You are on page 1of 9
PHILIPPE STEINER A SOCIOLOGIA ciologia ecor do mercado Pode a sociologia econémica estabelecer-se no mercado quando a teo- ria econdmica ocupa firmemente e sozinha esse terreno? Se, na pesq- sa aplicada, as diferencas entre as duas disciplinas néo so pronuncia- 1s, 0 mesmo néo se dé na ceoria, nesse nivel abstrato que constitu a :eferéncia dos economistas, De que modo pode a sociologia impor seus :nétodos em um dominio que ela negligenciou durante meio século? Que novidade the permite, a partir do fim dos anos 1970, tentar esta elecer-se nesse terreno? Por fim, que tarche especifca da sociologia scondmica a distingue da teoria econémica quando uma ¢ outra tratam do mesmo objeto? Comportamento racional e sistema de mereados Pasa o seonomista contemporiin ado a0 encontro de uma curva de oferta e de uma curva de demanda, sultance do comportamento de agentes cujas relagées estio esvazia: saiquer contetido social. Estudando 2s relagées entre a deman- 22, a oferta e 0 valos, em um capitulo intitulado "On Markets", Alfred farshalt declara: sta parte nfo é desertiva, ela no ‘de maneira construtiva, Mas elabora a estr conhecimento sobre os motivos que influenciam o valor, e prepa- (0s problemas reais ura tebriea de nosso ra, assim, as reflexes que se seguem (a distribuigio da ren (MARSHALL, 1961, p. 324), ip Na verdatie, 0 autor ensina que um mercado é bem organizado na medida em que hé unieidade do prego de um bem em um determinado periodo. (© mercado ds teoria econdmica é ura conceito muito abstrato, re ultaco de tim processo de racionalizagao do conhecimento econémico, -castrugio hid pelo menos dois séculos. Esta abservagiio deve ter 9 mérito de impedir que se creia que estamos nos desembaracando de problemas levantaclos pela teoria econdmica ao denunciar o que parece come que um ectoplasma de realidade social. Ocorre com o mercado 0 mesino que ocorre com 0 agente econémico ~ 0 famoso homo oecono- mmicus ~ que se avia nesse terreno. John Stuart Mill (1843, T, p. 497) cexplicava, ao apzesentar esse personagem, que néo havi ul suomsta que acteditasse que os individuos agissem realmente da manei- 18 como agiria 0 homo oeconomicus; da mesma forma, 0s economistas contempordneos dizem que sua representaglo teérica do mercado no se confunde, de modo algum, com a representagao do mercado que eles tém enquante individuos. Abstrapées sets, rariamente @ certas afitmagGes (BARBER, 1977), nfo seria di ficil demonstrar que a economia politica, do século XVII aos nossos lias, nbriga abordagens muito mais ricas em contetides sociais do que omimente nos recordamos. Eneretanto, nda se trata de negar a di- va das sbordayens, mas de lamentar que a que mais agrada 20s socigiogos-cconamistas seja relegada em favor da abordagem Formal e strate, E preciso partir do que ha de profundo e de importante nessa resentaglo absie2ta de moda a tornat clara a contribuigao da teoria scondinica ¢, assim, registrar essa interface A qual a sociologia econ6. mica resist. otes de tudo, © mercado abstrato é 0 lugar adequado ao livre cur 440 comportamento, igualmente abstrato, do homo aeconomicus, que A sociolgisecondimice do merida. 32 age movidio pelo tinico objetivo do ganho econémico e de acordo com uoa regra “econdmica” de maximizacio do resultado de sua aco, pro- porcionalmente aos meios empregados (ou por meio ca minimizagio dos mei lum resultado dado). Afirmar isto equivale a dizer que a teoria econémica utiliza 0 mercado como meio para defini as carae- teristcas do comportamento economicamente raconal; para tanto ad- rite hipoteticamente uma situagdo em que esse comportamento possa se desenvolver sem entraves. Cabe, aqui, retomar uma afirmagio de Simiand: 0 economista define mandos passives, quer dizer, resultados tebrieos lgicamente possveis a partir de um mercado em que se encon- tra um grande nimero de agentes semelhantes, Por essa razlo, alguns teérieas medemnos da teoria da escolha racional consideram, com razio, aque esta teoria tem dimenséo normativa importante (ELSTER, 19888, Cap. 2-4; 19890, Cap. 1; SEM, 1987), talvez essencal. | teoria da escolha racional ‘A teora da escola raconal tornou-se, depois de Fareto, John R Hicks € LUone! Robbins, ponto de partida da teora econbmica moderna, O com: portarenta do agente ecanémica &, entéo, abordado em termes de escolha real ou virtual, entre opgbes alternatvas A partir dessasescolhas, que supos- tamente reseitam 0 axioma de transtvidade, em espacial, pdem-se daduzie. cunvas de inference das quais decorre a teria mieroeconémica do consu midor A vantagem esperada dessa abordagem est, fundamentalmente, em lum nivel metaterico: gracas 2 ela pode-se prescindt de uma referéncia & utlidade e4 doutrina ubitarita, Coma afrma Elster (1989, Cap, 3), 2 teoria imita-se a afrmar que, dian {ede aliemativas, os indivdus fazem habitualmente 0 que eles pensam que everd produzir © melhor resultada, Por conseguinte, « comportamento &, supostamente, um comportamenta instrumental, ou sea, cle € narteado pelo ‘esultado esperado da ado. Sastante simples em seu enuncada inca, esta ssa torna-se bem menos simples quando seleva em conta ainteragdo entre varios indviduos (SHUBIK, 1982), ou quando se consideram escolhas em um enério incerto (MACHINA, 1987). Com Robins, a teora da escolha raeional tormou-se uma pega decisive {3 expanséo da teria econdmica em direcdo a outras