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A.F.

OLIVEIRA
Todos pensariam que minha vida é perfeita. CEO de uma renomada
empresa de construções, pai solteiro de duas lindas filhas, boa aparência e
uma mansão maravilhosa para chamar de lar.
Poucos sabiam que eu tinha um único arrependimento, e ele se chamava
Maria Luísa Avelar.
A mulher que um dia foi a dona do meu coração, mas que foi afastada de
mim por causa do destino.
Seis anos depois, ela retorna à minha vida, com um enorme problema nas
costas. Para ajudá-la, eu a contrato como babá das minhas filhas.
Só que algo me diz que esse reencontro não aconteceu por acaso e que
finalmente eu terei uma nova chance de consertar os erros do passado e
construir um novo futuro. Ao lado dela.
TODOS OS DIREITOS RESERVADOS
Copyright© ANDREIA OLIVEIRA

Este e-book é uma obra de ficção. Embora possa ser feita referência a
eventos históricos reais ou locais existentes, os nomes, personagens, lugares e
incidentes são o produto da imaginação da autora ou são usados de forma
fictícia, e qualquer semelhança com pessoas reais, vivas ou mortas,
estabelecimentos comerciais, eventos, ou localidades é mera coincidência.

CAPA: ETERNITY DESIGN


DIAGRAMAÇÃO: ETERNITY DESIGN
REVISÃO: INDEPENDENTE
A todas as minhas leitoras do Wattpad. Obrigada por me fazerem ter
vontade de seguir com meu primeiro livro e chegar até aqui!
SUMÁRIO
PRÓLOGO
CAPÍTULO UM
CAPÍTULO DOIS
CAPÍTULO TRÊS
CAPÍTULO QUATRO
CAPÍTULO CINCO
CAPÍTULO SEIS
CAPÍTULO SETE
CAPÍTULO OITO
CAPÍTULO NOVE
CAPÍTULO DEZ
CAPÍTULO ONZE
CAPÍTULO DOZE
CAPÍTULO TREZE
CAPÍTULO QUATORZE
CAPÍTULO QUINZE
CAPÍTULO DEZESSEIS
CAPÍTULO DEZESSETE
CAPÍTULO DEZOITO
CAPÍTULO DEZENOVE
CAPÍTULO VINTE
CAPÍTULO VINTE E UM
CAPÍTULO VINTE E DOIS
CAPÍTULO VINTE E TRÊS
CAPÍTULO VINTE E QUATRO
CAPÍTULO VINTE E CINCO
CAPÍTULO VINTE E SEIS
CAPÍTULO VINTE E SETE
CAPÍTULO VINTE E OITO
EPÍLOGO
PRÓLOGO
Dizem que o destino de cada pessoa é escrito desde que ela nasce. Que
todas as coincidências, todas as surpresas e os acasos da vida são meramente
capítulos de uma história que já existe antes mesmo de darmos nosso
primeiro choro depois de sairmos da barriga da nossa mãe.
Por isso, quando subi naquele ônibus, no meio da rodoviária Novo Rio,
do Rio de Janeiro, eu deveria ter sentido alguma coisa. Uma coceira no
estômago, um aperto no peito, uma dor no dedão do pé que quebrei quando
era criança – ou isso só funciona quando vai chover? –, uma vozinha celestial
falando no meu ouvido, recebido sinais divinos... qualquer coisa. Mas, não.
Tudo o que eu sentia era o meu coração batendo acelerado, certa de que
estava fazendo o certo e que Jonas iria adorar a surpresa.
Que estúpida!
Talvez eu devesse ter ouvido minha melhor amiga, quando ela insistiu
para que eu avisasse a ele que estava chegando. Talvez devesse ter esperado
um pouco mais para tomar decisões como pedir demissão e devolver as
chaves do apartamento alugado onde morava. Mas então eu não teria
descoberto o que precisava descobrir. A ignorância poderia me poupar o
sofrimento imediato, mas, a longo prazo, acabaria acreditando que fora para o
meu bem.
Fosse como fosse, a visão do homem que julguei amar abrindo a porta
quase nu, o som da voz feminina melosa e estridente que ouvi e a cara de
espanto de ambos – o filho da puta do meu noivo e da loira desconhecida,
que aparentemente devia saber quem eu era para ficar tão chocada – partiram
meu coração.
Fui criada para ser uma mulher forte. Minha mãe me sustentou sozinha,
porque meu pai era um babaca como aquele idiota ali à minha frente, que a
abandonou. Depois ela se casou com um merda maior ainda e mesmo assim
não sucumbiu. Até morrer, cinco anos atrás, ela foi pessoa mais corajosa que
conheci. Só que, naquele momento, senti que envergonhava a mulher que não
merecia isso, porque tudo o que consegui fazer foi chorar.
E gritar um pouco no corredor para que todo mundo ouvisse que tipo de
canalha morava no apartamento 807.
— Filho da puta! Mentiroso! — Dei com a bolsa em seu braço nu,
pensando que ele nem era tudo isso enquanto o via só com um short brega
cobrindo a ferramenta que ele deveria ter usado muito bem minutos atrás.
— Malu, calma! Não é bem assim... eu...
— Não! — gritei mais alto. — Pode falar qualquer coisa, mas não tenta
usar a desculpa ridícula de que é um mal entendido. — Enfiei minha cabeça
por entre a fresta, olhando para a loira. — Boa sorte para vocês dois, viu? Só
queria te falar que, sim, ele brocha. E não é porque está nervoso porque você
é a mulher mais bonita que já levou para a cama. — A julgar pela expressão
da garota, eu tinha acertado em cheio. — Vai acontecer mais algumas vezes.
E, não, ele não sabe onde fica o clitóris.
Sem mais, saí puxando a minha mala – agradecendo por não ter levado
tudo e contratado uma empresa de transporte para o resto.
Ou não... Sei lá.
Ouvi o filho da puta gritando o meu nome, mas, para a minha sorte, o
elevador ainda estava no andar. Entrei nele e tentei descer, mas o idiota
segurou a porta, impedindo-me.
— Sai daí, Jonas! Eu não quero mais olhar na sua cara! — falei, firme.
— Malu, pelo amor de Deus! É um relacionamento de três anos! Vamos
nos casar... você está se mudando para cá. Não pode...
— Não posso o quê? Terminar essa merda porque fui traída? Tenho que
engolir calada porque perdi três anos da minha vida? Ainda tenho muitos pela
frente. E eu juro, Jonas... vou sair esta noite e vou dar para o primeiro cara
gato que aparecer na minha frente. Enquanto estiver gozando na boca e no
pau dele, não vou nem me lembrar que você existe. — Com toda a minha
força, empurrei-o para longe da porta e consegui fazer o elevador descer.
Assim que me vi no primeiro andar, saindo do prédio, peguei um táxi,
pedindo que o motorista me levasse à rodoviária de volta.
As lágrimas e os soluços me impediam de pensar com clareza – além do
telefone que vibrava dentro da minha bolsa e que seria devidamente ignorado
–, mas eu só tinha um plano em vista. Não poderia continuar naquela cidade;
ela era pequena demais para mim e para Jonas. O mundo era pequeno demais
para nós dois, porém eu ainda não tinha condições de comprar um apê em
Marte, por isso, a escolha tinha que ser a mais óbvia possível.
Era próximo demais para o meu gosto, mas Montes Altos era a única
opção que minha mente conseguia formular naquele momento. Cidade
vizinha, mas o local onde eu nasci e passei algum tempo, seis anos antes,
quando minha avó adoeceu. O lugar onde minha mãe passou boa parte de sua
vida e para onde sempre quis voltar.
Não queria pensar que também era o local onde deixei uma história
inacabada...
Algo me dizia que era o destino me guiando e que lá, talvez, eu pudesse
encontrar algo que estava procurando, embora eu nem soubesse o que era.
CAPÍTULO UM
Eu odiava viagens burocráticas. Odiava me ausentar de casa mais do que
já fazia, passando horas e horas dentro de um escritório. Mas dias fora? Para
mim era um suplício. Voltar, no entanto, sempre me trazia algumas surpresas.
Saí do táxi, pagando ao motorista e agradecendo sua gentileza em saltar
para me ajudar com a mala. Não estava muito pesada, mas eu lhe dei uma
gorjeta considerável, então só faltou ele me servir um Black Label e me
oferecer massagem tailandesa feita por sua filha virgem.
Ri ante o pensamento, pegando a mala e erguendo-a enquanto subia os
degraus da porta da frente da minha propriedade. Talvez a quantidade de
horas insana que passei trabalhando naquela semana estivesse cobrando seu
preço. Sentia-me um pouco aéreo, cansado, doido por um banho e por algum
tempo com as meninas.
Passava um pouco das sete, e eu fiquei feliz por isso, porque ainda
teríamos tempo de jantar juntos. Era algo que eu sempre fazia questão, e o
fato de não ter podido cumprir com minha promessa para mim mesmo nos
últimos três dias, por conta da minha viagem a São Paulo, me deixava ainda
mais frustrado.
Entrei em casa, pousando a mala no chão, colocando meu paletó sobre
ela cuidadosamente e assobiando do jeito que sempre fazia quando chegava
em casa. Era uma coisa que Catarina gostava, já que andava viciada no filme
A Noviça Rebelde, desde que assistira com Teresa, nossa governanta, que era
quase uma avó para elas. Alice ainda era muito pequenininha para entender,
mas em todas as – provavelmente – duzentas e vinte vezes em que a irmã
assistiu ao filme, ela batia palminhas e cantarolava as músicas junto. Minha
caçulinha seguia a primogênita em tudo, o que era fofo de se ver.
— Papai!!! — além da vozinha estridente, sons de passos apressados
foram ouvidos e, em poucos minutos, uma linda garotinha de seis anos estava
se jogando no meu colo.
Um sorriso de orelha a orelha curvou meus lábios e uma sensação de
plenitude tomou o meu peito. Não havia nada mais perfeito, nada que me
fizesse sentir mais completo do que ter minhas meninas ao redor, pulando,
rindo e fazendo travessuras.
Mal tive oportunidade de olhar para ela antes, mas no momento em
que a afastei um pouco do meu peito e que seus bracinhos saíram dos meus
ombros, pude verificar seu rostinho lindo e ver a quantidade enorme de cores
que pintavam sua pele.
O cabelinho castanho claro, muito liso e longo, também estava
manchado, assim como a franja que cobria sua testa.
— Querida, acho que você pintou a tela errada — falei com paciência,
rindo. Era muito difícil, para mim, sabendo o que minhas filhas tinham
passado, ser rude com elas. Precisava discipliná-las, é claro, e sabia que era
um pouco transigente demais, mas eram boas meninas, e eu não conseguia
evitar.
— Papáaaaaaa! — outro gritinho e mais passinhos correram na
minha direção, e eu vi a miúda Alice, com seu andar incerto, vindo para mim,
quase correndo. Assim como a irmã, ela estava toda pintada.
Inclinei-me, pegando-a com o outro braço, mantendo as duas no meu
colo.
— O que vocês aprontaram hoje? — perguntei, em um tom carinhoso.
Estava morrendo de saudade.
— As meninas vieram depois da aula para um trabalho de arte —
Catarina explicou, parecendo muito adulta para a sua idade.
— Ah, agora faz todo sentido.
Coloquei cada uma delas no chão, enquanto outro som de pessoa se
aproximando me fez erguer a cabeça para olhar para Teresa.
Minha boa e doce Teresa, incansável, também estava toda colorida e
parecia cansada. Muito cansada. Isso me doeu o coração.
Estava prestes a passar a mão pelo meu cabelo muito liso e escuro,
mas me detive no momento em que percebi que já estava contaminado
também. Manchinhas de tinta azul e verde se destacavam nas pontas dos
meus dedos.
Não queria sorrir, mas foi impossível.
— O senhor chegou mais cedo — Teresa falou tão baixinho que eu
tive que me esforçar para ouvir.
— Consegui adiantar o voo — expliquei. — E queria jantar com
minhas meninas. — Apertei o narizinho de cada uma, e elas riram.
— Eu queria que elas estivessem de banho tomado antes de o senhor
chegar, mas...
Antes que Teresa pudesse continuar sua explicação, coloquei a mão
sobre o ombro dela, apertando-o gentilmente.
— Não se preocupe com isso.
Teresa pareceu um pouco envergonhada enquanto se preparava para
falar o resto, chegando a respirar fundo.
— O senhor não vai dizer a mesma coisa quando vir como ficou o
quarto de brincar.
Ergui uma sobrancelha.
— Quão ruim?
— Péssimo.
Olhei para as duas com um semblante fechado, e Catarina abaixou a
cabeça, com as duas mãozinhas entrelaçadas atrás do corpo, em sua melhor
encenação de rainha do drama. Ela era ótima nisso.
Alice, por sua vez, continuava rindo para mim, sem entender nada do
que estava acontecendo.
Agachei-me na frente delas, tentando fazer meu papel de pai.
— Isso não pode se repetir, estão entendendo? Tetê dá um duro
enorme aqui em casa, e vocês precisam ser boazinhas com ela.
— Nós somos, papai. Nós amamos a Tetê.
Coisinha manipuladora. Mas eu sabia que era verdade. Só que se até a
pessoa mais lesada naquela situação parecia comovida com o discurso
apaixonado, quem era eu para pensar qualquer coisa diferente?
— Teresa, leve as duas para um bom banho, ok? — Levantei-me,
colocando-me ereto e passei a mão pela cabeça das meninas. — Depois
vamos jantar.
Ela assentiu e fez o que eu pedi.
Enquanto Teresa dava banho nas minhas filhas, subi para fazer o
mesmo, mas passei primeiro no terceiro andar para dar uma olhada no quarto
onde as duas tinham causado o caos.
De fato, estava muito pior do que a minha imaginação poderia
formular.
Havia tinta espalhada pelo chão, pelas paredes, brinquedos
bagunçados, bolinhas de papel por toda parte, e eu poderia jurar que muito
pouco do trabalho de arte seria aproveitado.
Sim, eu teria que conversar com as meninas, mas, naquele momento,
apenas me enfiei em um banho, no chuveiro mesmo, troquei de roupa e desci.
Catarina e Alice já estavam sentadas à mesa, apenas me esperando.
Ambas de cabelos lavados, cheirosas e de roupas limpas. Eu ainda podia ver
pequenos resquícios de tinta em seus rostinhos, pescoços e mãos, mas sabia
que era o tipo de coisa que demorava para sair. Eu mesmo tive problemas
para tirar das minhas.
Jantamos em paz, com Catarina me contando sobre a escola, como se
nada tivesse acontecido. Alice apenas concordava e brincava com a comida, e
eu tentava participar ao máximo de tudo.
Assim que terminamos, até mesmo a sobremesa, pedi que elas
subissem e fossem se preparando para deitar, porque eu queria conversar um
pouco com Teresa.
Fiz com que se sentasse à mesa e peguei sua mão por cima da
madeira.
— Desculpa — falei, porque era a única coisa na qual conseguia
pensar quando a via tão cansada.
— Oh, senhor! Por favor! Eu amo aquelas meninas... é meu trabalho.
— Não, não é. Você é contratada para cuidar da casa. — Fiz uma
pausa, respirando fundo. — O que acha de eu procurar uma babá? Alguém
que possa ficar com elas o dia inteiro, que leve e pegue Cathy na
escola , que as entretenha à tarde, ajude nos deveres e que as
discipline?
Teresa arregalou os olhos.
— Não seria uma má ideia — falou rápido, quase como uma resposta
automática. — Mas não pense que eu não gosto de ficar com elas, por favor.
Eu adoro, mas...
Sorri.
— Você ainda ficaria com elas. Sempre. Só que teria ajuda.
Imitando-me, os lábios finos e enrugados de Teresa se curvaram.
— Seria ótimo, senhor. Para as meninas, principalmente. Mas posso
dar uma opinião?
— Claro!
— Não contrate uma pessoa velha como eu. Busque alguém jovem,
cheia de energia como elas, que entenda das coisas que elas gostem, que seja
amorosa. Aquelas meninas já foram abandonadas pela mãe e merecem
carinho.
Levei a mão de Teresa aos meus lábios, beijando-a.
— Obrigado, Tetê. Vou me certificar disso.
Foi com esse pensamento que parti para o quarto das meninas alguns
minutos depois. Elas ainda não estavam deitadas, mas já trajavam seus
pijamas – Catarina provavelmente vestiu a menorzinha – e estavam quietas.
Sentei-me na cama de Cathy, que era bem grande – de princesa, como
ela gostava de chamar – e chamei as duas.
— Venham aqui com o papai. Precisamos conversar.
Obedientemente as duas foram. Catarina deitou-se à minha direita, e
eu peguei Alice, colocando-a à minha esquerda.
— Papai, você vai brigar com a gente? — Mantendo as duas
aninhadas no meu peito, beijei suas cabecinhas.
— Não. Mas não foi legal o que aconteceu hoje. Por causa disso, vou
ter que tomar uma atitude importante. Antes de mais nada, preciso falar com
vocês.
— Inderella tinha ratinhos pra arrumá a baguça — Alice falou,
muito decidida, meio fora do assunto. — Qué um ratinho.
— Você não pode ter um ratinho enquanto não aprender a ter
responsabilidade, Coelhinha. — Apertei as duas ainda mais contra mim,
preparando-me para o resto. — Eu vou contratar uma pessoa para cuidar de
vocês. Alguém bem legal, que possa brincar, mas ensiná-las também.
Catarina arregalou os olhos.
— Como a Maria da Noviça Rebelde?
Sorri. Eu sabia que ela diria isso.
— Algo assim.
— E depois ela vai se tornar nossa mamãe? Como a Maria? — Cathy
cruzou os braços, não gostando da ideia. — Eu já tenho uma mamãe.
Ergui uma sobrancelha. Ela tinha, de fato, uma mãe, mas não para o que
importava.
— Não, querida. Ela será sua babá, sua amiga... mas não a sua mamãe. —
Remexi o braço que estava entrelaçado a ela, fazendo-a olhar para mim. —
Vai ser legal. Eu prometo. Acredita em mim?
— Acredito, papai.
— Que bom — foi tudo o que eu disse antes de novamente beijar cada
uma delas e embalá-las com uma música até que dormissem. Eu não era um
cantor profissional, mas não tinha das piores vozes, e as meninas gostavam.
Assim que dormiram, eu peguei a pequena Alice no colo, levando à sua
caminha, onde a deitei, a cobri e acariciei seus cabelos loiros, mais claros que
os da irmã, pensando no quanto se parecia com um anjinho, mesmo que o
lóbulo de sua orelha ainda estivesse pintado de tinta rosa.
Voltei-me para Catarina, ajeitei-a e a cobri também, fazendo o mesmo.
Antes de sair do quarto apaguei a luz e desejei, do fundo do meu coração,
que nada nunca perturbasse a paz das minhas filhas. E que a ideia da tal babá
fosse a melhor possível.
Já estava no meu quarto quando meu celular tocou. Era Evandro, meu
melhor amigo, mandando uma mensagem e me convidando para sair, porque
tinha algo importante para me falar, e eu sabia que tinha a ver com negócios,
porque nossas empresas eram parceiras, a minha no ramo de construção – eu
era engenheiro – e, a dele, uma grande imobiliária, e eu queria saber do que
se tratava. O filho da mãe não me contaria se eu não aceitasse seu convite.
O dia tinha sido cansativo, longo, mas fazia um bom tempo que eu não
relaxava um pouco. As meninas já tinham dormido, e Teresa ainda estava
acordada, jogando palavras cruzadas – que era seu passatempo favorito.
Eu mal tinha coragem de pedir qualquer coisa a ela, mas acabei batendo
na porta de seu quarto.
— Tetê — comecei depois de receber autorização para entrar —, tudo
bem se eu sair com um amigo? É questão de negócios. Prometo não voltar
tarde.
— Claro, querido. É bom que se divirta um pouco.
— As meninas já dormiram. Se quiser se deitar, fique à vontade.
— Pode deixar. Se elas precisarem de algo, ficarei atenta.
Novamente sorri.
— O que eu faria sem você?
Enviando-lhe um beijo que a fez corar, saí do quarto e me dirigi ao meu,
para me arrumar.
Eram pouco mais de dez horas, e era difícil eu ter vontade de sair daquela
forma. O que poderia haver de diferente naquela noite?
Esperava que fosse algo bom.
CAPÍTULO DOIS
Eu já me sentia um pouco bêbada. Não que tivesse bebido muito, mas era
fraca para álcool. Sabia que não podia passar muito da segunda dose, mas
estava na terceira e, mesmo assim, ainda não tinha encontrado coragem para
ligar o foda-se e realmente dar em cima de um cara para acabar na cama dele.
Não que não tivesse gente bonita no bar, até tinha. O problema era
comigo.
Para ser sincera, passei boa parte do dia remoendo a história da traição de
Jonas e tentando entender por que não doía tanto quanto pensei que doeria.
Será que eu não o amava como julguei amar? Nós íamos nos casar, pelo amor
de Deus... claro que eu sentia algo muito forte. Claro que ele era importante.
Mas quanto?
Porque eu deveria estar na fossa, não? Talvez o fato de não conseguir
ficar com outro cara tivesse a ver com isso, mas não era o caso. Eu só não
conseguia ser tão simples com sexo. Não conseguia enxergá-lo como uma
coisa casual. Para mim precisava haver sentimento envolvido.
Invejava mulheres mais desprendidas.
Dei outro gole no meu Cosmopolitan, observando o lugar ao meu redor.
Eu tinha deixado as malas em um hotel assim que cheguei na cidade e
perguntei à recepcionista qual seria o melhor lugar para conhecer pessoas
novas. As opções não eram muitas, e ela me confessou que o mais decente
era aquele bar ali – o Two One Two.
Com uma aparência de pub irlandês, só a nata da cidade comparecia – e,
obviamente, mulheres que queriam conhecer a nata da cidade. Eu não
conhecia quase ninguém ali. Principalmente ninguém da minha idade. Morei
em Montes Altos quando criança, saindo de lá muito, muito novinha, e
depois, por alguns meses, para cuidar da minha avó quando esta estava
doente, e eu não tive tempo para fazer amigos, tão focada nela estava, com
uma única exceção, se é que eu poderia chamar assim.
Talvez fosse um pouco patética a imagem de uma mulher sozinha,
bebendo em um bar, mas quem ligava?
Havia várias ligações perdidas no meu celular, principalmente do filho da
puta, mas não quis atendê-las, chegando a desligá-lo. Só estava com ele
dentro da bolsa, para o caso de precisar em uma emergência.
Virei o copo para tomar os últimos resquícios da bebida e coloquei-o
sobre o balcão. Estava me esforçando para não pedir mais nenhuma no
momento em que enxerguei um rosto conhecido no meio da multidão.
Não era qualquer rosto, na verdade. Era o rosto.
Um que nunca saíra da minha cabeça em seis malditos anos. Um que fora
meu conforto em uma época difícil, onde tinha recentemente perdido minha
mãe e estava prestes a perder a minha avó.
Lucas Montanari.
Ele havia mudado muito pouco do rapaz de vinte e um anos que conheci
aos dezenove. Os mesmos cabelos castanhos escuros, mas mais curtos, já que
antes ele costumava usá-los mais compridos, quase chegando à base do
pescoço. Ainda eram lisos, caídos nos olhos, mas mais comportados,
profissionais. Havia uma barba discreta cobrindo o maxilar quadrado e sua
boca desenhada. E os olhos... intensamente azuis, como o mar do Caribe.
Como uma safira reluzindo sob a luz.
Mas além de tudo o que eu me lembrava, ele parecia maior. Alto sempre
fora, bem mais do que eu, mas Lucas passava de um e noventa. Só que eu
estava falando de seus ombros, seus braços, seu peitoral.
Cristo...
O cara andara malhando, sem dúvidas. Se um dia ele foi o rapaz mais
bonito em quem já coloquei os olhos, naquele momento era fácil ver que ele
era todo homem. Dos pés à cabeça. E chegava a ser covardia olhá-lo.
Eu não pretendia pedir mais uma bebida, mas a chegada de Lucas
Montanari naquele bar era um indício de que se jurei que o dia estava uma
merda, ainda poderia piorar.
Claro que sim... porque ele poderia vir na minha direção, né?
O que você acha que aconteceu?
No momento em que o copo foi colocado à minha frente, eu bebi um gole
generoso. Ao mesmo tempo, uma voz já conhecida, grave e melodiosa, soou
bem ao meu lado.
— Um Jack Daniel’s com gelo, por favor.
Suspirei, tentando encontrar uma maneira menos esquisita de desaparecer
dali. Só que o fiz tão alto que ele provavelmente ouviu. E deve ter olhado na
minha direção, porque podia sentir seus olhos intensos em mim.
Então rezei para que não me reconhecesse, mas eu também não tinha
mudado tanto assim.
— Malu? — Tarde demais.
Ainda dava tempo de fugir sem parecer uma lunática? Claro que não.
Então não me restou alternativa a não ser voltar-me para ele com um sorriso
falso no rosto, tentando não parecer ainda mais esquisita do que já me sentia.
Eu já o tinha percebido de longe, mas usei minhas habilidades teatrais
para fingir surpresa ao olhar para seu rosto.
— Uau! Lucas! Nossa, quanto tempo!
Para a minha sorte, ele parecia bem mais surpreso. E como não estaria?
Além do fato de eu ter tido alguns minutos a mais para tomar consciência de
que o cara estava ali, no mesmo bar, eu estava na cidade onde ele sempre
morara. A mesma cidade da qual eu tinha ido embora seis anos antes com o
coração partido. Por ele, no caso.
Talvez as probabilidades estivessem ao meu favor. Ou quase.
— Eu digo o mesmo. — O filho da mãe olhou para mim de cima a baixo
sem nem disfarçar. — Meu Deus, você está... linda.
Pronto. Três palavras: você está linda, e eu senti meu coração acelerar no
peito. O quão patético isso era?
Em minha defesa, eu tentaria acreditar na ideia de que qualquer mulher
heterossexual – principalmente solteira, como era meu novo status naquele
momento – ficaria balançada com uma voz de manteiga derretida lançando
um elogio como aquele, com aquele tom sensual. Mais do que isso, Lucas
parecia tão desconcertado quanto eu.
— Obrigada. — Eu queria retribuir o elogio, mas algo me travou. Não
costumava ser tão tímida, mas ele sempre me deixou assim. Sem palavras.
Sem saber exatamente o que fazer, onde colocar as mãos e como me
comportar.
Um silêncio desconfortável nos rondou, e, por algum motivo que eu
simplesmente desconhecia, Lucas não tirou os olhos de mim, ainda
parecendo muito fora de órbita. Fomos salvos pelo gongo quando o bartender
colocou o copo dele sobre o balcão, cheio de gelo, preenchendo-o.
Lucas voltou-se para o cara, com um meneio de cabeça, e depois tomou
um gole, assim como eu tinha feito ao vê-lo – longo e parecendo muito
necessário.
— O que você está fazendo em Montes Altos? — ele perguntou depois de
engolir em seco, como se a bebida não fosse suficiente para liberar o nó em
sua garganta. Pelo movimento frenético de seu pomo de adão pronunciado,
ele estava tendo as mesmas reações que eu.
Só que eu não saberia dizer se isso era bom ou ruim.
Sua pergunta merecia uma resposta complexa, tanto que uma risadinha
tímida escapou da minha boca, e eu desviei os olhos, focando-os no balcão,
porque não queria olhar para ele.
— É uma longa história.
Como meus olhos ainda estavam fixos no balcão, onde minha mão
segurava o copo, vi um dos dedos de Lucas apontar para o meu anelar, onde a
aliança de noivado se destacava.
— Tem algo a ver com isso aqui?
Ergui os olhos para ele e o percebi muito sério.
Dei de ombros, sentindo meu sorriso desaparecer.
— Tudo a ver, mas não da forma como você está pensando. — Quase
com raiva, arranquei a aliança do dedo, tentando entender o porquê de não tê-
la tirado antes. Sem nenhum remorso, segurei-a na mão e a lancei na grande
lixeira do outro lado do balcão, que estava aberta, acertando-a como se fosse
uma cesta de basquete.
— Isso foi intenso — ele brincou.
— Intenso foi vê-lo com outra, três meses antes do nosso casamento.
— Você ia se casar? — Lucas ergueu uma sobrancelha, surpreso.
Mas por que estaria? Ele tinha se casado, não tinha? Eu não era digna de
ser a esposa de alguém?
— Eu saí do Rio de Janeiro, larguei tudo para trás, porque ele aceitou um
emprego aqui perto de Montes Altos, numa cidade vizinha. — Por algum
motivo eu não queria dizer a Lucas onde meu ex morava. Nem queria falar de
Jonas, mas acabei soltando as palavras sem perceber. — Combinamos que eu
chegaria só no mês que vem, mas adiantei a viagem. Você já pode imaginar o
que aconteceu.
— Sinto muito — Lucas falou e parecia sincero.
Ergui meus olhos para ele, tentando sorrir.
— Tudo bem. Foi melhor descobrir antes de me casar, não é?
— Claro. E então você veio para cá, para Montes Altos? — ele perguntou
e deu mais uma golada na bebida, mantendo os olhos em mim por cima da
borda do copo.
— Foi a primeira ideia que eu tive, porque queria fugir, ficar longe dele.
O máximo possível. Ele não para de me ligar, e eu não quero nem conversar
quanto mais olhar naquela cara.
Lucas sorriu.
— Você sempre foi assim, né? Determinada. — Não respondi, porque
não era exatamente uma pergunta. Ainda assim, Lucas continuou: — E o que
vai fazer agora? Vai ficar por aqui?
— Não sei ainda — falei, passando meus dedos pela borda do copo, onde
a mancha do meu batom vermelho se destacava. — Fiz check-in em um hotel
e devo passar pelo menos umas duas noites aqui. Seja como for, tenho que
tomar logo uma decisão, porque minha mudança chegaria na casa de Jonas na
segunda, então eu preciso cancelar o serviço ou pedir para ser transferido
para outro endereço.
— É muita coisa?
— Não. Só livros, alguns pertences com valor afetivo, mais algumas
roupas... Álbuns de retratos... Ah, você sabe... — Novamente dei de ombros,
sentindo a emoção me consumir. Eu não iria chorar na frente de Lucas. —
Sempre fui determinada, mas muito sentimental também.
Novamente olhei para ele e percebi que estava sendo olhada de volta,
com muita intensidade. Talvez houvesse também algum lampejo de nostalgia.
Mas isso eu não queria enxergar.
— Sim, Malu. Você sempre foi.
Outra troca de olhares, e eu quase perdi o ar. Havia tantas coisas não ditas
entre nós, tantas coisas que deixamos inacabadas... Só que fazia muito tempo,
e eu não sabia se poderíamos recuperar o que perdemos. O que poderia ter
existido se o destino não tivesse interferido. Foi por um fio, mas
provavelmente não era para ser.
Aquele era só mais um encontro para estragar o meu dia já péssimo. Nada
iria mudar.
Fomos interrompidos pela chegada de um homem que eu não conhecia,
alguém que colocou a mão no ombro de Lucas e o fez virar de súbito. Os dois
se cumprimentaram.
— Evandro, esta é Malu, uma... — ele hesitou. — Velha amiga.
Sim, era isso que eu era. Uma velha amiga. Nada mais.
O rapaz estendeu a mão, e eu a apertei com um sorriso sem graça.
— Nós temos que falar algumas coisas sobre trabalho, mas... Você vai
ficar bem sozinha? — ele parecia preocupado.
— Sim. Não vou demorar. Obrigada pela companhia.
Lucas pareceu um pouco chateado por sair, por me abandonar, mas eu
ampliei meu sorriso, na intenção de demonstrar que realmente estava tudo
bem.
— Vai lá. — Continuei sorrindo e estendi a mão em um gesto simples,
sem intenção, mas ele a pegou, apertando-a com carinho. Os olhos azuis
ainda em mim. E eles diziam tantas coisas...
Só que não era hora para pensar nisso. Muito menos quando ele se
afastou. Era melhor assim.
Isso dizia a minha mente, enquanto meu coração me pedia para tomar
mais uma dose e me perder no esquecimento do álcool. Agora eu tinha mais
um motivo para me embebedar.
CAPÍTULO TRÊS
Eu parecia um adolescente atordoado. Na verdade, eu, de fato, me sentia
assim, como se tivesse sido transportado no tempo, direto para o passado. Um
passado que sempre me provocou nostalgia e aquela sensação de “e se”?
Malu... a doce e divertida Malu, cujo sorriso e olhar meigo me
assombraram durante seis anos, junto à certeza de que eu teria cometido o
maior erro da minha vida, se Catarina não estivesse envolvida na equação.
Minha filha nunca seria um equívoco, mas se eu soubesse como as coisas
acabariam terminando, minhas escolhas seriam diferentes.
Fui guiado até a mesa por Evandro, e eu me sentei estrategicamente na
cadeira que me deixaria de frente para ela. De jeito nenhum eu conseguiria
tirar os olhos daquela mulher. Não depois de ser privado de olhá-la por tanto
tempo.
Pedi mais uma bebida, enquanto Evandro falava sem parar, coisas nas
quais eu nem conseguia prestar atenção.
Logo depois que fomos servidos, percebendo minha fixação, Evandro
olhou para trás, para o bar onde Malu ainda estava debruçada.
— Que gostosa! Quem é?
Cerrei os punhos ao ouvi-lo falando daquela forma.
— Mais respeito — falei em um tom bem baixo, tomando um gole,
muito sério.
— Eita porra! Foi mal. Quem é a moça, afinal? Fiquei curioso agora.
Dei outra olhada para ela, percebendo que pedia mais uma dose de
sua bebida. Quando conversamos, não parecia bêbada, mas, sim, muito
magoada. Pior que eu não poderia sequer julgar o filho da puta que a tratou
daquele jeito, porque também parti seu coração. Não daquela forma, é claro,
porque eu nunca teria coragem de traí-la. Mas, ainda assim, não era
redimível.
— Maria Luísa. Uma mulher do meu passado.
Ele ergueu uma sobrancelha, lançando mais um olhar para ela.
— Alguém importante?
— Muito. Alguém que eu magoei. — Mais um gole da minha bebida.
Era uma forma de tentar engolir o nó que se formava na minha garganta, de
ganhar tempo e de me entorpecer o suficiente para que os pensamentos
inquietos na minha cabeça me deixassem em paz. — Ela foi embora da
cidade pouco depois, nunca tivemos muita chance de conversar.
— Que merda, cara. Quer que deixemos nossa reunião para outro dia?
De repente você consegue conversar melhor com ela e...
— Não — interrompi Evandro, porque aquela era uma péssima ideia.
Minha história com Malu ficara no passado. Tudo o que ela poderia
ser era uma boa lembrança, algo que não chegou a se concretizar, mas que
tinha todo o potencial para se tornar muito especial.
Mas olhar para ela era doloroso.
— Não é mais o momento. Ele seguiu em frente, eu também.
Provavelmente somos pessoas diferentes agora. — Isso era eu tentando me
enganar. Os lindos olhos azuis me mostravam que havia muito da mulher que
conheci e por quem me apaixonei. Mais madura, mais bonita, mais serena,
mas era ela. A Malu que eu precisei abandonar.
— Tem certeza?
— Sim. Me diga... você me tirou de casa, de ficar com as meninas,
espero que tenha algo muito bom para mim.
O sorriso de Evandro se ampliou, e eu sabia que ele estava
empolgado. Nós nos conhecíamos há poucos anos – eu já era pai, e minha
empresa estava crescendo por conta de muito trabalho e empenho, mas ele
fora fundamental, apresentando-me a pessoas certas e me inserindo em jobs
que me levaram a ser indicado a clientes importantes, não apenas na cidade
onde vivíamos, mas também no Rio e em São Paulo.
Então ele começou a falar sobre o trabalho, que aconteceria em
parceria com uma empresa italiana que queria se inserir no Brasil.
Precisavam de um nome forte para assinar os projetos de engenharia, e eu era
o cara que estavam procurando.
Fiquei empolgado ao ponto de quase esquecer a linda morena de
cabelos lisos e longos, com sua adorável franjinha que cobria a testa, e que
tinha o sorriso mais sincero e caloroso que já vi em alguém além das minhas
filhas.
Quase.
Ergui os olhos e percebi que ela ainda estava ali. Ainda bebendo, o
que era preocupante. Não sabia se estava acostumada, se era recorrente, mas
algo me dizia que não, porque parecia sorridente, risonha e solta demais, em
uma conversa animada com o bartender. Decidi ficar de olho, esperando que
ele não desse de espertinho para cima dela, mas parecia respeitoso, o que me
acalmou.
Voltei-me para Evandro mais uma vez, tentando prestar atenção no
que ele dizia, mas eu já estava completamente consumido pela imagem de
Malu. Queria observá-la, cuidar dela, porque sabia que não estava em seu
estado normal.
Quem iria levá-la para o hotel onde estava hospedada? Iria de táxi?
Mas e se o motorista quisesse se aproveitar dela? E se acabasse dormindo no
banco de trás? O cara poderia levá-la para qualquer lugar.
Porra! Eu não ia conseguir parar de pensar naquelas coisas.
— Lucas? — Evandro me chamou, e eu olhei para ele. — Cara, pelo
amor de Deus, vai falar com ela. Estou me sentindo ignorado aqui.
Levei a mão à cabeça, passando-a pelos cabelos, respirando fundo.
— Eu não posso. Nem sei o que dizer a ela. Pedir desculpas? Pelo
quê? Como eu poderia ter feito diferente? — eu estava mais divagando do
que qualquer outra coisa.
— Não sei nada sobre a sua história, parceiro, mas mulher magoada
me assusta. Tem que ter muitos colhões para lidar com uma.
Respirei fundo, meio que sem saber o que dizer. Ele obviamente não
queria uma resposta, porque não fez uma pergunta nem me deu um conselho.
E eu também não precisava de um.
No momento em que Malu levantou-se de seu banquinho,
despedindo-se animadamente de seu amigo daquela noite, eu senti que
precisava ir atrás dela. Quando a vi cambalear pela primeira vez, tive certeza.
Peguei meu copo, tomei o último gole, deixei uma nota sobre a mesa
– bem mais alta do que seria necessário para pagar a minha conta – e
coloquei a mão sobre o ombro de Evandro.
— Fui, cara — avisei, sem muitas explicações.
— Como assim? — Ele começou a olhar de um lado para o outro, e
eu apontei para a porta, por onde uma Malu totalmente zonza passava. — Tá,
vai lá. Qualquer coisa nos falamos na segunda-feira. Dá para esperar.
— Ok. Até.
Apressei-me ao máximo, mas algumas pessoas surgiram no meu
caminho, e eu precisei desviar delas. Quando cheguei à porta, enxerguei
Malu lutando com a própria bolsa enquanto caminhava. Já estava
completamente instável sem a ajuda de uma distração, mas quando pegou o
celular foi que um desastre aconteceu.
Ela continuou andando, pronta para atravessar a rua, enquanto um
carro estava passando. Por mais que não estivesse em velocidade
considerável, iria atingi-la e machucá-la.
— Malu! — chamei-a e acabei piorando a situação, porque ela olhou
na minha direção, por cima do ombro, parando, completamente atordoada.
Com o máximo de velocidade que consegui, cheguei até ela, passando
um braço ao redor de sua cintura e pegando-a para que saísse do meio da rua
e voltasse para a calçada. O movimento brusco e desajeitado nos levou ao
chão em meio ao som da buzina desesperada do carro.
Ergui a cabeça para olhar para ela e a vi com os olhos fechados.
Coloquei a mão sob sua nuca, para que ela não ficasse com a cabeça apoiada
no asfalto, e toquei seu rosto.
— Malu... Malu! — chamei-a novamente, e ela abriu os olhos
lentamente. Quando me viu ali, pairando sobre ela, pareceu me olhar com
total intensidade, em um misto de confusão e nostalgia.
— Lucas... Ah, não! — ela falava baixinho, em um tom de
choramingo. — Mais um sonho, não. Eu não aguento mais. Por que você não
sai da minha cabeça? Por quê?
Quase sorri. Então era sinal de que pensava em mim. Durante aqueles
seis anos eu nunca a esqueci, e era quase uma vitória imaginar que o mesmo
tinha acontecido com ela.
Mas poderia ser a bebida falando, não? Um devaneio, um mal
entendido.
— Querida, deixe-me te levar ao hotel. Onde você está hospedada?
— Você não é real. É um dos meus sonhos.
— Estou aqui. De verdade. Vou cuidar de você, tudo bem?
Então uma lágrima escapou de seu olho. Uma solitária, que me feriu
mais do que eu poderia explicar.
— Por que, Lucas? Por que teve que ser assim? Por que você teve que
partir o meu coração? — ela sussurrava, mas se eu pensei que seu choro era o
mais doloroso para mim, suas palavras, sem dúvida, poderiam me destruir.
Sem dizer nada, levantei-me, levando-a junto, colocando-a de pé, mas
Malu não aguentou muito tempo e cambaleou. Amparei-a rapidamente, e ela
novamente olhou nos meus olhos, porque estávamos muito perto um do
outro. Havia uma distância de míseros centímetros entre nossos rostos.
Nossas bocas.
Antes de qualquer coisa, antes que eu pudesse fazer algo, Malu
simplesmente despencou nos meus braços, desacordada, e tudo o que me
restou foi segurá-la com mais força para que não caísse.
Ela não dissera em qual hotel estava hospedada. Não fazia ideia de
para onde poderia levá-la, o que me deixava com uma única opção...
CAPÍTULO QUATRO
Minha cabeça estava explodindo. Era como se a bateria inteira de uma
escola de samba estivesse armada e pronta para invadir a Sapucaí, tocando
dentro do meu cérebro. Boca seca. Corpo mole. Suave amnésia.
Caos.
Eu odiava ressaca, por isso dificilmente bebia.
O pior de tudo, provavelmente, era a sensação de que eu não fazia ideia
do que havia acontecido. Ao menos nos últimos momentos.
Só que eu me lembrava de uma coisa muito relevante: Lucas. Ele estava
lá, no bar.
Eu até poderia perguntar quais eram as chances de o destino nos jogar
assim, um no caminho do outro, daquela forma, mas em uma cidade como
Montes Altos, não era muito difícil. Por que não pensei nisso antes? Por que
não decidi ir para qualquer canto da porcaria do estado?
Ainda estava de olhos fechados quando senti alguém tocando o meu
rosto. Era uma mãozinha delicada, com dedinhos pequenos. Ao mesmo
tempo, alguém um pouco menos sutil, mas ainda menor, pegou na minha mão
também, parecendo tentar erguê-la, mas não tendo forças para tal.
Onde diabos eu estava?
— Ela está morta? — uma vozinha bem fina, de uma menininha,
perguntou.
— Pincesa — outra menina, provavelmente mais novinha, falou, ainda
não articulando muito bem a palavra.
— Não, Alice. Ela não é uma princesa. Não está com um vestidão e nem
tem coroa. Mas é bonita.
Elas estavam falando de mim?
Ainda um pouco atordoada, decidi abrir os olhos para saber quem eram
aquelas duas meninas. Sentia-me um pouco mais confiante ao constatar que
estava em um ambiente com crianças.
Se bem que... já tinha visto filmes de terror suficientes para saber que
havia pequenos capirotinhos que eram piores do que Jason, Freddie Krugger
e Mike Myers juntos.
E o pior... as duas eram lindas. Exatamente como os filhos do demônio
seriam para enganar os desavisados.
A dor de cabeça me pegou em cheio, mas tentei não demonstrar.
— Oi — a maiorzinha falou. Ela estava sentada ao meu lado direito da
cama. Tinha um cabelo castanho claro muito liso, escorrido, com uma
franjinha quase como a minha, caindo em sua testa. Olhinhos grandes e
expressivos, um semblante sério e compenetrado, observando-me como se eu
fosse uma peça em um museu que merecia sua total atenção e estudo.
Senti uma movimentação na cama do meu lado esquerdo e encontrei a
outra criança, a pequenininha, que não poderia ter muito mais de dois anos.
Com os cabelos mais aloirados que o da outra – que supus ser sua irmã –
ela tinha uma carinha mais sapeca e sorria com a boquinha cheia de dentinhos
de leite. Uma gracinha.
— Oi — respondi, insegura, olhando de uma para a outra.
— Quem é você? — a mais velha perguntou.
Remexi-me na cama, tentando me sentar, mesmo que minha cabeça
estivesse prestes a explodir, porque queria conseguir olhar as duas ao mesmo
tempo, sentindo-me em completa desvantagem.
Com duas crianças? Sim... eu sabia muito bem do que uma garotinha
esperta poderia ser capaz.
Especialmente uma que eu não conhecia, enquanto não fazia ideia de
onde estava.
— Meu nome é Maria Luísa. Mas vocês podem me chamar de Malu. —
Coloquei-me sentada na cama, com as costas apoiadas no estrado. Encolhi os
joelhos, abraçando-os. — E vocês, como se chamam?
— Eu posso te chamar de Maria? — a mais velha perguntou.
— Pode. Ninguém me chama assim, na verdade. Mas por quê?
A garotinha deu de ombros.
— Porque é o nome da Noviça Rebelde. Maria.
— Maía!!! Maía!!! — a pequenininha gritou, animada, engatinhando na
cama para se aproximar mais de mim e começou a cantar uma música que eu
reconhecia exatamente do filme mencionado. Claro que ela não sabia a letra,
mas solfejou muito bonitinha.
Não pude deixar de sorrir.
— Você pode me chamar assim, se quiser.
— Ótimo! Eu sou a Catarina. Ela é a Alice — apresentou.
— Muito prazer. Posso dar apelidos para vocês também?
— Pode. Meu papai me chama de Cathy.
Ela era muito espertinha e articulada. Eu adorava crianças, mas tinha uma
predileção pelas coisinhas perigosas como Catarina. Nada lhe escapava, eu
tinha certeza.
E ela mencionou um pai.
Foi então que Lucas imediatamente me veio à mente. Quando nós
terminamos, seis anos atrás, foi porque ele tinha ganhado um bebê. Um que
gerou quando já nos conhecíamos, mas ainda éramos apenas amigos.
Catarina poderia muito bem ter essa idade.
Imagens muito turvas começaram a se formar na minha mente. Bem
desagradáveis e vergonhosas, mas decidi deixá-las de lado para focar nas
crianças.
— Ah, mas eu não quero te chamar como outras pessoas te chamam.
Você não vai me chamar de um jeito especial? Quero fazer o mesmo. —
Lancei um olhar para Alice, e ela estava muito entretida, brincando com uma
mecha castanha do meu cabelo. — Catarina e Alice, certo? — Levei um dedo
ao queixo, fingindo-me de pensativa. — Tatá e Lili, o que acham?
— A gente chama a governanta da casa de Tetê. Papai chama ela assim
desde menino. Pelo menos foi o que ele disse para nós, mas ele é tão velho...
como se lembra?
Não pude deixar de rir. E, com aquela afirmação, confirmei minhas
suspeitas – o pai delas era mesmo Lucas.
Então eu estava na casa de Lucas. Seria muito interessante se a mãe das
meninas aparecesse ali e visse uma amiga do marido, de ressaca, em meio às
filhas dela.
No final das contas, as meninas eram mesmo filhas do demônio. Mas do
meu particular.
— Eu conheço seu pai. Ele não é velho.
— Ele tem quase trinta anos! — ela exclamou com os olhinhos
arregalados.
— Ainda não acho velho. Acho que...
— Ah, meu Deus, meninas! O que estão fazendo aqui? — uma voz
familiar me interrompeu, e eu me virei para a porta para me deparar com um
rosto conhecido e muito querido.
Teresa cuidava da casa de Lucas desde que nos conhecemos. Trabalhara
para seus pais e agora para ele, e apesar do tom de repreensão que usou com
as meninas, elas claramente a amavam, pela forma como a pequena Alice
começou a bater palmas.
— Bôdia, Tetê! — Deus, eu ia morrer de fofura, especialmente quando
ela começou a pular na cama, erguendo os bracinhos para a mulher pegá-la.
— Bom dia, tesourinho. — Carinhosa, Teresa pegou a menininha, dando-
lhe um beijo e colocando-a no chão. Também beijando a cabeça de Catarina,
falou: — Vocês duas podem me dar licença? Quero conversar com a nova
amiga de vocês.
Obedientes, Catarina pegou a mãozinha de Alice, e as duas saíram
correndo do quarto, deixando-me com Teresa.
Dei-me conta, então, de que ainda estava sentada na cama, o que eu sentia
como um abuso.
— Você se lembra de mim, Tetê? — perguntei a ela com um sorriso, que
ela rapidamente imitou.
— Como iria esquecer, garota atrevida? — Aquela mulher sempre me
chamou assim. Nunca fui, de fato, atrevida com ela, mas a origem do apelido
me provocou um sentimento de nostalgia.
Foi na primeira vez em que Lucas me levou à sua casa, para conhecer sua
família. Embora ele tenha me apresentado como sua amiga – o que, de fato eu
era –, sua mãe não foi com a minha cara de primeira, sem dúvidas
acreditando que eu não estava à altura de seu filho cheio de pedigree. Nunca
fui mal educada, porque fui muito bem criada, mas não permiti que me
diminuísse, então, no momento em que fez pouco do fato de eu vir de uma
família de costureiras, respondi que era melhor do que viver à custa do
marido.
Ao final do dia, Teresa veio me chamar em um canto da casa, pouco antes
de eu ir embora, parabenizando-me por não ter vergonha das minhas origens
e por me manter fiel aos meus princípios. Nunca esqueci o que ela me falou.
Não importava o que acontecesse, eu nunca permitia que ninguém me
rebaixasse.
Ela se sentou na cama, diante de mim, e me abraçou.
Com as duas mãos no meu rosto, olhou bem nos meus olhos.
— Em que confusão você se meteu, Malu? Levei um susto quando Lucas
