Professional Documents
Culture Documents
Written by
Ngoma Usuku
Quinta-feira, 23/Agosto/2018
FADE IN:
PAULA
(gozando)
Vamos embora daqui, Gisela. Se o vírus
Dessa nos atinge, ainda vamos
perder o concurso Kusole.
SUSANA
(animada)
Carlos, vocês não vão se preparar
para o concurso de dança do fim do
ano?
CARLOS
(pavoneando-se)
Nos preparar pra quê se já ganhámos?
SUSANA
Convencidos! Quais são os toques e
a música que vocês prepararam?
MAURO
(para o Carlos)
Mudança de ala, wey?
CARLOS
Ya! É rápido!
SUSANA
Ah, é? Não querem me contar? Então,
3
SUSANA
…e dos meus Kwanzas!
SUSANA
(aliciante)
Uma boa indumentária e umas boas
sapatilhas iam vos dar um bom
jeito, não?
MAURO
(para a o Carlos)
Kalili, tamos a precisar de wawera.
CARLOS
(admirado)
Eh! Essa mboa não sabe dançar, Mauro.
Ela vai querer nos dar dinheiro para
depois ficar no nosso grupo…
CARLOS
(enraivecido)
Ah, é? É assim?
MAURO
Vem só masé! Tamos à rasca…
CARLOS
Vocês é que estão a me obrigar…
MAURO
(para a Susana)
Susana, minha boss de luxo, se
quiseres aulas de dança, aqui o
profe Carlos terá o maior prazer
em te ensinar no teu mbanji ainda
hoje.
CARLOS
(amuado)
Esse Mauro só me arranja problemas…
CARLOS
A parte boa é que, mesmo que ela não
aprenda a dançar, vai cair dinheiro
por cada aula.
CARLOS
(admirado e assustado)
Oh! Senhor Jorge?
JORGE
(sério)
Sim…
CARLOS
(parcialmente gago)
Desculpa-me o incómodo. Posso falar
Com a Susana?
JORGE
(sorrindo)
Claro! Entra.
CARLOS
(sorrindo com medo)
Não é preciso. Posso esperar aqui
fora...
JORGE
(sério)
Entra, rapaz…
CARLOS
(constrangido)
Senhor Jorge, não é necessário...
JORGE
(irritado e gritando)
Entra!
CARLOS
(gago)
Está bem, senhor.
JORGE
(sério)
Senta-te.
CARLOS
(respeitoso e temeroso)
Obrigado, senhor.
JORGE
(gritando em chamamento)
Susana!
SUSANA (O.S.)
Sim, pai!
PAI
Há alguém aqui que veio te ver!
SUSANA (O.S.)
Está bem, pai! Já vou!
SUSANA
Oi, Carlos! Vieste buscar aquele CD,
né?
CARLOS
CD…?
SUSANA
O CD intitulado Impossível Ter Aulas
Agora, do Paulo Flores?
CARLOS
Oh, não! Quero aquele outro CD dele,
intitulado Vais Me Pagar Na Mesma,
Não?
SUSANA
6
O Carlos levanta-se.
CARLOS
Está bem, mas não te esqueças que a
Quem Não Vai Entrar No Nosso Grupo
És Tu, da Noite e Dia, bateu mais.
SUSANA
Ok. Então levarei a Quantia e também
A Vamos Começar A Ensaiar Na Tua Casa,
da Ary.
CARLOS
Combinado! Com licença, senhor Jorge.
JORGE
(sério)
Faz favor.
JORGE (CONT’D)
(sério)
Susana!
SUSANA
Pai?
JORGE
(sério)
Ele não pode comprar estes CDs em vez
de vir aqui em casa pedir-tos?
SUSANA
(desconcertada)
Sim, pai, mas como ele me emprestou
alguns CDs antes, eu quis fazer o
mesmo desta vez.
JORGE
(sério)
Ok. Empresta-lhe também aquele
intitulado Eu Não Sou Burro, Entendi
Tudo Que Disseram, da Força Suprema.
SUSANA
(assustada)
7
Mas, pai...
JORGE
(irritado)
Susana, cala a boca!
JORGE (CONT’D)
Dá-lhe também aquele em cima do
balcão da cozinha intitulado A
Minha Filha Tem Que Estudar Em
Vez De Perder Tempo Com Aulas De
Dança, do Projecto X.
SUSANA
Pai! Não é nada disso!
JORGE
(sério, gritando)
Eu disse cala a boca, Susana!
Põe-lhe também a ouvir o Se
Continuares A Andar Atrás Da Minha
Filha…
PAI (CONT’D)
...Vou Fazer Com Que Te Expulsem Do
Colégio, entendeste?
JORGE (CONT’D)
(sério)
Entendeste?
SUSANA
(com medo)
Sim, pai!
JORGE
(zangado)
Desaparece daqui!
CARLOS
(zangado)
Vieste fazer o quê, Susana? Volta
só na tua casa, ya? Não quero
problemas com o teu pai.
CARLOS
É fácil dizeres isso porque ele tem
dinheiro pra construir um colégio
só pra ti. Não quero me aventurar
em estressar a minha mãe…
SUSANA
(suplicante)
Não vai acontecer nada contigo,
Carlos. Vamos ter aulas em segredo
aqui. Ele não vai saber…
CARLOS (O. S)
(zangado)
Imagina se fosse a minha mãe a te
expulsar assim aqui da casa dela,
como é que te sentirias, hã? Como?
SUSANA
(alegre)
Bom dia, dona Maria!
MARIA ISABEL
(cínica)
Bom dia…
SUSANA
(animada)
Posso falar com o Carlos?
MARIA ISABEL
(chateada)
Mas ó menina, essa hora não tinhas
10
SUSANA
(sorrindo, encabulada)
Não, não faço nada disso na minha casa…
MARIA ISABEL
(sério)
Ah, é? Então entra…
SUSANA
(constrangida)
Não é preciso, dona Maria...
MARIA ISABEL
(rabugenta)
Só porque na tua casa tem mosaico mais
caro que na minha não queres entrar?
Entra agora!
SUSANA
(constrangida)
Está bem.
MARIA ISABEL
(séria)
Senta aí.
SUSANA
(respeitosa e temerosa)
Muito obrigada, dona Maria Isabel.
