um racionalismo sem empiria, sobra um empirismo sem
razão. Também daí emerge sua inteiramente correta crítica ao antigo mestre
Della Volpe por este sugerir que o Estado ainda existiria no socialismo, que
poderia existir um Estado em si socialista. Infelizmente, ao invés de aprofundar
esse momento de claridade – e, idealmente, deixar de ler o fetichismo como
alienação –, Colletti se permitiu cair no lado fraco de seu pensamento – o
conceito limitado e positivista de ciência dos della-volpeanos – e então renunciar
ao marxismo.

5.2.2 – Camatte e o fim do proletariado


De acordo com Camatte, as formas “autonomizadas” do
capital (tal como o capital fictício) resultaram na constituição
de uma “comunidade material” baseada na competição entre
gangues rivais que reabsorver a oposição entre burguesia e
proletariado. Consequentemente, de agora em diante não há
possível oposição ao capital a não ser “em sua dimensão
humana” (uma tese que concorda em certa medida com as
análises de Moishe Postone e do grupo Krisis)304
A perspectiva camattiana é de que, a partir da dominação real do
capital, o trabalho teria se tornado um polo completamente interno ao
capital e o proletariado teria perdido qualquer potencial emancipatório .

303
Ibid, p. 65.
304
CORRIENTE, Federico. Jacques Camatte and the missing link of contemporary
social criticism, 2014. Disponível em: https://endnotes.org.uk/posts/f-corriente-jacques-
camatte-and-the-missing-link-of-contemporary-social-criticism.
178
O capital, vez que incapaz de se separar do trabalho vivo, seu limite
intransponível, teria o absorvido, subsumido não apenas na escala do
processo de trabalho, mas a nível social. O trabalho já não seria mais o
antagonista do capital, mas apenas um de seus polos. Afirmar o trabalho
e a proletarização seria simplesmente outra forma de afirmar o
capitalismo. A fase inferior do comunismo e o período de transição,
teorizados por Marx na Crítica do programa de Gotha, estariam, portanto,
obsoletos, pois as demandas afirmativas do proletariado – a
generalização da própria condição ao resto da sociedade - já foram
virtualmente cumpridas pelo próprio capitalismo.
A visão de Camatte é, então, bastante parecida com a visão geral
da Nova Crítica do Valor, na visão de que um sujeito engendrado pelo
processo interior à valorização do valor não pode ser também o sujeito
de transcendência do modo de produção capitalista. A diferença central
é uma questão histórica: ao passo que Robert Kurz, por exemplo parece
achar que a classe trabalhadora nunca foi uma força transcendente o
movimento operário nunca teve o potencial de abolir o capital, Camatte
acha que, antes da dominação real do capital, essa possibilidade
efetivamente existia, ainda que a derrota da onda revolucionária de
1917-1923 tenha condenado o movimento operária a desempenhar um
papel de modernizador e desenvolvedor da acumulação capitalista, o
mesmo que diz Kurz.
Em consequência, a absorção do trabalho pelo capital implica que
toda e qualquer luta contra o capitalismo deve se a partir de fora, por um
abandono da sociedade do valor em geral.
Outro elemento do pensamento de Camatte que parece digno é sua
visão aprofundada do fenômeno do fetichismo que compreende o capital
enquanto processo de valorização e, portanto, exploração do trabalho
vivo, não se limitando ao fetichismo da mercadoria e ao momento da
circulação simples. Precisamente, é isso que Camatte já criticou na
abordagem situacionista de Guy Debord 305, que assentava seu conceito
de espetáculo no conceito de fetichismo da mercadoria. Para Camatte,
isso é limitante e amador, uma análise presa ao nível da circulação. Ele
diz, ao contrário, que as representações que emergem na dominação
real do capital devem ser consideradas na inteireza do processo d o valor,
no fetichismo do capital, ao fim do livro III do Capital, não no da
mercadoria. Isso pode ser interpretado como uma ruptura de Camatte
com visões formalistas e circulacionistas, é sua forma de olhar para o
momento da não-identidade do conceito, pois é no momento da produção,
da exploração, que o valor se torna capital, não pela circulação simples,
mas pelo momento em que a equivalência é rompida pelo consumo da

305
Gloses en marge d’une réalité VII. Disponível em:
https://revueinvariance.pagesperso-orange.fr/gloses.VII.htm.html.
179
força de trabalho. Essa visão é similar à crítica que Kurz desenvolve de
Rubin a partir do conceito de consumo produtivo, pelo qual ele aponta a
insuficiência de uma teoria da forma do valor que não capte o aspecto
de materialidade e a tentativa de as formas sociais dominarem o aspecto
material. Camatte também ressalta isso, apontando que na dominação
real as formas sociais passam a se fechar sobre a materialidade, que o
impulso do capital é a destruição da matéria, caso não possa controla-la
para seus próprios fins.

5.2.3 – Do Operaísmo ao Alternativismo


Não é necessário nem mesmo fazer uma aproximação para entender a
localização do operaísmo na geografia do Novo Marxismo: o operaísmo, ou
melhor dizendo, o autonomismo é um caso paradigmático, a grande referência
de alternativismo político. Desse modo, é menos uma questão de criar a relação
e mais de apontar os elementos que levaram do operaísmo ao alternativismo.
Os dois elementos fundamentais são 1) o conceito de composição de
classe, pelo qual se tornaria possível ir além da noção de classe como dado
sociológico e, portanto, da dependência no proletariado enquanto a classe de
assalariados sem reservas; e, 2) a compreensão do trabalho como externalidade
ao capital e, então, da luta entre capital e trabalho como uma oposição real, base
da estratégia pós-operaísta da separação e afirmação da autonomia operária. É
a combinação desses dois instrumentos conceituais no período posterior à
reestruturação capitalista global que colocará o operaísmo no caminho do
autonomismo, Negri em direção à multidão e ao comum.
Ainda que tenha ganhado contornos definidos ao longo de várias décadas,
não é verdade que Negri tenha rompido com as raízes operaístas. Já em 1968,
em um artigo de Negri para a Contropiano, estava posto o fundamento:
Apenas no momento necessário da crise a consciência
teórica acompanha a prática e decifra o sentido dos
hieróglifos sociais nos quais esta está sublimada. E é como
dizer que apenas a urgência do choque, da imediatez e do
medo – este transcendental da existência burguesa –
reduzem a margem da mistificação em que é confinada a
consciência teórica, impõem aquelas aberturas ao
pensamento negativo nas quais a consciência da prática, na
sua aspereza, por vezes se resgata. A felicidade teórica é
agora apenas infelicidade prática.306
A partir dessa perspectiva, Negri se coloca como inimigo da dialética não
apenas na teoria, mas também na política: o momento da negatividade, da

