Heitor caminhava solitário pelas ruas da região metropolitana de São
Paulo, suas mãos afundadas nos bolsos do moletom. Seus cabelos negros, desgrenhados, e a barba por fazer evidenciavam a falta de autocuidado, como alguém que havia atingido o fundo do poço. Na calçada, as pessoas desviavam dele, como se fosse algum delinquente. Mas ele não se importava com nada, pois em menos de 24 horas, três notícias terríveis o atingiram em cheio. Seu patrão o informou que aquele seria seu último mês na empresa, deixando-o sem ideia do que fazer a seguir. Em seguida, foi despejado do apartamento onde morava, devido a cinco meses de aluguel atrasado. E, por fim, sua namorada terminou o relacionamento através de uma ligação. "Cansei de esperar você ter sucesso na vida", disse ela. "Não vou esperar indefinidamente pelos seus sonhos se realizarem. A vida continua, Heitor." Heitor, com seus meros 26 anos de idade, sentia-se esgotado. Ele havia deixado sua cidade natal no interior do Ceará em busca de realizar seus sonhos na agitada capital de São Paulo, mas as coisas não saíram como planejado. Rapidamente, suas economias se esvaíram, e ele se viu preso em um emprego terrível, mal remunerado e que consumia todo o seu tempo. Agora, após todas essas decepções, ele se sentia sem alternativa a não ser recorrer aos seus pais. Porém, seu pai não era uma pessoa fácil de lidar. Ele, certamente, aproveitaria essa situação para humilhá-lo, como sempre fez. "Foda-se", pensou Heitor. "Passei a vida inteira tentando agradar os outros, cedendo às suas vontades. Abri mão de diversão, amizades e festas. Nem sequer bebi uma gota de álcool todos esses anos, e desperdicei minha juventude com uma namorada que me abandonou ao primeiro sinal de dificuldade... E agora, é só isso que me resta? Entregar-me à autopiedade?" Enquanto imerso em seus pensamentos, Heitor passava ao lado de um beco sombrio e úmido, quando percebeu uma movimentação suspeita. Por um instante, ele pensou ser apenas um casal se escondendo para trocar carícias, mas, observando com atenção, notou que se tratava de um homem ameaçando uma mulher com uma faca. Intrigado, ele decidiu adentrar o beco, aproximando-se cautelosamente para confirmar sua suspeita. Ao avistá-lo, a mulher soltou um grito abafado: "Socorro! Por favor, me ajuda..." No entanto, o agressor prontamente tapou sua boca, continuando suas ameaças e tentativas de coagi-la. "Solte-a!" proferiu Heitor, mantendo-se a uma distância segura. "Largue-a ou chamarei a polícia!" "O que foi que você disse?" retrucou o abusador, ameaçadoramente. "Se você se meter, eu vou te furar. Fica na sua, otário!" E, com um sorriso perverso, exibiu uma .38 que carregava em sua cintura. Um temor avassalador tomou conta de Heitor. Instintivamente, ele enfiou as mãos nos bolsos, deu as costas e se afastou rapidamente. "Por favor, não vá embora! Me ajude..." suplicou a mulher. "Aquele covarde não fará nada. Você é minha agora! Se você não resistir, poderá aproveitar esse momento tanto quanto eu. Hehehe", vociferou o agressor, em um tom perverso. Quase saindo do beco, Heitor parou abruptamente. Às suas costas, podia ouvir os sons abafados da mulher lutando em vão contra o agressor. Mas ele estava dominado pelo medo. Quantas notícias ele havia visto diariamente de pessoas que perderam a vida ao tentar ser heróis? Sua mãe costumava dizer: "Você não é um herói nem pai de ninguém, sempre coloque sua segurança em primeiro lugar." E ele havia seguido esse conselho à risca durante toda a sua vida, evitando qualquer tipo de conflito. "O que estou fazendo? Por que estou hesitando? Já fiz isso antes... É só fingir que nada está acontecendo, fingir que essas pessoas não estão aqui." Seus pensamentos eram um conflito interno. Heitor então relembrou o motivo pelo qual havia viajado para São Paulo. "Eu queria uma nova vida. Uma oportunidade de me libertar do destino que outros escolheram para mim." "Maldição, maldição. O que estou pensando? Isso é sério! É arriscado demais..." No entanto, por mais que Heitor batalhasse em sua mente, ele permanecia imobilizado. Seu rosto contorcia-se e lágrimas vertiam de seus olhos, refletindo sua confusão. Finalmente, ele tomou sua decisão e saiu do beco, partindo. Ao presenciar essa cena, a mulher, que ainda abrigava um pouco de esperança, sucumbiu ao desespero, enquanto seu agressor abria suas roupas. De repente, um som de impacto ecoou e o homem caiu ao chão, segurando a cabeça. A mulher ergueu o olhar com esperança e avistou Heitor. Ele ofegava pesadamente, o rosto coberto de suor, segurando uma barra de metal com ambas as mãos. "O que você fez, seu filho da puta? Perdeu a noção do perigo?" bradou o homem, enfurecido, levantando-se e preparando-se para sacar sua .38. Ele a puxou, mas antes de atirar, Heitor golpeou sua mão com a barra de ferro, forçando-o a largá-la. Em seguida, golpeou-o novamente na cabeça, derrubando-o ao chão. "E o que ainda está fazendo aqui?" Heitor gritou para a mulher. "Fuja e chame a polícia." A mulher, então, despertou de seus devaneios e assentiu vagamente com a cabeça, fugindo o mais rápido que podia. Heitor ergueu a barra novamente, determinado a golpear o agressor mais uma vez, porém o homem no chão aproveitou a oportunidade para chutar uma de suas pernas, derrubando-o também. Com ambos caídos no chão, iniciou-se um intenso combate corpo a corpo, com socos e chutes sendo trocados, enquanto lutavam para conter os movimentos um do outro. Heitor era menor e mais fraco que seu oponente, seu rosto estava inchado e o nariz sangrava dos golpes que havia recebido. A consciência começava a escapar lentamente de seus sentidos. Desesperado, estendeu a