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UMA [NTRODUCAO AO DIREITO PROCESSUAL 95 _ nexdo entre si, coordenando-se e sucedendo-se, de modo a corres- _ ponderem aos varios elos de uma cadeia. Por isso, 0 processo € um ' encadeamento. O processo judicial, por exemplo, ¢ a sucessao de eventos como 0 ajuizamento da petic¢ao inicial, a citagao do réu, a designagao de audiéncia, 0 transcurso do prazo de recurso, a oitiva de testemunhas. Ha vinculo entre eles: a citago sera antecedida da peticao inicial, a sentenca sucedida pelo prazo recursal, e assim por diante. Cada etapa do processo cumpre sua propria fungao, mas ha {i- gacao entre elas: servem logicamente como antecedentes € conse- ‘qiientes umas das outras. A seqiiéncia de formalidades nao é alea- téria; ha uma ordem a ser observada, um itinerario a seguir. Ade- thais, os varios passos sao necessarios: nao se pode dar o segundo passo sem que o primeiro tenha sido cumprido. Assim, 0 processo 0 encadeamento necessdrio e ordenado de eventos. No processo legislativo, a iniciativa (propositura do projeto de lei) segue-se a dis- ‘cussdo, depois a votagao, em seguida a sangdo. Nao pode haver san- ‘80 (ou veto) de projeto nao votado, nao ha votagao de projeto nao proposto. O processo nao se compde apenas de atos, mas de aros e fatos. No processo judicial, séo atos o ajuizamento da peticao inicial, a citagdo do réu, a designagdo de audiéncia, e fatos o transcurso do prazo para recurso, a oitiva de testemunhas. O processo pode visar a criagao de ato juridico: um ato admi- nistrativo, uma sentenga, uma lei. Mas também serve 4 execugio dele, como no chamado processo de execugao judicial, destinado a dar cumprimento a sentenga. Destarte, 0 processo é 0 encadeamen- to de eventos destinado a formacdo ou execucda de atos juridicos. 2X Por fim, o processo é técnica para a produgfo (ou execugdo) de um especifico tipo de ates: aqueles cujos fins sio determinados por normas juridicas, que se busca aplicar. E a situagao dos atos de direito piblico, emanados no exercicio de fungao. O publicista portugués Alberto Xavier, detalhando esse Ultimo aspecto, ao cunhar seu conceito de processo, escreve: “Se entendermos que o método seguro para a defini¢ao deste conceito é tomar como ponto de partida 0 processo judicial, como j4 salientamos, entao ha que investigar mais de perto a fun¢ao ¢ re- % FUNDAMENTOS DE DIREITO PUBLICO levancia que neste desempenha e representa a tal sucessao de atos e fatos, sem nos atermos a verificagao formal da sua existéncia. Ora, esses atos e fatos, cuja sucessao constitui o niicleo do processo, en- tendido no seu significado comum, exercem, como teremos ocasiao de desenvolver, a fungiio de formalidades: trata-se de permitir, por quem ha de julgar o pleito, a formagao de uma vontade corretamen- te esclarecida que possa, pela apreensao exata dos fatos e das pro- vas, apurar a verdade material, fazer respeitar o Direito e, do mes- mo passo, os interesses postos em causa. A petigao inicial, a con- testagao, os prazos a elas referentes, sdo instrumentos que no pro- cesso visam obter, da autoridade judicial, uma vontade lucida e pon- derada. “O processo esta, pois, intimamente ligado ao problema da vontade e da sua formagao. E certo que nos simples particulares a formagao da vontade nao é objeto de uma disciplina processual; mas esta observacao sé revela que ai onde essa disciplina se impde é quando se trata de adequar a vontade psicolégica individual a fins legalmente determinados, ou seja, quando esté em causa a manifes- tagao de uma vontade funcional” (Do Procedimento Administrati- vo, pp. 17 e 18). Em coeréncia com essa idéia, 0 autor define 0 processo, em termos semelhantes aos nossos, como a “sucessao ordenada de for- malidades tendentes 4 formagao ou execugao de uma vontade fun- cional” (ob. cit., p. 21). € 7. Convém nao confundir, pensando especialmente no proces- so judicial, processo com autos. Quando o advogado diz que vai “retirar 0 processo do cartério para elaborar recurso contra a sen- tenga”, esta usando a palavra em sentido impréprio. Refere-se aos “autos”, isto é, a0 conjunto de documentos em que estdo materiali- zados os atos e fatos do processo. O processo é realidade abstrata (um encadeamento de atos ¢ fatos) que se corporifica numa série de documentos, os autos. Mencione-se também, tratando ainda do problema terminolé- gico, a discussdo em toro da diferenca entre processo e procedi- mento, Empregamos no texto as duas palavras indistintamente (dai falarmos em “processo” judicial e “procedimento” administrativo visto estarmos formulando uma teoria geral, que se pretende aplica- UMA INTRODUGAO AQ DIREITO PROCESSUAL 97 vel a todo o direito publico, e néo a uma parcela deie. Contudo, os estudiosos do direito processual — isto €, do ramo do direito piblico que estuda as normas relativas 40 processo judicial ~ costumam dar sentidos diversos as duas expressdes. Nao nos interessa participar da polémica, {til apenas no campo em que travada. 