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Carl Bernhard Scheidemantel (1834-1908), Blumenau (1876 - litogravura) Arquivo Histérico José Ferreira da Silva (AHJFS) ~ Blumenau/ SC A PERSONIFICAGAO DE UMA COLONIA E AS ORIGENS DE UM MITO: HERMANN BLUMENAU ENTRE VIAGENS PROJETOS PARA 0 SUL DO BRASIL Cristina Ferreira (FURB) A histéria da imigragéio europeia para o Brasil envolveu gran- des deslocamentos populacionais entre os continentes no século XIX, contribuindo para a geracdo de uma infinidade de trocas culturais en- tre distintos grupos étnicos. Particularmente Tepresentativo foi o con- tingente de estrangeiros estabelecidos na regiao do Vale do Itajai, for- mulando as peculiaridades de um processo de colonizagio pautado na Pequena propriedade agricola e no estabelecimento de colénias étnicas especificas, com predominancia de grupos familiares advindos das re- gides da Pomerania, Prassia e Hamburgo. O capftulo questiona o pro- cesso de transigéo de europeus para o Brasil, em particular a vinda de imigrantes germAnicos para o interior de Santa Catarina. O estudo da trajetoria de Hermann Blumenau' serve de suporte para a descrigzio do Brasil aos olhares estrangeiros e possibilita o estabelecimento de inter- conexdes com as imtimeras propostas ligadas a imigragio intercontinen- tal 4 literatura de viagem no periodo. Portanto, nao se restringe apenas as particularidades de Santa Catarina e demarca as diferengas entre as narrativas sobre os temas abordados em relatos semelhantes, levando em conta que a funcao do historiador é criar o equilfbrio na andlise dos fragmentos documentais e ressaltar a “diferenca e nao a igualdade dos fenémenos”, identificando relevancias e nao regras absolutas ou normas intransponiveis, com vistas 4 complexidade e nao a simplificacao da His- toria’, 1 Pesquisa realizada com apoio da FAPESC ~ Fundagdo de Amparo a Pesquisa de Santa Catarina, no CEMOPE ~ Centro de Meméria Oral e Pesquisa, laboratério de Pesquisas do Departamento de Historia da Universidade Regional de Blumenau ~ FURB. 2. LEVI, Giovanni. Micro-histéria ¢ histéria da imigracio. (orgs.). Micro-hist6ria, trajetérias e imigracdo. Sao Leopoldo: ‘VENDRAME, Matra Inés et al 8, 2015, p. 248, CRISTINA FERREIRA e ANDRE FURTADO 24 (Organizadores) Blumenau integrava 0 rol de estrangeiros qu, pelo Brasil, motivado pelo contato ay fizeram geral do Brasil na Prissia, Johann Jacob Sturz, que nutria wo oa Bere minado Nova Alemanha nos Trépicos, levado adiante com 2° tengao de combater 0 trafico de escravos € integrar 0 Brasil aos p, a in. pios de civilidade do oitocentos, & partir da colonizagio alema no fon to de pequena propriedade agricola. Viajou ao Brasil em 1846, fs la anos, permanecendo no Rio de Janeiro por um breve periodo e digas Jo sea0 destino principal: a ColOnia Sao Leopoldo (RS) 0 Vale do ts, jai, nas regides de Belchior © Pocinho (SC). Seu contato com o Brasil n, ‘condigao de viajante € observat Hermann excursdes de estudos dor dos niicleos de colonizacio resultoy no livro Sul do Brasil em suas referéncias & emigracao e colonizagéiy alema: fragmentos de noticias, observacées & sugestées especialmen. te para emigrantes®. Posteriormente, apds a implantacao do niicleo de povoamento, publicou o livro A colonia alema Blumenau: na provincia de Santa Catarina no sul do Brasil’, Sua narrativa contemplava priticas discursivas de um viajante, obtidas a partir de suas vivéncias tempori- seem os habitantes do local, assinalando aspectos cotidianos, socal —— J Gh ZIMMERMANN, Tinia Regina. Johann Jacob Sturz ¢ a nove Alemanha nos trépicos. Se gieto (Mestrdo em Historia). Universidade Federal de, Santa Catena = UFSC, Forandpolis, 2001. © combate & escravidio era sobreposto pela questi da consttuicio vroronas alemis volladas & Uberdade politica ¢ & preservacio da “Heima” 04 pits a eit gue remete 1 nogio de nacionalidade pelo “jus sanguints; possiblltando cultivar as ‘specifiigades culturais lingustcas dos germanicos em qualquer igor onde se estabelece 0 Met SEYFERTH, Giralda, © Vale do ltajl e a politica imigratoria do Império. Blumenauem Cadernas, Blumenas, t. XLVIM, n. 11/12, p. 57-82, 2007. 