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Saga do Herói Reencarnado

Arco I: Noite das Bruxas

Capítulo I - O Fim de Todas as Coisas

Heitor caminhava solitário pelas ruas da região metropolitana de São


Paulo, suas mãos afundadas nos bolsos do moletom. Seus cabelos negros,
desgrenhados, e a barba por fazer evidenciavam a falta de autocuidado,
como alguém que havia atingido o fundo do poço. Na calçada, as pessoas
desviavam dele, como se fosse algum delinquente.
Mas ele não se importava com nada, pois em menos de 24 horas, três
notícias terríveis o atingiram em cheio. Seu patrão o informou que aquele
seria seu último mês na empresa, deixando-o sem ideia do que fazer a
seguir. Em seguida, foi despejado do apartamento onde morava, devido a
cinco meses de aluguel atrasado. E, por fim, sua namorada terminou o
relacionamento através de uma ligação.
"Cansei de esperar você ter sucesso na vida", disse ela. "Não vou
esperar indefinidamente pelos seus sonhos se realizarem. A vida continua,
Heitor."
Heitor, com seus meros 26 anos de idade, sentia-se esgotado. Ele
havia deixado sua cidade natal no interior do Ceará em busca de realizar
seus sonhos na agitada capital de São Paulo, mas as coisas não saíram como
planejado. Rapidamente, suas economias se esvaíram, e ele se viu preso em
um emprego terrível, mal remunerado e que consumia todo o seu tempo.
Agora, após todas essas decepções, ele se sentia sem alternativa a não ser
recorrer aos seus pais.
Porém, seu pai não era uma pessoa fácil de lidar. Ele, certamente,
aproveitaria essa situação para humilhá-lo, como sempre fez.
"Foda-se", pensou Heitor. "Passei a vida inteira tentando agradar os
outros, cedendo às suas vontades. Abri mão de diversão, amizades e festas.
Nem sequer bebi uma gota de álcool todos esses anos, e desperdicei minha
juventude com uma namorada que me abandonou ao primeiro sinal de
dificuldade... E agora, é só isso que me resta? Entregar-me à autopiedade?"
Enquanto imerso em seus pensamentos, Heitor passava ao lado de um
beco sombrio e úmido, quando percebeu uma movimentação suspeita. Por
um instante, ele pensou ser apenas um casal se escondendo para trocar
carícias, mas, observando com atenção, notou que se tratava de um homem
ameaçando uma mulher com uma faca.
Intrigado, ele decidiu adentrar o beco, aproximando-se
cautelosamente para confirmar sua suspeita. Ao avistá-lo, a mulher soltou
um grito abafado: "Socorro! Por favor, me ajuda..." No entanto, o agressor
prontamente tapou sua boca, continuando suas ameaças e tentativas de
coagi-la.
"Solte-a!" proferiu Heitor, mantendo-se a uma distância segura.
"Largue-a ou chamarei a polícia!"
"O que foi que você disse?" retrucou o abusador, ameaçadoramente.
"Se você se meter, eu vou te furar. Fica na sua, otário!" E, com um sorriso
perverso, exibiu uma .38 que carregava em sua cintura.
Um temor avassalador tomou conta de Heitor. Instintivamente, ele
enfiou as mãos nos bolsos, deu as costas e se afastou rapidamente.
"Por favor, não vá embora! Me ajude..." suplicou a mulher.
"Aquele covarde não fará nada. Você é minha agora! Se você não
resistir, poderá aproveitar esse momento tanto quanto eu. Hehehe",
vociferou o agressor, em um tom perverso.
Quase saindo do beco, Heitor parou abruptamente. Às suas costas,
podia ouvir os sons abafados da mulher lutando em vão contra o agressor.
Mas ele estava dominado pelo medo. Quantas notícias ele havia visto
diariamente de pessoas que perderam a vida ao tentar ser heróis? Sua mãe
costumava dizer: "Você não é um herói nem pai de ninguém, sempre
coloque sua segurança em primeiro lugar." E ele havia seguido esse
conselho à risca durante toda a sua vida, evitando qualquer tipo de conflito.
"O que estou fazendo? Por que estou hesitando? Já fiz isso antes... É só
fingir que nada está acontecendo, fingir que essas pessoas não estão aqui."
Seus pensamentos eram um conflito interno. Heitor então relembrou o
motivo pelo qual havia viajado para São Paulo. "Eu queria uma nova vida.
Uma oportunidade de me libertar do destino que outros escolheram para
mim."
"Maldição, maldição. O que estou pensando? Isso é sério! É arriscado
demais..." No entanto, por mais que Heitor batalhasse em sua mente, ele
permanecia imobilizado. Seu rosto contorcia-se e lágrimas vertiam de seus
olhos, refletindo sua confusão. Finalmente, ele tomou sua decisão e saiu do
beco, partindo.
Ao presenciar essa cena, a mulher, que ainda abrigava um pouco de
esperança, sucumbiu ao desespero, enquanto seu agressor abria suas
roupas. De repente, um som de impacto ecoou e o homem caiu ao chão,
segurando a cabeça. A mulher ergueu o olhar com esperança e avistou
Heitor. Ele ofegava pesadamente, o rosto coberto de suor, segurando uma
barra de metal com ambas as mãos.
"O que você fez, seu filho da puta? Perdeu a noção do perigo?" bradou
o homem, enfurecido, levantando-se e preparando-se para sacar sua .38.
Ele a puxou, mas antes de atirar, Heitor golpeou sua mão com a barra de
ferro, forçando-o a largá-la. Em seguida, golpeou-o novamente na cabeça,
derrubando-o ao chão.
"E o que ainda está fazendo aqui?" Heitor gritou para a mulher. "Fuja
e chame a polícia." A mulher, então, despertou de seus devaneios e assentiu
vagamente com a cabeça, fugindo o mais rápido que podia.
Heitor ergueu a barra novamente, determinado a golpear o agressor
mais uma vez, porém o homem no chão aproveitou a oportunidade para
chutar uma de suas pernas, derrubando-o também. Com ambos caídos no
chão, iniciou-se um intenso combate corpo a corpo, com socos e chutes
sendo trocados, enquanto lutavam para conter os movimentos um do outro.
Heitor era menor e mais fraco que seu oponente, seu rosto estava inchado e
o nariz sangrava dos golpes que havia recebido. A consciência começava a
escapar lentamente de seus sentidos. Desesperado, estendeu a mão para
alcançar o revólver caído ao lado, seus dedos trêmulos buscando o cabo da
arma. Quando finalmente o agarrou, ouviu-se o estampido de disparos,
seguido de um baque surdo.