A Susana senta-se.
MARIA ISABEL
(gritando em chamamento)
Ó senhor Carlitos!
CARLOS (O.S.)
Qual é a cena, moite?
MARIA ISABEL
Tens visita!
CARLOS (O.S.)
Tá-se bem! Já vou!
11
MARIA ISABEL
(zangada, para o Carlos)
Então a nora que queres me arranjar é
essa?
CARLOS
(admirado)
Nora? Qual nora, velha?
MARIA ISABEL
(zangada)
Estás muito apressado tu. Já lhe
avaliaste se sabe cozinhar ou engomar
bem uma calça com vinco?
SUSANA
(humilde)
Eh! Eu só quero ser amiga dele, dona
Maria.
MARIA ISABEL
(rabugenta)
Amiga, amiga. Mesmo amiga do meu filho
tem que saber cuidar da casa, senão não
podenem falar com ele!
CARLOS
(zangado)
Moite, esse espírito de tratar assim as
visitas estás a ir buscar então aonde?
MARIA ISABEL
(irritada)
Cala a boca, Carlos! Cala a boca!
(para a Susana)
Você me levanta desse cadeirão e começa a
trabalhar. O balde e o pano do chão estão
aí, mas antes disso vai já me bater o funji
que está na cozinha. Vamos! Rápido!
SUSANA
Mas… mas…
MARIA ISABEL
(rabugenta)
Vai agora! E se depois me queixares no
teu pai, vou se entender com ele. Ele
até vai me agradecer por lhe ajudar a
não criar uma filha preguiçosa! Vamos!
Passa! E não quero nenhuma bola nesse
12
funji!
BACK TO:
SUSANA
Carlos, tens razão, mas eu…
CARLOS
(irritado)
Não, Susana! Chega! Estou a entrar.
Não quero mais te ouvir. Baza, miúda.
Baza! E quando me vires no colégio,
não me dirige a palavra.
SUSANA
Espera, Carlos!
SUSANA
(chorando)
Tens razão. Peco-te um milhão de
desculpas pela vergonha que passaste,
mas aceita me dar aulas de dança, por
favor. Carlos. Carlos! Aceita só, por
favor. O meu pai me protege muito.
Acho que ele faz isso por causa da
morte da minha mãe. Ele não quer me
perder também...
SUSANA
(chorando)
…mas me protege tanto que quase não
tenho nenhuma amiga. Só faço o que ele
quer, quando ele quer. Nem tenho tempo
para fazer o que eu realmente gosto. Não
sabes o que é ter um pai assim…
CARLOS
13
(emotivo)
Ao menos tens um pai que se importa
contigo, eu nunca conheci o meu pai.
Entra, vamos começar as aulas…
MAURO
(animado, sentado à porta)
Mas será por um preço mais alto, hein?
CARLOS
Vou entrar para ir buscar a música.
SUSANA
(alegre)
Vou ter aulas de dança!
MARIA ISABEL
(sorrindo)
Fica calma, menina. Eles já devem
estar a chegar…
SUSANA
(amuada)
Eles já disseram isso há cinco
minutos. Se o meu pai chegar e não
me encontrar em casa, vai começar
a desconfiar. E hoje são os
últimos acertos. O concurso Kusole
já é daqui há três dias…
MARIA ISABEL
Se quiseres, eu posso te dar a
aula hoje…
SUSANA
(sorrindo)
Obrigada, dona Maria, mas ainda não
quero aprender sungura e kabetula…
14
MARIA ISABEL
(levantando-se)
Se calhar são os toques que vocês
estão a precisar para vencer o
Kusole… e olha que eu não sei só
dançar isso.
MARIA ISABEL
O Carlos nunca te disse isso, porque
é muito orgulhoso, mas eu sou a
coreógrafa dele…
MARIA ISABEL
(para a Susana, puxando-a
pela mão em aproximação da
rulote)
Vamos encostar mais…
PAULA E GISELA
(animadas)
Ko-ta Maria! Kota Maria! Ko-ta Maria.
15
MAURO
(animado)
Podias ganhar dinheiro com isso, kota Maria!
CARLOS
(animado)
Aí ela já não teria tempo para estar com o
filho dela.
SUSANA
(animada)
Bom trabalho, dona coreógrafa!
CARLOS
(convencido)
Se é o que querem, então vamos vos
dar um show como nunca viram.
SUSANA
(para o Carlos e o Mauro)
Vocês vão continuar de terno e
gravata?
CARLOS
(para a Susana)
Arrasa-os, miúda!
JORGE
(autoritário)
O que é que conversamos sobre isso,
Susana? Vamos pra casa!
SUSANA
(suplicando)
Pai? Pai, por favor, me desculpa.
Mas me deixa só dançar essa vez…
JOVENS E RAPARIGAS
(apupando)
Dei-xa a miúda! Deixa a miúda!
Dei-xa a miúda!
JORGE
(zangado, para a Susana)
Não! Vamos para casa!
SUSANA
(suplicando)
Pai, por favor. Deixa-me só dançar,
prometo-te que nunca mais danço.
A Maria Isabel intenta abrir a boca para falar com o Jorge, mas
o Carlos segura-lhe a mão e abana-lhe a cabeça em negação. A
Maria Isabel suspira e fecha a boca.
JORGE
(zangado)
As tuas promessas são falsas.
17
SUSANA
(suplicando com lágrimas nos
olhos)
Por favor, pai. Por favor.
JOVENS E RAPARIGAS
(apupando mais fortemente)
Lar-ga a Susana! Larga a Susana!
Lar-ga a Susana!
JOVENS E RAPARIGAS
(apupando)
Ele dei-xou a miúda! Xou a miúda!
Ele dei-xou a miúda!
SUSANA
(irritada, com voz chorosa)
Pai, tu não estás bem. Liga para o
psicólogo ou para o psiquiatra para
te tratares!
JORGE
(zangado)
Tu é que estás sempre a me desobedecer
e eu é que não estou bem?
SUSANA
Viste a humilhação que me fizeste
passar a frente de todo mundo?
Viste?
JORGE
Humilhação que tu mesma pediste para
passar…
SUSANA
Mas que mal há em eu dançar? Que mal
há em conviver com alguns colegas do
colégio?