306
Marx sul ciclo e la crisi, in BOLOGNA, Sergio; et al. Operai e stato. Milão: Feltrinelli,
1972, p. 192.
180
abertura, é a dissolução do ciclo do capital, enquanto a ideia de uma superação
dialética, em que a contradição é resolvida em um nível mais alto da mesma
identidade, passa a ser a forma do desenvolvimento capitalista de reconsolidar-
se após a crise. A classe operária, por outro lado, é o antagonismo sem
superação, não uma contradição dialética, mas uma oposição real; o momento
do negativo passa a aparecer, portanto, como espaço para se afirmar a diferença.
Daí que Negri, recorrendo aos Grundrisse, não vê a revolução como uma
resposta para superar a crise; pelo contrário, vê a revolução como o
aprofundamento da crise, como imediata dissolução da relação-capital, contra o
desenvolvimento capitalista – o uso capitalista da crise. O novo sujeito
antagonista, o operário-social subjetivado nos momentos de crise, não tem
necessidade da dialética com o capital; pelo contrário, é o capital que precisa do
enfrentamento direto. O operário-social, agora visto como autônomo, precisa, na
verdade, satisfazer seus desejos, levar adiante a autovalorização, tornar-se a
negação absoluta da relação-capital, não a negação determinada e inversão
interna, mas a separação da prática social capitalista, transição como
comunismo, comunismo como a própria transição.
A partir da crise, pode-se subjetivar a composição de classe, a qual se
converta no movimento de extrapolação do próprio direto – bem como das outras
relações sociais – em uma lógica de autovalorização, de satisfação e
radicalização das próprias necessidades, desejos, vontades. Os direitos que
eram então ativados pelo sujeito antagonista dentro do próprio sistema como ele
mesmo, tornam-se então incompatíveis com a reprodução geral do sistema307.
Como representação máxima disso aparece a ideia de direito do comum,
enquanto a potencialidade de autovalorização, auto-organização de relações
sociais próprias e imediatamente comunistas em contraposição tanto ao direito
privado quanto ao direito público. O crescimento do comum, pensando o
comunismo como a própria transição, torna-se o meio de asfixiar o capitalismo.

5.2.4 – Derivação do Estado no pensamento de Gianfranco La Grassa


Talvez o mais interessante para aproximar a escola lagrassiana as
correntes do Novo Marxismo não recorrer aos elementos centrais e basilares já
mencionados até aqui. No lugar, é expandindo o escopo para ver quais podem
ter sido implicações do pensamento lagrassiano que pode se aclarear o porquê
da proximidade de La Grassa com o Novo Marxismo, ou seja, em que sentido La
Grassa pertence ao seu tempo. Por isso, de enorme relevância é um texto co-
escrito por La Grassa e Maria Turchetto sobre o leninismo, no qual avaliam como
uma fraqueza do leninismo uma continuidade com a Segunda Internacional pela
permanência, em Lênin, de uma teoria instrumentalista do Estado. Contra a ideia

307
Como já apontado, há grandes similitudes entre a concepção de revolução como
autovalorização operária de Negri aqui exposta e o economicismo comum, tanto nos
grupos russos atacados por Lênin em O que fazer? quanto nos escritos tardios de
Trótski, em particular no Programa de Transição.
181
do Estado como um instrumento – em si neutro – utilizado pela burguesia para
a coerção simplesmente, La Grassa e Turchetto olham para o Estado enquanto
manifestação de funções garantidoras da reprodução das relações capitalistas.
Na realidade, ainda que se trate de um traço
fundamental, não se pode reduzir o Estado ao seu núcleo
coercitivo. Este não pode ser simplesmente justaposto aos
aparelhos políticos o que implica a conexão pela circulação.
Organicamente ligados, em razão mesmo do processo de
valorização-reprodução das relações capitalistas, as duas
funções do Estado burguês se manifestam pelo
estabelecimento de uma relação através e graças à
circulação das unidades dispersas do capital social. O Estado
burguês está profundamente implicado, através das relações
de conexão pela circulação, no movimento fundamental de
reprodução das relações capitalistas. 308
Em seguida, escrevem ainda que por tal relação se nota o que é específico
na forma política estatal. Essa consideração permite aos lagrassianos rechaçar
a “neutralidade do aparelho de Estado” assim como rechaçaram a “neutralidade”
das forças produtivas. A essa altura, já é possível fazer duas ligações: 1) está
agora plenamente justificada a analogia feita, ainda na introdução, entre a crítica
de Pachukanis à burocracia e um embrionário anti-produtivismo309; e, 2) pode-
se com toda justeza incluir Gianfranco La Grassa no rol dos pensadores ditos
derivacionistas.
O Debate da Derivação do Estado, que teve lugar na Alemanha na década
de 1970, acabou por constituir um campo de pensadores marxistas, composto a
princípio por nomes como Joachim Hirsch, Elmar Altvater, Rudolf Müller e
Christel Neusüss, tendo, porém, alcançado projeção internacional ao influenciar,
na década de 1980, uma geração de marxistas britânicos, dentre os quais John
Holloway, Sol Picciotto, Bob Jessop e Simon Clarke. Além desses, as influências
alcançaram a Escola da Regulação, na França, representada por Michel Aglietta
e Robert Boyer, e outros teóricos, como Suzanne de Brunhoff e David Harvey.
Apenas de modo a não deixar dúvidas quanto à afinidade entre La Grassa
e o derivacionismo, vale analisá-lo em comparação a alguns dos mais
representativos autores desse campo. Por óbvio, há significativas diferenças, as
mais óbvias se tratando da rejeição que vários dos autores derivacionistas
apresentam ao althusserianismo, principalmente os britânicos 310 , mas o