Deitado de costas no chão, Heitor procurou recuperar o fôlego, seu
peito subindo e descendo em respirações pesadas, enquanto as gotas de
chuva se misturavam com suas próprias lágrimas, golpeando seu rosto. Ao
seu redor, uma poça de sangue se formava, testemunho da vida que
escapava de seu corpo. Uma mistura de dor e entorpecimento, calor e frio.
"Minhas escolhas me trouxeram até aqui", pensou ele. "Será este o
fim de tudo? As luzes do cinema se apagam, os créditos começam a subir e
eu descubro que tudo não passou de uma ficção?" Ele lamentou em silêncio.
"Eu queria uma nova chance."
E assim, Heitor fechou seus olhos para sempre neste mundo,
entregando-se ao silêncio e à escuridão absoluta.
Capítulo II - O Começo de Tudo

Heitor encontrava-se imerso na escuridão total. Sentia-se como se


estivesse flutuando sem rumo nas profundezas do mar, onde os raios de sol
eram incapazes de alcançá-lo. Um ambiente desolado, desprovido de vida,
sem qualquer companhia além dos seus próprios pensamentos. Era um
lugar perturbador, porém, ao mesmo tempo, reconfortante. Um mar de
possibilidades infinitas.
Num instante qualquer na eternidade, Heitor sentiu a luminosidade
perturbar seus olhos, coçando-os com as costas das mãos. Lentamente,
abriu-os e percebeu que estava deitado em uma cama, semelhante a um
leito hospitalar, mas com uma estrutura um tanto rudimentar. A fonte de
luz provinha de pequenas janelas nas altas paredes, bem como de
lamparinas e tochas espalhadas pelo ambiente. Um odor desagradável
misturava-se com o cheiro de ervas medicinais, causando-lhe náuseas.
Mulheres vestidas como freiras transitavam de um lado para o outro,
cuidando de doentes e feridos.
Ele percebeu estar em um local vasto, assemelhando-se ao interior de
uma igreja, com tetos abobadados e pinturas decorativas. Diversas camas
estavam dispostas em fileiras, separadas apenas por finas cortinas. Heitor
observou seu próprio corpo rapidamente e notou as várias bandagens
espalhadas em seu abdômen, tórax e braços, algumas manchadas de sangue
e exalando um forte aroma de ervas medicinais. Ao tentar se levantar, sentiu
um incômodo doloroso. Nesse momento, percebeu uma mulher sentada
numa cadeira junto à sua cama, inclinada sobre ela e adormecida.
Perplexo, ele encarou a mulher. Sua aparência era extremamente
exótica. Possuía uma pele alva e cabelos brancos como a neve, mas não por
velhice, pois aparentava ser jovem. Tinha uma beleza fora do comum, com
lábios finos, nariz delicado, sobrancelhas cuidadosamente delineadas e
maçãs do rosto coradas. Ela parecia um anjo, tal como as pessoas
acreditavam que um anjo deveria ser. "Que linda...", pensou Heitor.
Nesse momento, a mulher pareceu despertar e ergueu-se lentamente,
encontrando o olhar de Heitor. Por um breve instante, seus olhos se
encontraram antes de ele desviar o olhar, sentindo-se desconfortável na
presença de uma mulher tão bela.
A mulher repentinamente saltou sobre Heitor, envolvendo seu
pescoço com seus braços delicados e abraçando-o com toda a força que
conseguia reunir. Ela exclamou alegremente: "Aizack!" Lágrimas,
misturando alegria e culpa, começaram a escorrer de seus olhos enquanto
soluçava: "Desculpe-me, Aizack! Tudo foi minha culpa. Se eu não fosse tão
fraca, você não precisaria me proteger e não teria se machucado dessa
maneira. Sinto muito, por favor, não abandone essa tola garota que sou!"
Heitor sentiu dor ao ser tocado pela mulher, mas ao ouvi-la chorar
daquela maneira, ficou ainda mais perplexo do que antes. "O que está
acontecendo? Estou neste lugar acompanhado por essa bela garota e nem
mesmo sei o nome dela", pensou. "A última coisa que me lembro antes de
acordar é..." E então ele se lembrou de si mesmo deitado no beco, o sangue
se espalhando a partir de seu corpo. "Eu... Eu morri? Então, isso é o que
aconteceu depois que salvei aquela mulher... Aquele homem conseguiu
pegar a arma antes de mim. Mas se eu morri, como vim parar aqui e que
lugar é este?" Ele olhou ao redor, percebendo que a arquitetura, os móveis e
até mesmo as roupas das pessoas pareciam antiquados.
A mulher continuou a abraçar Heitor com fervor, soluçando entre
lágrimas e palavras de desculpas. Ele sentia a dor aguda em seu corpo, mas
também uma mistura de confusão e curiosidade diante dessa situação
surreal. "Aizack", pensou Heitor, "esse não é o meu nome... Quem é essa
garota e por que ela está tão emocionalmente ligada a mim?"
Enquanto a mulher se acalmava aos poucos, Heitor decidiu falar:
"Desculpe-me, mas acho que houve algum engano. Meu nome não é Aizack,
é Heitor. E eu não tenho ideia de como vim parar aqui. O que está
acontecendo?"
A mulher ergueu seu rosto, revelando seus olhos vermelhos e
inchados pelo choro recente. Ela olhou fixamente para Heitor, como se
estivesse tentando processar suas palavras. Depois de um breve momento de
silêncio, ela falou com uma voz trêmula: "Heitor... Eu... Me desculpe. Eu
pensei... Eu pensei que você fosse Aizack, meu irmão. Estou tão confusa."
Ainda abraçados, Heitor começou a absorver a estranheza da situação.
"Quem é Aizack? Por que você me confundiu com ele? E onde estamos
exatamente? Este lugar parece tão diferente de tudo o que eu conheço."
A mulher soltou Heitor e enxugou suas lágrimas. Ela respirou
profundamente e explicou: "Heitor, Aizack é meu irmão, pelo menos era.
Estamos em um reino chamado Órion. Há alguns dias, chegamos a esta
cidade e um dos Príncipes Mercantes, um jovem chamado Jamil, se
apaixonou por mim e ordenou que seus capatazes me levassem até ele. No
entanto, Aizack não permitiu que isso acontecesse. Ele me ajudou a fugir,
mas acabou sendo brutalmente espancado, quase até a morte. Desde então,
tenho tratado de seus ferimentos na esperança de que ele acordasse. Então,
peço desculpas se isso vai contra suas convicções, mas você, Heitor, é
Aizack. Acredito que o trauma possa ter causado a perda de sua memória.