mão para alcançar o revólver caído ao lado, seus dedos trêmulos buscando o cabo da arma. Quando finalmente o agarrou, ouviu-se o estampido de disparos, seguido de um baque surdo. Deitado de costas no chão, Heitor procurou recuperar o fôlego, seu peito subindo e descendo em respirações pesadas, enquanto as gotas de chuva se misturavam com suas próprias lágrimas, golpeando seu rosto. Ao seu redor, uma poça de sangue se formava, testemunho da vida que escapava de seu corpo. Uma mistura de dor e entorpecimento, calor e frio. "Minhas escolhas me trouxeram até aqui", pensou ele. "Será este o fim de tudo? As luzes do cinema se apagam, os créditos começam a subir e eu descubro que tudo não passou de uma ficção?" Ele lamentou em silêncio. "Eu queria uma nova chance." E assim, Heitor fechou seus olhos para sempre neste mundo, entregando-se ao silêncio e à escuridão absoluta. Capítulo II - O Começo de Tudo
Heitor encontrava-se imerso na escuridão total. Sentia-se como se
estivesse flutuando sem rumo nas profundezas do mar, onde os raios de sol eram incapazes de alcançá-lo. Um ambiente desolado, desprovido de vida, sem qualquer companhia além dos seus próprios pensamentos. Era um lugar perturbador, porém, ao mesmo tempo, reconfortante. Um mar de possibilidades infinitas. Num instante qualquer na eternidade, Heitor sentiu a luminosidade perturbar seus olhos, coçando-os com as costas das mãos. Lentamente, abriu-os e percebeu que estava deitado em uma cama, semelhante a um leito hospitalar, mas com uma estrutura um tanto rudimentar. A fonte de luz provinha de pequenas janelas nas altas paredes, bem como de lamparinas e tochas espalhadas pelo ambiente. Um odor desagradável misturava-se com o cheiro de ervas medicinais, causando-lhe náuseas. Mulheres vestidas como freiras transitavam de um lado para o outro, cuidando de doentes e feridos. Ele percebeu estar em um local vasto, assemelhando-se ao interior de uma igreja, com tetos abobadados e pinturas decorativas. Diversas camas estavam dispostas em fileiras, separadas apenas por finas cortinas. Heitor observou seu próprio corpo rapidamente e notou as várias bandagens espalhadas em seu abdômen, tórax e braços, algumas manchadas de sangue e exalando um forte aroma de ervas medicinais. Ao tentar se levantar, sentiu um incômodo doloroso. Nesse momento, percebeu uma mulher sentada numa cadeira junto à sua cama, inclinada sobre ela e adormecida. Perplexo, ele encarou a mulher. Sua aparência era extremamente exótica. Possuía uma pele alva e cabelos brancos como a neve, mas não por velhice, pois aparentava ser jovem. Tinha uma beleza fora do comum, com lábios finos, nariz delicado, sobrancelhas cuidadosamente delineadas e maçãs do rosto coradas. Ela parecia um anjo, tal como as pessoas acreditavam que um anjo deveria ser. "Que linda...", pensou Heitor. Nesse momento, a mulher pareceu despertar e ergueu-se lentamente, encontrando o olhar de Heitor. Por um breve instante, seus olhos se encontraram antes de ele desviar o olhar, sentindo-se desconfortável na presença de uma mulher tão bela. A mulher repentinamente saltou sobre Heitor, envolvendo seu pescoço com seus braços delicados e abraçando-o com toda a força que conseguia reunir. Ela exclamou alegremente: "Aizack!" Lágrimas, misturando alegria e culpa, começaram a escorrer de seus olhos enquanto soluçava: "Desculpe-me, Aizack! Tudo foi minha culpa. Se eu não fosse tão fraca, você não precisaria me proteger e não teria se machucado dessa maneira. Sinto muito, por favor, não abandone essa tola garota que sou!" Heitor sentiu dor ao ser tocado pela mulher, mas ao ouvi-la chorar daquela maneira, ficou ainda mais perplexo do que antes. "O que está acontecendo? Estou neste lugar acompanhado por essa bela garota e nem mesmo sei o nome dela", pensou. "A última coisa que me lembro antes de acordar é..." E então ele se lembrou de si mesmo deitado no beco, o sangue se espalhando a partir de seu corpo. "Eu... Eu morri? Então, isso é o que aconteceu depois que salvei aquela mulher... Aquele homem conseguiu pegar a arma antes de mim. Mas se eu morri, como vim parar aqui e que lugar é este?" Ele olhou ao redor, percebendo que a arquitetura, os móveis e até mesmo as roupas das pessoas pareciam antiquados. A mulher continuou a abraçar Heitor com fervor, soluçando entre lágrimas e palavras de desculpas. Ele sentia a dor aguda em seu corpo, mas também uma mistura de confusão e curiosidade diante dessa situação surreal. "Aizack", pensou Heitor, "esse não é o meu nome... Quem é essa garota e por que ela está tão emocionalmente ligada a mim?" Enquanto a mulher se acalmava aos poucos, Heitor decidiu falar: "Desculpe-me, mas acho que houve algum engano. Meu nome não é Aizack, é Heitor. E eu não tenho ideia de como vim parar aqui. O que está acontecendo?" A mulher ergueu seu rosto, revelando seus olhos vermelhos e inchados pelo choro recente. Ela olhou fixamente para Heitor, como se estivesse tentando processar suas palavras. Depois de um breve momento de silêncio, ela falou com uma voz trêmula: "Heitor... Eu... Me desculpe. Eu pensei... Eu pensei que você fosse Aizack, meu irmão. Estou tão confusa." Ainda abraçados, Heitor começou a absorver a estranheza da situação. "Quem é Aizack? Por que você me confundiu com ele? E onde estamos exatamente? Este lugar parece tão diferente de tudo o que eu conheço." A mulher soltou Heitor e enxugou suas lágrimas. Ela respirou profundamente e explicou: "Heitor, Aizack é meu irmão, pelo menos era. Estamos em um reino chamado Órion. Há alguns dias, chegamos a esta cidade e um dos Príncipes Mercantes, um jovem chamado Jamil, se apaixonou por mim e ordenou que seus capatazes me