JORGE
Não são pessoas de confiança.
Sabe-se lá o que eles podem fazer
contigo! Não sabes que essa gente só
pensa em dinheiro?
18
SUSANA
Eles estudam comigo e são meus
vizinhos. Eles não têm culpa da morte
da mãe. Se queres culpar alguém, culpa
a ti mesmo!
JORGE
(irritadíssimo)
Cala-te e vai para o teu quarto!
SUSANA
(exaltada)
Não, não me calo! Não vou para o quarto
porque o quarto é teu, a casa é tua,
tudo é teu, mas a voz e minha. Vou
falar o quanto quiser, pai. Se trata.
Se trata!
SUSANA
(enfrentando)
Se queres me bater, eu mesma vou buscar
todos os cintos dessa casa pra me surrares,
mas essa prisão que me obrigas a viver aqui
não está certo, pai. Não está certo!
JORGE
Susana, aonde vais?
SUSANA
(chorando, para si mesma)
19
LINO
(galante, preocupado)
Oh! Estás a chorar porquê,
princesa?
SUSANA
É o meu pai, Lino. O meu pai…
(funga)
Ele não me deixa ser feliz do meu
jeito… não me deixa conviver com
ninguém. Não quer que eu aprenda a
dançar para participar do concurso
do colégio…
LINO
Oh, isso não é problema, duquesa!
Em vez de dança, podes vir aprender
a representar no estúdio do
meu pai. Dizes ao Don Jorge que
vais ter aulas de canto e balé,
enquanto eu te ensino a ser uma
excelente actriz.
SUSANA
(sorrindo parcialmente,
limpando as lágrimas)
Se o concurso é de dança, por que
é que eu aprenderia cenas de
teatro?
LINO
Fácil: porque eu vou convencer o
director do colégio a ampliar as
artes do concurso…
SUSANA
Obrigada pela gentileza, Lino. Mas
não vai dar. Quero continuar na dança e
para isso já tenho um professor.
LINO
Quem?
SUSANA
O Carlos.
LINO
Mas o teu pai está a deixar que ele
te ensine?
LINO
Então vem aprender comigo, tzarina.
Queres fazer o que tu gostas e ser
realmente feliz ou não?
SUSANA
(determinada)
Não vai dar. Se eu fizer isso, vou
sentir que estou a trair o Carlos.
LINO
Sem problemas, mas se mudares de
ideia, toma o meu número, rainha.
CARLOS
(admirado)
Fugiste de casa?!
SUSANA
(sorrindo, animada)
Não, lhe descarreguei toda a
raiva que ele anda a me dar pra
ele saber dos abusos e sai!
CARLOS
(sério)
É melhor você voltar pra lá
Vamos evitar problemas. Pai é
pai…
SUSANA
Mas…
CARLOS
(autoritário)
Volta pra casa, Susana! E não
21
SUSANA
O quê?! E o concurso, Carlos? Faltam
três dias para…
CARLOS
Esquece o concurso, miúda. Vou
participar com outra rapariga.
SUSANA
(zangada)
Qual rapariga? Assim já é Paula, né?
Vais me trocar por ela? O que é que
ela tem que eu não tenho? O que é
que ela vai te dar que eu não posso
te dar?
CARLOS
(confuso)
Ainda estamos a falar de dança aqui?
SUSANA
(exaltada)
Eu sabia! É mesmo com ela que vais me
trocar. Vocês estão sempre a sorrir
um para o outro…
CARLOS
Mas estás então a falar d…
SUSANA
(séria)
Vou ser do teu grupo. Esquece as
aulas de dança. Não preciso delas.
Nunca precisei. Temos de ganhar
esse concurso.
PAULA
Ai!
22
SUSANA
(zangada)
Então eu te peço para me ajudares
a ficar com ele, e pelas costas
me trais? Se também lhe amas,
por que é que não me falaste, Paula?
PAULA
(confusa)
Não sei se estás a falar de quê.
SUSANA
E ainda estás armada em cínica,
falsa?
SUSANA
Sabes muito bem que estou
apaixonada por ele, mas não
tenho coragem de lhe dizer,
por isso é que criei a ideia
de tu e a Gisela rirem de mim
como se eu não soubesse dançar
na sala.
GISELA
(ameaçadora)
Xe! E assim estás a vir cheia de
atitude atacar a outra porquê?
Estás armada em escandalosa do
bairro?
GISELA
(ameaçadora)
Se é de se comportar mal, continua…
GISELA
…vais cair com cadeira.
PAULA
Deixa, Gisela…
GISELA
Deixo o quê, prima? Deixo nada!
Vais deixar essa mimada te falar
assim? Se ela tá a pensar que
23
SUSANA
(triste)
Sou nova neste bairro. Ninguém me
conhece bem. Pensei que vocês
fossem minhas amigas…
GISELA
(cínica)
Ah! Agora vais simular comportamento
de vítima?
SUSANA
Todos tiram conclusões precipitadas
de mim, principalmente por causa do
meu pai…
PAULA
(complacente)
Mboa, estas só a se borrar sozinha.
Quem te disse que eu estou
interessada nele? Se estás a falar
da hora em que ele me piscou o olho,
eu estava a lhe dar sangue para ele
falar contigo, porque ele estava a
me dizer que também gosta de ti…
SUSANA
(revoltada)
Se gosta de mim, não faz nada para
mostrar! Também estou farta disso
tudo, estou cansada! Quero a minha mãe!
Aqui ninguém me entende!
DISSOLVE TO:
LINDA MULHER
24
(aflita)
Senhor, podes me dar boleia. Por favor,
não estou a me sentir bem.
JORGE
Dá boleia a ela, rapaz.
LINDA MULHER
(para o Jorge)
Muito obrigada, senhor.
JORGE
De nada. Acho que é o meu dev…
LINDA MULHER
(gritando)
Ai! Ai! Ai!
JORGE E DOMINGAS
(assustado)
O que foi?
DOUTOR
(animado, para o Jorge)
Parabéns! Ela já teve um rapaz
e parece-se muito contigo.
JORGE
(respeitoso)
Não! Está equivocado, senhor
doutor. Não sou o marido dela,
mas ainda bem que ela está bem.
Agora já posso ir-me embora.