308
LA GRASSA, Gianfranco; TURCHETTO, Maria. Notes sur le léninisme, in
Communisme, nº 5/6, 1979, p. 70.
309
Nesta tese, p. 19.
310
Essas diferenças são particularmente ressaltas por Simon Clarke, que dedicou uma
parte de seus trabalhos à crítica do estrutural-funcionalismo – no qual ele inclui
Althusser, Bettelheim, Poulantzas, Balibar, etc. Ver: CLARKE, Simon. Marx,
Marginalism and Modern Sociology. Londres: Palgrave, 1991.
182
fundamental é que, apesar dos desacordos, a problemática é a mesma, a da
derivação da forma política estatal a partir da reprodução das relações de
produção capitalistas, unindo a crítica do produtivismo à crítica do
instrumentalismo estatal.
Comecemos, por exemplo, pelas concepções respectivas do caráter do
lado “técnico” do processo de produção material. Como já se discutiu, é
fundamental para os lagrassianos a crítica da concepção tradicional das forças
produtivas como puramente técnicas, ou, melhor dizendo, da técnica como uma
força fora da história, a-social, regida pelas próprias leis imanentes. Ao contrário,
a ênfase lagrassiana é sempre no fato de que a produção, tanto como
organização quanto na forma tecnologia empregada, obedece às necessidades
do capital como expropriação real do trabalhador, portanto ao contrário de ser
um resultado da mera aplicação invariável de uma ciência fora das lutas de
classe, a técnica corresponde às necessidades do controle capitalista da
produção. Quanto aos derivacionistas, tomemos um exemplo:
A crítica marxista da economia política não é de
interesse meramente histórica, pois é a crítica da base
constitutiva de toda ideologia burguesa, cuja característica
definidora é a concepção da produção como processo técnico,
uma concepção que ancora a eternização das relações
capitalistas de produção. 311
Recordemos também que para os lagrassianos, as formas da circulação
são determinadas pelas relações do interior do processo de produção, de modo
que o fato de haver a separação entre o capital e os produtores diretos precisa
ser consequência de uma reestruturação técnica que torna a produção não
apropriável pelos trabalhadores. Do mesmo modo, a dispersão da produção em
capitais privados, em unidades produtivas isoladas, é sempre tendencialmente
favorecida a partir de um constante processo de reestruturação em vários ciclos
que passam pela decomposição de uma atividade em partes cada vez mais
especializadas e movimentos mais simples, processo que também ocorre na
cadeia produtiva de um modo geral, com a decomposição em setores. Os
derivacionistas falam em termos similares:
Conduzido pelo capital, o desenvolvimento das relações
de classe e das forças produtivas, do formato material do
processo de trabalho e portanto da socialização da produção,
fundamentalmente altera a estrutura política da sociedade
burguesa, impõe mudanças específicas e tecnologicamente
determinadas na forma de capitais individuais (companhias
limitadas, monopólios) e consequentemente altera as

311
CLARKE, Simon. Marxism, Sociology and Poulantzas’ Theory of the State, in The
State Debate. Londres: Palgrave, 1991, p. 78.
183
condições para a operação da lei do valor que é mediada
através da circulação do dinheiro e das mercadorias.312
Por fim, a questão central em discussão: La Grassa e Turchetto expõem
uma crítica ao instrumentalismo pela compreensão do Estado como
concentração de funções necessárias à reprodução das relações capitalistas de
produção, não apenas por um lado coercitivo, mas mesmo a partir de uma
dedução lógica também, que o Estado precisa se autonomizar como um terceiro
outro para manter a apropriação capitalista do mais-produto como mais-valor,
isto é, mediada pela troca e não como coerção direta.
No modo de produção capitalista, a dissolução de todos
os vínculos de dependência pessoal, indispensável à criação
do pressuposto fundamental da produção do capital e de sua
valorização - indispensável, isto é, à criação do proletariado -
conduz a um modo de exploração (de extração do mais-
trabalho e de obtenção do mais-produto em forma de mais-
valor), que é de todo "interno" à "esfera" da produção (isto é,
às relações de produção)
(...)
O capital não tem mais necessidade de uma coerção
extraeconômica para se apropriar do mais-produto sob a
forma do mais-valor.313
Os derivacionistas chegaram a formulações quase idênticas, muitos, como
Hirsch, partindo diretamente da proposição fundamental de Pachukanis sobre a
necessidade da separação do Estado para garantir que a relação entre capital e
trabalho aparecesse como troca e relação jurídica volitiva entre partes iguais,
entre dois lados que se reconhecem como proprietários de mercadorias 314.
Na sociedade capitalista, a apropriação do mais-valor e
a preservação da estrutura social e sua coesão não
dependem em relações diretas de força ou dependência,
tampouco dependem do poder e força repressiva da ideologia.
No lugar, elas dependem da operação cega das leis
escondidas da reprodução.315
O processo social de produção e reprodução não pode
ser objeto direto de atividade do Estado; pelo contrário, é este

312
HIRSCH, Joachim. The State Apparatus and Social Reproduction: Elements of a
Theory of the Bourgeois State, in HOLLOWAY, John (Org.), State and Capital.
Londres: Edward Arnold,1978, p. 67.
313
LA GRASSA, Gianfranco; TURCHETTO, Maria. Dal capitalismo alla società di
transizione. Milão: Franco Angeli, 1978, pp. 80-81.
314
PACHUKANIS, Evgeni. A teoria geral do direito e o marxismo e Ensaios escolhidos
(1921-1929). São Paulo: Sundermann, 2017, p. 174.
315
HIRSCH, Joachim. Op. Cit., p. 61.
184
último que é determinado pelas leis e pelo desenvolvimento
do processo de reprodução. Assim, o aparelho de Estado de
fato resguarda as regras gerais da mercadoria e do
intercâmbio monetário (que é posto pela circulação de
mercadorias mediando os processos de produção e
exploração); mas ele nem cria o dinheiro nem traz à existência
as regras das relações jurídicas burguesas e sua fundação, a
propriedade privada.316
Dessa necessidade intrínseca à forma especificamente capitalista de se
apropriar do mais-produto é que o Estado burguês se autonomiza, toma a forma
de um terceiro fora da relação direta entre capital e trabalho, é um regulador das
condições sociais de reprodução, sim, mas sem nunca se tornar um instrumento
diretamente sob o controle do capitalista. Isso destrói a compreensão
instrumentalista em suas teses básicas, a do uso consciente e estratégico do
Estado pela classe e a da neutralidade essencial do Estado enquanto
instrumento que poderia ser tomado e dado outra função.

5.3 – Para uma crítica do direito sob a dominação real do capital


A lógica unificadora desse estudo é a tese de que os vários momentos
estudados não são desconexos, que há uma lógica interna que pode ser extraída
pela interação entre o desenvolvimento interno e próprio da teoria, os altos e
baixos da luta de massas e a reestruturação do modo de produção capitalista
em escala global. Mais ainda, que o desdobrar desse movimento deve ser lido
como o processo de ruptura com uma ortodoxia – na realidade com uma
ideologia pretensamente marxista, o marxismo convertido em ideologia – e o
nascimento de um novo campo, ainda que internamente diversificado, unido pela
concepção do marxismo como teoria crítica, como desmistificação das formas
sociais fetichistas. A conformação dessa nova crítica, que se emancipa na
década de 1960, não parou em recuperar os melhores aspectos do marxismo
crítico do ciclo anterior de lutas, o da década de 1920, que haviam sido
condenados e tornados malditos pela contrarrevolução, ela também foi além,
perseguindo uma superação pela destruição de concepções unilaterais e
dualistas.
As concepções dualistas estavam enraizadas em uma existência dual do
próprio modo de produção capitalista, cujo desenvolvimento ainda necessitava
uma expansão extensiva, com vastos territórios e populações sendo submetidos
ao mando do capital, mas sem que este se estabelecesse sobre as próprias
pernas, sobre uma forma de produção especificamente capitalista. A primeira
metade do século XX foi, por esse motivo, o período da transição: após a
internacionalização completa do capitalismo, tanto pela via do imperialismo euro-
americano quanto por um desenvolvimento velocíssimo do mercado mundial,

