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KUSOLE

Written by

Ngoma Usuku
Quinta-feira, 23/Agosto/2018

Address: Viana - Luanda – ANGOLA


Phone Number: 932 033 876/ 919 736 875
Email: ngoma_usuku@hotmail.com
Facebook: Pelágio Jorge Chaves Seca
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FADE IN:

INT. COLÉGIO - SALA DE AULAS – DIA

A PAULA e a GISELA, de 14 anos, estão num dos cantos, dançando


kuduru de forma esquematizada. A SUSANA, de 15 anos, está
sentada numa das carteiras, olhando para elas, sorrindo. Todas
usam cabelo natural, com penteados tradicionais ou africanos.

A Susana levanta-se e começa a imitá-las de forma desengonçada.


A Paula e a Gisela olham para ela e soltam gargalhadas
zombeteiras.

PAULA
(gozando)
Vamos embora daqui, Gisela. Se o vírus
Dessa nos atinge, ainda vamos
perder o concurso Kusole.

A Paula e a Gisela andam em aproximação da porta sorrindo,


imitando o dançar desengonçado da Susana. A Paula pisca o olho
para a Susana com alegria. A Susana sorri.

A Paula e a Gisela saem, fechando a porta. A Susana suspira com


tristeza.

Olha para outro canto da sala e vê o CARLOS, de 16 anos, e o


MAURO, que usa dred locks, de 15 anos, que estão de pé,
sorrindo, olhando para o visor do telemóvel na mão do Mauro.

SUSANA
(animada)
Carlos, vocês não vão se preparar
para o concurso de dança do fim do
ano?

CARLOS
(pavoneando-se)
Nos preparar pra quê se já ganhámos?

A Susana começa a andar em aproximação do Carlos e do Mauro.

SUSANA
Convencidos! Quais são os toques e
a música que vocês prepararam?

MAURO
(para o Carlos)
Mudança de ala, wey?

CARLOS
Ya! É rápido!

O Carlos e a Susana começam a correr em aproximação da


porta.

SUSANA
Ah, é? Não querem me contar? Então,
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vamos ver se no fim não vão precisar


da minha ajuda…

O Carlos abre a porta.

SUSANA
…e dos meus Kwanzas!

O Carlos e o Mauro engolem em seco.

SUSANA
(aliciante)
Uma boa indumentária e umas boas
sapatilhas iam vos dar um bom
jeito, não?

O Mauro olha para as suas sapatilhas que já estão parcialmente


gastas e olha para os ténis do Carlos que estão no mesmo estado.
Volta-se e começa a andar em aproximação da Susana.

MAURO
(para a o Carlos)
Kalili, tamos a precisar de wawera.

O Carlos segura o braço do Mauro em impedimento.

CARLOS
(admirado)
Eh! Essa mboa não sabe dançar, Mauro.
Ela vai querer nos dar dinheiro para
depois ficar no nosso grupo…

O Mauro solta o seu braço da mão do Carlos e anda em aproximação


da Susana.

CARLOS
(enraivecido)
Ah, é? É assim?

MAURO
Vem só masé! Tamos à rasca…

O Carlos suspira e começa a andar em aproximação deles.

CARLOS
Vocês é que estão a me obrigar…

MAURO
(para a Susana)
Susana, minha boss de luxo, se
quiseres aulas de dança, aqui o
profe Carlos terá o maior prazer
em te ensinar no teu mbanji ainda
hoje.

O Carlos olha de forma zangada para o Mauro, enquanto a Susana


sorri.

EXT. RUA À FRENTE DA PORTA DA CASA DO JORGE - DIA


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O Carlos está de pé à frente da porta.

CARLOS
(amuado)
Esse Mauro só me arranja problemas…

Levanta a mão em posição de tocar a campainha.

CARLOS
A parte boa é que, mesmo que ela não
aprenda a dançar, vai cair dinheiro
por cada aula.

INT. CASA DO JORGE - SALA DE ESTAR – DIA

O JORGE, de 45 anos, está sentado no sofá, a ler o jornal.


Ouve-se o toque da campainha.

O Jorge olha para o relógio com expressão zangada. Suspira.


Levanta-se e anda em aproximação da porta, abre-a, deixando-a
entreaberta, e vê que é o Carlos. O Carlos assusta-se.

CARLOS
(admirado e assustado)
Oh! Senhor Jorge?

JORGE
(sério)
Sim…

CARLOS
(parcialmente gago)
Desculpa-me o incómodo. Posso falar
Com a Susana?

JORGE
(sorrindo)
Claro! Entra.

CARLOS
(sorrindo com medo)
Não é preciso. Posso esperar aqui
fora...

JORGE
(sério)
Entra, rapaz…

CARLOS
(constrangido)
Senhor Jorge, não é necessário...

JORGE
(irritado e gritando)
Entra!

O Carlos engole em seco.


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CARLOS
(gago)
Está bem, senhor.

O Jorge abre completamente a porta. O Carlos entra com expressão


temerosa, fazendo o sinal da cruz, olhando para o céu. O Jorge
fecha a porta e anda atrás dele.

INT. CASA DO JORGE - SALA DE ESTAR - DIA

O Jorge e o Carlos aproximam-se dos cadeirões e do sofá. O


Carlos está com uma expressão de medo. O Jorge aponta para um
dos cadeirões.

JORGE
(sério)
Senta-te.

CARLOS
(respeitoso e temeroso)
Obrigado, senhor.

O Carlos senta-se. O Jorge volta a sentar-se no sofá.

JORGE
(gritando em chamamento)
Susana!

SUSANA (O.S.)
Sim, pai!

PAI
Há alguém aqui que veio te ver!

SUSANA (O.S.)
Está bem, pai! Já vou!

A Susana entra e vê o Carlos. A Susana assusta-se. Olha,


admirada, para o rosto do Carlos e para o rosto do Jorge.

SUSANA
Oi, Carlos! Vieste buscar aquele CD,
né?

CARLOS
CD…?
SUSANA
O CD intitulado Impossível Ter Aulas
Agora, do Paulo Flores?

CARLOS
Oh, não! Quero aquele outro CD dele,
intitulado Vais Me Pagar Na Mesma,
Não?

SUSANA
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Não tenho este, mas amanhã, na escola,


vou levar a mixtape que tem a música
Tens Muita Birita No Kumbu, do
Nagrelha.

O Carlos levanta-se.

CARLOS
Está bem, mas não te esqueças que a
Quem Não Vai Entrar No Nosso Grupo
És Tu, da Noite e Dia, bateu mais.

SUSANA
Ok. Então levarei a Quantia e também
A Vamos Começar A Ensaiar Na Tua Casa,
da Ary.

CARLOS
Combinado! Com licença, senhor Jorge.

JORGE
(sério)
Faz favor.

A Susana e o Carlos começam a andar em afastamento do Jorge. O


Jorge pigarreia.

JORGE (CONT’D)
(sério)
Susana!

A Susana e o Carlos param.

SUSANA
Pai?

JORGE
(sério)
Ele não pode comprar estes CDs em vez
de vir aqui em casa pedir-tos?

SUSANA
(desconcertada)
Sim, pai, mas como ele me emprestou
alguns CDs antes, eu quis fazer o
mesmo desta vez.

JORGE
(sério)
Ok. Empresta-lhe também aquele
intitulado Eu Não Sou Burro, Entendi
Tudo Que Disseram, da Força Suprema.

O Jorge levanta-se e fica cara a cara com o Carlos. O Carlos


engole em seco e a Susana assusta-se.

SUSANA
(assustada)
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Mas, pai...

JORGE
(irritado)
Susana, cala a boca!

A Susana engole em seco.

JORGE (CONT’D)
Dá-lhe também aquele em cima do
balcão da cozinha intitulado A
Minha Filha Tem Que Estudar Em
Vez De Perder Tempo Com Aulas De
Dança, do Projecto X.

SUSANA
Pai! Não é nada disso!

O Jorge fala sem olhar para a Susana, fixando o olhar no rosto


do Carlos que está a tremer.

JORGE
(sério, gritando)
Eu disse cala a boca, Susana!
Põe-lhe também a ouvir o Se
Continuares A Andar Atrás Da Minha
Filha…

O Jorge abre a porta.

PAI (CONT’D)
...Vou Fazer Com Que Te Expulsem Do
Colégio, entendeste?

O Carlos assusta-se e sai, correndo. O Jorge volta-se para a


Susana.

JORGE (CONT’D)
(sério)
Entendeste?

SUSANA
(com medo)
Sim, pai!

JORGE
(zangado)
Desaparece daqui!

A Susana sai correndo na direcção oposta à do Carlos, chorando.

INT. CASA DO JORGE – QUARTO DA SUSANA – DIA

A Susana entra, chorando. Sobre a cama estão algumas roupas de


dança. Olha para a fotografia no porta-retratos sobre a cómoda
onde estão ela e o Jorge sorrindo.
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Ela segura o porta-retratos e intenta lançá-lo para o chão, mas


para ao ver o porta-retratos onde estão ela, o Jorge e a
DOMINGAS, de 39 anos, que também está sobre a cómoda.

Suspira. Olha para a janela, que está entreaberta, segura as


roupas sobre a cama e anda em aproximação da janela.

EXT. RUA DA RULOTE AMARELA VERMELHA E PRETA - DIA

A Susana está a andar apressadamente, segurando roupas. A


algumas dezenas de metro à frente dela estão alguns jovens
encostados à parede. Entre eles estão o LINO, o COLEGA 1 e o
COLEGA 2. Os três têm patins com calcados e 16 anos de idade.

À frente destes, há uma rulote amarela, vermelha e preta aberta


de onde se ouve o som de música dançante.

Os jovens batem palmas e assobiam para um grupo de rapazes que


dança o estilo kuduro no meio da rua.

A Susana para por alguns instantes, observando-os. O Lino


pisca o olho para ela. Ela sorri e depois continua a andar
apressadamente.

INT. CASA DA MARIA ISABEL – QUINTAL – DIA

Ouve-se batidas ao portão.

CARLOS (O. C.)


(sério)
Quem é?

SUSANA (O. S.)


(animada)
A tua nova aluna!

O Carlos aproxima-se do portão. Pousa a mão sobre o trinco, mas


para.

CARLOS
(zangado)
Vieste fazer o quê, Susana? Volta
só na tua casa, ya? Não quero
problemas com o teu pai.

SUSANA (O. S.)


Ele só fala muito. Não lhe liga…

CARLOS
É fácil dizeres isso porque ele tem
dinheiro pra construir um colégio
só pra ti. Não quero me aventurar
em estressar a minha mãe…

EXT. RUA À FRENTE DA CASA DA MARIA ISABEL – DIA

A Susana está de pé, segurando roupas de dança. Ao seu lado,


encostado à parede, está um tamborzão.
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SUSANA
(suplicante)
Não vai acontecer nada contigo,
Carlos. Vamos ter aulas em segredo
aqui. Ele não vai saber…

CARLOS (O. S)
(zangado)
Imagina se fosse a minha mãe a te
expulsar assim aqui da casa dela,
como é que te sentirias, hã? Como?

A Susana suspira com tristeza.


DISSOLVE TO:
INT. CASA DA MARIA ISABEL – QUINTAL - DIA

A Susana está de pé à frente da porta, com a mão levantada, em


posição de batê-la.