4 CECARDOSO, Maria Zilene. Gaspar, século XIX: as dificuldades para o seu povoamento inicial coe aa ieee de uma dependencia Dissertasio (Mestrado em Historia). Universidad felcnl de Santa Catarina ~ UFSC, Florianépolis, 1991; KIEFER, Sabine. Dr. Hemme Berea sida obra, In; BLUMENAU, Hermann Bruno Otto; FERREIRA, Cristina: PETS Snell Maria Vanzuita (orgs). Unt alemdo nos trpicos: Dr. Blumenau e a politica colonizaderane Sul do Brasil. Blumenau: Cultura em Movimento; Instituto Blumenau 150 anos, 1999. 5 Originalmente escrito em lingua alemA e publicado sob o titulo Siidbrasilien in seit Recuhungen su deutscher Auswanderung und Kolonisation, em. 1850, pelo editor Ginth Froebel, em Rudolstadt, com um total de 101 paginas, divididas da seguinte forma: 1) Introduce 7 Co capitulos elaborados pelo autor; 2) Compéndio com seis subdivis6es que contemplam # Irs beseech a 2 Oe a Froebel. Traduzido par lingua portuguesa por Curt Hennings e publicado como: BLUMENAU, Hermann Brune Otto. Sidbrasilien in seinem Beziehungen zu d ? ae) Sul do ra) a Bezichungen zu deutscher Auswanderung und Kolonisation/ Su asl em suas referéncias &emigragdo e colo emi: e sugest icagao alema: fragmentos de noticias, observa ugestdes especialmente para emigrantes, In: BLUMENAU, H . Cistnas PETRY, Sueli (orgs). Um alemdo nos trépicos: Dr. Blumenal Bruno Otto; a Seed otal Wawa intistees ines Gana colonizador 6 Origaalmens ero em lings alema.e blade sob o thao Dench Kea nd Provinz Santa Catharina in Sud-Brasilie sob 0 titulo Deutsche Kolonie Blumenau im af atuava como ain Sud-Brasilin, em 1856, junto ao editor Gunther Froebel, que tab agente de imigracio. Traduzido : La Schinkee pablo comoe BLUMENAU, Heseang ees Portguess por Annemarie Fougutt provincia de Santa Catarina no sul do Brasil. Bh Bruno Otto. A colénia alema Blumenatt: lumenau: Cultura em Movimento, 2002 Relatos de viagem, temporalidades ¢ iasigragio na Brasil % e naturais, com o objetivo de implementar uma coldnia alema na regifio Sul do Brasil. Ao estudar detalhadamente os escritos de Hermann Blumenau, em consondncia com outros documentos acerea da implantagao da Co- Jénia Blumenau, torna-se possivel conectar aspectos locais com a rea- lidade da imigragio ‘angeira, articulando elementos do processo de deslocamento e transigao de curopeus para o Brasil no periodo imperial. Evidencio a intengao de equilibrar as especificidades exploradas em seus escritos, com 0 propésito de relacionar suas escolhas com as estratégias da ago colonizadora no Brasil de meados do século XIX. Interesso-me, primordialmente, em utilizar elementos da micro-historia’ para ques- tionar sobre a racionalidade humana que governa os comportamentos, aproximando a literatura de viagem e as fontes historicas sobre a génese da ocupaciio do Vale do Itajai, mediante o compromisso de utilizar um caso relevante para outros nticleos de povoamento estrangeiro, preser- vando as especificidades e, se possivel, escapando da generalizacao. Dis- cuto as peculiaridades locais para ressaltar as diferencas entre o particu- lar (Vale do Itajaf) e o geral (Brasil) nos estudos sobre as trajetorias e a imigracdo no Brasil. Aanilise da personagem e o detalhamento de suas descrigées via- biliza a lida com as incertezas do passado e, quigd, A rendncia ao “si- mulacro da integridade individual”’, em um movimento oposto a super- valorizago da figura de Hermann Blumenau no processo imigratério para o Sul do Brasil, a partir de um esforco analitico capaz de indicar concepgoes e visdes de mundo em um jogo de escalas. Muito ao