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DESCRIÇÃO

As possibilidades de análise interpretativa e os aspectos históricos da alimentação

PROPÓSITO
Compreender as possibilidades de análise interpretativa em diálogo com aspectos históricos da alimentação, para fins de conhecimento de
metodologias de pesquisa das ciências sociais aplicadas ao campo da Nutrição, é importante para sua formação, pois facilitará o exercício
prático profissional em pesquisas qualitativas.

PREPARAÇÃO
Antes de iniciar o conteúdo deste tema, tenha em mãos um dicionário de Língua Portuguesa para entender termos específicos.

OBJETIVOS

MÓDULO 1

Aplicar as formulações conceituais e metodológicas da Antropologia na Nutrição

MÓDULO 2

Reconhecer as influências históricas na alimentação


INTRODUÇÃO
Neste tema, vamos aprender um pouco mais sobre as relações possíveis entre Antropologia e Nutrição. Para isso, vamos explorar alguns
conceitos das Ciências Sociais aplicados à alimentação e à Nutrição.

Faremos um percurso histórico para a compreensão de como diferentes períodos (Pré-história, Antiguidade, Idade Média, Idade Moderna e
Contemporânea) influenciam e se relacionam com a construção da cultura alimentar de diversas sociedades.

Por fim, aplicaremos metodologias da Antropologia ao exercício de pesquisa científica no campo da Nutrição.

MÓDULO 1

 Aplicar as formulações conceituais e metodológicas da Antropologia na Nutrição

CONCEITOS
Em um primeiro momento, talvez seja difícil perceber a relação que a Antropologia e a História possam ter com a Nutrição. Em geral, as
pessoas que escolhem seguir carreiras das áreas das Ciências da Saúde e Biológicas nem sempre esperam se deparar com disciplinas de
Ciências Humanas em seu caminho. Por isso, não é de se estranhar que a primeira impressão em relação à disciplina não seja das
melhores, mas, ao longo deste tema, você perceberá que essa disciplina tem muito a contribuir para a formação profissional em Nutrição.
DEFININDO ANTROPOLOGIA
Afinal, o que é Antropologia?

 RESPOSTA

A resposta mais simplificada para essa pergunta seria dizer que: Antropologia é a ciência que estuda o homem. De acordo com sua
etimologia (origem da palavra) derivada do grego, Antropo significa homem; e logia (de logos) significa ciência. Entretanto, para
ampliarmos esse conceito, vamos ver o que alguns autores do campo têm a nos dizer sobre isso.

UMA COMPREENSÃO CLARA DOS PRINCÍPIOS DE ANTROPOLOGIA ILUMINA OS


PROCESSOS SOCIAIS DO NOSSO PRÓPRIO TEMPO E PODEM MOSTRAR-NOS,
SE ESTIVERMOS PRONTOS PARA OUVIR SEUS ENSINAMENTOS, O QUE FAZER
E O QUE EVITAR.

(BOAS, 2004)
Estar aberto a escutar é um exercício importante do aprendizado. Assim, apesar de ser uma ciência antiga, a Antropologia tem muito a
contribuir para a compreensão dos fenômenos políticos e socioeconômicos da atualidade, incluindo as relações humanas com alimentação.

A Antropologia aplicada à Nutrição ajuda a entender as relações contemporâneas da humanidade com a alimentação. O fenômeno da
globalização trouxe à nossa vida transformações intensas. De um lado, temos a homogeneização da ordem social, isto é, cada vez mais
algumas sociedades ficam parecidas umas com as outras em diversos aspectos, incluindo a alimentação. Por outro lado, essas mesmas
sociedades, na contra mão desse movimento, reivindicam singularidade, ou seja, que suas caraterísticas particulares sejam consideradas.
Isso mostra como a humanidade pode ser ao mesmo tempo tão parecida e tão diferente.

A Antropologia é útil à Nutrição, ainda, no uso de suas ferramentas metodológicas que podem auxiliar na ampliação da compreensão de
diferentes aspectos ligados à alimentação e nutrição humana. Por exemplo, no momento da prescrição de uma reeducação alimentar, é
fundamental levar em consideração os fatores socioculturais de cada paciente: formação familiar, religiosa, escolar, influências tecnológicas.

CULTURA: CONCEITO FUNDAMENTAL


Um dos principais conceitos da Antropologia que usaremos ao longo deste curso é o conceito de cultura. Podemos dizer que cultura é tudo
aquilo que o homem transforma. A etimologia (origem) da palavra cultura vem do latim culturae que significa “ação de tratar, cultivar”. O que
nos mostra a relação íntima entre cultura, cultivo e alimentação. Ampliando a visão de cultura em diálogo com teóricos da Antropologia,
conseguimos entender o que é a cultura como um conceito antropológico.

O antropólogo Clifford Geertz (1989), por exemplo, defende a cultura como sendo uma teia de significados, tecida pelos homens, que orienta
a existência humana. Para ele, compreender uma cultura é entender seu sistema de símbolos que se comunicam com cada indivíduo e suas
coletividades. Mas o que seriam esses símbolos? Segundo Geertz, são atos, objetos, acontecimentos, ou ainda, relações que representam
significados específicos em uma sociedade.
Já para o antropólogo Roque Laraia (2004), cultura é um conjunto de inclui conhecimentos, crenças, arte, moral, leis, costumes ou ainda
qualquer outra capacidade ou hábitos que os seres humanos adquirem por meio da sociedade pela transmissão geracional e institucional. Ou
seja, são elementos fundamentais que aprendemos por meio dos diferentes processos educativos da sociedade, em família, na escola, com
amigos, nos ambientes de trabalho.

 EXEMPLO

Pensando em alimentação, podemos exemplificar o fato de, no Brasil, não comermos cachorro por termos com eles uma conexão afetiva,
enquanto, na cultura chinesa, isso não se torna um impeditivo ao consumo. Os elementos cultuais brasileiros são diferentes dos chineses,
mas ambos são conjuntos simbólicos que dão sentido ao comer ou não comer um cachorro, por exemplo. Para os hindus da Índia, a vaca é
um animal sagrado, não fazendo parte dos hábitos alimentares deles, ao passo que, para nós, é comum fazer um churrasco bovino aos fins
de semana. Também nesse caso, temos a cultura como elemento de distinção entre os diferentes hábitos alimentares.

Os seres humanos, na verdade, são seres biopsicossociais, pois, além da dimensão biológica, também faz parte de sua formação como
indivíduos sua relação com a psiquê e suas relações socioculturais. Somos seres biológicos, mas também essencialmente culturais. A
cultura, ao contrário de muitos aspectos da biologia humana, não é transmitida hereditariamente. Os aspectos culturais são elementos, os
signos que Geertz nos falou mais acima, que aprendemos a partir da convivência com outros seres humanos.

Como tudo isso conversa com nosso cotidiano e formação profissional?