Prometo fazer tudo o que estiver ao meu alcance para ajudá-lo a
recuperá-la." Ela falou com determinação, embora sua voz ainda tremesse.
Heitor ficou atordoado com as palavras da mulher. A ideia de que ele
pudesse ser outra pessoa, Aizack, seu irmão, era difícil de aceitar. No
entanto, as peças começaram a se encaixar em sua mente. Observando
brevemente seu próprio corpo, ele notou que parecia diferente do normal. O
corpo de Heitor, quando estava vivo, era magro, quase esquálido, a ponto de
outras pessoas o apelidarem de desnutrido. O corpo de Aizack, por outro
lado, era musculoso e definido, como o de um praticante de calistenia. Ao
tocar seus próprios cabelos, percebeu que os fios eram brancos, assim como
os da mulher à sua frente, o que confirmava o vínculo de irmãos entre eles.
"Você está certa. Tudo isso ainda parece muito confuso para mim",
disse Heitor, sentindo que seria melhor ter alguém confiável por perto
enquanto tentava descobrir o que estava acontecendo. "Você pode me ajudar
a recuperar minhas memórias? Sinto que só tenho você."
Ao ouvir isso, a mulher sentiu suas bochechas corarem. "Claro, vamos
tentar recuperar suas memórias, Aizack... Ou Heitor, ou como preferir ser
chamado."
"Aizack está bom", respondeu Heitor. "E você, qual é o seu nome?"
"Dalila", ela respondeu envergonhada. "Mas você costumava me
chamar de Doce Neve quando éramos crianças."
"Do-ce Ne-ve", pronunciou Heitor lentamente, sílaba por sílaba,
memorizando. "É um nome bonito."
Enquanto os dois conversavam, uma terceira pessoa se aproximou.
Era um homem de meia-idade, com o rosto marcado e um cavanhaque e
bigode salpicados de branco. Ele usava óculos com lentes pequenas que
disfarçavam seu olhar penetrante e estava vestido com um sobretudo sobre
um conjunto de colete e calças de couro marrom. Sua presença impunha
respeito e muitas das sacerdotisas no local se afastaram ao vê-lo.
"Vejo que Aizack finalmente acordou", disse ele, interrompendo os
dois. "Como está se sentindo, rapaz?"
"Aizack, este é o Dr. Richard Frostbite, um médico-alquimista",
apresentou Doce Neve. "Foi ele quem salvou sua vida."
Heitor estudou o homem de cima a baixo, percebendo o quão diferente
sua aparência era em relação a tudo o que ele havia visto até o momento.
"Muito obrigado, Dr. Frostbite", agradeceu. "Estou eternamente em dívida
com o senhor."
"Haha, com toda certeza está", respondeu o médico, gargalhando.
"Porém, devo confessar que minha curiosidade foi bastante atiçada quando
soube que um rapaz se recusava a receber tratamentos milagrosos e preferia
ser atendido por médicos. Foi por isso que decidi salvá-lo."
"Fico satisfeito por ter despertado o seu interesse", respondeu Aizack.
"A ciência está longe de ser perfeita, mas é melhor do que acreditar em
superstições. Além disso, não sou muito fã de me curvar diante de
ninguém", acrescentou com sarcasmo.
Os óculos de Richard brilharam com um olhar perspicaz.
"Compartilho da mesma visão que você", disse ele, sorrindo. "No entanto,
gostaria de examiná-lo agora. Estou bastante ocupado e não posso me
demorar aqui, mas as portas do meu laboratório estão sempre abertas para
você, caso queira visitá-lo."
O Dr. Richard Frostbite abriu sua maleta de instrumentos médicos e
remédios em uma mesa ao lado do leito. Ele pediu ajuda a Doce Neve para
remover cuidadosamente as bandagens que envolviam o corpo de Aizack,
cortando uma a uma com sua tesoura. Em seguida, ele examinou os
ferimentos, revelando surpresa ao constatar que as lesões estavam
completamente cicatrizadas, sem deixar sequer uma marca. Determinado,
ele prosseguiu com seu exame minucioso.
O médico alquimista avaliou os reflexos das pupilas, os membros
superiores e inferiores, mediu a temperatura corporal e verificou a cor da
língua. Para além do olhar comum, Richard possuía um olho direito
especial, que agora se tingiu completamente de negro, enquanto a pupila
assumia um tom vermelho como o sangue. Com esse olho, ele era capaz de
examinar a alma de Aizack. Desde o primeiro momento em que o viu,
Richard estava intrigado com a dualidade de almas que residiam no corpo do
jovem.
Enquanto observava atentamente, ele se questionava em silêncio:
"Como é possível que duas almas compartilhem o mesmo corpo sem se
destruírem mutuamente? Na verdade, parece que elas dependem uma da
outra, uma existência mutualista". Richard era um entusiasta da alquimia e
um mago especializado em transmutação. Ao longo das décadas, ele havia
estudado todo o conhecimento produzido nesse campo e testemunhado
fenômenos quase impossíveis: a Quintessência, o Homúnculo, a Pedra
Filosofal.
No entanto, o que estava diante dele era uma descoberta que poderia
abalar o mundo. "Lembro de ter lido algo semelhante enquanto pesquisava
sobre demonologia. Os Diabos são a casta mais alta entre os seres infernais,
capazes de devorar almas para fortalecer as suas próprias. O próprio
Homúnculo é a junção de dois seres opostos em uma única entidade, uma
tentativa de preservar a carne e a alma, mas a total integração é considerada
impossível. Eventualmente, o híbrido sucumbe ou uma das almas devora a
outra", ele ponderou em um turbilhão de pensamentos. "No entanto, como
pode ser impossível se está acontecendo agora mesmo diante dos meus
olhos? Talvez eu apenas seja ignorante demais para compreender a
verdade."
Ele ponderou por mais alguns instantes, seu rosto sério denotando
preocupação. "Seja como for, eu preciso garantir a segurança desse rapaz",
murmurou para si mesmo. O médico então se voltou para sua maleta e
retirou uma seringa, preenchendo-a com um líquido rosado contido em um
pequeno tubo de ensaio vedado por uma tampa de rosca. Testou a seringa,
permitindo que uma gota do líquido escorresse pela ponta afiada. Em
seguida, dirigiu-se a Aizack e disse: "Aizack, estenda o braço". O jovem
obedeceu, e o médico prendeu um elástico em torno de seu braço,
interrompendo momentaneamente a circulação sanguínea. Observou as
veias se tornarem mais visíveis e, com delicadeza, injetou o líquido. Aizack
sentiu apenas uma pontada, seguida de alívio.