con- trario de reduzir a andlise histérica 4 escrita de livros ou personagens especificas, concentro os debates nas relagdes de forga? e abordagens, elencadas como uma escolha demarcatéria do lugar e das intengoes par- tilhadas por Hermann Blumenau com outros sujeitos histéricos ao longo do processo imigratério brasileiro. As investigagGes concernentes a pesquisa histérica sobre imigra- do e trajetorias vinculam-se ao estudo intensivo das narrativas literarias e estdo longe de desencadear uma decifracdo mecinica da informagio, transbordando uma elaboracio ativa do intelecto, ao possibilitar que os leitores desenvolvam um exercicio que treina o sujeito para a vida'®. No 7 LEVI, Giovanni, Micro-histéria e histéria global, In; VENDRAME, Maira Inés; KARSBURG, ‘Alexandre (orgs.). Micro-histria: um método em transformagio. Sio Paulo: Letra e Voz, 2020, p. 22. 8 LORIGA, Sabina. A biografia como problema. In: REVEL, Jacques (org.). Jogos de escalas: a cexperiéncia da microandlise. Rio de Janeiro: FGY, 1998, p. 245. 9. Cf: GINZBURG, Carlo. Relagées de forga. Sio Paulo: Companhia das Letras, 2002. 10 Cf: DARNTON, Robert. O grande massacre de gatos ¢ outros episédios da histéria cultural francesa, Rio de Janeiro: Graal, 1986, p, 289-291. FERREIRA ¢ ANDRE FURTADO 26 laa (Onganizadores) ‘0 publicado comporta objetivos e sustenta de entanto, todo text das em conexfio com a realidade, ety, i er perscruta 1 ee vod por Hermann Blumenau e denominado Sul do Bel ein au, escritos originalmente em alemag 4°"! ‘AColénia Alema Blumen publicados, respectivament it. bel, 7 a co de Hermann Blomenau acerea do sul do Bry como o lugar ideal para a realizagao de seu projeto de colonizacio foi, movimento resultante de uma série de trocas de experiéncias com Cien, tistas, a exemplo de Alexander von Humboldt e Karl von Martius, além do contato direto com Johann Ji jacob Sturz, consul do Brasil Ta Pritssia, Importa analisar as relagdes entre imigracao e escravidao, conectando| 2 concepgGes de viajantes e agentes de colonizagao com a emancipacag q, escravidao, questionando sobre suas reais intengoes voltadas Aimplan. tagdo de colénias germénicas no Brasil meridional. Discuto como foe principal de andlise a idealizagao da Colénia Blumenau na historiografi sobre a Imigragiio no Brasil, questionando a legitimacao de uma me- méria historica de cunho oficial, sustentada por grandes personagens, com o intuito de desconstruir mitos heroicos na historia da imigragio no Vale do Itajai. A problemética questiona a génese de Hermann Blume- nau como mito fundador, em um estudo de caso especifico, com o pro- pésito de extrapolar as investigacdes sobre imigrac&o que privilegiam apenas os grandes contingentes de europeus emigrados para o sudeste do Brasil em meados do séc. XIX. Ao compreender as minticias da cris- talizagéo das memérias em torno de uma unica trajetéria, intenciono discutir os limites reducionistas dessa concepgaio, responsével por forjar seres humanos infaliveis e ignorar os processos de interagao e escolhas na interdependéncia entre os miltiplos sujeitos historicos no ambito da agéncia humana. mmetroe: eee esauisa esté pantada na recusa aos pars destaque reeai sobre o estudo dex a eréncia de ideias € percepcoes. ergéncias e conflitos do cotidiano, te em 1850 e 1856, pelo editor Giinther Pe 0, (0385), editors Cutan P* 2°80 dos 100 anos de editou 0 livto Um Livro Um ale Parceria com o Insta Bye oa aos mde emf nos trdpios: Dr. bilngueeedito unece’ Dt Blimenau e.a poten colonieade ya Be ‘TRAVESSIAS OITOCENTISTAS: Relatos de viagem, temporalidades e imigracio no Brasil 2 para evitar o mero reducionismo aos simples esquemas de oposigio e ressaltar a interrelagio entre Hermann Blumenau e as determinagées sociais miiltiplas de composigao do real em sua atuagio, A etapa de sin- tese dos resultados evitou partir de elementos