316
Ibid, p. 64.
185
ambos apoiados pelo crescimento das capacidades tecnológias – os transportes,
as comunicações, a medicina, as armas, a ciência toda à serviço do capital, cujo
culminar se deu na catástrofe suprema entre Auschwitz e Hiroshima. A
monumental reconstrução internacional que se seguiu à Segunda Guerra
Mundial viu o capitalismo se erigir como um grande sistema aparentemente
regulado e administrado: sindicatos legalizados, leis trabalhistas, dirigismo
estatal, organizações internacionais, planos econômicos, grande capacidade de
investimento público e privado.
Assim se liquidava todo vestígio de pré-capitalismo. Tamanha
transformação tampouco se limitava às regiões coloniais e pré-coloniais.
Exemplo fantástico é o da Alemanha 317 : muito ao contrário de um regresso
bárbaro ao pré-capitalismo – como certos “marxistas” iluministas pensaram – o
nazismo representou a solução capitalista para a crise aprofundando pela força
o processo de modernização. Mesmo os resquícios mais atrasados da estrutura
fundiária alemã, o semifeudal domínio dos junkers sobre a terra na Prússia
Oriental, só foram destruídos graças ao Exército Vermelho violentamente
destruir a classe proprietária. Assim, em suas três grandes formas –
keynesianismo, fascismo, stalinismo 318 –, o capital consolidou seu domínio,
continuou seu trabalho de transformar o mundo a sua imagem. Os fascistas
perderam a guerra, mas o fascismo ganhou, disse Bordiga.
A conclusão dessa grande transição – do processo mundial de
modernização – tornou evidente que mesmo muitos dos mais radicais
pensadores da fase anterior se viam cindidos, com uma perna na crítica do
capitalismo e outra no elogio de seu imenso potencial de desenvolvimento das
forças produtivas, da vitória da igualdade perante a lei, da democracia, enfim, de
todos os valores da modernização iluminista e burguesa. Não é, de modo algum,
o caso de condená-los por ter visto no avanço da sociedade burguesa um
progresso em comparação ao despotismo, à tradição semifeudal, e assim por
diante. Mas tampouco seria perdoável acreditar que essas visões devam ser
mantidas, pior, que continuam sendo politicamente relevantes. A anatomia do
homem é a chave da anatomia do macaco, não é? Temos hoje a visão de um
mundo completamente dominado pelo capital, em que todas os países, todas as
relações sociais, todos os setores produtivos se encontram subsumidos na
relação-capital, na contradição em processo da valorização.

317
A compatibilidade estrutural entre o nazismo e a democracia burguesa é muito bem
apontada por Robert Kurz (ver A democracia devora seus filhos. Rio de Janeiro:
Consequência, 2020, pp. 34-62). Também interessante a esse respeito são os estudos
de Johann Chapoutôt (sobretudo: Libres d’obéir. Paris: Gallimard, 2020).
318
Bem como as formas derivadas de desenvolvimentismo e dirigismo; pode-se
pensar no Gaullismo no caso francês ou nos muitos e diversos nacionalismos no
Terceiro Mundo. Vale dizer que aqui não se trata de modo algum de igualar todas
essas experiências em níveis político ou moral, mas sim apenas constatar que função
serviram do ponto de vista do capital social mundial.
186
Na visão de muitos leitores contemporâneos da crítica marxiana, nem o
“Velho Mouro” escapou dos efeitos de pertencer à sua própria época. Quem
sustenta essa visão, por exemplo, é Robert Kurz, que diz ser possível encontrar
na obra de Marx – mesmo na madura – um Marx “exotérico” e um Marx
“esotérico”; aquele ainda de pé sobre o desenvolvimento positivo das forças
produtivas sob o capitalismo, este voltado para uma crítica categorial do modo
de produção então ainda em ascensão319.
Curiosamente, bem antes da Neue Marx-Lektüre (que parece ter sido,
provavelmente graças a Helmut Reichelt ou Hans-Georg Backhaus, responsável
pela recuperação dessa dicotomia exotérico/esotérico, que Marx havia usado
para falar de Adam Smith), Amadeo Bordiga, por volta de 1950, já havia notado
essa dualidade intrínseca ao pensamento de Marx, sua cabeça de Janus. Mais
ainda, Bordiga deu os fundamentos para assentar essa dualidade não em
defeitos de um intelectual, mas no próprio momento histórico, capturando-o em
suas determinações da totalidade. Em parte, talvez, pelo próprio compromisso
de Bordiga em separar o necessário no marxismo, o que é questão de princípios,
do que é contingente, transitório, é que ele chega a essa formulação. Em todo
caso, diz Bordiga320 que, em primeiro lugar, ler Marx muitas vezes exige saber
distinguir se se está lendo o Marx teórico, científico ou o Marx agitador, militante
de partido; em seguida, que há três vértices para se compreender a importância
que Marx atribui à legislação reformista do Estado burguês: 1) como refutação
da teoria econômica burguesa; 2) como aceleração do desenvolvimento das
forças produtivas e do próprio capitalismo, isto é, pela destruição das relações e
formas sociais pré-capitalistas; 3) como agitação que revela que o capitalismo
perpetua a exploração sob outra forma, logo, direcionando a atuação do
proletariado para a destruição total do capitalismo. Assim, ao dividir o Marx-
científico do Marx-militante, associando este último ao item 2, à aceleração do
capitalismo para destruição do pré-capitalismo, Bordiga parece já intuir a
separação entre Marx exotérico e Marx esotérico. Camatte desenvolveu essa
ideia e a elevou ao nível de conceito, chamando esse elemento de Marx de
“reformismo revolucionário”.
Marx estava inteiramente correto, no século passado,
em propor como tarefas práticas a generalização da condição
proletária, o crescimento das forças produtivas, a redução da
jornada de trabalho etc. Não apenas ele propôs aos
proletários, mas, quanto à redução da jornada de trabalho, ele
desejava que o próprio Estado a aplicasse, por meios
coercivos tanto para os capitalistas quanto para os proletários.
Havia um objetivo duplo: unificar a classe proletária, já que a
jornada de trabalho seria a mesma para todos, e forçar o

319
Reading Marx in the 21st century. 2001. Disponível em:
https://libcom.org/article/reading-marx-21st-century-robert-kurz.
320
Riformismo e socialismo. 1950. Disponível em:
https://www.sinistra.net/lib/bas/battag/ceka/cekaebuzui.html.
187
capital a se desenvolver. Essa atitude de Marx é que
chamamos, seguindo Bordiga, de seu reformismo
revolucionário, que define um momento de seu trabalho, mas
que não tem mais relação alguma com a situação de hoje. 321