"Acredito que você se sentirá melhor agora, rapaz", disse Richard.
"Não há mais necessidade de trocar os curativos, suas feridas estão
fechadas. Vá para casa e evite atividades físicas por dois dias. Quando estiver
se sentindo melhor, visite-me. Doce Neve sabe onde fica minha oficina."
"Obrigado, doutor", agradeceu Aizack, expressando sua gratidão.
"E obrigada por cuidar do meu irmão", acrescentou Doce Neve.
"Não precisam me agradecer. Não foi um favor, e eu irei cobrar",
retrucou ele de forma abrupta.
Em seguida, o médico arrumou sua maleta e partiu, deixando os dois
novamente sozinhos.
"Ele é um pouco..." Aizack começou a dizer.
"Excêntrico", completou Doce Neve.
"De fato, ele é", concordou Aizack, e ambos riram.
Capítulo III - Caminhos Cruzados

Após recuperar suas forças, Heitor no corpo de Aizack deixou a


enfermaria acompanhado por sua irmã, Doce Neve, apenas para descobrir
que aquela estrutura era apenas uma das muitas que compunham a
grandiosa igreja.
Seus olhos se encantaram com o cenário exterior. Um pátio cercado
por um imponente muro de pedra, onde um jardim meticulosamente
cultivado se estendia. Flores de variadas cores e fragrâncias desabrochavam
em perfeita harmonia, enquanto árvores frondosas ofereciam sombra aos
clérigos e missionários que ali residiam. Caminhos de pedra serpenteavam
pelo jardim, conduzindo a três distintas construções: a enfermaria, onde os
enfermos e feridos eram cuidadosamente tratados; o templo, onde as
adorações e oferendas eram realizadas; e a escola, destinada à educação de
nobres e clérigos.
No centro do pátio, uma fonte jorrava águas límpidas, tendo uma
escultura erguida sobre ela. A figura representada era a de uma mulher
imponente, esculpida em mármore e vestida com uma toga esvoaçante. Seus
olhos estavam vendados, simbolizando a imparcialidade, enquanto em um
de seus braços ela sustentava uma coruja empoleirada, símbolo da
sabedoria, e na outra mão empunhava uma lança, representando sua força e
proteção.
Heitor explorou o local em busca de qualquer sinal que remetesse ao
catolicismo ou ao protestantismo de seu mundo natal, esperando encontrar
alguma evidência de que talvez tivesse reencarnado em outra época ou
lugar. No entanto, apesar da semelhança com uma igreja cristã, o ambiente
era fortemente influenciado pela arquitetura e simbolismo da cultura
greco-romana.
Enquanto caminhava pela enfermaria, seus olhos pousaram em uma
cena impressionante: uma sacerdotisa colocava suas mãos sobre a ferida de
um soldado, e para sua surpresa, a ferida fechou-se instantaneamente, em
uma velocidade impossível de ignorar.
Por um breve instante, Heitor questionou sua própria percepção,
tentando reconciliar o fato de que magia parecia existir nesse lugar
desconhecido. Surgiu em sua memória a conversa com o Dr. Richard
Frostbite, em que o médico-alquimista mencionou que Aizack havia
insistido em ser tratado por ele, em vez de recorrer às sacerdotisas.
"Aqui existe magia... Seria realmente um mundo completamente
diferente do meu?" pensou Heitor, maravilhado e perplexo ao mesmo
tempo. "Se a magia realmente existe, por que não seria algo bom? Imagine
poder curar doenças e feridas que levariam semanas para cicatrizar com
apenas um toque... Isso é insano! Então, por que Aizack teria recusado o
tratamento das sacerdotisas?" As perguntas se acumulavam em sua mente,
buscando respostas que pareciam escapar da sua compreensão.
Heitor voltou-se para Doce Neve ao seu lado e questionou: "Este lugar
é uma igreja, certo? Qual é a religião praticada aqui?"
Doce Neve pareceu surpresa com a pergunta. "Esta é a Igreja de
Amythia, a Mãe de Todos. Ela é a divindade que governa o dia, a noite e as
estações do ano. Ela concede vida a todos os seres vivos, inspira a
criatividade dos artistas e concede poder aos governantes. Amythia é tudo
para nós." Doce Neve sorriu. "Mas fiquei curiosa, de repente você
demonstrou interesse por religião. Não costumava se interessar por isso
antes."
Heitor assimilou as informações lentamente. "Achei este lugar muito
bonito. Além disso, fiquei curioso sobre como as sacerdotisas conseguem
curar feridas com um simples toque."
Doce Neve sorriu e respondeu: "Ah, isso é o que chamamos de
milagre. Amythia é uma deusa benevolente e compartilha uma parcela de
seus poderes com seus devotos, para que possam ajudar as pessoas
necessitadas. Esses poderes são conhecidos como milagres, mas não são
concedidos sem um custo."
Heitor interveio com uma pergunta. "Qual é o custo desses poderes?"
"Amythia tem planos para cada um de nós", explicou Doce Neve. "Ela
nos confia uma tarefa sagrada para cumprir. Se renunciarmos à nossa
identidade e ao que fazemos e nos dedicarmos a cumprir esse propósito,
seremos agraciados com esses poderes."
Heitor refletiu sobre essas novas informações. "Seria bom se eu
pudesse aprender a usar magia, mas não gostaria de me dedicar a um deus
para obtê-la", ponderou. "Será que existem outras formas de magia neste
mundo?"
Após esses pensamentos, ele dirigiu-se a Doce Neve e perguntou:
"Além dos milagres, existem outros tipos de magia?"
"Claro que existem", ela respondeu sem hesitação, como se fosse algo
completamente natural. "Eu mesma pratico alguns encantos, e além disso,
existem também feitiços e sortilégios."
"É tão comum assim aprender magia?", indagou Heitor.
"É mais ou menos comum", ela respondeu. "A maioria das pessoas
consegue conjurar duas ou três magias, mas é raro encontrar alguém capaz
de conjurar magias que vão além do uso cotidiano, como lavar roupas ou
acender fogueiras. Já um mago ou sacerdote é alguém que estuda e pratica a
magia para realizar feitos grandiosos."