Por exemplo, se pensarmos bem, não comemos as mesmas coisas que nossas bisavós, a oferta de alimentos, as mudanças tecnológicas, o
ritmo da vida, tudo isso influencia as transformações de uma cultura. Nossa alimentação muda junto com isso porque também é fruto de
nossa cultura.

A alimentação é um campo repleto de signos e significados que mudam de uma cultura para outra. Isso inclui o que é comestível, como
comer, quando comer, com quem comer.
ANTROPOLOGIA DA ALIMENTAÇÃO E CULTURA ALIMENTAR
Podemos definir a cultura alimentar como um conjunto de práticas alimentares que inclui o que se come (insumos, ingredientes), como se
prepara (culinária, técnicas de processamento), quando se come (número de refeições por dia que compõem o hábito alimentar dessa
cultura), com quem se come (restrições de casta, gênero, até mesmo o comer solitário).

Fonte: NDAB Creativity/Shutterstock.

A cultura alimentar forma um sistema simbólico de regras e mecanismos que orientam o comportamento humano em relação à alimentação.
Além disso, por meio do conceito de cultura alimentar, tal como a língua, podemos identificar a cultura de um povo, isso porque a cultura
alimentar está ainda relacionada à construção da identidade dos indivíduos que compõem um determinado grupo social. Podemos dizer
então que a alimentação é mais do que um ato biológico, mas compreende aspectos como as formas e tecnologias de cultivo, manejo e a
coleta do alimento, a escolha, as formas de armazenamento e as formas de preparo e de apresentação, constituindo um processo social e
cultural.

Diante disso, podemos dizer que existe uma diferença entre o que é alimento e o que é comida.
ALIMENTO

Qualquer substância nutritiva que pode ser ingerida para manter a vida, nesse sentido, diz respeito a todos os seres vivos.

COMIDA

Respeito a tudo o que se come com prazer, de acordo com regras sociais, dessa forma, não é apenas uma substância alimentar, mas um
modo, um estilo, um jeito de se alimentar.

Assim, vemos que o jeito de comer define não só aquilo que é ingerido, mas também aquele que o ingere. Entendemos com isso que comida
é algo dotado de cultura e relativo aos seres humanos.

Fonte: kazoka/Shutterstock.
 Sopa de missô comida tradicional da culinária japonesa.

Essa relação diferenciada com a comida confere aos seres humanos particularidades em relação aos demais animais. De acordo com a
autora Catherine Perles (1979), cozinhar é um ato exclusivamente humano, próprio da nossa espécie. O ser humano é o único animal da
natureza capaz de cozinhar e combinar nutrientes. Além disso, comer não é um ato solitário, mas a origem da socialização humana desde os
primórdios da humanidade. Essa característica de socialização por meio da comida também é uma particularidade humana, que chamamos
de comensalidade.

Podemos definir a comensalidade como a prática do comer juntos, partilhando o alimento (mesmo que desigualmente). É o momento de
partilhar sensações e reforçar a coesão dos grupos sociais aos quais fazemos parte: família, escola, religiosidade, amigos.

A comensalidade é uma experiência sensorial compartilhada que pode ter vários significados: pactos, fechamento de acordos e contratos,
confraternização. De uma maneira geral, ela compõe um ritual coletivo.

Fonte: Halfpoint/Shutterstock.
 Almoço de casamento.

A sensorialidade presente na comensalidade gera experiências sensoriais que podemos chamar de memória afetiva. Isto é, os registros
sensoriais afetivos que a comida e a comensalidade podem gerar nos indivíduos. Comida é também memória e afeto.

 EXEMPLO

No filme Ratatouille , em uma das últimas cenas, ao provar o prato do restaurante, o crítico de cozinha Ego é transportado para sua infância.
Provavelmente, você também já comeu algo que o transportou para outro lugar, essas memórias gustativas também são construções
simbólicas que atribuímos à comida.
Ainda atrelado ao conceito de cultura alimentar, podemos destacar outros três conceitos auxiliares. Por mais que pareçam e algumas vezes
sejam usados como sinônimos, para as Ciências Sociais, existem diferenças conceituais quando usamos sistemas, modelos e hábitos
alimentares. Um modo interessante de diferenciar conceitos é pensar no significado de cada palavra que o constitui. Vamos facilitar sua
pesquisa e reunir aqui alguns deles para orientar seu entendimento e diferenciação.

Segundo o dicionário Priberam de Língua Portuguesa, sistema pode significar, dentre outras coisas:

“um conjunto de meios e processos empregados para alcançar determinado fim.”

Nesse sentido, quando falamos de sistemas alimentares, podemos dizer que são um conjunto de elementos que entendem a alimentação
como uma cadeia conectada desde o setor produtivo, terra e indústria, até o descarte daquilo que consumimos.

Sistemas alimentares podem ser entendidos pela adoção de uma abordagem sistêmica que facilita o entendimento da conexão entre os
diferentes atores sociais e instituições ligados à alimentação. Assim, para entender a alimentação, é preciso observar os problemas
estruturais de cada sistema econômico, as relações sociais e ainda as políticas de alimentação e nutrição adotadas em cada lugar, para,
enfim, perceber como eles influenciam direta e indiretamente a alimentação. O esquema abaixo ilustra esse conceito:

Fonte: VectorPot, Macrovector, Artco, miniwide, dimair/Shutterstock.


 Adaptado de: IDEIAS na mesa

Voltemos ao dicionário, agora, para pesquisar a palavra modelo. Segundo o dicionário Priberam, modelo pode significar:

“[..] 2. Molde, exemplar. Que serve de referência ou de exemplo [...]”.

Nesse sentido, entendemos por modelo alimentar os exemplos, moldes e referências de alimentação existentes em suas diferentes
dimensões, biológicas, culturais e simbólicas.

O vegetarianismo é um modelo alimentar porque configura-se como um modo, um tipo específico de alimentação, com suas características
e regras do que comer.
Modelos alimentares têm relação com escolha, mas também com a oferta de alimentos disponíveis, e o mais importante é entendermos que
nem tudo é só biologia, nem só dimensão social. Isso porque as relações da alimentação com o biológico e com o social não são justapostas,
mas são marcadas por diversas interações.

Existem diversos modelos alimentares que foram se modificando e se transformando ao longo dos tempos. A partir de uma perspectiva
histórica, podemos dizer que os primeiros modelos alimentares foram o frugivorismo e o crudivorismo. Eles se referem, respectivamente, a
uma alimentação baseada em frutas e a uma alimentação baseada em alimentos crus. Ambos os modelos alimentares, apesar da relação
histórica tão longínqua, ainda são praticados atualmente em tendências contemporâneas, como a alimentação viva, a raw food e a dieta
paleolítica, por exemplo.

Fonte: silviarita/Shutterstock.