Definir o reformismo revolucionário de Marx implica


também colocar a questão do reformismo revolucionário do
proletariado. Esse reformismo era válido enquanto o capital
não tivesse completado sua dominação real. 322
O Novo Marxismo deve ser pensado com isso em mente, pensado como a
teoria crítica revolucionária sob a dominação real do capital. Todos os outros
paradigmas para explicar o que mudou desde 1968-1973 – pós-fordismo, pós-
modernismo, neoliberalismo, fábrica-social, fim da modernização, revolução da
microeletrônica, há para todos os gostos – só captaram aspectos parciais do
problema. Exemplos disso são bastante claros no marxismo italiano, como a
noção neocapitalismo em Panzieri ou o capitalismo lavorativo de La Grassa. Dito
isso, esses conceitos parciais não são sem importância, pelo contrário, se
utilizados no contexto de uma crítica total e radical, são indispensáveis para
pintar a imagem completa de um planeta engolido pelo processo de valorização.
Relembro o que colocaram Camatte e Collu em um dos principais textos de
diagnóstico da transição que se operou:
O ponto de partida da crítica da atual sociedade do
capital deve ser a reafirmação dos conceitos de dominação
formal e de dominação real como fases históricas do
desenvolvimento capitalista. Toda outra periodização do
processo de autonomização do valor, como capitalismo
concorrencial, monopolista, de Estado, burocrático, etc., sai
do campo da teoria do proletariado, quer dizer, da crítica da
economia política, para fazer parte do vocabulário da práxis
da social-democracia ou da ideologia leninista codificada pelo
stalinismo. Na realidade, toda essa fraseologia com a qual se
pretendeu explicar os fenômenos “novos” não fez mais do que
mistificar a passagem do valor à sua autonomia completa, isto
é, a objetivação quantidade abstrata em processo na
comunidade material. 323

321
CAMATTE, Jacques. Remarks, 1972. Disponível em:
https://www.marxists.org/archive/camatte/capcom/remarks.htm.
322
Id., Bordiga and the passion for communism, 1972. Disponível em:
https://libcom.org/article/bordiga-and-passion-communism-jacques-camatte.
323
Transition, 1970. Disponível em: https://revueinvariance.pagesperso-
orange.fr/Transition.html.
188
A opção de Camatte não se funda em nenhum dogmatismo estéril, na
verdade tal resistência tem um fundamento metodológico bastante razoável, já
apontado, por exemplo, por Ruy Mauro Marini:
Em sua análise da dependência latino-americana, os
pesquisadores marxistas incorreram, geralmente, em dois
tipos de desvios: a substituição do fato concreto pelo conceito
abstrato, ou a adulteração do conceito em nome de uma
realidade rebelde para aceitá-lo em sua formulação pura. (...)
O segundo tipo de desvio tem sido mais frequente no campo
da sociologia, no qual, frente à dificuldade de adequar a uma
realidade categorias que não foram desenhadas
especificamente para ela, os estudiosos de formação
marxista recorrem simultaneamente a outros enfoques
metodológicos e teóricos; a consequência necessária desse
procedimento é o ecletismo, a falta de rigor conceituai e
metodológico e um pretenso enriquecimento do marxismo,
que é na realidade sua negação. 324
Acredito, portanto, bastante acertado insistir em não abandonar as
categorias da crítica da economia política por novos conceitos inventados ad hoc
– afinal de contas, um conceito inventado justamente para descrever o que se
estuda não é, propriamente, um conceito científico, mas um empirismo
mascarado. Ao contrário, o conceito deve ser, para usar o jargão della-volpeano,
uma abstração determinada, resultado do processo de que passa do concreto
ao abstrato ao concreto outra vez; a reconstrução teórica pelas determinações
necessárias. Feito este esclarecimento, adiante.
Tentando colocar em outras palavras, essa tese em momento algum foi, a
rigor do termo, um trabalho histórico – algo já avisado na Introdução –, mas,
precisamente, a reconstrução de um movimento teórico determinado. Um ensaio
de genealogia do Novo Marxismo a partir de um de seus filões. Que se mostra
tanto mais produtivo quanto busca oferecer contribuições específicas a lacunas
da teoria – isto é, da crítica marxista do direito. O que se torna da crítica marxista
do direito se obrigada a se desfazer daquilo que nela está agora ultrapassado e
submetido à crítica do Novo Marxismo nos termos postos aqui? E o que pode
ser uma crítica marxista do direito, portanto, sob a dominação real do capital?
Para ensaiar uma resposta a esses questionamentos, gostaria de lembrar
que o movimento do nascimento do Novo Marxismo se iniciou na filosofia, de
forma até mesmo inconsciente, passou em seguida para a crítica da economia
política, na qual se redescobriu os fundamentos da crítica do fetichismo e das
formas de aparência da sociabilidade capitalista, assim como se empreendeu
uma crítica da materialização e corporificação da dominação social na

324
MARINI, Ruy Mauro. Dialética da Dependência, in Ruy Mauro Marini: Vida e Obra,
São Paulo: Expressão Popular, 2005.
189
materialidade e na técnica; então passou-se à crítica prática, isto é, à política
revolucionária e novas formas de a conceber. Tentarei, agora, esboçar o papel
que o Estado e o direito desempenharam nesse processo, entendendo como
esse movimento em que os dualismos da filosofia, o circulacionismo da teoria
econômica e o reformismo da política colapsaram diante da reestruturação
global do capitalismo.
No campo da crítica do direito, Pachukanis já nos deu bastante material
para não cair na ideologia da igualdade legal e da democracia. Antes mesmo de
seu tempo, já afiou as armas contra o humanismo e o historicismo. Mas, sua
crítica era, fundamentalmente, uma crítica localizada na fase da dominação
formal do capital. Daí que seu horizonte se ancorava no caráter supostamente
objetivo da técnica e na luta entre a indústria e o mercado, entre o setor estatal
e a propriedade privada. Em termos camattianos, ele ainda pensava em
organização, em racionalização, em libertação das forças produtivas.
Praticamente todos os teóricos estudados ao longo desta tese convergiram
na crítica da suposta objetividade da técnica por diferentes meios. Mesmo Della
Volpe, de todos o menos radical nessa questão, já a antecipava em sua crítica
historicismo, que é implícito no produtivismo. A dicotomia entre regulamentação
técnica e regulamentação jurídica é insustentável. Muito mais difícil que dizer
isso é explicar, então, qual é a alternativa. No trabalho de Pachukanis, a técnica
em oposição ao direito não desempenha um papel pequeno: ela é vista por ele
como a alternativa contra o direito também porque existe concretamente, porque
é parte do movimento real que abole o estado presente de coisas, segundo uma
frase de Marx. Isto porque, como em outra frase de Marx:
Uma massa de formas antitéticas da unidade social cujo
caráter antitético, todavia, jamais pode ser explodido por meio
de metamorfoses silenciosas. Por outro lado, se não
encontrássemos veladas na sociedade, tal como ela é, as
condições materiais de produção e as correspondentes
relações de intercâmbio para uma sociedade sem classes,
todas as tentativas para explodi-la seriam quixotadas.325
Ou seja, a técnica aparecia para Pachukanis como a resposta possível e
disponível para o que poderia substituir o direito enquanto regulamentação social.
Se descartamos a ideia da objetividade da técnica, é preciso encontrar outra
opção, sem cair nas quixotadas que Marx, muito acertadamente, critica. As
opções passam ser: devemos já encontrar outra forma de regulamentação social
oposta à jurídica? Poderíamos perseguir essa alternativa. Porém, também é
válido o questionamento se tal forma de regulamentação 1) sequer seria
necessário em uma sociedade sem classes, pois pode-se argumentar que
estamos aqui pensando em uma instância imanente à fragmentação da
sociedade de classes; 2) pode ser pensada antes de existir o substrato social da