areas das cdncias sodas. Realmente, j8 que os seres humancs esto suetos & “escasser do tempo, hé um outro lado, a concepsae abstrata do mercado utilizada pela teo- ‘a econdmica permite estudar os fendmenos de interdependéncia que cexistem entre os diversos mercados, vinculados entre si para formar lum sistema de mercados. Nao é, ento, tanto 0 mereado que constitui © objeto da teoria econdmica, mas o sistema de mercados, sistema in- terdependente e independente de qualquer regulacao externa, seja ela religiosa, moral ou politica. £ por isso que, para Schumpeter, a teoria do auiiforio geral constitui a grande referéneia teérica do economista e, Por conta disso, torna-se um jogo apaikonante para os econornistas ou: Para aqueles que se interessam pela teoria econémica, Dai decorre a forte atrago que os economisias tém por estas pesqui- 52s lSgicas, atragio delatada pela inclinagio por um formalisme despo- Jado de significagao explicativa, Para escapar de algo que acaba dando em incompreensio miitua, é preciso insist no fato de que, nas cigncias socials, ateoria tem como tarefa, precisamente, estudar os fendmenos ae interdependéncia, pois estes tiltimos escapam aos atores, invadidos ‘tanto pela influéncia direta dessa interdependéncia, quanto por solic ta¢3es no Ambito reyulador, politico ou outro, 0 que toma complicado. # 10s teoricanente e dominé-tos na pritiea, ‘Arocilogia scondoice do merenda 38 No entanto, a imporsAncia destas relagées de interdependéncia & tal ‘que elas podem, por si s6, constituir a razo de ser da ciéncia social Aliés, ndo se deve esquecer que, nos primérdlos da sociologia, Comte hhavia colocado 0 fenémene do consensus, ou seja, exatamente a idéia da ‘mitia dependéncia entre as fungies sociais. A interdependéncia tem 2 ver com a sociologia em muitas de suas dimensdes e seria cegueira, uma cuciose ceguelra, ceconhecer sua importéncia em uma drea das ciéncias socials # deixar 4e reconhecé-la em uma outra. porém nao suficientes Reconhecer 2 validac= da teoria econémica ndo significa aceitar to- das as suas elaboragies #, menos ainda, aceitar todas as suas conclu- Bes. Ao estudar as conseqiigneias I6gicas do comportamento egoista e as interdependéncias existentes no interior de um sistema de mercados, a teoria econdmiea procuz conhecimentos titeis 4 cigncia social, po- dm eles nio sao sufleientes. Razées teéricas e emplricas sérias levam ‘esta reserva. A teotia do equilibrio geral, com seu corpo completo de ‘mercados em que os ind:viduos agem segundo sinais emitidos por um epertério de pregas e, logo, sem se preocupar nem com 0 comporta- ‘mento dos outtos individuos nem com outras formas de relagSo social, apdia-se em hipdteses maito especificas no tocante & sociedad, Dando prosseguimento aos argementos de André Orléan (2004, 2005), pode- se dizer que, na teoria do equilibrio geral, 0 social encontra-se concen- trado em das hipsteses: a primeira supée que os individuos conhecem repertério de bens disconivels e nfo hé qualquer incerteza quanto a suas propriedades ¢ qua‘idades, enquanto que a segunda hipétese st- _pbe que os individuos est4o a par do cendrio futuro do mundo e da pro- babilidade de sua efetivaclo. Nessa perspectiva, as relagies sociais que 0s individues mantém so consideradas sem importéncia e desneces- sérias: o social é completamente transparente ¢ 0 individuo pode agit da melhor maneia possivel no que toca a seus interesses, baseando-se lunicamente nas informagSes dadas pelos pregos relativos. ‘A ago empirica dos individuos ndo tem grande coisa a v= ‘comportamento (supasto) do homo oeconomicus. Por exess' 28 pperimentos de psicologia econdmica revelam de maneira recorrente @ cexistincia de diferencas marcantes entre os resultados esperadas e os resultados observados nesses estudos, resultados que identificam toda yuma série de anomaiias embaragosas para a teoria econémica ortodoxa ‘ALER, 1992) 4 contribuigdo da sociologia econémica 5m conformidade com a démarche da sociologia econbmica cléssica, 28 nova socioiogia econémica se interessa pelas condligdes de funciona: mento do mercado quando as duas hipéteses, sobre a qualidade dos beens € 0 ends fururs, so afastadas. A partir desse momento, fica SocolgisEeonémise «Serine se uma forma generalizada de relagio social? Os estudos de Zelizer svecados poem servir de Qustragie dessa problemética. Com efeito, ewiaade ce comercializagao do seguro de vida leva a colo- ‘car questi das mudancas axtolégieas que ocorrem quando uma nova ‘mercadoria faz corm que as relagdes monetitias e as relacées intimas fentiem em contato. Hé um enfraquecimento dos valores morais com fsa situagko? Acaso se observa umm aviltamento dos individuos, colhi- os em relagdes mercantis novas? Tal ndo ovorre, segundo a autora, que wonstra que estas novas relagées monetérias so submetidas a um ‘aramento simbéiico, de tal maneira que, no séeulo XX, “boa morte” 8 morte do individuo que deixa recursos para seus préximos por meio Ge seu seguro. © mesmo tipo de questo pode se colocar, nos dias que orem, a propésito da doagii de sangue (TITMUSS, 1970) eda doagio de dros (STEINER, 2004a): quais seriam as conseqiléneias dessas pe- ticas sobre o ripe de humanidade que emergiria a partir do momento em {que se atribuem direitos de propriedade do individue sobre seu corpo e ‘ eriem mereados de érgaos (rim, medula éssea) para transplante?

You might also like