DOUTOR
Ela confirmou que tu és o marido.
JORGE
Já disse que não sou marido dela. E
25
DOUTOR
Ela disse que a sua reação seria
exactamente essa, por isso…
DOUTOR
Já chamamos a polícia e a OMA.
JORGE
(admirado)
O quê?! Mas eu não sou mesmo pai desta
criança. Estão a cometer um enorme
engano.
DOMINGAS
Esperem. Isso é fácil de ser resolvido:
Façam um teste de DNA.
DOUTOR
Conforme a senhora quiser…
DOUTOR
(animado)
Tens razão, não és o pai, porque
tu não fazes filhos, é impossível!
Podes ir pra casa, meu caro.
JORGE
DOMINGAS
Do motorista…
JORGE
O quê?!
26
MÃE
(chorando)
Wawe! Wawe, ngana zambi! Kokolo
dyame. Monani wafu, ngana. Monami.
JORGE
O que se passa?
MÃE
O teu pai acaba de morrer!
JORGE
(aturdido)
O quê?! Meu Deus!
(para os irmãos)
O que é que vamos fazer?
IRMÃOS
(zangados)
Sai daqui, Jorge! Esse assunto é
de família!
JORGE
(para a mãe, aturdido)
Como assim?
MÃE
Ele não era o teu pai!
MAURO
(zangado)
Kalili, a Susana está a ter aulas
de dança com o Lino.
CARLOS
(admirado)
O quê? Estás a inventar!
MAURO
Tô tá dizer! E, na verdade,
ela sempre soube dançar…
CARLOS
(admirado)
O quê? Como…?
MAURO
…só fingiu que não sabia pra
roubar a nossa coreografia.
CARLOS
(triste)
Como é que eu fui tão burro
ao ponto de acreditar na cara de
sonsa daquela miúda?
MAURO
O kumbu te cegou, mô dred.
Também tens muita birita. Se ouvisses
os meus conselhos, não estaríamos
nesta situação.
CARLOS
Então só há uma solução: vamos
trocar toda a coreografia.
MAURO
(espantado)
28
CARLOS
(olhando para a Susana)
Não faz mal. Se calhar até foi
bom termos uma Judas entre nós,
assim poderemos melhorar muito o
nosso esquema.
PROFESSOR
(animado)
Bom dia, alunos!
TURMA
(animados)
Bom dia, senhor professor!
LINO
(animado)
Que tal os pais dos alunos
participarem também do concurso?
DIRECTOR
(sério)
Já é tarde. Faltam só dois dias.
LINO
Eles que se adaptem! Poderia até
chamar a televisão e, em vez de ser
só um concurso de dança, pode-se
colocar também o teatro e a recitação
de poema…
DIRECTOR
(autoritário)
Já não vai a tempo, Lino. Esquece
essa ideia e vai assistir às tuas
aulas. Já me convenceste a criar
29
LINO
(aliciador)
Pai, pensa bem. O nosso colégio e
conhecido por formar algumas da
pessoas mais intelectuais e criativas
desta cidade. Se abrangermos outras
formas de expressão criativa, faremos
jus à nossa reputação e…
DIRECTOR
(convencido)
…isso faria com que mais pessoas
conhecessem o nosso colégio. Mais dinheiro,
mais financiamento. Boa ideia, rapaz!
Mas vamos adiar o concurso para daqui
há um mês.
LINO
(animado)
Ok, pai! Tu é que mandas.
JORGE
(sério)
Toma este cartão, rapaz. Gasta
tudo que esta aí e depois me
30
devolve.
CARLOS
(confuso)
Isso é para quê?
JORGE
(sério)
Para deixares de ter aulas com
a minha filha e de fingires
de que não estás interessado no
meu dinheiro.
JORGE
Vocês vivem em mundos muito
diferentes. Não ia dar certo. Ela
está habituada a caprichos que o
teu bolso jamais poderá realizar.
CARLOS
(sério)
Está enganado, senhor Jorge. Ela
já não anda a ter aulas de dança
comigo.
JORGE
(admirado)
Para que é isso?
CARLOS
Para o senhor deixar a sua filha
ser feliz do jeito que ela escolheu
e deixares de julgar as pessoas
pelo dinheiro. Gasta tudo o que tem
aqui e depois me devolve.
JORGE
(exaltado)
Achas que preciso do teu dinheiro,
rapaz?
CARLOS
Assim como eu tenho a certeza
absoluta que não preciso do seu. Com
licença.
31
MOTORISTA
Quanto tinha no cartão que o
chefe queria dar a ele?
JORGE
Um milhão de Kwanzas.
MOTORISTA
Olha aqui o recibo do banco que ele
deixou cair. No dele tinha um milhão e
quinhentos.
O Jorge faz uma expressão de susto. Olha para o Carlos que está
a andar calmamente em afastamento do carro e em aproximação da
Maria Isabel. O Jorge sorri.
DONO DO COLÉGIO
(sério)
Aqui são formados intelectuais, não
dançarinos. Por isso, vamos cancelar o
concurso!
DIRECTOR
Assim perderíamos receitas. Em vez
de o cancelarmos, vamos estendê-lo
para outras formas de manifestação
culturais. Mais pessoas estariam
interessadas, não só jovens,
como mais velhos. Atingiríamos
várias camadas de uma vez só…
várias contas bancárias de uma vez
só.
DIRECTOR
Os pais dos alunos também deverão
participar do concurso, pagando assim
uma propina de ingresso tanto para
eles como para os seus filhos. Só isso
já nos renderá um bom dinheiro.
Chamaremos a televisão e a radio
32
DONO DO COLÉGIO
E como faríamos para convencer os pais
a gastarem tanto dinheiro?
DIRECTOR
Daríamos um premio de uma exorbitante
quantia ao vencedor, que, com certeza,
sairia do dinheiro das propinas e não
dos cofres do colégio, e mais um premio
surpresa que o vencedor só saberia no
mesmo dia.
DONO DO COLEGIO
Tens noção de que eu e tu temos filhos
aqui, não? Então, para darmos o exemplo,
nós os dois participaremos também do
concurso.
DONO DO COLÉGIO
Ok. Pode ser, mas se der por torto…
JORGE
…toda a perda de lucros será
descontada do teu ordenado
anualmente.