Os seres humanos são seres onívoros, não importa o quanto você goste e consuma carne, certamente, sua dieta é baseada em outros
grupos alimentares. Nesse sentido, não podemos dizer que somos parte do modelo alimentar de carnivorismo, uma vez que este se refere
ao consumo exclusivo de carne, proteína animal, no geral, de exclusividade dos animais carnívoros. Contudo, alguns indivíduos optam por
excluir a carne de sua alimentação. Assim, além do frugivorismo e do crudivorismo que vimos acima, existem ainda alguns outros modelos
alimentares que baseiam sua estrutura, entre outras coisas, na restrição à proteína animal. Selecionamos três principais:

Fonte: VectorV/Shutterstock.

CEREALISMO

Fonte: Brian Goff/Shutterstock.

VEGETARIANISMO

Fonte: john dory/Shutterstock.

VEGANISMO

Por cerealismo, entendemos a alimentação baseada no consumo de cereais. Os cereais tiveram grande importância na formação da maioria
dos grandes impérios da antiguidade. Em todos os continentes, conseguimos destacar cereais que são a base da alimentação das antigas
sociedades aos dias atuais.

Podemos citar como exemplo o trigo na Europa, o trigo sarraceno para as comunidades do Oriente Médio, o sorgo na África, o arroz no
Sudeste Asiático, o milho nas Américas. Com o estabelecimento das grandes civilizações e o crescimento populacional vertiginoso, a
proteína animal foi se tornando um alimento muito valioso, com isso a massa da população pobre tinha como base da alimentação cereais.
Nos anos 60, esse tipo de alimentação ganhou força no Brasil, principalmente, a partir da dieta macrobiótica, que defendia que, uma vez
que os primeiros seres humanos comiam alimentos majoritariamente vegetais e cereais, essa seria sua predisposição natural, apesar de
reconhecida sua característica onívora.

O vegetarianismo é um modelo alimentar que vem se tornando cada vez mais famoso e está em crescimento no mundo todo, incluindo no
Brasil. A alimentação vegetariana tem por base uma alimentação focada nos vegetais e cereais, restringindo alimentos de origem animal,
seja no consumo de carne ou de qualquer outra proteína animal.

A partir desse modelo, diversas variações vêm surgindo. A maioria delas varia no grau de restrição aplicado, indo do restritivo total a
restrições específicas à carne. Por exemplo, temos o ovolactovegetariano, que permite a ingestão de ovos e de leite, mesmo sendo
alimentos de origem animal.

O mel, um alimento de origem animal, também gera algumas controvérsias. Para o senso comum, qualquer dieta de restrições de carne é
vista como sendo vegetariana, mas existem diferentes níveis de restrição. Há aqueles que de fato restringem todos os alimentos de origem
animal, os chamados de veganos, mas há também pessoas que mantêm hábitos alimentares majoritariamente sem produtos de origem
animal, porém abrem exceção para peixes e frutos do mar, são os chamados piscicovegetarianos.

De uma forma geral, no dia a dia, a maioria dos adeptos de restrição de carne se autointitulam vegetarianos. Entretanto, vale um destaque
especial para os vegetarianos totais, os chamados veganos. Isso porque, além do nível de restrição mais intenso, há também correntes do
veganismo, que assim como a macrobiótica pensam a alimentação não só como uma dieta, mas também como um sistema de vida que
dialoga com questões filosóficas, prezando pela alimentação orgânica, tendo o cuidado com a natureza e com o próximo, preservação de
saberes do campo. No geral, essa corrente pensa a alimentação como um sistema alimentar, sim, aquele mesmo que vimos no começo do
tema, entendendo que, mais que filiação a um modelo alimentar, precisamos conceber a alimentação como um sistema integrado do qual
fazemos parte como consumidores e atores pensantes. Por isso, somos responsáveis por aquilo que consumimos.

Em nossa última visita ao dicionário, fomos pesquisar a palavra hábito e encontramos entre as definições disponíveis uma que melhor nos
atendeu:
“3. Prática frequente. = COSTUME, USO”. (DICIONÁRIO PRIBERAM ON LINE).

Portanto, hábitos alimentares são o conjunto de rituais que compõe a alimentação cotidiana. Nesse sentido, percebemos que os hábitos
alimentares dizem respeito a um espaço menor quando olhamos para uma cultura alimentar.

Ele pode ser relativo a grupos sociais específicos, famílias, alimentação escolar, religiosidade. O conceito de hábito alimentar é o termo pelo
qual a Antropologia da alimentação refere-se à maioria dos seus objetos de estudo.

APLICAÇÕES METODOLÓGICAS
A Antropologia aplicada à Nutrição nos permite iluminar fenômenos socioculturais relativos à alimentação. Assim, podemos analisar o ato de
comer para além da dimensão biológica e compreender a alimentação como um fenômeno biopsicossocial. Neste módulo, vamos ver
algumas possibilidades de metodologia de pesquisa advindas da Antropologia que podem ser aplicadas na Nutrição.

Existem fundamentalmente duas grandes formas de desenvolvimento de pesquisa: as pesquisas quantitativas e as pesquisas
qualitativas. As pesquisas quantitativas geralmente partem de hipóteses que poderão ou não ser confirmadas, por meio de metodologias
rígidas, cientificamente validadas. Esse tipo de pesquisa normalmente trabalha com base em testes empíricos, dados estatísticos, cálculos
matemáticos, a fim de comprovar ou refutar a prerrogativa inicial do estudo. Quando falamos de associação entre Ciências Humanas e
Ciências Biológicas, normalmente, estamos falando de metodologias de pesquisa que fazem parte do gênero qualitativo. Mas afinal, o que
são pesquisas qualitativas? São pesquisas que procuram, por meio da análise de indivíduos e grupos sociais, entender os fenômenos, as
dinâmicas e as práticas de interação e comunicação entre indivíduos e grupos sociais.

Quando aplicamos esse tipo de pesquisa no universo da alimentação, o interesse do pesquisador é por experiências, interações e
documentos em seu contexto natural/real. As escolhas metodológicas e os conceitos teóricos são adaptados àquilo que se estuda. As
hipóteses não precisam ser perguntas fechadas, podem ser desenvolvidas e refinadas ao longo do processo da pesquisa. A etnografia é um
dos principais métodos usados em pesquisas qualitativas. Por isso, nos debruçaremos mais atentamente sobre ela.
A etnografia é a metodologia que descreve grupos sociais a partir de suas instituições, comportamentos, produções materiais e imateriais,
hábitos e crenças. A etnografia é feita in loco por um etnógrafo, que é aquele que produz o trabalho. Esse etnógrafo, basicamente,
participa da vida das pessoas, ou grupos sociais que está estudando, como um observador objetivo do cotidiano destes indivíduos. A
observação participante é um dos possíveis modos de inserção desses indivíduos na vida dos grupos estudados, assim, o pesquisador
etnógrafo não só observa, como também participa das atividades cotidianas do grupo. Esse processo de imersão do pesquisador é chamado
de pesquisa de campo.