INT. CASA DA MARIA ISABEL - COZINHA - DIA

A MARIA ISABEL, de 40 anos, está de pé à frente do fogão,


girando uma grande colher de madeira sobre a panela que está
sobre a única boca do fogão que está ligada. Há funji na panela.

Há duas panelas sobre as outras bocas do fogão que estão


desligadas. Ouve-se batidas à porta.

A Maria Isabel olha para a panela, suspira de forma zangada,


diminui o volume do fogo e sai, entrando para a sala de estar,
segurando a colher de madeira grande que está parcialmente
coberta de funji.

INT. CASA DA MARIA ISABEL – SALA DE ESTAR – DIA

A Maria Isabel entra, saindo da cozinha, com expressão facial


de zanga, segurando uma colher de madeira grande que está
parcialmente coberta de funji.

Anda em aproximação da porta, abre-a, deixando-a entreaberta,


e vê que é a Susana. A Susana sorri.

SUSANA
(alegre)
Bom dia, dona Maria!

MARIA ISABEL
(cínica)
Bom dia…

SUSANA
(animada)
Posso falar com o Carlos?

MARIA ISABEL
(chateada)
Mas ó menina, essa hora não tinhas
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que estar a fazer o almoço?

SUSANA
(sorrindo, encabulada)
Não, não faço nada disso na minha casa…

MARIA ISABEL
(sério)
Ah, é? Então entra…

SUSANA
(constrangida)
Não é preciso, dona Maria...

MARIA ISABEL
(rabugenta)
Só porque na tua casa tem mosaico mais
caro que na minha não queres entrar?
Entra agora!

A Susana engole em seco.

SUSANA
(constrangida)
Está bem.

A Maria Isabel abre completamente a porta. A Susana entra com


expressão temerosa. A Maria Isabel fecha a porta e anda atrás
dela.

A Maria Isabel e a Susana andam em aproximação dos cadeirões.


A Maria Isabel aponta para um dos cadeirões com a colher de
madeira grande para que ela se sente.

MARIA ISABEL
(séria)
Senta aí.

SUSANA
(respeitosa e temerosa)
Muito obrigada, dona Maria Isabel.

A Susana senta-se.

MARIA ISABEL
(gritando em chamamento)
Ó senhor Carlitos!

CARLOS (O.S.)
Qual é a cena, moite?

MARIA ISABEL
Tens visita!

CARLOS (O.S.)
Tá-se bem! Já vou!
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A Maria Isabel pousa a colher grande de madeira na mão da


Susana. A Susana engole em seco e fica a olhar, pasmada, para
a colher.

O Carlos entra saindo do quarto e vê a Susana. O Carlos assusta-


-se. Olha, admirado, para o rosto da Susana, para o rosto da
Maria Isabel e para a colher de madeira na mão da Susana.

MARIA ISABEL
(zangada, para o Carlos)
Então a nora que queres me arranjar é
essa?

CARLOS
(admirado)
Nora? Qual nora, velha?

MARIA ISABEL
(zangada)
Estás muito apressado tu. Já lhe
avaliaste se sabe cozinhar ou engomar
bem uma calça com vinco?

SUSANA
(humilde)
Eh! Eu só quero ser amiga dele, dona
Maria.

MARIA ISABEL
(rabugenta)
Amiga, amiga. Mesmo amiga do meu filho
tem que saber cuidar da casa, senão não
podenem falar com ele!

CARLOS
(zangado)
Moite, esse espírito de tratar assim as
visitas estás a ir buscar então aonde?

MARIA ISABEL
(irritada)
Cala a boca, Carlos! Cala a boca!
(para a Susana)
Você me levanta desse cadeirão e começa a
trabalhar. O balde e o pano do chão estão
aí, mas antes disso vai já me bater o funji
que está na cozinha. Vamos! Rápido!

SUSANA
Mas… mas…

MARIA ISABEL
(rabugenta)
Vai agora! E se depois me queixares no
teu pai, vou se entender com ele. Ele
até vai me agradecer por lhe ajudar a
não criar uma filha preguiçosa! Vamos!
Passa! E não quero nenhuma bola nesse
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funji!

A Susana levanta-se pega o maxariku e vai para a cozinha


assustada e triste.

BACK TO:

EXT. RUA À FRENTE DA CASA DA MARIA ISABEL – DIA

A Susana está de pé, segurando roupas de dança. Ao seu lado,


encostado à parede, está um tamborzão.

SUSANA
Carlos, tens razão, mas eu…

INT. CASA DA MARIA ISABEL – QUINTAL – DIA

O Carlos está a andar em afastamento do portão.

CARLOS
(irritado)
Não, Susana! Chega! Estou a entrar.
Não quero mais te ouvir. Baza, miúda.
Baza! E quando me vires no colégio,
não me dirige a palavra.

SUSANA
Espera, Carlos!

Ouve-se o som metálico vindo do exterior. A seguir, vê-se a


Susana a olhar por cima do portão, com os olhos cheios de
lágrimas, enquanto o Carlos anda de costas voltadas para ela.

SUSANA
(chorando)
Tens razão. Peco-te um milhão de
desculpas pela vergonha que passaste,
mas aceita me dar aulas de dança, por
favor. Carlos. Carlos! Aceita só, por
favor. O meu pai me protege muito.
Acho que ele faz isso por causa da
morte da minha mãe. Ele não quer me
perder também...

O Carlos para de andar.

SUSANA
(chorando)
…mas me protege tanto que quase não
tenho nenhuma amiga. Só faço o que ele
quer, quando ele quer. Nem tenho tempo
para fazer o que eu realmente gosto. Não
sabes o que é ter um pai assim…

O Carlos suspira, volta-se, anda em aproximação do portão e


abre-o. Vê que a Susana esta de pé, sobre um tamborzão.

CARLOS
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(emotivo)
Ao menos tens um pai que se importa
contigo, eu nunca conheci o meu pai.
Entra, vamos começar as aulas…

A Susana sorri, descendo rapidamente do tamborzão num salto.

MAURO
(animado, sentado à porta)
Mas será por um preço mais alto, hein?

A Susana sorri, concordando com a cabeça.

CARLOS
Vou entrar para ir buscar a música.

O Carlos dá as costas ao Mauro e à Susana e entra para a casa.

SUSANA
(alegre)
Vou ter aulas de dança!

A Susana dança alegremente em toques requintados de kwaito,


sorrindo. Ela para ao ver que o Mauro olha de forma admirada
para ela. Ela sorri e pisca o olho para o Mauro. O Mauro olha
de forma desconfiada para ela.

INT. CASA DA MARIA ISABEL – QUINTAL - DIA

Três meses depois…

A Susana está a andar de um lado para o outro com expressão


de impaciência. A Maria Isabel está ao lado dela, de cócoras,
cuidando das flores que estão em vários vasos.

MARIA ISABEL
(sorrindo)
Fica calma, menina. Eles já devem
estar a chegar…

SUSANA
(amuada)
Eles já disseram isso há cinco
minutos. Se o meu pai chegar e não
me encontrar em casa, vai começar
a desconfiar. E hoje são os
últimos acertos. O concurso Kusole
já é daqui há três dias…

MARIA ISABEL
Se quiseres, eu posso te dar a
aula hoje…

SUSANA
(sorrindo)
Obrigada, dona Maria, mas ainda não
quero aprender sungura e kabetula…
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MARIA ISABEL
(levantando-se)
Se calhar são os toques que vocês
estão a precisar para vencer o
Kusole… e olha que eu não sei só
dançar isso.

A Maria Isabel começa a andar em aproximação da Susana.

MARIA ISABEL
O Carlos nunca te disse isso, porque
é muito orgulhoso, mas eu sou a
coreógrafa dele…

A Susana solta uma gargalhada. Ouve-se o som de música do


estilo kuduru vindo do exterior da casa.

JOVENS (O. S.)


(animados)
Lhe dá! Lhe dá! Ewe! Estraga!
Estraga!

A Susana e a Maria Isabel entreolham-se. Sorriem e andam em


aproximação do portão.

EXT. RUA DA RULOTE AMARELA, VERMELHA E PRETA – DIA

A Susana e a Maria Isabel entram, saindo do quintal e ficam a


olhar a algumas dezenas de metro à frente de si onde estão
alguns jovens encostados à parede, entre os jovens estão a Paula
a Gisela, o Lino, o Colega 1 e o Colega 2. Os três últimos têm
patins calçados.

À frente destes, há uma rulote amarela, vermelha e preta aberta


de onde se ouve o som de música dançante. Os jovens batem
palmas e assobiam para um grupo de raparigas que dança o estilo
kuduro no meio da rua.

JOVENS (O. S.)


(animados)
Estraga! Estraga! Ewe! Lhe dá! Lhe dá!

MARIA ISABEL
(para a Susana, puxando-a
pela mão em aproximação da
rulote)
Vamos encostar mais…

A Paula vê a Maria Isabel e a Susana, dá uma leve cotovelada


à Gisela para que ela também olhe para elas. A Paula e a Gisela
entreolham-se, sorriem e começam a bater palmas, olhando para
a Maria Isabel.

PAULA E GISELA
(animadas)
Ko-ta Maria! Kota Maria! Ko-ta Maria.
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Os jovens ao lado da Paula e da Gisela também olham para a


Maria Isabel. Sorriem, assobiam e começam a bater palmas,
excepto o Lino, que olha com desprezo para ela.

JOVENS, PAULA E GISELA


(animadas)
Ko-ta Maria! Kota Maria! Ko-ta Maria.

A Susana olha com admiração para a Maria Isabel que anda em


aproximação do grupo de raparigas que dança no meio da rua. A
Maria Isabel dança ritmadamente com as raparigas, deixando a
Susana boquiaberta e o grupo de jovens eufóricos.

Enquanto a Maria Isabel dança com as raparigas, o Carlos e o


Mauro chegam, trajados de fato e gravata e ficam a olhar para
ela, animados. O Lino olha com expressão de ódio para o Carlos.

A Paula vê o Carlos e pisca-lhe o olho. O Carlos sorri e pisca-


lhe o também vê. A Susana olha para os dois e faz uma expressão
de ciúme. A Paula olha para a Susana e engole em seco,
constrangida.

Alguns carros que passam pela rua param e os seus motoristas


ficam a observá-los, estando, entre eles, o MOTORISTA, de 30
anos, musculado. No banco de trás do carro deste, está o Jorge.

A música termina e a Maria Isabel e as raparigas param de


dançar. Todos batem palmas, alegres, enquanto outros assobiam.

O Mauro anda em aproximação da Maria Isabel e choca o seu punho


contra o punho dela.

MAURO
(animado)
Podias ganhar dinheiro com isso, kota Maria!

CARLOS
(animado)
Aí ela já não teria tempo para estar com o
filho dela.

A Susana aproxima-se da Maria Isabel e, ainda boquiaberta,


levanta a sua mão e bate-a contra a mão da Maria Isabel que
está levantada.

SUSANA
(animada)
Bom trabalho, dona coreógrafa!

A Paula e a Gisela andam em aproximação do Carlos, da Susana,


do Mauro e da Maria Isabel, batendo palmas.

JOVENS, PAULA, GISELA E RAPARIGAS


(aplaudindo)
Queremos bis! Queremos bis!

O Carlos, a Susana, o Mauro e a Maria Isabel entreolharam-se.


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CARLOS
(convencido)
Se é o que querem, então vamos vos
dar um show como nunca viram.