Heitor lembrou-se dos tempos em que jogava RPG com seus amigos,
Wesley e Gabriel, no mundo de Dungeons & Dragons. Naquele jogo, havia
dois tipos de magia: a arcana e a divina. "Os milagres devem ser a magia
divina e os feitiços a magia arcana", pensou internamente. "Mas o que
seriam os outros dois tipos de magia?"
"O que exatamente são esses encantos e sortilégios?" perguntou
Heitor curioso.
"Bem, vou tentar explicar de forma simples", respondeu Doce Neve.
"Os encantos são magias que surgem da personalidade e do carisma de uma
pessoa. Geralmente, artistas como atores, músicos, pintores e escultores
têm a habilidade de criar ilusões ou manipular as emoções das pessoas
usando magia. Quanto aos sortilégios, são um tipo de magia extremamente
raro e proibido. Eu mesma não saberia explicar exatamente como
funcionam, mas ouvi dizer que envolvem todo tipo de magia comumente
associada a necromantes e assassinos."
Heitor ficou admirado. "Então você é uma artista ou algo assim?"
Doce Neve ficou levemente corada. "Não exatamente... Mas eu
conheço alguns truques."
"Gostaria de vê-los em algum momento", disse Aizack com um
sorriso caloroso. "Agora que estou pensando, eu sabia usar algum tipo de
magia? Quero dizer, antes de perder a memória."
"Você? De jeito nenhum!", Doce Neve riu como se fosse a piada mais
engraçada do mundo, e Heitor não sabia se ficava triste por ser alvo da
zombaria ou se admirava a beleza dela quando ria.
"Qual é a graça? Eu realmente gostaria de saber se posso aprender
magia", disse Heitor, envergonhado.
"Ai ai, nosso avô, Airon, fez um teste para avaliar nossa aptidão para a
magia quando tínhamos sete anos", explicou ela, segurando o riso como se
estivesse com a boca cheia de água. "Ele descobriu que você é o tipo mais
raro de pessoa no mundo, uma pessoa que nasce apenas uma vez a cada mil
anos. E sabe o que ele descobriu sobre você? Que você não tem
absolutamente nenhuma aptidão para conjurar magias. Até um esquilo teria
mais chances de se tornar um mago do que você."
As palavras atingiram Heitor como flechas no peito, deixando-o
imediatamente abatido. "Droga, eu já era um fracasso no outro mundo, e
agora sou um fracasso nesse mundo também? Será que nasci destinado ao
azar?" Ele pensou consigo mesmo, sentindo-se deprimido.
Em seguida, ele recebeu tapinhas reconfortantes nas costas. Doce
Neve tentou levantar um pouco o seu ânimo, dizendo: "Mas, calma, Aizack,
não poder usar magia não é completamente ruim."
"Não é completamente ruim? O que há de bom nisso?" Heitor
perguntou, meio irritado.
"Bem, você tem sua irmãzona aqui com você, e eu posso conjurar
magias por você, sem que você precise se esforçar. O que acha disso?" Disse
Doce Neve, ainda com um tom zombeteiro.
Heitor teve a leve impressão de que Doce Neve estava brincando com
ele. Ele respirou fundo e perguntou, esperançoso: "Mas espere um
momento, fizemos esse teste quando tínhamos sete anos. Não há alguma
possibilidade de que meu talento tenha mudado ao longo desses dez anos?"
"Bem, pode ser que seu talento tenha mudado ao longo desse tempo,
mas é improvável que você tenha talento superior a Imo. Infelizmente."
Doce Neve respondeu, com um toque de sinceridade.
Ao ouvir essas palavras, Heitor sentiu-se ainda mais desanimado,
mas pensou que ter um pouco de talento era melhor do que não ter nenhum.
"Onde posso testar meu talento para a magia?" ele perguntou.
"Hmmm... Geralmente, algumas guildas de aventureiros oferecem
testes para aqueles que se inscrevem nelas", respondeu Doce Neve. "No
entanto, a inscrição é extremamente cara e representa mais de um ano de
finanças para uma família de camponeses. Muitos aventureiros juntam
dinheiro por anos apenas para ter essa oportunidade."
Heitor baixou a cabeça, sentindo-se completamente derrotado.
"Parece que a vida realmente não quer que as coisas deem certo para mim."
Os dois continuaram a caminhar até deixarem os domínios da igreja. À
medida que se afastavam, adentravam nas ruas barulhentas e
movimentadas da cidade de Ondaluz. Como uma cidade portuária, suas ruas
estavam cheias de comerciantes e viajantes vindos de várias nações,
trazendo consigo uma rica variedade de especiarias, tecidos, mercadorias e
tesouros.
No cais, imponentes navios balançavam nas águas serenas da Costa
Dourada, ostentando bandeiras de diferentes nacionalidades e até mesmo
algumas exibindo a Jolly Roger da Irmandade da Costa, a maior organização
de piratas do mundo. Tanta liberdade era possível porque Órion era uma
federação de repúblicas mercantilistas, que pouco se importavam com quem
negociavam, desde que houvesse lucro.
Quanto mais se aproximavam do mar, mais os dois irmãos podiam
ouvir o suave som das ondas batendo nos cascos dos navios e sentir o aroma
salgado do oceano que impregnava o ar. Por toda parte, havia comerciantes,
viajantes, piratas e cortesãs, além de carruagens carregadas de mercadorias
que passavam pelas ruas estreitas e sinuosas, delimitadas por edifícios de
pedra.
Aizack e Doce Neve dirigiam-se aos estábulos, onde Coralina, a égua
de Doce Neve, estava alojada, para cavalgarem em direção a um vilarejo
vizinho, onde residiam juntamente com seu avô.
No entanto, no meio do trajeto, avistaram uma adorável garotinha,
aparentando ter menos de cinco anos, caminhando desamparada em meio à
multidão, claramente perdida. Ela chorava copiosamente e não prestava
atenção ao seu redor, quando uma grande carruagem, puxada por dois
cavalos negros, se aproximava rapidamente, prestes a colidir com a pobre
criança.
Tudo aconteceu em um piscar de olhos. Heitor, que estava absorto em
seus pensamentos sobre como juntar dinheiro, avistou a garota e a
carruagem, agindo rapidamente. Abandonou a muleta e se lançou em uma
investida rápida em direção à garota, envolvendo-a com seus braços e
saltando. Sem perceber, seus pés estavam vários metros acima do chão,
girando pelo ar antes de pousar em segurança a uma distância considerável
da carruagem. O cocheiro percebeu o que havia ocorrido e parou a
carruagem bruscamente.