levassem até ele. No entanto, Aizack não permitiu que isso acontecesse. Ele me ajudou a fugir, mas acabou sendo brutalmente espancado, quase até a morte. Desde então, tenho tratado de seus ferimentos na esperança de que ele acordasse. Então, peço desculpas se isso vai contra suas convicções, mas você, Heitor, é Aizack. Acredito que o trauma possa ter causado a perda de sua memória. Prometo fazer tudo o que estiver ao meu alcance para ajudá-lo a recuperá-la." Ela falou com determinação, embora sua voz ainda tremesse. Heitor ficou atordoado com as palavras da mulher. A ideia de que ele pudesse ser outra pessoa, Aizack, seu irmão, era difícil de aceitar. No entanto, as peças começaram a se encaixar em sua mente. Observando brevemente seu próprio corpo, ele notou que parecia diferente do normal. O corpo de Heitor, quando estava vivo, era magro, quase esquálido, a ponto de outras pessoas o apelidarem de desnutrido. O corpo de Aizack, por outro lado, era musculoso e definido, como o de um praticante de calistenia. Ao tocar seus próprios cabelos, percebeu que os fios eram brancos, assim como os da mulher à sua frente, o que confirmava o vínculo de irmãos entre eles. "Você está certa. Tudo isso ainda parece muito confuso para mim", disse Heitor, sentindo que seria melhor ter alguém confiável por perto enquanto tentava descobrir o que estava acontecendo. "Você pode me ajudar a recuperar minhas memórias? Sinto que só tenho você." Ao ouvir isso, a mulher sentiu suas bochechas corarem. "Claro, vamos tentar recuperar suas memórias, Aizack... Ou Heitor, ou como preferir ser chamado." "Aizack está bom", respondeu Heitor. "E você, qual é o seu nome?" "Dalila", ela respondeu envergonhada. "Mas você costumava me chamar de Doce Neve quando éramos crianças." "Do-ce Ne-ve", pronunciou Heitor lentamente, sílaba por sílaba, memorizando. "É um nome bonito." Enquanto os dois conversavam, uma terceira pessoa se aproximou. Era um homem de meia-idade, com o rosto marcado e um cavanhaque e bigode salpicados de branco. Ele usava óculos com lentes pequenas que disfarçavam seu olhar penetrante e estava vestido com um sobretudo sobre um conjunto de colete e calças de couro marrom. Sua presença impunha respeito e muitas das sacerdotisas no local se afastaram ao vê-lo. "Vejo que Aizack finalmente acordou", disse ele, interrompendo os dois. "Como está se sentindo, rapaz?" "Aizack, este é o Dr. Richard Frostbite, um médico-alquimista", apresentou Doce Neve. "Foi ele quem salvou sua vida." Heitor estudou o homem de cima a baixo, percebendo o quão diferente sua aparência era em relação a tudo o que ele havia visto até o momento. "Muito obrigado, Dr. Frostbite", agradeceu. "Estou eternamente em dívida com o senhor." "Haha, com toda certeza está", respondeu o médico, gargalhando. "Porém, devo confessar que minha curiosidade foi bastante atiçada quando soube que um rapaz se recusava a receber tratamentos milagrosos e preferia ser atendido por médicos. Foi por isso que decidi salvá-lo." "Fico satisfeito por ter despertado o seu interesse", respondeu Aizack. "A ciência está longe de ser perfeita, mas é melhor do que acreditar em superstições. Além disso, não sou muito fã de me curvar diante de ninguém", acrescentou com sarcasmo. Os óculos de Richard brilharam com um olhar perspicaz. "Compartilho da mesma visão que você", disse ele, sorrindo. "No entanto, gostaria de examiná-lo agora. Estou bastante ocupado e não posso me demorar aqui, mas as portas do meu laboratório estão sempre abertas para você, caso queira visitá-lo." O Dr. Richard Frostbite abriu sua maleta de instrumentos médicos e remédios em uma mesa ao lado do leito. Ele pediu ajuda a Doce Neve para remover cuidadosamente as bandagens que envolviam o corpo de Aizack, cortando uma a uma com sua tesoura. Em seguida, ele examinou os ferimentos, revelando surpresa ao constatar que as lesões estavam completamente cicatrizadas, sem deixar sequer uma marca. Determinado, ele prosseguiu com seu exame minucioso. O médico alquimista avaliou os reflexos das pupilas, os membros superiores e inferiores, mediu a temperatura corporal e verificou a cor da língua. Para além do olhar comum, Richard possuía um olho direito especial, que agora se tingiu completamente de negro, enquanto a pupila assumia um tom vermelho como o sangue. Com esse olho, ele era capaz de examinar a alma de Aizack. Desde o primeiro momento em que o viu, Richard estava intrigado com a dualidade de almas que residiam no corpo do jovem. Enquanto observava atentamente, ele se questionava em silêncio: "Como é possível que duas almas compartilhem o mesmo corpo sem se destruírem mutuamente? Na verdade, parece que elas dependem uma da outra, uma existência mutualista". Richard era um entusiasta da alquimia e um mago especializado em transmutação. Ao longo das décadas, ele havia estudado todo o conhecimento produzido nesse campo e testemunhado fenômenos quase impossíveis: a Quintessência, o Homúnculo, a Pedra Filosofal. No entanto, o que estava diante dele era uma descoberta que poderia abalar o mundo. "Lembro de ter lido algo semelhante enquanto pesquisava sobre demonologia. Os Diabos são a casta mais alta entre os seres infernais, capazes de devorar almas para fortalecer as suas próprias. O próprio Homúnculo é a junção de dois seres opostos em uma única entidade, uma tentativa de preservar a carne e a alma, mas a total integração é considerada impossível. Eventualmente, o híbrido sucumbe ou uma das almas devora a outra", ele ponderou em um turbilhão de pensamentos. "No entanto, como pode ser impossível se está acontecendo agora mesmo diante dos meus olhos? Talvez eu apenas seja ignorante demais