predeterminados", 20 contemplar uma infinidade de interrogacdes formuladas ao objeto de pesquisa em questo, diretamente conectado A compreensio do proces- so imigrat6rio como uma ago continuada e integrada as experiéncias, em cotejo com outras andlises historiogrAficas sobre imigragio e viagens ao Brasil no Oitocentos. Trajetérias triunfais e usos do passado: Hermann Blumenau e 0 apetite pelo “Sul do Brasil” © Brasil inteiro tornou-se alvo de constantes andlises de natura- listas e viajantes, responsdveis pela elaboragao de narrativas detalhadas dos habitos, costumes e sociabilidades dos imigrantes no século XIX. Nao se pode negar que sua percepgio era mais agucada quanto as ferencas de costumes e, em geral, observavam minuciosamente o Bra- sil “com éculos de um europeu que j4 vivenciara todo um processo de industrializagdo, que se calcava num discurso marcado pela cultura do trabalho, dentro da dtica capitalista”, trazendo em seu imaginario um desejo “civilizador”. O universo explorado por Hermann Blumenau também se integrava 4 chamada “literatura de viagem”, pautada em um deslocamento fisico pelo espago geografico, em um determinado tem- po, com a posterior composicao de uma narrativa acerca de suas obser- vacdes e experiéncias. Suas formas discursivas manifestavam-se entre a crénica, a epistola, o romance, a poesia, o didrio e o relato cientifico acrescentado, nao raramente, do correspondente iconografico, agregado a percepges do “desconhecido, da alteridade, do estrangeiro, do outro, pressupée a existéncia do conhecido, do préprio, do patrio, do eu como ponto de referéncia”4. O relato do viajante, apesar de estruturar-se em torno da observacao de uma cultura declarada estrangeira, oferecia am- plas evidéncias da cultura de origem. As viagens tornaram-se uma espécie de experiéncia central para avivéncia da histéria, com énfase na pedagogia e no aspecto instrucio- 12 Cis REVEL, Jacques. Histéria e historiografia: exercicios crticos. Curitiba: Ed. UFPR, 2010. 13 SERPA, Elio Cantalicio. As elites locais e a reformulagdo das condutas e das sociabilidades em “Lages durante a Primeira Reptiblica, Florianépolis: Ed. UFSC, 1995; p. 15. 14 LISBOA, Karen Macknow. A nova Atlantida de Spix e Martius: natureza e civilizagdo na viagem pelo Brasil (1817-1820). Sao Paulo: Hucitec; FAPESP, 1997, p. 46. INA FERREIRA ¢ ANDRE FURTADO (Organizadores) a CRIS le que todo individuo minimamente esc, ntes do passado, com 0 propésito de fay ne agdes no presente, Todavin, nao se pode articular no ment sinrdiferentes objetivos de viagem, gestados em perfodos histricgrt™ valorizavam apenas OS prinefpios exploratérios (séculos XVI} @ Xvi Os viajantes do século XIX intencionavam gerar conheciment, iy tifico, a partir do esquadrinhamento das regides e do mapeament, . caracteristicas geograficas, sociais ¢ politicas dos habitantes das gy... visitadas's. Na transi predominavam os i nal, pautada na renga dl aprenderia com os viajan sui 8 tens do entre trabalho escravo ¢ livre no Brasil oitocentiy ideais de racializagéo hierarquizada na composigs, ba populagao brasileira. Em substituigo & mio de obra escrava, me, mo diante da insisténcia dos fazendeiros na manutengdo dos costumes ¢ lagos da escravidiio, a opgio pela vinda de estrangeiros era considera. da vantajosa, tanto do ponto de vista econémico, como social e politico, 0 objetivo era 0 povoamento das regides de fronteira e interioranas do Brasil, além do abastecimento das cidades, a partir da diversificagao da produc&o agricola nacional. Em uma escala geral do continente amer- cano, diferente dos Estados Unidos, o Império Brasileiro nao elaborou uma politica de imigraco evidente, com medidas especificas aos emi- grantes que adentrassem no pais, a exemplo da separagao das levas imi- gratorias e da obrigatoriedade do uso da lingua portuguesa’*. E foram tais condigdes que despertaram a atengdo de Hermann Blumenau sobre o Brasil, a partir do ideal de conhecer terras distan- tes e, particularmente, envolver-se com a questo da emigracio alema para a América do Sul, nutrido por uma série de leituras relacionadas a0 tema. Sua formacio era em Quimica” e exercia a funciio de farmacéu- 15 GUIMARAES, Manoel Luiz Salgado, Histéria ¢ natureza em von Martius: esquadrinhando © Brasil para construir a Naso. Histéria, Ciéncias, Satide ~ Manguinhos, Rio de Janeiro, v. 7, 9.2 . 