325
Grundrisse. São Paulo: Boitempo, 2013, p. 107.
190
sociedade comunista, quer dizer, essa forma de regulamentação pode dar as
caras antes da transição ao comunismo? O comunismo enquanto movimento
real aparece como a projeção negativa das contradições do modo de produção
capitalista, como sua negação radical e, portanto, já é uma tarefa que a história
pode resolver, digamos assim, mas a nova forma de regulamentação, a
regulamentação comunista, deve aparecer simultaneamente?
Assim, pensar os limites da crítica pachukaniana do direito implica pensar
na transição ao comunismo. Ficou mais fácil! Para pensar a transição ao
comunismo uma série de questões preliminares também são colocadas. Dentre
as mais relevantes está se em relação ao desenvolvimento capitalista das forças
produtivas o comunismo é um prolongamento ou uma negação, uma ruptura –
aquela é a visão do marxismo tradicional, esta a do marxismo revolucionário.
Aceite que o comunismo deve ser a ruptura com o desenvolvimento capitalista –
e com os ideais do Iluminismo, da democracia, do direito, etc. – deve-se
perguntar quem é o sujeito da transição. O marxismo tradicional assumia que o
proletariado era o sujeito-objeto da História – na famosa formulação de Lukács
–, uma visão historicista que já não se sustenta por uma miríade de razões.
Algumas delas discutimos ao longo desta tese, como na seção dedicada a
Camatte e no capítulo sobre o operaismo. Por outro lado, as visões que
descartam o proletariado inclusive como sujeito político, tais como as de Camatte
e Negri – não falo nem de La Grassa, já que ele simplesmente abandonou a
perspectiva de superar o capitalismo –, não convencem: Camatte coloca suas
últimas esperanças em um humanismo de fundo, espera que a espécie humana
se rebele por sua essência biológica irredutível, a partir de fora; já Negri tomou,
nas últimas décadas, um ponto de vista que beira ao delírio, enxergando em
todas as derrotas e catástrofes uma maravilhosa vitória – tudo graças à sua
capacidade de dissolver o proletariado na multidão e, portanto, o comunismo nas
demandas pequeno-burguesas e democratistas mais insossas.
Realmente, para levar a sério o critério marxista, de tomar o comunismo
como movimento real, é preciso formular a pergunta nesses termos: “como pode
o proletariado – agindo estritamente como uma classe do modo de produção
capitalista, em sua contradição com o capital dentro deste modo de produção –
abolir o capital, portanto todas as classes e a si mesmo, quer dizer, produzir o
comunismo?” 326 Ao invés de tentar dar uma resposta fechada, doutrinária,
melhor tentar apresentar uma perspectiva a partir da recapitulação do papel do
direito na transição entre a dominação formal e a dominação real do capital.

326
Essa pergunta é o ponto de partida das reflexões do coletivo Théorie Communiste,
ligado à teoria da comunização por um viés anti-humanista. Eles foram fortemente
influenciados pelas reflexões de Camatte sobre a dominação real, mas rejeitaram suas
conclusões últimas. Ver: Introduction to Théorie Communiste, 1997. Disponível em:
https://libcom.org/library/theorie-communiste-0.

191
O direito na era da dominação formal do capital ainda não podia se
estabelecer inteiramente sobre as próprias categorias e dependia, na verdade,
de elementos extrajurídicos, bem como de formas pré-jurídicas, como os
privilégios e estamentos; por isso mesmo, em toda a época da dominação formal,
a expansão do direito não apenas coexistia, mas, inclusive, dependia de formas
como a escravidão, a discriminação aberta, a exclusão de partes da população,
enfim, leis claramente desiguais – em certo sentido, é válido dizer que o período
da dominação formal é aquele em que os indivíduos são ensinados a obedecer
o direito, pois ainda não estando a sociabilidade inteiramente subsumida ao
capital, também não estavam os sujeitos completamente formados por relações
mercantis e jurídicas.
O direito tem um papel no período da transição da dominação formal à
dominação real: é a época do nivelamento por “equidade” dentro do
ordenamento jurídico usando a criação de novos sujeitos jurídicos impessoais,
fictos 327 ; é também o período em que as próprias formas de luta da classe
trabalhadora ganham reconhecimento jurídico, em que seus órgãos de luta são
incorporados, ganham papel institucional, sindicatos são incorporados ao Estado,
conflitos são decididos por acordos em novos níveis – convenções coletivas,
tribunais trabalhistas – é quando nascem novos direitos, direitos coletivos,
direitos sociais, é a função histórica do “direito à greve”, “direito ao trabalho” 328;
No período seguinte, terminada a transição, em muitos casos torna-se
vazio, caduco: é o caso da legislação trabalhista nos países que mais
rapidamente viram o conceito antigo de proletariado desaparecer nas massas de
novos assalariados da circulação e do “subproletariado” (na realidade, o
proletariado absoluto). Em certas funções e trabalhos, não se tornou mera
questão de reformas regressivas no campo do direito, uma ofensiva patronal
contra os direitos dessas categorias que poderia ser revertida simplesmente
estendendo o antigo regramento às novas áreas de emprego; é uma questão
mais profunda: ocorre a gradual, mas certeira decadência desses sujeitos sociais
que tiveram um papel na arregimentação dos indivíduos no processo de
massificação; o direito trabalhista entra em decadência e, ao mesmo tempo,
surge a noção de direitos difusos, que, ao contrário da aparência, não são uma
extensão ou incremento aos assim chamados “direitos sociais”, pois estes são
um produto da transição da dominação formal à dominação real, aqueles
consolidam-se apenas nesta última.
Os direitos difusos, na realidade, são a consagração de uma sociedade em
que se mistifica a relação de classe, todos passam a ser representados como