para compreender a verdade." Ele ponderou por mais alguns instantes, seu rosto sério denotando preocupação. "Seja como for, eu preciso garantir a segurança desse rapaz", murmurou para si mesmo. O médico então se voltou para sua maleta e retirou uma seringa, preenchendo-a com um líquido rosado contido em um pequeno tubo de ensaio vedado por uma tampa de rosca. Testou a seringa, permitindo que uma gota do líquido escorresse pela ponta afiada. Em seguida, dirigiu-se a Aizack e disse: "Aizack, estenda o braço". O jovem obedeceu, e o médico prendeu um elástico em torno de seu braço, interrompendo momentaneamente a circulação sanguínea. Observou as veias se tornarem mais visíveis e, com delicadeza, injetou o líquido. Aizack sentiu apenas uma pontada, seguida de alívio. "Acredito que você se sentirá melhor agora, rapaz", disse Richard. "Não há mais necessidade de trocar os curativos, suas feridas estão fechadas. Vá para casa e evite atividades físicas por dois dias. Quando estiver se sentindo melhor, visite-me. Doce Neve sabe onde fica minha oficina." "Obrigado, doutor", agradeceu Aizack, expressando sua gratidão. "E obrigada por cuidar do meu irmão", acrescentou Doce Neve. "Não precisam me agradecer. Não foi um favor, e eu irei cobrar", retrucou ele de forma abrupta. Em seguida, o médico arrumou sua maleta e partiu, deixando os dois novamente sozinhos. "Ele é um pouco..." Aizack começou a dizer. "Excêntrico", completou Doce Neve. "De fato, ele é", concordou Aizack, e ambos riram. Capítulo III - Caminhos Cruzados
Após recuperar suas forças, Heitor no corpo de Aizack deixou a
enfermaria acompanhado por sua irmã, Doce Neve, apenas para descobrir que aquela estrutura era apenas uma das muitas que compunham a grandiosa igreja. Seus olhos se encantaram com o cenário exterior. Um pátio cercado por um imponente muro de pedra, onde um jardim meticulosamente cultivado se estendia. Flores de variadas cores e fragrâncias desabrochavam em perfeita harmonia, enquanto árvores frondosas ofereciam sombra aos clérigos e missionários que ali residiam. Caminhos de pedra serpenteavam pelo jardim, conduzindo a três distintas construções: a enfermaria, onde os enfermos e feridos eram cuidadosamente tratados; o templo, onde as adorações e oferendas eram realizadas; e a escola, destinada à educação de nobres e clérigos. No centro do pátio, uma fonte jorrava águas límpidas, tendo uma escultura erguida sobre ela. A figura representada era a de uma mulher imponente, esculpida em mármore e vestida com uma toga esvoaçante. Seus olhos estavam vendados, simbolizando a imparcialidade, enquanto em um de seus braços ela sustentava uma coruja empoleirada, símbolo da sabedoria, e na outra mão empunhava uma lança, representando sua força e proteção. Heitor explorou o local em busca de qualquer sinal que remetesse ao catolicismo ou ao protestantismo de seu mundo natal, esperando encontrar alguma evidência de que talvez tivesse reencarnado em outra época ou lugar. No entanto, apesar da semelhança com uma igreja cristã, o ambiente era fortemente influenciado pela arquitetura e simbolismo da cultura greco-romana. Enquanto caminhava pela enfermaria, seus olhos pousaram em uma cena impressionante: uma sacerdotisa colocava suas mãos sobre a ferida de um soldado, e para sua surpresa, a ferida fechou-se instantaneamente, em uma velocidade impossível de ignorar. Por um breve instante, Heitor questionou sua própria percepção, tentando reconciliar o fato de que magia parecia existir nesse lugar desconhecido. Surgiu em sua memória a conversa com o Dr. Richard Frostbite, em que o médico-alquimista mencionou que Aizack havia insistido em ser tratado por ele, em vez de recorrer às sacerdotisas. "Aqui existe magia... Seria realmente um mundo completamente diferente do meu?" pensou Heitor, maravilhado e perplexo ao mesmo tempo. "Se a magia realmente existe, por que não seria algo bom? Imagine poder curar doenças e feridas que levariam semanas para cicatrizar com apenas um toque... Isso é insano! Então, por que Aizack teria recusado o tratamento das sacerdotisas?" As perguntas se acumulavam em sua mente, buscando respostas que pareciam escapar da sua compreensão. Heitor voltou-se para Doce Neve ao seu lado e questionou: "Este lugar é uma igreja, certo? Qual é a religião praticada aqui?" Doce Neve pareceu surpresa com a pergunta. "Esta é a Igreja de Amythia, a Mãe de Todos. Ela é a divindade que governa o dia, a noite e as estações do ano. Ela concede vida a todos os seres vivos, inspira a criatividade dos artistas e concede poder aos governantes. Amythia é tudo para nós." Doce Neve sorriu. "Mas fiquei curiosa, de repente você demonstrou interesse por religião. Não costumava se interessar por isso antes." Heitor assimilou as informações lentamente. "Achei este lugar muito bonito. Além disso, fiquei curioso sobre como as sacerdotisas conseguem curar feridas com um simples toque." Doce Neve sorriu e respondeu: "Ah, isso é o que chamamos de milagre. Amythia é uma deusa benevolente e compartilha uma parcela de seus poderes com seus devotos, para que possam ajudar as pessoas necessitadas. Esses poderes são conhecidos como milagres, mas não são concedidos sem um custo." Heitor interveio com uma pergunta. "Qual é o custo desses poderes?" "Amythia tem planos para cada um de nós", explicou Doce Neve. "Ela nos confia uma tarefa sagrada para cumprir. Se renunciarmos à nossa identidade e ao que fazemos e nos dedicarmos a cumprir esse propósito, seremos agraciados com esses poderes." Heitor refletiu sobre essas novas informações. "Seria bom se eu pudesse aprender a usar magia, mas não gostaria de me dedicar a um deus para