SUSANA
(para o Carlos e o Mauro)
Vocês vão continuar de terno e
gravata?

O Carlos e o Mauro meneiam a cabeça em sinal concordância. O


Carlos, a Susana, o Mauro e a Maria Isabel colocam-se no centro
do palco de terra batida. O Carlos levanta a mão com intento
de estalar os dedos.

CARLOS
(para a Susana)
Arrasa-os, miúda!

A Susana pisca-lhe o olho e sorri para ele, levantando o


polegar. O Jorge segura a mão da Susana.

JORGE
(autoritário)
O que é que conversamos sobre isso,
Susana? Vamos pra casa!

O Jorge começa a puxar a Susana em aproximação do carro, mas


ela faz resistência, enquanto o Lino solta uma gargalhada
zombeteira.

SUSANA
(suplicando)
Pai? Pai, por favor, me desculpa.
Mas me deixa só dançar essa vez…

JOVENS E RAPARIGAS
(apupando)
Dei-xa a miúda! Deixa a miúda!
Dei-xa a miúda!

JORGE
(zangado, para a Susana)
Não! Vamos para casa!

SUSANA
(suplicando)
Pai, por favor. Deixa-me só dançar,
prometo-te que nunca mais danço.

A Maria Isabel intenta abrir a boca para falar com o Jorge, mas
o Carlos segura-lhe a mão e abana-lhe a cabeça em negação. A
Maria Isabel suspira e fecha a boca.

JORGE
(zangado)
As tuas promessas são falsas.
17

SUSANA
(suplicando com lágrimas nos
olhos)
Por favor, pai. Por favor.

JOVENS E RAPARIGAS
(apupando mais fortemente)
Lar-ga a Susana! Larga a Susana!
Lar-ga a Susana!

O Jorge suspira. A Susana sorri.

JOVENS E RAPARIGAS
(apupando)
Ele dei-xou a miúda! Xou a miúda!
Ele dei-xou a miúda!

O Jorge levanta a Susana, coloca-a sobre o ombro e anda em


aproximação do seu carro, enquanto a Susana começa a chorar,
olhando para o Carlos que olha de forma triste para ela,
enquanto o Lino continua a sorrir com malícia.

INT. CASA DO JORGE – SALA DE ESTAR – DIA

O Jorge e a Susana entram, deixando a porta aberta. Ambos estão


com expressão facial de zanga. A Susana tem lágrimas nos olhos.

SUSANA
(irritada, com voz chorosa)
Pai, tu não estás bem. Liga para o
psicólogo ou para o psiquiatra para
te tratares!

JORGE
(zangado)
Tu é que estás sempre a me desobedecer
e eu é que não estou bem?

SUSANA
Viste a humilhação que me fizeste
passar a frente de todo mundo?
Viste?

JORGE
Humilhação que tu mesma pediste para
passar…

SUSANA
Mas que mal há em eu dançar? Que mal
há em conviver com alguns colegas do
colégio?

JORGE
Não são pessoas de confiança.
Sabe-se lá o que eles podem fazer
contigo! Não sabes que essa gente só
pensa em dinheiro?
18

SUSANA
Eles estudam comigo e são meus
vizinhos. Eles não têm culpa da morte
da mãe. Se queres culpar alguém, culpa
a ti mesmo!

JORGE
(irritadíssimo)
Cala-te e vai para o teu quarto!

SUSANA
(exaltada)
Não, não me calo! Não vou para o quarto
porque o quarto é teu, a casa é tua,
tudo é teu, mas a voz e minha. Vou
falar o quanto quiser, pai. Se trata.
Se trata!

O Jorge segura o seu sinto como se fosse retirá-lo do cós das


suas próprias calças com expressão facial de zanga.

SUSANA
(enfrentando)
Se queres me bater, eu mesma vou buscar
todos os cintos dessa casa pra me surrares,
mas essa prisão que me obrigas a viver aqui
não está certo, pai. Não está certo!

A Susana começa a andar em aproximação da porta.

JORGE
Susana, aonde vais?

A Susana sai para o exterior da casa.

SUSANA (O. C.)


Não te preocupes que não vou dançar.
Me tiraste completamente o gosto por
isso.

A Susana sai, batendo a porta com violência. O Jorge intenta


segui-la, mas detém-se. Coloca a mão sobre o rosto e suspira
com tristeza.

EXT. RUA À FRENTE DA CASA DO JORGE – DIA

A Susana entra, saindo da casa, com expressão facial de tristeza


e lágrimas nos olhos. Anda com a mão tapando a boca, soluçando
em choro.

Do outro lado da rua, está o Lino, andando de patins com o


Colega 1 e o Colega 2. Ele olha para ela, confuso, e patina em
direcção da Susana.

SUSANA
(chorando, para si mesma)
19

Porque é que morreste, mamã?


Porquê? Se estivesses aqui, as
coisas não estariam assim. Volta
só, por favor. Volta.

LINO
(galante, preocupado)
Oh! Estás a chorar porquê,
princesa?

SUSANA
É o meu pai, Lino. O meu pai…
(funga)
Ele não me deixa ser feliz do meu
jeito… não me deixa conviver com
ninguém. Não quer que eu aprenda a
dançar para participar do concurso
do colégio…

LINO
Oh, isso não é problema, duquesa!
Em vez de dança, podes vir aprender
a representar no estúdio do
meu pai. Dizes ao Don Jorge que
vais ter aulas de canto e balé,
enquanto eu te ensino a ser uma
excelente actriz.

SUSANA
(sorrindo parcialmente,
limpando as lágrimas)
Se o concurso é de dança, por que
é que eu aprenderia cenas de
teatro?

LINO
Fácil: porque eu vou convencer o
director do colégio a ampliar as
artes do concurso…

SUSANA
Obrigada pela gentileza, Lino. Mas
não vai dar. Quero continuar na dança e
para isso já tenho um professor.

LINO
Quem?

SUSANA
O Carlos.

LINO
Mas o teu pai está a deixar que ele
te ensine?

A Susana suspira e meneia a cabeça em negação com tristeza. O


Lino pousa-lhe a mão sobre o ombro.
20

LINO
Então vem aprender comigo, tzarina.
Queres fazer o que tu gostas e ser
realmente feliz ou não?

A Susana olha para o Lino com expressão facial de indecisão. A


sua boca se abre como se fosse pronunciar um «s», mas ela
própria interrompe-se, meneando a cabeça em negação.

SUSANA
(determinada)
Não vai dar. Se eu fizer isso, vou
sentir que estou a trair o Carlos.

O Lino suspira. Retira um papel do bolso dos seus calcões.

LINO
Sem problemas, mas se mudares de
ideia, toma o meu número, rainha.

A Susana recebe o papel e o Lino afasta-se dela dançado kuduro


enquanto anda de patins e pisca o olho à Susana. A Susana sorri
para ele e sai de cena.

Vê-se o Mauro do outro lado da estrada, comendo hambúrguer,


andando em afastamento da rulote amarela, vermelha e preta,
olhando para o Lino e para a Susana com expressão zangada.

A Paula e a Gisela estão a frente da rulote, dançando kuduro.

INT. CASA DA MARIA ISABEL – QUINTAL – DIA

O Carlos abre o portão.

CARLOS
(admirado)
Fugiste de casa?!

A Susana entra, saindo da rua.

SUSANA
(sorrindo, animada)
Não, lhe descarreguei toda a
raiva que ele anda a me dar pra
ele saber dos abusos e sai!

CARLOS
(sério)
É melhor você voltar pra lá
Vamos evitar problemas. Pai é
pai…

SUSANA
Mas…

CARLOS
(autoritário)
Volta pra casa, Susana! E não
21

voltaremos a dançar novamente.

SUSANA
O quê?! E o concurso, Carlos? Faltam
três dias para…

CARLOS
Esquece o concurso, miúda. Vou
participar com outra rapariga.

SUSANA
(zangada)
Qual rapariga? Assim já é Paula, né?
Vais me trocar por ela? O que é que
ela tem que eu não tenho? O que é
que ela vai te dar que eu não posso
te dar?

CARLOS
(confuso)
Ainda estamos a falar de dança aqui?

SUSANA
(exaltada)
Eu sabia! É mesmo com ela que vais me
trocar. Vocês estão sempre a sorrir
um para o outro…

CARLOS
Mas estás então a falar d…

A Susana sai batendo o portão furiosamente. O Carlos fica com


o olhar espantado, olhando para o portão.

EXT. RUA À FRENTE DA CASA DA MARIA ISABEL – DIA

A Susana entra, saindo da casa da Maria Isabel, com expressão


facial de zanga. Olha para a rulote amarela, vermelha e preta
e vê a Paula e a Gisela dançando kuduro com os jovens.

Olha com ódio para a Paula. Retira o telemóvel e a pequena


folha que o Lino lhe deu de um dos bolsos dos seus calções.
Começa a discar algo no visor enquanto olha para a folha.

Leva o telemóvel à orelha.

SUSANA
(séria)
Vou ser do teu grupo. Esquece as
aulas de dança. Não preciso delas.
Nunca precisei. Temos de ganhar
esse concurso.

A Susana anda com expressão furiosa em aproximação da Paula.


Pega-a pelo braço e puxa-a para si.

PAULA
Ai!
22

SUSANA
(zangada)
Então eu te peço para me ajudares
a ficar com ele, e pelas costas
me trais? Se também lhe amas,
por que é que não me falaste, Paula?

PAULA
(confusa)
Não sei se estás a falar de quê.

SUSANA
E ainda estás armada em cínica,
falsa?

A Paula e a Gisela olham com expressão confusa para a Susana.

SUSANA
Sabes muito bem que estou
apaixonada por ele, mas não
tenho coragem de lhe dizer,
por isso é que criei a ideia
de tu e a Gisela rirem de mim
como se eu não soubesse dançar
na sala.

A Gisela coloca-se entre a Paula e a Susana, retirando a mão


da Susana do braço da Paula.

GISELA
(ameaçadora)
Xe! E assim estás a vir cheia de
atitude atacar a outra porquê?
Estás armada em escandalosa do
bairro?

A Susana intenta pegar novamente no braço da Paula, mas a Gisela


empurra-a.

GISELA
(ameaçadora)
Se é de se comportar mal, continua…

A Gisela levanta uma cadeira branca de plástico com uma das


mãos, olhando de forma ameaçadora para a Susana.

GISELA
…vais cair com cadeira.

PAULA
Deixa, Gisela…

GISELA
Deixo o quê, prima? Deixo nada!
Vais deixar essa mimada te falar
assim? Se ela tá a pensar que
23

dinheiro do pai dela lhe da o


direito de ser a Njinga Mbandi
dessa rua, tá mal-enganada!

SUSANA
(triste)
Sou nova neste bairro. Ninguém me
conhece bem. Pensei que vocês
fossem minhas amigas…

GISELA
(cínica)
Ah! Agora vais simular comportamento
de vítima?

SUSANA
Todos tiram conclusões precipitadas
de mim, principalmente por causa do
meu pai…

A Paula e a Gisela entreolham-se. A Paula suspira. A Gisela


pousa a cadeira sobre o chão, enquanto a Paula pousa a mão
sobre o ombro da Susana.