Podemos dizer que a etnografia como método é baseada na pesquisa de campo. Constitui-se em um trabalho personalizado, multifatorial,
geralmente, comprometido com um longo prazo de duração, mas que pode variar de acordo com os objetivos da pesquisa. É um método
intuitivo, dialógico e holístico que pode gerar produtos narrativos ou ainda relatórios etnográficos. Esse tipo de pesquisa precisa ser aprovado
por um conselho de ética e é fundamental a aprovação dos indivíduos do grupo social que faz parte do estudo, através de um termo de
consentimento livre e esclarecido (TCLE).

Pensando na aplicação da etnografia ao campo da alimentação em Nutrição, podemos tomar como exemplo uma pesquisa sobre os
impactos das redes sociais nos hábitos alimentares da juventude, ou que analise a cultura alimentar de povos tradicionais indígenas ou de
matrizes africanas. A etnografia vai garantir ferramentas metodológicas de observação dos elementos simbólicos e culturais em torno da
alimentação de grupos sociais recortados como sujeitos da pesquisa. Nesse sentido, podemos dizer que, em pesquisas voltadas para
alimentação, a etnografia nos permite ir além dos dados e números, e aprofundar análises socioculturais em alimentação e Nutrição.

Fonte: Africa Studio/Shutterstock.


A INFLUÊNCIA DA CULTURA NA GASTRONOMIA

VERIFICANDO O APRENDIZADO

1. SEGUNDO O ANTROPÓLOGO SIDNEY MINTZ: “DESDE SEU INÍCIO COMO UMA CIÊNCIA DA OBSERVAÇÃO
PRÓXIMA A DISCIPLINAS COMO A HISTÓRIA NATURAL, A ANTROPOLOGIA MOSTROU GRANDE INTERESSE
PELA COMIDA E PELO ATO DE COMER. DIFICILMENTE OUTRO COMPORTAMENTO ATRAI TÃO
RAPIDAMENTE A ATENÇÃO DE UM ESTRANHO COMO A MANEIRA QUE SE COME: O QUÊ, ONDE, COMO E
COM QUE FREQUÊNCIA COMEMOS, E COMO NOS SENTIMOS EM RELAÇÃO À COMIDA. O
COMPORTAMENTO RELATIVO À COMIDA LIGA-SE DIRETAMENTE AO SENTIDO DE NÓS MESMOS E À
NOSSA IDENTIDADE SOCIAL, E ISSO PARECE VALER PARA TODOS OS SERES HUMANOS.”

MINTZ, S. W. COMIDA E ANTROPOLOGIA. UMA BREVE REVISÃO. IN: REV. BRASIL. CI. SOC. 2001; 16 (47): 31-
41

CONSIDERANDO O TRECHO ACIMA E O CONTEÚDO APRESENTADO NESTE MÓDULO, MARQUE A


ALTERNATIVA QUE MELHOR DESTACA AS CONTRIBUIÇÕES QUE A ANTROPOLOGIA PODE TRAZER PARA
A NUTRIÇÃO:

A) A Antropologia nos permite o entendimento dos tipos de micro e macronutrientes em um determinado alimento.

B) A Antropologia traz luz a fenômenos sociais relativos à alimentação, permitindo a compreensão do ato de comer para além da dimensão
biológica.

C) A Antropologia permite auxiliar o nutricionista a ajudar os pacientes a seguir uma dieta equilibrada e saudável, por seu conteúdo biológico.

D) A Antropologia contribui com a Nutrição na medida que nos ensina a pirâmide alimentar dos nutrientes.

2. PODEMOS DEFINIR CULTURA COMO TUDO AQUILO QUE O HOMEM TRANSFORMA, DE ACORDO COM
SUAS NECESSIDADES E DEMANDAS. ISSO TAMBÉM OCORRE COM A ALIMENTAÇÃO, QUE FOI
CONSTANTEMENTE MODIFICADA AO LONGO DA HISTÓRIA, INCLUINDO TODOS OS SIGNOS E RITUAIS QUE
ENVOLVEM A SUA PRÁTICA, QUE TAMBÉM MUDAM DE UMA CULTURA PARA A OUTRA. A CULTURA
ALIMENTAR DIZ RESPEITO A:

A) O que é digerível, porque comer, de quem comprar, onde comprar.

B) O que é comestível, como comer, quando comer, com quem comer.

C) O que é venenoso, porque comer, quando comer, onde comprar.


D) O que é perigoso, como comer, de quem comprar, com quem comer.

GABARITO

1. Segundo o antropólogo Sidney Mintz: “Desde seu início como uma ciência da observação próxima a disciplinas como a história
natural, a Antropologia mostrou grande interesse pela comida e pelo ato de comer. Dificilmente outro comportamento atrai tão
rapidamente a atenção de um estranho como a maneira que se come: o quê, onde, como e com que frequência comemos, e como
nos sentimos em relação à comida. O comportamento relativo à comida liga-se diretamente ao sentido de nós mesmos e à nossa
identidade social, e isso parece valer para todos os seres humanos.”

MINTZ, S. W. Comida e antropologia. Uma breve revisão. In: Rev. Brasil. Ci. Soc. 2001; 16 (47): 31-41

Considerando o trecho acima e o conteúdo apresentado neste módulo, marque a alternativa que melhor destaca as contribuições
que a Antropologia pode trazer para a Nutrição:

A alternativa "B " está correta.

A alternativa B está correta. A resposta certa é “A Antropologia traz luz a fenômenos sociais relativos à alimentação, permitindo a
compreensão do ato de comer para além da dimensão biológica.” Ao longo do tema, mostramos que o ser humano é um ser biopsicossocial,
e a Antropologia é uma ciência que permite a iluminação dos fenômenos socioculturais que envolvem a alimentação.

2. Podemos definir cultura como tudo aquilo que o homem transforma, de acordo com suas necessidades e demandas. Isso
também ocorre com a alimentação, que foi constantemente modificada ao longo da história, incluindo todos os signos e rituais que
envolvem a sua prática, que também mudam de uma cultura para a outra. A cultura alimentar diz respeito a:

A alternativa "B " está correta.

A alternativa B está correta. A cultura alimentar nos mostra o que é considerado comestível, como, quando e com quem se come em uma
determinada sociedade, por outro lado, não diz respeito sobre o que é venenoso ou de quem compramos o alimento.

MÓDULO 2

 Reconhecer as influências históricas na alimentação

CONCEITOS
Como vimos no início deste tema, por ser uma necessidade biológica, a alimentação é um exercício necessário à espécie humana.
Diferentemente dos animais, os seres humanos dão sentido simbólico à alimentação, desde os ritos de obtenção e produção dos alimentos,
até a preparação e o ato de comer os mesmos. Por isso, falaremos um pouco sobre a alimentação passeando pelas idades temporais
estabelecidas pelos historiadores, começando na Pré-história e passando por Antiguidade, Idade Média e Idade Moderna.