obtê-la", ponderou. "Será que existem outras formas de magia neste mundo?" Após esses pensamentos, ele dirigiu-se a Doce Neve e perguntou: "Além dos milagres, existem outros tipos de magia?" "Claro que existem", ela respondeu sem hesitação, como se fosse algo completamente natural. "Eu mesma pratico alguns encantos, e além disso, existem também feitiços e sortilégios." "É tão comum assim aprender magia?", indagou Heitor. "É mais ou menos comum", ela respondeu. "A maioria das pessoas consegue conjurar duas ou três magias, mas é raro encontrar alguém capaz de conjurar magias que vão além do uso cotidiano, como lavar roupas ou acender fogueiras. Já um mago ou sacerdote é alguém que estuda e pratica a magia para realizar feitos grandiosos." Heitor lembrou-se dos tempos em que jogava RPG com seus amigos, Wesley e Gabriel, no mundo de Dungeons & Dragons. Naquele jogo, havia dois tipos de magia: a arcana e a divina. "Os milagres devem ser a magia divina e os feitiços a magia arcana", pensou internamente. "Mas o que seriam os outros dois tipos de magia?" "O que exatamente são esses encantos e sortilégios?" perguntou Heitor curioso. "Bem, vou tentar explicar de forma simples", respondeu Doce Neve. "Os encantos são magias que surgem da personalidade e do carisma de uma pessoa. Geralmente, artistas como atores, músicos, pintores e escultores têm a habilidade de criar ilusões ou manipular as emoções das pessoas usando magia. Quanto aos sortilégios, são um tipo de magia extremamente raro e proibido. Eu mesma não saberia explicar exatamente como funcionam, mas ouvi dizer que envolvem todo tipo de magia comumente associada a necromantes e assassinos." Heitor ficou admirado. "Então você é uma artista ou algo assim?" Doce Neve ficou levemente corada. "Não exatamente... Mas eu conheço alguns truques." "Gostaria de vê-los em algum momento", disse Aizack com um sorriso caloroso. "Agora que estou pensando, eu sabia usar algum tipo de magia? Quero dizer, antes de perder a memória." "Você? De jeito nenhum!", Doce Neve riu como se fosse a piada mais engraçada do mundo, e Heitor não sabia se ficava triste por ser alvo da zombaria ou se admirava a beleza dela quando ria. "Qual é a graça? Eu realmente gostaria de saber se posso aprender magia", disse Heitor, envergonhado. "Ai ai, nosso avô, Airon, fez um teste para avaliar nossa aptidão para a magia quando tínhamos sete anos", explicou ela, segurando o riso como se estivesse com a boca cheia de água. "Ele descobriu que você é o tipo mais raro de pessoa no mundo, uma pessoa que nasce apenas uma vez a cada mil anos. E sabe o que ele descobriu sobre você? Que você não tem absolutamente nenhuma aptidão para conjurar magias. Até um esquilo teria mais chances de se tornar um mago do que você." As palavras atingiram Heitor como flechas no peito, deixando-o imediatamente abatido. "Droga, eu já era um fracasso no outro mundo, e agora sou um fracasso nesse mundo também? Será que nasci destinado ao azar?" Ele pensou consigo mesmo, sentindo-se deprimido. Em seguida, ele recebeu tapinhas reconfortantes nas costas. Doce Neve tentou levantar um pouco o seu ânimo, dizendo: "Mas, calma, Aizack, não poder usar magia não é completamente ruim." "Não é completamente ruim? O que há de bom nisso?" Heitor perguntou, meio irritado. "Bem, você tem sua irmãzona aqui com você, e eu posso conjurar magias por você, sem que você precise se esforçar. O que acha disso?" Disse Doce Neve, ainda com um tom zombeteiro. Heitor teve a leve impressão de que Doce Neve estava brincando com ele. Ele respirou fundo e perguntou, esperançoso: "Mas espere um momento, fizemos esse teste quando tínhamos sete anos. Não há alguma possibilidade de que meu talento tenha mudado ao longo desses dez anos?" "Bem, pode ser que seu talento tenha mudado ao longo desse tempo, mas é improvável que você tenha talento superior a Imo. Infelizmente." Doce Neve respondeu, com um toque de sinceridade. Ao ouvir essas palavras, Heitor sentiu-se ainda mais desanimado, mas pensou que ter um pouco de talento era melhor do que não ter nenhum. "Onde posso testar meu talento para a magia?" ele perguntou. "Hmmm... Geralmente, algumas guildas de aventureiros oferecem testes para aqueles que se inscrevem nelas", respondeu Doce Neve. "No entanto, a inscrição é extremamente cara e representa mais de um ano de finanças para uma família de camponeses. Muitos aventureiros juntam dinheiro por anos apenas para ter essa oportunidade." Heitor baixou a cabeça, sentindo-se completamente derrotado. "Parece que a vida realmente não quer que as coisas deem certo para mim." Os dois continuaram a caminhar até deixarem os domínios da igreja. À medida que se afastavam, adentravam nas ruas barulhentas e movimentadas da cidade de Ondaluz. Como uma cidade portuária, suas ruas estavam cheias de comerciantes e viajantes vindos de várias nações, trazendo consigo uma rica variedade de especiarias, tecidos, mercadorias e tesouros. No cais, imponentes navios balançavam nas águas serenas da Costa Dourada, ostentando bandeiras de diferentes nacionalidades e até mesmo algumas exibindo a Jolly Roger da Irmandade da Costa, a maior organização de piratas do mundo. Tanta liberdade era possível porque Órion era uma federação de repúblicas mercantilistas, que pouco se importavam com quem negociavam, desde que houvesse lucro. Quanto mais se aproximavam do mar, mais os dois irmãos podiam ouvir o suave som das ondas batendo nos cascos dos navios e sentir o aroma salgado do oceano que impregnava o ar. Por toda parte, havia comerciantes, viajantes, piratas e cortesãs, além de carruagens carregadas de mercadorias que passavam pelas ruas estreitas e sinuosas, delimitadas