chegou carregando você desmaiada.
Fechei os olhos, morrendo de vergonha.
— Eu não sou de beber, Tetê. Juro. Mas tanta coisa aconteceu. Sabe
quando a vida parece toda desandar de uma só vez?
Ela segurou minhas duas mãos.
— Sei, querida. Eu sei bem como é. Só que também sei que pessoas
fortes como você não se deixam abater.
Assenti, sabendo que ela estava certa. A vida me fez forte. Não era um
babaca traidor que iria mudar isso.
Interrompendo-nos, ouvi as vozes das crianças novamente, daquela vez
vindas do corredor.
— É, papai. Ela é tipo a Maria, da Noviça Rebelde. Só que não tem
cabelo curto. Ela tem cabelo de princesa. Pretão, tipo o da Jasmine. Ela vai
ser nossa babá? Você falou que ia contratar uma, não falou?
— Essa menina vai ser advogada, certeza — comentei com Tetê, que
soltou uma risadinha.
Quando nós duas olhamos para a porta, lá estava Lucas, sendo puxado
pelas duas filhas. Seus cabelos lisos estavam bagunçados, e ele continuava de
pijama, como se tivesse sido arrancado da cama pelas pestinhas.
Uma troca de olhares foi o que bastou para que eu me sentisse
estremecer.
Como era possível que ele ainda mexesse comigo daquele jeito? Na noite
anterior eu poderia culpar o álcool. Mas naquela manhã, meu coração estava
completamente puro. Minha mente estava completamente sóbria. Ainda
assim, lá estava... o maldito revirar de estômago, como se borboletas
tivessem se infiltrado dentro do meu corpo e ficassem agitadas com a mais
ínfima reação daquele homem.
Sempre foi assim, né, Malu?
Ele sempre foi o meu ponto fraco desde que apareceu na minha vida.
Desde que me olhou daquele jeito pela primeira vez, como se eu fosse a
criação mais preciosa da humanidade.
Desde que me ouviu, me aconselhou e foi mais do que um amigo.
Desde que se tornou tão importante.
Mas eu precisava me lembrar que tudo isso acontecera no passado. Não
havia mais chances para nós.
— Você está bem? — a voz serena e aveludada perguntou, obrigando-me
a respirar fundo.
— Estou, obrigada.
— Papá... pincesa? Pincesa? — a pequena Alice perguntou, apontando
para mim. Ela era uma delicinha.
Lucas também sorriu, de canto, provocador.
— Quase isso.
Ah, Deus! Não, por favor! Eu não podia ouvir esse tipo de coisa e sair
imune.
— Ela vai ser nossa babá, papai? Nossa Maria?
Lucas não tirou os olhos de mim. Nem enquanto sua filha lhe fazia
perguntas ou enquanto Alice pulava ao redor dele como uma pipoquinha
inquieta.
Era intenso. Desconcertante.
— Queridas, eu preciso conversar com a Malu, tudo bem? Tetê vai
preparar o café da manhã para vocês, e nós dois desceremos logo depois para
comermos também.
Vi Teresa juntar as meninas, dando a mão para Catarina e pegando Alice
no colo. A porta foi fechada, e eu me vi mais uma vez frente a frente ao
homem que eu sempre jurei ser o amor da minha vida, sem a influência do
álcool.
E eu não fazia ideia do que iríamos dizer um ao outro.
CAPÍTULO CINCO
Naquela manhã, apesar de não ter bebido tanto na noite anterior, acordei
com uma sensação estranha no peito, mas sem me lembrar de muita coisa.
Aquela névoa peculiar que invade a nossa mente logo após despertarmos.
As memórias foram se encaixando conforme o sono ia me abandonando.
E a primeira imagem que vi foi Malu nos meus braços, apagada, enquanto eu
a colocava na cama. A sensação de vazio quando a soltei. Mas mais do que
isso... a expectativa de acordar e saber que ela ainda estava na minha casa.
Depois de tanto tempo.
Foi o que me fez pular da cama imediatamente, como se subitamente
pregos tivessem se erguido dos colchões. Corri ao banheiro, passei as mãos
pelos cabelos bagunçados, escovei os dentes e saí do quarto, sendo recebido
por duas coisinhas pequenas e muito excitadas, que falavam sem parar,
chamando meu nome.
Não foi difícil entender que tinham descoberto Malu antes de eu lhes
explicar qualquer coisa.
Fui literalmente arrastado para o quarto, enquanto pedia calma às duas,
mas não adiantou muito. Quando dei por mim, já estava de frente para ela
novamente, sem álcool a nos servir de muleta, sem um bar barulhento ao
redor. Só nós dois. Na minha casa. Ela sentada na cama, olhando para mim
cheia de dúvidas, enquanto eu fazia o mesmo, mas provavelmente a
expressão que eu demonstrava era bem mais evidente. Eu não conseguia
olhar para ela sem pensar no quanto ela era linda. No quanto eu sempre a
desejei, mas nunca pude ter.
Nenhum dos dois parecia muito preparado para começar a falar, mas no
momento em que decidi me manifestar, Malu fez o mesmo, e nossas vozes se
embolaram, não fazendo sentido algum.
Tentando ser cavalheiro, calei-me e fiz um gesto para ela.
— Desculpa. Pode falar...
Ela engoliu em seco e começou:
— Eu queria me desculpar por como agi ontem. Não costumo...
— O quê? — perguntei quando ela hesitou. Ergui uma sobrancelha em
uma expressão provocadora, tentando amenizar o clima. — Não costuma ser
traída por um babaca que não sabe dar valor a uma mulher como você e sente
necessidade de extrapolar um pouco? Qual é, Malu... todos nós temos direito
de perder a cabeça em algum momento. Eu te conheço.
— Conhece? — o tom de desafio não me passou despercebido. — Faz
seis anos, Lucas.
Seis malditos anos.
Não... eu seria ingrato se dissesse isso. Se sequer pensasse isso. Foram
seis anos maravilhosos, porque eu tinha minhas duas princesinhas. E eu as
amava de uma forma que mal cabia no meu coração. Mas as coisas poderiam
ser diferentes, se eu tivesse feito as escolhas certas.
— Algumas coisas nunca mudam. A essência de uma pessoa, por
exemplo.
Malu respirou fundo e se remexeu na cama, colocando-se um pouco mais
ereta para me olhar. Aproveitei e ocupei um espaço vazio, ao lado dela, mas
não tão perto que pudesse intimidá-la.
— Eu queria conversar com você — comecei.
— Achei que já estávamos conversando.
Não pude conter um sorriso. Afiada... como ela sempre foi. E como
sempre adorei.
— Sim, mas o assunto teria um viés mais profissional. — Ela franziu o
cenho, parecendo intrigada. — Ontem mesmo, mais cedo, eu estava
conversando com Tereza, antes de sair para o barzinho. Depois, quando
chegamos, que eu te trouxe para o quarto, ficamos algum tempo juntos, na
sala, e batemos de novo na mesma tecla, mas com o seu nome envolvido. As
meninas precisam de alguém que cuide delas, que esteja disponível, e eu
estava pensando em contratar uma babá.
— Hum... — ela soltou, focando toda a sua atenção em mim.
— Preciso de alguém de confiança, mas sei que seria um trabalho aquém
das suas capacidades. Também sei que você chegou na cidade agora, precisa
se instalar. Se aceitar a proposta, não apenas teria um local para morar, mas
também um emprego.
E eu a teria por perto.
Com a mesma rapidez com que o pensamento surgiu, ele foi embora. Não
podia pensar daquela maneira a respeito de Malu. Contratá-la deveria ser uma
manobra tanto para ajudá-la quanto para suprir a necessidade de minhas
filhas. Eu não estava incluído na equação, nem meus desejos, nem o que eu
sentia.
Aliás, eu nem sabia o que sentia, na verdade. Malu sempre foi um
pensamento constante em minha mente, porque ao invés de poder viver algo
especial com ela, o que me restou foi uma mulher – à qual eu devia respeito,
porque era a mãe das minhas filhas – que nunca me amou de verdade, mas
que ficava muito à vontade com o status que eu lhe oferecia, além de ter
aproveitado muito bem o meu dinheiro. Algo cálido e promissor foi
arrancado das minhas mãos e, em troca, me foi oferecido menos da metade.
Um casamento sem amor, sem cumplicidade, sem harmonia. Sexo frio, sem
sentimento, uma esposa de aparências.
Encontrá-la em um bar, depois de tanto tempo, reavivou lembranças que
eu tinha cuidadosamente embrulhado e guardado em um espaço especial, mas
escondido dentro da minha mente. Foi como abrir uma caixa de pandora; mas
uma que continha uma enorme variedade de sentimentos que faziam com que
me sentisse um homem melhor.
— E a mãe delas? — Malu se esforçou muito para que a pergunta soasse
inocente e sem segundas intenções, mas o que eu vi em seus olhos me deixou
muito satisfeito.
— Laura me deixou há um ano. Está morando em outro país. A última
vez que falou com as filhas foi há uns dois meses, no aniversário da Alice.
— Lamento muito por isso, mas, Lucas, eu não tenho experiência com
crianças.
— Você terá Teresa para te ajudar. Catarina e Alice são ótimas. Um
pouco bagunceiras, sapecas, mas obedientes e muito carinhosas.
Malu sorriu.
— Elas são umas gracinhas.
— Tá vendo? — Apontei para ela, gostando do que via. Aquele
sentimento de ternura era muito doce. Era um que a própria mãe das meninas
nunca reservou para elas. — Ao menos você já gosta delas.
— Não tem como não gostar. Mas é sério. Eu sou formada em
publicidade, Lucas. Não tem nada a ver com crianças.
— Eu me lembro do jeito como cuidava da sua avó. São coisas distintas,
eu sei, mas você é puro amor, Malu... Ou sempre foi. Não vai ser diferente
com duas meninas carentes de afeto.
Ela ficou calada por um tempo, observando-me.
Deus... aqueles olhos. Nunca vi olhos como os de Malu. De um azul
intenso, grandes, expressivos, cheios de nuances. Ela era transparente, como
se eu pudesse ler sua alma inteira apenas na forma como aquelas duas pedras
preciosas se comportavam.
— Você sempre teve bons argumentos.
— Não é a primeira vez que você me diz isso. Sugeriu que eu largasse a
Engenharia e partisse para o Direito. — Mais uma vez meus lábios se
curvaram, e eu me perguntei se tinha sorrido tanto assim nos últimos tempos
sem ser com as minhas filhas. Era o poder daquela mulher sobre mim. Sua
magia. — São tantas lembranças...
— Foi um período intenso — ela falou.
— Alguma vez você se perguntou... — comecei, depois de tomar um
pouco de coragem, mas ela ergueu uma das mãos, me impedindo.
— Não! — falou, resoluta. — Se vou aceitar trabalhar para você, com
suas filhas, não vamos trazer esse assunto à tona. O passado ficou no
passado.
Ergui as mãos em rendição.
— Não vou te assediar, Malu. Vai ser respeitada nesta casa — afirmei
quase com indignação.
Por mais que eu tivesse milhares de pensamentos contrários a isso, jamais
transformaria minha casa em um ambiente desconfortável de trabalho para
ela. Não só porque era Malu, por quem eu nutria um carinho que ia além do
desejo, mas eu faria o mesmo com qualquer mulher.
Era o mínimo.
— Se você precisar de um tempo para pensar... — tentei, sabendo que
estava ansioso demais para uma resposta, mas não era assim tão simples.
Talvez ela tivesse feito planos ou fosse contrária à ideia de se tornar babá das
minhas filhas.
Só que Malu me surpreendeu.
— Não é como se eu tivesse muitas opções, não é? Além do mais, pode
ser divertido. — Com um enorme sorriso, que derreteria até a maior geleira
do Polo Norte, estendeu-me a mão pequena, como quem fecha um acordo. —
Aceito o emprego, Sr. Montanari.
Franzi o cenho.
— Posso retirar a proposta se começar a me chamar assim... — brinquei.
— Não seja bobo. — Rindo, aceitei seu cumprimento. — Quando
começo?
— Quando você pode?
— Bem, eu preciso passar no hotel, pegar minhas coisas, fazer check-out
e depois estou livre.
— Perfeito. Quer uma carona até lá? — ofereci, na intenção de passar um
pouco mais de tempo com ela. O que era uma bobagem, porque ela passaria a
morar na minha casa.
O quão louco era isso?
Malu... dormindo a alguns quartos de distância do meu.
Eu teria que exercer e muito o meu auto-controle.
— Não precisa. Vou e volto.
— Ótimo.
Perdemos alguns instantes em silêncio, olhando um para o outro, e eu
entendi que ainda havia algum tipo de faísca entre nós. Talvez ela tivesse
minguado e se tornado frágil demais para causar um incêndio. Mas
sobrevivera a seis anos de distância, sem nenhum contato. O que aconteceria
com ela a partir dali?
Pois eu poderia apostar que minha história com aquela mulher não
tinha terminado. Ainda haveria um final feliz para nós. E eu não iria
desperdiçar a chance daquela vez.
CAPÍTULO SEIS
Pedi para o táxi me esperar na entrada do hotel, então subi para pegar
minha mala – que ainda estava feita – e desci, fazendo check-out, pagando e
me enfiando novamente no carro.
Durante o trajeto de volta para a casa de Lucas, fiquei me perguntando se
tinha mesmo sido a decisão correta. Por mais que a oportunidade tivesse
caído do céu, e que provavelmente fosse a melhor que poderia receber, tão
repentinamente e de uma pessoa confiável, ainda seria complicado. Muito
complicado.
Meu Deus, era Lucas! O cara que foi protagonista de muitos dos meus
pensamentos por anos. Mesmo durante meu relacionamento com Jonas, volta
e meia eu sonhava com ele. E, por mais que pudesse ser considerado ridículo,
nunca eram sonhos inocentes. Na maioria deles, nós estávamos fazendo tudo
o que não tínhamos feito na vida real.
O que era muita coisa, levando em consideração que tudo que levei de
Lucas comigo foi um beijo. Um único beijo que abalou minhas estruturas de
forma irrevogável.
O quão patética isso me tornava?
E agora eu seria babá de suas filhas.
Mas ok. Eu poderia relevar o passado para apenas trabalhar, aceitar o
emprego, fazer o meu dinheiro e seguir em frente. Seria algo temporário, é
claro, apenas para eu me estabelecer.
Preferi não tomar café da manhã para acelerar as coisas, e enquanto
descíamos e eu esperava um táxi, Lucas me deu uma perspectiva de salário, e
era um bom valor. Muito melhor do que qualquer emprego que eu
conseguiria em cima da hora, em uma cidade como Montes Altos. O que
sobraria para mim seria algo como garçonete, vendedora ou balconista, que
não pagaria nem metade. Ou seja, eu não poderia estragar tudo. Poderia
suportar a convivência por alguns meses. Pelas crianças, ao menos... elas
eram fofas.
Daria certo, não daria?
Claro que sim!
Foi com essa confiança que pedi para o taxista estacionar e o paguei, mas
ela desapareceu em tempo recorde quando a porta ao meu lado foi aberta por
Lucas, em toda a sua beleza utópica, com um sorriso nos lábios incríveis.
Aquele filho da mãe sempre foi um cavalheiro.
— Sua mala está no bagageiro? — ele perguntou, e eu assenti. Fez um
sinal para o taxista e fez todo o procedimento que eu teria que fazer, só que
com muito mais facilidade, com aqueles braços musculosos e tudo o mais.
Foi difícil, inclusive, não dar uma olhada bem maliciosa para eles, no
momento em que Lucas ergueu a mala do compartimento, ainda mais que ele
estava usando uma blusa branca, de gola V, de meia manga, e eu conseguia
ver cada mínima elevação de seu bíceps.
Mínima? Eu disse mínima? Não havia nada no diminutivo em relação
àquele homem.
Lucas fez um sinal de positivo para o motorista, que deu um meneio de
cabeça e saiu, deixando-nos parados na porta de sua linda mansão.
— Que honra ser recebida pelo Sr. Montanari em pessoa — zombei,
tentando disfarçar meu constrangimento.
Lucas ergueu uma sobrancelha, confuso.
— E por que isso? — Dei de ombros, sem saber muito bem como
responder, porque, definitivamente, eu já nem sabia direito o que estava
falando. A presença dele sempre me desconcertava. — Independentemente de
você trabalhar para mim, com minhas filhas, você é minha amiga. Isso não
vai mudar.
Uma brisa forte bateu, bagunçando meu cabelo, e eu me apressei em
colocar uma mecha atrás da orelha antes que atingisse meu olho. A
intervenção nos colocou em silêncio, olhos nos olhos, e eu me perguntei
quantas vezes mais aquilo iria acontecer. Quantas vezes mais iríamos nos
perder em momentos como aquele, nos quais ficava muito clara a quantidade
de assuntos inacabados que existiam entre nós.
— Você já almoçou? — ele cortou meus pensamentos, e eu sorri,
balançando a cabeça em negativa.
— Não tive tempo. Parei muito rápido no hotel para pegar minhas coisas
e deixei o táxi esperando.
— Ótimo. Vou pedir a Tereza que coloque mais um lugar à mesa. Temos
uma convidada hoje. — Lucas deixou no suspense, e por mais curiosa que eu
pudesse estar, não fiz perguntas, apenas o segui pelas escadas, enquanto ele
as subia em direção à porta da bela mansão onde morava. — É a madrinha de
Cathy e Alice.
Ele não parecia muito animado, mas, novamente, não fiz perguntas. Não
adiantava o quanto Lucas esperasse que eu fosse me abrir ou demonstrar
qualquer tipo de sentimento. O combinado era que cuidasse de suas filhas e
fosse paga por isso. Precisava erguer barreiras ao redor do meu coração antes
que começasse a desejar coisas que não poderiam me pertencer.
Entramos na casa, e ele me ajudou a levar a mala pelas escadas,
deixando-a no meu quarto. O mesmo onde passei a noite.
— É aqui que eu vou ficar? — perguntei, surpresa.
— Por que não seria? — Ele levou as mãos aos bolsos da calça jeans, e
tive a leve impressão de que, assim como eu, não se sentia tão à vontade
quanto tentava demonstrar.
— É que é um quarto de hóspedes, né?
Ele ergueu as sobrancelhas, sorrindo.
— E você vai dizer que não é uma hóspede, que é minha funcionária e
blá, blá, blá. Até onde sei, Malu, sou o dono da casa e posso colocar a babá
das minhas filhas onde eu achar conveniente. Este quarto fica ao lado do
delas. É uma pura questão de praticidade.
Assenti, sabendo que não haveria jeito de discutir.
— Bem, vou te deixar à vontade, mas te esperamos na sala de jantar.
Descendo as escadas, atravesse o hall de entrada e vire à esquerda. Vai
encontrá-la sem dificuldade, especialmente se seguir as vozes das crianças.
— Tudo bem. Não vou demorar. Só jogar uma água no corpo.
Lucas deu uma piscadinha com um sorriso de canto.
Ah, pelo amor de Deus... Se ele ficasse fazendo aquele tipo de coisa seria
muito difícil me manter firme no propósito de não permitir que me afetasse.
Para a minha sorte, ele saiu logo em seguida, fechando a porta e me
dando um pouco de privacidade.
Joguei-me na cama imediatamente, respirando fundo e concedendo a mim
mesma alguns instantes para me recompor, já que não tive muito tempo para
absorver tudo o que aconteceu em pouco mais de vinte e quatro horas.
Eu saí da minha cidade e fui procurar meu noivo.
Eu descobri que meu noivo estava me traindo.
Eu fui a um bar, decidida a afogar as mágoas e transar com o primeiro
desconhecido que aparecesse.
Eu não transei com ninguém, mas me deparei com Lucas – o cara por
quem fui loucamente apaixonada anos atrás.
Eu desmaiei de bêbada e esse mesmo cara me levou para sua casa.
Eu fui contratada como babá de suas duas filhas.
Ok. Era um resumo bem razoável dos fatos.
Só que o que tinha acontecido eu poderia entender e aceitar. O que ficava
mais difícil era tentar prever o que seria da minha vida a partir daquele
momento. O que mais iria acontecer?
No entanto não era hora para isso, porque eu, de fato, estava com fome.
Abri a mala e peguei a primeira roupa que vi por cima – que se tratava de
um macacão simples, em um tom de lilás, com uma calça curta. Como ele
não tinha mangas, decidi usar também a jaquetinha branca que estava do lado
de fora da bolsa, porque a peguei sobre a cadeira do hotel. Entrei em um
banho rápido, penteei meus longos cabelos castanhos e passei um pouco de
maquiagem.
Desci em seguida, encontrando a sala de jantar sem muita dificuldade,
porque, exatamente como Lucas indicara, as vozinhas das meninas serviram
como guia.
A primeira coisa que vi foi que havia quatro pessoas à mesa. As
garotinhas, Lucas e uma loira muito bonita. Cabelos lisos na altura do ombro,
olhos grandes e azuis, elegante, bem vestida e parecia bem alta.
Provavelmente bem mais do que eu, que tinha um metro e sessenta e seis (e
meio). Ela ria com as crianças, que pareciam adorá-la.
Foi preciso que eu me aproximasse um pouco para perceber que não era
um rosto completamente estranho para mim. A mulher que ergueu os olhos
na minha direção chamava-se Patrícia, e ela era a melhor amiga da ex-mulher
de Lucas. Eu me lembrava muito bem das duas, do quanto o rondavam, do
quanto não saíam do pé dele. E depois, quando Laura, a mãe das meninas,
apareceu com o bebê, senti que eu precisava ser descartada, e elas fizeram de
tudo por isso. Era o tipo de amizade que se assemelhava com uma cobra
tentando provar que era mais venenosa que um escorpião. E, definitivamente,
Patrícia vencia.
Sempre percebi a forma como olhava para mim, quando me via com
Lucas. Principalmente porque quando começamos nossa amizade, ele ainda
estava saindo com sua amiga. Só que além de eles não terem nada sério,
nunca a traiu comigo. O único beijo que aconteceu... Bem... foi depois de eles
terem terminado.
Só que Catarina surgiu na situação...
E essa era a nossa história.
Um conto de fadas sem o felizes para sempre. E se essa era a questão, a
mulher sentada à mesa era a bruxa má.
Por um momento, torci para que não se lembrasse de mim, mas foi
preciso que pensasse só um pouco, e eu pude ver perfeitamente em seu rosto,
em sua expressão, o momento do reconhecimento.
O sorriso de antes se transformou em uma expressão de escárnio, como se
eu fosse a escória da humanidade. O proletariado, enquanto ela era a nobreza.
Tecnicamente, era mais ou menos isso, já que o pai dela era prefeito de
Montes Altos na época. Eu nem sabia o que tinha acontecido com ele, mas
Patrícia, sem dúvidas, continuava com seus ares de petulância.
E em nenhum momento duvidei de que ela estava ali com um propósito, e
não era visitar as afilhadas. Ela estava ali por Lucas. Sempre quis roubá-lo de
Laura, só que esta nunca pareceu perceber.
Mas eu percebia, e, naquele momento, ao me ver, o olhar que me lançou
dizia que estava pronta para entrar em uma guerra.
Coitada... podia aguardar sentada. Eu não tinha interesse em um estresse
daquele tamanho. Só queria fazer meu trabalho e não entregar meu coração
mais uma vez.
Esperava apenas que esse mesmo coração não seguisse outro caminho e
decidisse se render sem que eu nem percebesse.
CAPÍTULO SETE
Então era oficial. Malu estava na minha casa não apenas como uma visita,
mas iria passar a morar ali. Cuidar das minhas filhas. Jantar comigo todos os
dias. Tomar café da manhã. Estaria presente nos finais de semana... sempre
tão próxima... próxima demais e ao mesmo tempo tão distante.
Eu poderia voltar atrás. Seria bem escroto da minha parte, já que era um
homem de palavra, mas poderia encontrar outra forma de ajudá-la. Indicá-la
para trabalhar com algum amigo, emprestar dinheiro... Qualquer coisa para
mantê-la longe, já que não havia nenhuma dúvida de que ela ainda mexia
comigo.
Só não sabia até que ponto.
Mas no momento em que eu contasse às minhas filhas, não haveria como
voltar atrás, então, foi por isso que acelerei o processo. Levantei-me,
aproximei-me dela e coloquei uma mão na curva de suas costas, de forma
respeitosa e gentil, conduzindo-a um pouco mais para frente, e sorri para as
meninas, que pareciam confusas.
Patrícia não parecia tanto. Era fácil imaginar que se lembrava de Malu, de
anos atrás, e as duas nunca se deram bem. E com motivo, é claro. Ela e Laura
sabiam que havia algo de especial em nós.
— Meninas, acho que vocês já conheceram a Malu esta manhã, não é? —
comecei, torcendo para que elas gostassem da notícia.
— Maía! Maía! — Alice começou a falar, batendo palminhas, sentadinha
em sua cadeira de bebê.
— Papai e Malu são amigos de muitos anos, e ela estava precisando de
um emprego. Lembra que eu falei que queria contratar uma babá para cuidar
de vocês? Aqui está ela.
— Quem nem a Noviça Rebelde, né, papai? — Catarina perguntou,
também parecendo satisfeita, mas era um pouco mais blasé. O que sempre
achei uma gracinha. Ela sempre tentava se mostrar tão adulta, tão madura.
— Quase isso, filha.
— Você sabe cantar que nem ela? — Minha filha mais velha olhou para
Malu cheia de esperança, e esta apenas riu cheia de doçura.
Naquele momento, voltei-me para ela, dedicando-lhe toda a minha
atenção.
— Não se eu puder evitar. Mas sou ótima contando histórias. — Malu
deu uma piscadinha para a minha filha, o que a fez sorrir.
— Hitóias! Papá côta hitóias pra gente antes de mimir! — Alice vibrou
mais uma vez, e eu entendi que aquilo poderia dar certo.
— Sim, sim, o papai conta, e agora a Malu também vai contar. Bem, já
que está tudo resolvido, vamos comer. Quem está com fome? — perguntei
animado, enquanto puxava a cadeira para Malu se sentar. Com um lindo
sorriso, ela agradeceu, e eu ouvi as vozes das meninas respondendo que
estavam famintas.
Percebi quando o olhar de Malu foi direto em Patrícia, que a observava,
com os cotovelos sobre a mesa e as mãos entrelaçadas sob o queixo.
— Eu me lembro de você — Patrícia falou, enquanto Malu ajeitava o
guardanapo de pano no colo. — Neta daquela costureira, né?
A palavra costureira saiu de sua boca com leve desdém, o que me fez
remexer na cadeira.
— Sim. Dona Alzira. Fez muitos serviços para a sua mãe, inclusive,
Patrícia — Malu respondeu sem perder a altivez.
Patrícia sorriu com escárnio.
— Acho que você deveria me chamar de D. Patrícia ou de senhorita.
Como Teresa faz. Aliás, Teresa não come à mesa. — Voltou-se para mim,
girando o corpo. — Por que essa distinção, Lucas?
Precisei respirar muito fundo ou iria explodir.
A verdade era que Patrícia nunca foi uma presença muito bem-vinda na
minha casa, ao menos para mim. Quando Laura morava conosco eu podia
entender, já que ela e minha ex-esposa eram tão amigas, mas depois... eu não
conseguia acreditar que tinha tanto interesse assim em ver as afilhadas.
Eu não era idiota, e sabia muito bem que o interesse dela era em mim. Só
que não iria permitir que ficasse marcando território quando não tinha o
menor direito de fazê-lo.
— Malu será babá das crianças, mas, antes de mais nada, ela é minha
amiga. Isso nunca vai mudar. — Abri um sorriso bem antipático, do tipo que
eu usava em reuniões de negócios quando queria intimidar um cliente ou um
parceiro. — Além do mais, Patrícia... até onde eu lembro, esta é a minha
casa. Come à mesa comigo quem eu quiser.
— É claro, Lucas... o que estou querendo dizer é que Teresa sempre foi
uma mãe para você, e mesmo assim...
— Teresa pode fazer o que quiser aqui. Se ela quiser comer à mesa
conosco, sempre será bem-vinda, mas ela prefere comer na cozinha, porque
gosta de silêncio e de ler enquanto faz as refeições. — Peguei o guardanapo
para imitar Malu. — Mas, mais uma vez... com todo o respeito, não acho que
isso seja da sua conta.
Finalmente Patrícia calou a boca. Sinceramente...? Quem ela pensava que
era para destratar Malu daquela forma? Em qual mundo achava que era
melhor que a mulher ao meu lado à mesa?
— Papai! — Catarina chamou a minha atenção, arrancando-me dos meus
pensamentos. — Eu preciso comprar uma roupa para a festinha do pijama na
sexta que vem.
— Roupa? Festa do pijama não é com... pijamas? — Ergui uma
sobrancelha, enquanto me servia de uma porção de peixe. — Você tem
muitos.
— Mas o tema é urso panda, e eu queria um pijaminha que fosse de
pandinha. — Lá estava o biquinho que me matava.
Cathy não era uma criança voluntariosa, mas ela sabia exatamente
como me convencer a qualquer coisa que queria. Talvez pelo fato de sua mãe
ser tão ausente, eu acabava fazendo suas vontades sem nem perceber.
— Tudo bem. — Voltei-me para Malu. — Você acha que consegue
levar as meninas ao...
— Ah, Lucas, deixa que eu levo! — Patrícia me interrompeu. —
Poxa, eu quase nunca fico com elas. Além do mais, a Malu chegou hoje, deve
ter um monte de coisas para arrumar.
Eu não confiava muito em Patrícia com minhas duas filhas, mas
Cathy começou a comemorar, e eu não tive como refutar.
— Tudo bem, tudo bem. Mas Alice não vai. — Provavelmente
Patrícia lidaria melhor com uma criança do que duas.
— Puquê? — minha caçulinha fez beicinho e cruzou os braços,
fazendo-me crer que estava tendo algumas aulas de persuasão com a irmã.
— Porque você precisa ajudar a Malu a se instalar na casa, Coelhinha
— respondi, dando uma piscadinha para ela. — É uma missão muito
importante.
— Pôtanti? — ela repetiu, com os olhinhos arregalados. — Cati, eu
sou pôtanti! — Virou-se para a irmã com uma das mãozinhas para o alto, e a
mais velha limpou a boquinha cheia de elegância, levando uma das mãos ao
cabelinho loiro da irmã, como se houvesse uma diferença de idade muito
maior entre elas.
— Você é, maninha. Você é importante.
Fiquei um pouco de tempo parado, perdido olhando para elas,
sentindo o coração doer de amor. Como era possível que duas criaturas tão
pequenas pudessem ocupar um espaço tão grande dentro do meu peito. Eu
amava ser pai delas, mesmo que as circunstâncias que nos rondassem não
fossem as melhores.
— Ótimo! Tudo resolvido, então. Eu e Cathy vamos ter um dia de
meninas, e a babá fica com Alice.
— Malu! — quase rosnei, encarando o prato por alguns instantes e
ouvindo o silêncio ao redor da mesa. Lancei um olhar feroz para ela,
percebendo-a muito assustada, com a mão no peito. Talvez eu tivesse soado
mais rude do que pensei. — O nome dela é Malu.
Voltei-me para a pessoa mencionada, ao meu lado, e ela estava com
aqueles olhos incríveis fixos em mim. Reparei que seu prato ainda estava
vazio.
Depois do meu rompante, recomeçamos a comer, em silêncio, e até as
crianças não falaram mais nada.
Mas é claro que tinha que ser Patrícia a nos brindar com o ar de sua
graça.
— E como vai a D. Alzira, Malu? Estou precisando apertar alguns
vestidos, porque eu andei emagrecendo. Será que ela teria um horariozinho
para mim?
Sentindo o ar me faltar, engoli a garfada que vinha mastigando e a
senti descer pela minha garganta como um nó enorme.
D. Alzira morrera um pouco antes de eu e Malu termos...
Bem... terminado não era a palavra certa para descrever algo que
nunca sequer começou, então eu iria dizer: antes de eu e Malu perdermos a
chance de ficarmos juntos.
Então Patrícia sabia muito bem que a simpática senhorinha que
conheci não estava mais viva. Ainda assim, ela não poupou ninguém de seu
veneno.
— Minha avó morreu há mais de seis anos — Malu falou com pesar.
Ela era louca pela avó; eu sabia que aquilo ainda deveria doer.
— Meus vovós também morreram. Os pais do meu papai, sabe? —
Malu não sabia dessa informação, então olhou para mim, parecendo
penalizada. Mas minha menininha logo continuou: — A mãe da minha
mamãe mora em Paris — Cathy falou em solidariedade a Malu, e eu amei a
minha garotinha mais ainda naquele momento. — Você sente falta da sua
vovó?
Vi os olhos de Malu marejarem, mas ela sorriu com doçura para a
minha filha.
— Sim, querida. Muita. — Discretamente, limpou a lágrima que caiu,
e a minha vontade, naquele momento, foi simplesmente passar meu braço ao
redor dos ombros dela e apertá-la contra mim, deixando que chorasse contra
o meu peito.
— Eu sinto falta da minha mamãe também. Mas ela foi trabalhar tão
longe... — Catarina divagou, remexendo a comida.
— Sua mamãe sente falta de você, lindinha — Patrícia começou. —
Quando voltar, ela vai trazer um monte de presentes.
Voltar... como se Laura estivesse em uma viagem de férias. Ela não ia
voltar; no máximo fazer uma visita social em alguma data comemorativa.
E ela não foi trabalhar... Ela quis se livrar da responsabilidade de ser
mãe. Quis viver uma vida livre, sem um marido e duas crianças a sugarem
sua juventude e seu tempo. Ninguém sabia que ela vivia com o meu dinheiro,
uma mesada que eu pagava depois de ameaçar tirar as meninas de mim.
Eu sabia que ela não cumpriria, mas não quis arriscar. Talvez ela
tentasse só para me afrontar. Dinheiro eu tinha muito. Minhas filhas eram
insubstituíveis.
— Vocês se importariam se eu me retirasse? — Malu falou baixinho
ao meu lado, enquanto já começava a se levantar. Eu sabia que o assunto de
sua avó a tinha afetado, mas ela estava tentando se manter firme.
De súbito, antes que pudesse se afastar, segurei seu punho, mantendo-
a um pouco mais ali.
— Você não comeu quase nada.
Sorriu, quase tímida, mas agradecida.
— Não estou com fome agora. Se puder, mais tarde, peço algo à
Teresa.
Não pude mais mantê-la ali, então, soltei seu braço e a observei
afastar-se, o que me remeteu ao dia em que ela foi embora de Montes Altos,
quando se despediu, e eu não pude segui-la; não pude impedi-la.
Daquela vez, ela demorou seis anos para voltar. Agora, Malu estava a
apenas alguns cômodos de distância.
Algo me dizia que eu não poderia deixá-la partir novamente. Nunca
mais.
CAPÍTULO OITO
Quem aquela idiota pensava que era?
Senhorita Patrícia... Uma ova!
Eu não ia me rebaixar a ela àquele ponto.
Cheguei no meu quarto bufando e joguei uma água no rosto para tentar
me controlar. Pousei as mãos na bancada, olhando-me no espelho, e respirei
fundo. Era apenas o primeiro dia, e eu já estava tendo problemas.
Aquela não era uma boa ideia... definitivamente.
Mas fosse como fosse, a decisão já tinha sido tomada, não? Não podia
abandonar Lucas, muito menos aquelas menininhas. A forma como Catarina
falara sobre sua mãe fora quase como um tiro no meu peito. Nenhuma
criancinha merecia aquela indiferença.
Não que eu acreditasse que poderia substituir sua mãe, mas enquanto
estivesse naquela casa, ela nunca mais se sentiria abandonada.
De fato, eu não tinha experiência com crianças. Provavelmente iria errar
mais do que acertar, mas faria o meu melhor. Queria que aquelas duas lindas
garotinhas só tivessem motivos para sorrir.
E seu pai também.
Ah... Deus – pensei, enquanto me sentava na cama, depois de voltar para
o quarto, levando ambas as mãos ao rosto –, por que tudo tinha que ser tão
complicado?
Respirei fundo e ouvi alguém entrando. Demorei um pouco ainda para
erguer os olhos, mas lá estava ele – o motivo de todas as minhas
preocupações.
O filho da mãe precisava ser tão bonito?
Ele foi se aproximando, com as mãos no bolso, até parar diante de mim.
— Patrícia e Catarina já saíram. Deixei Alice com Tetê um pouco e...
Rapidamente o interrompei, começando a me levantar da cama.
— Então eu preciso ficar com ela.
Com as mãos nos meus braços, ele me forçou para baixo e se agachou na
minha frente, equivalendo nossas alturas.
— Eu vim aqui para conversarmos. Sem crianças. Porque preciso que
você entenda uma coisa... Ela não é importante aqui. É madrinha das
crianças, mas não tem espaço na minha casa. Você, a partir de agora, terá —
a voz sussurrada quase me provocou um arrepio.
— As meninas parecem gostar dela.
— Gostam, porque ela força isso. Presentes, passeios... Patrícia não é
boba.
— Não. E ela quer você — saiu sem que nem percebesse. E eu esperei
que não parecesse algum tipo de ciúme ou inveja, mas pela expressão de
Lucas, ele não encarou assim. Só que também não negou que aquela fosse
mesmo a intenção de Patrícia.
— Não tenho interesse na Patrícia. Já passei bastante tempo com uma
mulher parecida com ela, e, com todo o respeito à minha ex-esposa, não é
uma experiência que eu queira repetir.
Preferi não comentar nada sobre aquilo, muito menos aceitar que a ideia
de ele se interessando por Patrícia poderia me machucar.
Estávamos separados há seis anos. Já estava mais do que na hora de não
me afetar por uma possível relação amorosa de Lucas.
— Você não precisa me explicar nada.
— Preciso, a partir do momento em que uma convidada da minha casa foi
ofensiva de alguma forma.
— Não me senti ofendida.
— Mas eu, sim. Se ela é capaz de ser tão pouco gentil com uma pessoa
que é — ele hesitou, e seus olhos profundos capturaram os meus, como se ele
quisesse que eu lesse nas entrelinhas. Mas logo prosseguiu: — Uma pessoa
que é importante para mim... isso me ofende.
— Sou a babá das suas filhas agora, Lucas. Talvez eu realmente devesse
fazer minhas refeições com a Teresa e...
— Não! — ele falou em uma voz de comando que quase me fez
sobressaltar. Então colocou-se de pé, passando a mão pelos cabelos lisos. —
A não ser que você queira, é claro. Mas além de querer sua companhia, é
bom que as meninas tenham alguma assistência enquanto comem. Alice,
principalmente.
Eu conhecia Lucas e sabia que ele era bom com palavras e com
persuasão. Sabia qual era o seu jogo naquele momento. Estava usando as
meninas e minha obrigação para com elas para me convencer. E tudo bem,
era quase... fofo.
— Que seja, Lucas. Mas você sabe que se não impusermos alguns limites,
as coisas podem ficar complicadas. Somos amigos, ok, mas estou prestando
um serviço, vou ser paga por isso. Não quero um tratamento diferente só
porque tivemos um passado. Se eu fizer algo de errado, quero que me
repreenda e que me avise. Se achar que eu sou péssima para a função, não
pense duas vezes em me pedir para sair e procurar outra pessoa.
— Malu, eu...
— Lucas... — eu o interrompi. — Se não for assim, é melhor nem
começarmos. É um emprego, e quero que funcione dessa forma.
Eu já tinha sofrido demais por ele no passado, pelo que não vivemos, não
queria começar a alimentar uma ilusão, sendo que não fazia ideia do que
aconteceria dali em diante.
Ele respirou fundo, parecendo como se tivesse perdido uma batalha.
— Tudo bem, vai ser como você quiser.
Com isso, levantei-me.
— Ótimo. Que bom que nos entendemos. Agora vou começar meu
trabalho e cuidar de Alice.
Passei por ele, saindo do quarto e seguindo em direção à criança, como
falei que iria fazer.
A primeira tarefa daquele dia era ligar para a transportadora e indicar o
novo endereço onde ficaria, para que minhas coisas fossem entregues.
Durante a tarde, peguei algumas dicas com Teresa e tirei horas para
conhecer. Alice melhor. Minhas conclusões foram de que seria muito fácil
cuidar dela. Era sapeca, sim, mas doce, falante, carinhosa e tinha uma
adoração deliciosa pela irmã. Descobri que era fascinada pela Disney, então,
passamos a tarde assistindo um filme da escolha dela: Frozen. E um da
minha: A Bela e a Fera. Cantamos as músicas juntas, e durante uma delas eu
vi Lucas nos observando de longe.
Era difícil interpretar o que se passava por sua cabeça, mas poderia jurar
que perdi uma cena inteira do filme, completamente absorvida pela força de
seu olhar que prendia o meu como puro magnetismo. Nenhum de nós se
intimidou, e eu comecei a me perguntar se nossa conversa de mais cedo teria
valido de alguma coisa.
Só que se Lucas não iria colaborar, precisava ser eu a tomar a iniciativa
de estabelecer os limites.
Desviei o olhar depois de um cumprimento de cabeça quase formal e
voltei minha atenção para a TV e para a pipoca que eu e Alice dividíamos.
Foi uma tarde deliciosa, mas quando Catarina chegou, a atenção de minha
companheirinha foi toda roubada pela irmã mais velha. Patrícia veio com ela,
cheia de bolsas, e a menina ficou tagarelando ao pai tudo o que a madrinha
tinha lhe dado de presentes e todos os que compraram para Alice também.
Fiquei de fora, observando-os, até que Lucas pediu que eu levasse a
menina para tomar um banho.
Quando chegamos, sozinhas, ao quartinho dela, percebi que a pequena
estava muito estranha, calada e séria, sendo que estivera radiante minutos
atrás.
Então, fiz um teste.
— Ei, Tatá — usei o apelido que criei —, eu e sua irmã estávamos
assistindo a filmes da Disney. Acho que dá tempo de vermos mais um. Qual é
o seu preferido? — perguntei, tentando soar gentil e divertida, enquanto abria
a cômoda para pegar um pijaminha para ela. Ainda estava um pouco perdida,
mas Teresa tinha me direcionado, e eu sabia onde ficavam as coisinhas de
cada uma das duas, embora, provavelmente, ainda fosse cometer alguns
erros.
Só que Catarina não me respondeu, apenas continuou virada de costas
para mim, sem me olhar nos olhos, com os bracinhos cruzados.
O que poderia ter acontecido naquela tarde para a menina mudar tanto de
comportamento?
— Tatá? — Aproximei-me, colocando a mão em seu ombro, mas ela a
empurrou, comprovando que havia mesmo algo de errado.
— Não me chama assim. Meu nome é Catarina!
Arregalei os olhos diante de sua atitude.
Girei para ficar de frente para ela, mas, como a criança de seis anos que
era, novamente tentou se colocar de costas, mas não deixei. Segurei seus
bracinhos com gentileza e a fiz olhar para mim.
— Querida, o que aconteceu? Fiz alguma coisa que te deixou chateada?
— indaguei com paciência.
Ela tentou se desvencilhar, e eu permiti, mas daquela vez não me deu as
costas, apenas recuou alguns passos, como se eu fosse contagiosa. Sua
carinha linda exibia uma expressão de descontentamento, e meu coração se
apertou. Por que ela parecia me odiar tanto se, mais cedo, jurei que seria tão
promissor?
Mas a resposta não demorou a surgir na minha cabeça: Patrícia.
Claro. Como não?
Agachei-me para ficar da altura dela e continuei olhando-a.
— Sua dinda te falou alguma coisa? — baixei o tom de voz, usando de
todo o tipo de psicologia que minha mãe usou um dia comigo. Eu não era
muito experiente, mas tive um bom exemplo.
Ela cruzou os braços mais apertados, parecendo ainda mais emburrada.
— Você está aqui para roubar o lugar da minha mãe. Tia Patrícia disse
que minha mãe está pensando em voltar para casa, mas não vai fazer isso
com você aqui.
Cruel. Deus... que mulher cruel!
Usar a mãe da menina para colocá-la contra mim. Aproveitar-se da
carência de uma criança para manipular seus joguinhos vis.
Ela ia me ouvir. Mas primeiro eu precisava cuidar daquela garotinha.
Ajoelhando-me literalmente, estendi a mão para ela. Catarina recuou de
novo. Seria difícil.
— Isso não é verdade, querida.
— Tia Patrícia não ia mentir para mim. Ela falou que eu deveria confiar
nela, que me ama há muito tempo, e não numa pessoa que eu não conheço!
Ela também falou que você e meu papai já namoraram. Isso é verdade?
Como eu poderia mentir para aquela menina? Como começaria uma
relação com ela com aquela mácula?
Por mais que não fosse exatamente verdade que eu e Lucas tínhamos
namorado – porque nunca houve esse termo entre nós –, para uma criança um
beijo poderia ter aquele peso, não? E, de fato, existia um sentimento. E eu
não seria hipócrita de dizer que não acreditava que era recíproco. Lucas
gostava de mim. Amor? Talvez... Mas era algo forte, e para uma menininha
de seis anos que era apaixonada por contos de fada, não havia nada mais
significativo do que um beijo de amor, não é?
— De certa forma, sim — respondi muito calma, e ela ia falar alguma
coisa, mas eu ergui um dedo. Apesar de sua raiva, era obediente o suficiente
para não sobrepor à autoridade de um adulto, então, ficou calada. — Mas isso
não quer dizer nada. Somos amigos. Você tem as suas amiguinhas também,
não tem? — Ela assentiu, balançando a cabecinha. — E se você soubesse que
uma delas está precisando de muita ajuda, você não a ajudaria? — Catarina
repetiu o movimento, com mais veemência. — Foi o que aconteceu. Seu
papai é um homem muito bom e decidiu me ajudar. E eu não quero roubar o
lugar da sua mamãe. Se ela quiser voltar, eu vou ficar muito feliz, porque
vocês estarão felizes. Entendeu?
Pela terceira vez, a menina balançou a cabeça, mas eu tinha a impressão
de que não estávamos tão de acordo assim. Era muito óbvio que iria ficar do
lado de alguém que já conhecia, não iria aceitar como verdade a palavra de
uma mulher que entrara em sua vida naquele mesmo dia.
Era um obstáculo que eu precisaria ultrapassar. Não poderia ser assim tão
fácil, né?
Acompanhei Catarina no banho, e, ainda bem, ela sabia fazer tudo
sozinha. Teresa me prometeu que ajudaria com Alice naquela noite, então, a
mais velha colocou um pijaminha fofo de Moana – filme que, inclusive, ela
começou a ver com a irmã, depois que descemos.
Deixei-as sozinhas, apesar dos convites de Alice, porque tinha algo
importante a fazer.
Vi que Lucas e Patrícia estavam do lado de fora da casa, no jardim. Ela
fumava, e ele falava algo com ela, parecendo um pouco acalorado.
Saí de fininho, na intenção de ouvi-los, sentindo-me uma fofoqueira.
— Não, Patrícia... eu não tenho intenções de ligar para Laura. Ela deveria
procurar as filhas. As meninas sentem falta dela.
— Mas, então, está na hora de começar a pensar em alguém para a sua
vida, Lucas. Você é um cara jovem, tão bonito... não pode ficar sozinho para
sempre.
— E nem pretendo — ele respondeu com veemência.
Ah, merda! Imediatamente paralisei, temendo o futuro. O que aconteceria
quando Lucas arrumasse uma namorada? Quando surgisse apaixonado por
alguém, apresentando a mulher para as crianças e para mim?
Era um risco que eu precisava correr, embora não pensasse em ficar
naquele emprego por tanto tempo. Juntaria algum dinheiro e continuaria
buscando novas oportunidades. Não apenas em Montes Altos, mas em outras
cidades. Talvez voltar para o Rio fosse uma opção...
Só que, naquele momento, eu tinha uma pendência para resolver.
Eles continuavam conversando, mas decidi interromper antes que ouvisse
mais alguma coisa que não estava interessada em ouvir.
Assim que me viram, cada um teve reações diferentes. Lucas lançou-me
um daqueles olhares que quase me desmontavam, e Patrícia me fuzilou, cheia
de ódio.
Ótimo, porque era o que eu sentia por ela também.
— Lamento interromper, mas vou ser rápida. E, Lucas — voltei-me para
ele —, já peço desculpas desde já pelo que vai acontecer. Se quiser voltar
atrás na minha contratação, vou entender, mas sabe que não sou de levar
desaforo para casa. — Ele ergueu as sobrancelhas, surpreso. Então, olhei para
Patrícia. — Na próxima vez que sair com uma das meninas, não mencione
meu nome. Esqueça que eu existo, porque se tentar me colocar contra uma
delas, vai se arrepender.
— O que aconteceu? — Lucas perguntou, parecendo indignado.
— Essa mulher é louca! — Patrícia alterou-se. — Mal chegou e já quer
criar intrigas entre nós!
Soltei uma risada cheia de sarcasmo.
— Te dei o recado. Seria bom se você, ao menos, tivesse respeito pelas
crianças e não magoasse os sentimentos delas.
Na intenção de fazer uma saída triunfal, dei as costas para os dois e saí
andando de volta para a casa, enquanto Lucas chamava o meu nome, mas não
dei atenção. Se quisesse descobrir o que tinha acontecido, que viesse atrás de
mim.
Nós éramos amigos, e não apenas patrão e funcionária. Não foi o que ele
me disse? Que fizesse valer o título, porque eu não iria aguentar desaforos em
sua casa calada. Muito menos daquela forma.
CAPÍTULO NOVE