É importante deixar claro que o estudo de História que orienta as pesquisas desenvolvidas no Brasil, bem como todo o arcabouço teórico do
ensino de História, tem como orientação básica uma explicação eurocêntrica do mundo, ou seja, conta a História do mundo tomando a
Europa como início, meio e atualidade. Isso significa dizer que é uma História Ocidental, com fortes bases no pensamento judaico-cristão.
Contudo, versaremos um pouco sobre civilizações orientais, americanas e africanas.
PRÉ-HISTÓRIA
Os historiadores convencionaram chamar de Pré-história o período da História da humanidade que antecede a invenção da escrita. Alguns
dos grandes marcos da alimentação humana surgiram nesse período e foi a partir deles que o homem conseguiu constituir sociedades mais
complexas. Os primeiros humanos eram basicamente caçadores e coletores e migravam de um lugar para o outro na medida em que a
oferta de alimentos daquela região ia se esvaindo. Por esse motivo, eram chamados de nômades. A adaptabilidade dos seres humanos fez
com que estes desenvolvessem técnicas e habilidades que foram permitindo a fixação destes indivíduos em determinados espaços, seguida
da constituição dos primeiros grupos sociais. Dois fatores foram de suma importância para isso: o domínio do fogo e da agricultura.

Fonte: gerasimov_foto_174/Shutterstock.

Fonte: yuratosno3/Shutterstock.

O fogo sempre existiu, sendo principalmente provocado de modo natural, seja por queimadas espontâneas provocadas pelo sol seja a partir
de faíscas de raios. Portanto, quando falamos que os homens descobriram o fogo, na verdade, estamos querendo dizer que dominaram a
habilidade técnica de produzir centelhas e controlar esse fogo. O desenvolvimento dessa habilidade foi revolucionário, pois o fogo dominado
passa a ser utilizado por esses homens com diversas finalidades, tais quais o aquecimento, a proteção e a cocção.

O segundo ponto crucial para a fixação de grupos humanos em uma determinada localidade foi o domínio da agricultura e de técnicas de
cultivo, bem como a domesticação de animais. Isso ocorre na virada do período Paleolítico, também chamado de Idade da Pedra Lascada,
no qual os primeiros humanos já dominavam algumas técnicas mais simples de produção de ferramentas e utensílios para o Neolítico,
também conhecido como Idade da Pedra Polida.

Fonte: Wikimedia.
 Biface “machado de mão” período paleolítico.

Chamamos essa primeira grande onda de desenvolvimento agrícola da humanidade de Revolução Agrícola por seu caráter de
transformação e sua ruptura para a História da humanidade, pois, a partir disso, os primeiros grupos humanos se estabelecem em territórios,
tornando-se sedentários.

A sofisticação técnica culminou na formação de organizações sociais cada vez mais complexas, como a divisão sexual do trabalho,
estipulando tarefas específicas para homens e mulheres que variam de grupos para grupos. A alimentação faz parte dessa divisão, seja no
plantio, caça, preparo dos alimentos. A divisão por idade também é uma marca que vai aparecer em alguns grupos sociais. A chamada Idade
dos Metais marca a última grande era da Pré-história e vem conjuntamente com o surgimento da propriedade privada, o fortalecimento de
grupos sociais como sociedades cada vez mais organizadas, culminando no surgimento da escrita, comércio e nascimento das Grandes
Civilizações da Antiguidade.

ANTIGUIDADE OU IDADE ANTIGA


Os historiadores convencionaram chamar de Antiguidade ou Idade Antiga o período que vai desde o aparecimento da escrita até a separação
do Império Romano em Oriental e Ocidental no ano de 476. Quando pensamos em alimentação, falamos do período em que a terra tem
grande importância, e a produção e estocagem de alimentos era um dos fatores determinantes para o florescimento e sinal de propriedade de
uma sociedade. Comida era moeda de troca, distintivo social.

As primeiras grandes civilizações humanas tiveram como condição básica de existência a proximidade com os rios. O desenvolvimento
agrícola deu-se a partir da fertilidade que as terras próximas a esses rios tinham, bem como o aprimoramento técnico de irrigação destes.

A maior parte das civilizações da Antiguidade cultivavam cereais ou tubérculos, variando de acordo com a região geográfica do mundo. Como
exemplo, podemos falar do trigo na Europa; o arroz no Sudeste asiático; o milho e a batata nas Américas; o sorgo na África; a mandioca no
Brasil.

Fonte: YRABOTA/Shutterstock.

Havia ainda outros cereais importantes como o centeio e a cevada. A cevada começou a ser fermentada ainda na Antiguidade pelos
egípcios, dando origem às primeiras cervejas, que eram mais papas que líquidos.

Fonte: Africa Studio/Shutterstock.

O vinho também começou a ser fermentado na Antiguidade. A produção de alimentos, seguida do comércio, possibilitou a formação de
grandes impérios como: Mesopotâmicos, Egípcios, Malês, Chineses, Indianos, Gregos, Fenícios e o maior império da Antiguidade, o
Romano.

Fonte: rodrigobark/Shutterstock.

A comida tinha dimensão comercial, era moeda de troca e pagamento de salário. A própria palavra salário vem do uso do sal como
pagamento na Antiguidade. O sal era um importante conservante, uma vez que a conservação dos alimentos era de grande valia nesse
período. Vale lembrar que a geladeira doméstica só foi inventada na década de 1920.

Além de valor comercial, a comida na Antiguidade também ganhou caráter simbólico e ritualístico. Quase todas as civilizações tiveram algum
tipo de conexão entre a alimentação e o sagrado. Afinal, o alimento é fonte de vida, mantém o corpo saudável, ou adoece. Nesse sentido,
cada civilização criou seu ritual em torno da comida, seja no sentido daquilo que é puro ou não para comer, ou mesmo na dimensão de
entender que a comida é fonte de diferentes tipos de energia vital, ou ainda de perceber alimentos como sagrados, vide o caso do pão e do
vinho para os católicos, ou do milho e do cacau para civilizações pré-colombianas.
Um último destaque, em se tratando de alimentação na Antiguidade, pode ser dado à chamada política do Pão e Circo, do Império Romano.
Por ter se tornado um império tão extenso, a carestia de alimentos era uma realidade em Roma. Como estratégia de apaziguar revoltas, os
políticos romanos promoviam “espetáculos” nos chamados Stadiuns (o que dá origem ao que conhecemos hoje como estádio), nos quais
gladiadores lutavam com animais selvagens, como leões e tigres, ou uns contra os outros. Na entrada para essas lutas, era distribuído pão. A
ideia era garantir alguma alimentação e diversão à população para que ela não se rebelasse e extravasasse ódio aos governantes no calor
dos conflitos da arena.

IDADE MÉDIA
A partir da cisão do Império Romano, Oriental e Ocidental, em 476, tem início a Idade Média, que durou pouco mais de mil anos. Segundo os
historiadores, estendeu-se até 1453, quando os turcos tomam Constantinopla, que era a capital do que sobrou do Império Romano do
Oriente. A principal marca desse período é o crescimento da Igreja Católica com a primazia dos valores cristãos. A alimentação se insere
nisso, portanto, jejuns alimentares eram recorrentes nesse período como forma de purificação do corpo.