MARIA ISABEL
(rabugenta)
33
JORGE
(murmurando)
Não admira que seja mãe solteira…
FADE TO BLACK.
MAURO
(animado)
Ouviste a dica nova, mô Kalili?
Agora não vai ser só dança! Vou
participar na declamação. Vou
recitar o meu famoso poema Para
Enfeitar Os Teus Cabelos.
PAULA
(sorrindo)
Esse poema não é teu…
MAURO
Invejosa! Só porque não te deixei
me roubar o Renúncia Impossível, teu
comportamento ficou esse?
GISELA
(animada, abraçando a
Paula)
Eu vou participar no teatro contigo,
primota!
CARLOS
(zangado)
Vocês não estão a ver que isso tudo
é ideia daquele gajo do Lino? Ele
34
MAURO
Estava a ver que nunca mais
perguntavas. Aqui agora é Deus
por todos e cada um por your…
MAURO
É mentira, mô Kalili. Viemos te
pedir para nos ajudares com as
nossas cenas. E, com certeza, nos
também vamos ajudar your…
MARIA ISABEL
Oh! E a Susana não está aqui porquê?
MAURO
A Dalila? Vai estar aqui porquê e pra
quê?
MARIA ISABEL
Vocês insistem em pensar que ela vos
traiu?
CARLOS
Moite, isso está mais que claro…
MARIA ISABEL
Talvez tenha sido um mal-entendido.
Carlos, vai falar com ela.
MAURO
O quê?
CARLOS
Nunca!
35
MAURO
Nem pensar!
MARIA ISABEL
(para o Carlos, séria)
Como tua mãe, ordeno-te: vai agora!
MAURO
(para o Carlos, austero)
Estás à espera de quê. Vai já!
Essa desobediência estás a ir
buscar aonde?
MARIA ISABEL
(para o Carlos)
Vai! Depois de vocês falarem, seja
qual for o desfecho da vossa
conversa, voltas aqui para ajudar
os teus amigos a escreverem as
peças deles e eu te ajudo com
uma coreografia fenomenal.
PAULA
(para a Gisela, sussurrante)
Eh! Ele esqueceu o telefone. E o pai
dela que é bem mau?
MAURO
Tens ideia que assim vais ter neto
cedo, né, kota Isabel?
MARIA ISABEL
Vou nada. Ele é responsável. Sabe
que as coisas devem ser feitas cada
uma ao seu tempo.
PAULA
Kota Maria, e se o pai dela fizer
alguma coisa ao Carlos?
MARIA ISABEL
Ah! Aí eu vou resolver o assunto by
my…
36
CARLOS
(constrangido, tentando
ser engraçado)
Hoje não é o teu pai que veio abrir
a porta?
SUSANA
(cínica)
Queres que eu o chame? Pa…
CARLOS
(em pânico)
Não! Vim falar contigo. Posso entrar?
SUSANA
Não!
SUSANA
Vamos sair.
CARLOS
(ansioso)
A minha mãe sempre foi muito
batalhadora. Sempre fez tudo
por mim, apesar de não ter
marido.
37
A Susana suspira.
CARLOS
Eu tenho que fazer coisas para
ajuda-lá, então decidi que
tinha de estudar num os
melhores colégios para ter a
oportunidade de ser alguém.
SUSANA
(murmurando)
Não é só quem estuda no colégio
que é alguém…
CARLOS
O Mauro também me ajuda. Os pais
dele nunca estão em casa por
causa das viagens de negócios.
Ele é meu fã e gosta de fazer
tudo o que faço e viver como eu
vivo…
CARLOS
Ele diz que não quer depender do
dinheiro dos pais, mas, às vezes,
tira alguma massa para me ajudar.
Eu também tenho os meus bisnos e…
SUSANA
(impaciente)
Vieste me procurar para falar da
tua mãe e do teu melhor amigo?
CARLOS
Não! Claro que não!
O Carlos pigarreia.
CARLOS
Vim saber…
O Carlos tosse.
CARLOS
Vim saber por que é que fingiste
não saber dançar para eu te dar
aulas.
SUSANA
38
Tu sabes a razão…
CARLOS
Mas gostaria de ouvi-la de ti…
SUSANA
Porque, porque…
SUSANA
Porque estou apaixonada por alguém
e gostaria de passar mais tempo com
essa pessoa.
CARLOS
E porque é que estás apaixonada
por este alguém?
SUSANA
Porque é uma pessoa inteligente,
quase bonita, altruísta, mais
convencido que prestativo, mas…
CARLOS
(encantado)
Eu também estou apaixonada por…
apaixonado, eu também estou
apaixonado por alguém, mas
ainda não temos idade suficiente
para namorar.
CARLOS
(apaixonado)
Mas espero, sinceramente, com
todas as forças do meu coração,
espero que, quando tivermos
idade suficiente, ela case
comigo.
Um mês depois…
39
CALADO SHOW
(animado)
Aberturas!
PATRÍCIA FARIA
(animada)
Chegou a hora que todos
esperávamos!
CALADO SHOW
(animado)
Finalmente começará o nosso
concurso: Kusole!
PATRÍCIA FARIA
Nele, os nossos concorrentes
poderão demonstrar até que
ponto o seu amor, a sua paixão
pela arte os levou a criar peças
maravilhosas…
CALADO SHOW
…com música, teatro e dança!
PATRÍCIA FARIA
E o nosso primeiro concorrente é…
CALADO SHOW
Mauro Muhongo e a sua mãe,
Cristina, que farão uma
representação do poema Para
Enfeitar Os Seus Cabelos,
de Agostinho Neto.
Numa das cadeiras à volta da mesa, está o seu casaco. Ele olha
para o telemóvel e vê a fotografia de uma mulher e ele,
felizes.
40
MAURO
No nosso sangue...
MAURO (CONT’D)
...crescem rosas e no amor
e na saudade;
MAURO (CONT’D)
As rosas...
MAURO (CONT’D)
...que murcham sobre o gelo da
distância
MAURO (CONT’D)
E neste dia, crescerão sempre
rosas.