PAULA
(complacente)
Mboa, estas só a se borrar sozinha.
Quem te disse que eu estou
interessada nele? Se estás a falar
da hora em que ele me piscou o olho,
eu estava a lhe dar sangue para ele
falar contigo, porque ele estava a
me dizer que também gosta de ti…

SUSANA
(revoltada)
Se gosta de mim, não faz nada para
mostrar! Também estou farta disso
tudo, estou cansada! Quero a minha mãe!
Aqui ninguém me entende!

A Susana sai correndo.

DISSOLVE TO:

EXT. RUA - DIA

O Jorge e a Domingas estão dentro do seu carro, sentados no


banco de trás. O Motorista está a conduzir.

O motorista olha à frente de si e vê uma LINDA MULHER, de 25


anos, que anda de costas voltadas para ele.

Ele observa o lindo e robusto corpo dela por instantes. Aproxima


o carro dela e vê que ela está grávida, suando. Ele intenta
avançar o carro, pisando no acelerador.

LINDA MULHER
24

(aflita)
Senhor, podes me dar boleia. Por favor,
não estou a me sentir bem.

JORGE
Dá boleia a ela, rapaz.

O motorista suspira. Retira o pé do acelerador e para o carro.


Sorri por cavalheirismo e abre a porta. Ela entra para o carro
e senta-se.

LINDA MULHER
(para o Jorge)
Muito obrigada, senhor.

JORGE
De nada. Acho que é o meu dev…

LINDA MULHER
(gritando)
Ai! Ai! Ai!

JORGE E DOMINGAS
(assustado)
O que foi?

A linda mulher coloca a mão em baixo da barriga e quando as


retira, ela, o Jorge, a Domingas e o motorista veem que estão
molhadas.

INT. HOSPITAL – SALA DE ESPERA 1 - DIA

O Jorge e a Domingas estão sentados com expressão facial de


preocupação. O DOUTOR, de 50 anos, anda em aproximação deles.

DOUTOR
(animado, para o Jorge)
Parabéns! Ela já teve um rapaz
e parece-se muito contigo.

JORGE
(respeitoso)
Não! Está equivocado, senhor
doutor. Não sou o marido dela,
mas ainda bem que ela está bem.
Agora já posso ir-me embora.

DOUTOR
Ela confirmou que tu és o marido.

JORGE
Já disse que não sou marido dela. E
25

tenho mais que fazer…

O Jorge e a Domingas começam a andar em afastamento do doutor.

DOUTOR
Ela disse que a sua reação seria
exactamente essa, por isso…

O Jorge e a Domingas olham para frente e vê homens e mulheres


fardados entrando, dando em aproximação deles com expressão
facial ameaçadora.

DOUTOR
Já chamamos a polícia e a OMA.

JORGE
(admirado)
O quê?! Mas eu não sou mesmo pai desta
criança. Estão a cometer um enorme
engano.

DOMINGAS
Esperem. Isso é fácil de ser resolvido:
Façam um teste de DNA.

DOUTOR
Conforme a senhora quiser…

INT. HOSPITAL – SALA DE ESPERA 2 - DIA

O doutor entra, andando em aproximação do Jorge e da Domingas


que estão de pé, ladeados por homens e mulheres fardados.

DOUTOR
(animado)
Tens razão, não és o pai, porque
tu não fazes filhos, é impossível!
Podes ir pra casa, meu caro.

O Jorge suspira de alívio e começa a andar em afastamento de


todos com alegria.

JORGE

Espera. E assim a Susana é filha de quem? Fala,


Domingas! Ela e filha de quem?

DOMINGAS
Do motorista…

JORGE
O quê?!
26

A MÃE, de 70 anos, entra, chorando, com os dois IRMÃOS, de 45


e 47 anos.

MÃE
(chorando)
Wawe! Wawe, ngana zambi! Kokolo
dyame. Monani wafu, ngana. Monami.

JORGE
O que se passa?

MÃE
O teu pai acaba de morrer!

JORGE
(aturdido)
O quê?! Meu Deus!
(para os irmãos)
O que é que vamos fazer?

IRMÃOS
(zangados)
Sai daqui, Jorge! Esse assunto é
de família!

JORGE
(para a mãe, aturdido)
Como assim?

MÃE
Ele não era o teu pai!

INT. CASA DO JORGE – QUARTO DO CASAL - NOITE

O Jorge, deitado sobre a cama, abre os olhos, assustado. Senta-


se. Respira profundamente por algumas vezes. Passa a mão sobre
o rosto.
JORGE
(aliviado)
Graças a Deus! Foi tudo um sonho,
como das outras mil vezes, mas
a Susana tem razão. Tenho insónia
há seis meses, e quando consigo
dormir, sonho coisas estranhas,
horríveis. Isso não pode continuar
assim. Tenho que procurar ajuda.

INT. CASA DO JORGE – CORREDOR DOS QUARTOS – NOITE


27

A Susana esta de pé, trajada de pijama, com a orelha à porta


do quarto do Jorge. Sorri, olha para cima, juntando as mãos e
sai, entrando para o seu quarto.

INT. COLÉGIO – SALA DE AULAS - DIA

O Mauro está a andar em aproximação do Carlos que está sentado,


mexendo no visor do telemóvel.

MAURO
(zangado)
Kalili, a Susana está a ter aulas
de dança com o Lino.

O Carlos levanta-se, espantado, e quase deixa cair o telemóvel.

CARLOS
(admirado)
O quê? Estás a inventar!

O Mauro apanha o telemóvel do Carlos que está quase a cair e


entrega-o ao Carlos que o recebe.

MAURO
Tô tá dizer! E, na verdade,
ela sempre soube dançar…

CARLOS
(admirado)
O quê? Como…?

MAURO
…só fingiu que não sabia pra
roubar a nossa coreografia.

O Carlos faz expressão de espanto, depois de fúria. Suspira.

CARLOS
(triste)
Como é que eu fui tão burro
ao ponto de acreditar na cara de
sonsa daquela miúda?

MAURO
O kumbu te cegou, mô dred.
Também tens muita birita. Se ouvisses
os meus conselhos, não estaríamos
nesta situação.

O Carlos olha com expressão zangada para o Mauro. O Mauro sorri.


O Carlos senta-se. Eleva as mãos à cabeça que fica abaixada.

CARLOS
Então só há uma solução: vamos
trocar toda a coreografia.

MAURO
(espantado)
28

Estás maluco! Só faltam dois dias…

A Susana entra com o Lino sorrindo. Olha para o Carlos e para


de sorrir.

CARLOS
(olhando para a Susana)
Não faz mal. Se calhar até foi
bom termos uma Judas entre nós,
assim poderemos melhorar muito o
nosso esquema.

A Susana engole em seco. Intenta andar em aproximação do Carlos,


mas o Lino puxa-a para si. Ela solta-se da mão do Lino, mas o
PROFESSOR, de 38 anos, entra.

PROFESSOR
(animado)
Bom dia, alunos!

TURMA
(animados)
Bom dia, senhor professor!

A turma senta-se. A Susana suspira e senta-se na mesma carteira


que o Lino, enquanto o Carlos olha para ela com desprezo.

INT. COLÉGIO - CORREDOR À FRENTE DA SALA DO DIRECTOR - DIA

Alguns alunos andam indo e vindo. À frente da porta está escrita


a palavra DIRECTORIA.

INT. COLÉGIO – SALA DO DIRECTOR – DIA

O Lino está sentado à frente do DIRECTOR, de 40 anos, que também


está sentado.

LINO
(animado)
Que tal os pais dos alunos
participarem também do concurso?

DIRECTOR
(sério)
Já é tarde. Faltam só dois dias.

LINO
Eles que se adaptem! Poderia até
chamar a televisão e, em vez de ser
só um concurso de dança, pode-se
colocar também o teatro e a recitação
de poema…

DIRECTOR
(autoritário)
Já não vai a tempo, Lino. Esquece
essa ideia e vai assistir às tuas
aulas. Já me convenceste a criar
29

este concurso de dança, coisa que


o dono do colégio não gostou nada,
agora queres expandi-lo? Queres que
me despeçam? Ou achas que vão ser as
tuas ideias a sustentar a casa e os
carros que temos? As tuas ideias pagam
viagens e seguro?

LINO
(aliciador)
Pai, pensa bem. O nosso colégio e
conhecido por formar algumas da
pessoas mais intelectuais e criativas
desta cidade. Se abrangermos outras
formas de expressão criativa, faremos
jus à nossa reputação e…

DIRECTOR
(convencido)
…isso faria com que mais pessoas
conhecessem o nosso colégio. Mais dinheiro,
mais financiamento. Boa ideia, rapaz!
Mas vamos adiar o concurso para daqui
há um mês.

LINO
(animado)
Ok, pai! Tu é que mandas.

EXT. RUA À FRENTE DO COLÉGIO – DIA

Muitos jovens e crianças entram e saem do colégio, sorrindo e


conversando.

O Carlos está de costas voltadas para a câmara, mexendo nos


botões do ATM. Retira o seu cartão multicaixa e uma pequena
folha do ATM. Sorri ao olhar para a folha.

Começa a andar em afastamento do ATM, sorrindo. O RAPAZ, de 8


anos, trajado com o uniforme do colégio, anda ao lado do Carlos
e os dois chocam os punhos um do outro com alegria.

O rapaz anda em afastamento do Carlos, dando toques de kuduru.


Um carro para à frente do Carlos. Ele vê que é o motorista. O
motorista faz-lhe um sinal para que ele entre para o carro.

O Carlos faz expressão facial de susto. Suspira. Abre a porta


do pendura e entra. Vê que o Jorge está sentado no banco de
trás, segurando um cartão VISA.

JORGE
(sério)
Toma este cartão, rapaz. Gasta
tudo que esta aí e depois me
30

devolve.

CARLOS
(confuso)
Isso é para quê?

JORGE
(sério)
Para deixares de ter aulas com
a minha filha e de fingires
de que não estás interessado no
meu dinheiro.

O Carlos faz expressão facial de zanga.

JORGE
Vocês vivem em mundos muito
diferentes. Não ia dar certo. Ela
está habituada a caprichos que o
teu bolso jamais poderá realizar.

CARLOS
(sério)
Está enganado, senhor Jorge. Ela
já não anda a ter aulas de dança
comigo.

O Carlos retira um multicaixa da sua mochila e entrega-o ao


Jorge.

JORGE
(admirado)
Para que é isso?

CARLOS
Para o senhor deixar a sua filha
ser feliz do jeito que ela escolheu
e deixares de julgar as pessoas
pelo dinheiro. Gasta tudo o que tem
aqui e depois me devolve.

JORGE
(exaltado)
Achas que preciso do teu dinheiro,
rapaz?

CARLOS
Assim como eu tenho a certeza
absoluta que não preciso do seu. Com
licença.
31

O Carlos abre a porta e sai do carro. O motorista sorri,


enquanto apanha uma pequena folha perto do banco do pendura. O
Jorge suspira, furioso.

MOTORISTA
Quanto tinha no cartão que o
chefe queria dar a ele?

JORGE
Um milhão de Kwanzas.

MOTORISTA
Olha aqui o recibo do banco que ele
deixou cair. No dele tinha um milhão e
quinhentos.

O Jorge faz uma expressão de susto. Olha para o Carlos que está
a andar calmamente em afastamento do carro e em aproximação da
Maria Isabel. O Jorge sorri.

INT. COLÉGIO – SALA DE REUNIÕES – DIA

O Director está sentado à frente do DONO DO COLÉGIO. Vê-se


apenas os braços cruzados do Dono do Colégio.