Aturdido, Heitor olhou para suas pernas e pensou: "Como isso foi
possível? O corpo de Aizack não estava ferido? Mesmo que este corpo
estivesse ileso, seria impossível para um ser humano reagir com tamanha
velocidade e saltar tão alto carregando outra pessoa nos braços". Aos
poucos, ele começava a compreender que as regras de seu mundo natal não
pareciam se aplicar a este novo mundo. "Se um cara como Aizack foi
espancado até a morte, quão poderosas devem ser as pessoas que fizeram
isso com ele?" Engoliu em seco, apreensivo.
Em seguida, lembrou-se da menina em seus braços e perguntou,
preocupado: "Você está bem?"
A garota, que havia chorado intensamente momentos antes, olhou
para Aizack com seus olhos verdes, brilhando como pequenas esmeraldas, e
assentiu positivamente. "Estou bem."
"Qual é o seu nome? Por que estava andando sozinha assim?",
questionou ele, preocupado em saber quem eram seus pais para permitirem
que uma criança tão jovem vagasse desacompanhada pelas ruas.
"Eu sou Anelise", respondeu ela, saindo dos braços de Aizack e
fazendo uma reverência desajeitada, segurando seu vestido azul. "Me
afastei do meu pai e acabei me perdendo. Ele estava em uma reunião de
negócios. Pelo menos foi o que ele me disse."
"Olá, Anelise. É um prazer conhecê-la. Meu nome é Hei... digo,
Aizack", ele corrigiu a si mesmo antes de completar. "Seu pai deveria
prestar mais atenção em você. Qual é o nome dele?"
"Meu pai é um homem ocupado, mas ele não é mau", ela defendeu seu
pai. "O nome dele é Reynard."
Nesse momento, Doce Neve se aproximou correndo e parou ao lado
dos dois. "Vocês estão bem?", perguntou ela preocupada, observando Aizack
ainda se recuperando.
"Estamos ilesos", ele assegurou e então se voltou para Anelise: "Esta
é minha irmã, Doce Neve. Ela vai nos ajudar a encontrar seu pai."
Compreendendo rapidamente a situação, Doce Neve se agachou para
falar com a menina. "Fico feliz em conhecê-la. Vamos encontrar seu pai em
breve", disse ela, olhando para Aizack. Em seguida, perguntou: "Você tem
alguma ideia de onde o pai dela possa estar?"
"Ainda não tenho certeza. Ela disse que se perdeu dele enquanto ele
estava fazendo negócios e seu nome é Reynard", respondeu Aizack. "Mas,
olhando ao redor, há comerciantes por todos os lados, então ele pode estar
em qualquer lugar."
"Realmente, será complicado encontrá-lo", concordou Doce Neve.
Observando atentamente a menina, Aizack notou que ela estava
vestindo um delicado vestido azul claro, ricamente bordado, e seus lindos
cachos castanhos estavam cuidadosamente penteados e presos com um
laço. Seus olhos verdes eram inocentes, e ela parecia um verdadeiro anjinho.
"Anelise, seu pai te ensinou a ler?", ele perguntou.
"Meu pai é bastante reservado e passa o dia dentro de seu escritório.
Quem me educou foi a governanta da minha casa e alguns instrutores
selecionados pelo meu pai", respondeu ela de maneira demasiadamente
eloquente para uma criança.
"E qual é a sua idade?"
"Minha governanta disse que uma dama nunca revela sua idade para
ninguém", ela recusou-se a responder.
"Você ainda não é uma dama", ele respondeu, rindo levemente. "Por
enquanto, você é apenas uma criança."
"Eu sou sim uma dama!", ela insistiu, batendo os pés no chão. "E você
é um grosso!"
"Claro, claro, se você é uma dama, então em que ano você nasceu?"
"Eu nasci em julho de 1412", ela respondeu rapidamente.
Doce Neve ouviu e respondeu em seguida: "Ela tem cinco anos,
Aizack".
Ele ponderou por alguns instantes: "Uma criança de cinco anos não
deveria saber ler ou escrever, ainda mais na Idade Média. O pai dela deve ser
muito rico".
"Doce Neve", Aizack chamou. "Quem são as pessoas mais ricas de
Órion?"
"Hmm, acho que são os Príncipes Mercadores", respondeu Doce Neve.
"Ah, sim. Você mencionou um deles antes. O nome era Jamil ou algo
assim. Mas afinal, quem são esses Príncipes Mercadores?"
Doce Neve pensou sobre como explicar e começou: "Imagine que
Órion é uma união de várias cidades livres. Quando digo 'livres', quero dizer
que não há um governo central em cada uma dessas cidades, não há reis,
duques ou condes. Na verdade, cada cidade é governada por um grupo de
comerciantes locais conhecido como a ‘Guilda dos Mercadores’. Cada guilda
é liderada por uma pessoa extremamente rica e influente, que chamamos de
Príncipe Mercador. Não é que eles sejam príncipes com poderes reais, mas
são tão ricos que suas ações têm um impacto significativo na vida das
pessoas."
Aizack virou-se para Anelise e perguntou: "Seu pai é um desses
Príncipes Mercadores?"
Capítulo IV - Eu não estou preso com Vocês, Vocês é que
estão presos comigo!

No Cais de Ninguém, reuniam-se bandidos, mercenários e piratas


para negociar mercadorias proibidas nas feiras de Ondaluz, como pólvora,
ópio e escravos. Entre eles, estava um dos Príncipes Mercadores chamado
Jamil, um homem de apenas 17 anos, mas com conexões profundas no
submundo da pirataria, seguindo os passos de seu pai, de quem herdara toda
a fortuna.
Seu pai era um dos piratas mais temidos dos Sete Mares, e todos os
piratas almejavam agradar Jamil, acreditando que ele seguiria os passos de
seu pai e se tornaria igualmente temido.
"Escutem todos!", anunciou Jamil em alto tom. "Desde que cheguei a
Ondaluz, percebi por que esta cidade é uma das mais lucrativas do mundo.
Basta olhar para o porto para ter certeza de que este é o lugar certo para
fazer negócios." Sua eloquência cativava a atenção dos presentes. "Aqueles
que desejam enriquecer, tenho uma ilha a 75 milhas náuticas daqui, a
noroeste, onde cultivo ópio e alkaluna. Por um preço acessível, vocês podem
adquirir toneladas dessa especiaria e vendê-las por um valor muito maior
nessas terras. A única dificuldade será driblar as autoridades locais." Ele
sorriu, revelando dentes anormalmente afiados como lâminas. "Mas
acredito que isso não seja um problema para vocês. Ou será que é?"