Mas o que diabos tinha acontecido ali?


A expressão furiosa de Malu e a forma como se defendeu deveria me
dizer um milhão de coisas, mas sentia-me tão atordoado que mal tinha
conseguido me mexer da posição em que estava: de costas para Patrícia,
ainda observando o caminho que ela seguira, ponderando ir atrás dela, mas
ansioso para saber o que tinha acontecido. Dependendo do que fosse,
precisava dar um jeito na pessoa que causou o problema todo.
— Eu nunca fui com a cara dessa garota, Lucas. Acho um absurdo você
colocar uma pessoa dessas para cuidar das meninas. Não sei se...
— Cala a boca! — Voltei-me para ela finalmente, explodindo. — Que
merda você falou para a Cathy?
— Não disse absolutamente nada. Essa tal de Maria Luísa já está
querendo criar intrigas entre nós logo no primeiro dia.
Ergui um dedo em riste, sentindo o sangue correr ardendo dentro das
minhas veias. Pelo amor de Deus... era difícil alguém me tirar do sério
daquela maneira, mas me sentia prestes a explodir.
— Você pode tentar me enganar, Patrícia, mas uma das duas, ou Malu ou
Cathy, vão me contar. Posso pensar em ficar menos puto se ouvir da sua
boca.
Ela parecia quase assustada. Não era para menos, porque nunca tinha
falado daquela forma na sua frente. Na verdade, era muito raro alguém me
ver tão alterado. Só que, infelizmente, o tema que mais me irritava era a
injustiça, e eu sabia que tinha acontecido uma ali.
Depois de se recuperar, Patrícia revirou os olhos e suspirou.
— Não foi nada de mais. Quero que as meninas fiquem espertas.
Conheço Malu, ela sempre quis um pedaço de você. Ela te roubou da Laura, e
eu não posso ser simpática a uma pessoa que quase separou minha melhor
amiga do cara que ela amava.
Uma risada sarcástica escapou do meu peito.
— Malu não me roubou de ninguém. Eu a queria. Estaríamos juntos hoje
em dia se não fosse... — Eu não queria dizer se não fosse pelo nascimento de
Cathy. Não. Minha filha nunca seria motivo de arrependimento. Em nenhuma
circunstância. Nenhuma delas, aliás. Se eu não tivesse me casado com Laura,
não teria Alice.
— Você não pode estar insinuando que ainda tem algum interesse
naquela mulher! — ela falava como se eu tivesse acabado de revelar uma
predileção pelo diabo. Havia nojo em seu tom de voz e uma zombaria muito
de mau gosto no seu olhar.
— O que eu sinto não tem absolutamente nada a ver com o papo. É uma
questão de respeito. — Fiz uma pausa e respirei fundo. — Quero saber o que
falou para Catarina. Agora. Pare de me enrolar! — baixei um pouco o tom de
voz, tentando manter o controle.
— Só alertei Catarina para ela não se apegar à Maria Luísa, porque a
presença dela aqui pode inibir a mãe dela de voltar — ela falou baixinho,
parecendo constrangida.
Ainda assim, o volume de sua voz não influenciou menos a minha raiva.
— A mãe dela pretende voltar? — insisti.
— Não que eu saiba, mas poderia querer, não? A presença dessa mulher
aqui poderia podá-la.
— Espero que sim, porque não tenho intenções de uma reconciliação. Eu
e Laura nos separamos legalmente, e não tem volta. Por isso, espero que você
não se meta mais na minha vida! — falei com decisão, esperando que ela
entendesse. Sabia muito bem quais eram as intenções dela, mas não estava
muito propenso a permitir que achasse que teria alguma chance comigo.
Porque não tinha.
Nunca, na verdade, mas muito menos com Malu de volta à minha vida.
Se eu tivesse a mais ínfima oportunidade de reconquistá-la, a agarraria com
unhas e dentes.
— Lucas... — ela chamou, provavelmente surpresa com a minha atitude.
— Eu gostaria que você fosse embora, Patrícia. Já levou Cathy para sair,
já viu as meninas, já fez seu pequeno estrago, agora pode ir.
Ela ficou boquiaberta. Odiava ser tão direto e tão grosseiro, mas estava
merecendo.
Então Patrícia se levantou, altiva como sempre, com a cabeça erguida,
olhando-me como se eu fosse inferior.
— Você vai se arrepender. Aquela garota cheira a problemas, e você
trouxe o problema para a sua casa!
Não respondi. Ela não merecia. Continuei observando-a, com os braços
cruzados, muito sério, sem paciência.
Patrícia pareceu não acreditar por um segundo que eu não iria mudar de
ideia quanto a mandá-la embora, mas mantive-me irredutível. Então ela foi, e
eu quase suspirei aliviado.
Mal esperei que a cadeira que ela usou esfriasse e já entrei na casa
correndo, chegando ao quarto de Malu. Antes de bater, respirei fundo.
Porra, eu estava tão empolgado com a presença dela ali. Como era
possível que em um primeiro dia alguém já estivesse prestes a estragar tudo?
Exatamente uma pessoa muito próxima a outra que fora a responsável por
nos separar no passado.
Ou melhor... não exatamente. Eu tinha tanta responsabilidade quanto
Laura, mas fora ela quem me chantageara no passado. Ela que me fizera
tomar uma decisão que não queria ter tomado.
Eu não queria que as coisas se repetissem, por isso, bati na madeira com o
punho fechado.
— Malu... abra a porta. Eu quero conversar.
Ela não respondeu de primeira. Então tentei novamente.
— Malu... por favor, me desculpa.
Ouvi passos. Então a porta foi aberta e lá estava ela. Com uma toalha na
cabeça, escondendo os longos cabelos castanhos e apenas um baby doll no
corpo. Um bem comportado, de malha, mas com um short curtinho o
suficiente para que suas lindas pernas estivessem à mostra.
Merda... ela sempre teve pernas incríveis.
Descalça, Malu praticamente batia no meu peito, então ela ergueu a
cabeça, com os braços cruzados para me olhar com aqueles olhos enormes
decididos e cheios de fogo.
O fogo representava sua raiva, mas eu esperava que um dia usasse aquela
expressão para demonstrar algo mais... desejo, especialmente.
— Boa noite, Lucas. Posso te ajudar? — perguntou, cheia de formalidade.
— Não faça isso, Malu.
— Por que não? Porque somos amigos?
— Sim, porque somos amigos. Nunca tive a intenção de te magoar, e
lamento se alguém na minha casa te destratou. Não vai se repetir.
Seus ombros caíram, e ela pareceu prestes a ceder.
— A culpa não é sua. Estou estressada e descontando na pessoa errada.
Apesar de ela ter dito isso, no momento em que dei um passo à frente,
recuou, como se estivéssemos dançando tango. Era ridículo e frustrante ao
mesmo tempo.
— A pessoa responsável já saiu da minha casa. Eu pedi que ela se
retirasse.
Os ombros de Malu relaxaram ainda mais.
— As meninas gostam dela. Não quero ser motivo de desavença entre
você e suas filhas.
— Não será... — Tentei dar mais um passo, e Malu não fugiu de mim
outra vez. — Sobre o que ela falou para Cathy, a respeito de Laura... É
mentira. Não há nenhuma chance de reconciliação. Até onde eu sei, da parte
dela também. Nossa separação foi amigável e...
— Lucas... — Ela ergueu a mão, interrompendo-me. — Você não me
deve satisfação. Para ser sincera, nunca deveu. Nunca houve nada entre nós.
Aquilo foi como um punhal no meu peito. Ela não falou com desdém,
mas com leve melancolia – a mesma que eu sentia –, e perceber o quanto eu a
havia magoado era doloroso para mim também.
— Não houve quase nada. Um beijo apenas. Mas você sabe que...
— Sei — ela sussurrou. Nossos olhares se prenderam, e, por um minuto,
jurei que a intensidade entre nós faria com que entrássemos em combustão
espontânea. Mas foi Malu quem cedeu primeiro e baixou os olhos para o
chão, respirando fundo. — Seja como for, eu acho que...
Ainda bem que estávamos próximos, porque ela interrompeu a si mesma
e cambaleou. Precisei segurá-la e a vi completamente pálida, o que me
preocupou.
Enquanto a segurava contra mim, comecei a reviver os momentos desde
que a reencontrei naquele bar até ali. Eu a vi bebendo, mas não a vi comendo
absolutamente nada. Não quis tomar café da manhã antes de voltar ao hotel,
mal tocou na comida do almoço e com exceção de algumas pipocas com
Alice – provavelmente muito poucas –, poderia jurar que não tinha se
alimentado direito. Isso somado ao estresse dos últimos dias, certamente a
deixara um pouco debilitada.
Com toda a gentileza que eu possuía, amparei-a até a cama, colocando-a
sentada.
— Tudo bem? — perguntei bem baixinho e a vi balançar a cabeça,
enquanto levava a mão à testa.
Observei-a por alguns instantes e estendi minhas mãos, delicadamente
tirando a toalha de sua cabeça. O cabelo caiu molhado sobre os ombros,
como uma cortina pesada, e eu passei os dedos neles, sentindo o cheiro
cítrico que exalavam. Eram macios como eu me lembrava.
— Você não comeu direito, não é? — Ao menos não negou, porque eu
sabia que seria mentira. Por mais preocupante que a situação pudesse ser, não
consegui não sorrir, enquanto afastava uma mecha molhada de cabelo de seu
rosto, para não incomodá-la. — Sempre teimosa, sempre cuidando mais dos
outros do que de si mesma.
Malu ergueu os olhos novamente em direção aos meus, e por mais que eu
soubesse o quão forte aquela mulher era – perdera mãe, avó, ficara sozinha
no mundo e conseguira se manter sem ajuda –, havia uma vulnerabilidade em
sua expressão que me fazia ter uma desesperadora vontade de protegê-la, de
dizer que ela poderia parar de lutar, que alguém assumiria as batalhas em seu
lugar, mas eu tinha perdido esse direito no momento em que fui apenas mais
um de tantos que a abandonaram, de várias maneiras.
Sem dizer nada, levantei-me, mas antes que eu pudesse fazer alguma
coisa, Malu tocou meu braço.
— O que vai fazer?
— Vou buscar algo para você comer.
Malu arregalou os olhos.
— Não, Lucas, por favor. Você é meu patrão. Não pode...
— Você falou certo. Sou seu patrão, dono desta casa, então posso decidir
quem eu quero alimentar ou não.
Dizendo isso, apenas saí do quarto, fechando a porta atrás de mim,
partindo direto para a cozinha, onde abri a geladeira e preparei um sanduíche.
Não era algo tão nutritivo, mas, ao menos, ela não iria novamente desmaiar
de fome.
Coloquei um pouco no forno, para esquentar e derreter o queijo, porque
sabia que era como ela gostava. Sorri mais uma vez ao pensar nisso e em
quantas outras coisas eu sabia sobre Malu, de todos os meses que
convivemos.
No momento em que fiz isso, percebi que não estava mais sozinho. Ao
me virar, vi Teresa parada diante da porta, já com seu robe, pronta para
deitar-se.
— Eu sabia que tinha alguém na cozinha. O que o senhor está fazendo?
— Malu não comeu nada e acabou de quase desmaiar.
— Aquela garota teimosa. Pode deixar que eu preparo algo e levo para
ela — Teresa afirmou, mas eu neguei.
— Não. Pode deixar.
Então ela parou diante de mim, com aquele olhar que me dizia que
conhecia mais de mim do que eu mesmo.
— Você ainda gosta dela, não gosta? — A mulher me chamava de
senhor, mas não era lá muito discreta. Sempre foi assim, aliás. E eu amava
isso nela.
— E em algum momento deixei de gostar? A distância amenizou o
sentimento, mas ele nunca morreu.
Um sorriso curvou um canto de seus lábios.
— É uma moça e tanto. Fico feliz de tê-la conosco.
Encostei-me na bancada, apoiando o quadril e cruzando os braços contra
o peito.
— Sabe o que é mais curioso, Tetê? Estou convencido de que Malu vai
fazer bem às meninas, é claro. Há um senso de realidade nela, um pé no chão,
que preciso que minhas filhas adquiram. Mas esse não foi o único motivo de
eu tê-la contratado.
— Ah, não?
— Não. Claro que não vou admitir, mas... desde que tudo aconteceu, que
Laura surgiu com Cathy e que eu precisei dar um ultimato no que estávamos
vivendo, eu sinto que a negligenciei de alguma forma. Malu precisava de
mim, e eu não a apoiei. Quero compensar isso. Quero...
— Cuidar dela? — Teresa completou minha frase, e eu apenas assenti. —
É uma oportunidade, sem dúvidas. Vai saber aproveitá-la. — Colocando a
mão no meu ombro, ela o apertou com carinho e afastou-se.
Sendo deixado sozinho, terminei de preparar o sanduíche de Malu e levei-
o ao seu quarto. No entanto, chegando lá, deparei-me com ela apagada sobre
a cama, respirando tranquila, em um sono profundo.
Ela sem dúvidas precisava comer, mas o sono também iria lhe fazer bem.
Deixei a bandeja sobre a mesinha de cabeceira, mesmo sabendo que o
sanduíche não estaria tão gostoso no dia seguinte. Cobri-o com um
guardanapo que levei e aproximei-me da cama.
Malu parecia serena e tão linda dormindo, com os cabelos molhados
amassados no travesseiro. Peguei o edredom aos seus pés e a cobri, apagando
a luz do abajur ao lado.
Observei-a por breves segundos, sentindo o coração inchar no peito.
Então, inclinei-me e beijei sua testa com carinho, saindo do quarto e
apagando a luz do teto também.
Amanhã é um novo dia, pensei. E eu esperava que as coisas corressem um
pouco melhor.
CAPÍTULO DEZ
Fingir que estava dormindo foi uma atitude bem adolescente da minha
parte, mas o melhor que eu poderia fazer dadas as circunstâncias.
Lucas não merecia minha indiferença, não merecia ser mal tratado, mas
eu estava com um humor péssimo demais para tudo isso. E me sentindo fraca,
obviamente por não ter comido direito. No final das contas o quase desmaio
foi providencial.
Encontrar o sanduíche que ele fez para mim com todo o cuidado do lado
da cama, não.
O remorso veio forte como uma ressaca.
Ainda assim, eu o comi pela manhã, porque acabei pegando no sono
pouco depois de ele sair do meu quarto, ao invés de tomar café da manhã à
mesa. Talvez fosse mesmo uma boa ideia fazer minhas refeições com Teresa,
ao menos de início, para que as coisas não fossem confundidas.
Tomei um banho rápido, me vesti e fui ao quarto das meninas. Elas
deveriam ser minha prioridade todos os dias, então, antes de qualquer coisa,
precisava vê-las.
Eram quase oito da manhã, e Teresa tinha me dito que Alice era
madrugadora, por isso, não estranhei quando não a vi na cama.
Provavelmente já estava lá embaixo, fazendo bagunça. Já Catarina... Bem,
esta ainda dormia o sono dos justos.
Senti um dilema entre acordá-la ou deixá-la dormir um pouco mais, e
optei pela segunda opção.
Sim, era bom regrar horários de crianças mesmo aos finais de semana,
para não terem problemas para acordar nos dias de escola, só que era
domingo, pelo amor de Deus! A menina podia aproveitar um pouquinho
mais.
Estava pronta para sair de seu quarto quando me deparei com algo sobre a
sua cama, no momento em que fui ajeitar o edredom que a cobria.
A cama de Catarina era de casal. Grande o suficiente para dois adultos,
mas era um móvel de princesa, quase saído de um conto de fadas, e havia
alguns travesseiros sobre ela. Debaixo de um deles – o que não sustentava
sua cabecinha – encontrei algo que parecia um porta-retrato.
Sorrateiramente, peguei-o, fazendo todo o esforço para não acordá-la,
deparando-me com uma foto da família. Nela estavam Lucas, as duas
meninas e... Laura.
Bonita como sempre, elegante, com os cabelos soltos, longos, muito lisos,
caindo pelas costas, um short cargo, blusa branca e um cardigã rosa,
sapatilhas Gucci, bolsa da mesma marca, óculos Prada preso à cabeça. Lucas
igualmente lindo, com Alice bem bebezinha no colo. Catarina estava agarrada
à mãe, abraçando suas pernas.
Ele não sorria. Não parecia muito feliz também.
Mas a menina... Estava mais do que claro o tipo de adoração que tinha
pela mãe, embora esta não estivesse sequer com a mão na cabecinha ou
abraçando-a. Não pegara a criança no colo para a foto... nada disso.
Meu peito se apertou ao ver a cena e interpretar um milhão de coisas com
ela, mas não tive muito tempo para conjecturar, pois o objeto foi tirado da
minha mão com rapidez. Arrancado, como se fosse um segredo terrível que
eu tinha descoberto.
— Por que você está mexendo nas minhas coisas? E por que está olhando
para a foto da minha mãe? — Ela parecia estressada, irritada, e eu fiquei
momentaneamente sem fala.
O que eu iria dizer para ela? Que estava bisbilhotando? Porque essa era a
verdade.
— Desculpa, querida. Eu só vi a foto, achei bonita e queria olhar.
— Não! A tia Patrícia falou que você odiava a minha mamãe quando
vocês eram mais novas. Que brigavam, que você morria de inveja dela — a
menina gritou.
— Isso não é verdade, Catarina. Eu não... — Bem, eu poderia dizer que
não odiava a mãe dela, é claro, mas não seria exatamente uma verdade.
Na verdade... ódio era algo muito forte. Tudo o que eu sentia era um leve
desprezo porque Laura sempre se achou muito melhor do que todos. Sempre
se achou boa demais para Lucas, a última batata frita do pacote. Não que ela
não fosse bonita, bem nascida, elegante, graciosa e a garota perfeita. O pior é
que era tudo isso. Só não era... legal. Ao menos não comigo. E isso só foi
piorando conforme minha amizade com o cara que ela desejava começava a
evoluir para algo mais forte.
— Você é mentirosa! Tia Patrícia me falou isso também. Falou que você
estava aqui para roubar nosso papai de nós. Que iria namorar com ele e que
ele iria esquecer da gente. — Colocando-se de pé sobre a cama, Catarina
pareceu pronta para me atacar, então, eu dei um passo para trás, quase
assustada com aquela atitude. — Eu odeio você. Odeio!
— Ei, ei, ei! Que história é essa? — Lucas irrompeu o quarto, com o
cenho franzido, muito indignado aparentemente. O quanto será que ele tinha
ouvido? — Catarina, peça desculpas à Malu agora! — falou com sua voz de
comando, mas era a abordagem errada.
— Não! — A garotinha continuou de pé sobre o colchão, com os braços
cruzados e com uma expressão teimosa, muito mal criada.
— Você está acreditando na pessoa errada, menina. Sua tia Patrícia está
inventando histórias para você, porque não quer Malu aqui — ele soltou.
— Por quê? E se ela não gosta da Maria, eu não posso gostar também. Tia
Patrícia é minha dinda. Eu tenho que ficar do lado dela.
Lucas aproximou-se da cama, e eu quase o impedi, mas algo me dizia que
nunca seria agressivo com a filha, por mais irritado que pudesse parecer.
— Isso não é uma competição. Você não tem que ficar do lado de
ninguém. Pode gostar das duas, se quiser.
Ela forçou ainda mais os braços cruzados.
— Mas eu não quero!
Se fosse qualquer outra criança, eu teria perdido a paciência, mas tive um
vislumbre da doçura e da meiguice de Catarina no dia anterior, durante nossa
breve conversa na cama, quando acordei. Alguém a fez ter aquele tipo de
atitude, e ela tinha seis anos, pelo amor de Deus. Seria impossível não
apresentar um comportamento mais difícil quando incitada por uma mente
cheia de más intenções de um adulto.
Eu sentia que Lucas estava bem mais irritado do que eu, por isso, assumi
a situação, colocando a mão no ombro dele e lhe lançando uma expressão que
pedia calma. Dei alguns passos em direção à cama, enquanto Catarina me
olhava, cheia de dúvidas. Não sabia o que ela esperava, mas certamente era o
tipo de criança que dificilmente era repreendia de forma mais enérgica –
talvez porque não merecesse ou porque as pessoas ao seu redor não tivessem
coragem para tal –, e não seria eu a fazê-lo. Ao menos não ainda, enquanto
não conquistasse sua confiança.
— Você pode se sentar, querida? Só um pouquinho, para que possamos
conversar? — pedi com toda a delicadeza, sabendo que elevar a voz não nos
levaria a lugar algum.
Catarina olhou para o pai, hesitante, mas acabou obedecendo, o que
corroborava com o que eu já tinha pensado antes – era uma boa menina, só
guiada por uma mulher muito, muito cruel, capaz de fazê-la acreditar em
inverdades para beneficiar a si mesma.
Sentei-me na cama, de frente para ela, com todo o cuidado, com se
domesticasse um bichinho assustado.
— Vamos combinar uma coisa? Você pode não gostar de mim, não tem
problema. Pode nem conversar comigo, me tratar com indiferença. Sabe o
que é indiferença? — Ela assentiu. — Ótimo. Podemos seguir assim. Seria
mais fácil se fôssemos amigas, é claro, mas vou entender se você não quiser.
Só acho que podemos tentar facilitar as coisas uma para a outra. Seu papai e
Tetê precisam de mim para cuidar de vocês, porque os dois trabalham muito.
Juro que vou tentar ser a melhor possível, porque eu também preciso do
trabalho. Não estou aqui para roubar o lugar de ninguém, mas não vou tentar
te convencer disso. Espero que perceba sozinha, porque é inteligente o
suficiente para isso.
Catarina ouviu tudo o que falei com atenção, agarrada ao porta-retrato
com a imagem de sua mãe. Era triste observar aquela cena e pensar que se
tratava apenas de uma garotinha se sentindo abandonada. Tivera uma pessoa
presente por cinco anos e, de repente, aquela pessoa não fazia mais parte de
sua vida. Mas mais do que isso, não fora uma perda por morte. Laura quisera
ir embora. Dera as costas para sua vida, para suas doces meninas, e, em um
ano, não fora sequer visitá-las.
Como não me compadecer de algo assim? Como não compreender aquela
menininha e não tentar respeitar sua dor e a forma como lidava com ela? Se
precisava de alguém em quem descontar suas frustrações, eu poderia aceitar
esse papel.
— Você topa, querida? Ao menos tentarmos conviver, por seu papai e por
Tetê? — Estendi a mão, quase hesitante, com medo de que ela me rejeitasse,
mas depois de alguns instantes de dúvidas, ela colocou a mãozinha pequena
dentro da minha.
Quando olhei para Lucas, que nos observava atento, com os braços
cruzados, ele parecia quase sorrir. Seus olhos estavam fixos em mim, e eles
tinham um brilho diferente, como se eu tivesse ganhado mais alguns pontos
em seu conceito.
— Então agora posso pedir para que, já que está acordada, troque a
roupinha e desça para o café? — Ela novamente assentiu. — Precisa de
ajuda? — Negou.
Ok. O tratamento seria silencioso. Contanto que obedecesse, eu poderia
lidar com isso. Conforme o tempo passasse, as coisas poderiam mudar.
Obedientemente, a menina levantou-se da cama, abriu a própria cômoda
sozinha, tirou de lá uma roupinha e partiu para a suíte, fechando a porta sem
trancar – porque provavelmente já tinha sido instruída a nunca fazê-lo quando
estivesse sozinha em um cômodo.
Sim, era uma boa menina.
— Uau. Isso foi incrível — ao meu lado, Lucas comentou.
Voltei-me novamente para ele, e lá estava outra vez o brilho que eu não
sabia interpretar. Talvez uma admiração. Mas por quê? Eu não tinha
conquistado a filha dele de forma mágica, apenas pedido uma trégua.
Tentando não me afetar pela forma como ele estava me olhando e por sua
proximidade – muito menos pelo fato de que estava com uma camisa de
malha branca, que evidenciava seus músculos –, comecei a mexer na cama de
Catarina, para fazê-la. Aquela deveria ser uma das minhas atribuições, não?
Ao menos enquanto ela ainda estava tão reticente comigo. Quando as
coisas melhorassem – e eu esperava que sim –, começaria a ensiná-la a
arrumá-la sozinha. Tudo o que eu pudesse fazer para que aquelas meninas
riquinhas não se tornassem duas esnobes que precisavam de empregados para
tudo, eu faria.
— Não foi nada. — Dei de ombros, tentando não olhar para ele. Ainda
me sentia vulnerável demais, depois da noite anterior e do nosso reencontro,
que ainda era muito recente.
Senti a mão de Lucas no meu braço, segurando-o com delicadeza e me
virando para si.
Será que era pedir muito querer que ele não ficasse me tocando daquela
forma, deliberadamente?
Colocando-me de frente para ele – enquanto ainda segurava o travesseiro
de Catarina, que eu estava arrumando –, Lucas me obrigou a olhá-lo nos
olhos. O que era tão desconcertante quanto tê-lo me tocando.
— Você está melhor? Comeu direito?
A preocupação era adorável. Difícil ficar indiferente, por isso, sorri.
— Comi o sanduíche que você deixou para mim, obrigada.
— Precisa se cuidar. Foi a segunda vez que desmaiou nos meus braços
em um fim de semana — brincou.
Desvencilhando-me de suas mãos, voltei à cama de Catarina, tentando
relaxar.
— É o tipo de coisa que você provoca nas mulheres. Sabe como é...
Talvez não fosse a melhor ideia brincar daquela forma, mas eu conhecia
Lucas. Ele não iria se aproveitar da situação, tanto que deu alguns passos para
trás, colocando as mãos nos bolsos do short, sorrindo.
Então Catarina saiu do banheiro, já pronta para descer.
— Vou esperar as duas lá embaixo. — Então virou-se para a criança: —
Comporte-se, mocinha!
Olhei para ela, que olhou para mim. Por um momento pensei que iríamos
compartilhar alguma cumplicidade, mas ela me deu as costas, pousando o
pijama dobrado sobre uma poltroninha florida, no canto do quarto. Em
seguida foi marchando até a porta, ignorando-me e saindo,
Sim, seria uma batalha conquistar aquela menina. Mas nunca ninguém
venceu uma guerra sem lutar. E eu estava mais que disposta.
CAPÍTULO ONZE
Eu estava no meio de uma reunião, na segunda-feira, quando recebi uma
mensagem de Malu.
Claro que eu sabia que tinha a ver com as crianças, mas ver o nome dela
na tela me fez sorrir como um bobo. Era o fato de ela estar de volta à minha
vida, mesmo não sendo minha, como nunca pôde ser na prática, que me
deixava quase esperançoso.

MALU: Catarina me avisou, quando a levei para a escola, que era


dia de trabalho em grupo e que umas cinco ou seis meninas irão para a
sua casa. Ela disse que você estava ciente. Tudo bem?

Ah, merda! Eu tinha me esquecido completamente disso. Era o primeiro


dia efetivo de Malu como babá das crianças, e ela já enfrentaria o apocalipse.
Fosse como fosse, eu não poderia desmarcar, porque era as outras mães já
estavam contando com isso.

LUCAS: Infelizmente, sim. Desculpa por não ter te avisado. Prepare-


se. Elas são uma tempestade juntas.

MALU: Fica tranquilo. Vai dar tudo certo.