DONO DO COLÉGIO
(sério)
Aqui são formados intelectuais, não
dançarinos. Por isso, vamos cancelar o
concurso!

DIRECTOR
Assim perderíamos receitas. Em vez
de o cancelarmos, vamos estendê-lo
para outras formas de manifestação
culturais. Mais pessoas estariam
interessadas, não só jovens,
como mais velhos. Atingiríamos
várias camadas de uma vez só…
várias contas bancárias de uma vez
só.

O Dono do Colégio suspira.

DIRECTOR
Os pais dos alunos também deverão
participar do concurso, pagando assim
uma propina de ingresso tanto para
eles como para os seus filhos. Só isso
já nos renderá um bom dinheiro.
Chamaremos a televisão e a radio
32

para cobrirem o concurso. Será


sensacional!

DONO DO COLÉGIO
E como faríamos para convencer os pais
a gastarem tanto dinheiro?

DIRECTOR
Daríamos um premio de uma exorbitante
quantia ao vencedor, que, com certeza,
sairia do dinheiro das propinas e não
dos cofres do colégio, e mais um premio
surpresa que o vencedor só saberia no
mesmo dia.

DONO DO COLEGIO
Tens noção de que eu e tu temos filhos
aqui, não? Então, para darmos o exemplo,
nós os dois participaremos também do
concurso.

O Director leva a mão à boca, contrariado. Coça levemente o


cimo da sua cabeça que e careca, olha para o Dono do Colégio e
abana a cabeça positivamente.

DONO DO COLÉGIO
Ok. Pode ser, mas se der por torto…

O Dono do Colégio começa a andar em aproximação da porta. Vê-


se que o Dono do Colégio e o Jorge.

JORGE
…toda a perda de lucros será
descontada do teu ordenado
anualmente.

O director engole em seco. O Jorge sai e fecha a porta. O


Director volta a coçar o cimo da cabeça.

INT. CASA DO JORGE – SALA DE ESTAR - DIA

Ouve-se a campainha a tocar várias vezes.

JORGE (O. C.)


(zangado)
Mas quem é esse que não pode
esperar?

O Jorge aproxima-se da porta e abre-a. Vê-se a Maria Isabel


parada à porta com expressão facial de zanga.

MARIA ISABEL
(rabugenta)
33

Achas que és o único pai no


mundo? Só tu é que tens filha,
hã? Só tu é que tens que
proteger a tua filha das
outras pessoas? Nós não temos que
proteger os nossos filhos da tua
filha? Fizeste a tua filha com
diamante ou com ouro? Para de se
meter na vida do meu filho. Se eu
ouvir que tentaste lhe oferecer
mais alguma coisa, não vão ser só
as minhas palavras que vais ouvir.
Com licença!

A Maria Isabel puxa a porta e fecha-a com violência a frente


de si mesma. O Jorge faz expressão facial de espanto.

JORGE
(murmurando)
Não admira que seja mãe solteira…

FADE TO BLACK.

INT. CASA DA MARIA ISABEL – QUINTAL - DIA

O Mauro, a Paula e a Gisela, com expressão facial de empolgação,


estão a andar em aproximação do Carlos, que está a mexer no
visor do seu telemóvel com expressão facial zangada.

A Maria Isabel esta de cócoras, cuidando das plantas.

MAURO
(animado)
Ouviste a dica nova, mô Kalili?
Agora não vai ser só dança! Vou
participar na declamação. Vou
recitar o meu famoso poema Para
Enfeitar Os Teus Cabelos.

PAULA
(sorrindo)
Esse poema não é teu…

MAURO
Invejosa! Só porque não te deixei
me roubar o Renúncia Impossível, teu
comportamento ficou esse?

GISELA
(animada, abraçando a
Paula)
Eu vou participar no teatro contigo,
primota!

CARLOS
(zangado)
Vocês não estão a ver que isso tudo
é ideia daquele gajo do Lino? Ele
34

quis desestruturar o nosso grupo, e


conseguiu. Assim quem vai participar
na dança comigo?

MAURO
Estava a ver que nunca mais
perguntavas. Aqui agora é Deus
por todos e cada um por your…

O Mauro recebe o telemóvel das mãos do Carlos, levanta o


aparelho apontando a câmara para o seu próprio rosto e o rosto
dos outros.

MAURO, PAULA E GISELA


(animados)
…selfie!

O Carlos suspira, triste.

MAURO
É mentira, mô Kalili. Viemos te
pedir para nos ajudares com as
nossas cenas. E, com certeza, nos
também vamos ajudar your…

O Mauro levanta novamente o telemóvel apontando a câmara para


o seu próprio rosto e o rosto dos outros.

MAURO, PAULA E GISELA


(animados)
…selfie!

O Carlos sorri. O Mauro, a Paula e a Gisela começam a dançar


kuduru. O Carlos levanta-se, animado, e faz o mesmo.

MARIA ISABEL
Oh! E a Susana não está aqui porquê?

MAURO
A Dalila? Vai estar aqui porquê e pra
quê?

MARIA ISABEL
Vocês insistem em pensar que ela vos
traiu?

CARLOS
Moite, isso está mais que claro…

MARIA ISABEL
Talvez tenha sido um mal-entendido.
Carlos, vai falar com ela.

MAURO
O quê?

CARLOS
Nunca!
35

MAURO
Nem pensar!

A Maria Isabel segura os dred locks do Mauro.

MARIA ISABEL
(para o Carlos, séria)
Como tua mãe, ordeno-te: vai agora!

MAURO
(para o Carlos, austero)
Estás à espera de quê. Vai já!
Essa desobediência estás a ir
buscar aonde?

MARIA ISABEL
(para o Carlos)
Vai! Depois de vocês falarem, seja
qual for o desfecho da vossa
conversa, voltas aqui para ajudar
os teus amigos a escreverem as
peças deles e eu te ajudo com
uma coreografia fenomenal.

O Carlos sorri. A Paula, a Gisela e o Mauro fazem o mesmo.

O Carlos Começa a andar em aproximação do portão. Para e volta-


-se para a Maria Isabel. A Maria Isabel faz sinal para que ele
continue a andar. O Carlos suspira. Abre o portão e sai.

A Paula olha para o telemóvel na mão do Mauro.

PAULA
(para a Gisela, sussurrante)
Eh! Ele esqueceu o telefone. E o pai
dela que é bem mau?

A Gisela faz expressão facial de pânico.

MAURO
Tens ideia que assim vais ter neto
cedo, né, kota Isabel?

MARIA ISABEL
Vou nada. Ele é responsável. Sabe
que as coisas devem ser feitas cada
uma ao seu tempo.

PAULA
Kota Maria, e se o pai dela fizer
alguma coisa ao Carlos?

MARIA ISABEL
Ah! Aí eu vou resolver o assunto by
my…
36

A Maria Isabel recebe o telemóvel das mãos do Mauro, levanta o


aparelho apontando a câmara para o seu próprio rosto e o rosto
dos outros.

MARIA ISABEL, MAURO, PAULA E GISELA


(animados)
…selfie!

INT. CASA DO JORGE – SALA DE ESTAR – DIA

A Susana abre a porta. Vê-se o Carlos de pé a porta.

CARLOS
(constrangido, tentando
ser engraçado)
Hoje não é o teu pai que veio abrir
a porta?

SUSANA
(cínica)
Queres que eu o chame? Pa…

O Carlos interrompe a Susana, colocando-lhe o indicador sobre


os lábios.

CARLOS
(em pânico)
Não! Vim falar contigo. Posso entrar?

SUSANA
Não!

O Carlos engole em seco.

SUSANA
Vamos sair.

A Susana sai e fecha a porá atras de si.

EXT. RUA – NOITE

O Carlos e a Susana estão sentados num dos bancos corridos.


Sobre alguns dos outros bancos, há outros casais sentados,
conversando.

CARLOS
(ansioso)
A minha mãe sempre foi muito
batalhadora. Sempre fez tudo
por mim, apesar de não ter
marido.
37

A Susana suspira.

CARLOS
Eu tenho que fazer coisas para
ajuda-lá, então decidi que
tinha de estudar num os
melhores colégios para ter a
oportunidade de ser alguém.

SUSANA
(murmurando)
Não é só quem estuda no colégio
que é alguém…

CARLOS
O Mauro também me ajuda. Os pais
dele nunca estão em casa por
causa das viagens de negócios.
Ele é meu fã e gosta de fazer
tudo o que faço e viver como eu
vivo…

A Susana coça a sobrancelha com impaciência.

CARLOS
Ele diz que não quer depender do
dinheiro dos pais, mas, às vezes,
tira alguma massa para me ajudar.
Eu também tenho os meus bisnos e…

SUSANA
(impaciente)
Vieste me procurar para falar da
tua mãe e do teu melhor amigo?

CARLOS
Não! Claro que não!

O Carlos pigarreia.

CARLOS
Vim saber…

O Carlos tosse.

CARLOS
Vim saber por que é que fingiste
não saber dançar para eu te dar
aulas.

SUSANA
38

Tu sabes a razão…

CARLOS
Mas gostaria de ouvi-la de ti…

SUSANA
Porque, porque…

A Susana engole em seco. Suspira.

SUSANA
Porque estou apaixonada por alguém
e gostaria de passar mais tempo com
essa pessoa.

CARLOS
E porque é que estás apaixonada
por este alguém?

SUSANA
Porque é uma pessoa inteligente,
quase bonita, altruísta, mais
convencido que prestativo, mas…

o Carlos sorri, interrompendo-a.

CARLOS
(encantado)
Eu também estou apaixonada por…
apaixonado, eu também estou
apaixonado por alguém, mas
ainda não temos idade suficiente
para namorar.

O Carlos pousa a sua mão sobre a mão da Susana. Ela sorri,


encabulada.

CARLOS
(apaixonado)
Mas espero, sinceramente, com
todas as forças do meu coração,
espero que, quando tivermos
idade suficiente, ela case
comigo.

O Carlos e a Susana abraçam-se.

EXT. RUA À FRENTE DO COLÉGIO – DIA

Um mês depois…
39

Há vários carros luxuosos estacionados. Algumas pessoas adultas


e jovens saem de alguns dos carros e entram para o colégio.

INT. COLÉGIO – GINÁSIO – DIA

Várias pessoas adultas e jovens estão sentadas, enquanto outras


entram, andando em aproximação das cadeiras vagas. No palco,
entram a PATRÍCIA FARIA e o CALADO SHOW.

CALADO SHOW
(animado)
Aberturas!

PATRÍCIA FARIA
(animada)
Chegou a hora que todos
esperávamos!

CALADO SHOW
(animado)
Finalmente começará o nosso
concurso: Kusole!

PATRÍCIA FARIA
Nele, os nossos concorrentes
poderão demonstrar até que
ponto o seu amor, a sua paixão
pela arte os levou a criar peças
maravilhosas…

CALADO SHOW
…com música, teatro e dança!

PATRÍCIA FARIA
E o nosso primeiro concorrente é…

CALADO SHOW
Mauro Muhongo e a sua mãe,
Cristina, que farão uma
representação do poema Para
Enfeitar Os Seus Cabelos,
de Agostinho Neto.