327
Sobre isso, ver: KASHIURA, Celso Naoto. Crítica da Igualdade Jurídica. São Paulo:
Quartier Latin, 2009.
328
Acredito que o livro de Bernard Edelman, A legalização da classe operária, pode
ser lido nessa chave interpretativa: é uma descrição concreta e específica dos
mecanismos pelos quais o direito atua na transição da dominação formal à dominação
real do capital.
192
vendedores e compradores em um nível novo: é a era de ouro do direito do
consumidor. É bastante diferente do direito trabalhista, que, na verdade,
conformava um sujeito social específico, a classe trabalhadora, delimitada por
seus órgãos, seus mecanismos negociais, sua cultura, suas tradições inclusive,
assim como suas práticas específicas para defender seus interesses – como a
greve. Mas, a classe trabalhadora enquanto tal, após sua absorção e controle
pelo Estado na época fordista-keynesiana, foi em seguida verdadeiramente
dissolvida. Trabalhadores assalariados produtivos continuam a existir, mas não
se permite mais a formação da mesma subjetividade de classe do período
fordista. Isso não implica, por óbvio, a impossibilidade da formação de uma nova
subjetividade de classe, de uma nova composição de classe. Mas, para que se
possa entender a nova subjetividade, é preciso, primeiro, tirar do caminho as
ilusões do passado.
Dentre as ilusões do passado, uma das mais fortes e ainda prevalentes é
de como se entende a relação entre democracia e autocracia – ou, fascismo.
Mesmo entre autoproclamados comunistas, a ideia que continua viva é da
democracia como normalidade da vida burguesa que se deve defender por
“oferecer melhores condições de luta para a classe”, enquanto o fascismo é
colocado como uma espécie de regressão contra a qual lutar justifica, inclusive,
aliar-se à burguesia liberal. Entretanto, como um número de autores já percebeu
ou ao menos intuiu, a tendência das sociedades capitalistas a nível global tem
sido a da fusão entre democracia e autocracia. Todas as grandes economias do
assim chamado mundo “democrático” são monopolizadas por um ou dois
grandes partidos, cujas disputas parecem não ser mais do que cerimônias que
não afetam, no longo prazo, o curso que o capital já decidiu para a sociedade.
Nos Estados Unidos, no Japão, no Reino Unido, na Alemanha, e em vários
outros não há muito fora desse mesmo modelo. Dificilmente se poderia dizer que
o Japão, governado há 60 anos pelo mesmo partido, é mais “democrático” que
a China ou a Rússia. Isso para não falar de Israel, por exemplo, onde o apartheid
e o colonialismo são justificados e elogiados pelas democracias ocidentais.
Mas isso não ocorre apenas do “polo democrático”. O fascismo, ou pós-
fascismo, como colocava G.M. Tamás, parece inteiramente capturado pela
lógica da democracia. Em todo lugar em que ele ainda é uma força social
considerável, ele atinge sempre um bloqueio fundamental: rasgar a camisa de
força do discurso democrático e se converter em força de totalização e
reconsolidação social. O fascismo dos anos 1930 surgiu como elemento da crise
do esgarçamento dos laços sociais, começou pela endogenia, mas depois usou
suas estruturas para impor regimes de acumulação e superar o período da crise
capitalista recompondo o capital em novo nível – pavimentando o caminho para
a dominação real do capital. Hoje, com a dominação real, os fascismos parecem
incapazes de repetir o feito, não parecem ter nem uma alternativa eficiente ao
estado democrático burguês, nem mesmo ter necessidade de romper com ele.
Tudo o que o fascismo poderia fazer já é feito pelo próprio estado democrático,
de modo que os fascismos não conseguem fazer a passagem de sua fase de
movimento para a fase de regime; no máximo, formam-se governos fascistas em
Estados ainda formalmente e estruturalmente democráticos (Bolsonaro, Meloni,
193
Orban). Em outros locais, vigora a devastação e a catástrofe completas, e o
fascismo fica preso em um movimento total de endogenia, girando em falso e só
sabendo reproduzir a crise – é o caso do neofascismo ucraniano, de grupos
como o Batalhão Azov.
Talvez, no futuro, a situação mude, mas, por enquanto o fascismo parece
dominado pelo discurso democrático, o que, longe de ser bom sinal, é
desesperador: tal dominação é possível simplesmente porque a democracia foi
“fascistizada”. Emmanuel Macron derrotou Marine Le Pen apenas para impor o
programa xenofóbico e nacionalista da derrotada. Joe Biden derrotou Donald
Trump apenas para ver os Estados Unidos tomados por uma onda inédita de
homofobia e transfobia, para não falar da misoginia, como na revogação da
decisão Roe v. Wade. Nesse sentido, acredito muito acertada a tese de Alysson
Mascaro, a partir de Florestan Fernandes, de que “a autocracia burguesa é a
forma necessária de toda reprodução política e social do capitalismo
contemporâneo, definindo, então, os quadrantes, possibilidades e limites do
direito” 329. Os desenvolvimentos mais recentes da forma estatal dão razão a
críticos como Bordiga, Adorno, Camatte, Kurz, que apontavam que inexistia um
antagonismo fundamental entre a democracia e o fascismo, pois, na realidade,
ambos se assentam sobre a mesma base: a sociedade burguesa, da produção
de mercadorias, da exploração do trabalho.
Disso não decorre o desaparecimento do direito ou da forma-jurídica
enquanto tal, porém. O papel que ela desempenha no contexto geral do modo
de produção, todavia, é esgarçado e extremado. Em uma carta de 1884 a August
Bebel, Engels disse que no momento agudo da revolução a democracia seria a
bandeira sob a qual todas as forças reacionárias se reuniriam; hoje, não estamos
prestes a ver revolução alguma, mas com o esgotamento de todo potencial
emancipatório do capital, que já engoliu todos os países e cada aspecto da vida
moderna, e o capital atinge o ponto em que ele precisa o tempo todo se recompor
de modo a continuar sua tarefa de mover maiores e maiores massas de valor,
sem, todavia, realizar o comunismo, precisando segregar, desvalorizar, destruir
– como percebera La Grassa, apesar de ter absolutizado esse aspecto –, a
democracia e seu princípio básico, a forma-jurídica, tornam-se contraditórios em
si mesmos, incoerentes mesmo. É o que ocorre hoje com a ideia de “liberdade
de expressão”, que já parece não ter conteúdo algum, sendo instrumentalizada
para todos os fins, como uma arma. De fato, ela sempre foi uma arma, mas antes
era a arma da totalidade contra as classes exploradas, agora as várias gangues
– para usar o jargão de Camatte – podem apropriar-se dos conceitos do tão
festejado universalismo do valor e da mercadoria em um infinito processo de
decomposição social. Em resumo, o universalismo abstrato do capital devorou-
se a si mesmo.
O escritor argentino Ricardo Piglia, em seu romance Respiração artificial,
apresenta a seguinte fórmula: “Descartes leva a Hitler”. Claro que se trata de um