Ela certamente estava falando aquilo porque ainda não enfrentara a fúria
daquelas garotinhas.
Naquele dia, também, a mudança de Malu chegaria na minha casa,
conforme ela solicitara, e eu sabia que as coisas ficariam confusas. Pelo que
me dissera era pouca coisa, então, enviei uma mensagem a Tetê também, para
que ficasse de sobreaviso.
Eu adoraria estar em casa, mas tinha que trabalhar, afinal.
Trabalhar. Não receber pessoas indesejadas na empresa.
Tentei vetar sua entrada, mas ela sabia ser insistente e falou que ficaria na
recepção até que eu descesse para almoçar, o que seria muito pior. Já
conseguia imaginá-la me seguindo para a rua, até o restaurante, e eu sabia
que era capaz de fazer uma cena ao ar livre, o que eu não estava nada a fim
de enfrentar.
Sua expressão quando entrou na minha sala era uma representação
perfeita da Virgem Maria arrependida ou de uma protagonista muito
dramática de uma novela mexicana. Seus olhos estavam vermelhos e
marejados, e se eu não a conhecesse muito bem poderia realmente sentir
pena. Mas ela não me comprava com aquele showzinho.
— Deveria tentar carreira, Patrícia. Poderia ganhar um Oscar um dia —
falei, enquanto baixava os olhos para a mesa, focando-os no meu documento.
— Não faça isso, Lucas. Eu vim pedir perdão.
Respirando fundo, revirei os olhos e os ergui para ela, mas ainda sem me
levantar para cumprimentá-la, como faria em qualquer outra circunstância.
— Você contou uma mentira para a minha filha. Causou uma situação
complicada na minha casa. Me trouxe dor de cabeça. Prejudicou o trabalho
de duas pessoas, porque Tetê está cansada e contando com Malu para ajudar
com as crianças... O que mais? — Fingi uma expressão cínica, como se
estivesse pensando. — Ah, e colocou-se em uma posição que não te pertence.
Por que diabos, então, eu deveria te perdoar tão fácil?
Ela deu alguns passos em direção à mesa.
— Porque somos amigos! — exclamou, colocando ambas as mãos sobre
a minha mesa.
— Não somos amigos, Patrícia. Você é madrinha das minhas filhas.
Só isso. — Ergui as sobrancelhas para ela, esperando que entendesse o
recado, e só a vi fungar e limpar os olhos, novamente atuando.
— Não diga uma coisa dessas, Lucas. Nós nos conhecemos há muitos
anos. Como pode alegar que aquela mulher é sua amiga, e eu, não?
Aquela mulher... Ela estava se referindo à Malu? Ainda não tinha
entendido que fazer isso só pioraria meu humor?
— Eu escolho quem quero ter como amigo. Isso não é da sua conta.
— E lá estava ela, boquiaberta na minha frente, com os olhos arregalados
como um peixe.
Mas que merda ela esperava? Que iria causar intrigas dentro da minha
casa, e eu iria perdoá-la assim, tão fácil? Ou que iria fechar os olhos para suas
más intenções? Rancor não era uma palavra que fizesse parte do meu
vocabulário, mas era diferente quando alguém fazia algo contra as minhas
filhas.
— Se você tiver dito tudo o que veio dizer, Patrícia, eu vou pedir que
se retire. Tenho muitas coisas para fazer hoje — disse isso sem nem olhar
para ela. E talvez tivesse sido o meu erro, porque a mulher simplesmente
diminuiu a distância entre nós, empurrou minha cadeira de rodinhas e se
sentou no meu colo, agarrando meu rosto e me tascando um beijo na boca.
Mas... que...
Que porra!
Tentei me desvencilhar, mas ela estava agarrada a mim como um bicho
preguiça a uma árvore. Não era uma mulher pequena como Malu e estava
totalmente determinada a manter-se no ridículo.
Bem, se era assim que ela queria... eu não poderia tratá-la com
delicadeza. Apesar de tudo, eu ainda era mais forte.
Sem nem segurá-la, simplesmente me levantei da cadeira, colocando-me
de pé. Com o movimento, Patrícia se desequilibrou e precisou me soltar para
se firmar. Nada graciosa, usou uma mão para se apoiar à mesa, mas
conseguiu se recompor, ajeitando o terninho como se isso fosse lhe dar
alguma dignidade.
Eu odiava tratar uma mulher daquela forma. Odiava precisar ser grosseiro
ou agir como um canalha, mas ela estava fora de controle.
— Eu acho melhor você realmente ir embora, Patrícia, antes que eu perca
mesmo a paciência e me pegue dizendo coisas que não quero dizer. — Ela
continuou parada à minha frente, novamente com aquela expressão de pobre
moça inocente que não me convencia em nada. — Saia, Patricia.
Ela literalmente saiu correndo, soluçando, mas eu sabia que assim que
cruzasse a porta o pranto comovente pararia.
Infelizmente eu a conhecia bem. Sabia que não era muito diferente de
Laura, que também era a rainha do drama.
Demorei um pouco para conseguir retomar a minha concentração, então,
fui ao banheiro para tentar lavar o rosto e respirar fundo, mas assim que me
olhei no espelho, lá estava o batom vermelho de Patrícia nos meus lábios.
Limpei-os quase com raiva, pensando rapidamente em Malu, no quanto
não queria que ela me visse com os resquícios do beijo de outra mulher na
minha boca, quando eu queria os beijos dela.
O que era ridículo, não? Eu precisava colocar na porra da minha cabeça
que Malu estava na minha casa, porque não tinha outras opções. Não fazia
ideia se ela pensava em algo a mais do que apenas trabalhar para mim e, com
sorte, retomarmos a amizade de antes. Sentia-me como um babaca iludido
pensando em coisas que não deveriam me pertencer.
Que nunca me pertenceram.
Era doloroso pensar que tudo o que aconteceu entre nós fora apenas um
beijo. Um incrível, diga-se de passagem, que me deixou ansiando por tantas
outras coisas... Mas essas outras coisas nunca puderam ser concretizadas.
Fora uma noite perfeita, nosso primeiro encontro – jantar, velas, flores,
música, dança... Ela estava tão linda. Jurei que a partir daquele momento eu a
teria para mim, como minha namorada, como a garota que sempre sonhei que
um dia surgiria na minha vida. Não importava o que meus pais pensavam,
porque eu já estava seguindo sozinho nos meus negócios e não precisava da
aprovação deles. Não importava que Malu fosse uma mulher simples – isso
só me deixava mais encantado por sua força e seu modo de ver a vida.
Só que se eu fui dormir como um homem feliz e apaixonado, acordei com
um problema nas costas.
Na manhã seguinte ao beijo e ao encontro perfeito, Laura surgiu à minha
porta com um bebê recém nascido no colo. Fazia meses que não nos víamos,
porque depois que terminamos nosso casinho ela saiu em viagem com os
pais.
Eu me lembro muito bem da nossa conversa naquele dia...

— Eu não vou negligenciar nada, Laura. Se é minha filha...


— Como assim se é sua filha? Você quer fazer uma merda de exame?
Podemos fazer...
— Sim, eu quero. — A expressão ofendida dela me fez erguer a mão para
acalmá-la. — Você não saía só comigo naquela época e sabe disso.
Ela assentiu, mas não parecia menos irritada.
— Seja como for, Lucas, eu não quero um pai ausente. Eu quero que você
se case comigo — ela falou com decisão, o que fez meu coração parar.
— Casar? Mas... Laura... Nós somos jovens demais. Não nos amamos.
Isso nunca vai dar certo. Podemos manter uma amizade, um bom
relacionamento, e criarmos nossa filha juntos. Não vou, de forma alguma, te
abandonar. Se quiser, eu posso até criá-la. Você me dá a guarda e...
— É a minha decisão, Lucas. Se você não se casar comigo, nunca mais
vai ver essa menina.