389-411, 2000, p, 389-392. 16 FERREIRA, Cristina; KOEPSEL, Daniel Fabricio, Representagées ic historia de Timbé. Blumenau: Edifurb; Timbé; Pundardo. ‘Cetea200noe a9, 17 ae Blumenau firmou sociedade com Hermann Trommsdorff em uma fabrica de produtos bh =e onde deseavolveram um processo de reaproveitamento de sulfato de chumbo, font He palee no deseo das indstrias de abricao de alumina, Vajou para a Inglaterra # ee m cycet esse processo, com carta de recomendagio de Justus von Liebig (quimico Fe Par aateridade de Glessen) a thomas Graham, inglés que estudava quit agro Po eget de Sturz matrculou-se no curso de doutorado em quimica da Faculdade seats Caine nde de lange, defendendo a tese intitulada “Correlagdes gerais ent implanasioedecerel nc, om 1846. CL MANGRICH, Antonio S. Presenga quimict niente ates eee iscussOes sobre ¢ ‘TRAVESSIAS OITOCENTISTAS: 29 Relatos de viagem, temporalidades e imigracio no Brasil tico'® em Erfurt, cidade de Braunschweig, na regiao da Prissia. Seu inte- Tesse aumentou depois de estabelecer contato com o cientista Alexander von Humboldt que, em visita a Erfurt, conversou com Blumenau acerca de assuntos sobre o continente americano’. Também utilizou suas co- nex@es politicas para realizar sua primeira viagem ao Brasil, munido de cartas de recomendagao dos cientistas Alexander v. Humboldt e Karl von Martius”. Essa troca de experiéncias demonstra que seu planejamento previa uma pesquisa prévia e 0 contato com outros cientistas e viajantes antes da chegada ao Brasil ¢ pode ser considerado um ponto crucial para a viabilizacio dos propésitos de colonizagao e estabelecimento de uma colénia alema no Sul do Brasil. Nao foi 4 toa que, pouco tempo depois, a Sociedade de Protegao aos Emigrantes Alemaes de Hamburgo” con- tratou seus servicos, além de disponibilizar recursos em troca de infor- magoes de viagem e impressdes sobre as condicées dos estrangeiros em territério brasileiro. Blumenau fazia parte de um rol de estudiosos advindos da Euro- pa, em sua maioria cientistas ligados as Ciéncias Naturais, que adentra- ram 0 Brasil no decorrer do século XIX, com o objetivo de descrever a natureza e os modos de vida dos brasileiros. As crénicas e textos pro- duzidos pelos viajantes tornaram-se fontes importantes de informagoes acerca do Brasil oitocentista, além de contribuir para transformar ob- servagées e anotagdes em narrativas que privilegiavam a natureza tro- pical brasileira. Os viajantes conservavam um fascinio pela fauna e flora brasileiras, colaborando com os pesquisadores no sentido de questionar as pistas deixadas em seus livros, sobretudo porque suas interpretagdes e propésitos costumavam ser diversos em muitos sentidos. Ainda assim, eram portadores de caracteristicas em comum: a maioria era originaria de culturas protestantes e germAnicas, aplicando uma leitura de mundo 18 Hermann Bhumenau trabalhou na Farmacia “Lowenapotheke’, em Erfurt e também no Instituto Farmacéutico Hermann Tromsdorff. Cf. KIEFER, Sabine. Dr. Hermann Blumenau: vida e obra. In: BLUMENAU, Hermann Bruno Otto; FERREIRA, Cristina; PETRY, Sueli (orgs.). Um alemao nos trépicos: Dr. Blumenau e a politica colonizadora no Sul do Brasil. Blumenau: Instituto Blumenau 150 anos, 1999, p. 27. 19 FOUQUET, Carlos. Vida ¢ obra do doutor Blumenau: ensaio biogrifico. In: COMISSAO DE FESTEJOS. Centenario de Blumenau. Blumenau: Comissio de festejos, 1950, p. 58. 