O Calado Show e a Patrícia Faria saem do Palco e vê-se o Mauro


sentado, segurando o seu telemóvel, de costas voltadas para a
câmara, olhando para o céu, sentindo a brisa fria, vestindo
calças e uma camisa parcialmente desabotoada. Está a usar óculos
e um bigode, e os seus dred locks estão apanhados para trás,
num pucho.

Há um copo de vazio sobre a mesa atrás dele, uma rosa e uma


taça com cubos de gelo. Há também uma garrafa de whisky, uma
garrafa de vinho abertas e mais duas garrafas de outras bebidas
sobre a mesa.

Numa das cadeiras à volta da mesa, está o seu casaco. Ele olha
para o telemóvel e vê a fotografia de uma mulher e ele,
felizes.
40

O Mauro suspira, vira-se para a câmara com expressão triste,


pega na garrafa de vinho e começa a servi-lo no copo.

MAURO
No nosso sangue...

Ele para de servir o vinho. Pousa a garrafa e segura a flor.

MAURO (CONT’D)
...crescem rosas e no amor
e na saudade;

Ele passa a rosa sobre os cubos de gelo com expressão zangada.

MAURO (CONT’D)
As rosas...

MONTAGEM: A rosa ganha um tom murcho nas pétalas que tocaram


no cubos de gelo.

MAURO (CONT’D)
...que murcham sobre o gelo da
distância

Ele olha para o chão e vê duas rosas. Levanta-se e começa a


andar na direcção delas.

MAURO (CONT’D)
E neste dia, crescerão sempre
rosas.

Ele suspira e passa a mão sobre a cabeça em desespero. Apanha


as duas rosas com a mão esquerda e pousa a mão direita sobre
o peito.

MAURO (CONT’D)
(zangado)
Se os nossos corações se
estrangulam nas grades onde
morre a liberdade e se fatigam

Ele volta-se e vê que há três rosas sobre a mesa. Faz uma


expressão de desconfiança. Olha para a esquerda e para a
direita, como se procurasse alguém e começa a andar em
aproximação da mesa.

MAURO (CONT’D)
Neste dia crescem sempre rosas

Ele pousa as três rosas em sua mão junto das três rosas sobre
a mesa. Faz um gesto como se sentisse frio e olha para o casaco
sobre a cadeira. Começa a andar em aproximação do casaco.

MAURO (CONT’D)
E se o inverno é longo, é
dentro de nós que mergulham as
raízes pelas quais os homens se
41

alimentam

Passa a mão sobre o casaco e vê que há uma rosa nos bolsos do


casaco. Sorri e olha ao seu redor.

MAURO (CONT’D)
Se o inverno é longo e as vozes
se cansam é porque o nosso caminho
é único - o amor

O Mauro retira a rosa do bolso do casaco.

MAURO (CONT’D)
Neste dia crescem sempre rosas

Olha debaixo da mesa como se procurasse alguém.

MAURO (CONT’D)
(triste)
Irei buscá-las às planícies mais
longínquas, às montanhas menos
acessíveis...

Levanta-se e olha ao seu redor. O Mauro suspira de tristeza.

MAURO (CONT’D)
(triste e zangado)
Aos abismos, à amizade e à distância
que nos une.

O Mauro olha para a rosa em sua mão. Atrás dele, a CRISTINA,


de 45 anos, põe-lhe a mão sobre o ombro. Ele vira-se em
expressão de susto e felicidade.

MAURO (CONT’D)
(feliz e apaixonado)
Neste dia crescerão sempre rosas,
rosas muitas, rosas sobre o nosso
amor...

Coloca a rosa sobre os cabelos dela.

MAURO (CONT’D)
...para enfeitar os teus cabelos

A Cristina beija a bochecha do Mauro à medida que a imagem


escurece.

Ouve-se várias palmas a partir da plateia, enquanto o Calado


Show e a Patrícia Faria entram e o Mauro e a Cristina saem do
palco.
CALADO SHOW
(animado)
E isso já começou a aquecer!

PATRÍCIA FARIA
42

(animada)
Temos de lembrar a nossa plateia
de que o vencedor sairá daqui com
um cheque de três milhões de Kwanzas,
um carro, as chaves de um
apartamento numa das centralidades
e um prêmio surpresa.

PATRÍCIA FARIA
E o nosso segundo concorrente é…

CALADO SHOW
O grupo de Paula e Gisela,
acompanhado dos seus pais que nos
apresentarão uma peça insólita
sobre o preconceito, trazendo até
nós Njinga Mbandi, Bula Matadi
e muitos outros heróis nacionais.

O Calado Show e a Patrícia Faria saem do Palco e vê-se a Paula


entrando para o palco, à direita, trajada de roupas africanas.

PAULA
Algures na imensidão do Universo,
escondido no brilho estelar da Via
Láctea, localizado na crosta da
Terra, um território secreto
permitia-se ser o anfitrião de
alguns heróis julgados mortos pela
maioria.

A Gisela entra para o palco, à esquerda, trajada de roupas


africanas e com penteado africano.

GISELA
O lugar tinha o nome de Luya e
ficava perto do rio Lwembe, na
Lunda-Norte. Ladeado por cubatas e
algumas palmeiras, um enorme grupo de
pessoas estava em pé dispostas de
forma a criar um círculo. Só os
mais privilegiados estavam sentados.
Eles formavam um género de arena.
Estavam aí para assistir a um jogo.
Todas as tribos estavam reunidas.

PAULA
Na arena estavam três pessoas
imponentes: dois homens e uma mulher.

Vê-se o NGOLA KILWANJI (representado pelo Director) )atrás delas, com


apenas os quadris cobertos e o resto do corpo nu.

PAULA
Um dos homens era Ngola
Kiluanji, rei do Ndongo, um autêntico
gigante dotado de uma força física
fora do comum.
43

Vê-se o MANDUME atrás delas, com apenas os quadris cobertos e o resto do


corpo nu.

GISELA
O outro era Mandume, rei dos
kwanhamas, um grande guerrilheiro
cheio de inteligência.

Vê-se a Njinga Mbandi atrás delas, com roupas africanas que lhe cobre o
busto até a parte superior das coxas.

GISELA
A mulher era Nzinga Mbandi, filha
de Ngola Kilwanji, uma autêntica
prova que os pacíficos também usam a
força para atingir os seus objectivos
mais nobres. Os três estavam ansiosos.

PAULA
Dentro de momentos seriam
soltos quatro animais perigosos:

Vê-se a imagem de dois javalis e dois bodes selvagens no grande ecrã


que esta no palco.

PAULA
…dois javalis e dois bodes
selvagens. As regras eram simples:
deviam apenas paralisar os animais,
a morte não era permitida. E não
podiam ter nada nas mãos, excepto
uma corda. A multidão ficou calada.
As grades de bambu foram abertas.
As bestas estavam livres.

GISELA
Espuma – havia espuma branca nas suas
bocas. O olhar era demoníaco. Três
das feras galopavam ferozmente na
direcção deles. A outra ficou a
rondá-los, como se quisesse achar um
ponto fraco.

PAULA
Com força extremamente bruta, os
dois homens domaram os javalis e a
mulher deteve um dos bodes pelos
chifres. Mas, no mesmo momento, a
certa distância, o outro bode
preparava-se para atacá-la pelas
costas. As mãos dos dois homens
estavam ocupadas em amarrar os dois
suínos. As mãos dela tentavam
proteger-se dos cornos afiados do
caprino. Se decidisse lutar com um, o
outro atacá-la-ia. O mesmo se
daria se os homens largassem os
javalis – com certeza seriam
atacados, não por uma, mas pelas
quatro feras. Os homens
apressavam-se em amarrar os javalis.

GISELA
44

Ela tentava derrubar o animal em suas


mãos. O outro bode continuava a galopar
na direcção dela. Já estava muito
perto. Subitamente…

O Lino aparece no meio do palco, maquilhado de albino, à frente do Ngola


Kilwanji, do Bula Matadi e da Njinga Mbandi, trajada de panos e capuz
pretos.

GISELA
…aparecendo de forma misteriosa, um
Jovem albino apareceu no meio da arena,
bem à frente do bode. O olhar dela
era incendiado. O bode sentiu-se
intimidado. O animal ficou
parado, paralisado.

PAULA
Os dois outros homens correram até
ao caprino e o amarraram.

A imagem dos bodes e dos javalis no ecrã é desligada.

PAULA
A multidão aplaudia de forma
eufórica. Antes que continuassem com
a diversão, a menina fez um sinal,
indicado que precisava da atenção
deles. O assunto era sério. Quatro
homens e uma mulher levantaram-se.
A multidão abriu caminho para
que eles pudessem passar.

O EKWIKWI II, a KIMPA VITA, o MUTU YA KEVELA e o NGUNGUNHANE,


entram para o palco.

KIMPA VITA
(para o Lino,
fazendo-lhe uma vénia)
O que te trás aqui?

LINO
Kimpa Vita, ou devo dizer Dona
Beatriz? Sei que és muito ligada
aos espíritos. Será interessante
conversar contigo. O que tenho para
vos falar é muito importante…

EKWIKWI II
(para o Lino, fazendo-lhe
uma vénia)
Não é melhor que nos sentemos?

LINO
O assunto é sério demais para que nos
sintamos à vontade. És Ekwikwi II,
rei do Baylundu. Admiro muito o que
fizeste. Precisamos de homens como tu.

EKUKUI II
Só faço o que é necessário…

LINO
45

(patinando lentamente à
volta deles)
As vossas lutas… Porque que lutaram?
Qual foi a razão das vossas lutas?
Podes dizer-me, Mutu ya Kevela?

MUTU YA KEVELA
Eu lutei contra o trabalho forçado.
Nunca reconheci a autoridade
portuguesa como autoridade. Ninguém
que escraviza merece submissão.

LINO
E tu, aristocrata Bula Matadi?
Porque lutaste?

BULA MATADI
Lutei contra a exploração e a
dominação portuguesa.

LINO
Ngungunhane, ou Reinaldo Frederico
Gungunhana, «o leão de Gaza», homem
de Moçambique… Porque lutaste?

NGUNGUNHANE
Pela liberdade, pela expulsão dos
portugueses no nosso território.

LINO
(para Njinga Mbandi)
Em resumo, todos vocês lutaram para
sermos homens livres, verdadeiros
homens livres. O que me trás aqui
é a realidade de que, infelizmente,
as vossas lutas foram em vão…

MANDUME
(parcialmente exaltado)
Como assim?

KIMPA VITA
(com o olhar em transe)
O nosso povo continua preso. Eles
continuam a ser escravizados…

NGOLA KILWANJI
(para Kimpa Vita)
Não pode ser! Os portugueses foram
expulsos daqui há décadas. Estamos
a evoluir… O nosso povo está a
evoluir. O que vês é falso,
feiticeira.

KIMPA VITA
Parte do que dizes é verdadeiro,
mas não me chames de feiticeira. É o
que vejo. As nossas lutas não nos
libertaram. Somos escravos…
46

(cruza os pulsos com os


punhos cerrados)
Continuamos escravos…

EKWIKWI II
(para o Lino)
Como é isso possível? Mesmo quando
éramos escravos, já éramos mais
livres que os colonos aqui. Estávamos
em todos os sítios: nos campos, nas
casas deles, nos caminhos-de-ferro.
Eles temiam-nos… Viviam com medo de
nós. O opressor nunca é mais livre
que o oprimido. Ele tem de trabalhar
muito em prol da opressão deste.
Tem de escravizar-se… Tem de passar
a noite a pensar em como usar a
força do oprimido para proveito
próprio. Tem de estar sempre
alerta. Uma revolução apavora-o.
Nunca está em paz. Dia e noite
é perseguido pelos problemas que
causam maior ansiedade ao ser humano.
O escravo tem apenas uma preocupação:
liberdade, logo, é mais livre. Nós
nos vimos livres dos colonos, agora
somos mais livres do quando éramos
escravos.