E isso selou a minha sentença. O exame de DNA foi feito, comprovando


que Catarina – graças a Deus – era minha, e eu me casei com Laura, porque
nunca suportaria imaginar que havia um pedacinho de mim crescendo,
desenvolvendo-se e vivendo sem um pai em algum lugar do mundo.
Contar a Malu fora uma das decisões mais difíceis que tive que enfrentar.
Olhar para ela e ver a decepção em seu rosto quase me destruiu. Conhecendo
seu passado e o quanto de dificuldade ela passou – pai abandonando, padrasto
de merda, perda da mãe, da avó e tendo que se sustentar sozinha –, virar-lhe
as costas fora cruel, e eu me odiei por isso.
E me odiava por tê-la colocado na situação com Patrícia.
Precisava compensá-la de alguma forma.
Ao fim do expediente, saí da empresa e passei em uma floricultura
próxima. Comprei um lindo vasinho de Girassóis, nada extravagante, apenas
algo para ela colocar em seu quarto e lhe dar um pouco de cor. Era a flor
preferida de Malu, e eu me lembrava muito bem que costumava presenteá-la
com algumas delas uma vez por semana, às sextas, que era quando ia visitar
sua avó, que foi quem, de certa forma, nos uniu.
D. Marta me conhecia desde pequeno, porque trabalhava como costureira
para a minha mãe. Eu sempre a adorei. E ela me levou à sua adorável neta,
que ganhara meu coração de várias formas.
Cheguei em casa, com as flores na mão, e logo Teresa veio me receber.
Olhei ao meu redor e não vi as meninas correndo.
— Onde estão Cathy e Alice? — perguntei a ela, quando foi me
cumprimentar.
— Alice está na cozinha desenhando, me fazendo companhia. Cathy saiu
com a mãe da Betinha. Lembra? Você deu autorização para que quando
terminassem o trabalho fossem tomar um sorvete. Já estava combinado há
dias.
Claro... eu estava mesmo com a cabeça cheia.
— Sim. E Malu?
Teresa ergueu uma sobrancelha.
— Olha, senhor... eu achei estranho, sabe? As meninas estavam aqui, e
Malu foi ótima. Nem tivemos bagunça como nas outras vezes. Só que quando
a mãe da Betinha chegou, as meninas desceram, Cathy entregou Alice para
mim, dizendo que Maria, como ela a chama, queria descansar, que era
melhor eu cuidar da bebê.
— Descansar? — Aquilo era estranho. Muito estranho.
Bem, mas talvez o dia tivesse sido mesmo cansativo. Ainda assim, não
conseguia acreditar.
— A mudança dela chegou? — perguntei.
— Sim. Deixamos no quartinho dos fundos. Como as meninas estavam
aqui, Malu achou melhor arrumar amanhã.
Assenti, agradeci a Teresa e subi. Segui logo para o quarto de Malu,
querendo entender o que tinha acontecido. O que poderia tê-la feito mandar
minhas duas filhas lá para baixo, para descansar?
Claro que ela era minha amiga. Claro que merecia descansar. Mas, fosse
como fosse, tínhamos um combinado. Cuidar das minhas filhas era sua
profissão. Seu trabalho. E precisava ser bem feito.
Bati na porta, esperando que, se estivesse acordada, me deixasse entrar.
Só que só ouvi um som estranho vindo lá de dentro. Um som muito
estranho, como um grito abafado.
Sem nem pensar no que fazia, temendo que estivesse machucada, entrei
como um doido, irrompendo o quarto, ainda segurando a maçaneta.
No momento em que me deparei com Malu, fiquei muito confuso se ria
ou se me desesperava, porque a cena era tragicômica.
Sentada na cadeira da escrivaninha, havia fitas e mais fitas de cetim –
provavelmente do trabalho das crianças – prendendo os punhos e os
tornozelos de Malu na cadeira. Um tecido de bichinhos amordaçava sua boca.
Uma coroa de princesa na sua cabeça.
Apesar de tudo, ela não parecia exatamente irritada.
Eu estaria, mas ela, não.
Aproximei-me, deixando os girassóis sobre a mesinha de cabeceira dela,
e apressei-me em tirar a mordaça.
— Ah, que bom que você chegou — ela falou, ofegante, enquanto eu
começava a soltar fita por fita.
Onde aquelas crianças tinham aprendido a fazer nós assim?
— O que aconteceu aqui?
Malu deu de ombros.
— Elas queriam brincar de princesa bruxa... É, foi isso que elas falaram.
Eu era a princesa bruxa, no caso. E eu fui capturada. Elas estavam tão
empenhadas na minha condenação que achei que ia rolar fogueira e tudo.
Fiquei feliz quando descobri que a punição seria apenas ser amarrada na
cadeira e amordaçada — ela continuou brincando, enquanto eu liberava seu
primeiro braço. — Só não esperava ser abandonada aqui.
— Elas não podiam! Poxa, Malu, e se acontecesse alguma coisa? Se eu
não viesse ao seu quarto? Você ia ficar aqui por quanto tempo?
— Não brigue com elas, Lucas. Foi só uma brincadeira. E eu nem fiquei
com vontade de fazer xixi.
— Foi uma brincadeira maldosa.
Terminei de soltá-la e me agachei à sua frente, pegando seus punhos e
massageando-os, porque imaginei que deveriam estar formigando.
— Você está bem? — perguntei, olhando-a nos olhos.
— Claro. Foi mesmo uma brincadeira. Eu fui ingênua, e elas me
pegaram. — Malu sorriu. Como era possível que conseguisse levar as coisas
daquela forma tão leve?
Porra, isso só me deixava mais encantado por ela.
Em um rompante, Malu levantou-se, com uma expressão engraçada, e eu
também me coloquei de pé.
— Ok! Acho que agora eu preciso fazer xixi! Já volto.
De forma adorável ela saiu entrou na suíte, com uma corridinha fofa, e no
momento em que a porta se fechou, afastando-a de mim, eu tive ainda mais
certeza de que não haveria nada que eu não fizesse para ter aquela mulher
novamente para mim.
E daquela vez de forma definitiva.
CAPÍTULO DOZE
A pequena meliante estava à minha frente com aquela sua carinha
irresistível que me desmontava facilmente. Mas não daquela vez. A
travessura fora um pouco longe demais. Não importava o que Malu dissera,
de que não passara de uma brincadeira, eu não queria que minha filha fosse o
tipo de criança que tira proveito aquele tipo de coisa. Não queria que
confundisse maldade com diversão.
Ela estava sentada em sua cama, enquanto eu andava de um lado para o
outro, com as mãos entrelaçadas nas costas, sentindo-me como um soldado
prestes a interrogar um perigoso vilão.
Uma vilã de seis anos, mais dramática e mais espertinha do que seria bom
para a minha sanidade.
— O que você fez foi errado — falei com toda a minha autoridade.
— Mas, papai, não foi por mal...
— Catarina, quantas vezes você acha que vai conseguir se livrar de
sermões só porque diz que não faz nada por mal? É uma mocinha. Já deve
saber o que é certo e o que é errado.
— A Maria estava se divertindo!
— Não, ela não estava. — Aproximei-me da minha filha, com a real
intenção de intimidá-la, e Catarina arregalou os olhinhos. — O que você acha
que iria acontecer se ela passasse mal aqui sozinha, presa e sem poder gritar
por ajuda? Era isso que você queria? Que Malu se machucasse?
Os olhinhos se arregalaram ainda mais.
— Não, papai!
— Bom, porque eu fiquei preocupado. Fiquei com medo que minha
filhinha, a quem eu sempre ensinei a ser uma boa pessoa, desejasse o mal de
alguém. Porque... você não gosta da Malu, não é? — fiz uma provocação. Eu
sabia que não era o caso, mas queria ouvir sua resposta.
Ela deu de ombros.
— Não é que eu não goste... é que a tia Patrícia...
Peguei a mãozinha dela na minha.
— Querida, entenda uma coisa... sua tia Patrícia não é a dona da verdade.
Muitas coisas que ela te falou foram mentiras.
— Sobre a mamãe? — O beicinho que ela fez me encheu de compaixão.
— É. Sobre a sua mamãe. — Respirei fundo. — Embora ela te ame
muito, sua mamãe não vai voltar. Ao menos não por enquanto. E, além do
mais, eu e ela não vamos ser casados novamente.
— Você não ama mais a minha mamãe? — a pergunta saiu quase
cantada, quase choramingada.
Eu nunca tinha amado a mãe dela, mas não era o tipo de coisa que se diria
a uma criança de seis anos.
— Amo, filha, mas como amigo.
— Não como namorado? — Sorri, pensando no quanto ela era esperta. —
E a Maria? Você ama a Maria?
O que eu poderia dizer? Não queria mentir mais do que já estava
mentindo quando falava da mãe dela. Além do mais, como eu poderia dizer
que não, quando tinha total intenção de reconquistar Malu? Quando tudo o
que eu mais queria era que ela me desse uma chance de vivermos tudo o que
não pudemos viver no passado, quando fomos interrompidos pelo destino?
Suspirando, aproximei-me ainda mais de Catarina, sentando-me ao lado
dela na cama.
— Papai e Malu se conheceram há muito tempo. Nós ficamos amigos
quando ela veio para Montes Altos cuidar da vovó dela que estava doente.
— Como vocês se conheceram?
— A vovó dela trabalhou para a sua vovó, minha mãe, por algum tempo,
quando eu era menino. Quando soube que estava doente, quis visitá-la, então
lá estava Malu — contei da forma mais lúdica possível.
— E você achou a Maria bonita?
Apesar de tudo, minha garotinha era uma romântica.
— Seria difícil se não achasse, não é? — Ela assentiu. — Confesso que
voltei mais vezes para ver a avó dela, mas para vê-la também. Nós
conversávamos, e era bom, entende? Sabe quando você conversa e brinca
com a Betinha, sua melhor amiga, que você sempre fica feliz? — Cathy
novamente assentiu, parecendo muito interessada na história, como acontecia
quando eu lia um livro para ela. — Eu ficava feliz quando me encontrava
com Malu. Voltava para casa sorrindo — imitei o que dizia, curvando meus
lábios, cheio de nostalgia.
— É que ela é divertida — confessou Catarina, sem me olhar nos olhos.
Parecia um pouco relutante em elogiar Malu. — Ela ficou brincando com a
gente.
— Ela é divertida. E carinhosa. E tem um coração enorme. Se você lhe
der uma chance, talvez possam ser amigas.
— Vou tentar, papai.
— Essa é a minha garotinha! — Estendi os braços para abraçá-la e depois
a acomodei na cama. Fiquei um pouco com ela, até que dormisse, e quando
estava saindo do quarto, Malu apareceu com Alice apagada no colo.
Minha bebezinha, diferente de Cathy, parecia ter amado a babá. Vi a
interação das duas mais cedo, e Alice falava pelos cotovelos, rindo e sorrindo
para Malu. Eu esperava que fosse apenas uma questão de tempo até que a
mais velha deixasse de lado a teimosia e entendesse que a presença de Maria
Luísa seria benéfica para todos nós.
Ao menos para mim, tê-la ali enchia meu coração de uma nova esperança
de que algo que deixei para trás poderia renascer. Uma chance do destino.
Poderia ser uma ilusão também, mas eu preferia abraçá-la do que me permitir
nunca mais acreditar.
— Desculpa, eu não queria interromper sua conversa... — Malu falou
baixinho, sorrindo ao ver Catarina apagada.
Peguei Alice dos braços dela, levando-a para sua caminha. Estava
cheirosinha, e Malu percebeu quando inspirei seus cabelinhos.
— Dei um banho quente nela pouco antes. Estava muito agitada, achei
que iria resolver. Foi dica da Teresa.
Assenti, enquanto cobria Alice e beijava sua cabeça.
Saímos os dois do quarto das meninas, e eu fechei a porta, colocando-me
ao lado de Malu para caminharmos pelo corredor.
— Você não foi muito duro com ela, foi? — perguntou preocupada.
— Não, fique tranquila. Aquela carinha de cachorro sem dono sempre me
ganha.
— Ah, Alice tem uma dessas também. Conseguiu me convencer a ver
Procurando Nemo duas vezes seguidas. Fui uma presa fácil.
— Sei bem — respondi com um sorriso.
Passamos pela porta do quarto dela, e Malu parou, dando a entender que
iria entrar. Eu sabia que passava das dez, que ela deveria estar cansada, mas...
Ah, merda! Por mais que soubesse que teríamos muitas oportunidades
para conversarmos, para termos momentos juntos, eu me sentia como um
homem perdido no deserto, desesperado por qualquer gota de água que
pudesse obter.
— Bem... boa noite, Lucas — Malu falou baixinho, e eu senti, em seus
olhos, que ela também não estava preparada para se despedir.
Poderia ser pretensioso da minha parte, mas eu queria tentar.
— Está com sono? — questionei, torcendo para que dissesse que não.
— Não. Para ser sincera, nem um pouco.
— Por que não me faz companhia? Está uma noite bem bonita lá fora.
Malu olhou para mim, deixando seus ombros caírem. Parecendo
ponderar, baixou os olhos também, focando-os no chão. Ela nem precisava
dizer nada para que eu entendesse que hesitava com medo de uma
aproximação.
Levei minha mão ao seu queixo, erguendo-o para que novamente olhasse
para mim.
— Só quero companhia, Malu. Não vou pedir nada mais do que isso.
Ok, ao menos eu ia tentar não pedir. Conhecia minha posição naquela
situação, e não era das melhores. Eu fui o errado. Eu destruí nosso passado.
Minha melhor alternativa seria esperar e acreditar que as coisas dariam certo
daquela vez, só que... ela mexia demais comigo, e eu sabia que poderia ser
difícil resistir.
— Tá. Eu topo. — Mal consegui abrir um sorriso, e o dedinho
intrometido de Malu, em riste, colocou-se entre nós. — Mas você sabe as
regras, Lucas. Estamos na sua casa. Não quero que uma das meninas acorde e
interprete qualquer coisa errada.
Cheguei muito perto dela, levando minha boca ao seu ouvido. Sim, eu
sabia as regras. E ela me conheceu como um garoto levemente imprudente,
que não tinha muito medo de cometer alguns deslizes. Não pretendia avançar
nenhum sinal sem permissão, mas provocar era outra história.
— E fora da minha casa, onde ninguém pode interpretar nada errado?
Podemos esquecer as regras?
Afastei-me e nem dei tempo para que me respondesse, porque lhe dei as
costas e saí andando. Por um momento tive medo de que não me
acompanhasse, e ela até hesitou. Olhei para ela por cima do ombro e a vi com
os lábios entreabertos, olhos arregalados, parada como se os pés tivessem
fincado no chão como raízes.
Linda.
Porra, por que aquela mulher tinha que ser tão linda? Tão delicadamente
perfeita e tão doce...? Era difícil não querer simplesmente puxá-la para mim e
beijá-la, pegá-la no colo e levá-la para a cama – e por mais que eu a desejasse
como um louco, as minhas intenções não eram apenas carnais. Eu queria tê-la
abraçada comigo, aninhada ao meu peito, senti-la respirando e ouvir seu
coração batendo. Queria que se sentisse segura nos meus braços e que
pudéssemos compartilhar tudo. Cada momento, angústia, alegrias, choros e
risadas.
Sim, eu estava me apaixonando por ela de novo. E me apaixonaria
quantas vezes fosse preciso, porque Malu era feita para mim. Não duvidava
disso nem por um segundo.
CAPÍTULO TREZE
Lucas estendeu uma taça de vinho para mim, mas eu neguei, o que
pareceu deixá-lo um pouco desapontado. Estávamos na área externa de sua
linda casa, sentados à beira da piscina, e o clima já era propício demais para
coisas erradas. Muito erradas.
Eu estava trabalhando com aquela família há poucos dias... Não podia
estragar tudo tão cedo. Fosse como fosse, precisava do emprego. Talvez me
mantivesse ali apenas por alguns meses, até conseguir guardar algum
dinheiro. Passar muito tempo perto de Lucas não era uma boa ideia. Não
enquanto minha atração por ele ainda fosse tão latente.
E, aparentemente, a dele por mim também. O que tornava tudo ainda mais
complicado.
Lucas tinha servido apenas uma taça, que seria a minha, então não se deu
ao trabalho de preparar mais uma. Eu estava sentada com os pés na água,
então, ele agachou-se para pousar a bebida ao meu lado, tirou os chinelos e
sentou-se também, imitando minha posição. Seus pés grandes e masculinos
começaram a se mover dentro da água, criando pequenas ondas que vinham
bater nas minhas pernas. Suas mãos seguravam a borda com firmeza, como
se ele precisasse disso para se controlar, para não levá-las a qualquer outro
lugar do qual se arrependeria depois.
A taça do vinho tinto destacava-se entre nós como uma pequena barreira,
como que para nos lembrar de que não deveríamos ultrapassar limites.
— Você ainda pensa naquela noite? — A pergunta veio de forma tão
súbita que quase me sobressaltei. Era pessoal demais e evocava memórias
perigosas. Principalmente se eu fosse sincera na resposta.
— Vai fazer alguma diferença? Faz tanto tempo, Lucas — afirmei,
esperando não soar grosseira. Não era a minha intenção. Eu só estava com
medo.
— Talvez faça. Você não acha muita coincidência que nós tenhamos nos
encontrado exatamente naquele bar, exatamente naquela noite? Eu quase não
saio assim, Malu. Você nem morava aqui — Lucas falava com certa paixão, e
isso era contagiante. Queria me deixar levar por seu entusiasmo, mas havia
tantas coisas envolvidas. O meu coração partido, principalmente. As
lembranças de muito sofrimento que ultrapassavam as boas.
Não... não ultrapassavam, mas eram quase tão fortes quanto.
— O que você quer dizer com isso? — decidi me fazer de sonsa. Queria
que ele explicasse o que se passava por sua cabeça.
— Não é óbvio? Algo convergiu para que nos reencontrássemos. Destino,
acaso, o que for. Não posso fechar os olhos para isso. Não concorda? —
Lucas voltou os olhos imensamente azuis na minha direção, e eles tinham um
brilho quase de desespero, como se me convencer daquela sua certeza tão
ferrenha fosse seu novo objetivo de vida.
— Concordo. Acho, sim, que pode ter a ver com destino. Mas, mais do
que tudo, nossa história como amigos estava inacabada.
— Se é assim, por que você não surgiu quando ainda estava noiva? Ou
quando eu ainda estava casado? Por que a história parece estar sendo tecida
com tanta perfeição?
Dei de ombros, imitando-o e também segurando a borda da piscina,
enquanto meus pés dançavam sob a água.
— Não temos como saber.
Lucas suspirou.
— Não, não temos.
Ele pegou a taça entre nós, mas não a levou à boca, apenas ficou
brincando com ela, girando o líquido bordô, até este começar a criar ondas
também, como a piscina à nossa frente.
Ficamos em silêncio por algum tempo, mas eu sabia que Lucas estava
mais do que decidido a arrancar algo de mim.
— A pergunta ainda está valendo...
Respirei fundo, sabendo que ele não iria me deixar escapar tão fácil. Eu o
conhecia. Mais do que gostava de admitir. Lucas era obstinado,
principalmente quando se tratava de algo que ele queria muito. Não queria
ficar pensando sobre isso, no quanto ele me queria, mas começava a
compreender que nosso passado significara mais para ele do que imaginei a
princípio.
Só que fora ele quem desistira de tudo, não? Eu compreendia que
Catarina surgira no processo e que ele era homem o suficiente para nunca
abandonar sua filhinha – o que tornara muito difícil odiá-lo na época –, mas
eu não tinha culpa nenhuma em nossa separação.
— Claro que eu penso, Lucas — respondi, sentindo-me derrotada. Aquilo
não era para ser tão difícil, era? Ou o amor sempre era uma guerra, no final
das contas?
Sem olhar para mim, apenas ouvindo minha voz, ele assentiu.
— Foi um erro, Malu — ele soltou a afirmação do nada, e isso me
surpreendeu.
— O que foi um erro? O beijo?
Então virou a cabeça na minha direção, quase assustado pela minha
pergunta.
— Não! — respondeu com veemência. — Nunca! O erro foi não ter
lutado por você. Sempre fui teimoso e insistente em tudo na minha vida, tanto
que cheguei aonde cheguei, mas deixei a única coisa que eu mais queria na
vida partir.
— Essa coisa sou eu?
Merda, eu não deveria ter perguntado. Deveria deixar o assunto
morrer ou ele pensar que não importava. Mas era um pouco impossível,
porque... sim, eu pensava no beijo, pensava em Lucas mais do que deveria ser
correto, principalmente porque até pouco tempo eu estava noiva de outro. O
que, de certa forma, me tornava uma traidora também, não?
O que teria acontecido se Lucas tivesse aparecido na minha vida,
daquele jeito, falando aquele tipo de coisa e me olhando como estava olhando
naquele momento? Como se pudesse ler a minha alma? Eu teria jogado tudo
para o alto? Teria dado um fora em Jonas e revivido a história que sempre me
assombrou? Tentado uma nova chance com o homem que fora o meu
primeiro amor e que ainda mexia com o meu coração? Era uma incógnita,
mas a julgar pela forma como eu estava me sentindo ali, em sua casa, à beira
de sua piscina, sob a noite estrelada, eu sabia muito bem a resposta.
Novamente em um movimento que eu não previ, Lucas pegou a
minha mão; a mesma que também prendi à borda da piscina por segurança.
— Claro que é. Quando te deixei ir embora, quando arruinei todas as
chances com a melhor pessoa que conheci, percebi que o que poderíamos ter
vivido era algo singular. O tipo de amor que não acontece com todo mundo,
muito menos de um dia para o outro.
— Nem todas as histórias de amor têm finais felizes...
— Só se as duas partes desistirem. Eu desisti uma vez e me arrependo
tanto que dói. Não vou desistir de novo, Malu. A não ser que você me diga
que não sente mais nada por mim. Mas vai ter que fazer isso olhando nos
meus olhos e sabendo que a partir do momento em que disser, vou recuar e te
deixar em paz.
Era o certo a fazer, não? Dadas as circunstâncias, o fato de eu estar
trabalhando para ele, com suas filhas, o correto seria pedir para que
deixássemos todo o passado enterrado. Mas como? Como ignorar todo o caos
que acontecia dentro do meu peito? Como ouvir a razão quando era o coração
que gritava a plenos pulmões, pedindo que deixasse a prudência de lado e que
me jogasse de cabeça, por mais que tivesse medo de me magoar novamente?
Minha mãe sempre agira com o coração... e olha só no que deu. Dois
homens que a machucaram de formas diferentes. E um que machucara
também a mim.
Mas por mais que isso pudesse me garantir o prêmio da maior idiota
do século, eu não acreditava que Lucas pudesse me ferir.
— Eu sinto — respondi baixinho, sem encará-lo. Tudo o que senti
foram seus lábios tocando os nós dos meus dedos, e eu precisei fechar os
olhos para absorver a sensação.
É apenas um beijo na mão, Malu. Não é possível que você esteja tão
carente assim.
Se essa minha reação era um indicativo, a melhor escolha era escapar de
perto dele. Ok, eu tinha admitido meus sentimentos – embora eles
provavelmente estivessem bem evidentes o tempo todo. Ok, com essa
admissão eu sabia que Lucas iria continuar falando e fazendo aquele tipo de
coisa. A culpa fora minha, porque eu poderia muito bem negar. Só que...
talvez eu precisasse de um tempo, né? Tudo era tão recente... E eu precisava
que ele soubesse disso. Por isso, sentindo-me bastante atordoada, arranquei
meus pés de dentro da água e me levantei.
— Está tudo acontecendo muito rápido — afirmei.
Lucas se levantou também, em um movimento muito mais gracioso do
que o meu.
— Rápido? Seis anos, Malu. Para mim isso é tempo pra caramba —
brincou e abriu um sorriso de canto, de derreter calcinhas.
Ah, Deus! Como eu conseguiria resistir?
— Agora. As coisas estão acontecendo rápido agora. Eu mal cheguei.
— Você sabe ser arisca. Se eu te der tempo para pensar, você vai fugir.
Coloquei as mãos na cintura, tentando uma postura mais relaxada.
— Estou trabalhando para você e morando na sua casa, espertinho. Fica
difícil fugir.
— Ainda bem... porque não pretendo deixar dessa vez. — Lucas deu um
passo na minha direção. Sexy. Olhando para mim como se quisesse me
devorar. O homem era um metro e noventa de pura tentação, e eu não era de
ferro.
Só que decidi recuar por puro instinto.
Péssima decisão, porque esqueci completamente que havia uma piscina
atrás de mim.
No momento em que meu pé pisou no nada, eu soube que iria cair.
Lucas arregalou os olhos e se preparou para me segurar, mas ao invés de
pegar a mão dele, agarrei sua camisa e o puxei junto comigo.
Sem querer, eu juro.
Caímos os dois na água.
Aquela parte da piscina era funda, e eu não era uma exímia nadadora.
Lucas sabia disso, então, eu apenas senti um braço musculoso se enganchar
na minha cintura, puxando-me para cima.
Ao menos tive a inteligência de prender a respiração ou seria péssimo.
Fosse como fosse, assim que ele nos guiou à superfície eu comecei a
tossir. Seu braço ainda me apertava firmemente contra si, enquanto ele nos
levava à parte mais rasa, onde conseguimos colocar os pés no chão.
Lucas não me soltou, e enquanto eu me recuperava, ele gentilmente
afastou meus cabelos da testa. Quando consegui abrir os olhos, vi um sorriso
enorme em seu rosto bonito.
Bonito? Era até pecado usar essa palavra para descrevê-lo. Lucas era uma
perfeição. Com os cabelos molhados, então? Jogados para trás? Era covardia
para todos os outros seres humanos do sexo masculino.
— Você está bem?
Não. Como poderia estar, com ele me segurando daquela forma?
— Acho que sim. Me desculpa por ter te trazido comigo.
Lucas deu uma risadinha sensual.
— Valeu a oportunidade de ter você assim... — E ele me puxou um
pouco mais para si, colando nossos corpos. Rostos muito próximos.
Muito próximos.
Bocas então...
— Lucas, eu... — tentei argumentar, mas nem sabia o que dizer. Como
iria formular pensamentos coerentes com ele daquele jeito? Seduzindo-me
sem esforço?
— Eu disse que não iria ultrapassar limites dentro da minha casa, mas,
tecnicamente, estamos fora dela.
— Isso não é certo — eu falei, mas estava sorrindo. Meu ponto fraco.
— Isso é a coisa mais certa da minha vida, Malu. Além das minhas filhas,
você é a resposta para tudo. E eu vou te beijar. É sua chance de me impedir.
Ele me deu alguns segundos. Suficientes para que eu dissesse não. Para
que o empurrasse ou me desvencilhasse de seus braços – ou tentasse, já que
estava me segurando com força contra si. Eu nunca poderia dizer que ele se
aproveitou da situação, porque simplesmente deixei.
E, como prometido, ele me beijou.
Seus lábios vieram suaves primeiro, depois me tomaram com sede, com
fome, com desejo. Antes de exigir mais, Lucas usou os dele para morder os
meus, puxando-os, lambendo-os com a ponta da língua, tomando seu tempo,
sem pressa, sem hesitações.
Roçou-os, suspirou, eu gemi de expectativa, respiramos fundo os dois. A
ansiedade acelerou meu coração. Para quem afirmava que não queria que
ultrapassássemos limites, eu estava desesperada demais para ser beijada.
No momento em que sua língua começou a abrir passagem, ele me pegou
com os dois braços, ambos entrelaçados à minha cintura, agachando-se, e
meus pés pararam de tocar o chão da piscina. Isso facilitou o beijo, porque
não havia mais diferença de altura entre nós.
Eu deveria resistir, mas no momento em que nossas línguas se tocaram,
uma enxurrada de sentimentos me atacou com violência, fazendo-me
agradecer por Lucas estar me segurando com tanta firmeza ou eu
simplesmente cairia. Envolvi seus ombros com meus braços também,
permitindo que aquele encontro acontecesse. Nosso segundo beijo em seis
anos.
Era perfeito, exatamente como eu me lembrava. Doce, mas intenso.
Profundo, sexy, excitante. Cálido. Embriagador. Roubou todos os meus
pensamentos e discernimento. Nem me importava que alguém nos visse,
contanto que ele continuasse me beijando daquele jeito.
Parecendo tão fora de si quanto eu, começou a caminhar, ainda me
segurando pela cintura, saindo da piscina pelos degraus de ladrilhos, amplos,
não pela escadinha mais ao fundo. Sentia-me uma boneca de pano em seus
braços, principalmente quando me deitou na espreguiçadeira, colocando-se
sobre mim, aprofundando o beijo ainda mais.
E eu deixei... porque não conseguia ter discernimento suficiente para
negar. Queria mais e mais. Queria tudo. Tudo que nos foi negado por tanto
tempo.
Só que Lucas se afastou por um segundo, para recuperar o ar, e nesse
instante as coisas mudaram.
Meu Deus! Nós estávamos na casa dele, molhados, nos beijando como se
o mundo fosse acabar no dia seguinte. Se alguém nos visse...
Antes que ele pudesse recomeçar, coloquei a mão em seu rosto, entre
nossas bocas.
— Lucas, calma. Por favor, vamos com calma.
Como se estivesse se livrando de um sonho, afastou-se de mim,
colocando-se de pé.
— Desculpa, Malu... desculpa. Não era para irmos tão longe, mas... —
Ele passou a mão pelos cabelos molhados, jogando-os para trás. — Meu
Deus... eu queria tanto... há tanto tempo.
Sentei-me, tentando me recompor, e aceitei a mão que ele estendeu para
me ajudar a levantar.
Ele ficou esperando que eu dissesse algo, mas tudo o que consegui fazer
foi sorrir.
— Boa noite, Lucas.
Então simplesmente me apressei, entrando em casa, antes que qualquer
um de nós cometesse outra imprudência.
CAPÍTULO QUATORZE
Mas o que diabos tinha acontecido?
O. QUE. DIABOS?
Eu não apenas deixei que Lucas me beijasse, mas me beijasse daquele
jeito.
Quando foi que simplesmente permiti que a razão fosse completamente
sequestrada pelas minhas emoções, fazendo-me esquecer a situação que nos
rondava?
Não era certo... não mesmo. Mas, Deus, era bom. Mais do que bom.
Era perfeito. Foi como abrir a caixa das minhas lembranças mais valiosas
e deixá-las voarem como borboletas ao meu redor.
E agora, o que eu faria para aprisioná-las de volta?
Encharcada como estava, tentei me secar um pouco na área de serviço,
com uma toalha que peguei na lavanderia, ao menos para não sair pingando a
casa toda, mas o fiz com pressa, com medo de que Lucas surgisse ali e
novamente me arrebatasse daquele jeito.
Que hipócrita, Malu! Isso era exatamente o que você queria que
acontecesse.
Subi as escadas pé ante pé, com cuidado para não escorregar, já que
estava descalça, quase indo para o meu quarto, mas decidindo dar uma
olhadinha nas meninas antes de me recolher de fato.
Fui ao quarto delas, abrindo a porta bem devagar, e consegui checar tudo
graças à luzinha que Lucas sempre deixava acesa para elas – de acordo com o
que Teresa me explicou.
Alice estava em sua cama. Catarina, não.
Respirando fundo, saí, fechando a porta novamente e começando a me
preocupar de que aquela menininha fosse um pouco mais complicada de se
lidar.
Antes de me desesperar, decidi procurar no lugar mais óbvio – o
quartinho de brincar.
Subi mais um lance de escadas, chegando ao sótão da casa que fora
adaptado para as crianças. Para o meu alívio, encontrei as luzes acesas.
Por mais que eu fosse a adulta ali e tivesse autonomia para entrar em
qualquer cômodo, especialmente quando a criança em questão estava
desobedecendo a hora de dormir em um dia de semana, queria conquistar sua
confiança, então, bati à porta, mas não lhe dei tempo de responder, porque
sabia que poderia escapar.
Enfiei a cabeça pela fresta, olhando lá para dentro e vendo seus olhinhos
olharem para mim também, um pouco assustados.
— Oi, querida. Não consegue dormir? — Ela hesitou um pouco, mas fez
que não com a cabecinha. Seus olhinhos estavam tristes, o que me deixou
preocupada. — Posso entrar? — Ainda sem dizer nada, deu de ombros, e eu
tomei isso como um consentimento.
Depois de nos fechar lá dentro, para que ninguém percebesse que o
cômodo estava ocupado, caminhei até Catarina, que estava sentada a uma
escrivaninha, e puxei um pufe para me acomodar ao lado dela.
Dei uma olhada no que ela estava fazendo e percebi que não se esquivou
nem tentou esconder. Seria um bom sinal?
Percebi que estava desenhando em um bloco sem pautas. Havia crayons,
lápis de cor e hidrocores espalhados pela mesa, e ela parecia muito
empenhada.
Meus olhos se arregalaram quando vi que se tratava de algo muito
decente para uma garotinha de seis anos. Eram duas garotinhas, apenas seus
rostos. Uma delas possuía um cabelo bem similar ao de Catarina e a outra era
uma representação quase fiel de Alice. Ambas estavam lado ao lado, e as
proporções eram boas. Os traços não eram firmes, ela deixava escapar alguns
riscos coloridos, mas em um todo, era fácil perceber que tinha talento e que
poderia chegar muito longe com alguma orientação.
— É um lindo desenho — comentei, tentando parecer blasé para não
afugentá-la. — Mas por que você veio desenhar a essa hora? Está com algum
problema?
Novamente o encolher de ombros.
Eu não conseguiria arrancar muita coisa dela se mantivesse aquela
atitude, então apontei para a resma de papel, com uma expressão de
indagação.
— Posso?
O que ela fez? Encolheu os ombros.
Ok. Não era uma grande vitória, mas eu não estava disposta a desistir.
Desenhos não eram o meu forte, é claro, mas comecei a rabiscar qualquer
coisa na folha em branco, esperando que não parecesse um demônio ou algo
obsceno. Não que fosse a minha intenção, é claro, mas levando em
consideração que eu era péssima, qualquer coisa poderia surgir ali.
Ao menos chamei a atenção dela, porque Catarina finalmente olhou para
mim, enquanto eu também tentava desenhar. Não fez nenhum comentário,
mas julguei que era algum começo, especialmente quando começou a falar.
— Quero enviar esse desenho para a minha mamãe — ela soltou sem
mais nem menos, e eu decidi não parar de rabiscar, porque não queria que a
garotinha pensasse que eu estava muito interessada em seu relato.
Eu estava, na verdade, mas ela não precisava saber disso.
— Ela vai adorar, com certeza.
— Não sei — falou baixinho, quase envergonhada. — Papai já mandou
outros para ela para mim, mas mamãe nunca respondeu.
O quê? Que tipo de mãe ignorava um presente como aquele?
— Talvez ela ande ocupada, querida.
Mais um encolher de ombros.
— Sempre está. Até quando morava aqui em casa. Nunca tinha muito
tempo para mim. E ela foi embora por minha causa.
Naquele momento eu larguei o crayon que usava e olhei para ela. Como
Catarina não prestava atenção em mim, coloquei a mão sobre seu punho, com
toda delicadeza possível, fazendo-a voltar-se para mim.
— Tatá — usei o apelido que combinamos que eu usaria com ela quando
ainda jurei que seríamos amigas desde o primeiro dia —, por que você está
dizendo isso?
— Ela brigou comigo antes de viajar. Eu fiz muita bagunça, e ela ficou
zangada. Falou que eu era uma garotinha muito malvada, que não adiantava
dizer que amava a minha mamãe quando fazia tudo errado. — Ela fez uma
pausa e começou novamente a rabiscar, mas parecendo bem mais
desanimada. — Ouvi quando falou para o papai que não me aguentava mais,
que queria sumir. E foi bem depois do que eu fiz. Uns diazinhos depois, foi
embora.
— Não, meu amor. Não teve nada a ver com você, pode ter certeza.
— Teve, sim. Eu chorei muito pedindo desculpa, mas ela não me ouviu.
Disse que me desculpava, mas que mesmo assim precisava ir embora.
O quanto aquela menininha deveria ter chorado antes para conseguir falar
tudo aquilo sem verter uma lágrima? E como Laura tivera coragem de partir
deixando sua filhinha acreditar que era a culpada?
— Querida, alguma vez você disse isso ao seu papai? — perguntei,
começando a ficar muito preocupada.
— Uma vez. Mas ele ficou muito triste. Pediu que eu nunca mais
pensasse em algo assim, mas eu não consigo. — Catarina ergueu os olhinhos
para mim, e... pronto. Ela estava chorando.
Meu Deus, eu podia entender Lucas. Como olhar para aquela carinha
linda tão triste e não se comover?
— Eu entendo, meu amor. Sei que é difícil. — Fiz uma pausa. Eu
precisava fazê-la entender que não era errado, então, talvez, fosse uma boa
ideia abrir meu coração, mas sem revelar coisas demais, que não podiam ser
compreendidas por uma menininha tão jovem. — Minha mamãe, uma vez, se
casou de novo. Eu tinha uns quinze anos, sabe? Ela se casou com um moço
que não era muito legal. Só que todas as vezes que ele fazia uma maldade,
dizia que era minha culpa.
— Ele machucava você?
Aquilo me fez, de fato, arregalar os olhos. Como assim uma menina de
seis anos já podia entender que pessoas adultas faziam coisas cruéis? Ela
deveria viver em um mundo melhor onde não precisasse ter aquele tipo de
conhecimento, ainda assim, que bom que tinha, porque era perigoso criar
uma criança de forma completamente inocente, sem saber o que poderia
cercá-la.
— Já aconteceu, mas ficou tudo bem. Mas, na época, por mais que minha
mãe e outras pessoas me dissessem que eu não tinha culpa, eu não acreditava.
Chegou um dia em que comecei a entender as coisas e percebi que pessoas
adultas fazem o que querem ou precisam fazer, mesmo que ninguém mais
seja culpado.
— Minha mamãe diz que precisou ir embora, mas eu acho que ela quis —
a voz de Catarina novamente soou baixinha, e ela fez um biquinho adorável
enquanto voltava seus olhinhos para o papel mais uma vez.
— Se ela quis, você não teve culpa.
E lá estava o milésimo dar de ombros daquele dia.
Ficamos em silêncio, as duas. Provavelmente era muito errado, porque eu
deveria mandá-la ir para cama, mas como? Depois daquele relato, de ter me
mostrado sua dor, como iria obrigar Catarina a ir dormir? Eu entendia muito
bem daquele tipo de insônia.
Precisava me lembrar de conversar com Lucas no dia seguinte sobre
tentar alguma terapia para sua filha. Ela era muito novinha para ter tantas
preocupações sérias na cabeça.
Acompanhando-a, voltei a rabiscar meu papel também. Quando Catarina
terminou, ela observou seu próprio desenho e olhou para mim. Depois olhou
para o desenho de novo, mais uma vez para mim, até que o estendeu na
minha direção.
— Acho que mudei de ideia. Vou dar o desenho para você.
Ah, Deus! Como não sentir o coração se enchendo de amor?
Um sorriso amplo curvou meus lábios.
— Para mim? — Levei a mão ao peito, tentando uma expressão de
surpresa descontraída, que não era exatamente o que eu estava sentindo. Mas
tudo era uma estratégia para segurar as lágrimas. — Ah, querida, eu adorei!
Posso pedir para você escrever algo para mim e assinar?
— Tipo um autógrafo? — Ela pareceu confusa, e eu assenti. — Mas eu
nem sou famosa.
— Ah, mas vai ser um dia. — Olhei para o meu desenho, fazendo uma
careta e o ergui. — Se você quiser essa coisa feia, eu posso te dar também.
Catarina sorriu. Uma delícia de sorriso.
— Está feio mesmo. — Juntei-me a ela, e nós duas demos uma risada
gostosa. — Mas eu aceito.
— Ótimo. Vou caprichar na dedicatória.
E nós duas nos colocamos a escrever. Eu terminei primeiro, mas esperei
Catarina desenhar letrinha por letrinha com dificuldade. Ela ainda era muito
novinha, mas sabia que já podia escrever, porque vi seus cadernos, e sua
caligrafia era até bem bonitinha.
Quando terminou, leu o meu em voz alta, com um pouco de dificuldade:
— Para Tatá, a garotinha mais doce que já con... con... — ela
gaguejou na última palavra, por causa do dígrafo, mas eu a ajudei.
Então eu fiz o mesmo com o dela.
— Pra Maria. Obigada por ser mia baba. — Não estava escrito
perfeitamente, é claro, e ela tinha alguma dificuldade com o H e com o
acento, mas era maravilhoso.
Esperava que aquele fosse um bom começo entre nós.
Levei o desenho aos lábios e o beijei, enrolando-o e segurando-o com
cuidado.
— Agora, querida, o que acha de voltar para a cama?
Catarina assentiu, não muito animada. Ainda assim seguiu-me
obedientemente, entrou no quarto, deitou-se na cama, e eu a cobri.
— Por que você está toda molhada? Eu vi antes, mas fiquei com
vergonha de perguntar. — Ai, meu Deus! O que eu iria dizer?
Bem... não precisava mentir, né?
— Eu sem querer caí na piscina, acredita? — Só não precisava contar que
seu pai tinha caído junto e me beijado desesperadamente.
Para a minha sorte, Catarina apenas deu de ombros e mudou de assunto:
— Você me conta uma história? — pediu com muita meiguice. Eu estava