Os piratas presentes rugiram e bateram os pés no chão ou nas mesas,
derrubando copos e garrafas em uma verdadeira algazarra de aprovação.
"Ótimo!", exclamou Jamil, seus olhos cinzentos parecendo uma
tempestade se aproximando. Ele caminhou entre os criminosos presentes,
que se afastavam para abrir caminho. "Ainda tenho outra oportunidade para
apresentar a vocês." O ambiente se silenciou instantaneamente. "Quando
cheguei em Ondaluz, deparei-me com uma mulher extraordinária. Não uma
rameira qualquer, como vocês estão acostumados, mas alguém que parecia
ter caído dos céus. Naquele momento, meu coração foi tomado por uma
paixão indescritível..." Ele colocou a mão no peito, dramático. "Nos últimos
dias, tudo em que tenho pensado é nessa mulher. Então, a oferta que faço a
vocês é a seguinte: aquele que encontrar e trazer essa mulher até mim
receberá o peso de um brigue em ouro e terá estoque de alkaluna pelo resto
da vida. Além disso, serei eternamente grato e o tratarei como um sócio, em
pé de igualdade comigo." Seu olhar tornou-se mais intenso e doentio.
"Entretanto, ela deve ser trazida até mim intacta. Caso contrário..."
De repente, Jamil pegou uma garrafa de cerveja, quebrou-a com um
golpe na mesa e cortou a garganta do pirata mais próximo. O homem caiu ao
chão, engasgando e sufocando em seu próprio sangue. As pessoas ao redor
se afastaram rapidamente. Jamil montou sobre o homem caído e o espancou
continuamente até a morte. Seu rosto ficou completamente ensanguentado,
e ele olhou novamente para os piratas que o observavam. "Em suma,
recompensarei aqueles que forem leais a mim, e aqueles que me traírem..."
Ele lançou um olhar ao defunto.
Dois dias se passaram e, bem distante dali, Aizack e Doce Neve
caminhavam de mãos dadas pelas ruas de Ondaluz, com a pequena Anelise
entre eles. À distância, poderiam facilmente ser confundidos com uma
família. Aizack, ou melhor, Heitor, sentia-se desconfortável com essa
aparência, pois cada passo dado o fazia lembrar de sua ex-namorada e de
como nunca mais poderia vê-la.
O trio continuava a percorrer lojas e guildas, perguntando às pessoas
se conheciam alguém chamado Reynard. No entanto, ninguém parecia
conhecer tal pessoa, o que levou Heitor a questionar se o pai de Anelise era
realmente um Príncipe Mercador ou alguém importante. No entanto, a que
mais parecia se divertir com a situação era Doce Neve. Onde quer que
fossem, ela comprava doces, bonecas, laços e vestidos para a menina,
brincando de vesti-la como se fosse sua própria filha. Sempre que Anelise
dizia "obrigada" ou fazia algum gesto fofo, Doce Neve explodia em êxtase,
como uma verdadeira maníaca.
"Bem, parece que no final toda mulher gosta de crianças", refletiu
Heitor. Em seguida, dirigiu-se a Doce Neve: "Onde mais poderíamos
encontrar informações sobre os Príncipes Mercadores? Está ficando escuro e
eu gostaria de encontrar o pai dela ainda hoje."
Doce Neve respondeu pensativa: "Eu não tenho certeza. Talvez
possamos obter mais informações se falarmos diretamente com o Príncipe
de Ondaluz. Pelo menos assim poderíamos descartar a possibilidade de ela
ser filha de um Príncipe Mercador."
"Isso faz sentido", concordou Aizack. "E você, Anelise? Conte-nos um
pouco sobre a sua terra natal ou de onde você veio. Tenho certeza de que isso
nos ajudaria em nossa busca."
Anelise franzia a testa, como se estivesse fazendo um grande esforço
para se lembrar. "Meu pai e eu moramos em uma ilha, num castelo grandão
situado sobre penhascos grandões. Meu pai possui uma frota grandona de
galeões, cada um deles equipado com mil canhões", explicou, fazendo
gestos exagerados para ilustrar. "Acredito que o nome da nossa ilha seja
Miramar."
"Ótimo, agora sabemos que você veio de Miramar, então pelo menos
temos um lugar para onde levá-la, caso seja necessário", afirmou Aizack.
Enquanto conversavam, eles passavam por uma ruela estreita, quando
três brutamontes bloquearam seu caminho. Aizack parou e ergueu o braço,
indicando para Doce Neve fazer o mesmo. Ao olhar para trás, percebeu que
outros três homens haviam bloqueado a saída. "Estamos encurralados",
pensou Heitor. "Serão eles assaltantes ou..." E então se lembrou do que
havia acontecido com Aizack.
"Boa noite, senhores", disse Aizack em voz alta e clara. "Espero que
não estejamos atrapalhando a diversão de vocês. Estamos apenas de
passagem e não queremos arrumar problemas."
Assim que ele falou, os homens começaram a sair das sombras um por
um, todos grandes como armários e com expressões ameaçadoras. Riam
como se as palavras de Aizack fossem uma piada hilária. Alguns até
lançavam olhares lascivos para Doce Neve.
"Saia da frente, otário, se não quiser se machucar!", disse um deles.
"Só queremos a garota", acrescentou outro.
Aizack ficou tenso. Eles realmente estavam interessados em Doce
Neve. "Mesmo com a força que demonstrei anteriormente, não sei se
conseguiria vencê-los. E temos Anelise para nos preocupar", pensou,
enquanto planejava uma rota de fuga. "Droga, é nesses momentos que eu
deveria despertar algum poder ultra roubado de protagonista."
"Não se iludam", disse Aizack em um tom sombrio. "Acham que
podem me machucar? Quem disse isso?"
Após ouvirem essas palavras, os brutamontes hesitaram e não
avançaram imediatamente. Aproveitando sua surpresa, Aizack arrancou a
camisa, expondo seu corpo marcado por cicatrizes, e assumiu uma postura
de luta, fingindo confiança. "Podem vir um por um ou todos de uma vez,
mas cada um de vocês perderá no mínimo cinco dentes!", ameaçou Aizack.
Todos ficaram impressionados com suas palavras, inclusive Doce
Neve, que nunca tinha visto Aizack tão sério. O próprio Aizack, ou Heitor,
estava surpreso com o que acabara de dizer. "Não posso voltar atrás agora",
pensou com medo. "Pelo menos assim eles vão se concentrar em mim e
deixar Doce Neve e Anelise em paz."