por edifícios de pedra. Aizack e Doce Neve dirigiam-se aos estábulos, onde Coralina, a égua de Doce Neve, estava alojada, para cavalgarem em direção a um vilarejo vizinho, onde residiam juntamente com seu avô. No entanto, no meio do trajeto, avistaram uma adorável garotinha, aparentando ter menos de cinco anos, caminhando desamparada em meio à multidão, claramente perdida. Ela chorava copiosamente e não prestava atenção ao seu redor, quando uma grande carruagem, puxada por dois cavalos negros, se aproximava rapidamente, prestes a colidir com a pobre criança. Tudo aconteceu em um piscar de olhos. Heitor, que estava absorto em seus pensamentos sobre como juntar dinheiro, avistou a garota e a carruagem, agindo rapidamente. Abandonou a muleta e se lançou em uma investida rápida em direção à garota, envolvendo-a com seus braços e saltando. Sem perceber, seus pés estavam vários metros acima do chão, girando pelo ar antes de pousar em segurança a uma distância considerável da carruagem. O cocheiro percebeu o que havia ocorrido e parou a carruagem bruscamente. Aturdido, Heitor olhou para suas pernas e pensou: "Como isso foi possível? O corpo de Aizack não estava ferido? Mesmo que este corpo estivesse ileso, seria impossível para um ser humano reagir com tamanha velocidade e saltar tão alto carregando outra pessoa nos braços". Aos poucos, ele começava a compreender que as regras de seu mundo natal não pareciam se aplicar a este novo mundo. "Se um cara como Aizack foi espancado até a morte, quão poderosas devem ser as pessoas que fizeram isso com ele?" Engoliu em seco, apreensivo. Em seguida, lembrou-se da menina em seus braços e perguntou, preocupado: "Você está bem?" A garota, que havia chorado intensamente momentos antes, olhou para Aizack com seus olhos verdes, brilhando como pequenas esmeraldas, e assentiu positivamente. "Estou bem." "Qual é o seu nome? Por que estava andando sozinha assim?", questionou ele, preocupado em saber quem eram seus pais para permitirem que uma criança tão jovem vagasse desacompanhada pelas ruas. "Eu sou Anelise", respondeu ela, saindo dos braços de Aizack e fazendo uma reverência desajeitada, segurando seu vestido azul. "Me afastei do meu pai e acabei me perdendo. Ele estava em uma reunião de negócios. Pelo menos foi o que ele me disse." "Olá, Anelise. É um prazer conhecê-la. Meu nome é Hei... digo, Aizack", ele corrigiu a si mesmo antes de completar. "Seu pai deveria prestar mais atenção em você. Qual é o nome dele?" "Meu pai é um homem ocupado, mas ele não é mau", ela defendeu seu pai. "O nome dele é Reynard." Nesse momento, Doce Neve se aproximou correndo e parou ao lado dos dois. "Vocês estão bem?", perguntou ela preocupada, observando Aizack ainda se recuperando. "Estamos ilesos", ele assegurou e então se voltou para Anelise: "Esta é minha irmã, Doce Neve. Ela vai nos ajudar a encontrar seu pai." Compreendendo rapidamente a situação, Doce Neve se agachou para falar com a menina. "Fico feliz em conhecê-la. Vamos encontrar seu pai em breve", disse ela, olhando para Aizack. Em seguida, perguntou: "Você tem alguma ideia de onde o pai dela possa estar?" "Ainda não tenho certeza. Ela disse que se perdeu dele enquanto ele estava fazendo negócios e seu nome é Reynard", respondeu Aizack. "Mas, olhando ao redor, há comerciantes por todos os lados, então ele pode estar em qualquer lugar." "Realmente, será complicado encontrá-lo", concordou Doce Neve. Observando atentamente a menina, Aizack notou que ela estava vestindo um delicado vestido azul claro, ricamente bordado, e seus lindos cachos castanhos estavam cuidadosamente penteados e presos com um laço. Seus olhos verdes eram inocentes, e ela parecia um verdadeiro anjinho. "Anelise, seu pai te ensinou a ler?", ele perguntou. "Meu pai é bastante reservado e passa o dia dentro de seu escritório. Quem me educou foi a governanta da minha casa e alguns instrutores selecionados pelo meu pai", respondeu ela de maneira demasiadamente eloquente para uma criança. "E qual é a sua idade?" "Minha governanta disse que uma dama nunca revela sua idade para ninguém", ela recusou-se a responder. "Você ainda não é uma dama", ele respondeu, rindo levemente. "Por enquanto, você é apenas uma criança." "Eu sou sim uma dama!", ela insistiu, batendo os pés no chão. "E você é um grosso!" "Claro, claro, se você é uma dama, então em que ano você nasceu?" "Eu nasci em julho de 1412", ela respondeu rapidamente. Doce Neve ouviu e respondeu em seguida: "Ela tem cinco anos, Aizack". Ele ponderou por alguns instantes: "Uma criança de cinco anos não deveria saber ler ou escrever, ainda mais na Idade Média. O pai dela deve ser muito rico". "Doce Neve", Aizack chamou. "Quem são as pessoas mais ricas de Órion?" "Hmm, acho que são os Príncipes Mercadores", respondeu Doce Neve. "Ah, sim. Você mencionou um deles antes. O nome era Jamil ou algo assim. Mas afinal, quem são esses Príncipes Mercadores?" Doce Neve pensou sobre como explicar e começou: "Imagine que Órion é uma união de várias cidades livres. Quando digo 'livres', quero dizer que não há um governo central em cada uma dessas cidades, não há reis, duques ou condes. Na verdade, cada cidade é governada por um grupo de comerciantes locais conhecido como a ‘Guilda dos Mercadores’. Cada guilda é liderada por uma pessoa extremamente rica e influente, que chamamos de Príncipe Mercador. Não é que eles sejam príncipes com poderes reais, mas são tão ricos que suas ações têm um impacto significativo na vida das pessoas." Aizack virou-se para Anelise e perguntou: "Seu pai é um desses Príncipes Mercadores?" Capítulo IV - Eu não estou preso com Vocês, Vocês é que estão presos comigo!