MAURO (CONT’D)
(zangado)
Se os nossos corações se
estrangulam nas grades onde
morre a liberdade e se fatigam
MAURO (CONT’D)
Neste dia crescem sempre rosas
Ele pousa as três rosas em sua mão junto das três rosas sobre
a mesa. Faz um gesto como se sentisse frio e olha para o casaco
sobre a cadeira. Começa a andar em aproximação do casaco.
MAURO (CONT’D)
E se o inverno é longo, é
dentro de nós que mergulham as
raízes pelas quais os homens se
41
alimentam
MAURO (CONT’D)
Se o inverno é longo e as vozes
se cansam é porque o nosso caminho
é único - o amor
MAURO (CONT’D)
Neste dia crescem sempre rosas
MAURO (CONT’D)
(triste)
Irei buscá-las às planícies mais
longínquas, às montanhas menos
acessíveis...
MAURO (CONT’D)
(triste e zangado)
Aos abismos, à amizade e à distância
que nos une.
MAURO (CONT’D)
(feliz e apaixonado)
Neste dia crescerão sempre rosas,
rosas muitas, rosas sobre o nosso
amor...
MAURO (CONT’D)
...para enfeitar os teus cabelos
PATRÍCIA FARIA
42
(animada)
Temos de lembrar a nossa plateia
de que o vencedor sairá daqui com
um cheque de três milhões de Kwanzas,
um carro, as chaves de um
apartamento numa das centralidades
e um prêmio surpresa.
PATRÍCIA FARIA
E o nosso segundo concorrente é…
CALADO SHOW
O grupo de Paula e Gisela,
acompanhado dos seus pais que nos
apresentarão uma peça insólita
sobre o preconceito, trazendo até
nós Njinga Mbandi, Bula Matadi
e muitos outros heróis nacionais.
PAULA
Algures na imensidão do Universo,
escondido no brilho estelar da Via
Láctea, localizado na crosta da
Terra, um território secreto
permitia-se ser o anfitrião de
alguns heróis julgados mortos pela
maioria.
GISELA
O lugar tinha o nome de Luya e
ficava perto do rio Lwembe, na
Lunda-Norte. Ladeado por cubatas e
algumas palmeiras, um enorme grupo de
pessoas estava em pé dispostas de
forma a criar um círculo. Só os
mais privilegiados estavam sentados.
Eles formavam um género de arena.
Estavam aí para assistir a um jogo.
Todas as tribos estavam reunidas.
PAULA
Na arena estavam três pessoas
imponentes: dois homens e uma mulher.
PAULA
Um dos homens era Ngola
Kiluanji, rei do Ndongo, um autêntico
gigante dotado de uma força física
fora do comum.
43
GISELA
O outro era Mandume, rei dos
kwanhamas, um grande guerrilheiro
cheio de inteligência.
Vê-se a Njinga Mbandi atrás delas, com roupas africanas que lhe cobre o
busto até a parte superior das coxas.
GISELA
A mulher era Nzinga Mbandi, filha
de Ngola Kilwanji, uma autêntica
prova que os pacíficos também usam a
força para atingir os seus objectivos
mais nobres. Os três estavam ansiosos.
PAULA
Dentro de momentos seriam
soltos quatro animais perigosos:
PAULA
…dois javalis e dois bodes
selvagens. As regras eram simples:
deviam apenas paralisar os animais,
a morte não era permitida. E não
podiam ter nada nas mãos, excepto
uma corda. A multidão ficou calada.
As grades de bambu foram abertas.
As bestas estavam livres.
GISELA
Espuma – havia espuma branca nas suas
bocas. O olhar era demoníaco. Três
das feras galopavam ferozmente na
direcção deles. A outra ficou a
rondá-los, como se quisesse achar um
ponto fraco.
PAULA
Com força extremamente bruta, os
dois homens domaram os javalis e a
mulher deteve um dos bodes pelos
chifres. Mas, no mesmo momento, a
certa distância, o outro bode
preparava-se para atacá-la pelas
costas. As mãos dos dois homens
estavam ocupadas em amarrar os dois
suínos. As mãos dela tentavam
proteger-se dos cornos afiados do
caprino. Se decidisse lutar com um, o
outro atacá-la-ia. O mesmo se
daria se os homens largassem os
javalis – com certeza seriam
atacados, não por uma, mas pelas
quatro feras. Os homens
apressavam-se em amarrar os javalis.
GISELA
44
GISELA
…aparecendo de forma misteriosa, um
Jovem albino apareceu no meio da arena,
bem à frente do bode. O olhar dela
era incendiado. O bode sentiu-se
intimidado. O animal ficou
parado, paralisado.
PAULA
Os dois outros homens correram até
ao caprino e o amarraram.
PAULA
A multidão aplaudia de forma
eufórica. Antes que continuassem com
a diversão, a menina fez um sinal,
indicado que precisava da atenção
deles. O assunto era sério. Quatro
homens e uma mulher levantaram-se.
A multidão abriu caminho para
que eles pudessem passar.
KIMPA VITA
(para o Lino,
fazendo-lhe uma vénia)
O que te trás aqui?
LINO
Kimpa Vita, ou devo dizer Dona
Beatriz? Sei que és muito ligada
aos espíritos. Será interessante
conversar contigo. O que tenho para
vos falar é muito importante…
EKWIKWI II
(para o Lino, fazendo-lhe
uma vénia)
Não é melhor que nos sentemos?
LINO
O assunto é sério demais para que nos
sintamos à vontade. És Ekwikwi II,
rei do Baylundu. Admiro muito o que
fizeste. Precisamos de homens como tu.
EKUKUI II
Só faço o que é necessário…
LINO
45
(patinando lentamente à
volta deles)
As vossas lutas… Porque que lutaram?
Qual foi a razão das vossas lutas?
Podes dizer-me, Mutu ya Kevela?
MUTU YA KEVELA
Eu lutei contra o trabalho forçado.
Nunca reconheci a autoridade
portuguesa como autoridade. Ninguém
que escraviza merece submissão.
LINO
E tu, aristocrata Bula Matadi?
Porque lutaste?
BULA MATADI
Lutei contra a exploração e a
dominação portuguesa.
LINO
Ngungunhane, ou Reinaldo Frederico
Gungunhana, «o leão de Gaza», homem
de Moçambique… Porque lutaste?
NGUNGUNHANE
Pela liberdade, pela expulsão dos
portugueses no nosso território.