LINO
Sábias palavras. O que me dirás
quando souberes que o teu povo luta
contra si mesmo? O teu povo livre
é preconceituoso, bêbado, imoral,
assassino, corrupto… O teu povo, o
teu povo é escravo, detentor da pior
escravidão possível. Muitos deles me
odeiam…

MANDUME
(arrogante)
Porquê? És como os colonos?

LINO
Não. Apenas por causa da minha pele.
A minha pele é um problema para
a maioria deles. Na verdade, para a
maioria das pessoas neste planeta.
Quantos heróis albinos aparecem
nos livros? Nenhum… Quantos albinos
lutaram ao vosso lado? Não se fala
sobre isso… Vais a Internet e só lês
sobre porque temos essa coloração.
Não há nenhuma figura de destaque…
Será que não lutámos? Até nas bandas
desenhadas… há heróis cegos, coxos…
nenhum albino. Se houver algum, é
uma excepção, e uma excepção
pouco conhecida ou mencionada.
Somos discriminados, excluídos… E não
são só os albinos, qualquer pessoa que
seja diferente da área em que esteja.
47

O teu povo… O vosso povo é


disfuncional… O mundo é disfuncional.

KIMPA VITA
(dando um gole da bebida
na caneca na sua mão)
Entendo muito bem os teus sentimentos.
Fui queimada viva com o meu filho
por causa do preconceito…

NGOLA KILWANJI
Aquele Manuel Cerveira Pereira
prendeu-me e mandou que eu fosse
decapitado na Fortaleza de São Miguel
para mostrar o seu poder. O orgulho
também é um veneno… Mesmo se
tentarmos mudar essas pessoas, talvez
elas não aceitem por simples soberba.

NGOLA MBANDI
Embora os meus irmãos Kambi e Fuxi
não tivessem chegado a extremos,
Ngola Mbandi, o meu outro… irmão…
mostrou-me como a ganância pode mudar
as pessoas. Ele recebeu-me o trono…
A ganância é peçonha.

LINO
(para Njinga Mbandi)
Muito interessante, Ana Sousa.

BULA MATADI
É como fumar, beber, ter muitos homens
ou muitas mulheres. – Não é viver…
é morrer. Mas as pessoas fazem isso
por lhes ser conveniente… ou lhes dar
prazer. Mudar a mente das pessoas está
entre as coisas mais difíceis deste
mundo.

NZINGA MBANDI
(para Njinga Mbandi)
O que propões?

LINO
É esta a razão que me trouxe até
vocês… Vocês têm o poder de mudar
o sistema. Provaram-no… E gostam
de desafios. O que farão? Vão lutar?
(para o Mandume)
Ficar com os braços cruzados?

INT. COLÉGIO – BASTIDORES DO GINÁSIO – DIA

O Mauro está sentado, segurando um dos seus dred locks com uma das mãos
e uma tesoura com a outra. Suspira.

MAURO
(triste)
O que é que um gajo não faz para ajudar
um irmão?
48

Vê-se o Carlos aproximando-se dele com uma máquina de barbear.

BACK TO:

INT. COLÉGIO – BASTIDORES DO GINÁSIO – DIA

A Paula e a Gisela estão no palco.

NGUNGUNHANE
Lutaremos. Detestamos a escravidão.
O preconceito é irmão dela.

MANDUME
As minhas mãos estão ao dispor desta
luta.

EKWIKWI II
Se for preciso a força para mudar a
mente deles... assim será. A
abordagem é uma solução viável.
Farei os possíveis para
convencê-los com lógica irrefutável.

MUTU YA KEVELA
Ninguém se sente bem ao ser discriminado.
Talvez a solução seja lhes fazer
provar um pouco do próprio veneno. Estou
nesta luta.

NGOLA KILWANJI
Os portugueses não me impediram... nem
chegaram a vencer-me. Lutar contra a
mentalidade de meu próprio povo será
difícil, mas não impossível. Lutarei.

KIMPA VITA
O espírito do raciocínio existe em
qualquer humano. Só precisaremos de
evocá-lo com fervor. Eu me
responsabilizarei disso. Lutarei.

BULA MATADI
No passado, consegui mobilizar todo
o meu o povo para obrigar um rei a
expulsar os portugueses com o
intuito de pôr fim às intrigas que
enfraqueciam o reino a que
eu pertencia. Será interessante repetir
esta façanha… Lutarei.

NZINGA MBANDI
É meu dever salvar o meu povo de qualquer
ameaça. Lutarei. E a luta começa agora.
Estamos dispostos a ir contigo. Os
preconceituosos que estejam bem preparados.

Muitas pessoas levantam-se e batem palmas, enquanto o grupo da Paula e


da Gisela sai do palco e o Calado Show e a Patrícia Faria entram.

CALADO SHOW
(animado)
Agora vamos receber o nosso último
49

concorrente!

PATRÍCIA FARIA
(animada)
Carlos e o seu grupo, acompanhado dos
seus pais e dos seus padrinhos.

O Calado Show e a Patrícia Faria saem do palco. O cenário no


palco e feito de várias árvores e montanhas.

O Jorge, trajado de camisa verde e calças vermelhas, segurando


uma máquina fotográfica e a Susana, trajada de blusa amarela,
calças brancas e sapatilhas azuis, que tem uma maçã na mão,
entram.

A Susana começa a comer a maçã. Enquanto come, observa o RAPAZ


que está sentado, triste, com a mão sobre o ventre, trajado de
roupas sujas, de mendigo.

O Carlos e o Mauro, trajados de mendigos que usam óculos,


aproximam-se do rapaz com expressão de pena e consolo.

O rapaz levanta-se com expressão triste e os três começam a


andar juntos.

Param à frente de uma lata de cerveja e olham para a Susana que


está comendo a maçã, olhando para eles, e o Jorge está a tirar
fotografias ao grupo de TRÊS HOMENS DO BATUQUE e as DUAS
BAILARINAS, sendo uma das bailarinas a Maria Isabel, sem se
aperceber da presença dos mendigos.

As fotografias que o Jorge tira aparecem a preto e branco no


grande ecrã do palco. A Susana olha para os mendigos.

O rapaz toca com a mão esquerda no seu próprio ventre e estende


a mão direita na direcção da Susana, indicando que tem fome.

A Susana olha para a maçã, depois olha para o rapaz, sorri e


estende a mão para que o rapaz venha buscar a maçã. O rapaz
sorri e começa a andar em aproximação dela.

O Jorge volta-se, faz uma expressão zangada e de nojo ao ver o


rapaz a aproximar-se, faz uma expressão de reprovação olhando,
para o Jorge.

A Susana fica triste, com uma expressão de quem está


arrependida. O Jorge volta-se e continua a tirar fotografias
ao grupo de 3 percursores e 2 bailarinas.

O rapaz faz uma expressão triste como se fosse chorar e pontapea


a lata com fúria. O Carlos abaixa-se e começa a falar com ele
em tom de consolo.

CARLOS
50

Às casas...

O Carlos toca na relva.

CARLOS (CONT’D)
...às nossas lavras, às praias, aos
nossos campos, havemos de voltar.

RAPAZ
(triste, em tom choroso)
Voltar? Vamos fazer o quê pra voltar?

O Mauro agora está com calças sociais pretas limpas, o resto


das roupas continuam sendo de mendigo.

MAURO
Criar...

RAPAZ
Criar?

O Mauro responde que sim com a cabeça.

MAURO
Criar no espírito...

O Mauro aperta levemente o braço do Carlos.

MAURO (CONT’D)
...criar no músculo...

O Carlos sorri.

MAURO (CONT’D)
...criar no nervo...

O Mauro pousa a mão sobre o ombro do rapaz.

MAURO (CONT’D)
...criar no homem...

O Mauro pega e desfaz uma pequena porção de areia entre os


dedos.

MAURO (CONT’D)
...criar na massa.

RAPAZ1
(desgostoso)
E vamos fazer isso onde? Vamos
vestir o quê?

O Carlos agora está com uma camisa branca limpa, mas o resto
das roupas continuam sendo de mendigo.
51

CARLOS
Às nossas terras vermelhas de café...

O Carlos pega na mão do rapaz e faz ele passar na sua camisa


branca. O rapaz agora está com calças jeans verdes limpas, mas
o resto das roupas continuam de mendigo.

CARLOS (CONT’D)
...brancas de algodão...

O Carlos toca nas calças verdes do rapaz.

CARLOS (CONT’D)
...verdes dos milharais, havemos de
voltar.

RAPAZ
(curioso)
Voltar a criar, né?

O Mauro mostra-lhe o polegar como sim. O Mauro agora está com


uma camisa vermelha limpa. Aponta para uma árvore.

MAURO
Criar, criar sobre a profanação
da floresta...

O Mauro bate levemente contra as suas próprias costas.

MAURO (CONT’D)
Sobre a fortaleza impúdica do
chicote
criar sobre o perfume dos
troncos serrados, criar...

O Mauro toca no rosto do rapaz onde há uma lágrima.

MAURO (CONT’D)
...criar com os olhos secos.

O rapaz olha para a sua camisola de mendigo.

RAPAZ1
(triste)
Essa pobreza só dá pra chorar.

O Carlos agora está com um relógio dourado no pulso, com uma


gravata vermelha, camisa branca e calças sociais limpas. Mostra
o relógio dourado ao rapaz.

CARLOS
Às nossas minas de diamantes, ouro,
cobre, de petróleo...
52

O rapaz sorri para o Carlos e depois olha para o Mauro,


completamente empolgado.

RAPAZ1
(empolgado)
Havemos de voltar a criar...

O Mauro agora está com um casaco preto, camisa vermelha e calças


sociais pretas limpas. Faz um gesto como se batesse com uma
palmatória na própria mão.

MAURO
Criar gargalhadas sobre os escárnios
da palmatória, coragem nas pontas
das botas do roceiro
força no esfrangalhado das portas
violentas.

O Mauro faz um gesto de firmeza com as duas mãos perto da


gravata vermelha do Carlos.

MAURO (CONT’D)
...firmeza no vermelho sangue da
insegurança.

O rapaz agora está com uma camisola amarela limpa e sapatilhas.


O rapaz limpa a lágrima do outro olho.

RAPAZ
(sorrindo e emocionado)
Criar, criar com olhos secos.

O Carlos coloca o rapaz sobre os seus ombros, levanta-se, abre-


-lhe os braços e começam a andar na direcção de uma árvore,
felizes.

CARLOS
À frescura da mulemba, às nossas
tradições, aos ritmos e às fogueiras,
havemos de voltar

RAPAZ
Ritmos? Quais ritmos?

Em sincronia esquematizada, o Carlos e o Mauro dançam começando


com toques de rebita, intercalando com toques de kabetula e
kuduro.

RAPAZ1
(gargalhando)
Sim, voltar, voltar a criar.

O Carlos coloca o rapaz sobre o chão.