329
MASCARO, Alysson Leandro. Sociologia do Direito. São Paulo: Atlas, 2022, p. 282.
194
exagero retórico, mas a ideia de fundo é bastante convincente tendo em vista a
história traçada ao longo dessa tese, da emergência da dominação real e de
como reagem contra ela os Novos Marxismos. Não há mais nada a salvar no
Iluminismo e nas aspirações da época de ascensão da burguesia; não há mais
democracia ou direitos a reivindicar, não há mais um horizonte de igualdade
perante a lei ou de dignidade do trabalho. Só se poderá voltar a pensar em
termos de tal modo positivos quando a civilização capitalista que hoje asfixia a
humanidade e ameaça a Terra com uma catástrofe climática foi extinta,
completamente destruída. Até lá, a teoria crítica e emancipatória deve manter a
mais absoluta negatividade, a começar pela ruptura total com os ideais da
revolução burguesa e democrática.
O universalismo abstrato que caracteriza a forma-jurídica consolida a forma
burguesa da subjetividade como um processo de interpelação, diria Althusser,
ou ainda como a constituição dativa de uma forma de sujeito. Ao contrário das
interpretações humanistas baseadas na teoria da alienação, o capital não é a
forma alienada e estranhada de relações entre os homens tais como ele são,
pois correspondente à reificação das relações humanas no valor, a forma-
jurídica é a personalização baseada nessa totalidade constituída. Nesse sentido,
os operaístas estavam mais corretos que todos os outros: só se pode pensar
uma subjetividade emancipatória por dentro do capital, como negação total dele
e da identidade imputada – nunca por fora, como tanto Camatte quanto La
Grassa acabaram por conceber. Esta é uma subjetividade dativa na medida em
que seu padrão de referência tem como ponto fixo a mercadoria, a relação do
valor – podemos chamá-la então de regulamentação transcendente. Pensar a
superação direito, pensar em uma alternativa para a regulamentação jurídica,
significa portanto pensar em uma regulamentação imanente à comunidade, à
sociedade sem classes, aos produtores associados.
Ao comentar as comunidades primitivas, anteriores ao surgimento da
propriedade e do valor, Camatte diz que elas tinham mecanismos que reinseriam
os indivíduos, que restauravam as relações e mantinham a unidade da
comunidade. Acredito que podemos ver aqui um exemplo de regulamentação
imanente. O filósofo francês Gilles Deleuze, ao comentar a teoria ética de
Espinosa, trouxe um ponto que é de interesse para pensar isso. Diz ele330 que,
na concepção espinosana, bom é aquilo que existe quando um corpo compõe
sua relação com o nosso para aumentar a potência; mau, por outro lado, é
quando um corpo decompõe a relação do nosso, ainda que se componha com
nossas partes, sob outras relações. Se alinharmos essas tipologias espinosano-
deleuzianas com a descrição camattiana do processo de dominação do capital,
poderíamos dizer que o capital pode até não ser mal, em um sentido moralista,
mas é definitivamente mau para nós. Ele decompõe as relações que se poderiam
formar sem a mediação do valor e da mercadoria e as transforma em relações
para sua própria valorização, ele decompõe o corpo social até transformar-se ele

330
Espinosa: filosofia prática. São Paulo: Escuta, 2002, pp. 28-31.

195
mesmo na sociedade. Ao fazer isso, o capital se torna nosso referente
transcendente, ele que nos impõe a subjetividade em que somos interpelados.
“Instância transcendente” é como Deleuze explica a visão espinosana da Lei,
seja ela moral ou social, em oposição à Ética, esta imanente. Para Espinosa, a
lei não traz conhecimento algum, ela apenas define aquelas existências
abstratas que são o Mal e o Bem; contra a lei, Espinosa afirma a Ética, esta, sim,
baseada no conhecimento daquilo que compõe ou não com nosso corpo, ou seja,
daquilo que é, concretamente, bom ou mau. A regulamentação social do
comunismo, da comunidade por vir, da associação dos produtores livres, ou
como se queira chamar, precisa ser imanente; precisa ser aquilo que conservará
a comunidade; precisará ser voltada para a manutenção da própria humanidade
associada; precisará ser o cuidado com aquilo que está sob nosso usufruto, para
ser passado às gerações futuras, o próprio mundo. Justamente porque precisará
ser imanente à comunidade, uma que ainda não existe porque o comunismo não
pode ser a mera superação dialética ou o prolongamento do desenvolvimento
capitalista – mas sua negação radical –, essa regulamentação ainda não tem
como ser pensada, pois será uma regulamentação do cuidado e da manutenção.
E, no presente, não há nada a ser mantido.

196
Conclusão

Um hegeliano termina onde se começou. Onde termina um anti-hegeliano?


Essa tese foi pensada como um projeto, em todos os sentidos, excessivo,
mesmo um pouco megalomaníaco. Apenas para apresentar uma imagem mais
ou menos justa de um movimento como o operaismo bons livros precisam de
oitocentas, novecentas páginas. Sendo assim, precisei desde logo abdicar a
qualquer pretensão de completude científica e admitir que seria uma
reconstrução teórica necessariamente seletiva, fragmentária, em que as
escolhas pudessem parecer arbitrárias, a menos que se captasse a ligação
lógica sob enfoque. Então, de modo algum é uma tese satisfatória. Pode-se dizer,
pelo contrário, que é uma tese excessiva e que reconhece o quão insatisfatória
e incompleta ela necessariamente é.
Como não se almejava a loucura de ser completa, essa tese espera fazer
parte de uma constelação da teoria crítica. A escavação, bastante imperfeita,
feita aqui de apenas um dos filões do Novo Marxismo precisa ser
complementada. Mas, mais do que isso, é preciso que depois do Novo venha o
Novíssimo. Desde a introdução, tratei a ideia de que a geração de 1968
recuperou a de 1917 para, em seguida, ir além. A crítica do direito me parecia
gravemente negligenciada no contexto dessa renovação; não que não tenha
havido críticas a Pachukanis – citamos as de Cerroni e Negri –, mas as críticas
não pareciam operar a mesma superação que a que foi feita com relação à teoria
da forma-valor de Rubin. Mais ainda, tão ineficazes pareceram essas críticas
que os marxistas operantes no campo do direito simplesmente não as
metabolizaram ou absorveram. A rigor, a crítica do direito, salvo raras exceções,
continua repetindo e parafraseando Pachukanis. Por isso, é no mesmo espírito
com que a geração de 1968 recuperou a de 1917 que vejo a escavação, bastante
imperfeita, apresentada nesta tese. Recuperamos para superar, é um processo
de seleção, de releitura e de busca por um ponto de apoio no qual tomar impulso
para um salto.

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