LINO
(para Njinga Mbandi)
Em resumo, todos vocês lutaram para
sermos homens livres, verdadeiros
homens livres. O que me trás aqui
é a realidade de que, infelizmente,
as vossas lutas foram em vão…
MANDUME
(parcialmente exaltado)
Como assim?
KIMPA VITA
(com o olhar em transe)
O nosso povo continua preso. Eles
continuam a ser escravizados…
NGOLA KILWANJI
(para Kimpa Vita)
Não pode ser! Os portugueses foram
expulsos daqui há décadas. Estamos
a evoluir… O nosso povo está a
evoluir. O que vês é falso,
feiticeira.
KIMPA VITA
Parte do que dizes é verdadeiro,
mas não me chames de feiticeira. É o
que vejo. As nossas lutas não nos
libertaram. Somos escravos…
46
EKWIKWI II
(para o Lino)
Como é isso possível? Mesmo quando
éramos escravos, já éramos mais
livres que os colonos aqui. Estávamos
em todos os sítios: nos campos, nas
casas deles, nos caminhos-de-ferro.
Eles temiam-nos… Viviam com medo de
nós. O opressor nunca é mais livre
que o oprimido. Ele tem de trabalhar
muito em prol da opressão deste.
Tem de escravizar-se… Tem de passar
a noite a pensar em como usar a
força do oprimido para proveito
próprio. Tem de estar sempre
alerta. Uma revolução apavora-o.
Nunca está em paz. Dia e noite
é perseguido pelos problemas que
causam maior ansiedade ao ser humano.
O escravo tem apenas uma preocupação:
liberdade, logo, é mais livre. Nós
nos vimos livres dos colonos, agora
somos mais livres do quando éramos
escravos.
LINO
Sábias palavras. O que me dirás
quando souberes que o teu povo luta
contra si mesmo? O teu povo livre
é preconceituoso, bêbado, imoral,
assassino, corrupto… O teu povo, o
teu povo é escravo, detentor da pior
escravidão possível. Muitos deles me
odeiam…
MANDUME
(arrogante)
Porquê? És como os colonos?
LINO
Não. Apenas por causa da minha pele.
A minha pele é um problema para
a maioria deles. Na verdade, para a
maioria das pessoas neste planeta.
Quantos heróis albinos aparecem
nos livros? Nenhum… Quantos albinos
lutaram ao vosso lado? Não se fala
sobre isso… Vais a Internet e só lês
sobre porque temos essa coloração.
Não há nenhuma figura de destaque…
Será que não lutámos? Até nas bandas
desenhadas… há heróis cegos, coxos…
nenhum albino. Se houver algum, é
uma excepção, e uma excepção
pouco conhecida ou mencionada.
Somos discriminados, excluídos… E não
são só os albinos, qualquer pessoa que
seja diferente da área em que esteja.
47
KIMPA VITA
(dando um gole da bebida
na caneca na sua mão)
Entendo muito bem os teus sentimentos.
Fui queimada viva com o meu filho
por causa do preconceito…
NGOLA KILWANJI
Aquele Manuel Cerveira Pereira
prendeu-me e mandou que eu fosse
decapitado na Fortaleza de São Miguel
para mostrar o seu poder. O orgulho
também é um veneno… Mesmo se
tentarmos mudar essas pessoas, talvez
elas não aceitem por simples soberba.
NGOLA MBANDI
Embora os meus irmãos Kambi e Fuxi
não tivessem chegado a extremos,
Ngola Mbandi, o meu outro… irmão…
mostrou-me como a ganância pode mudar
as pessoas. Ele recebeu-me o trono…
A ganância é peçonha.
LINO
(para Njinga Mbandi)
Muito interessante, Ana Sousa.
BULA MATADI
É como fumar, beber, ter muitos homens
ou muitas mulheres. – Não é viver…
é morrer. Mas as pessoas fazem isso
por lhes ser conveniente… ou lhes dar
prazer. Mudar a mente das pessoas está
entre as coisas mais difíceis deste
mundo.
NZINGA MBANDI
(para Njinga Mbandi)
O que propões?
LINO
É esta a razão que me trouxe até
vocês… Vocês têm o poder de mudar
o sistema. Provaram-no… E gostam
de desafios. O que farão? Vão lutar?
(para o Mandume)
Ficar com os braços cruzados?
O Mauro está sentado, segurando um dos seus dred locks com uma das mãos
e uma tesoura com a outra. Suspira.
MAURO
(triste)
O que é que um gajo não faz para ajudar
um irmão?
48
BACK TO:
NGUNGUNHANE
Lutaremos. Detestamos a escravidão.
O preconceito é irmão dela.
MANDUME
As minhas mãos estão ao dispor desta
luta.
EKWIKWI II
Se for preciso a força para mudar a
mente deles... assim será. A
abordagem é uma solução viável.
Farei os possíveis para
convencê-los com lógica irrefutável.
MUTU YA KEVELA
Ninguém se sente bem ao ser discriminado.
Talvez a solução seja lhes fazer
provar um pouco do próprio veneno. Estou
nesta luta.
NGOLA KILWANJI
Os portugueses não me impediram... nem
chegaram a vencer-me. Lutar contra a
mentalidade de meu próprio povo será
difícil, mas não impossível. Lutarei.
KIMPA VITA
O espírito do raciocínio existe em
qualquer humano. Só precisaremos de
evocá-lo com fervor. Eu me
responsabilizarei disso. Lutarei.
BULA MATADI
No passado, consegui mobilizar todo
o meu o povo para obrigar um rei a
expulsar os portugueses com o
intuito de pôr fim às intrigas que
enfraqueciam o reino a que
eu pertencia. Será interessante repetir
esta façanha… Lutarei.
NZINGA MBANDI
É meu dever salvar o meu povo de qualquer
ameaça. Lutarei. E a luta começa agora.
Estamos dispostos a ir contigo. Os
preconceituosos que estejam bem preparados.
CALADO SHOW
(animado)
Agora vamos receber o nosso último
49
concorrente!
PATRÍCIA FARIA
(animada)
Carlos e o seu grupo, acompanhado dos
seus pais e dos seus padrinhos.
CARLOS
50
Às casas...