doida para entrar em um banho, tirar o cloro do corpo e vestir uma roupa
quente, mas não podia lhe negar nada naquele momento.
— Mas e Alice? Não vai acordar?
— Não! Ela dorme pesado.
— Ok, então.
Sentei-me ao lado da cama e comecei a contar uma história antiga, dos
irmãos Grimm, cujo livro eu me lembrava de ter lido bem mais nova. Era
uma daquelas que a Disney não abraçara, então, Catarina não conhecia.
Pouco antes do final, eu a senti sonolenta. Quando terminei, ela se
aninhou na cama, de forma mais confortável, e eu a beijei na testa.
— Boa noite, Tatá. Bons sonhos.
— Boa noite, Maria. Obrigada.
Eu não sabia pelo quê ela estava agradecendo, mas estava feliz em ter
podido ajudar.
CAPÍTULO QUINZE
Pequenas coisas são capazes de criar laços instantâneos. Não que eu
acreditasse que Catarina e eu tínhamos nos tornado grandes amigas, mas
sabia que as coisas haviam melhorado e muito.
Prendi seu desenho em um mural em meu quarto, bem perto da minha
cama, e ela já tinha me dado mais dois durante o último mês. Alice, uns vinte.
Ou melhor, alguns rabiscos indefinidos, mas melhores que os meus, sem
dúvidas.
Isso as deixava felizes, e eu comecei a entender que os sorrisos daquelas
garotinhas também me deixavam feliz. Por elas, eu começava a amar o meu
emprego e estar naquela casa.
Enquanto isso, certo homem irresistível e muito sedutor tornava as coisas
um pouco mais difíceis. Não que Lucas fosse inconveniente, mas a culpa era
minha por ele mexer tanto comigo. Só era preciso um olhar, sua voz
chamando meu nome, um sorriso ou um carinho nas meninas para que eu me
derretesse por ele e começasse a lembrar do beijo como uma adolescente.
Como a garota boba que eu era seis anos atrás e que se iludiu que aquilo
poderia se tornar algo real, palpável, não apenas o conto de fadas que sempre
jurei que Lucas me proporcionaria.
Sabe aquela coisa da menina que sempre sonha com seu príncipe
encantado? Lucas era o meu. Meu refúgio, meu amigo, meu primeiro amor.
Só que quando ele partiu meu coração, minhas ilusões se quebraram
também em cacos. Milhares de cacos que eu não consegui colar nem mesmo
com o passar dos anos.
O tempo nem sempre cura tudo. Há amores que se instalam tão
profundamente no coração, que fica impossível tirá-los de lá.
Por causa da intensidade desse sentimento, nunca deixei de acreditar que
um dia ainda encontraria Lucas novamente, e nós teríamos chance de, ao
menos, conversarmos e resolvermos algumas pendências. E eu não estava
errada. Mas eu ainda tinha medo.
Mas fosse como fosse, o foco eram as meninas. E Lucas vinha
respeitando minha distância.
Naquele exato momento, estacionava o carro que Lucas deixou comigo
em frente à escola de Catarina. Não estava com Alice, porque a professora da
mais velha chamou um dos responsáveis para uma reunião, e uma bebezinha
sapeca não seria uma boa ideia para uma conversa enfadonha.
Claro que eu não era a mãe de Cathy, e Lucas seria muito mais
indicado para a missão, mas ele estava um pouco enrolado no trabalho. Eu
poderia pegar o recado e repassar.
Estava um pouco preocupada quando bati à porta da sala de aula onde
a professora dissera que iria me encontrar. Lucas enviara meu telefone a ela,
para que nos comunicássemos, e eu recebi uma mensagem de Whatsapp com
todas as diretrizes. Era importante que eu chegasse na hora certa, porque as
crianças estariam na aula de Educação Física, e ela não queria que ninguém
nos ouvisse.
Aquilo não era um bom sinal. Era?
Bati na porta, e a jovem professora de Catarina, com seus cabelos
encaracolados e loiros, olhou para mim, sorrindo. Ela mal parecia irritada. Ou
então era uma boa atriz.
— Maria Luísa? — perguntou, levantando-se e vindo em minha
direção.
— Sim. — Ela estendeu a mão para mim, e eu sorri.
— Ah, é um prazer conhecê-la. Catarina tem falado muito sobre você
nos últimos dias.
— Ela tem? — Aquilo me surpreendeu. — Espero que bem.
— Aparentemente você se tornou a melhor amiga dela.
Meu coração inchou dentro do peito. Fazia um mês que tínhamos
conversado, mas eu não imaginava que ela havia falado de mim para sua
professora.
— Na verdade, é exatamente sobre isso que quero falar com você. —
A professora se afastou de mim, indo em direção à sua mesa. Acompanhei-a,
observando-a enquanto abria uma pasta e tirava de lá um papel. Voltando
para mim, estendeu um desenho, provavelmente de Catarina, porque eu já
conhecia seu estilo.
Na imagem, havia um homem, duas crianças e uma mulher. Todos os
quatro de mãos dadas. Por um momento imaginei que fosse Laura, mas os
cabelos eram negros e tinham uma franja muito parecida com a minha.
Bem, e eu nem precisava ir muito longe, porque havia os nomes
escritos abaixo das imagens. Lucas, Catarina, Alice e... Maria.
— Eu perguntei a Catarina o que isso queria dizer, e ela me disse que
essa era a nova família dela. Perguntei da mamãe e recebi a resposta de que
quando esta voltasse, ela a desenharia também, mas que por enquanto você
era a melhor amiga dela. Achei muito fofinho.
Era fofinho. Adorável. Mas um pouco preocupante. Ok, eu e Lucas
tínhamos um passado, e havia alguma chance de que...
Ah, meu Deus! O que eu estava pensando? Eu não podia alimentar
aquele tipo de ilusão, nem em mim e nem nas crianças. Não podia deixar
transparecer que eu e Lucas nutríamos sentimentos um pelo outro. Aquelas
meninas já tinham sofrido demais pelo abandono de uma mãe; o que
aconteceria se acabassem se apegando a mim e as coisas não dessem certo
entre mim e seu pai?
Tudo era bem mais complicado do que pensei a princípio. Não era
apenas o meu coração que estava em jogo, mas os coraçõezinhos de duas
crianças.
Nem soube o que responder à professora de Catarina, mas ela foi mais
rápida.
— Bem, Maria Luísa...
— Malu — corrigi, esperando que pudéssemos ter um pouco mais de
informalidade na conversa.
— Ah, sim! Malu... então... eu te chamei aqui para te dizer que
teremos uma mostra de talentos daqui a algumas semanas, e eu queria que
Catarina participasse. Acho que ela tem muito futuro com seus desenhos.
Queria que você e o Sr. Montanari a ajudassem a preparar alguns trabalhos
para expormos. Uns cinco seriam suficientes e mais este aqui, que eu,
particularmente, acho que está muito bom.
— Uau! Isso é muito legal! — Eu sabia que aquela criança tinha
talento. E o orgulho que preencheu meu peito foi delicioso. — Vamos ajudá-
la, com certeza. Lucas vai... — Engoli em seco, pensando na minha gafe. —
O Sr. Montanari vai ficar feliz também.
— Imagino que sim. Mas a verdade é que a Catarina não quer
participar.
— Como não quer? Por quê?
A professora deu de ombros.
— Conversamos ontem, mas ela disse que não se achava boa o
suficiente, porque a mãe dela nunca ligava para seus desenhos. Mas eu, de
verdade, acho que aquela menina tem talento. E a nossa mostra vai contar
pontos para a matéria de Artes. Claro que ela poderia recuperar de outra
forma, mas seria uma forma de incentivá-la.
— Sim, eu entendo. E concordo. — Suspirei, chateada pela situação.
Como uma mãe não dava valor para os esforços de uma garotinha como
Catarina? — Mas eu preciso que você entenda que eu sou só a babá. E estou
na função há muito pouco tempo. Não acho que tenha tanta influência assim
em suas decisões.
— Não é o que parece, a julgar pelo desenho. — A professora ergueu
o papel, mostrando-me e sorrindo. Estava na cara que tinha usado aquilo para
me fazer acreditar que eu possuía algum poder em relação àquela família.
Eu esperava que fosse mesmo o caso, mas no melhor sentido possível.
Depois da conversa com a professora, fiquei esperando Catarina sair
da Educação Física. Quando a vi correndo na minha direção, toda suada e
com os cabelinhos presos, fiquei pensando em tudo aquilo, principalmente na
minha presença em seu desenho, de mãos dadas com elas, formando uma
corrente com Lucas. Como se fôssemos uma unidade.
O que isso significava para mim? Qual era o sentimento que me
provocava?
Só que não tive tempo de refletir muito, porque a menina se lançou
nos meus braços, pegajosa como um pequeno sapo, mas eu nem me importei.
— Pensei que você não ia me deixar te abraçar assim — ela falou
comigo, rindo, assim que se afastou.
— Ué, por que eu não deixaria?
— Mamãe dizia que eu saía nojenta da educação física e que eu iria
estragar as roupas caras dela.
Naquele momento eu jurei por Deus que se encontrasse aquela escrota
da Laura, enfiaria um soco na cara dela. Um bem dado.
Tá que eu era uma negação brigando. Provavelmente iria apanhar
mais do que bater, mas o que valia era a intenção, não?
— Não tem problema, meu amor. Acho, inclusive, que quando
chegarmos podemos cair na piscina. O que acha? — Era sexta-feira, estava
um dia lindo, e Lucas já tinha falado mais de uma vez que deveríamos
aproveitar. Então era o que faríamos.
— Oba! — Ela deu um soquinho no ar, comemorando, e eu achei a
coisa mais fofa do mundo.
Coloquei-a no banco de trás do carro, afivelei seu cinto de segurança
e entrei atrás do volante. Não liguei a música, porque tinha toda a intenção de
conversar com ela.
— Falei com sua professora hoje, sabia? — soltei, de forma
despretensiosa.
— Com a tia Jana? — Assenti, olhando-a através do espelho
retrovisor. — O que ela disse?
— Que você é uma desenhista muito talentosa. Ela me contou
também sobre a mostra de talentos. Achei incrível. O que você vai preparar?
— fingi-me de desentendida, mas a carinha de Catarina me fez murchar.
— Não vou participar — a vozinha e a cabeça baixa partiram meu
coração.
— Ué, como assim?
— Eu não quero falar sobre isso, Maria, tudo bem? — Ela estava tão
tristinha. Minha vontade era saltar do carro e abraçá-la, mas me mantive
firme.
— Querida, você é muito boa. Não deveria deixar de aproveitar um
dom como esse.
— Mas eu não me acho boa. As pessoas iam zoar meus desenhos.
— Impossível. Eles são ótimos.
— Olha, eu vou pensar, tudo bem?
— Promete? — tentei.
— Prometo.
Com essa promessa, voltamos para casa, e eu liguei a playlist
preferida dela, de músicas da Disney, tentando amenizar o clima, porque
aquela garotinha não merecia sofrer, muito menos menosprezar a si mesma.
Não mesmo. E eu não iria permitir.
CAPÍTULO DEZESSEIS
Era quase um milagre chegar em casa relativamente cedo, mesmo sendo
sexta-feira. Mas ter Malu presente me fazia ter vontade de nem sair. Claro
que eu já tinha esse sentimento antes, com as meninas, mas as três juntas e as
risadas que compartilhavam deixavam meus dias mais repletos de amor.
Naquela tarde, em especial, voltei só para me deparar com elas na piscina.
Brincavam às gargalhadas, e eu parei para observá-las, tentando ignorar o
quanto a visão de Malu em um maiô – por mais comportado que pudesse ser
– era tentadora. Sorri ao ver Alice nadando com duas bóias, uma em cada
bracinho, no colo de Malu, para pegar Catarina, que fugia toda graciosa.
Assim que me viram, saíram correndo na minha direção, deixando a
piscina e agarrando minhas pernas – uma em cada –, me molhando todo. Mas
eu nem me importava. Só queria aquele carinho.
Agachei-me para ficar do tamanho delas, beijando-lhe as cabecinhas,
enquanto as duas falavam sem parar. Lancei um olhar de esguelha para Malu,
que continuava dentro d’água, como se estivesse se escondendo de mim. Era
difícil não sentir todo o magnetismo que nos rondava; mais difícil ainda
controlar a vontade desesperadora de beijá-la novamente que todos os dias
me inundava.
Não apenas beijá-la, é claro.
Porra, eu estava louco por ela novamente. Louco como um dia fui. Havia
uma espera de seis anos, e eu começava a entender que não conseguiria me
controlar por muito mais tempo. Nunca tive a oportunidade de tocar o corpo
de Malu. Nunca pude sentir a plenitude de fazer amor com a mulher que eu
sabia que era a única para mim.
E aquela era a primeira vez que eu a via com tão pouca roupa.
Meu pau, certamente, aprovava. Ou melhor, ele estava gritando dentro da
minha calça social, ao ponto de eu precisar afastar as meninas dali o mais
rápido possível, antes que perguntas indiscretas tivessem início... Vai saber...
Salvando-me de um terrível constrangimento, Teresa surgiu.
Santa mulher.
— Meninas, por que não pedem para a Tetê dar banho em vocês hoje? —
Poderia ser um abuso da minha parte, mas ela abriu os braços, feliz por poder
ajudar.
Na verdade, depois do beijo, eu contei a Teresa, e ela parecia estar sempre
prestes a tentar me deixar sozinho com Malu, mas esta sempre fugia de mim.
Daquela vez, isso não iria acontecer.
— Ah, papai, a gente ainda quer brincar um pouco mais — Cathy
lamentou, fazendo um biquinho que normalmente me ganhava, mas, daquela
vez, precisei ser firme.
— Vamos brincar mais tarde, mas fora da piscina. Já está escurecendo e
daqui a pouco precisamos jantar.
Ela saiu batendo pé, mas foi. Alice a seguiu, como sempre.
E eu fiquei sozinho com Malu. Ela ainda não tinha saído da piscina.
Comecei a me aproximar devagar, sem tirar os olhos dela, muito sério.
Colocando-me diante das escadas, estendi a mão, na intenção de ajudá-la a
sair da água. Malu a aceitou e o fez em silêncio, tocando-me no processo.
Assim que ela se colocou diante de mim, um vento frio a fez estremecer.
Não saberia dizer se fora, de fato, pela temperatura ou se tinha algo a ver com
nossa proximidade. Porque eu me sentia afetado sempre que a tinha assim tão
perto. Sentia uma necessidade quase dolorosa de tocá-la, de puxá-la para os
meus braços.
Com pressa, peguei uma toalha que estava sobre uma espreguiçadeira,
mas ao invés de entregá-la a Malu, eu mesmo passei-a ao redor de seus
ombros e a envolvi, quase como um abraço.
Porra... a expressão em seus olhos... ela parecia quase desamparada,
tímida, vulnerável, doce... Me enlouquecia.
Comecei a secá-la com toda a minha delicadeza, passando por seus
ombros, seus braços, e ela deixou. Se me proibisse ou me rechaçasse, eu
rapidamente iria me afastar. Mas seus olhos, fixos em mim, me diziam que
também necessitava daquele contato.
Eu necessitava de mais. Dela inteira. Só que precisava caminhar com
calma para não assustá-la.
— Está virando uma tradição nossa eu te tocar quando você está toda
molhada de água da piscina. — E eu a queria toda molhada. Mas de outras
formas. Queria deixá-la assim, excitada, gemendo, enquanto eu a beijava dos
pés a cabeça. Enquanto a venerava como sempre quis fazer.
Ela sorriu, tímida.
— Espero que não ache um abuso eu estar na sua piscina, mas as meninas
insistiram para que eu entrasse também e...
— Ei! — eu a interrompi. — Você mora aqui agora. Se Teresa quiser
usar a piscina, ela pode também. Só que não gosta de sol — respondi
sorrindo.
— Tudo bem, então. — Malu enrolou a toalha em seu corpo, impedindo-
me de poder olhar para ela naquele maiô florido, comportado e extremamente
sexy. — Bem, vou tomar um banho para jantar.
— Vou te acompanhar. Também preciso de um. As meninas me deixaram
encharcado.
Entramos juntos na casa e subimos as escadas lentamente, lado a lado, em
silêncio. Eu queria dizer alguma coisa, mas não sabia exatamente o quê. Não
queria que continuasse daquele jeito, tão reticente ao meu respeito. Ela estava
trabalhando para mim há pouco mais de um mês, já era para termos, ao
menos, recuperado um pouco da informalidade.
Para a minha sorte, Malu falou:
— Será que a gente pode conversar depois do jantar? É sobre a Catarina.
— Aconteceu alguma coisa com ela? — preocupei-me.
— Não exatamente. Nada de ruim. É só sobre algo que fiquei sabendo na
escola hoje, mas algo bom.
— Ah, claro. Assim que terminarmos de comer, podemos fazer isso.
Malu assentiu, e foi quando me dei conta de que estávamos em frente à
porta do quarto dela.
— Até mais... — despediu-se e entrou, novamente fugindo.
Como era possível que eu já estivesse ansioso pela nossa conversa de
mais tarde, que seria apenas sobre a minha filha?
Depois de mais ou menos umas duas horas, terminamos de comer e ainda
ficamos à mesa, conversando. As meninas falavam sobre seu dia,
empolgadas, e pediam a Malu que assistisse a algum filme com elas. Decidi
fazer parte do momento, porque queria mais algum tempo com minhas filhas,
mas as duas dormiram no sofá, e nós as levamos para o quarto. Eu com
Cathy, e Malu com Alice.
Colocamos as duas em suas camas e saímos do quarto, ficando sozinhos
no corredor; bem de frente para a porta do meu quarto.
— Você não queria falar comigo? — indaguei, tentando soar inocente.
Claro que eu queria que ela entrasse, que ficasse comigo bem próxima a
uma cama, mas obviamente não iria pressioná-la a nada.
— Ah, sim! Quero ainda.
Abri a porta para que ela entrasse, e Malu parou, arregalando os olhos.
— No seu quarto?
— Podemos ir para outro lugar, mas estamos aqui... Não vejo
necessidade.
Malu pensou um pouco, mas assentiu, então nós dois entramos.
Ela não olhou ao redor, não tentou bisbilhotar nada, apenas continuou
parada, muito próxima à porta, como que pronta para fugir a qualquer
momento.
— Adianta eu pedir que fique à vontade? — perguntei em um tom de
brincadeira, e Malu sorriu. Seus ombros relaxaram quase que
instantaneamente, como se quisesse demonstrar que estava sendo muito boba.
— Desculpa, Lucas... é que... As coisas ficaram um pouco estranhas entre
nós.
— Com o beijo? — Ela assentiu. — Você não gostou?
A forma como olhou para mim, quase revirando os olhos, me dizia o quão
enganado eu estava, mas ela decidiu colocar em palavras.
— O que você acha, Lucas? Acho que você é um cara bem experiente e
sabe o quanto uma mulher gostou de ser beijada por você.
Guardei a informação. Sim, eu sabia. Mas era bom ouvir de sua boca.
— Seja como for, eu não vim aqui para falar isso. É sobre Catarina. —
Malu começou a andar pelo quarto, parecendo inquieta. — A professora me
disse que vai haver uma mostra de talentos na escola, mas ela não quer
participar. É um desperdício, porque desenha tão bem...
— Por que isso? Catarina ama desenhar. — Senti Malu hesitar um pouco.
— Me diga, por favor. Eu preciso saber.
— Eu não quero causar problemas, Lucas, mas Cathy disse que envia
desenhos à mãe, mas nunca é respondida. Com isso ela acha que não é
talentosa, que Laura não gosta do que ela faz.
Não queria nutrir sentimentos tão negativos pela minha ex-mulher. Não
queria ser esse tipo de pessoa, mas Laura dificultava e muito as coisas.
Durante nosso casamento, ela nunca foi uma mãe devotada, mas quando foi
embora jurou que não deixaria as meninas de lado; que as visitaria,
telefonaria, trocaria mensagens. Catarina sempre me pedia para enviar cartas
para a mãe, porque ela queria usar sua própria letrinha, mostrar sua evolução,
e eu sabia dos desenhos, mas não fazia ideia de que Laura não respondia.
Imaginei que o fizesse durante as raras ligações ou nos e-mails que enviava e
que Teresa ajudava Catarina a responder e ler.
Meu sangue rapidamente esquentou. Como ela tinha coragem? Como
podia não prestar atenção naquelas duas preciosidades que nós dois geramos?
Aquelas menininhas maravilhosas, inteligentes e carinhosas eram parte de
nós, e eu não conseguia entender como ela conseguia simplesmente deixá-las
de lado em sua vida, como um livro esquecido na estante, o qual ela não se
interessava em ler.
Era triste. E revoltante.
— Claro que ela é talentosa! — elevei a voz em um tom indignado.
— Por isso precisamos encontrar uma forma de fazê-la mudar de
ideia. Ainda não pensei em nada, mas não posso permitir que aquela
garotinha desacredite em si mesma, Lucas! Não é justo com ela. Senti isso na
pele e não foi nada bom... você sabe disso.
Eu sabia que Malu tinha muitos sonhos antes do filho da puta daquele
padrasto entrar em sua vida. Conhecia com detalhes a presença dele em sua
vida, que não a traumatizara ainda mais por pouco. Ele a agredia e quase a
violentara, mas elas conseguiram uma intervenção da polícia antes, o que o
fizera ser preso e morrer na cadeia um ano antes de nos conhecermos. Por
esse motivo, eu entendia sua revolta em relação a Catarina.
E seu jeitinho leoa em relação à minha filha só me deixava mais e
mais apaixonado por ela.
— Eu vou fazer isso, Malu. Vou convencê-la.
— Acho bom que faça isso mesmo, porque aquela menina merece
tudo, Lucas. Ela merece...
Queria me controlar. Juro que tentei. Só que quando me dei conta já
estava agarrando seu punho e puxando-a para mim, enlaçando sua cintura e
assaltando seus lábios.
Malu abriu-os para mim quase que imediatamente, como um convite,
e eu não perdi a oportunidade. Devorei-a de forma ainda mais intensa do que
há alguns dias, saboreando-a como se fosse meu doce preferido. Ela cabia
perfeitamente nos meus braços, seu cheiro era familiar como uma esperada
volta ao lar, e eu reconhecia a forma como meu coração batia ao saber que ela
era a dona daquele beijo. Era como ele batera anos atrás, cheio de
expectativa, de desejo, de esperança.
Meu peito foi empurrado por uma mão delicada, e Malu lutou para se
afastar.
— Lucas... eu acho melhor conversarmos depois... eu não... — ela
gaguejava, visivelmente abalada.
Não poderia deixá-la sair assim.
Corri em direção à porta, espalmando-a e fechando-a antes que ela
pudesse abri-la. Atrás dela, com uma das mãos na porta, de um lado de sua
cabeça, senti que precisava tomar uma decisão naquele momento.
— Acho que podemos conversar agora. Mas de verdade. Eu quero
você, Malu. Tudo o que eu sentia não mudou. Não estou em busca de algo
leviano. Quero que seja minha, em todos os sentidos.
Deixei que minhas emoções falassem mais alto, mas não me
arrependia. Queria que ela soubesse que eu estava ali para ela, inteiro, de
corpo e alma.
Malu permaneceu parada, de costas para mim, sem responder. Eu não
fazia ideia do que iria dizer... mas a ansiedade me corroia por dentro.
Eu só queria que ela me desse uma chance.
CAPÍTULO DEZESSETE
O dilema era quase doloroso. O desejo também. Ambos eram como
incômodos físicos que ardiam dentro do meu peito. Venenos poderosos que
poderiam trazer tanto o caos quanto uma felicidade inexplicável.
Sentia-me em uma encruzilhada, precisando escolher entre dois caminhos
tortuosos. Ambos poderiam me fazer sofrer, de formas diferentes. Só que um
deles me daria tudo o que eu queria há muito tempo, mesmo que fosse só por
uma noite.
Então eu girei o corpo, colocando-me de frente para Lucas, que não havia
se movido um único centímetro. Continuava na mesma posição, com uma de
suas mãos espalmada na porta do quarto, mantendo-a fechada.
— Quero ser sua — falei baixinho, esperando que ele nem me ouvisse. Se
não me ouvisse, eu poderia fingir que não tinha dito nada, não é?
Mas Lucas ouviu. E agiu. Sua outra mão foi parar do outro lado da minha
cabeça, criando uma barreira, para que eu não escapasse.
Eu não iria. Nem que o mundo estivesse despencando. A decisão fora
tomada. Eu pertenceria ao homem por quem era completamente apaixonada.
Finalmente me entregaria a ele.
Lucas novamente tomou meus lábios, mas daquela vez de forma mais
cuidadosa, como se meu consentimento tivesse despertado uma calmaria;
como se o tempo tivesse lhe estendido a mão e lhe concedido horas a mais no
relógio só para que ele pudesse desfrutar da minha boca.
Apesar do desejo latente que eu sentia emanando de seus poros, ele foi
paciente, lambendo minha boca aos poucos, como se quisesse sentir o gosto
de cada pequena parte dela.
Com calma, esgueirou sua língua para dentro da minha boca, buscando a
minha e provocando-a. Ele tinha gosto do vinho que tomou no jantar,
cheirava a sabonete caro e roupa limpa, além de creme de barbear, e a textura
de sua mão grande contra meu rosto provocava um calor que subia pela
minha espinha e me transformava em uma fonte inesgotável de desejo.
— Há mais de seis anos eu vivo me perguntando o que faria se tivesse a
chance de ter você assim. Mil e uma imagens sempre se passaram pela minha
cabeça. Mil e uma formas de fazer amor com você... — Lucas sussurrou,
afastando-se apenas o suficiente para que pudesse falar, embora ainda
conseguisse sentir sua respiração contra a minha pele. Suas mãos se
mantinham no mesmo lugar, sem me tocar, presas à porta.
— Ainda assim, você quase não me tocou — também murmurei,
provocadora.
— Estou me controlando. Preciso me acalmar. — Ele respirava pesado,
quase como se estivesse lutando para conseguir levar ar aos pulmões. —
Preciso que meu cérebro entenda que por mais que eu esteja prestes a ter a
mulher da minha vida só para mim, devo ir com calma, porque ela é muito
preciosa para mim.
Eu poderia derreter com aquele tipo de comentário e com a forma como
seus lábios começavam a passear pelo meu rosto, chegando ao meu pescoço.
— Você disse que imaginou... Que pensou em como queria fazer amor
comigo. — Arfei, quase constrangida pelo que estava prestes a dizer, mas as
palavras estavam sem controle. — Como seria?
Lucas pegou o lóbulo da minha orelha entre os dentes, puxando-o e
usando a língua para lamber um ponto muito sensível na minha nuca que me
fez estremecer.
— Nenhuma delas parece suficiente, Malu. Não consigo me decidir,
porque quero tudo. Quero você de todas as formas.
Então as duas mãos de Lucas foram parar na minha cintura, uma de cada
lado, apertando-a com força, arrancando um gemido que tentei abafar
mordendo meu lábio inferior. Ele sempre foi um homem gentil, um
cavalheiro, e como só compartilhamos um único beijo antes de nossa longa
separação, eu não tinha muita noção de como era sua versão mais selvagem,
como era na cama.
Aparentemente eu descobriria naquela noite.
Sem nenhuma dificuldade, ele usou as mãos na posição onde estavam
para me tirar do chão. Instintivamente, entrelacei as pernas ao redor de sua
cintura, e outro beijo aconteceu. Imprensada e apoiada na parede, senti suas
mãos descerem, alcançando minha bunda, que ele apertou com vontade,
enterrando seus dedos em minha carne, conforme devorava meus lábios. Se o
beijo começou calmo e lento, foi se transformando em um turbilhão de
sensações, uma dança voraz que nós dois mal conseguíamos controlar.
Ainda segurando-me pelas coxas, ele me levou para a cama, deitando-me
sobre o colchão. Antes de fazer qualquer coisa, fixou os olhos no meus, e me
olhava como se, de fato, aquele momento fosse tão relevante para ele quanto
era para mim.
Sem desviar o olhar, começou a desabotoar minha blusa lentamente,
botão por botão. Sob ela, eu usava um sutiã lilás, de renda, quase
comportado, e ele respirou fundo ao deparar-se com meus seios dentro deles.
— Eu sempre desejei — Lucas arfou. — Sempre, Malu. Sempre quis ter
você assim. Mas não só isso, você sabe.
Assenti. Teria concordado com qualquer coisa, não importava o quê.
E mais ainda quando Lucas tirou a blusa.
Eu já o tinha visto sem camisa. Mais de uma vez, no passado. No dia em
que conheci sua família, pois ele pulou na piscina, e mais alguma outra em
que o vi malhando, mas não me lembrava exatamente o contexto do
momento. Só que a imagem que eu tinha em mente, embora já fosse boa o
suficiente, não fazia jus ao homem que ele havia se tornado.
Os músculos de seu peitoral saltaram aos meus olhos, combinados a
ombros muito largos, braços do tamanho da minha coxa, um abdômen
sarado, o famoso V nos quadris. Uma perfeição masculina. Estendi a mão
para tocá-lo, e ele agarrou as duas, unindo-as em uma única das dele,
erguendo meus braços acima da cabeça e imobilizando-os.
— Se você me tocar, teremos problemas, Girassol.
Girassol... era a forma como ele me chamava quando ainda éramos
amigos. Durante nosso primeiro beijo ele sussurrou o apelido de forma tão
sensual que eu quase me derreti. Da mesma forma como estava acontecendo
naquele momento.
Com a mão livre, começou a explorar meu corpo, e o fazia com tanta
paciência, tão devagar, acompanhando seus toques com olhares intensos, que
entendi que Lucas estava aproveitando cada segundo, cada polegada, cada
sensação.
Ainda com a mesma paciência, soltou-me e abriu meu short jeans,
deslizando-o pelas minhas pernas, tirando-o e jogando-o no chão, junto à
calcinha, que teve o mesmo destino.
Inclinando-se sobre mim, ele deu uma mordida na minha coxa, por
dentro, e usou a língua para dar uma deliciosa lambida na minha boceta,
como se tivesse toda a intenção de provar o meu gosto. Só que apenas esse
gesto me fez soltar um gemido lamentoso, que era quase uma súplica.
— Lucas... — o nome dele escapou também, da mesma forma, e eu
choraminguei, agarrando o lençol.
— Diga, amor. O que você quer de mim?
Amor. Era tão doce. Tinha som de nostalgia. Ele nunca me chamara
assim, mas eu sonhei. Sonhei com a voz deliciosa de Lucas me dizendo
coisas românticas e que me amava. Cheguei a ouvir que estava apaixonado
por mim mais de uma vez, mas amor era especial.
Não era um eu te amo, claro, mas o gosto foi parecido.
— Não pare...
— Você quer que eu te faça gozar com a minha boca? — Deus, ele ia
me matar daquele jeito.
— Sim, por favor.
Novamente me movimentando sem nenhum esforço, Lucas me fez
subir um pouco mais na cama. Pegou minhas duas mãos, posicionando-as na
cabeceira de ferro da cama, fazendo-me segurá-la.
— Não solte — sussurrou novamente.
Erguendo meus quadris, ele colocou alguns travesseiros sob a minha
bunda, deixando-me na posição ideal, pronta para receber sua boca incrível e
os beijos torturantes que me fizeram começar a gritar quase que
imediatamente.
Eu tive apenas dois homens na minha vida. Um namorado que durou
pouco mais de seis meses, um ano depois de Lucas, e Jonas. Nenhum dos
dois nunca me fez experimentar metade daquelas sensações. Nunca nenhum
deles se empenhara tanto em me dar prazer.
Mantendo a língua em meu clitóris, ele usou dois dedos para me
penetrar bem fundo. Bem fundo.
— Você é tão deliciosa... — Lucas deixou escapar com uma voz
rouca. — Muito mais do que sempre sonhei. Muito mais do que esperei. Não
quero parar de provar você. Quantos orgasmos será que aguenta esta noite?
Porque não tenho planos para te deixar sair desta cama tão cedo.
Ah, meu Deus! Quantos? Eu já estava morrendo e não tinha chegado
nem ao primeiro.
Mas Lucas não estava brincando quando fez sua promessa. Continuou
me masturbando com força e chupando meu clitóris até o momento em que
não suportei e me entreguei ao orgasmo mais desesperado da minha vida.
Pensei que ele iria me deixar descansar, mas, então, recomeçou todo o
processo, usando novamente seus dedos dentro de mim, com força, mas,
daquela vez, levou a boca aos meus seios, sugando um mamilo de cada vez,
mordendo-os, lambendo-os e estimulando-os de todas as formas. Lucas sabia
exatamente onde e como me tocar. Era como se ele conhecesse perfeitamente
o meu corpo, e isso era perigoso.
Eu poderia me viciar ainda mais nele.
— Lucas, por favor. Eu quero você dentro de mim — implorei,
porque era uma necessidade. Eu sentia o centro do meu corpo latejar, pedindo
por ele. Por mais que seus dedos estivessem fazendo um trabalho incrível,
não era suficiente. Não pela quantidade de tesão que estava sentindo.
— Nem pensar. Ah, Malu, nem pensar! Você é minha agora,
finalmente. Só minha. E eu não vou deixar essa oportunidade passar assim.
Quero cada segundo.
Com isso, Lucas passou um braço por baixo das minhas costas,
içando-me da cama e me deixando sentada.
— Ajoelhe-se — falou em tom de comando.
Quando eu obedeci, ele me fez girar o corpo, virando-me de frente
para a cabeceira. Então colocou minhas mãos novamente no ferro.
Naquela posição, quando ele pegou meus seios por trás, massageando
os mamilos entre seus dedos, girando-os, eu precisei inclinar a cabeça e
encostar a testa onde minhas mãos estavam firmes. E quando ele soltou um
dos seios e usou a outra mão para me penetrar, eu gritei alto ao ponto de
precisar abafar o som da minha própria voz, mordendo a mão que estava
fechada em garra na cama.
Ele não me poupou. Masturbou-me com força, enlaçando a minha
cintura para me manter parada, enquanto eu gozava mais uma vez.
Antes de eu conseguir voltar à plena consciência, senti-me sendo
novamente penetrada, mas daquela vez por algo bem maior. Muito maior.
Lucas literalmente me fez sentar em seu colo, mas de costas para ele.
Uma de suas mãos foi parar novamente em um dos meus seios. A outra, no
clitóris.
Era insana a quantidade de prazer que ele estava me concedendo em
uma única noite. Em poucas horas.
Ficamos pouco tempo naquela posição, porque Lucas saiu de dentro
de mim e me girou, colocando-me deitada de costas, com ele sobre mim.
No momento em que nos olhamos – olhos nos olhos pra valer –, havia
mais do que apenas o tesão cru que estávamos compartilhando momentos
atrás. Havia sentimento. Havia anos de espera. Havia esperança.
— Não vá mais embora da minha vida, Girassol, por favor.
Não respondi, porque, na verdade, não dependia de mim. Da última
vez, ele tomou a decisão de nos separar. Eu teria ficado. Teria embarcado em
um relacionamento. Teria enfrentado tudo, até mesmo a família dele para que
ficássemos juntos.
Percebendo minha hesitação e, provavelmente, por saber que ele fora
o causador de nossa separação, Lucas apenas levou seus lábios aos meus,
começando a me beijar enquanto se movimentava dentro de mim de forma
muito mais cadenciada, fazendo amor comigo. Concedendo-me todo o
sentimento que precisou negar no passado.
Quando gozei, ele me seguiu pouco depois, e eu precisei respirar
fundo, não porque estava ofegante apenas, mas porque meu coração estava
batendo muito rápido dentro do peito, e eu sabia que não tinha nada a ver
com o sexo, mas com todo o resto. Com tudo que estava adormecido dentro
de mim e que era despertado cada dia mais, a cada olhar, cada beijo, cada
toque e... agora... com novas memórias.
O que seria de mim a partir dali?
CAPÍTULO DEZOITO
Eu poderia estar bancando o adolescente bobo e iludido, mas era como
um sonho realizado que superou as expectativas.
Desde que conheci Malu e que me apaixonei por ela, claro que sempre
desejei tê-la só para mim, para poder amá-la e venerá-la como merecia. Na
época, tudo foi muito complicado entre nós. Primeiro houve Laura, que,
embora não fosse um relacionamento sério, era como um fantasma a me
assombrar. Depois, a doença da avó dela, que exigia toda a sua atenção.
Então, o luto – porque eu obviamente não iria assediar uma garota que ainda
chorava pela perda de um ente querido. E quando pensamos que tudo ficaria
bem, que estávamos prontos para dar um passo maior, Catarina surgiu.
Éramos jovens e imaturos, mas já sabia que seria especial. Eu não era um
cara inocente, e àquela altura já tinha levado mais garotas para a cama do que
seria prudente – especialmente na época da faculdade –, mas nunca havia
sentido por nenhuma delas o que Malu me despertava. Era mais do que tesão.
Era carinho, proteção, algo terno e real.
Só que ali, naquele momento, depois de fazermos amor, eu senti uma
conexão que não era algo leviano ou corriqueiro. Não era o tipo de
sentimento que se manifestava de um dia para o outro. Era algo conquistado,
algo pelo qual valia a pena lutar.
Ela estava dormindo serena nos meus braços, e eu precisei de algum
tempo para observá-la. Talvez mal conseguisse pegar no sono naquela noite,
porque não queria perder um único segundo. Levei a mão ao seu rosto,
afastando algumas mechas de cabelo de seu rosto, para poder admirá-lo
melhor.
Mas aparentemente Malu tinha sono leve, porque apenas esse movimento
a fez despertar. Sonolenta, ela demorou para compreender onde estava e o
que tinha acontecido, mas assim que se deu conta, arregalou aqueles olhos
lindos, e eu quase sorri.
Teria rido se não estivesse com tanto medo de ela simplesmente fugir.
Obviamente foi o que aconteceu.
— Ah, meu Deus! — ela exclamou assustada e tentou se desvencilhar,
mas eu a segurei. Não podia deixá-la sair dali, não antes de ter a certeza de
que não seria apenas uma noite.
Não poderia ser. Não quando tudo o que eu sentia por ela parecia apenas
crescer ao ponto de mal caber no meu coração.
— Não, Malu. Por favor. Não vá embora assim, como se o que fizemos
fosse errado.
— E não foi? — ela perguntou, e lá estava a inocência em seus olhos; a
expressão que eu tanto amava.
Girei com Malu nos meus braços, acomodando-a de costas na cama, e
fiquei sobre ela, para precisasse olhar nos meus olhos.
— Não diz isso. Nada que seja capaz de me deixar tão feliz pode ser
errado. Nós estamos destinados. Eu acredito nisso.
Ela suspirou e ficou calada por alguns instantes. Então decidi insistir.
— Podemos ir com calma, se você quiser. Podemos... — falei, sentindo
um desespero subir pela minha espinha.
Mas ela riu, o que me deixou confuso.
— Depois de transarmos como loucos?
Não pude conter uma risada também, embora ainda estivesse preocupado.
Porra, eu não podia perdê-la. Não outra vez.
Talvez eu merecesse ser o abandonado da vez; talvez a lei do retorno
estivesse contra mim, mas eu não queria aceitar.
— Mas tudo bem, Lucas. Eu só não sei como vamos fazer, porque
trabalho para você. A situação é muito desconfortável.
— Não estamos em uma empresa. Não temos política de não
confraternização entre funcionários.
— Como vou aceitar um pagamento sendo que estou ocupando sua cama
às noites?
— Uma coisa não tem nada a ver com a outra. Estarei te pagando para
cuidar das minhas filhas. É um trabalho. Não existem maridos que contratam
as esposas para trabalhar em suas empresas?
— Sim, mas...
— Então é isso. Por mim não tem problema nenhum. Mas quero que
fique à vontade. — Fiz uma pausa, fixando meus olhos de forma ainda mais
intensa nos dela, esperando que pudesse ler neles tudo o que minha alma
queria dizer. — Eu sou louco por você, Malu. Há seis anos você é a única
mulher que ocupa a minha mente. Acha que um sentimento como esse vai
desaparecer agora que estamos tão perto?
— Você era casado.
— E você sabe muito bem que meu casamento nunca foi feliz. —
Suspirei, sentindo-me frustrado por, de alguma forma, Laura sempre surgir
para estragar tudo. — Eu me casei, porque ela ameaçou tirar Cathy de mim.
— Ela fez isso? — a expressão de Malu se encheu de compaixão.
— Eu queria ficar com você. Falei para ela que iria assumir Catarina, que
nunca faltaria nada para a minha filha, que nunca a negligenciaria, mas Laura
não aceitou. Ela queria meu sobrenome, queria o status.
Malu levou a mão ao meu rosto, acariciando-o.
— Você ficou cinco anos preso em um relacionamento sem amor. Que
cruel.
— Agora você entende o porquê de eu estar tão ansioso para começar
uma história com você? Entende por que não consegui esperar? Por que estou
apressando as coisas? Eu me sinto com sede, Malu. Com fome. Como uma
criança que esperou muito tempo para ganhar um presente muito desejado.
Não me tire essa esperança. Podemos ir com calma, mas não desista de mim.
Ela abriu um sorriso tímido e assentiu, e eu me dei conta de que ainda
estava nua sobre a minha cama. Se eu poderia aproveitar o momento, não iria
desperdiçá-lo.