20 SILVA, José Ferreira da. O doutor Blumenau. 2. ed. Floriandpolis: EDEME; Paralelo 27, 1995, p. 18. 21 KIEFER, Scbine. De: Hermann Blumenau: vida ¢ obra. In; BLUMENAU, Hermann Bruno Otto; FERREIRA, Cristina; PETRY, Sueli Maria Vanzuita (orgs.). Um alemdo nos trépicos: Dr, Blumenau ¢ a politica colonizadora no Sul do Brasil. Blumenau: Cultura em Movimento; Instituto Blumenau 150 anos, 1999, p. 33. {ISTINA FERREIRA e ANDRE FURTADO 30 a (Organizadores) comedidos, ascéticos ¢ racionalistas”, so vor didlogo com a herancaibériea ou a cultura afieana ¢ indigent" iAlinhsdo as teorias de supremacia branca ea crenga na hierss racial, H. Blumenau se posicionou sobre a formacio humana do pla na perspectiva de um europet imbuido das discuss6es que Permeayl idedrio civilizacional no yelho continente. O pensamento racial do s Mo Jo XIX era incrivelmente disseminado pelo mundo e todas as radio” culturais contrastantes dos paises, aliadas ao desenvolvimento ¢ we periéncias histéricas particulares, eram cuidadosamente unificadas po, permédio da ciéncia. As afirmagoes ilegitimas permeavam as “racions lizagdes de preconceitos, apoiadas em observagdes superfcizis, conjr ras faceis, hipdteses forgadas e fantasias auto promotoras”=3, Hermann Blumenau estava articulado a estas abordagens Taciaig, ao descrever o brasileiro como fruto de uma “mistura de racas” e ports, dor de “grande indoléncia, preguica, sensualidade”, sofrendo de “impe. tuosa paixio e i ascibilidade, caracteristica dos povos de paises tropi- cais”4, Esse posicionamento predominava em boa parte dos relatos de Viajantes alemaes que estiveram no Brasil e Blumenau também utilizoy suas lentes de europeu no julgamento sobre a conduta dos brasileiros, especialmente em relagio & paciéncia, ociosidade, corrup¢io do funeio- nalismo piiblico ¢ Aquilo que denominava como “falta de cultura” da po- pulagao*s. ‘A exemplo de muitos viajantes, diante do cotidiano das Areas de interagdo entre distintos grupos étnicos, sua descrigéo era habitual mente cega, a partir da negligéncia das manifestagdes e apropriagbes vinculadas As préticas de “transculturacao” *, articulada pelos sujeitos historicos que atuavam na relacdo entre uma cultura determinante e uma periférica. Tal escolha implicava em desconsiderar contribuigdes pautada em “modelos 22 SCHWARCZ, Moritz. As barbas do imperador: D, Pedro II, um monarca nos trépicos. Sio Paulo: Companhia das Letras, 1998, p. 250-252. 23 GAY, Peter. O cultivo do ddio, Sao Paulo: Companhia das Letras, 1995, p. 83. (A experiéncia bburguesa da Rainha Vitdria a Freud, v3). 24 BLUMENAU, Hermann Bruno Otto, Siidbrasilien in seinem Bezichungen 2u deutscher Auswanderung und Kolonisation Sul do Brasil em suas referéncias & emigracio ¢ coloniza¢ie alema fragmentos de noticias, observacdes ¢ sugestoes especialmente para emigrantes. It —— FERREIRA, Cristina; PETRY, Sueli Maria Vanzuita (orgs.), Um alemdo nos trdpicos Dr. Blumenau e a politica colonizadora no Sul do Brasil, Blumenau: Cultura em Moviment - a eee 150 anos, 1999, p, 53. Cristina, Cidadania ¢ Identidade na sociedade teuto-brasileira: José Deekt ¢ os ebatesculturasinteéinicos no Vale do Ia. Dissertacie endo to Hi ag iad Fedeal deSmta Catarina - UFSC,Horianépels, 198, p, 109. ohids foe . 