Outra marca importante quando pensamos em História da Alimentação na Idade Média é o estabelecimento do chamado feudalismo. Durante
esse período, que dura quase toda a Idade Média, a vida passa a centrar-se no campo, e a terra passa a ser o bem de maior valor. Esse
período é dividido em duas partes, a Baixa Idade Média e a Alta Idade Média. Durante a Baixa Idade Média (aproximadamente entre os
séculos V e X), a vida estava centrada no campo, a estabilidade dos grandes centros urbanos e das estradas fez com que as sociedades
buscassem abrigo no interior, em geral, atrás de muralhas de algum grande castelo. Uma vez focados no campo, o tempo da colheita,
juntamente do tempo da Igreja, era o que ditava os ritmos da vida. Com essa vida campesina, os homens foram desenvolvendo novas
ferramentas para o cultivo da terra e importantes técnicas agrícolas, como, por exemplo, a charrua (instrumento da Idade Média usado pra
fazer sulcos na terra) e a técnica de cultivo com rotação trienal dos campos, que consistia em dividir os campos agrícolas em três partes e a
cada ano variar o cultivo de dois alimentos diferentes deixando sempre uma das partes do campo sem plantio para que a terra recuperasse
seus nutrientes naturais. Isso permitiu um aumento expressivo da produção de alimentos.
A Alta Idade Média (aproximadamente entre os séculos XI e XV) teve início em paralelo a esse aumento de produção agrícola. Isso porque,
antes do desenvolvimento dessas técnicas, o plantio agrícola era, basicamente, de subsistência, ou seja, plantava-se o suficiente para pagar
os tributos ao dono do feudo e se alimentar. As novas tecnologias agrícolas possibilitaram um excedente de alimentos que, somado ao
retorno da segurança das estradas, culminou no retorno das trocas comerciais, novamente pautadas no alimento e alguns produtos
artesanais. Essas trocas eram feitas em feiras fora dos limites do castelo e, a partir dessas feiras, que duravam meses, as cidades foram aos
poucos ressurgindo ao redor desses espaços de troca comercial.

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Além do excedente agrícola e artesanatos, com o tempo, outros artigos foram sendo incorporados para venda. Isso porque o movimento
cristão conhecido como Cruzadas possibilitou a retomada do comércio exterior à Europa com mais força. Inicialmente, essas expedições
religiosas tinham como objetivo principal a Guerra contra os povos muçulmanos para retomada de espaços considerados sagrados pela
Igreja Católica, que se tornou ao longo da Idade Média uma das Instituições mais poderosas da Europa.

Contudo, para além dos conflitos, as trocas culturais ganham força a partir dessas Cruzadas. A Itália era o principal ponto de partida destas
cruzadas e acabou se tornando um dos maiores centros comerciais da Europa. A partir do contato com o mundo árabe, sabores e saberes do
Oriente, África e mundo Árabe foram invadindo a Europa e ganhando os gostos da realeza nascente.

A Idade Média chega ao fim com o enfraquecimento do feudalismo, e o nascimento dos reinos europeus, que futuramente darão origem aos
países como conhecemos hoje. As trocas culturais do final da Idade Média resultaram em novos hábitos alimentares que passaram a
dominar as feiras e as mesas da elite europeia, culminando em aventuras em alto mar em busca desses sabores valiosos, as chamadas
especiarias do Oriente.

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IDADE MODERNA
A Idade Moderna é o período que vai do final da Idade Média (1453) até o Início da Idade Contemporânea, e tem como marco a Revolução
Francesa (1789). Quando pensamos em alimentação, podemos dizer que o grande marco da Idade Moderna são as chamadas Grandes
Navegações, que vão marcar o primeiro grande movimento de globalização alimentar.

Chamamos de alimentos modernos aqueles que foram disseminados pelo mundo a partir do comércio ultramarino e, por meio do intercâmbio
cultural entre os diferentes continentes, promovido pelas Grandes Navegações.

O açúcar é um dos alimentos que se destaca, mas junto dele temos diferentes tipos de bebidas etílicas, as especiarias, as bebidas quentes,
além de diversos produtos nativos como batata, tomate, milho, café e cacau.

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Por sua especificidade de sabor, poder de conservação e raridade, as especiarias das chamadas Índias vão ter alto valor de mercado na
Europa e vão levar navegantes europeus ao mar em busca de novas rotas comerciais de acesso a esses produtos. Com isso, o mundo
conhecido se amplia e, além das Índia (o sudeste asiático de maneira geral), novas localidades da Costa Africana e o Continente Americano
entram na rota de sabores, modificando inteiramente os hábitos alimentares, tanto dos europeus quanto dos povos nativos dessas regiões.

Assim como o sal, por seu poder de conservação e estimulante natural, o açúcar se torna um insumo tão raro que era deixado como dote e
herança por algumas famílias. De origem árabe, o açúcar será inicialmente domesticado e comercializado com portugueses, refinado pelos
holandeses e depois ganhar o mundo. Esse é um período de grande circulação comercial, com destaque para metais preciosos, o que fez
com que a elite dessa época tivesse como marca o luxo e a ostentação.
Com isso, a consolidação dos hábitos alimentares europeus foi se tornando o padrão do comer bem, e os hábitos de etiqueta à mesa vão se
tornando signos de distinção social. Originalmente vindos da Itália, os banquetes reais, com uso de talher e regras rígidas de comensalidade,
ganham notoriedade junto à realeza da França e aos poucos tornam-se aspiração das elites em diferentes lugares do mundo, colonizados
por europeus. Contudo, toda essa ostentação de uns, gera a carestia de outros. A fome é também uma marca registrada entre grande parte
da população em diferentes lugares. Na Europa, acabou sendo um dos combustíveis que levaria a população pobre francesa a empenhar
uma das principais revoluções do mundo Moderno, a Revolução Francesa, que põe fim à Idade Moderna.

IDADE CONTEMPORÂNEA
A Idade Contemporânea convencionalmente começa com a Revolução Francesa e vai até os dias atuais. Se antes das Grandes Navegações
a sociedade europeia era predominantemente agrária, os novos contatos marítimos aceleraram as transformações tecnológicas e a
Revolução Industrial foi ganhando cada vez mais força. As tecnologias cada vez mais evoluíam no sentido de atender às novas demandas e
aos desafios dos tempos modernos, e a alimentação fazia parte destas demandas. Podemos dizer que muito do que comemos hoje surge
para atender a demandas de conservação, higiene e velocidade que a humanidade cada vez mais necessita.

Nesse sentido, vejamos que transformações foram essas e como elas dialogam com a alimentação e a nutrição.