No Cais de Ninguém, reuniam-se bandidos, mercenários e piratas
para negociar mercadorias proibidas nas feiras de Ondaluz, como pólvora, ópio e escravos. Entre eles, estava um dos Príncipes Mercadores chamado Jamil, um homem de apenas 17 anos, mas com conexões profundas no submundo da pirataria, seguindo os passos de seu pai, de quem herdara toda a fortuna. Seu pai era um dos piratas mais temidos dos Sete Mares, e todos os piratas almejavam agradar Jamil, acreditando que ele seguiria os passos de seu pai e se tornaria igualmente temido. "Escutem todos!", anunciou Jamil em alto tom. "Desde que cheguei a Ondaluz, percebi por que esta cidade é uma das mais lucrativas do mundo. Basta olhar para o porto para ter certeza de que este é o lugar certo para fazer negócios." Sua eloquência cativava a atenção dos presentes. "Aqueles que desejam enriquecer, tenho uma ilha a 75 milhas náuticas daqui, a noroeste, onde cultivo ópio e alkaluna. Por um preço acessível, vocês podem adquirir toneladas dessa especiaria e vendê-las por um valor muito maior nessas terras. A única dificuldade será driblar as autoridades locais." Ele sorriu, revelando dentes anormalmente afiados como lâminas. "Mas acredito que isso não seja um problema para vocês. Ou será que é?" Os piratas presentes rugiram e bateram os pés no chão ou nas mesas, derrubando copos e garrafas em uma verdadeira algazarra de aprovação. "Ótimo!", exclamou Jamil, seus olhos cinzentos parecendo uma tempestade se aproximando. Ele caminhou entre os criminosos presentes, que se afastavam para abrir caminho. "Ainda tenho outra oportunidade para apresentar a vocês." O ambiente se silenciou instantaneamente. "Quando cheguei em Ondaluz, deparei-me com uma mulher extraordinária. Não uma rameira qualquer, como vocês estão acostumados, mas alguém que parecia ter caído dos céus. Naquele momento, meu coração foi tomado por uma paixão indescritível..." Ele colocou a mão no peito, dramático. "Nos últimos dias, tudo em que tenho pensado é nessa mulher. Então, a oferta que faço a vocês é a seguinte: aquele que encontrar e trazer essa mulher até mim receberá o peso de um brigue em ouro e terá estoque de alkaluna pelo resto da vida. Além disso, serei eternamente grato e o tratarei como um sócio, em pé de igualdade comigo." Seu olhar tornou-se mais intenso e doentio. "Entretanto, ela deve ser trazida até mim intacta. Caso contrário..." De repente, Jamil pegou uma garrafa de cerveja, quebrou-a com um golpe na mesa e cortou a garganta do pirata mais próximo. O homem caiu ao chão, engasgando e sufocando em seu próprio sangue. As pessoas ao redor se afastaram rapidamente. Jamil montou sobre o homem caído e o espancou continuamente até a morte. Seu rosto ficou completamente ensanguentado, e ele olhou novamente para os piratas que o observavam. "Em suma, recompensarei aqueles que forem leais a mim, e aqueles que me traírem..." Ele lançou um olhar ao defunto. Dois dias se passaram e, bem distante dali, Aizack e Doce Neve caminhavam de mãos dadas pelas ruas de Ondaluz, com a pequena Anelise entre eles. À distância, poderiam facilmente ser confundidos com uma família. Aizack, ou melhor, Heitor, sentia-se desconfortável com essa aparência, pois cada passo dado o fazia lembrar de sua ex-namorada e de como nunca mais poderia vê-la. O trio continuava a percorrer lojas e guildas, perguntando às pessoas se conheciam alguém chamado Reynard. No entanto, ninguém parecia conhecer tal pessoa, o que levou Heitor a questionar se o pai de Anelise era realmente um Príncipe Mercador ou alguém importante. No entanto, a que mais parecia se divertir com a situação era Doce Neve. Onde quer que fossem, ela comprava doces, bonecas, laços e vestidos para a menina, brincando de vesti-la como se fosse sua própria filha. Sempre que Anelise dizia "obrigada" ou fazia algum gesto fofo, Doce Neve explodia em êxtase, como uma verdadeira maníaca. "Bem, parece que no final toda mulher gosta de crianças", refletiu Heitor. Em seguida, dirigiu-se a Doce Neve: "Onde mais poderíamos encontrar informações sobre os Príncipes Mercadores? Está ficando escuro e eu gostaria de encontrar o pai dela ainda hoje." Doce Neve respondeu pensativa: "Eu não tenho certeza. Talvez possamos obter mais informações se falarmos diretamente com o Príncipe de Ondaluz. Pelo menos assim poderíamos descartar a possibilidade de ela ser filha de um Príncipe Mercador." "Isso faz sentido", concordou Aizack. "E você, Anelise? Conte-nos um pouco sobre a sua terra natal ou de onde você veio. Tenho certeza de que isso nos ajudaria em nossa busca." Anelise franzia a testa, como se estivesse fazendo um grande esforço para se lembrar. "Meu pai e eu moramos em uma ilha, num castelo grandão situado sobre penhascos grandões. Meu pai possui uma frota grandona de galeões, cada um deles equipado com mil canhões", explicou, fazendo gestos exagerados para ilustrar. "Acredito que o nome da nossa ilha seja Miramar." "Ótimo, agora sabemos que você veio de Miramar, então pelo menos temos um lugar para onde levá-la, caso seja necessário", afirmou Aizack. Enquanto conversavam, eles passavam por uma ruela estreita, quando três brutamontes bloquearam seu caminho. Aizack parou e ergueu o braço, indicando para Doce Neve fazer o mesmo. Ao olhar para trás, percebeu que outros três homens haviam bloqueado a saída. "Estamos encurralados", pensou Heitor. "Serão eles assaltantes ou..." E então se lembrou do que havia acontecido com Aizack. "Boa noite, senhores", disse Aizack em voz alta e clara. "Espero que não estejamos atrapalhando a diversão de vocês. Estamos apenas de passagem e não queremos arrumar problemas." Assim que ele falou, os homens começaram a sair das sombras um por um, todos grandes como armários e com expressões ameaçadoras. Riam como se as palavras de Aizack fossem uma piada hilária. Alguns até lançavam olhares lascivos para Doce Neve. "Saia da frente, otário, se não quiser se machucar!", disse um deles. "Só queremos a garota", acrescentou outro. Aizack ficou tenso. Eles realmente estavam interessados em Doce Neve. "Mesmo com a força que demonstrei anteriormente, não sei se conseguiria vencê-los. E temos Anelise para nos preocupar", pensou, enquanto planejava uma rota de fuga. "Droga, é nesses momentos que eu deveria despertar algum poder ultra roubado de protagonista." "Não se iludam", disse Aizack em um tom sombrio. "Acham que podem me machucar? Quem disse