7 ‘ persed scoot eer louise Os oth do impéio: relatos de vise ‘ ‘TRAVESSIAS OITOCENTISTAS: 31 Relatos de viagem, temporalidades ¢ imigragio no Brasil avaliadas como marginais e distantes do proceso civilizacional, portan- to, cabe analisar suas colocagées sobre o cotidiano do Brasil, a partir do estudo do sentido das palavras® de suas narrativas, com atengao redo- brada a utilidade do passado como foro privilegiado de suas concepcoes culturais. No proceso imigratorio estrangeiro ocorrido no periodo imperial brasileiro, os colonos alemaes eram considerados “ideais”, pois carrega- ‘vam consigo a possibilidade de promover o chamado “branqueamento” da populacao, em contraposigao aos mesticos brasileiros, considerados desqualificados para o trabalho e, seguindo a légica da teoria racial, clas- sificados como povos inferiores”:*. Chamava a atengio dos viajantes e dos estrangeiros de modo geral, a permanéncia da escravidao africana no Brasil, fator que gerava uma espécie de padrao de civilidade negativo aos seus habitantes. No entanto, no livro Sul do Brasil, H. Blumenau des- creveu a escravidio como uma “indigna instituicao da humanidade” que, lamentavelmente, ainda persistia em territério brasileiro, com destaque para o “ndmero de escravos relevante em todo o pais”, particularmente nas provincias do norte, que apresentavam uma estatistica populacio- nal em que para cada branco, geralmente existiam dez negros®. Embora sua argumentacio destacasse que a escravidao, em todos os paises, “nao era apenas uma macula, mas também fonte de desgraca e desmoraliza- cdo”, portanto, um mal que ainda precisava ser superado na sociedade brasileira, Hermann Blumenau utilizava palavras que amenizavam os danos causados pela escravidio no Brasil. Relatava que os escravizados nao sofriam rigorosas formas de castigos e alegava que recebiam “um tratamento melhor do que em outros pafses, quase igual ao dispensado 27 PROST, Antoine. Doze lies sobre a histéria. Belo Horizonte: Auténtica, 2014, p. 250. 28 FERREIRA, Cristina, Cidadania e Identidade na sociedade teuto-brasileira: José Deeke e os embates culturais interétnicos no Vale do Itajal. Dissertagdo (Mestrado em Histéria). Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC, Florianépolis, 1998, p. 111. Com relagio a estas colocagées, é importante salientar que 0 intuito de combater a escravidio a partir da vinda de trabalhadores livres era quase sempre uma proposta de duas vias, sendo incentivada pelo governo, em muitos casos, visando o embranquecimento da populacio do pais, 0 que comeou a set colocado em prética a partir de 1850, com a chegada das primeiras levas migrat6rias ao Brasil, por meio de politicas de controle populacional, alfm da selecao de imigrantes que poderiam se estabelecer no pais. Cf: LESSER, Jeffrey. A negociagdo da identidade nacional: imigrantes, minorias ea luta pela etnicidade no Brasil. Sio Paulo: Editora UNESP, 2001, p. 20. 29 BLUMENAU, Hermann Bruno Otto. Siidbrasilien in seinem Bezichungen zu deutscher ‘Auswanderung und Kolonisation / Sul do Brasil em suas referéncias a emigragio ¢ colonizagio alema fragmentos de noticias, observagdes e sugestdes especialmente para emigrantes. In: _ FERREIRA, Cristina; PETRY, Sueli (orgs.). Um alemdo nos trépicos: Dr. Blumenau e a politica colonizadora no Sul do Brasil. Blumenau: Instituto Blumenau 150 anos, 1999, p. 57. CRISTINA FERREIRA ¢ ANDRE FURTADO 7 (Organizadores) + alemio aos seus criados e diaristas”s, a) gligenciava a existéncia do uso iidiscriminado de violéneta gigi vente associndo ao racismo, que servia de base para a Perpetua fm, regime escravista € contribufram para que 0 Brasil Conservasse So g, marca de iltimo pats decretar a abolicao na América, atiigg Entre a escravidio ea liberdade, vigorava a manutengig ticas de fragilizagao de libertos e ex-escravos, a exemplo do 4° prova” partir do sujeito alforriado, em caso de tentativa de & Faeio", além das dificuldades para a compra da pr6pria liberdage,** populaciio escrava, ou mesmo, a separagio de seus amigos e familia, la na situaciio de venda de africanos para outros Pafses™, situagio que, grande medida, pesava mais do que 0s castigos e punigées fisicas™ muitos sujeitos escravizados*. m™ Esse cendrio era parcialmente conhecido por Hermann gy, menau e ele acompanhava seus desdobramentos em conjunto con” consul alemao na Prissia, Johann Jacob