Na segunda, sentindo como se estivesse andando nas nuvens, caminhava


pelas ruas próximas ao prédio da empresa, em direção ao meu restaurante
favorito na cidade – o único italiano de Montes Altos. Abri a porta e entrei,
rapidamente avistando Evandro em uma mesa mais ao canto, próxima à
janela. Aproximei-me do meu amigo, que me recebeu com um aperto de mão
e alguns tapinhas no ombro, e nós dois nos sentamos.
— Cara, eu não te vejo sorrindo assim desde... Ah, porra, nem sei desde
quando.
Dei de ombros. Para Evandro eu poderia falar a verdade. Confiava nele e
sabia que me apoiaria.
— É o amor.
Ele ergueu as sobrancelhas, parecendo muito surpreso.
Acabei fazendo um pouco de suspense, porque o garçom surgiu para
anotar nossos pedidos, mas já trazendo uma soda, porque me conhecia e sabia
o que eu gostava.
— Obrigado, Franco — agradeci a ele, que sorriu e nos deixou sozinhos.
— Dá para desembuchar? Estou curioso. É a garota do bar?
— É, sim, a Malu. A garota da minha vida.
— Uau! É sério — ele falou, dando um gole em seu refrigerante.
— É muito sério. Escreva o que estou dizendo, Evandro. Eu vou me casar
com essa mulher.
Vi meu amigo boquiaberto, só que ele não teve nem chance de falar nada,
porque uma voz estridente soou ao nosso lado, parecendo indignada.
— Eu não acredito, Lucas!
Quando me virei, lá estava Patrícia, ao meu lado, com o cenho franzido,
parecendo uma mulher traída.
Olhei para ela sem entender o motivo de tanto alarde. Observei ao redor e
vi algumas pessoas prestando atenção em nós. Eu odiava aquele tipo de coisa.
Ao menos Laura nunca foi escandalosa.
— Você está com aquela mulher? Ela não é boa o suficiente para você.
Não tem metade da sua classe.
Tentando controlar a minha raiva, simplesmente me voltei na direção
dela, tentando manter meu tom baixo.
— Não consigo imaginar como você pode ter opinião a respeito de algo
sobre a minha vida.
Boquiaberta, ela me olhou como se eu tivesse acabado de dizer algo
muito absurdo.
— Não fale assim comigo. Estou pensando no seu bem e no das suas
filhas. Que tipo de exemplo elas vão receber de uma mulher como aquela? —
insistiu, e tudo o que eu queria era que desaparecesse dali.
— Espero, de verdade, que eu tenha a sorte de ter uma mulher como
Malu me ajudando a criar as minhas filhas. Elas, certamente, vão aproveitar
bons conselhos.
Como se eu a tivesse ofendido e xingado, Patrícia levou a mão ao peito,
soltando um arfar. Eu não me surpreenderia se começasse a fingir que estava
passando mal só para mobilizar todo o estabelecimento.
Mas, ao menos, ela decidiu não passar esse vexame.
— Estou ofendida, Lucas. Sinceramente.
— Não me importa. O que eu quero saber é o que está fazendo aqui. Por
acaso estava me seguindo? — indaguei com o cenho franzido, contrariado.
Novamente aquela expressão de completo choque.
— Eu... eu... estava passando... — Altiva, ela se recompôs e agarrou a
alça da bolsa, como se isto pudesse defendê-la de alguma coisa. — Te vi do
outro lado da rua e quis vir te cumprimentar. Somos amigos, não somos?
— Não quero ser seu amigo se você ofender pessoas que são especiais
para mim.
Uma cara de choro que poderia ter convencido qualquer um e lhe rendido
um Oscar surgiu na minha frente, mas eu me virei para Evandro e dei um
gole na minha bebida, fingindo que não havia mais ninguém ao redor.
Precisávamos falar sobre negócios, e aquela mulher tinha acabado com a
minha paciência.
Eu não costumava ser tão grosseiro, mas ela estava merecendo. Fora que
eu temia que pudesse ser uma pedra no meu sapato em relação a Malu, e eu
não poderia permitir.
Mas ela acabou se afastando, embora tivesse se colocado por perto, em
uma mesa, sozinha. Não poderia proibi-la de comer no restaurante, porque
era um local público, mas estava um pouco estressado por tê-la ali.
Fosse como fosse, logo me perdi em minha conversa sobre o importante
negócio no qual eu e Evandro estávamos trabalhando juntos. Tratava-se de
uma parceria com o dono de uma enorme empreiteira, algo que duraria anos e
que seria extremamente lucrativo. Eu estava empolgado demais, e Evandro
mais ainda, porque me revelou que sua imobiliária não andava muito bem das
pernas. Algo dessa magnitude poderia salvá-lo.
Conversamos sobre o contrato, que recebemos na semana anterior e que
precisávamos enviar em no máximo dez dias. Eu e meu amigo já o tínhamos
lido, mas preferi consultar um advogado, que prometera retornar o mais breve
possível.
Durante toda a nossa reunião, senti os olhos de Patrícia sobre nós, e isso
me causou um leve incômodo, mas decidi deixar para lá. Havia muitas coisas
boas na minha vida para eu me fixar nas ruins.
CAPÍTULO DEZENOVE
Apesar da intervenção inconveniente, cheguei em casa com um largo
sorriso no rosto. E este se tornou ainda mais amplo quando eu vi Malu com
as meninas, no quintal, sentadas sobre uma toalha de piquenique. Elas
cantavam uma das músicas de A Noviça Rebelde a plenos pulmões, mas em
português.
Quando me viram, levantaram-se correndo e vieram na minha direção.
— Papai, papai! A Maria mostrou pra gente uma versão de teatro da
Noviça Rebelde. Agora a gente sabe cantar todas as musiquinhas! — Cathy
falou animada, depois que eu beijei sua cabecinha e a da irmã, que peguei no
colo.
— É mesmo? — Lancei um olhar cúmplice para Malu, que parecia
corada e tímida ao me ver.
Para provocá-la um pouco mais, inclinei-me e a beijei no rosto.
— Papai! — Catarina arregalou os olhos. — Você beijou a Maria?
Fingi-me de surpreso.
— Ué, não podia? Bem, vou ter que pegar o beijo de volta, então.
Novamente brincalhão, beijei o outro lado do rosto de Malu, que
estremeceu. Eu adorava suas reações aos meus contatos.
As meninas gargalharam, e eu também gostei de suas reações. Era bom
que elas se acostumassem com minha proximidade com Malu, porque eu
pretendia fazer com que se tornasse parte de nossas vidas de forma mais
oficial.
Sentei-me com Alice em meu colo, no chão, querendo fazer parte do
momento. Estendi a mão para pegar um morango da cestinha que estava no
meio da toalha e levei um tapa de Malu.
— Você não lavou as mãos. Além do mais, está quase na hora da janta.
Meu sorriso deveria espelhar o quão maravilhado eu estava com aquela
cena. Ela se parecia demais com uma esposa cuidando de um marido. E... ok.
Tínhamos nos reencontrado há pouco mais de um mês, e eu talvez estivesse
sendo precipitado demais, mas minha vontade de construir uma vida com
Malu tinha começado há anos. Passei por um casamento sem amor e queria
experimentar o outro lado. Com ela.
Claro que era um plano para o futuro, mas, ao menos, queria nutrir a
esperança.
O resto do entardecer foi permeado por uma sensação de lar. De família.
Harmonia. Por mais que tivesse passado pela experiência de ter uma esposa
para quem voltar depois de um dia de trabalho, nunca foi daquela maneira.
Laura era sempre muito fria, polida e distante. Jamais se sentaria no chão
com as crianças, muito menos as deixaria levar as mãos sujas de terra e
grama ao seu rosto, como estava observando Malu permitir Alice fazer.
Eram muitas diferenças que me faziam amar a nova perspectiva de ter
Malu em minha vida.
As duas meninas estavam imundas, então eu vi isso como uma deixa.
Aproximei-me de Malu e cochichei em seu ouvido:
— Você pode levar Alice para um banho? Queria conversar com Catarina
sobre a mostra de talentos.
— Ah, sim! — ela pareceu se animar. — Boa sorte.
Ela ia se levantar, mas, aproveitando que as meninas estavam de costas
para nós, entretidas com algo que viram na grama, puxei Malu para um beijo.
Um selinho, algo rápido, mas só para fazê-la entender que nada havia
mudado. No final de semana eu a deixei à vontade, e mal nos tocamos, mas
queria tomar a iniciativa mais vezes. Novamente deixei-a um pouco
atordoada, tanto que demorou a ir pegar minha filha, mas quando o fez, fiquei
sozinho com Catarina.
— Filha... — Estendi a mão para ela. — Sente-se aqui.
Ela ficou um pouco desconfiada, provavelmente acreditando que iria
levar um sermão, mas sentou-se onde pedi, à sua frente, acomodando-se toda
graciosa, com as perninhas cruzadas.
Fiquei por alguns segundos olhando para ela. Às vezes eu me perguntava
como os pais conseguiam lidar com o amor que sentiam por seus filhos para
serem sérios e até mesmo severos quando necessários. Meu coração
transbordava com todos os sentimentos que aquela garotinha me despertava,
e eu só queria pegá-la nos meus braços, abraçá-la e dizer o quanto a amava e
o quanto desejava que fosse feliz, apenas feliz.
— Você vai brigar comigo, papai? O que eu fiz? — Lá estava ela
preparando o terreno como a perfeita rainha do drama. Sua expressão
consternada me dizia que estava pronta para fazer biquinho e me conquistar,
caso fosse necessário.
Não pude deixar de sorrir e levar a mão ao seu rostinho, acariciando-o.
— Não, querida. Só quero conversar com você. — Então ela esperou
pacientemente, olhando para mim com aqueles olhinhos confusos, e eu
comecei: — Fiquei sabendo que você não vai participar da mostra de talentos
da escola e isso me deixou surpreso.
Ela abaixou a cabecinha, parecendo muito triste.
— Não estou a fim, papai.
— Mas por quê?
Ela deu de ombros, ainda chateada, olhando para baixo e remexendo na
toalha. Coloquei a mão sob seu queixinho, erguendo sua cabeça, fazendo-a
olhar para mim.
— Meu amor, você sempre gostou de desenhar e vive dizendo que quer
trabalhar com isso quando crescer. Acho que tem muito talento e gostaria que
explorasse mais esse lado.
— Não sou tão boa, papai.
A forma como falou partiu o meu coração. Eu não queria que minha
garotinha se tornasse uma criança arrogante, voluntariosa e cheia de si. Mas
também não queria que se depreciasse, principalmente em algo no qual era
realmente talentosa.
Então eu precisava fazer alguma coisa.
Havia um bloco de desenhos próximo de onde ela estava sentada, além de
alguns hidrocores. Peguei-os, usando uma canetinha preta, começando a
traçar algumas linhas precisas na folha. Fazia muito, muito tempo que eu não
desenhava, mas acreditava que aquele tipo de coisa era como andar de
bicicleta; a gente não esquecia.
Como eu fiquei calado, concentrado na minha tarefa, Cathy aproximou-se
de mim, sem nem disfarçar que estava bisbilhotando o que eu estava fazendo.
Minhas mãos formavam um desenho dela, quase em caricatura. Não era dos
melhores, mas, na pressa, até que era decente.
Quando terminei, uns quinze minutos depois, ela arregalou os olhinhos e
ficou boquiaberta.
— Papai, você sabe desenhar? — a entonação de sua voz me fazia sentir
como se eu tivesse acabado de descobrir a cura para o câncer.
Meu sorriso se alargou.
— Sempre amei. Quando descobri que você gostava também, fiquei
muito orgulhoso — expliquei.
— Por que você nunca me contou?
Remexi-me, buscando uma posição mais confortável, pousando o
desenho entre nós.
— Eu não queria que você soubesse que eu deixei de lado algo que amo
em busca de uma carreira mais lucrativa. Foi seu avô que me convenceu a
isso. Ele sempre sonhou que eu iria seguir os negócios da família, mas
mesmo quando não o fiz e decidi abrir minha própria empresa, ele aprovou.
Porque era algo sólido. Foi um caminho mais fácil. Só que não quer dizer que
eu não me arrependa às vezes.
Não tanto quanto por ter deixado Malu, é claro. Mas era mais um e se na
minha vida.
— Mas, papai, por mais que você já seja bem velho, acho que ainda dá
tempo de tentar.
Segurei o riso.
— Velho? Eu não sou velho, mocinha. Ainda não fiz nem trinta anos.
— Bem, eu tenho seis. Você é velho para mim.
Ok. Não deu mais para segurar. Aquela garota era muito esperta.
— Tudo bem, faz sentido. Mas não vamos mudar de assunto. Me
responda uma coisa: você não quer participar da mostra de talentos ou é
alguma dúvida sobre a sua capacidade? — Eu sabia a resposta, mas queria
ouvir de sua própria boca. Queria que me confessasse para que eu pudesse
argumentar e dissuadi-la daquela decisão.
Catarina demorou a responder. Para ganhar tempo, pegou a caneta que eu
tinha acabado de usar e começou a fazer pequenos desenhos ao redor de seu
próprio rostinho. Eram apenas florzinhas, arabescos, pássaros, como um
cenário. Cada vez que a via desenhar, eu ficava mais e mais maravilhado com
o quanto era boa.
— Ah, papai... eu não sei. Eu queria que mamãe me achasse boa como
você acha. Uma vez eu perguntei se ela gostava dos meus desenhos, e ela
falou que eu não era nenhum... — Catarina franziu o cenho, levando um
dedinho à bochecha, mostrando que estava pensando. — Pilasso... ou algo
assim.
— Picasso — respondi, tentando controlar a minha raiva por essa ter sido
a resposta da minha ex-esposa à filha quando esta quis se certificar de seu
talento. — Ela disse isso?
— É. Ela falou que eu não era nenhum... — hesitou. — Esse nome aí...
Mas falou que um dia eu poderia ser boa, com muito esforço. Acho que ela
estava um pouco irritada no dia.
No dia? Laura vivia irritada com as meninas. Sempre que uma das duas
se aproximava, por qualquer motivo, ela revirava os olhos, como se o que
estivesse fazendo antes fosse muito mais relevante, mas, normalmente, era
apenas conversar com alguma de suas amigas – e amigos, é claro – no
Whatsapp. Sempre me perguntei se ela foi fiel durante todo o nosso
relacionamento, mas nunca fez muita diferença.
O que era bem absurdo, porque só de pensar em Malu com o filho da puta
que a traiu já sentia meu sangue ferver.
— Você não pode se fixar no que sua mãe disse, querida, porque ela não
é especialista nisso. — Peguei meu desenho novamente. — Posso não ser um
Picasso, mas ganhei um prêmio na escola, sabia? Então acho que eu sou um
pouco mais entendido do assunto, você não acha? — Dei uma piscadinha
para ela. — E eu te acho maravilhosa.
Boquiaberta, Cathy olhou para mim, e um sorriso lindo foi se formando
em seu rostinho de boneca. Eu daria todo o meu dinheiro só para ver minha
filha sorrir daquela forma.
— Jura, papai?
— Juro, juradinho — imitei a fala do desenho que ela gostava, o que a fez
dar um pulinho, mesmo sentada, jogando-se sobre mim e me abraçando com
muito carinho.
— Quero participar, então. Vou falar com a tia Janaína.
Retribuí o abraço, apertando-a contra mim, mas logo a afastei,
preocupado com outra coisa.
— Querida, você se sente triste por sua mamãe não estar mais com a
gente? — perguntei com cautela.
— Um pouquinho. Mas acho que agora, que a Maria está aqui, eu estou
mais feliz.
Eu a entendia. Eu também estava mais feliz com Malu presente.
Por falar nela, depois do jantar, esperei que fosse até o meu quarto, mas
foi uma ilusão em vão, como aconteceu nos dois dias passados. Claro que ela
não tomaria a iniciativa daquela forma. Então, se a montanha não ia até
Maomé...
Bati na porta do quarto dela e fui atendido por uma beldade sorridente,
tão meiga que não resisti. Juro que minha intenção era só fazer um convite –
que eu ainda pretendia fazer, é claro –, mas ela estava tão linda – ou talvez
fossem meus olhos apaixonados – que eu enlacei sua cintura com um braço,
tirando-a do chão e erguendo-a até a minha boca, enquanto fechava a porta
com o pé.
O beijo, que tinha tudo para ser inocente, começou a queimar todas as
partes certas do meu corpo, mas eu não queria ser intrusivo. O combinado era
irmos com calma, não? Então eu tentaria fazer tudo certo daquela vez.
Coloquei-a no chão, sentindo-a arfar e precisar de um pouco de
estabilidade, por isso continuei amparando-a.
— Tudo bem aí? — perguntei sorridente.
— Acho que é normal ficar um pouco desestabilizada depois de um beijo
desses.
O maldito ego masculino explodiu. Mas decidi não lhe dar muita atenção.
— Eu vim aqui com uma missão.
Ela ergueu a sobrancelha.
— E qual seria?
— Vim te convidar para jantar amanhã à noite.
— Um encontro? — Seus lindos olhos brilharam, mas rapidamente ela
pareceu um pouco preocupada. — Lucas, você tem certeza de que isso, entre
nós, vai dar certo?
— Isso o quê? Um jantar? — fiz-me de desentendido.
— Não. Um relacionamento. Sei que já tivemos essa conversa, mas eu
realmente fico constrangida por trabalhar para você.
— Não fique. Prometo que vou me esforçar para nunca te fazer sentir
desconfortável.
Suspirando derrotada, ela sorriu.
— Ok. Jantar amanhã. Como me visto?
— De qualquer jeito. Você sempre vai ser a mulher mais bonita de
qualquer lugar.
Sem deixá-la responder, tomei-a de novo nos braços e a beijei, sentindo-
me nas nuvens.
CAPÍTULO VINTE
Enquanto alisava meu vestido na frente do espelho, girando de um lado
para o outro para verificar se tudo estava no lugar, tentava concentrar minha
mente na certeza de que as coisas dariam certo.
Lucas tinha razão ao dizer que eu não deveria me preocupar com nossa
situação. Ele era meu patrão? Sim. Mas não era como se meu trabalho fosse
completamente formal, em uma empresa. E nós não tínhamos nos conhecido
daquela forma. Havia uma história em nosso passado, uma bagagem. Se
aquela foi a forma que o destino escolheu para nos unir, deixar a
oportunidade escapar seria um desperdício, não?
Ah, e pelo amor de Deus... eu estava feliz. Tão feliz que pela primeira vez
em mais de um mês decidi atender à ligação de Jonas.
Ele tinha um ótimo timing.
— Porra, Malu! Finalmente você atendeu! Onde se meteu? — Sério
mesmo que ele parecia indignado?
— Estou sendo até cordial te atendendo. Fui bem clara naquele dia
quando disse que não queria mais saber de você.
— A gente precisa conversar. Você não pode me negar isso.
— Posso e vou. Acabou. Provavelmente você nem está tão chateado
assim — o tom de desdém não foi intencional, mas eu só queria que ele
sentisse o quanto não era tão importante para mim.
— Eu te amo, Malu. Foi um erro... estou desesperado sem você. Só me
diz onde está. Eu vou para qualquer lugar para te encontrar.
— Ah, que pena. Neste momento eu estou me arrumando para sair. A fila
andou, Jonas.
A linha ficou em completo silêncio. Isso me fez sorrir. Certas coisas eram
mais dolorosas do que um tapa na cara, e Jonas merecia.
— Você está com outro cara? — ele soltou do nada, novamente
parecendo muito indignado.
Minha vontade de mandá-lo tomar naquele lugar só crescia.
— Não. Eu estou com o cara.
Coloquei o celular no viva-voz para poder terminar de pentear meus
cabelos.
Mais silêncio. Ele era patético.
— Não é possível que você já tenha aberto as pernas para outro cara
sendo que a gente mal revolveu nossa situação. Sempre achei que você fosse
uma mulher pra casar, mas já vi que não passa de uma vadia como qualquer
outra.
Fiquei boquiaberta, olhando para o espelho, mas mais ainda quando, pelo
reflexo, vi Lucas atrás de mim. A porta do meu quarto estava aberta enquanto
eu me arrumava, e ele deve ter entrado sem nem avisar ao ouvir a voz
acusadora de Jonas.
E a expressão de Lucas era de pura raiva.
Nem tentei impedir quando ele estendeu a mão para o meu aparelho e
tomou as rédeas da situação.
— Boa noite, aqui é Lucas Montanari. O namorado da Malu.
— Ah, então você é o babaca? — Jonas teve coragem de dizer.
— De onde eu venho, babaca é uma característica usada para descrever
um infeliz que trai a melhor mulher que ele poderia ter na vida. Acredite,
parceiro, você não vai encontrar uma melhor — o tom frio e cortante de
Lucas me fazia acreditar que aquela era a forma como ele deveria falar em
sua empresa.
— Você pegou meus restos. — Ai que babaca! Que idiota! Filho da
puta!
Eu já estava pronta para xingar o cidadão, mas Lucas ergueu um dedo em
riste, impedindo-me. O lado protetor dele estava aguçado, aparentemente.
Ele deu uma risadinha sarcástica. Eu não conhecia aquele lado de Lucas,
porque sempre o vi mais solto, leve e sereno, mas, aparentemente, o homem
também sabia ser bem implacável quando queria.
— Pode continuar pensando assim enquanto eu cuido dela aqui muito
melhor do que você já cuidou. Agora me dá licença que ela está linda e
esperando para ir jantar comigo. — Pensei que Lucas iria desligar, mas
retornou ao telefone: — Só um aviso: se continuar importunando-a ou
ofendendo-a como te ouvi fazendo, eu vou descobrir onde você mora e
teremos uma conversa de homem para homem. Espero que entenda o recado.
Finalmente desligou e olhou para mim, parecendo um pouco hesitante.
— Me desculpa se fui longe demais, mas o cara foi grosseiro com você, e
eu nunca poderia permitir.
Ah, pelo amor de Deus... O que eu poderia fazer a não ser correr para ele
e me jogar nos seus braços?
Lucas retribuiu o beijo do jeito que eu queria que fizesse. Aparentemente
os sentimentos negativos faziam bem aos seus desejos por mim, porque todo
o ódio que descontou em Jonas tornou-se tesão. Isso eu podia dizer pela
forma como me apertou contra si e como devorou minha boca, sem
hesitações.
Mas precisamos nos afastar, porque tínhamos uma reserva, afinal.
E... uau! O melhor restaurante da cidade foi o nosso destino.
Como se pudesse ser diferente.
Fomos levados a uma mesa em um canto discreto, onde Lucas puxou a
cadeira para mim e eu me acomodei.
Escolhemos nossos pratos, e ele, um vinho, com o qual fomos logos
servidos. Era doce, suave, e eu dei um bom gole, tentando me acalmar. Era
meu primeiro encontro real com o homem da minha vida. Eu só queria que
tudo desse certo.
No momento em que recoloquei a taça sobre a mesa, depois de provar a
bebida, Lucas pegou a minha mão, levando-a à boca e beijando-a.
— Olha, talvez não seja a melhor forma de começar um jantar romântico,
mas preciso te dizer que não quero fazer nada sem que as crianças saibam.
Não tenho segredos com as meninas, e elas te adoram... E também não penso
em te esconder de ninguém. Quero você pra valer, Malu.
Engoli em seco. Uma coisa era concordar com namorarmos
discretamente, comigo ainda sendo a babá das meninas. Outra,
completamente diferente, era assumir nosso relacionamento. Ainda assim, a
ideia era quase empolgante.
— Eu só não quero que elas confundam as coisas, Lucas. São muito
novinhas.
— Alice nem vai entender. Catarina é mais esperta, mas ela tem o direito
de saber.
— E se ela não aprovar? — preocupei-me.
— Acho difícil.
— Ela ainda é bastante apegada à mãe.
— Mas se apegou a você também. Disse ontem que está mais feliz desde
que você chegou.
Não consegui não me emocionar com aquela constatação. Meu coração já
pertencia àquelas menininhas também, e nossa convivência só me provava
mais e mais que eram maravilhosas. Se fossem minhas, eu jamais as
abandonaria. Jamais conseguiria ficar tanto tempo longe.
Mas quem era eu para julgar outro ser humano?
— Fico feliz por isso.
— É muito difícil não se apaixonar por você — ele sussurrou, novamente
beijando a minha mão. Tentei não suspirar como uma boba, mas era difícil
com aqueles olhos tão intensos fixos nos meus.
Ainda bem que nossa comida não demorou a chegar, e nós fomos
servidos e interrompidos, ou as coisas fugiriam rapidamente do controle.
Continuamos a conversar, e ele me contou sobre a mostra de talentos de
Catarina e sobre a conversa que tiveram no dia anterior. Lucas também me
falou sobre o negócio novo que o estava deixando tão empolgado, cheio de
planos, e era bom vê-lo sorrir daquele jeito.
Já estávamos na sobremesa quando os olhos dele se perderam em um
ponto qualquer do restaurante. De serenos e satisfeitos por nosso momento,
tornaram-se levemente sombrios e preocupados. Sua mão, cujos dedos
estavam entrelaçados aos meus, começou a fazer um pouco mais de pressão,
o que chamou a minha atenção de vez.
Virei-me na direção que seus olhos também olhavam e enxerguei Patrícia,
ao longe, acompanhada por um homem. Ele era bem apessoado, de cabelos
levemente grisalhos, alto e atlético. Puxou a cadeira para ela, como Lucas fez
para mim, e parecia maravilhado com sua presença.
— O que essa mulher está fazendo aqui? — Lucas praticamente rosnou, e
eu vi Patrícia olhando para nós e abrindo um sorriso. Aquilo dizia que ela não
estava ali por acaso.
Cheguei a estremecer pensando no que poderia estar se passando pela
cabeça dela.
Não era possível que mais uma vez alguma coisa fosse nos atrapalhar.
Apertei a mão de Lucas com carinho, para que ele olhasse para mim.
— Não ligue para ela. Não vamos estragar nosso momento.
Respirando fundo, Lucas tentou se acalmar.
— Não gosto disso, Malu! Você sabe quem é o cara que está com ela? —
ele perguntou, parecendo mais aflito do que deveria estar.
— Não faço ideia.
— É o responsável pelo projeto que estou tocando com Evandro. Nosso
parceiro. Isso não pode ser coincidência. — Lucas usou o dedo indicador
para apontar para o casal. — Patrícia estava no restaurante no outro dia,
quando eu mencionei o nome dele. Ela está armando alguma coisa, e eu
quero cortar suas asinhas desde já.
Lucas fez menção de se levantar, mas eu o segurei.
— Por favor, não faça isso. Deixa ela, Lucas. De repente ela só está
fazendo para provocar.
Só que ele não parecia convencido. Apesar disso, atendeu ao meu pedido.
Claro que o clima mudou completamente, porque Lucas não conseguia
desviar o foco de Patrícia e seu acompanhante. Volta e meia eu o via olhando
na direção dela e cheguei a ficar desesperada para fazer xixi só porque não
queria me levantar e deixá-lo sozinho, temendo que, em um rompante,
cometesse uma besteira.
Quando me dei conta, já estávamos do lado de fora do restaurante,
aguardando que o valete nos trouxesse o carro. Só que eu não estava mais
aguentando.
— Lucas, eu preciso muito usar o banheiro. Tem problema? — perguntei,
parecendo bem desesperada.
— Não, amor. Claro que não. Eu te espero dentro do carro um pouco
mais à frente, tudo bem?
— Claro.
Saí correndo, não querendo perder muito tempo para que Lucas não
ficasse me esperando.
Mas foi questão de minutos para que eu conseguisse fazer meu xixi e sair
da cabine para dar de cara com Patrícia, com os braços cruzados, quadril
apoiado na bancada da pia e uma expressão de vitória.
Eu sabia que ela tinha cartas na manga.
— Bem que a secretária do Lucas me contou que vocês estariam aqui
hoje... — Deu uma risadinha bem escrota. — E então, garota? Vamos
conversar? É hora de você provar se gosta mesmo do Lucas ou não.
CAPÍTULO VINTE E UM
Eu soube que havia algo de errado no momento em que Malu entrou no
carro. Estava pálida, assustada e completamente diferente de seu ânimo de
sempre. Sua luz havia se apagado, e eu estava preocupado.
Perguntei se estava bem, mas ela respondeu que sim – o que eu poderia
jurar que era mentira –, então não tentei persuadi-la a me contar a verdade,
por mais que estivesse me matando.
Seguimos uma parte do caminho calados, e eu só conseguia ouvir a
respiração de Malu bem alta, cadenciada, deixando-me ainda mais alarmado.
Volta e meia eu olhava para ela e a via levemente melancólica, com os olhos
voltados para a janela, observando a paisagem lá fora.
E eu não queria levá-la para casa. Tinha preparado algo especial, mas não
poderia seguir com o plano sem a permissão dela. Não poderia pressioná-la
quando claramente algo havia acontecido. Algo que eu poderia jurar que
tinha a ver com Patrícia.
— Malu — chamei, e ela imediatamente olhou para mim —, eu sei que
aconteceu alguma coisa, mas vou deixar que tome seu tempo para me contar.
Só que eu tinha planos para nós esta noite e quero saber se está disposta a
permitir que eu os coloque em prática.
Um sorriso desanimado surgiu em seu rosto.
— Estou, claro.
Não senti tanta convicção em sua resposta, embora ela estivesse se
esforçando muito para parecer relaxada.
Tentando ser paciente, peguei a mão dela, que estava sobre a coxa, e
entrelacei nossos dedos.
— Malu... fala comigo. Sei que aconteceu alguma coisa lá dentro, e eu
tenho o direito de saber. Foi com Patrícia? Se sim...
Ela respirou fundo, o que me serviu como resposta.
— Aconteceu. E nós vamos conversar, vou te contar tudo. Mas quero
muito que você siga com seus planos e me dê a noite maravilhosa que
imaginou.
Eu deveria pensar nisso como um bom sinal, não? Se ela queria passar
aquela noite comigo era uma prova de que qualquer coisa que Patrícia lhe
dissera – se fosse o caso –, não afetaria nosso relacionamento. Só que eu
conhecia Malu. E o fato de conhecê-la me dava um enorme medo de que
estivesse completamente enganado.
— Tem certeza? — precisei confirmar.
— Por favor. Não mude nada. Preciso de você.
Mais uma prova. Só que não importava o que eu estava sentindo. Ouvi-la
dizer que precisava de mim era tão bom quanto angustiante.
Rumei, então, para o local que reservei para aquela noite. Tratava-se de
um pequeno chalé, muito aconchegante, em um lado mais ermo da cidade.
Ao chegarmos, estacionei na única vaga disponível, e nós saltamos. Calados.
Totalmente diferente do clima que imaginei para quando chegássemos ali.
Malu pareceu perceber também, porque segurou meu braço, fazendo-me
virar para ela.
— Quando entrarmos ali, quero que esqueça qualquer coisa. Vamos
deixar tudo aqui fora. Lá dentro, preciso que me dê a noite que prometeu.
Que faça exatamente o que tinha em mente.
Assenti, porque não poderia lhe negar nada.
Quando entramos, porém, tirei meu paletó e ajudei-a a tirar sua jaqueta
também, pendurando ambos no cabideiro atrás da porta. Só que no momento
em que me virei para ela, Malu segurou meu rosto entre suas mãos pequenas,
tomando meus lábios em um beijo.
Não um beijo doce, meigo ou delicado, como imaginei que me daria. Um
beijo em chamas. Sua língua veio exigente reivindicar a minha, e por mais
que eu estivesse preocupado com aquela atitude, era difícil não corresponder.
Era difícil impedir meu corpo de não reagir a ela.
As coisas se tornaram intensas muito rápido. Quando me dei conta, já a
imprensava contra a parede e a sentia arfar pela velocidade do movimento.
Uma das minhas mãos foi parar em um de seus seios, massageando-o através
do tecido do vestido. A outra estava em sua nuca, segurando-a exatamente
onde queria que ela ficasse. Eu tinha a sensação de que se interrompesse
aquele beijo naquele momento, me faltaria o ar.
Girando-a com ímpeto, colocando-a de frente para a parede, desci o zíper
do vestido, expondo suas costas, e o tirando por completo, percebendo que
estava apenas de calcinha sob ele. Agarrando suas mãos e prendendo-as com
as minhas contra o concreto, comecei a deslizar meus lábios e minha língua
por sua espinha, provocando-lhe um estremecimento. Mordi sua bunda
arredondada e tirei a pequena peça de renda branca que ela usava, jogando-a
no chão. Ajoelhando-me, usei um dedo para testar o quão pronta Malu estava
para mim e quase perdi a cabeça ao percebê-la molhada, excitada e
deliciosamente escorregadia.
Quando a penetrei com esse mesmo dedo, bem fundo, ela choramingou
de forma lamentosa, com o ar falhando. Levantei-me e passei um braço ao
redor de sua cintura, tirando-a do chão apenas um pouco, só para facilitar
meu trabalho pela nossa diferença de alturas. Isso a fez gemer mais alto e me
deu liberdade para beijar seu ombro exposto, porque não queria, de forma
alguma deixar minha boca longe de sua pele.
O gosto de Malu... tudo o que ela me provocava... A sensação que eu
tinha era que Deus moldara aquela mulher exatamente para mim. Seu jeito de
ser, sua voz, sua pele, seu corpo, seu rosto... Antes de conhecê-la, se alguém
me perguntasse como deveria ser a pessoa que me deixaria de joelhos, se eu
pudesse imaginar alguém perfeito aos meus desejos, seria ela.
Quando eu a vi pela primeira vez, parecendo tão vulnerável por todas as
perdas que sofreu e que estava prestes a vivenciar, algo estalou dentro do
meu peito. Não um amor à primeira vista, é claro, porque sempre fui cético
em relação a este tipo de coisa. Só que mexeu comigo. Obviamente o quanto
Malu era linda poderia ser um fator determinante, porque eu quase fiquei sem
fôlego ao olhar para ela, mas era mais. O tempo só ajudou a provar que eu
estava certo. A conexão que tínhamos não era leviana. Não era comum. Era
especial.
E ali, tocando-a, segurando-a nos meus braços e beijando-a, isso só se
tornava mais e mais concreto.
Tudo o que eu sentia pareceu eclodir, e eu precisei dizer:
— Eu te amo, Malu. Amo há tanto tempo... — saiu em um sussurro
arfante, porque mal conseguia me conter enquanto a ouvia soltar gemidos
sensuais e a desfazer-se nos meus braços.
— Eu também te amo, Lucas — sua frase soou um pouco mais alta,
porque ela estava gozando, o que eu podia sentir pela forma como todo o seu
corpo se contraiu e como gritou em seguida, desamparada, entregue e
saciada.
Coloquei-a no chão com cuidado, amparando-a, mas deixando-a de costas
para mim. Sem que ela visse, estendi a mão ao aparador próximo à porta,
onde deixei algumas coisas nos esperando
Aproximei-me de seu ouvido, falando:
— Eu não comecei a colocar em prática tudo que tenho em mente, mas
antes...
Rodeando-a com um braço, coloquei um girassol diante de seus olhos.
Malu suspirou e tentou girar na minha direção, mas eu a impedi,
delicadamente, abraçando-a. Ela não pareceu perceber minhas intenções.
— Que lindo, obrigada — falou baixinho, e eu decidi ignorar a sensação
de que ela ainda não estava cem por cento ali, apesar de ter se entregado
maravilhosamente ao orgasmo.
Enquanto a mantinha distraída com a flor, peguei o outro objeto que tinha
em mãos – uma faixa preta de tecido, grossa e larga – e o usei para vendar
seus olhos, amarrando-o atrás de sua cabeça.
— Lucas! — Ela arfou em surpresa, mas havia um tom divertido em sua
voz, o que me incentivou a continuar. Sem dizer nada, peguei-a no colo, o
que arrancou mais um som adorável de sua boca.
Caminhando devagar, eu a levei para a cama, no pequeno mas
aconchegante quarto do chalé, e a deitei com cuidado.
Observei-a nua por um tempo, sentindo todo o meu corpo responder à
visão. Tirando o girassol de sua mão, deslizei-o desde seu colo até o pé da
barriga, depois pelas pernas, reverenciando-a com os olhos.
— Linda — falei baixinho, mais para mim do que para ela propriamente
dito.
Malu não respondeu, apenas se contorceu devagar na cama.
— Fique quietinha, porque preciso pegar uma coisa.
— O quê? — ela perguntou, curiosa.
— Eu já volto.
Deixei-a exatamente onde estava, despi-me e fui à cozinha, que visitei
mais cedo, abrindo a geladeira e tirando do freezer um pote de sorvete, uma
colher e alguns cubos de gelo.
Sem pressa, abri o pote tirei uma boa colheirada e coloquei exatamente
sobre o bico do seio de Malu, fazendo-a gemer pelo creme gelado em contato
com aquela parte tão sensível de seu corpo. Uma gota do sorvete deslizou
para o lado, e eu a capturei com a língua, subindo até abocanhar o bico
inteiro, chupando o doce até não haver mais nada. Usei a colher gelada para
tocar o outro, que parecia tão carente de atenção, mas já intumescido.
— Lucas! — gemeu novamente, e o meu nome saído de sua boca linda,
com aquele tom de luxúria, seria capaz de me tornar seu escravo. Eu faria
qualquer coisa por ela. Com ela. Para ela.
— Não comemos doce no restaurante, Girassol. Você é minha sobremesa.
— Dizendo isso, eu peguei um pouco mais de sorvete e desenhei uma trilha
por toda a sua barriga plana. Deixei pequenos montinhos para poder me
deliciar mais e fui vendo os dedos de Malu agarrando o lençol da cama,
conforme eu me aproximava de sua intimidade.
Abri suas coxas, deixando a colher dentro do pote de sorvete,
substituindo-a por uma pedrinha de gelo. Sem aviso, deslizei-a pelo clitóris
de Malu, fazendo-a contorcer-se e gemer bem alto.
— Lucas, o quê...? — Ela ia tirar a venda, mas eu fui mais rápido e
agarrei seus punhos, segurando-os acima de sua cabeça com uma única mão
minha, usando a outra para continuar levando o gelo à sua entrada.
— Me deixa brincar com você... — sussurrei, e ela arfou mais ainda, o
que me fez sorrir.
Peguei uma segunda pedra de gelo, levando-a à boca e me mantive
masturbando-a com uma e passando a outra por seu mamilo.
Quando Malu gritou, começando a se contorcer e sussurrando que iria
gozar, eu rapidamente coloquei uma camisinha que já estava sobre a cama e a
penetrei com uma estocada forte, deslizando facilmente dentro dela pelo
quanto estava molhada. E eu, mais duro do que nunca.
Libertei suas mãos e tirei a venda de seus olhos, porque não havia nada
que eu quisesse mais do que ver sua expressão de prazer enquanto fazíamos
amor.
Enquanto a olhava, fiquei me remexendo dentro dela de leve, devagar,
apenas acariciando-a, até que investi com mais força – muita, aliás –, levando
Malu a um grito forte. Outra estocada, mais uma, e eu a senti começando a
gozar, depois de ser estimulada de tantas formas.
Deixei que se libertasse, gemendo deliciosamente, e logo a girei,
colocando-a de barriga para baixo, com algumas almofadas sob sua pélvis,
penetrando-a novamente, porque não queria parar. Ela estava tão molhada e
apertada que, se eu pudesse, não queria sair de dentro dela nunca mais.
Estoquei mais vezes, agarrando seus quadris, pegando sua carne com
vontade, entrando e saindo dela como um louco, até senti-la novamente se
entregando a um orgasmo e sendo sugado pelo meu.
Jogando-me na cama ao lado dela, puxei-a para os meus braços,
aninhando-a de conchinha, tendo a certeza de que o que quer que tivesse
acontecido naquele restaurante, não poderia nos separar.
Malu era minha. E eu pertencia a ela de corpo e alma.
CAPÍTULO VINTE E DOIS
Não consegui pregar o olho por uma hora sequer. Sentia-me cansada, mas
inquieta, incapaz de pegar no sono. Poderia estar sendo dramática, no entanto
queria aproveitar minha última noite com Lucas.
E ele ainda nem sabia disso…
Ergui minha mão para acariciar seu rosto perfeito e senti lágrimas se
formando em meus olhos. Meu peito doía só de pensar que tínhamos
percorrido um caminho tão longo para novamente termos que nos separar.
Em um movimento súbito, Lucas acordou e segurou meu punho. O
sorriso que se formou em seus lábios transformou-se em uma expressão de
preocupação quando me viu chorar. Subitamente ele se sentou, ainda sem
tirar os olhos de mim, mantendo a minha mão na sua.
— O que houve, amor? Por favor, seja o que for, conversa comigo.
Sua súplica penetrou as barreiras do meu coração, fazendo-me entender
que eu não poderia, de forma alguma, esconder a verdade. Conhecendo
Lucas, ele iria me entender. Não concordaria, provavelmente, mas a escolha
era minha. Não poderia me afastar dele sem deixá-lo saber o que iria
enfrentar.
Remexi-me na cama, colocando-me sentada, de frente para Lucas. Olhos
nos olhos. Se era para conversarmos, teria que ser assim. Eu não iria me
acovardar.
— Quando eu voltei ao restaurante para ir ao banheiro, Patrícia me
encurralou lá.
De súbito, Lucas fez menção de se levantar, com uma carranca,
parecendo indignado e muito irritado.
— O que aquela mulher fez? Ela te machucou? Eu vou processá-la! Ela
nunca mais vai chegar perto de você e...
Levei a mão ao seu rosto novamente, tentando acalmá-lo.
— Ela não tocou em mim, mas não posso dizer que não me machucou —
fui sincera. Não havia sentido em mentir, porque não queria mentir. Não para
Lucas. Nós tínhamos dito que nos amávamos, e eu não poderia ser desonesta
com alguém por quem nutria um sentimento tão profundo. Respirei fundo e
continuei: — Ela estava lá com aquele cara de propósito mesmo.
Aparentemente ele é louco por ela há muito tempo, mas Patrícia nunca lhe
deu uma chance. Então disse para mim que está disposta a convencê-lo a
desfazer o negócio se eu não me afastar de você e das meninas.
— O quê? — Havia nojo na expressão de Lucas, e eu me senti
estremecer. Um estranho calafrio percorreu a minha espinha. Não era apenas
o medo. Eu começava a me sentir fraca. As mãos de Lucas se prenderam aos
meus braços, como se quisesse me sacudir, mas não o fizesse. — Não vai me
dizer que está achando que um negócio é mais importante para mim do que
você.
— Não, Lucas. Não é só isso. Patrícia me conhece, ao menos um pouco, e
sabe que eu não iria desistir tão fácil. Só que ela colocou as crianças no meio.
Disse que vai fazer da vida de vocês um inferno e vai tentar forjar provas de
que você não pode ficar com a guarda delas. Ao que tudo indica os pais de
Laura demonstraram interesse nas meninas e estão do lado dela.
— Você não tem como saber isso. Mas posso descobrir...
A diferença do fuso horário para Paris facilitou nossa vida, então, Lucas
esticou a mão e pegou o celular. Imediatamente discou o número que ele
tinha salvo no celular, esperando enquanto olhava para mim.
— Boa noite, eu poderia falar com Gregório? Diga que é Lucas
Montanari. — Ele esperou um pouco, mas logo começou a falar, levantando-
se da cama, porque parecia inquieto.
Completamente nu, Lucas andava em círculos pelo quarto, falando baixo
com seu ex-sogro, enquanto eu tentava não ouvir a conversa. Sabia que ele
iria me contar depois, e eu não queria me sentir intrusiva.
Não pude deixar de ouvir alguns de seus resmungos mais incisivos, e ele
pareceu ficar um pouco envergonhado com isso. Então vestiu a calça que
estava no chão, com o telefone preso ao ombro, e foi para outro cômodo do
chalé para ser mais grosseiro e elevar a voz.
Só que, a julgar por seu desânimo quando voltou para a cama, as coisas
não pareciam muito boas.
— É verdade. Eu não sei o que Patrícia falou ou fez, mas eles estão
decididos a brigar pela guarda das meninas.
— E isso é possível? — Arregalei os olhos. Eu já estava decidida a fazer
o que tinha que fazer para proteger Lucas e as crianças, mas não podia negar
que ainda havia uma pequena esperança no meu coração de que houvesse
outra maneira de resolver as coisas.
Ele passou a mão pelos cabelos, deixando alguns fios muito lisos caírem
sobre seus olhos. Angustiado, sem dúvidas.
— Se eles alegarem que Laura tem interesse na guarda das duas, um juiz
poderia favorecer a mãe.
— Mas ela não tem, não é?
Lucas encolheu os ombros.
— Nunca teve, mas não posso colocar a mão no fogo por ela. Laura
sempre foi um pouco suscetível a Patrícia e aos pais. Se eles ameaçarem
cortar os cartões de crédito e a mesada que lhe dão – que foi o que me
disseram que farão –, ela vai ceder. — Foi impossível não abaixar a cabeça e
sentir uma melancolia infinita. O que o destino queria de nós? Por que nos
juntava e separava a seu bel prazer? Por que nos fazer sofrer?
Por que colocar aquele amor tão profundo dentro do meu peito só para
partir o meu coração em mil pedaços impossíveis de serem restaurados?
— Patrícia não estava blefando... — eu falei em meio a um suspiro,
levantando-me da cama e começando a me vestir. Em algum momento da
noite, depois de termos tomado banho juntos, Lucas pegou nossas roupas e
levou ao quarto, deixando-as empilhadas em uma poltrona.
Ouvi Lucas levantando-se de um pulo, indo atrás de mim.
— Malu, não importa. Vamos dar um jeito juntos. Não podemos aceitar
que ela nos manipule assim.
Girei meu corpo para ele, colocando-nos frente a frente. Ainda me sentia
mal, como se o peso do mundo inteiro estivesse nas minhas costas. Cansada,
triste... sem rumo.
— E se ela for mesmo até o fim? Se tentar tirar as meninas de você? Se
conseguir? Como vou me perdoar por isso? Fui avisada, tive a chance de
intervir... — Minha voz alterou-se. — Como vou olhar para você se for a
responsável por te fazer perder suas filhas?
Mais uma vez ele segurou meus braços.
— Isso não vai acontecer. Não posso perder nenhuma de vocês. — Eu
podia ver o desespero em seus olhos. — Por favor, Malu. Vamos ponderar,
resolver as coisas juntos. Não podemos tomar decisões impulsivas...
— Eu preciso que você me entenda. Amo você, Lucas. Amo aquelas
meninas também. E elas perderam muitas coisas. São doidas por você. Se a
louca da Patrícia conseguir separá-los, Catarina e Alice vão murchar. Serão
levadas para outro país. O preço é esse. Não podemos ficar juntos. Há muita
coisa em jogo.
Lucas ficou olhando para mim sem fala, e isso foi resposta suficiente para
minhas dúvidas. Ele também estava com medo. Inseguro. Sem saber como
reagir.
Não duvidava de seu amor por mim, mas não havia como competir com o
amor que ele sentia pelas filhas – e eu nem queria.
Tentei continuar me vestindo, virando-me de costas para pegar minha
jaqueta, mas ele novamente me agarrou pelo braço, puxando-me em sua
direção com força. Colidi com seu peito, e sua mão foi parar na minha nuca,
roubando um beijo.
Seus lábios tomaram os meus com voracidade, invadindo-os com sua
língua exigente. Eu sabia que era um beijo de desespero. Um beijo que
suplicava algo. O beijo que ele aparentemente estava usando para me
convencer de que éramos perfeitos juntos. Que tudo entre nós se encaixava
com perfeição.
Só que ele não precisava disso. Eu sabia. Tanto quanto sabia respirar.
Porém não mudava nada.
Mas mesmo tendo ciência de tudo, não consegui recusar quando ele me
puxou para o sofá, sentando-me em seu colo e me segurando contra si como
se a salvação do mundo dependesse disso.
Perdi noção de quantas horas permanecemos ali, apenas nos beijando,
parando apenas para respirarmos e olharmos um para o outro. Era como se
cada um de nós quisesse apenas aproveitar os últimos momentos juntos. E
isso dizia muitas coisas sobre a decisão de Lucas. Por mais que ele não
quisesse me deixar, eu podia sentir seu dilema.
Quando encerramos a quase infinita sessão de beijos, aninhei-me em seu
peito, enquanto ele me abraçava, mantendo-me em seu colo. Ouvi sua voz
sussurrando “não me deixe” quase como uma canção de ninar, e o mal estar
que sentia começou a me vencer. Acabei adormecendo ali mesmo.
Acordei com a luz do amanhecer entrando pela janela e uma terrível dor
de cabeça. Chovia lá fora e a manhã estava fria. Dei-me conta de que estava
na cama, mas não me lembrando exatamente como tinha ido parar lá.
Estava sozinha, no entanto.
Levantei-me da cama devagar, caminhando para a sala. Deparei-me com
Lucas sentado no sofá, ambas as mãos na cabeça, cotovelos apoiados nos
joelhos. Ele parecia desamparado, em desespero.
Provavelmente me ouviu chegar, porque ergueu os lindos olhos azuis para
mim, e eles estavam vermelhos.
— Temos que voltar — eu falei, precisando me esforçar demais para isso.
— Malu... não. Eu não posso permitir.
— É a minha escolha, Lucas. Você não pode me impedir.
Ele suspirou, e sua expressão era a de um menininho que perdera o
brinquedo preferido.
— Não, não posso. Mas está no meu direito te fazer um pedido, não está?
— Todos os que você quiser.
Lucas levantou-se e veio na minha direção, colocando uma das mãos no
meu rosto.
— Fique até a mostra de talentos de Cathy. Você a deixaria arrasada se
não participasse. E até lá eu posso encontrar... — Ele hesitou, parecendo
odiar o que estava prestes a dizer. — Outra... babá. — Eu estava prestes a
dizer que poderia ajudá-lo a isso, mas Lucas me interrompeu. — Não quero
substituir você, Malu. Nem como babá das crianças nem no meu coração.
Não quero passar pelo que passei quando estávamos separados.
— Eu também não quero, mas é melhor assim — tentei soar firme,
controlando o choro.
Afastando-se de um rompante, ele deu alguns passos para trás, ainda me
olhando nos olhos. O que eu vi foi ressentimento.
— Quer saber de uma coisa? — Lá estava uma agressividade que eu não
esperava. — Acho que você está desistindo rápido demais. Talvez eu não seja
assim tão importante.
Ergui as sobrancelhas, chocada.
— Ah, e o que acha que eu estava fazendo na cama com você, então?
Cruzando os braços contra o peito, eu senti o golpe vindo, mas nem tentei
me esquivar. Não tinha forças para isso.
— Nem sempre sexo se resume a amor e sentimento, não é, Malu. Nós
dois entendemos bem disso.
Encolhendo-me, quase sem acreditar no que estava ouvindo, dei um passo
para trás, querendo ficar ao máximo longe daquela versão de Lucas que eu
desconhecia.
— O que você quer dizer com isso? — perguntei, com medo da resposta.
— Nós dois ficamos com pessoas antes que não amávamos. Não nego
que há química entre nós, mas amor? Se você me amasse...
— Vá à merda, Lucas! — gritei. — Por eu te amar é que não quero
colocar suas filhas no meio da nossa relação. Se eu não te amasse, estaria
pouco me lixando para os seus sentimentos ou os delas. — Sentindo o ódio
me queimando por dentro, voltei para o quarto, para calçar os sapatos, porque
queria ir embora.
Lucas veio atrás.
Ele colocou a mão no meu ombro, tentando me virar para ele, mas não
permiti.
— Malu, eu...
— Não! — exclamei, ainda de costas para ele. — Nem ouse me pedir
desculpas agora. Não vai mudar o que você disse nem como estou me
sentindo. Só vai piorar as coisas.
Calcei meus sapatos e finalmente me virei, para sair do quarto, mas ele
me segurou pelos braços, sussurrando meu nome com os olhos cheios de
sentimentos. Empurrei seu peito, tentando me desvencilhar, mas ele não me
soltou.
Então eu vi as lágrimas.
Claro que me senti comovida. Aquele homem enorme, feito, todo
másculo, sensibilizando-se daquela maneira? Era algo a se levar em
consideração. Ainda assim, ele não iria me ganhar. Não depois do que disse.
E como disse.
— Me solta! Não quero mais olhar para você!
— Por favor, vamos para casa, então. Lá poderemos conversar melhor e...
— Eu vou voltar para a sua casa sozinha.
Consegui soltar-me de seus braços, e me apressei em direção à porta.
Estava chovendo, e eu senti os pingos de água gelada atingirem meu
corpo. Cruzei os braços, tentando me encolher ao máximo. Queria acelerar
meus passos, mas os malditos saltos que usava não estavam permitindo,
assim como o chão molhado.
Qual não foi minha surpresa quando uma mão grande agarrou meu braço,
e em um movimento súbito eu fui colocada nos ombros de Lucas e levada até
o carro dele, enquanto esperneava e gritava para que me devolvesse ao chão.
— Isso é ridículo, Lucas! Eu não quero voltar com você! — Sentia-me
como uma criança mimada, mas não conseguia evitar. Tentei socar suas
costas, mas ele nem vacilou. Eu me sentia como uma boneca ou um saco de
batatas.
— Está chovendo. Estamos longe da cidade. Não vai passar um táxi aqui.
O que quer? Caminhar até a rodovia e pedir carona a um tarado qualquer?
Para ser sincera eu nem tinha pensado no que iria fazer. Só queria ficar
longe dele depois do que me disse.
Apesar de estar irritado, Lucas me colocou no carro com cuidado,
fechando a porta. Cruzei os braços contra o peito, respirando fundo e
tentando me acalmar. Ele parou diante do bagageiro, o que eu pude ver pelo
retrovisor, e pegou algo de lá.
Quando entrou atrás do volante, ensopado, estendeu uma toalha para
mim, deixando outra para si mesmo, usando-a para secar os cabelos.
Eu queria muito – muito! – não pensar no quanto ele parecia sexy daquele
jeito, por isso virei a cabeça para o lado, começando a me secar também.
— Pode passar a viagem toda calada, mas não vai sozinha. E, por favor,
pense no que eu disse sobre Catarina. Ela ficaria arrasada se você não fosse à
mostra de talentos — ele falou sem me encarar, parecendo envergonhado.
— Tudo bem, Lucas. Eu vou ficar por mais duas semanas. Mas só isso.
Então olhou para mim finalmente, com os olhos doces de sempre.
— Obrigado.
Não respondi nada. Ele apenas deu a partida no carro e seguimos.
Era impressionante pensar que quando saímos, eu estava tão feliz, cheia
de esperança, mas que, naquele momento, tudo o que queria era me deitar em
uma cama e chorar.
Merda de destino cruel!
CAPÍTULO VINTE E TRÊS
Tranquei-me no escritório assim que chegamos e fiquei por lá o dia
inteiro, decidindo trabalhar de casa. Queria ver as meninas, mas minha
cabeça estava pesada demais para conseguir lhes dar a atenção que mereciam.
Além do mais, preencher minha mente com trabalho era o que eu necessitava.
Só que no momento em que abri o meu e-mail e vi algumas mensagens
do cara que estava com Patrícia no dia anterior, voltei minha raiva para a
pessoa errada. Claro que ele não tinha nada a ver com o que estava
acontecendo, mas fora por causa daquele negócio que tudo começara.
Ok, Patrícia também ameaçara me prejudicar com as crianças, mas...
Ah, merda, eu nem sabia o que pensar!
Puto da vida, apoiei os cotovelos na mesa, um de cada lado do notebook,
pousando a cabeça sobre as mãos.
Não conseguia me concentrar no trabalho. Não conseguia me concentrar
em nada. Só no que eu poderia fazer para reverter a situação.
Enquanto pensava, ouvi uma batida na porta e liberei a entrada, já
sabendo que deveria ser Teresa.
Tetê surgiu com uma bandeja com meu almoço, porque pedi que me
servisse no escritório, já que não queria encarar Malu. Estava envergonhado
pelo que disse, e ainda não sabia como me desculpar. Não devidamente,
como ela merecia.
Assim que Teresa colocou a bandeja sobre a mesa, segurei sua mão.
— Você poderia ficar um pouco comigo? — pedi em súplica.
— Claro. Mas aconteceu alguma coisa? — enquanto perguntava ela foi se
sentando.
— Malu — foi tudo o que eu disse, e ela assentiu, compreendendo.
— Jurei que as coisas estavam muito bem até ontem.
— Estavam, mas Patrícia estragou tudo. — Contei para Teresa o que
Malu e Patrícia conversaram no restaurante, e ela me ouviu pacientemente,
sem dizer nada. — Eu nem sei o que fazer, Tetê. Para começar... como aquela
mulher sabia onde eu iria estar na noite passada? Em qual restaurante?
— Isso é fácil. Você sabe que ela é amiguinha daquela sua secretária, não
sabe? — ela só deixou no ar, o que deu um clique na minha cabeça. Claro, só
podia ser isso!
Dei um soco na mesa.
— Eu vou demitir aquela mulher! — rosnei.
— Calma. Não faça nada com a cabeça quente. Primeiro foque em Malu.
Ela vai mesmo ficar pelas duas semanas até a mostra de talentos da Cathy?
Dei de ombros.
— Aparentemente, sim. Acho que ela não abandonaria as meninas assim.
— Eu também acho. Então você tem duas semanas para convencê-la a
ficar.
Ergui meus olhos para ela, surpreso.
— Você acha que eu tenho chances? Mesmo depois do que eu disse? —
perguntei parecendo um adolescente desesperado. Mas era exatamente assim
que me sentia.
— Ah, por favor... aquela garota te ama. Há muito tempo. Vocês ficaram
seis anos separados, e isso não mudou. Acha mesmo que esse pequeno
obstáculo vai separá-los?
Levantei-me da cadeira, começando a andar de um lado para o outro,
inquieto, preocupado, frustrado. Eu não queria me iludir de que ainda teria
uma chance. Não queria esperanças, mas era tarde demais, porque Teresa já
tinha me enchido delas.
— O que eu vou fazer com Patrícia? Se ela realmente tentar tirar as
crianças de mim... se fizer algo para me prejudicar, o que eu...?
Teresa ergueu uma sobrancelha, como fazia muitas vezes com as meninas
quando elas cometiam uma travessura.
— O que foi? — perguntei, confuso.
— Foi essa reação que teve quando Malu te contou?
— Não. Não exatamente, mas eu fiquei preocupado, é claro.
— Então não é fácil para ela, né? É uma escolha complicada. Exatamente
por te amar é que ela seria capaz de fazer sacrifícios. É uma boa mulher,
Lucas. Nunca cometeria um ato egoísta.
Ela estava certa. Só que nunca precisaria dizer tal coisa, porque eu já
sabia de tudo. Sabia o quanto Malu era valiosa e o quanto perdê-la
novamente seria devastador, não só para mim, mas para minhas filhas.
Merda! Catarina e Alice sofreriam com mais uma perda. Como era
possível que Patrícia fosse tão egoísta a esse ponto? Como não pensava nas
crianças que ela tanto dizia amar?
Amava porra nenhuma. Aquela mulher só amava a si mesma.
A mão cálida de Tetê pousou sobre a minha, e um sorriso curvou seus
lábios.
— Você vai tomar a melhor decisão, querido — ela falou com uma
confiança que nem eu mesmo tinha em mim.
Com isso, levantou-se, deixando-me com meu almoço, e saiu, fechando a
porta atrás si.
Eu não queria ficar sozinho, mas era melhor para pensar.
Ou trabalhar, que era a melhor escolha.
Voltei para minha cadeira, sem nem tocar na comida, e decidi finalmente
responder os e-mails, sobre dúvidas em relação ao contrato que não tinha sido
assinado, tentando controlar o meu ódio, afinal, a culpa não era do pobre
coitado que Patrícia enganou. Eu sequer sabia se ela estava blefando em
relação àquele assunto em específico. Sobre as crianças, eu já tinha provado
que não. Ela não hesitaria em tornar minha vida um inferno.
Pensando nisso, sentindo que não conseguiria controlar a minha raiva,
peguei o telefone e liguei para ela.
— Lucas! Que bom falar com você. Ontem te vi no restaurante, mas você
estava acompanhado daquela mulher, não quis te...
— Cala a boca, Patrícia! — rosnei, e ela ficou em silêncio. — Eu só
quero te dar um aviso. Só um. Não importa que você tente me separar da
Malu, que ela vá embora, que eu e ela nunca mais tenhamos uma chance. Eu
e você? Nunca rolaria. Nem ontem, nem hoje, nem nunca. Você seria a
última mulher no mundo por quem eu me interessaria. Por quem eu sentiria
tesão. Eu teria nojo de te beijar.
Ela continuou calada do outro lado da linha. Não conseguia sequer sentir
empatia por seu silêncio. Não depois de tudo o que ela fez e que ainda
poderia fazer.
Eu amava Malu, é claro, e ela ter ameaçado nos separar já era suficiente
para eu sentir um ódio desmedido. Só que colocar minhas filhas no meio? Ela
despertava o pior de mim.
— Você está sendo grosseiro — falou finalmente, com a voz chorosa.
Ainda não me comovia.
— Só porque disse que sinto nojo de você? Nem todos os homens caem
aos seus pés, acostume-se. E acho bom você se manter longe das minhas
filhas. Se novamente ameaçar me afastar de alguma delas, eu vou revirar sua
vida inteira e te colocar em maus lençóis. Você é cruel, Patrícia? Eu posso ser
mais. E tenho bem mais recursos para isso.
Sem deixá-la dizer mais nada, desliguei o telefone em sua cara.
Eu não iria permitir que Malu fosse embora. Nem que saísse da minha
vida. Não iria perdê-la; não sem lutar.
Continuei trabalhando por mais algumas horas, imerso em outro projeto
que já estava quase finalizando.
Sentindo as costas reclamarem, levantei-me e saí do escritório,
percebendo que tinha anoitecido. Eu tinha ficado em casa, sem passar uma
hora sequer com as meninas. Que merda de pai eu era.
Ouvi sons da TV vindos da sala e rumei para lá. Sabia que Malu deveria
estar com as crianças. Por mais que ainda não estivesse pronto para olhá-la,
porque não sabia como pedir desculpas propriamente, não podia evitá-la,
porque se fizesse isso, acabaria evitando também as minhas filhas.
Para a minha surpresa, porém, as crianças estavam vendo o filme
sozinhas, porque, por mais que Malu estivesse presente, encontrava-se com
os olhos fechados, toda encolhida no sofá, com um edredom a cobri-la.
— Ela dormiu? — indaguei às meninas, e Cathy me olhou com os
olhinhos preocupados.
— Papai, a Maria não está muito bem, não. Ela estava tremendo de frio e
nem está tão frio assim.
Não, Cathy tinha razão. A noite estava até abafada, porque depois da
chuva abrira um sol forte. Eu mesmo estava de camiseta de algodão e
bermuda, e as meninas, de blusinhas de alcinha e shorts.
Inclinei-me na direção dela, tocando sua testa e percebendo o quanto
estava quente.
Chequei sua pulsação só por precaução, e ela se remexeu, resmungando
alguma coisa. Ao menos não estava completamente inconsciente.
Olhei para as crianças, e nenhuma das duas prestava atenção ao desenho
na TV. Ambas estavam com os olhinhos fixos em Malu.
Eu precisava tirá-la dali, colocá-la em um banho para baixar sua febre, só
que não queria pegá-la no colo, quase desfalecida, com as meninas
observando. Imaginava que ficariam assustadas. Por isso, tive que agir.
— Meninas, vocês poderiam ir chamar Teresa? Peçam que ela vá ao meu
quarto.
— Nós duas, papai? — Cathy perguntou, ainda preocupada.
— Sim, as duas. — Tive que usar minha autoridade de pai, mas sem ser
severo, porque elas não tinham feito nada de errado.
Obedientes, as duas se levantaram. Catarina pegou a mãozinha de Alice,
ajudando-a, e elas foram à cozinha, onde já sabiam que Teresa deveria estar,
lendo um de seus romances.
Agachei-me próximo a Malu, tentando falar com ela:
— Amor, o que houve? Como está se sentindo? — perguntei, mas ela não
respondeu, apenas se remexeu, ofegando um pouco e estremecendo.
Aproveitando que as meninas não estavam ali, tirei-a do sofá, ainda
enrolada no edredom, carregando-a pelas escadas, começando a ficar
assustado.
Ela estava bem até aquela manhã, não estava? Ou eu não tinha percebido,
cego demais com meu egoísmo por estar prestes a ser abandonado como eu
mesmo a abandonei anos atrás?
Levei-a direto para o meu quarto, porque tinha uma banheira na suíte.
Deitei-a na cama, correndo ao banheiro para preparar seu banho. Não o deixei
muito frio, mas também não muito quente, apenas para tentar baixar sua
temperatura.
Enquanto ainda estava tirando a roupa dela, Teresa chegou. Sem as
crianças, ainda bem.
— O que houve? — preocupou-se.
— Não sei. Ela está com febre — avisei. — Vou lhe dar um banho para
tentar baixar, mas preciso que me faça um favor. Fique com as meninas e não
deixe que a vejam assim. Já estavam muito preocupadas.
— Claro! Precisa de mais alguma coisa?
— Não, querida. Com isso você já me ajuda muito.
Ela assentiu e saiu.
Esperei um pouco mais, para que a banheira se enchesse; em seguida
peguei Malu novamente nos braços e a levei à suíte.
Coloquei-a com cuidado na banheira e a senti encolher-se e gemer
quando seu corpo quente tocou a água.
— Desculpa, Girassol. É para o seu bem. Vou cuidar de você, ok? Não
importa o que aconteça... a partir de agora eu vou sempre cuidar de você.
Foi uma promessa feita com o meu coração. E ele não estava disposto a
quebrá-la.
CAPÍTULO VINTE E QUATRO
Irritada e magoada comigo, Malu demorou um pouco a aceitar ser
mimada. Não apenas por mim, mas pelas meninas também – embora, com
essas duas, a aceitação tivesse vindo de forma mais fácil. As duas mais
pareciam guardiãs durante o tempo que durou a virose – que foi constatada
pelo médico, quando a levei ao hospital. À força, diga-se de passagem,
porque não queria ter ido.
Eu sabia que ela já tinha passado tempo demais em hospitais para gostar
de estar em um. Ainda assim, não podia negligenciar.
Foram três dias de cama, completamente, com febre indo e vindo, mas no
quarto ela melhorou quase por completo. A temperatura baixou de vez e
chegou a dizer para Teresa que estava com fome.
Então eu não poderia perder a oportunidade.
Praticamente arranquei a bandeja das mãos da minha querida governanta,
oferecendo-me para levá-la a Malu.
Assim que entrei no quarto, ela pareceu surpresa em me ver, mas decidi
ignorar. A verdade era que eu tinha cuidado dela durante todos aqueles dias,
mais do que qualquer outra pessoa. Teresa e as meninas me ajudaram, mas eu
a alimentei – muito pouco, porque estava sem fome –, lhe dei banho e
remédios. Só que, estando convalescente, tornava-se uma coisinha mais doce.
Com suas forças retornando, sabia que não facilitaria para o meu lado.
— Teresa me disse que você está com fome. É um bom sinal —
comentei, esperando quebrar logo o silêncio.
— Sim. Acordei melhor hoje.
— Fico feliz. — Era quase desconcertante sentir-me tão desconfortável
na presença de uma pessoa com quem, dias atrás, eu estava fazendo amor tão
intensamente.
Pousando a bandeja sobre a cômoda, coloquei um pouco a mais de sal na
sopa – instruído por Teresa –, mexi e levei apenas o prato, usando de um
pano de prato por baixo, porque estava bem quentinha.
Sentei-me diante dela, e Malu fez menção de pegar, mas eu a impedi,
sugerindo que queria lhe dar na boca.
— Lucas, por favor... Não faça isso.
— Há dias eu venho fazendo isso. Você ainda está fraca. Além do mais...
é uma forma de me desculpar e compensar todas as merdas que eu te falei. —
Malu fez menção de dizer algo, mas eu a interrompi. — Não compensa, eu
sei. Precisaria de muito mais para te provar que estou arrependido, mas cuidar
de você sempre vai ser uma prioridade para mim. Estando doente ou não. Eu
só preciso que deixe que eu tome o controle das coisas.
Mergulhei a colher na sopa, tirando um bocado e levando à sua boca. Ela
permitiu, afinal, parecendo um pouco mais propensa a me ouvir.
— Podemos aproveitar para conversar? — Ela assentiu. — No dia em que
você ficou doente, eu liguei para Patrícia. Estou disposto a usar qualquer
arma que esteja ao meu favor para chantageá-la a desistir do que está
pretendendo fazer.
— Você tem mais a perder do que ela, Lucas.
— Tenho. As três pessoas que mais amo. — Levei mais uma colheirada à
boca de Malu. — E eu não pretendo perder nenhuma de vocês. De verdade.
Sei que as meninas não querem que você vá embora também.
— Mas elas vão sofrer mais se forem afastadas de você.
— Ainda não sabemos o que vai aconteceu. Eu liguei para Laura há uma
hora mais ou menos, e ela não atendeu. Deixei um recado na caixa postal,
espero que me retorne. Vou conversar com ela e encontrar um meio termo.
Sei que não quer as meninas, então, se eu mandar mais dinheiro, comprar
algo e...
— Lucas! Você está disposto a se desfazer de mais dinheiro dessa forma?
— ela perguntou, de olhos arregalados.
Sua surpresa com a minha afirmação chegava a me assustar. Ela ainda
tinha dúvidas do que eu seria capaz de fazer para nos manter juntos?
Se tinha, precisava compreender de uma vez por todas.
— Malu, eu faria qualquer coisa para não te perder mais uma vez. Na
primeira foi culpa minha. Não vou cometer o mesmo erro.
Eu a vi suspirar, olhando para mim. O que testemunhei em seus olhos
acendeu um pouco de esperança no meu peito.
Não sem lutar, Lucas... Não permita que ela saia da sua vida mais uma
vez sem você ter esgotado todas as chances.
Continuei alimentando-a em silêncio, até que a porta de seu quarto se
abriu em um rompante.
Era Cathy. Havia lágrimas em seus olhinhos, e ela estava com o telefone
sem fio da casa na mão.
Sua expressão indignada estava voltada na direção de Malu, o que me
preocupou.
— Você vai me abandonar também? — minha filha gritou.
Teresa surgiu logo atrás correndo, com Alice no colo, afobada, como se
tivesse saído apressada atrás de Catarina em uma perseguição.
— Catarina, do que está falando? E pare de gritar. Malu está doente —
afirmei com certa severidade. Não gostava de falar daquele jeito com
nenhuma das minhas filhas, mas, infelizmente, como pai, uma vez ou outra
eu tinha que ser mais enérgico. — Quem está com você no telefone?
Se fosse Patrícia...
— É a mamãe. Ela me disse que você ligou para ela. E ela me perguntou
se eu estava muito triste porque minha babá ia embora. Foi a tia Patrícia que
falou para ela. — Voltou-se novamente para Malu. — É verdade, Maria?
Você vai embora?
Naquele momento eu quis muito que Malu mentisse, por mais que eu
sempre fosse a favor da verdade, principalmente para lidar com as crianças.
Só que eu conhecia bem a mulher que eu amava. Ela não era falsa, era mais
leal do que qualquer um de nós poderia merecer, e sua expressão de pesar me
dizia que não iria enganar minha filha.
O que deveria me deixar feliz, é claro. Só que eu sabia que seria o
prelúdio de uma tragédia.
— Querida, me deixa explicar... — Ah, péssimo começo. Catarina não
era boba, tanto que mais lágrimas caíram de seus olhos e seu choro se
intensificou.
— Então é verdade, né? Você vai embora! Vai me abandonar também,
como prometeu que não ia fazer — minha filhinha estava descontrolada, e eu
não sabia o que fazer. Olhava de uma para a outra e via Malu também
começando a chorar.
— Tatá, meu amor... Não faça isso.
— Você não me ama. Como a minha mãe também não ama. Ninguém me
ama! — Catarina jogou o telefone em cima da poltrona, no canto do quarto, e
saiu correndo. — E eu te odeio, Maria. Quero mesmo que você vá embora e
não volte nunca mais. NUNCA MAIS!
Malu tentou se levantar, para ir atrás dela, mas chegou a cambalear, e eu a
segurei, forçando-a a voltar para a cama.
— Eu vou falar com ela. Fique aqui.
Voltei-me para Teresa, que estava lá parada, com Alice, que olhava para a
direção que a irmã seguiu, confusa, com o dedinho na boca, analisando a
situação com sua cabecinha inocente, e pedi:
— Faça com que ela coma mais um pouco. — Apontei para a mulher
doente na cama, mas eu sabia que era um pedido em vão. A julgar pelo
estado em que Malu ficara com o rompante de Catarina, era fácil imaginar
que não iria conseguir colocar mais nada no estômago.
Nem esperei a resposta de Teresa, apenas saí do quarto, apressado, na
intenção de encontrar Catarina pelo meio do caminho.
Na verdade, foi exatamente o que aconteceu. Achei a pequena já na sala
de estar, quase saindo porta afora.
Eu sabia que o segurança que ficava no portão não a deixaria ir muito
longe, e ela provavelmente só queria chegar ao jardim, mas peguei-a no meio
do caminho, colocando-a debaixo do meu braço e levando-a de volta ao seu
quarto.
Ela esperneava como uma profissional e quando a joguei na cama, tentou
se levantar, mas eu ergui um dedo em riste e uma sobrancelha em um recado
bem óbvio.
— Precisamos conversar. Você sabe que errou, não sabe?
Ela cruzou os bracinhos e fechou a cara.
— A Maria que começou.
Aproximei-me da cama, ajoelhando-me em frente a ela, esperando que ao
estarmos equivalentes em tamanho ela se sentisse menos intimidada.
— Desde quando a Malu foi grosseira com você como foi com ela? —
Daquela vez minha filha não respondeu nada, apenas limpou o rostinho com
as costas da mão. — E ela está doente. Você falou que a odeia. Foi de
coração?
— Foi! — ela se alterou novamente. — Eu odeio ela! Assim como odeio
a mamãe.
— É um sentimento muito cruel, Catarina. Muito forte também.
— Mas ela vai embora, não vai?
— Ainda não sabemos. Além do mais, não é porque ela queira. — Eu
deveria ficar calado. Colocar uma criança contra sua madrinha não era uma
boa ideia, mas Patrícia não merecia minha consideração. — Sua dinda falou
umas coisas muito feias para a Malu que a deixaram com medo.
— Medo de quê? — Catarina arregalou os olhos.
— São coisas de adultos. Mas seja como for, não culpe Malu. Ela te ama
e estava sofrendo muito pensando em ir embora.
— Por que ela não me contou, então? — Catarina novamente cruzou os
braços, lutando muito para continuar irritada, mas eu sabia que já estava um
pouco arrependida.
— Ela ficou doente, querida. — Levantei-me e me sentei na cama, de
frente para a minha menininha. — Cathy, deixa o papai te falar uma coisa? —
Ela assentiu. — É muito feio e injusto julgar as pessoas sem saber as duas
versões da história. Sua mamãe te contou uma coisa e você foi tirar
satisfações sem nem deixar Malu falar. É errado, e eu deveria te deixar de
castigo por isso. Mas acho que você já aprendeu a lição, não?
Minha garotinha parecia arrasada, e eu comecei a pensar se tinha ido
muito longe. Mas precisava educá-la, não? E de que outra forma poderia
fazer isso a não ser evidenciando seus erros e fazendo-a entendê-los?
Balançando a cabeça, deixou que mais uma lágrima escapasse.
— Será que a Maria está muito triste?
— Sim, querida. Ela está — fui sincero. — Você a ama?
Novamente assentiu, envergonhada.
— O que sentiria se ela dissesse que te odeia?
Catarina começou a chorar com mais força.
Ah, merda! Eu era um péssimo pai por fazê-la chorar daquela forma, não
era?
— Eu não queria, papai! Não queria deixar a Maria triste! Mas... mas...
mas... — Soluçando, minha pequena não parava de lamentar, então eu a
puxei para os meus braços, apertando-a com carinho.
— Tudo bem, filha. Ela vai entender. Agora se acalme.
Enquanto Catarina ainda se debulhava em lágrimas, Teresa apareceu no
quarto, com Alice, observando a minha mais velha com pena.
Afastei-a de mim, para olhar em seus olhinhos, mas ela parecia mais
calma. Ao menos um pouco.
— Papai, eu preciso ir lá falar com a Maria, né? — perguntou, enquanto
eu secava suas lágrimas.
— Acho melhor você dar um tempo para as duas. Já está na hora de ir
para a cama, porque amanhã você tem aula. Teresa vai ajudá-la, ok?
— Tudo bem.
Beijei minha filha no topo da cabeça, esperando que ela tivesse mesmo
entendido seu erro e aprendido com ele. Levantei-me e beijei Alice também,
que já estava meio sonolenta.
— Malu comeu? — perguntei a Teresa.
— Não. Deixei a bandeja na mesinha de cabeceira, e ela disse que ia
comer um pouco.
Respirei fundo. Que merda de noites tumultuadas. Sentia-me cansado,
porque estava sem dormir direito há dias, velando o sono de Malu e cuidando
dela, e lá estava mais um problema. Esperava que conseguíssemos conversar
no dia seguinte, sem interrupções.
— Vou falar com ela — falei tanto para Teresa quanto para mim mesmo.
— Senhor, Malu pediu para ficar sozinha.
Merda! Claro que tinha pedido. Depois de tudo o que passou desde que
chegou na minha casa, ela não poderia estar se sentindo muito compelida a
olhar na minha cara. Então eu deveria acatar seu pedido.
E eu tentei. Juro.
Fui tomar um banho, no qual demorei o máximo que pude, tentando
esfriar a cabeça, fui ao meu escritório e tomei uma dose de uísque; andei de
um lado para o outro sem parar, tentando pensar no que fazer e fui vencido.
Era mais de meia-noite quando fui ao quarto de Malu, verificar se estava
bem.
Eu não tinha o direito de sair entrando sem ser convidado, mas levando
em consideração que estava doente, decidi apenas checar se a febre voltara,
se tinha comido, se estava bem... Essas coisas.
Não tinha nada a ver com a minha necessidade desesperada de vê-la,
pedir perdão mais uma vez e implorar que ficasse.
Mas era tarde demais.
Quando entrei em seu quarto, tudo o que encontrei foi um bilhete sobre a
cama, que dizia:

Lucas,
Peça perdão às meninas por mim, mas não pude ficar.
Patrícia não iria parar nunca de nos infernizar, e Catarina estava tão
chateada... Ouvi-la dizer que me odeia foi doloroso demais. Então é melhor
que eu vá enquanto ela ainda está com raiva do que iludi-la novamente e
partir seu coraçãozinho duas vezes.
Eu amo vocês.
Amo você. E não se preocupe com o que aconteceu no chalé.
Estávamos os dois de cabeça quente. Não vamos guardar mágoas, só boas
lembranças.
Até um dia, quem sabe.
Sua Malu.