CARLOS (CONT’D)
...às nossas lavras, às praias, aos
nossos campos, havemos de voltar.
RAPAZ
(triste, em tom choroso)
Voltar? Vamos fazer o quê pra voltar?
MAURO
Criar...
RAPAZ
Criar?
MAURO
Criar no espírito...
MAURO (CONT’D)
...criar no músculo...
O Carlos sorri.
MAURO (CONT’D)
...criar no nervo...
MAURO (CONT’D)
...criar no homem...
MAURO (CONT’D)
...criar na massa.
RAPAZ1
(desgostoso)
E vamos fazer isso onde? Vamos
vestir o quê?
O Carlos agora está com uma camisa branca limpa, mas o resto
das roupas continuam sendo de mendigo.
51
CARLOS
Às nossas terras vermelhas de café...
CARLOS (CONT’D)
...brancas de algodão...
CARLOS (CONT’D)
...verdes dos milharais, havemos de
voltar.
RAPAZ
(curioso)
Voltar a criar, né?
MAURO
Criar, criar sobre a profanação
da floresta...
MAURO (CONT’D)
Sobre a fortaleza impúdica do
chicote
criar sobre o perfume dos
troncos serrados, criar...
MAURO (CONT’D)
...criar com os olhos secos.
RAPAZ1
(triste)
Essa pobreza só dá pra chorar.
CARLOS
Às nossas minas de diamantes, ouro,
cobre, de petróleo...
52
RAPAZ1
(empolgado)
Havemos de voltar a criar...
MAURO
Criar gargalhadas sobre os escárnios
da palmatória, coragem nas pontas
das botas do roceiro
força no esfrangalhado das portas
violentas.
MAURO (CONT’D)
...firmeza no vermelho sangue da
insegurança.
RAPAZ
(sorrindo e emocionado)
Criar, criar com olhos secos.
CARLOS
À frescura da mulemba, às nossas
tradições, aos ritmos e às fogueiras,
havemos de voltar
RAPAZ
Ritmos? Quais ritmos?
RAPAZ1
(gargalhando)
Sim, voltar, voltar a criar.
MAURO
(sorrindo)
Criar estrelas sobre o camartelo
guerreiro, paz sobre o choro das
crianças, paz sobre o suor,
sobre a lágrima do contrato,
paz sobre o ódio, criar.
RAPAZ E MAURO
Criar com os olhos secos.
CARLOS
À marimba e ao quissange, ao
carnaval, havemos de voltar.
RAPAZ
Voltar, sim! Mas, antes, criar.
MAURO
Criar, criar liberdades
nas estradas escravas...
MAURO (CONT’D)
...algemas de amor nos caminhos
paganizados do amor.
MAURO (CONT’D)
...sons festivos sobre o balanceio
dos corpos em força simulada
Criar, criar com os olhos secos.
CARLOS
À bela pátria angolana, nossa
terra...
RAPAZ
(alegre e surpreso)
Mamã!
CARLOS
...nossa mãe, havemos de voltar.
CARLOS (CONT’D)
Havemos de voltar.
À Angola libertada, à Angola
independente.
MULTIDÃO
Já ganhou! Já ganhou! Já ganhou!
FADE TO BLACK.
CALADO SHOW
Bem, passados então todos os
nossos cem concorrentes…
PATRICIA FARIA
Chegou finalmente a hora de
anunciarmos o nosso vencedor.
CALADO SHOW
E o vencedor e…
LINO
Pensam que vao ganhar? O que eu
fiz foi muito mais intelectual
e inovativo…
DIRECTOR
O que nos fizemos, rapaz. O que
nos fizemos…
SUSANA
Oh! Não és tao convencido que
sempre ganhas?
CARLOS
Primeiro ora-se a Deus, depois
se fica convencido de qualquer
coisa. Weis, Aconteca o que
acontecer, quem vencer divide
o prêmio a meias com os outros.
56
MAURO
Assim o carro e o apartamento
vamos dividir como? Eu não quero
ficar com os pneus.
CARLOS
Tens noção que meteste o Agostinho
Neto com dred locks?
MAURO
E tu que lhe meteste a dançar kuduro?
ERNESTO BARTOLOMEU
E para terminarmos o nosso telejornal
de hoje. Já e conhecido o vencedor
do concurso Kusole.
IMAGENS NA TELEVISÃO:
CARLOS
À frescura da mulemba, às nossas
tradições, aos ritmos e às fogueiras,
havemos de voltar
RAPAZ
Ritmos? Quais ritmos?
LINO
Não pode. Ele fez batota. Usou outros
concorrentes para…
BACK TO:
ERNESTO BARTOLOMEU
Telejornal, a notícia em primeiro
lugar.
BACK TO:
SUSANA
Então vencemos o concurso.
CARLOS
Ya, e bem vencido!
SUSANA
Agora vamos ter que viajar para
58
CARLOS
Queria que ficasses aqui para sempre
Mas…
SUSANA
Já sei…
CARLOS E SUSANA
Pai é pai…
SUSANA
Olha, tenho um presente para nós os
dois…
SUSANA
Quando eu voltar este e para o nossos
noivado e este para o nosso casamento.
CARLOS
Obrigado, miúda. Mas quando voltares,
eu já terei construído uma mansão para
nos os dois.
CARLOS
Bem, hora de ires…
JORGE
Este é o prêmio supressa…
SUSANA
O que é isso, pai?
CARLOS
Uma bolsa de estudo para o lugar
para onde vocês vão. E vou com a
minha mãe!
MAURO
(para o Jorge)
Com licença, meu senhor. Vamos dar
uma despedida.
CARLOS
(para a Susana)
Arrasa-os, miúda!
JORGE
(autoritário)
O que é que conversamos sobre isso,
Susana?
(alegre)
Vocês não podem fazer isso
sem mim!
Todos sorriem.
CARLOS
(para a Susana, murmurando)
O kota Papel sabe dançar?
SUSANA
(para o Carlos, murmurando)
Nunca te contei, antes da morte da
minha mãe eles iam à boda rija
quase todas as semanas. Se ele e
que me ensinou a dançar.
JOVENS E RAPARIGAS
(animados)
Ti Papele, num num nos deixa male!
Ewe! Ti Papale lhes avança mbore!
Ewe!
FADE OUT.