Sturz, que sustentavam ¢y comum 0 objetivo de iniciar um processo de colonizacio alema no Brae sil, utilizando como base argumentativa o combate ao trafico de traba. Thadores escravos no pais. Ambos defendiam a pequena propriedade como base do processo imigratério estrangeiro, a partir da aboligég como condigao fundamental para tornar o Brasil um pais civilizado, Imbuidos de um ideal racial de branqueamento progressivo da popu- lacao brasileira, consideravam a erradicagdo da escraviddo como un instrumento civilizatério, em cujo avesso estaria a escravidao e o lati- fandio atendido por esse regime de trabalho*. Blumenau indicava a Sturz, via correspondéncia, que os escritos do cénsul em reptidio 4 manutencfo do sistema de trabalho forgado, quase ndo tinham repercussao no Brasil, dado que boa parte de suas regadot . pelo empregad iscun Ne, 30 BLUMENAU, Hermann Bruno Otto, Sidbrasilien in seinem Beziehungen zu deutschet do século XIX e limitandg aac he bilidades de anilise”, Poss, Essa cultura historiea enaltecia apenas os feitos dos imigrany destaque, com énfase as liderangas locais ligadas 4 colonizacio ae de colaborando para divulgar uma situaglo baseada no mito fundagae™> sonifcado na figura de Hermann Blumenaw*. Tais discursos de ge zagio da Col6nia Blumenau ainda vigoram insistentemente ne ¢°t2 80 de boa parte da historiografia sobre a Imigragao no Brasil, pon” convém aos historiadores da atualidade identificar as “regulariden aprender as continuidades ou atualizar as fendas, as roturas”, p, or . ses ¢ outros motivos, a investigagio pormenorizada das narratives H. Blumenau viabiliza ampliar consideravelmente o debate sobre a cg lonizagao estrangeira no Brasil, com base na questo da “mudanga ng historia e em historia”. 72 OBERACKER JUNIOR, Carlos Henrique. A colonizagio baseada no regime da pequens Propriedade agricola. In: IGLESIAS, Franciso etal. O Brasil moncirquico: reagies et 8. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2004, p. 277. (Histéria Geral da Civilizacao Brasileta ¢ 5). 73 Cf: LORIGA, Sabina. A biografia como problema, In: REVEL, Jacques (org). Jogos de escalas experiéncia da microandlise. Rio de Janeiro: FGV, 1998; ENDERS, Armelle. Os wuiltos da magi, fibrica de heréis e formagao dos brasileiros. Rio de Janeiro: FGV, 2014. 74 Para contrapor tais vertentes historiograficas Cf: NICOCELI, Vanes: "ERREIRA, Cristina, regresso do colonizador: representagdes, usos da meméria e mito fundador em Blumenau = 1974, Blumenau em Cadernas, Blumenau, t. II, n. 6, p. 22-49, nov/dez. 2011; FERREIRA, Cristina. Sobre memérias cristalizadas e 0 mito fundador na Personificagao da Colénia Alem Blumenau (1856). In: CARNEIRO, Deivy; KARSBURG, Alexandre; VENDRAME, Maira Ines (org.). Priticas de micro-histdria: diversidade de temas ¢ objetos de um método historiogréfica ‘Sao Leopoldo: Oikos, 2022. p. 692-705, 75. Prova disso foi que no ano de 2019 foi comemorado em Blumenau o bicentenério de H. Blumenau, com celebragdes e eventos dos mais diversos em homenagem ao antigo diretor colonial, cm destaque para a simbologia da invengao das tradicdes, com selos comemorativose um monument banhado a ouro inaugurado pelo prefeito municipal. A organizagio desse tipo de ocasio festa compactuou com a legitimagao de uma meméria histérica de cunho oficial, sustentada por grandes Personagens ¢ tais praticas inspiram a nés, historiadores, a uma necessdria “reescritura do passid®. Cf: DESFILE em Blumenau comemora o aniversério da cidade e os 200 anos do fundadot. SANTA. Jornal de Santa Catarina. Blumenau, 02 set. 2019, Disponivel em: https.//www.nsctot com.br/noticias/desfile-em-blumenau-comemora-o-aniversario-da-cidade-e-0s-200-anos-d0 fundador. Acesso: 02 jun. 2021. 76 HARTOG, Francois, Crer em: histéria. Belo Horizonte: Auténtica, 2017, p. 24.

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