53

MAURO
(sorrindo)
Criar estrelas sobre o camartelo
guerreiro, paz sobre o choro das
crianças, paz sobre o suor,
sobre a lágrima do contrato,
paz sobre o ódio, criar.

O Mauro e o rapaz entreolham-se, contentes. O grupo de 3


percursores e as 2 bailarinas aproximam-se deles, batucando e
dançando alegremente com toques sincronizados de sungura e
kwaito.

O Jorge, continuando a tirar fotografias, e a Susana andam em


aproximação deles sorrindo.

Vê-se os pés de uma mulher calçados de sandálias, trajando um


vestido de samakaka justo, mas comprido, com as cores vermelha,
preta, branca e amarela, e os pés de um homem calcados de botas
militares, trajando o uniforme de general, andando em
aproximação de todos.

RAPAZ E MAURO
Criar com os olhos secos.

O grupo de 3 percursores e as 2 bailarinas fazem um semicírculo


a volta do Carlos, do Mauro e do rapaz1, colocando-os no meio.

A Susana tenta entrar para o meio do semi-círculo, mas o Jorge


impede-a. O Carlos começa a dançar e o Mauro olha para ele e
começa a dançar também em toques requintados de sungura e
kabetula.

O Carlos, o Mauro e o rapaz estão de costas voltadas para o


grupo de percursores e as bailarinas.

CARLOS
À marimba e ao quissange, ao
carnaval, havemos de voltar.

Um a um, o grupo de 3 percursores e as 2 bailarinas começam a


afastar-se deles.

RAPAZ
Voltar, sim! Mas, antes, criar.

MAURO
Criar, criar liberdades
nas estradas escravas...

O Jorge assusta-se ao ver a mulher de vestido de samakaka e o


homem de traje de general aproximando-se e ajoelha-se, fazendo
uma vênia com muito medo.
54

MAURO (CONT’D)
...algemas de amor nos caminhos
paganizados do amor.

O Mauro dá uma passada de kizomba no vazio, alegre.

MAURO (CONT’D)
...sons festivos sobre o balanceio
dos corpos em força simulada
Criar, criar com os olhos secos.

Os três dão as costas para a câmera, procurando o grupo de


percursores e as bailarinas e vêem a mulher trajada de vestido
de samakaka e o homem de traje de general, andando em
aproximação deles, estando posicionados um dos percursores a
sua esquerda, outro à sua direita, outro atrás de si.

Só neste momento é que aparece o rosto da mulher de vestido de


samakaka e do homem com traje de general: são a Ary e o Nagrelha.

As duas bailarinas aproximam-se dançando com balaios de frutas


na cabeça, estando uma à frente do percursor à esquerda e o
outro à frente do percursor à direita.

CARLOS
À bela pátria angolana, nossa
terra...

RAPAZ
(alegre e surpreso)
Mamã!

O Jorge assusta-se e pega na câmera fotográfica, tremendo. O


rapaz corre na direcção da Ary e do Nagrelha e abraça-os.

O Mauro também se aproxima e abraça os três, enquanto o grupo


de percursores e as bailarinas batucam e dançam alegremente.

CARLOS
...nossa mãe, havemos de voltar.

O Carlos levanta a mão esquerda e descreve um arco.

CARLOS (CONT’D)
Havemos de voltar.
À Angola libertada, à Angola
independente.

O Carlos abraça a Ary, o Nagrelha, o rapaz e o Mauro.

O Jorge, disfarçando-se, tira uma fotografia do abraço dos cinco


e do grupo de percursores e das bailarinas batucando e dançando
55

à volta dos quatro e aparece a imagem imóvel da fotografia a


cores.

A plateia levanta ao rubro e bate palmas, assobiando.

MULTIDÃO
Já ganhou! Já ganhou! Já ganhou!

FADE TO BLACK.

INT. COLEGIO – GINASIO – DIA

A Patricia Faria e o Calado Show estão no palco falando para a


plateia.

CALADO SHOW
Bem, passados então todos os
nossos cem concorrentes…

PATRICIA FARIA
Chegou finalmente a hora de
anunciarmos o nosso vencedor.

CALADO SHOW
E o vencedor e…

O Calado Show e a Patricia Faria entreolham-se e sorriem.

INT. COLEGIO – BASTIDORES DO GINASIO – DIA

O Carlos e o seu grupo estão de mãos dadas. O Mauro esta a usar


um gorro na cabeca. No fundo, ve-se o Lino a olhar para eles
com desprezo.

LINO
Pensam que vao ganhar? O que eu
fiz foi muito mais intelectual
e inovativo…

DIRECTOR
O que nos fizemos, rapaz. O que
nos fizemos…

O Carlos está com os olhos fechados, abrindo e fechando os


lábios rapidamente em murmúrio.

SUSANA
Oh! Não és tao convencido que
sempre ganhas?

CARLOS
Primeiro ora-se a Deus, depois
se fica convencido de qualquer
coisa. Weis, Aconteca o que
acontecer, quem vencer divide
o prêmio a meias com os outros.
56

MAURO
Assim o carro e o apartamento
vamos dividir como? Eu não quero
ficar com os pneus.

INT. COLÉGIO – BASTIDORES DO GINÁSIO – NOITE

O Carlos está com o Mauro.

CARLOS
Tens noção que meteste o Agostinho
Neto com dred locks?

MAURO
E tu que lhe meteste a dançar kuduro?

INT. TELEVISÃO – NOITE

O Ernesto Bartolomeu está sentado atras da mesa, trajado de


fato e gravata.

ERNESTO BARTOLOMEU
E para terminarmos o nosso telejornal
de hoje. Já e conhecido o vencedor
do concurso Kusole.

EXT. RUA DA RULOTE AMARELA, VERMELHA E PRETA - NOITE

A Maria Isabel, o Mauro, trajado de camisa e gravata, a Paula


e a Gisela estão de pé com vários jovens, assistindo à televisão
que está na rulote.

ERNESTO BARTOLOMEU (V.O.)


Para além da criatividade e intelecto
inusitado, o concorrente vencedor teve
a audácia de…

IMAGENS NA TELEVISÃO:

1. INT. COLÉGIO – GINÁSIO – NOITE

O Carlos coloca o rapaz sobre os seus ombros, levanta-se, abre-


-lhe os braços e começam a andar na direcção de uma árvore,
felizes.

CARLOS
À frescura da mulemba, às nossas
tradições, aos ritmos e às fogueiras,
havemos de voltar

RAPAZ
Ritmos? Quais ritmos?

Em sincronia esquematizada, o Carlos e o Mauro dançam começando


com toques de rebita, intercalando com toques de kabetula e
kuduro.
57

2. INT. COLEGIO – GINASIO – NOITE

O Carlos e o seu grupo estão a celebrar a vitória, segurando


um cheque enorme, uma chave de um carro e uma chave de um
apartamento.

ERNESTO BARTOLOMEU (V.O)


…colocar o primeiro presidente de angola
a recitar dois poemas seus como se um
respondesse ao outro e também a
dar alguns requintados toques de
kuduru. Carlos Chinenge Banzaia e o
vencedor.

Os do grupo do Carlos pulam de alegria. O Lino faz expressão


de zanga. Anda e intenta receber o microfone da mão do Calado
Show, mas ele lhe faz uma expressão ameaçadora e ele foge.
Aproxima-se da Patrícia Faria e puxa-lhe o microfone.

LINO
Não pode. Ele fez batota. Usou outros
concorrentes para…

MULTIDAO DOS JOVENS


(vaiando o Lino)
Wo! Tá dá pena, não vão comer soja. Ewe!
Tá dá pena. Não vão comer soja.

BACK TO:

INT. TELEVISAO - NOITE

O Ernesto Bartolomeu está sentado atrás da mesa, trajado de


fato e gravata.

ERNESTO BARTOLOMEU
Telejornal, a notícia em primeiro
lugar.

BACK TO:

EXT. RUA DA RULOTE AMARELA, VERMELHA E PRETA – NOITE

O Carlos, trajado de camisa e gravata, está com a Susana. Atrás


deles, a algumas dezenas de metros de distancia, estão o Mauro,
a Gisela, a Paula, a Maria Isabel e vários outros jovens
celebrando.

SUSANA
Então vencemos o concurso.

CARLOS
Ya, e bem vencido!

SUSANA
Agora vamos ter que viajar para
58

longe para cuidar da doença do


meu pai. Para alem de ter
síndrome do pânico e depressão, por
causa da morte da minha mãe, ele
precisa de mudar de ares,
então ele decidiu irmos para
longe nessas ferias, mas não sei
se volto ou se estudarei fora…

CARLOS
Queria que ficasses aqui para sempre
Mas…

SUSANA
Já sei…

CARLOS E SUSANA
Pai é pai…

SUSANA
Olha, tenho um presente para nós os
dois…

A Susana retira dois anéis de ouro do bolso dos seus calcões e


entrega-os ao Carlos.

SUSANA
Quando eu voltar este e para o nossos
noivado e este para o nosso casamento.

CARLOS
Obrigado, miúda. Mas quando voltares,
eu já terei construído uma mansão para
nos os dois.

Os dois sorriem e abraçam-se. O Jorge chega e pigarreia.

CARLOS
Bem, hora de ires…

O Jorge aproxima-se e entrega uma folha ao Carlos que a recebe.

JORGE
Este é o prêmio supressa…

O Carlos lê. Fica emocionado. Olha para o Jorge e abraça-o.

SUSANA
O que é isso, pai?

CARLOS
Uma bolsa de estudo para o lugar
para onde vocês vão. E vou com a
minha mãe!

A Susana leva a mão à boca, emocionada. Aproxima-se dos dois e


abraça-os, chorando de alegria.
59

O Mauro anda em aproximação deles, pega o Carlos e a Susana


pela mão e começa a puxa-los em afastamento do Jorge.

MAURO
(para o Jorge)
Com licença, meu senhor. Vamos dar
uma despedida.

A Paula, a Gisela, o Carlos, a Susana, o Mauro e a Maria Isabel


colocam-se no centro do palco de terra batida. O Carlos levanta
a mão com intento de estalar os dedos.

CARLOS
(para a Susana)
Arrasa-os, miúda!

A Susana pisca-lhe o olho e sorri para ele, levantando o


polegar. O Jorge segura a mão da Susana.

JORGE
(autoritário)
O que é que conversamos sobre isso,
Susana?
(alegre)
Vocês não podem fazer isso
sem mim!

Todos sorriem.

O Jorge retira o casaco e entrega-o a um dos jovens que o


recebe.

CARLOS
(para a Susana, murmurando)
O kota Papel sabe dançar?

SUSANA
(para o Carlos, murmurando)
Nunca te contei, antes da morte da
minha mãe eles iam à boda rija
quase todas as semanas. Se ele e
que me ensinou a dançar.

JOVENS E RAPARIGAS
(animados)
Ti Papele, num num nos deixa male!
Ewe! Ti Papale lhes avança mbore!
Ewe!

O Jorge coloca-se entre eles e começa a tocar uma música de


kuduru.

O grupo começa a dançar sincronizadamente, começando com


rebita, dançam kuduru, saem com kabetula, deixam a Maria Isabel
fazer a sua performance com sungura e kuduro, deixam o Jorge
fazer a sua performance com kwaito, e entram novamente com
kuduru, finalizando alegres.
60

Todos que lhes assistem batem palmas, eufóricos.

FADE OUT.

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