Durante muitos anos, as especiarias, o açúcar e o sal eram os principais recursos de conservação dos alimentos. Contudo, cada vez mais a
população mundial demandava novas tecnologias que aprimorassem os desafios da conservação de alimentos, com garantia da segurança
alimentar para seus consumidores. Assim, a partir do século XIX, as tecnologias alimentares passam a ter métodos mais refinados a fim de
atender não apenas às demandas domésticas, mas também à escala industrial de produção. Foi assim que, em 1802, a primeira fábrica de
conservas surgiu, realizando os primeiros processos de vedação de suportes de vidro para mais de 18 tipos diferentes de alimentos. O
método criado pelo confeiteiro francês Nicolas Appert (1749-1841) recebeu seu nome, sendo em português chamado de apertização. Foram
transpostos de uma solução técnica para um problema em escala doméstica, para a produção industrial de alimentos enlatados mais seguros
e com maior durabilidade.

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 Conservas em vidro.

Fonte: grynold/Shutterstock.
 Conservas em lata.

Do vidro, o método passou para a lata, que garantia um transporte mais seguro e uma produção mais barata, assim, ainda no início do século
XIX, as primeiras fábricas de conserva de alimentos enlatados surgiram. No entanto, a popularização do uso de produtos enlatados vai
ganhar força a partir das guerras. Primeiramente na Guerra Civil Americana, o leite condensado, por exemplo, foi muito utilizado.
Posteriormente, nas outras Guerras Mundiais, já diante da preocupação com a qualidade nutricional da alimentação dos soldados, a
tecnologia de alimentos vai sendo cada vez mais aprimorada com essa finalidade. Com isso, o saldo do pós-guerra é a popularização cada
vez mais crescente dos enlatados, acompanhada da ideia de que esses produtos tinham qualidade nutricional e de segurança alimentar
superiores ao consumo de alimentos frescos.
Outro método de conservação da contemporaneidade que revolucionou a tecnologia de alimentos foi a pasteurização. Em 1864, o francês
Louis Pasteur descobriu que os microrganismos, as bactérias e os fungos eram os responsáveis tanto pela deterioração de alimentos quanto
pela transmissão de doenças. Uma das formas de neutralizar a ação desses era por meio da exposição dos alimentos a uma temperatura de
62-63ºC por um período de uma hora e meia, aproximadamente. Essa técnica é utilizada até hoje.

Fonte: RaviNepz/Shutterstock.
 Leite embalado em saco plástico, exemplo de bebida pasteurizada.

A produção de apertizados e enlatados, somada à pasteurização, não só garantiu mais segurança às produções de alimentos, como também
promoveu um aumento vertiginoso na produção. Novas fábricas eram criadas, com isso, novos postos de trabalho, mais gente empregada,
mais demandas de consumo. A Europa em gigantesca explosão industrial não dava conta de produzir alimento a baixo custo em quantidade
necessária para alimentar seus trabalhadores. Em meio a variadas crises, os EUA ampliam sua produção de enlatados a fim de atender às
demandas mundiais. Nesse sentido, podemos dizer que essas novas tecnologias possibilitaram uma nova forma de globalização alimentar,
enviada em formato de latas.

O mundo contemporâneo industrializado foi crescendo em progressão geométrica e se conectando em redes de comunicação e transporte. A
modernização do maquinário ferroviário e o investimento na ligação de diferentes localidades via ferrovias permitiu que alimentos não
cultiváveis em determinadas regiões chegassem frescos aos mercados de distribuição locais. Um exemplo disso é o eixo de comércio
alimentar que ia do Sul para o Norte da Europa.

As novas demandas de comércio internacional também vão impulsionar o progresso tecnológico das redes logísticas de escoamento das
produções locais de diversos países com destino a outros. Tudo isso teve um grande impacto em relação aos hábitos alimentares, uma vez
que a chegada de novos gêneros alimentícios alterou os hábitos tradicionais de alimentação.

Fonte: Gts/Shutterstock.

O comércio internacional intercambiava alimentos e tecnologias, e demandava cada vez mais inovação, tanto nas indústrias de alimentos
quanto na produção do campo. Com isso, a agricultura também sofreu um processo de mecanização, com o objetivo de aumentar e baratear
a produção de alimentos. As máquinas foram dominando o campo e, desse modo, o interesse no domínio agrícola em países
subdesenvolvidos por grandes companhias europeias e norte-americanas foi crescendo. Assim, alimentos tropicais passaram a chegar às
prateleiras dos EUA e da Europa.

Fonte: New Africa/Shutterstock.

A indústria fria foi outro setor que surgiu e cresceu no século XIX. O desenvolvimento de tecnologias de refrigeração industrial possibilitou
novas formas de conservação de alimentos, principalmente de produtos cárneos. Isso foi fundamental para o crescimento mundial do
consumo de carne, uma vez que, a partir da aplicação da refrigeração no transporte, a logística de distribuição e comercialização foi
amplamente facilitada. Nessa lógica, os países periféricos ocuparam cada vez mais a posição de exportadores, enquanto os países centrais
eram os comercializadores destas produções.

No início do século XX e a partir dos conflitos mundiais, a tecnologia de processamento e logística de abastecimento de alimentos foram
racionalizadas, de modo que as indústrias passaram a se organizar prioritariamente para a atenção ao front de guerra. Nesse período, a
ideia de segurança alimentar, no sentido de combate à fome, passou a ganhar força. Isso porque, após os conflitos, alguns lugares do
mundo, em especial a Europa, estavam devastados, o que gerou grande impacto na produção e distribuição de alimentos. Com a crescente
ideia de que era preciso garantir a segurança alimentar, no sentido de assegurar comida a todos, a ideia de que a mecanização do campo é
uma pauta de grande urgência floresceu. Na visão desse período, era preciso aumentar a oferta de cultivo imediatamente, porque acreditava-
se que, com maior oferta de comida, o problema da fome seria resolvido.

Essa visão era capitaneada pelos EUA. A indústria de alimentos norte-americana nasceu para atender às demandas que a Europa não
conseguia suprir, mas se tornou hegemônica a partir do pós-guerra. Na década de 1950, o mundo viveu a chamada Revolução Verde, a
qual, associada à mecanização, que já dominava o campo, aplicou também o desenvolvimento de sementes e o uso de aditivos
químicos na fertilização do solo e controle de pragas. Embora a indústria química tenha crescido vertiginosamente a partir das grandes
guerras mundiais, muitos dos produtos utilizados no campo eram aplicados a partir de estudos sobre melhoramento da produção e dos
alimentos, mas não levavam em consideração os impactos destes à saúde humana.

Fonte: B Brown/Shutterstock.
 Revolução Verde: Uso de aditivos químicos na fertilização do solo.