O momento que se seguiu foi um instante de tensão antes do caos,
enquanto todos se encaravam. De repente, Aizack saltou no ar, suas pernas
parecendo cordas esticadas de um arco, disparando-o em direção ao céu.
Com uma facilidade impressionante, ele alcançou uma altura de dez metros
e desceu velozmente, afundando ambos os pés no rosto de um dos
brutamontes, que caiu inconsciente com um único golpe.
Em seguida, o brutamonte mais próximo tentou agarrá-lo, mas
Aizack se abaixou sob o abraço e, num movimento ágil, acertou um gancho
em seu queixo, nocauteando-o instantaneamente. O próximo oponente
sacou um taco e desferiu um golpe em direção ao rosto de Aizack, que
bloqueou com o braço direito. O taco se partiu contra sua pele, deixando um
hematoma dolorido.
Em questão de segundos, Aizack estava cercado por quatro
brutamontes. Dois deles sacaram sabres, enquanto o terceiro puxou uma
garrucha do coldre.
"Ei, nunca ouviu dizer que não se traz uma arma de fogo para uma
briga de rua?", exclamou Aizack, indignado.
"Você teve sua chance, moleque", respondeu o homem com a
garrucha. "Agora você vai morrer!" Ele atirou em direção a Aizack, que
saltou atrás de um barril que explodiu com o impacto do projétil.
Enquanto lutava, Heitor sentia uma crescente onda de adrenalina,
semelhante àquela que experimentara ao enfrentar o assaltante em sua vida
anterior. "Aquela sensação... eu não tive tempo para apreciá-la", pensou.
Lutar estava se tornando prazeroso de uma maneira que ele jamais
imaginara. A sensação de arriscar sua própria vida, mas ter a força para
contra-atacar. "Eu posso derrotá-los."
Com firmeza, ele agarrou um tijolo que repousava no chão ao seu lado,
saltou por cima do barril e esquivou-se das lâminas que buscavam cortá-lo.
Com um movimento rápido, desferiu um golpe no rosto de um dos
brutamontes com o tijolo. O impacto foi tão poderoso que o tijolo se
desintegrou ao colidir com a face esquerda do homem, causando mutilações
horríveis.
Aizack escapou por pouco de outro golpe, mas a lâmina ainda
conseguiu abrir um corte em seu abdômen, deixando uma trilha de sangue.
Enfurecido, ele arremessou a poeira do tijolo que estava em sua mão
diretamente nos olhos do espadachim, temporariamente cegando-o.
Enquanto o homem tentava coçar os olhos, Aizack girou a cintura e desferiu
um chute preciso na têmpora do criminoso, empurrando-o violentamente
contra a parede.
Depois de uma intensa batalha, restavam apenas dois oponentes de
pé. Eles se olharam e, em seguida, dirigiram seus olhares para Aizack, que
estava coberto de poeira e sangue, com um olhar bestial estampado no
rosto. Sem hesitar, os dois começaram a correr na direção oposta, fugindo
do local. Sentindo-se seguro, Aizack ajoelhou-se no chão, exausto e
ofegante.
Doce Neve se aproximou apressadamente e ajoelhou-se ao seu lado,
perguntando: "Você está ferido?"
"Ah, estou um pouco machucado, mas nada grave", Aizack respondeu
despreocupado, exibindo o corte em seu abdômen.
Doce Neve examinou a ferida. "O corte é superficial, mas ainda pode
infeccionar", ela disse. "Fique quieto por um momento." Nesse instante,
seus cabelos brancos começaram a brilhar em um tom esverdeado e a se
mover como se estivessem sendo agitados por uma forte ventania. Em
seguida, ela gentilmente segurou o rosto de Aizack e o beijou nos lábios.
Ao sentir os lábios de Doce Neve tocando os seus, Heitor sentiu os
pelos de seu corpo se arrepiarem e uma onda de calor reconfortante se
espalhar por seu corpo. Rapidamente, a ferida em seu abdômen começou a
se fechar como se nunca tivesse existido. Além disso, ele sentiu seu cansaço
desaparecer e uma sensação intensa se agitar dentro de suas calças.
Instintivamente, ele cobriu-se com as mãos e virou-se de costas,
surpreendendo Doce Neve.
Heitor sentiu um calor intenso invadir seu corpo, enquanto seu rosto e
pescoço coravam intensamente de vergonha. Sentia-se como um pimentão.
"Por que ela fez isso?", perguntou-se interiormente. "Nós somos irmãos,
não somos? Isso é totalmente errado, e ainda por cima me excitou. Eu sou
um ser humano desprezível. Eu mereço morrer!"
"Aizack, você está bem?", perguntou Doce Neve, preocupada.
"Ah, sim, estou bem", respondeu Heitor nervosamente. "Ótimo!
Nenhum problema! Estou perfeitamente tranquilo e seguro."
"Aizack, se ainda estiver se sentindo mal, posso tentar beijá-lo
novamente e..."
"Não! De jeito nenhum!" interrompeu Aizack, exaltado. "Não faça
algo assim de novo sem me avisar!"
"Está bem, não vou repetir", concordou Doce Neve, achando a reação
dele estranha. "A menos que você peça."
"Eu nunca vou pedir!", exclamou Aizack, desesperado.
Anelise aproximou-se dos dois, percebendo o constrangimento, mas
sem entender a situação por completo. Ela abraçou Aizack e ele pôde sentir o
tremor em seu corpo. Por um momento, ele esqueceu que ela era apenas
uma criança e que acabara de presenciar uma cena violenta em que ele quase
perdeu a vida.
"Você é igual ao papai, um boboca", lamentou ela, com lágrimas nos
olhos. "Ninguém disse que você deveria lutar sozinho... Se você tivesse
morrido, como poderia me ajudar a encontrar o meu pai?"
Durante a luta, Aizack havia deixado de se preocupar com sua própria
vida, enxergando tudo como uma mera diversão, e esquecera do objetivo
principal, que era proteger as duas. "Você está certa", concordou ele,
compreendendo seu erro. "Se enfrentarmos perigo novamente, vamos fugir
juntos e evitar o confronto. Eu prometo." Aizack retribuiu o abraço com
ternura.
"Acredito que seja melhor procurarmos um local para passar a noite e
retomarmos a busca amanhã. Neste horário, as ruas estão desertas e
corremos o risco de encontrar mais bandidos", sugeriu Doce Neve.
"Você está certa. Vamos procurar um lugar para passar a noite",
concordou Aizack.

Capítulo V - A Âncora Dourada

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