Sua Malu.
De todas as partes do bilhete, esta foi que a mais me feriu. Porque ela
deveria ser minha. Há muito tempo. Só que nada acontecera como eu queria.
Amassei o papel, com raiva, começando a andar pelo quarto, checando
seu armário. Não havia mais nada lá.
Corri para o portão, falando com o segurança, que confirmou que ela
tinha partido há uma hora mais ou menos.
Se eu tivesse saído do quarto das crianças e ido falar com ela...
Mas não era hora de lamentar. Eu precisava agir. Enquanto Patrícia ainda
fosse uma pedra no nosso caminho, Malu não se tranquilizaria. Ela nunca
conseguiria ficar pra valer comigo se o preço fosse a insegurança da guarda
das minhas filhas. Não adiantava eu ir atrás dela, buscá-la e jogá-la nos meus
ombros como um homem das cavernas, porque seria errado. Se ela quis ir
embora, eu precisava deixar.
Depois de receber uma mensagem dizendo que ela estava bem, que tinha
chegado em um lugar seguro e pedindo que eu não a procurasse, não me
restava nada a fazer a não ser tentar consertar a situação toda antes de ir pedir
que voltasse.
Sendo assim fui ao meu escritório, decidido a fazer uma coisa muito
importante: telefonar para minha ex-esposa. Ela também iria ouvir umas
poucas e boas.
CAPÍTULO VINTE E CINCO
Os dois primeiros dias, eu tirei apenas para me lamentar. O que era
patético, é claro, mas apenas me entreguei ao ridículo e deixei as emoções
falarem mais alto.
Assim que saí da casa de Lucas, peguei um táxi e me enfiei em um
motelzinho de estrada barato e limpo. Não consegui dormir, jurando que ele
iria me achar.
O telefone, é claro, não parou de tocar. Lucas não descansou até que lhe
enviei uma mensagem avisando que estava bem, segura e pronta para dormir.
Embora eu certamente não fosse pegar no sono tão cedo. Se é que iria
conseguir em algum momento.
No terceiro dia, bem cedo pela manhã, peguei um ônibus para outra
cidade vizinha. Claro que não a mesma onde Jonas morava, porque não
estava nem um pouco a fim de esbarrar nele por acidente.
Hospedei-me em uma pousada com ares de pensão, bem baratinha,
simples, mas limpa e com uma senhorinha como dona. Como era baixa
temporada e estava vazia, nós fizemos companhia uma para a outra. Falei
com ela que precisava de um emprego só para me manter por algum tempo, e
ela me indicou para uma amiga que tinha uma pizzaria ali perto e que
precisava de garçonete.
O dinheiro que ganhei durante o tempo em que trabalhei para Lucas
estava praticamente intacto na minha conta, porque, morando em sua casa,
não tinha gastos, mas eu preferia que permanecesse assim. Guardar para
emergências – foi o que minha mãe sempre me ensinou.
Como a garota boba que era, com o passar dos dias, comecei a ficar
chateada por Lucas não ter sequer tentado me encontrar. Claro que ele
poderia estar fazendo isso na surdina, mas começava a acreditar que não o
faria. Eu conhecia bem o homem que amava, e ele jamais iria me forçar a
uma situação da qual eu fugi.
Só que minha fuga durou por pouco tempo, porque quase duas semanas
depois de minha partida, eu recebi uma visita na pousada, depois do
cansativo expediente na pizzaria.
Não era Lucas, no entanto.
A mulher elegante me esperava de pé, na sala de visitas, como se tivesse
medo de sujar a saia de seu terninho em alguma das cadeiras ou no sofá puído
que D. Margarida cuidava com tanto esmero.
Eu ainda estava vestindo meu uniforme, e poderia tê-lo trocado,
deixando-a esperando, mas fiz questão de aparecer em sua frente com a maior
prova de que eu era uma trabalhadora – coisa que aquela pessoa ali nunca
precisaria ser.
— Laura? — perguntei, esperando que meu tom de voz demonstrasse
toda a minha surpresa.
Ela se virou na minha direção, toda graciosa, e eu cheguei a sentir o
coração apertar pelo quanto Catarina era uma pequena cópia dela.
A filha da mãe era bonita como uma modelo. Daquelas que se vê em
passarelas, desfilando com lingeries Victoria's Secret.
Eu sabia que era bonita. Nunca poderia ser injusta com minha própria
genética, porque minha mãe era a mulher mais linda que já conheci, com ares
de Elizabeth Taylor, cabelos muito negros, olhos de um azul quase violeta.
Só que eu fazia mais o tipo princesinha Disney. Não havia nada em mim que
parecesse sexy ou que exalasse poder como havia em Laura.
Era fácil ver por que Lucas pensara com a cabeça de baixo ao olhar par a
ela.
Mas este era um pensamento que eu não queria nutrir.
— Oi, Malu. Será que podemos conversar? — Ao menos o tom de voz foi
educado.
O que será que ela estava fazendo ali? Eu já tinha saído da vida do ex-
marido dela, não tinha? Qual poderia ser o seu interesse? Pedir que não
voltasse?
— Claro. Quer se sentar?
Ela olhou para os assentos disponíveis com um pouco de asco, mas
acabou escolhendo uma cadeira e se acomodando na pontinha dela.
Também me sentei, à sua frente.
— Em que posso te ajudar? — Nunca fomos exatamente amigas, mas
tentei ser cordial.
— Na verdade, eu vim aqui te dar um recado. — Ah, pronto. Eu conhecia
o tipo de recado que aquelas mulheres gostavam de dar e não estava nem um
pouco interessada. Dependendo do que fosse, ela seria expulsa dali sem
remorsmo.
— Vá em frente.
Laura suspirou um pouco antes de começar:
— Eu queria que você soubesse que eu não tenho o menor interesse em
prejudicar Lucas e as meninas. Sei muito bem que sou uma péssima mãe e
nunca as obrigaria a ficar comigo tendo o pai maravilhoso que elas têm.
Aquilo me surpreendeu.
— Então acho que você precisa avisar isso à sua amiga.
— Patrícia não é mais minha amiga há um bom tempo. Ela só fala
comigo quando tem algum interesse. Comecei a receber um monte de e-mails
dela quando você passou a trabalhar como babá das crianças, e ela enchia a
minha cabeça todos os dias dizendo o quanto você era péssima e que tinha
medo de que maltratasse uma delas.
— O quê? — minha voz se alterou. Aquela mulher merecia um corretivo.
Pelo amor de Deus. E eu teria prazer em dar.
— No início eu me assustei, porque sabia que Lucas sempre foi
apaixonado por você e poderia estar cego, né? Mas aí eu liguei para Teresa, e
ela me falou o contrário. Lucas também foi bem direto ao contar tudo o que
estava acontecendo, mas eu não sabia. Naquele dia, quando liguei e falei com
Catarina, não tinha a intenção de causar um tumulto. Eu só perguntei a ela
sobre sua partida, mas não sabia que ela não estava ciente.
Engoli em seco me lembrando da forma como Catarina me tratou.
— O que você quer que eu faça, Laura? Patrícia está mancomunada com
seus pais. Não posso permitir que Lucas perda a guarda das crianças.
— E ele não vai. Estou do lado de vocês. Vim ao Brasil para resolver as
coisas. Se por acaso meus pais tentarem entrar na justiça, eu vou testemunhar
a favor de Lucas.
Ergui uma sobrancelha, observando-a, tentando decidir se estava ou não
falando a verdade.
— Como podemos confiar?
Ela deu de ombros.
— Eu preferia que vocês confiassem, mas Lucas me fez assinar um papel
abrindo mão da guarda das crianças de vez. Além do mais, ele poderia, se
quisesse, alegar abandono de lar, já que eu saí do país e fiquei fora por mais
de um ano. Seja como for, eu quero tentar ser mais participativa na vida das
minhas filhas, mas não quero ser mãe em tempo integral. Por mais que eu
ame as duas, do meu jeito, elas foram um acidente.
Como chamar aquelas duas princesinhas de acidente? Ainda assim, ela ao
menos estava sendo decente. Nem todas as mulheres nasciam com vocação
para serem mães.
Ainda assim, algo me incomodava.
— Ok. Posso lidar com isso. Mas antes de você sair de novo da vida delas
e ir viver a sua, preciso que tenha uma conversa de mãe para filha com
Catarina.
— Como assim? — Ela pareceu surpresa.
— Sua garotinha é de um talento extraordinário. Ela vai ser uma grande
desenhista ou pintora um dia, mas você destruiu os sonhos dela,
menosprezando tudo o que ela fazia. Enquanto estiver por aqui, vai conversar
com ela. Mesmo que não a ache um "Picasso", o que seria impossível para
uma criança de seis anos, vai fazer com que ela acredite que é maravilhosa.
Boquiaberta, Laura mostrou-se chocada.
— Tudo bem. Eu não fazia ideia... Mas vou resolver isso. Vou à mostra
de talentos dela no sábado, e você deveria ir também.
— Eu nunca pensei em não ir. — Só não precisava contar a Laura,
que eu planejava ficar escondida, apenas vendo a minha menininha brilhar.
Naquele momento, não sabia mais o que fazer.
— Ótimo. Estamos combinadas, então.
Fizemos uma pausa, e eu acrescentei:
— Só me diz uma coisa: como me achou?
— Ah, isso foi fácil. Evandro, amigo de Lucas, te viu na pizzaria onde
você trabalha. Meio que foi uma coincidência, mas bem providencial. Agora
conseguimos colocar as cartas na mesa.
Sim, era verdade, mas eu tinha mais uma coisa para fazer.
Foi no sábado, na manhã da mostra de talentos de Catarina, três dias
depois da minha conversa com Laura. Consegui o dia de folga na pizzaria,
depois de explicar tudo à minha patroa, que era uma santa.
Arrumei-me, ainda incerta sobre o que fazer em relação a revelar minha
presença na escola ou não. Ainda não sabia se a menina estava magoada
comigo, mas voltei para Montes Altos, deixando minhas coisas na
pousadinha e rumei direto para a casa de Patrícia.
Toquei a campainha, me anunciei e, milagrosamente, fui recebida.
Com um ar superior, aquele projeto de vadia veio na minha direção com
um sorrisinho de canto. Ela também estava bem arrumada, e eu imaginei
exatamente o que pretendia fazer.
— Ao quê devo a honra da sua visita, Maria Luísa? — falou com desdém.
Eu também sorri.
— Vim te trazer uma informação, e eu espero que você guarde muito bem
nessa sua cabeça vazia. — Ela ia dizer alguma coisa, mas ergui um dedo em
riste, interrompendo-a. Aproximei-me um pouco mais dela, como se
fôssemos duas lutadoras de MMA. Eu era alguns centímetros mais baixa, mas
não me intimidei. — Lucas é meu. Não importa o que você faça, de alguma
forma, nós sempre voltaremos um para o outro.
— Bem, se é isso que você vai escolher, temos um problema, bonitinha.
Você sabe muito bem o que eu pretendo fazer. — Seu ar de vitória me fez
alargar o sorriso.
— Você pode tentar — falei em tom de ameaça. — E vai dar com a cara
na porta, sua piranha manipuladora.
— Eu não vou permitir que fale assim comigo.
— E nem eu vou permitir que você me separe do homem que amo.
Menos ainda que tire as crianças dele. No final das contas, Patrícia, você não
vai ter o cara que você quer e ainda vai ter que aguentar vê-lo por aí com a...
neta da costureira.
Virei as costas, pronta para sair, quase satisfeita, mas ela brincou com
fogo:
— Aquela velha pobre e feia deve ter morrido é de desgosto.
Ela podia ter me chamado de qualquer coisa. Ofendido a mim.
Mas mexer com a minha família? Com minha vozinha falecida? Ela
despertou algo muito, muito ruim dentro do meu peito.
Girando de volta em sua direção, o tapa foi certeiro. Eu podia ser
pequena, mas minha mão era pesada.
— Sua...
Mal dei tempo para que a ofensa viesse, apenas lancei outro tapa na cara
dela – daquela vez fazendo-a cair no chão sem um pingo da elegância de
sempre.
Caiu como uma rã, com as pernas abertas e arqueadas, toda arreganhada.
Uma sensação de paz me tomou.
— Um último aviso. Se aparecer hoje na mostra de talentos de Catarina,
vai levar mais uns três desse. E um chute no meio dessas pernas. — Eu já ia
saindo, mas... Estava pronta para a treta, por isso, lancei mais um olhar para
ela. — Curioso que eu provavelmente também vou ficar bem dolorida esta
noite, porque Lucas vai me deixar assim. Ele... — Respirei fundo, quase
suspirando. — Ele tem uma pegada forte, sabe? Só de pensar eu já fico toda
excitada. Que bom que é a mim que ele ama.
Ela ficou resmungando ainda lá caída, mas nem a ouvi. Saí quase
saltitando, esperando que o que falei fosse verdade e que Lucas ainda
estivesse disposto a ficar comigo. Daquela vez para sempre.
CAPÍTULO VINTE E SEIS
Uma coisinha trêmula e assustada aninhava-se em meus braços, ansiosa e
amedrontada. Catarina seria uma das próximas alunas da escola a entrar no
palco para apresentar seus desenhos – que a professora Janaína organizou em
slides, que ela mesma passaria, enquanto minha garotinha iria dissertar sobre
eles.
Eu queria poder protegê-la de seu próprio medo. Queria poder tirá-la dali
e desistir da história de mostra de talentos, só porque eu sabia que minha
filhinha estava apavorada. Sentia-me um péssimo pai por não poder fazer
nada. Mas se a convencesse a desistir, estaria mais errado ainda. Minha Cathy
merecia ter seu talento reconhecido.
Afastei-a um pouco de mim, olhando para seus olhinhos vidrados e
chorosos.
— Vai dar tudo certo, querida. Você é maravilhosa.
— Mas a Maria não está aqui — ela fungou. — Eu não vou conseguir
apresentar sem a Maria — lamentou como se aquele fosse o fim do mundo.
Ok, poderia não ser, mas eu também estava triste pela ausência. Não
apenas pelo fato de ela não ir à mostra – o que chegava a me deixar um pouco
decepcionado, porque jurava que ao menos pela minha filha ela teria essa
consideração –, mas por tudo.
Porra... eu sentia falta dela. De um jeito que me provocava uma dor física.
Eu ia da saudade à magoa em dois minutos. Era só entrar no quarto dela,
olhar para algumas de suas coisas que ainda estavam lá que meu coração se
apertava no peito de tal forma que eu poderia jurar que ele estava sendo
esmagado dentro de mãos firmes, ao ponto de explodir.
Só que, ao mesmo tempo, tentava me perguntar se o que sentíamos era
assim tão forte para ela. Se fosse, não teria voltado? Não estaria ali ao meu
lado, ao menos por minha filha? Laura fora falar com ela, e eu jurei que Malu
surgiria imediatamente, correndo para mim, e nós dois finalmente nos
entenderíamos.
A cena seria quase digna de um romance, mas eu a desejava. Clichê,
brega e melodramática – eu aceitaria tudo isso.
— O papai não serve? Sua irmã. Tetê. Até sua mãe veio — tentei animá-
la.
— Eu sei. Mas eu fui muito malvada com a Maria. Eu queria pedir
desculpa.
— Você vai poder, querida. — Nós dois iríamos poder pedir desculpas a
Malu, eu tinha certeza. Não era possível que nossas chances tivessem se
perdido.
Eu ainda estava agachado, falando com minha garotinha, quando a
professora dela se aproximou.
— Cathy, vamos? Você é a próxima.
Catarina travou, e eu quase tive vontade de não permitir que saísse dos
meus braços. Era muito doloroso para um pai ver sua princesinha chorando,
mesmo que fosse por uma coisa simples, nada grave. Queremos ser os super-
heróis de nossas filhas, queremos que nos vejam como seus protetores e que
nos busquem como refúgio sempre, só que, infelizmente, às vezes era
necessário soltá-las.
Minha menininha precisava brilhar.
A professora Janaína a levou pela mão, com toda a sua paciência, e eu
fiquei ali parado, apenas observando-a partir, olhando para mim por cima do
ombrinho.
— Ela vai ficar bem — a voz de Laura surgiu ao meu lado. Era
impressionante o quão distante era das filhas; como se fosse apenas uma
amiga da família.
— Sim, mas perguntou por Malu. Você foi mesmo falar com ela, não foi?
— Porque eu duvidava. De verdade. Mas tentei lhe dar um voto de confiança,
afinal, era a mãe da minha filha e tivemos uma história juntos.
— Não tenho motivos para mentir, Lucas.
Cruzei os braços contra o peito, ainda desconfiado, enquanto fazia um
sinal para Teresa se aproximar com Alice, porque eu queria encontrar um
lugar mais à frente.
Sentamo-nos na segunda fileira, aguardando durante a apresentação de
bateria de um garotinho de uma série acima de Catarina. Ele era bom, e eu
sorri, imaginando que seria legal, um dia, ter um menino, embora eu estivesse
mais do que feliz com minhas duas garotinhas.
Mas com Malu...
Afastei o pensamento antes de ele se manifestar.
Quando Catarina foi anunciada, minha linda menina entrou no palco
como um bichinho do mato. A professora a ajudou a passar os slides, e ela
explicou seus dois primeiros desenhos como tínhamos ensaiado naquela
última semana.
Já estávamos chegando no terceiro quando Cathy simplesmente perdeu
seu olhar na porta do auditório, ficando em silêncio. Olhei para o local para
onde ela estava olhando e vi Malu.
Linda, com um vestido azul, delicado, e ela enviava um beijo para a
menina no palco, depois fazia um gesto incentivando-a a continuar.
Então os olhos de Malu se encontraram com os meus.
Eu a vi respirar profundamente, ainda parada, enquanto Catarina voltava a
relatar sobre cada desenho. A vozinha da minha filha soava ao fundo, mais
animada, enquanto Malu começava a caminhar na minha direção.
Havia uma cadeira vaga ao meu lado, onde ela se sentou sem dizer nada.
Demorou alguns segundos para se voltar para mim, olhos nos olhos, tão perto
que precisaríamos nos aproximar muito pouco para nos beijarmos.
— Oi — ela sussurrou, com aquele jeito meigo e doce que me
desmontava.
— Oi — respondi, sentindo-me atordoado com sua presença.
Fazia uns bons dias que não nos víamos, e era ridículo pensar que ela
parecia ainda mais bonita do que na última vez.
Malu virou-se para o palco, para olhar para a minha filha, que continuava
sua apresentação muito mais confiante.
O último desenho de sua pequena exposição era o que fizera na escola, no
dia em que a professora Janaína falara com Malu. Éramos nós.
Durante aquelas duas semanas desde a partida de Malu, conversei com
minhas filhas e contei a elas nossa história. Falei sobre como nos
apaixonamos no passado, mas sem mencionar que a chegada de Catarina
atrapalhara nossos planos. Apenas falei que nós nos separamos por
circunstâncias da vida. Ambas ficaram encantadas, e Cathy disse que era
quase um conto de fadas; a história perfeita de A Noviça Rebelde, que só
faltava Malu voltar como a Maria voltara para a família Von Trapp.
As duas já sabiam que, caso isso acontecesse, o papai delas tinha
interesse em namorar sua babá. Nada poderia tê-las deixado mais felizes.
Só que Malu não voltou, como elas acharam que aconteceria, e Cathy
começou a se culpar. Naquele momento, sobre o palco, minha menininha
sorria como se tivesse ganhado um maravilhoso presente de Natal.
Tínhamos ensaiado algumas coisas para ela dizer a respeito do desenho
que era mostrado naquele momento, mas Catarina apenas olhou para mim e
para Malu, soltando:
— E esta aqui é a minha família.
Sim. Aquela era a nossa família.
Ou eu esperava que se tornasse muito em breve.
Todos nós a aplaudimos – eu, Malu, Laura, Tetê e até Alice, de pé, é
claro – e deixamos que Janaína a trouxesse até nós.
No momento em que se aproximou, a pequena se jogou nos braços de
Malu, que a ergueu do chão em seu colo. A cabecinha de cabelos claros
encostou-se em seu ombro chorando de soluçar. Ao lado delas, eu podia
ouvi-la:
— Eu pensei que você nunca mais ia voltar — Cathy falou, com a voz
embargada.
— Eu não perderia isso aqui por nada — Malu também estava
emocionada.
Catarina se afastou um pouco, para olhar Malu nos olhos.
— Quando eu disse que te odiava, eu não estava falando sério, tá? Eu te
amo, Maria. Muito.
Vi Malu vacilar um pouco, e seus lindos olhos azuis se encheram de
lágrimas.
— Eu também te amo, Tatá. Você e a Lili.
Ouvindo seu apelido, Alice caminhou em direção à sua babá, agarrando-a
pela perna.
Deixei-as ali por um tempo, mas foi Laura quem as interrompeu.
— Sabe o que eu acho, meninas? — ela falou por cima de todos. Como
Catarina fora a última a se apresentar, todo o auditório estava um falatório,
mas minha ex-esposa sabia se fazer ouvir. — Que a mamãe aqui poderia
levar vocês duas e a Teresa para almoçarem e passarmos a tarde no shopping
para que o papai e a Malu possam conversar, o que acham?
As meninas não pareciam querer largar Malu, mas Cathy logo assentiu.
Alice resmungou um pouco, mas depois de ser colocada no chão, a mais
velha falou algo no ouvido da menorzinha, que concordou rapidamente.
— Obrigado — sussurrei para Laura, que deu uma piscadinha para mim.
Ela levou Catarina pela mão, enquanto Tetê pegava Alice no colo, e as
duas meninas deram tchauzinho para nós.
Quando estávamos sozinhos em meio às outras pessoas da escola,
olhamos um para o outro, um pouco desconfortáveis, mas eu esperava que
essa sensação logo passasse. Precisávamos conversar, mas eu também
precisava beijá-la. Precisava aplacar a saudade que estava sentindo.
— Enfim sós — brinquei.
— Olha, Lucas, eu... — ela ia começar, mas eu a impedi, erguendo a
mão.
— Vamos para casa antes? Lá poderemos conversar com mais
privacidade.
Malu assentiu, e eu coloquei a mão em suas costas para guiá-la até a
saída, só por causa da necessidade que sentia de tocá-la.
Esperava que as coisas se resolvessem, porque eu não iria aguentar nem
mais um dia sem ela na minha vida.
CAPÍTULO VINTE E SETE
Era estranho pensar naquela casa vazia, sem as crianças e sem Teresa. O
silêncio não combinava com ela, por isso o bater da porta, quando Lucas a
fechou, trancando-a, quase me sobressaltou.
Sentia-me nervosa, porque não fazia ideia de como se daria a conversa
que eu sabia que precisávamos ter, mas esperava que Lucas me ouvisse e
compreendesse meus motivos. Nós dois tínhamos errado. Nós dois tínhamos
razão em muitas coisas também. O que precisávamos era externar nossos
sentimentos e deixá-los tomarem as rédeas.
Voltei-me para ele quando entramos, girando meu corpo, porque estava
atrás de mim, e testemunhei o olhar mais intenso que alguém poderia me
lançar. Um olhar que me dizia tudo e nada; que me fazia questionar o que
aconteceria dali em diante.
— Lucas, eu... — tentei começar a falar, mas ele levou um dedo
gentilmente à minha boca, me calando.
— Não diga nada.
— Mas eu preciso me explicar. Preciso que entenda que...
Um braço possessivo enlaçou minha cintura.
— Eu não preciso ouvir explicação alguma. Você precisa que eu me
explique? — Ao dizer isso, puxou-me mais para si, deixando nossos peitos
colados.
— Não. De jeito nenhum. — Arfei.
— Então vamos considerar assunto encerrado? — Lucas inclinou a
cabeça, aproximando nossos lábios.
— Por mim tudo bem.
— Ótima discussão, senhorita.
Sua boca tomou a minha sem sequer me preparar para a intensidade que o
beijo tomaria. Lucas não começou lento ou delicado; ele abriu meus lábios
num rompante, invadindo-os, fazendo com que sua língua acariciasse a
minha sem pudores, sem hesitações. Era um beijo de retorno, um beijo de
reconquista, de tesão, desejo, amor e esperança – de que a partir daquele
momento as coisas finalmente se acertariam.
Nossos suspiros se entrelaçaram assim como nossas respirações, enquanto
Lucas tirava meu vestido por cima da minha cabeça. Tirou sua blusa também,
exibindo todo aquele peitoral musculoso só para me tentar mais ainda. Fui
erguida do chão com o mesmo movimento súbito com que fui beijada, e ele
entrelaçou minhas pernas em sua cintura, prendendo-as ali e me levando até a
parede mais próxima, onde amparou-me. Uma mão sorrateira se esgueirou
por entre nossos corpos, pelo ínfimo espaço que os separava, e ele encontrou
meu clitóris, massageando-o. Começou gentil, apenas testando, mas seu outro
braço, que se mantinha sob a minha bunda, sustentando-me, ergueu-me um
pouco mais alto, para lhe dar espaço para me penetrar e me masturbar.
Naquele momento eu agradeci por estarmos sozinhos em casa, afinal, o
grito que eu dei quando Lucas encontrou o ponto mais sensível dentro de
mim deve ter ecoado por toda a propriedade.
Agarrei-me a ele com braços e pernas firmes, lutando contra a onda de
entorpecimento que o prazer me causava, mas minha cabeça tombou em seu
ombro, enquanto meus dentes mordiam sua carne, sem nem ter medo de
machucá-lo. Para ser sincera, isso pareceu deixá-lo mais excitado, porque
intensificou seus movimentos – mais fundo, mais forte –, sem parar, sem
piedade, até que eu gozei.
Lucas não me colocou no chão, no entanto. Ele me carregou naquela
posição até a mesa de jantar, deitando-me sobre ela e me puxando para a
beirada. Tirou minha calcinha e abriu minhas pernas ao máximo, sem dizer
absolutamente nada, então caiu de boca na minha boceta molhada, que ainda
latejava e se recuperava do orgasmo anterior.
— Lucas... você está querendo me matar hoje? — arfei, quase em
desespero, porque sua língua já começava a circundar meu clitóris, com a
pontinha, de forma torturante.
— Não, Girassol. Quero te dar um orgasmo por cada um dos dias que
ficamos separados.
Claro que ele estava brincando, mas o filho da mãe se empenhou.
Chupou-me com vontade, em todos os pontos certos, usando a língua para
me penetrar, deslizando-a por minha extensão lubrificada como um
explorador sedento. Ele não apenas estava fazendo o melhor sexo oral que já
experimentei porque queria me dar prazer, Lucas parecia ansioso por me
provar, como se o meu gosto fosse a iguaria mais deliciosa para aquela tarde.
Apertava meus quadris com suas mãos enormes, como se também não
conseguisse se controlar em me tocar. Como se precisasse afundar os dedos
na minha carne para saber que eu era real.
Nutrindo o mesmo sentimento, afundei minhas unhas em seus ombros
musculosos, sentindo a rigidez e a tensão. Com a outra mão agarrei os fios
sedosos de seus cabelos, tentando trazê-lo mais para mim, porque estava
prestes a gozar novamente.
Quando o orgasmo chegou, este me pegou de jeito, deixando-me quase
sem movimentos, desfalecida sobre a mesa.
Não satisfeito, ele deixou minha boceta e começou a deslizar beijos pela
minha coxa, subindo, chegando à minha barriga, até os seios, afastando o
sutiã. Enquanto eu me recuperava, ele tomou um mamilo na boca, sugando-o,
fazendo-me soltar um gemido fraco, que era tudo o que eu tinha forças para
fazer.
Tomou o outro, imitando o movimento, provando-o da mesma forma
como me dera o sexo oral. Sem me privar de nenhum instante de prazer.
Assim que se deu por satisfeito, ele me tirou da mesa, pegando-me no
colo como uma noiva e me levando escadas acima, para seu quarto.
Fui deitada sobre sua cama, mas ele rapidamente me virou de barriga para
baixo, e eu senti sua língua traçando um caminho de baixo para cima, desde
meu cóx até meu pescoço, onde ele chupou com força, o que eu sabia que
deixaria uma marca.
Olhando por cima do ombro, vi quando se afastou para terminar de
despir-se também.
Içando meus quadris da cama, ele me deixou de quatro. Esticou a mão
para a mesinha de cabeceira, pegou uma camisinha, colocando-a em si
mesmo e me penetrou, bem devagar, encaixando-se como se fôssemos duas
peças perfeitas.
Uma perfeição, uma sintonia, que eu sabia que nunca encontraria com
mais ninguém.
— Porra, Malu... — praticamente rosnou, ofegante e com a voz mais sexy
que eu já tinha ouvido.
O som de nossos corpos batendo um no outro, de seus grunhidos, a
sensação pele com pele, as mãos de Lucas me puxando com força, enquanto
investia e literalmente me fodia como um louco... tudo estava culminando
para me levar à loucura. Eu o sentia grande dentro de mim, pulsando,
estocando, tomando-me por inteiro.
Meu corpo já pertencia a ele, assim como meu coração. Não havia palavra
no mundo que pudesse denominar a plenitude de se estar com quem amava,
de ser amada por alguém que era o início e o fim de tudo.
Nós dois chegamos ao orgasmo – eu primeiro, e ele um pouco depois –, e
eu me lancei na cama, de barriga para baixo. Lucas, ao meu lado, me puxou
para si, fazendo-me deitar em seu peito.
— Eu quero dizer uma coisa aqui e agora. Não vou mais permitir que
nada, absolutamente nada, nos afaste. Está ouvindo, Girassol? — ele falou
com uma voz decidida, e eu consegui apenas assentir, balançando a cabeça
contra seu peito. — Acho que deveríamos nos casar.
Daquela vez eu consegui erguer a cabeça, olhando para ele com olhos
arregalados.
— O que... o que está dizendo? Casar de casar mesmo? Aliança, igreja...
— E tudo o mais que você quiser.
Continuei muito chocada.
— Não é um pouco repentino? — a pergunta escapou, mesmo que não
fosse minha intenção dizê-la em volta alta.
— Levando em consideração que nos amamos há mais de seis anos, acho
que estamos até atrasados nessa conversa. Eu deveria ter mencionado quando
nos encontramos naquele bar. Algo tipo: “Oi, Malu, quanto tempo não te
vejo! O que acha de nos casarmos?”. — Não pude conter uma risada, que
explodiu do meu peito e me obrigou a me apertar ainda mais contra ele.
Que sensação boa.
— Eu com certeza teria aceitado — brinquei.
— Que idiota eu fui!
Lucas inclinou-se para me beijar, e eu também me estiquei, encontrando
sua boca, mas também o olhar mais doce e terno que um homem poderia
dedicar a uma mulher.
— Eu te amo. Você sabe disso, não sabe? — Assenti. — Eu teria te
amado em silêncio para sempre, mesmo se você nunca mais tivesse voltado
para a minha vida. Acredita em mim?
Suspirei bem fundo, buscando ar suficiente para responder.
— Sim. Acredito, porque me sinto da mesma forma. Nunca deixei de te
amar. E nunca vou deixar.
Ao ouvir isso, Lucas me girou na cama, colocando-me deitada de costas,
avolumando-se sobre mim para mais um beijo.
E eu me vi pronta para ele mais uma vez, como sabia que sempre estaria.
CAPÍTULO VINTE E OITO
MESES DEPOIS

Foi uma jornada e tanto. Sete anos desde que nos conhecemos até
chegarmos àquele ponto. Relacionamentos diferentes, pessoas em nossas
vidas, duas filhas na minha. Se qualquer um de nós parasse para escrever
nossa história, para que alguém pudesse ler, ela seria quase como um conto
de fadas, não?
Ou algo, de fato, como A Noviça Rebelde.
Depois de um pedido formal, com direito a alianças e às meninas me
ajudando com suas carinhas pidonas, lá estávamos. Eu no altar, observando a
mulher da minha vida entrar na igreja, com minhas duas filhas à sua frente,
espalhando pétalas de girassóis pelo chão, com a música Edelweiss tocando
ao fundo.
Minha linda noiva sorria radiante, iluminando tudo ao seu redor, e ela
estava tão linda, com seu vestido tomara que caia, simples, com um laço
delicado sob os seios, rendas e um véu apenas do tamanho de seus cabelos,
com uma tiara prateada, que eu não consegui não me emocionar.
Entrava sozinha, caminhando lentamente, e eu contava cada passo como
um a menos para ter a mulher da minha vida como minha esposa.
No momento em que ela surgiu, bem à minha frente, minha vontade foi
de pegá-la no colo e fugir, só para podermos ficar sozinhos. Para eu poder
tirar aquele vestido e beijá-la dos pés à cabeça.
Controle-se, Lucas, você não é um adolescente cheio de hormônios.
Beijei-a na testa, em sinal de carinho, e nos voltamos para o padre, que
começou a cerimônia.
Ele disse belas palavras, estimando nossa fidelidade e o respeito, e no
momento em que anunciou que Malu era minha esposa, finalmente, e que eu
poderia beijá-la – mais finalmente ainda –, agarrei-a pela cintura, tirando-a do
chão e a beijei enquanto a girava, ouvindo os aplausos de todos ao nosso
redor.
— Minha esposa. Enfim pertencemos um ao outro — sussurrei para ela,
sentindo o peso de cada uma daquelas palavras. Cada uma valia por um dos
anos que ficamos separados.
A festa foi bem íntima, apenas para os amigos mais chegados, e eu passei
boa parte dela na pista, dançando com minha esposa e minhas meninas. Não
me importava com os convidados; aquelas três eram o centro do meu mundo.
Fui praticamente arrastado para a mesa de jantar, onde me acomodei com
minha mulher ao lado e minhas duas meninas. Antes de começarmos, eu me
levantei e bati com a faca na taça, pedindo alguns instantes para que me
ouvissem.
Eu tinha mesmo algumas coisas a dizer.
Olhei para a minha esposa, que me observava, com um sorriso enorme no
rosto. Linda. Mais bonita ainda por parecer feliz. Era assim que eu queria
mantê-la.
— Gostaria de agradecer a presença de todos. Qualquer homem
apaixonado diria que o dia de seu casamento é um momento especial, mas,
para mim, o gosto dessa vitória é um pouco mais doce, porque ela é almejada
há muito tempo. — Respirei fundo, tentando conter a emoção. — Há sete
anos eu conheci uma garota linda. Éramos jovens demais, mas o sentimento
que nos possuiu era forte o bastante para sobreviver a vários tipos de
obstáculos. O destino nos separou, mas nos uniu novamente. E hoje estamos
aqui, celebrando essa batalha vencida e prontos para todas as outras que
vierem. — Olhei para ela, que estava com os olhos cheios de lágrimas. — A
nós e à nossa família.
Todos ergueram suas taças, e Malu se levantou, me beijando, selando
uma promessa de que aquele era apenas o início de nossas vidas.
Jantamos, voltamos a dançar e os convidados foram lentamente se
dispersando.
Teresa e as pessoas que contratamos para trabalhar em todo o evento
ajudaram a organizar as coisas, e Malu me avisou que tinha uma surpresa
para mim, que eu poderia apenas subir para trocar de roupa, mas que deveria
retornar ao quintal depois.
Assim o fiz. Vesti uma camiseta e uma calça de moletom, sendo
praticamente empurrado por Catarina e Alice, ambas muito animadas.
Quando cheguei ao quintal da casa, Malu não estava à vista, mas eu a
senti chegar, e uma venda foi colocada nos meus olhos.
— O que é isso? — perguntei divertido, imaginando que seria alguma
brincadeira entre nós quatro.
— Vamos lá, Lucas... vamos brincar de cabra cega. Quem você for
pegando, você pode tirar a venda e ver a mensagem que tem para te passar —
Malu explicou, e eu comecei a ficar confuso.
Que mensagem?
Mas tudo bem... decidi entrar no clima.
Eu seguia direções de sons, de passinhos, de risadinhas abafadas, mas
elas escapavam de mim no último minuto. Estavam empenhadas em dificultar
as coisas, mas eu nem me importava. Era um momento de alegria com
minhas meninas, e eu estava mais feliz do que poderia expressar.
A primeira que peguei foi Alice. Apesar de ser menorzinha, com seus três
anos, ela ainda tinha os passinhos mais desengonçados, então consegui
segurar seu bracinho.
Assim como Malu orientou, eu tirei a venda. As outras duas se
esconderam, mas minha pequenininha abriu um papel A4, onde estava
escrito: VOCÊ VAI.
— Eu vou o quê?
Ela encolheu os ombrinhos e saiu correndo.
Bem... só me restava entrar novamente no jogo recolocando a venda.
Foram precisos mais alguns breves minutos para que eu conseguisse
alcançar Catarina.
Repeti o movimento, tirando a venda e me deparando com mais uma
parte da mensagem: SER.
— Você vai ser? Mas o que vocês estão aprontando, hein? — indaguei já
ansioso, mas totalmente alheio ao que estava acontecendo.
Pela terceira vez coloquei a venda, mas não demorei a colidir com um
corpo curvilíneo, delicado, que minhas mãos conheciam tão bem. O cheiro de
Malu me invadiu, e eu sorri enquanto tirava a venda.
Mas não estava preparado para o que vi em suas mãos. Seu papel dizia:
PAPAI NOVAMENTE.
VOCÊ VAI SER PAPAI NOVAMENTE.
Esta era a mensagem.
— O quê? Isso é sério? — perguntei para Malu.
— Muito, muito sério. Descobri alguns dias antes do casamento, mas
queria criar algo especial para te contar.
Especial? Aquilo foi lindo, mágico.
— Ah, meu Deus! — Agarrei Malu, da mesma forma como fiz no
casamento, tirando-a do chão e beijando-a. — Obrigado, obrigado! —
sussurrei para ela, e enquanto a girava, completamente incapaz de colocá-la
no chão, Alice e Catarina surgiram, cada uma abraçando uma das minhas
pernas, também comemorando a chegada de mais um membro da família.
Mais um filho. Ou filha.
Mais uma criança para alegrar aquela casa, correr pelo quintal... mais um
serzinho a quem eu queria que educar, proteger e amar. Alguém gerado com
a mulher da minha vida.
Que presente!
Enquanto eu abraçava minhas meninas, tocando a barriga de Malu e
ajoelhando-me para beijá-la, depois de colocá-la no chão, algo dentro de mim
se agitava com uma emoção nunca sentida.
A vida era perfeita, e seria mais ainda a partir daquele momento.
EPÍLOGO
QUINZE ANOS DEPOIS

Várias lindas pinturas se destacavam ao redor da galeria, iluminadas e


bem dispostas, enquanto eu ouvia meu próprio salto batendo no piso,
conforme checava se estava tudo pronto. Lucas falava ao telefone, andando
de um lado para o outro, e eu sabia que estava conversando com o buffet para
me ajudar.
— Mãe? — a voz de Alice surgiu, e eu senti sua mão no meu ombro.
Virei-me para olhar para minha filha postiça. Não era biológica, mas nos
amávamos como se fosse.
Não que Laura não fosse presente. Ela era, tanto que compareceria à
primeira exposição da filha, na galeria que Lucas comprou há três anos e que
era administrada por mim e pela própria Catarina. Só que, apesar disso, ela
não se importava que suas meninas me chamassem de mãe. No final das
contas, nós nos tornamos boas amigas.
— Sim, querida. — Minha linda menina estava se tornando uma mulher.
Bem loirinha, ela usava o cabelo mais curto, na altura do pescoço, e tinha um
ar mais moleca do que a irmã.
— Tetê disse que terminou de trocar o Antônio. Perguntou se você quer
que ela o traga para cá ou se prefere que ele venha só quando tudo estiver
pronto.
Antônio era meu caçulinha; meu temporão. Aos quarenta anos me
descobri grávida, quando não imaginávamos que teríamos mais uma criança
em casa. Nosso terceiro filho, Felipe, já tinha quase quinze anos, mas a
família toda recebeu o bebê com muito amor. Lucas surtou de felicidade.
— Se ela puder ficar um pouco mais com ele...
— Claro que ela vai poder — Alice falou sorrindo, porque sabíamos que
Teresa amava demais aquelas crianças. Mas ela não era mais nenhuma
garotinha, então, sempre a ajudávamos em tudo.
Dei um beijo no rosto de Alice, e ela se afastou para falar com Teresa.
Lucas chegou, colocando-se à minha frente, parecendo aliviado.
— Eles estão chegando. Se atrasaram um pouco, porque se perderam.
Quinze minutos mais — ele falou.
— Obrigada por resolver isso para mim. Só vim dar uma olhadinha nas
coisas aqui embaixo e vou voltar para o escritório, porque você conhece a
nossa filha. Tatá está um pouco nervosa — falei para ele.
— Um pouco? Eu me lembro da primeira apresentação dela, na escola.
Do quanto ela chorava porque você não estava lá.
— Mas eu cheguei, e tudo deu certo. Vai dar certo hoje também.
— Claro que vai...
Tentei me afastar de Lucas, mas ele me segurou e me deu um beijo.
Quinze anos de casados e nada tinha mudado. Os beijos ainda eram
apaixonados, e ele ainda sabia como me fazer suspirar.
— Já te disse que você é maravilhosa hoje? — perguntou, sedutor. Meu
marido ainda era o homem mais bonito em quem já pus os olhos.
— Já, mas não me canso de ouvir.
— Você é. Incrível. Maravilhosa.
— Obrigada! Você também é.
Consegui me desvencilhar e fui ao escritório, encontrando minha linda
menina andando de um lado para o outro.
Menina? Catarina era toda mulher.
Os cabelos ainda estavam lisos e longos, mas não tinham mais a franjinha
de antes. E a personalidade ainda era forte, de líder. Aquela garota ia longe.
Ao lado dela, Felipe tentava consolá-la. Eles eram muito próximos, e eu
sabia que meu garoto era apaziguador o suficiente para conseguir mantê-la o
mais calma possível. Mas não estava acontecendo.
Fiz um sinal para que ele me permitisse tomar seu lugar, e ele obedeceu,
saindo do cômodo.
Coloquei-me ao lado da minha filha mais velha, pegando sua mão. Puxei-
a para o espelho de corpo inteiro que tínhamos lá, porque éramos duas
mulheres vaidosas trabalhando juntas.
— Sabe o que eu vejo nesse espelho? — perguntei a ela.
— Uma total covarde?
— Não. Uma artista incrível, que está nervosa como qualquer um estaria.
— Pus-me atrás dela, começando a pentear seu enorme cabelo com os dedos,
como sempre gostava de fazer quando precisava acalmá-la. — É sua primeira
exposição, querida. Se você não estivesse nervosa, eu ficaria assustada.
— Mas, mãe... e se ninguém gostar de nada? Se não comprarem...? Se
nem aparecerem?
— Se isso acontecer, tentaremos de novo uma, duas, três vezes. É o seu
sonho desde menina, não vamos desistir nunca dele.
Catarina girou, abraçando-me com força.
— Obrigada. O que eu faria sem você? — eu podia sentir toda a emoção
em sua voz.
— Continuaria sendo a melhor garota do mundo. Só empatando com
Alice.
Catarina riu e se afastou. Estendi a mão para ela, que a aceitou, e fomos
juntas para o salão, onde esperamos que as portas se abrissem.
Quando as pessoas começaram a entrar, elogiar e até a comprar as
pinturas que contavam nossas histórias, eu e Lucas nos entreolhamos, como
se nossa missão estivesse cumprida.
Mas sabíamos que aquela não seria a última. Nosso objetivo era fazer
com que nossa família sempre prosperasse e fosse feliz.
Até aquele momento estava dando certo. E algo me dizia que
continuaríamos assim. Para sempre.

FIM

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