Mais que uma mudança de comportamento no campo, a Revolução Verde significou uma mudança de ideologia no que diz respeito à
produção agrícola em quase todo o mundo. Recaiu fortemente sobre os países periféricos que, por serem os mais atingidos pelos problemas
da fome e desnutrição, foram sendo cada vez mais dominados pela ideologia que primava pela quantidade de alimento produzido em
detrimento à qualidade do que seria consumido. Até a década de 1980, defendia-se que o problema da fome era a quantidade de alimento
disponível no mundo, mas aos poucos essa teoria foi sendo substituída, e novos estudos comprovaram que a questão da fome está mais em
torno do acesso do que da quantidade de alimentos disponíveis. Infelizmente, a fome ainda é um desafio na contemporaneidade, convivendo
lado a lado com o aumento exponencial da obesidade.
A INFLUÊNCIA DA MODERNIDADE NA CULTURA ALIMENTAR
VERIFICANDO O APRENDIZADO

1. O LIVRO PEGANDO FOGO: POR QUE COZINHAR NOS TORNOU HUMANOS , DE AUTORIA DO RENOMADO
PROFESSOR RICHARD WRANGHAM, TRATA DE UMA QUESTÃO ESSENCIAL PARA A EVOLUÇÃO HUMANA,
PORÉM POUCO DISCUTIDA: A IMPORTÂNCIA DO COZIMENTO DOS ALIMENTOS PARA O SURGIMENTO DE
NOSSA ESPÉCIE. É UM LIVRO PROVOCATIVO E BASTANTE DIDÁTICO, APRESENTA E DEFENDE A
“HIPÓTESE DO COZIMENTO”, UMA LEITURA PARA QUEM PROCURA REFERÊNCIAS SOBRE A GÊNESE DA
CULINÁRIA, UMA OBRA FUNDAMENTAL PARA OS ESTUDOS ANTROPOLÓGICOS, BEM COMO PARA O
CAMPO DA HISTÓRIA DA ALIMENTAÇÃO.”

COMERLATO, F. O FOGO E O HOMEM. IN : SEMINA: CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS, V. 32, N. 2, P. 205-208.

QUAL A IMPORTÂNCIA DO DOMÍNIO DO FOGO NA PERSPECTIVA CULTURAL E NUTRICIONAL PARA A


ALIMENTAÇÃO HUMANA?
A) Cozinhar os alimentos e permitir que os seres humanos aumentassem a capacidade de resistência ao fogo.

B) Matar animais maiores, se proteger do frio e usar a brasa como medicamento natural.

C) Culturalmente, o domínio do fogo vai permitir aos seres humanos a prática do cozimento de seus alimentos, atividade exclusivamente
humana que vai ser o elemento distintivo entre a dimensão natural e cultural da humanidade.

D) Nutricionalmente, o cozimento a partir do fogo deixa a comida menos segura, altera sabores, aumenta a deterioração, permite abrir
alimentos duros e reduz a quantidade de energia biodisponível que o corpo humano processa.

2. O AÇÚCAR É DE ORIGEM ÁRABE, FOI INICIALMENTE DOMESTICADO E COMERCIALIZADO COM


PORTUGUESES, REFINADO PELOS HOLANDESES E, EM SEGUIDA, GANHOU O MUNDO. DURANTE A IDADE
MODERNA, SE TORNOU UM INSUMO TÃO RARO QUE CHEGOU A SER DEIXADO COMO DOTE E HERANÇA
POR ALGUMAS FAMÍLIAS. TUDO ISSO PORQUE:

A) O açúcar tem um grande poder de conservação apesar de ter um fraco poder de adoçamento.

B) O açúcar tem um grande poder de conservação e é um estimulante natural.

C) O açúcar tem um grande poder estimulante e fraco poder de adoçamento.

D) O açúcar tem um grande poder de conservação e medicinal.

GABARITO

1. O livro Pegando fogo: por que cozinhar nos tornou humanos , de autoria do renomado professor Richard Wrangham, trata de
uma questão essencial para a evolução humana, porém pouco discutida: a importância do cozimento dos alimentos para o
surgimento de nossa espécie. É um livro provocativo e bastante didático, apresenta e defende a “hipótese do cozimento”, uma
leitura para quem procura referências sobre a gênese da culinária, uma obra fundamental para os estudos antropológicos, bem
como para o campo da história da alimentação.”

COMERLATO, F. O fogo e o homem. In : Semina: Ciências Sociais e Humanas, v. 32, n. 2, p. 205-208.

Qual a importância do domínio do fogo na perspectiva cultural e nutricional para a alimentação humana?

A alternativa "C " está correta.

A alternativa C está correta. O fogo foi de fundamental importância, pois permitiu aos seres humanos cozinhar os alimentos. Lévi-Strauss
define isso como elemento de distinção cultural dos seres humanos, além disso, também foi importante para o aumento, não a redução, de
energia biodisponível; não matava animais, só afugentava alguns, e não teve relação com aumento de resistência ao fogo.

2. O açúcar é de origem árabe, foi inicialmente domesticado e comercializado com portugueses, refinado pelos holandeses e, em
seguida, ganhou o mundo. Durante a Idade Moderna, se tornou um insumo tão raro que chegou a ser deixado como dote e herança
por algumas famílias. Tudo isso porque:

A alternativa "B " está correta.

A alternativa B está correta. O açúcar tem um grande poder de conservação, é estimulante e tem alto poder de adoçamento, e era valioso no
mercado comercial.

CONCLUSÃO
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Conhecemos os principais pontos de relação entre Antropologia e Nutrição. Desenvolvemos o conceito de cultura e seu desdobramento
relacional com a alimentação, que gera o conceito de cultura alimentar, vimos ainda alguns outros conceitos da Antropologia que, aplicado à
Nutrição, nos permitem a compreensão mais ampla dos fenômenos da alimentação. Além disso, aprendemos também quais ferramentas
metodológicas da Antropologia podem ser aplicadas ao campo da Nutrição. A partir do olhar para a história da alimentação humana,
observamos as mudanças e permanências que a alimentação sofreu ao longo dos séculos.

Aprendemos ainda sobre elementos fundamentais de organização social a partir da alimentação em diferentes períodos da história. Desse
modo, conseguimos aprender que a alimentação humana não é um objeto estático, e sim um fenômeno em constante transformação.

AVALIAÇÃO DO TEMA:
REFERÊNCIAS
BOAS, FRANZ. Antropologia cultural. Zahar, 2004.

GEERTZ, C. A Interpretação da Cultura. Rio de Janeiro: Zahar, 1989.

LARAIA, R. Cultura, um conceito antropológico. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004.

ROCHA, E. O que é etnocentrismo. Coleção primeiros passos. São Paulo: Brasiliense, 2004.

DOS SANTOS, C. R. A. A alimentação e seu lugar na história: os tempos da memória gustativa. In : História: questões & debates. v. 42,
n. 1, 2005.

EXPLORE+
Para saber mais sobre os assuntos explorados neste tema:

Veja como Maria Eunice de Souza Maciel aborda mais profundamente a relação entre alimentação e cultura no artigo Cultura e
alimentação ou o que têm a ver os macaquinhos de Koshima com Brillat-Savarin? , publicado em 2001.

Vale a pena conferir o livro de Henrique Carneiro Comida e sociedade: uma história da alimentação e assim, compreender melhor a
história da alimentação.
CONTEUDISTA
Lourence Cristine Alves

 CURRÍCULO LATTES

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