isso?" Após ouvirem essas palavras, os brutamontes hesitaram e não avançaram imediatamente. Aproveitando sua surpresa, Aizack arrancou a camisa, expondo seu corpo marcado por cicatrizes, e assumiu uma postura de luta, fingindo confiança. "Podem vir um por um ou todos de uma vez, mas cada um de vocês perderá no mínimo cinco dentes!", ameaçou Aizack. Todos ficaram impressionados com suas palavras, inclusive Doce Neve, que nunca tinha visto Aizack tão sério. O próprio Aizack, ou Heitor, estava surpreso com o que acabara de dizer. "Não posso voltar atrás agora", pensou com medo. "Pelo menos assim eles vão se concentrar em mim e deixar Doce Neve e Anelise em paz." O momento que se seguiu foi um instante de tensão antes do caos, enquanto todos se encaravam. De repente, Aizack saltou no ar, suas pernas parecendo cordas esticadas de um arco, disparando-o em direção ao céu. Com uma facilidade impressionante, ele alcançou uma altura de dez metros e desceu velozmente, afundando ambos os pés no rosto de um dos brutamontes, que caiu inconsciente com um único golpe. Em seguida, o brutamonte mais próximo tentou agarrá-lo, mas Aizack se abaixou sob o abraço e, num movimento ágil, acertou um gancho em seu queixo, nocauteando-o instantaneamente. O próximo oponente sacou um taco e desferiu um golpe em direção ao rosto de Aizack, que bloqueou com o braço direito. O taco se partiu contra sua pele, deixando um hematoma dolorido. Em questão de segundos, Aizack estava cercado por quatro brutamontes. Dois deles sacaram sabres, enquanto o terceiro puxou uma garrucha do coldre. "Ei, nunca ouviu dizer que não se traz uma arma de fogo para uma briga de rua?", exclamou Aizack, indignado. "Você teve sua chance, moleque", respondeu o homem com a garrucha. "Agora você vai morrer!" Ele atirou em direção a Aizack, que saltou atrás de um barril que explodiu com o impacto do projétil. Enquanto lutava, Heitor sentia uma crescente onda de adrenalina, semelhante àquela que experimentara ao enfrentar o assaltante em sua vida anterior. "Aquela sensação... eu não tive tempo para apreciá-la", pensou. Lutar estava se tornando prazeroso de uma maneira que ele jamais imaginara. A sensação de arriscar sua própria vida, mas ter a força para contra-atacar. "Eu posso derrotá-los." Com firmeza, ele agarrou um tijolo que repousava no chão ao seu lado, saltou por cima do barril e esquivou-se das lâminas que buscavam cortá-lo. Com um movimento rápido, desferiu um golpe no rosto de um dos brutamontes com o tijolo. O impacto foi tão poderoso que o tijolo se desintegrou ao colidir com a face esquerda do homem, causando mutilações horríveis. Aizack escapou por pouco de outro golpe, mas a lâmina ainda conseguiu abrir um corte em seu abdômen, deixando uma trilha de sangue. Enfurecido, ele arremessou a poeira do tijolo que estava em sua mão diretamente nos olhos do espadachim, temporariamente cegando-o. Enquanto o homem tentava coçar os olhos, Aizack girou a cintura e desferiu um chute preciso na têmpora do criminoso, empurrando-o violentamente contra a parede. Depois de uma intensa batalha, restavam apenas dois oponentes de pé. Eles se olharam e, em seguida, dirigiram seus olhares para Aizack, que estava coberto de poeira e sangue, com um olhar bestial estampado no rosto. Sem hesitar, os dois começaram a correr na direção oposta, fugindo do local. Sentindo-se seguro, Aizack ajoelhou-se no chão, exausto e ofegante. Doce Neve se aproximou apressadamente e ajoelhou-se ao seu lado, perguntando: "Você está ferido?" "Ah, estou um pouco machucado, mas nada grave", Aizack respondeu despreocupado, exibindo o corte em seu abdômen. Doce Neve examinou a ferida. "O corte é superficial, mas ainda pode infeccionar", ela disse. "Fique quieto por um momento." Nesse instante, seus cabelos brancos começaram a brilhar em um tom esverdeado e a se mover como se estivessem sendo agitados por uma forte ventania. Em seguida, ela gentilmente segurou o rosto de Aizack e o beijou nos lábios. Ao sentir os lábios de Doce Neve tocando os seus, Heitor sentiu os pelos de seu corpo se arrepiarem e uma onda de calor reconfortante se espalhar por seu corpo. Rapidamente, a ferida em seu abdômen começou a se fechar como se nunca tivesse existido. Além disso, ele sentiu seu cansaço desaparecer e uma sensação intensa se agitar dentro de suas calças. Instintivamente, ele cobriu-se com as mãos e virou-se de costas, surpreendendo Doce Neve. Heitor sentiu um calor intenso invadir seu corpo, enquanto seu rosto e pescoço coravam intensamente de vergonha. Sentia-se como um pimentão. "Por que ela fez isso?", perguntou-se interiormente. "Nós somos irmãos, não somos? Isso é totalmente errado, e ainda por cima me excitou. Eu sou um ser humano desprezível. Eu mereço morrer!" "Aizack, você está bem?", perguntou Doce Neve, preocupada. "Ah, sim, estou bem", respondeu Heitor nervosamente. "Ótimo! Nenhum problema! Estou perfeitamente tranquilo e seguro." "Aizack, se ainda estiver se sentindo mal, posso tentar beijá-lo novamente e..." "Não! De jeito nenhum!" interrompeu Aizack, exaltado. "Não faça algo assim de novo sem me avisar!" "Está bem, não vou repetir", concordou Doce Neve, achando a reação dele estranha. "A menos que você peça." "Eu nunca vou pedir!", exclamou Aizack, desesperado. Anelise aproximou-se dos dois, percebendo o constrangimento, mas sem entender a situação por completo. Ela abraçou Aizack e ele pôde sentir o tremor em seu corpo. Por um momento, ele esqueceu que ela era apenas uma criança e que acabara de presenciar uma cena violenta em que ele quase perdeu a vida. "Você é igual ao papai, um boboca", lamentou ela, com lágrimas nos olhos. "Ninguém disse que você deveria lutar sozinho... Se você tivesse morrido, como poderia me ajudar a encontrar o meu pai?" Durante a luta, Aizack havia deixado de se preocupar com sua própria vida, enxergando tudo como uma mera diversão, e esquecera do objetivo principal, que era proteger as duas. "Você está certa", concordou ele, compreendendo seu erro. "Se enfrentarmos perigo novamente, vamos fugir juntos e evitar o confronto. Eu prometo." Aizack retribuiu o abraço com ternura. "Acredito que seja melhor procurarmos um local para passar a noite e retomarmos a busca amanhã. Neste horário, as ruas estão desertas e corremos o risco de encontrar mais bandidos", sugeriu Doce Neve. "Você está certa. Vamos procurar um lugar para passar a noite", concordou Aizack.