3. Relacdo juridico-processual 8, No processo judicial ervil, o juiz decide disputa entre dois sujeitos em torno da aplicagao da lei; diz o direito no caso concre- to: define qual é a relacdo juridica existente entre autor e réu (ex.: 9 dever de A pagar certa quantia a B). Através do processo legislati- yo, o Parlamento pée a lei, que vai regular as futuras relagdes entre os individuos (fixando, por exemplo, 0 direito de os consumidores: obterem produtos de primeira necessidade). No procedimento administrativo edita-se ato constituindo rela- do juridica entre a Administragao ¢ o individuo (ex.: imponda pe- nalidade de suspensdo ao funcionario que praticou falta funcional). Os processos estatais tém por objeto certas relagées que sao por meio deles definidas, reguladas ou instauradas: as relagdes ju- ridicas matertais. Elas nao se confundem com a relagdo juridica pro- cesstial, isto é, com o conjunto de direitos, poderes, deveres, Onus e faculdades atribuidos aos sujeitos que participam do processo. 9. Percebemos essa disting&o pelo fato de os sujeitos da rela- ¢do euvolvida no processo legislativo (o Presidente da Republica que apresenta o projeto de lei, os parlamentares que 0 examinam) nao serem os mesmos dos vinculos juridicos regulados pela lei (comerciantes e consumidores, no caso da lei de defesa do consu- midor). Também o contetido das relagdes juridicas material e proces- sual é diverso, Tome-se 0 processo judicial provocado por A para obter o despejo de B. O contetido da relagao material entre A e Beé o dever, decorrente do contrato de locagao por eles firmado, de B desocupar o imével O contetido da relacdo juridica processual instaurada entre o Estado-juiz e as partes (A e B) é a prestacao jurisdicional, isto € a obtengdo de sentenga, que o Estado deve editar. 98 FUNDAMENTOS DE DIREITO PUBLICO. 10. A perfeita visualizagdo dessas diferengas permite compreen- der a existéncia de direitos, deveres e nus de indole processual des- vinculados da relagao juridica material. Assim, A pode nfo ser titular do direito de crédito contra B, mas possui direito 4 sentenga do Estado em agdo de cobranga que proponha. Tem o direito de a¢do — de movimentar a mquina judi- cial para obter a sentenga -, embora nao tenha o direito de crédito que pretende ver garantido. E 0 individuo B, mesmo nao havendo travado qualquer relagdo material com A, tem o énus de se defen- der na agao. O acusado em acao penal, mesmo se efetivamente culpado — e, conseqiientemente, sem o direito (material) de sair livre -, desfruta- ra do direito de se defender normalmente no processo. Qualquer empreiteiro tem o direito de que a Administracio, decidindo construir uma obra, inicie procedimento de licitagéo, no qual podera formular sua proposta. Trata-se do direito de participar do procedimento, que nada tem a ver com um hipotético direito de ser contratado (que, no caso, inexiste em favor de qualquer pessoa). II, De outro lado, torna-se possivel evidenciar aspecto de suma relevancia nos atos estatais, Sua validade, seu ajustamento ao Di- reito, nado depende apenas de seu contetido estar de acordo com a norma juridica superior. E indispensvel também que o ato seja fru- to de processo realizado rigorosamente de acordo com o previsto. Caso contrario, sera invalido, por vicio processual, ainda que seu contetido esteja correto. Para constitucionalidade da lei nao basta seus preceitos serem coerentes com a Constitui¢ao (por exemplo: a lei trabalhista respei- tar os direitos dos trabalhadores previstos no art. 7°). Fundamental também haver sido regularmente votada (observando-se, por exem- plo, o quorum de aprovagao das leis ordinarias). A sentenga penal condenando o réu seré nula, mesmo se este houver efetivamente praticado o crime de que € acusado, caso ele nao tenha sido devida- mente citado para 0 processo. 4. Esquema geral dos processos estatais °s 12. Os processos estatais tém certas caracteristicas comuns. Uma delas é a de que a validade dos atos subseqiientes depende de _— UMA INTRODUCAO AO DIREITO PROCESSUAL 9 haverem sido corretamente praticados os antecedentes. A votagao de projeto de lei sera nula se o projeto, da iniciativa exclusiva da Mesa da Ciimara dos Deputados, houver sido apresentada pelo Pre- sidente da Republica. Assim também se passa no processo judicial eno procedimento administrative. No entanto, sdo muito distintos um processo do outro, ligados que estao a diferentes fungGes estatais (a legislativa, a judicial, a administrativa). £ util ligeira referéncia a cada um. 41 Processo legislativo 13. O processo legislativo a ser observado pelo Congresso Na- _cional vem previsto nos arts. 39 e 69 da Constituicdo da Republica. Compreende basicamente trés fases: a introdutéria, a constitu- tiva e a complementar (Manoel Gongalves Ferreira Filho, Do Pro- vesso Legistativo, p. 210). A fase introdutoria, que inicia 0 processo, € a da propositura do projeto (iniciativa legislativa). A constitutiva, ao finn da qual sur- ge a lei, compreende a discussdo € votagao do projete pelas duas Casas do Congresso, bem como a sangiio ou veto pelo Presidente da Republica. Na fase complementar so praticadas os atos volta- dos a certificar a existéncia da lei (promulgagao) e a dar-lhe conhe- cimento piblico (publicagao). 14. Os atos & fatos integrantes dessas varias fases so 1egula- dos peta Constituigao, que determina quem é titulado para praticar cada um dos atos procedimentais (a iniciativa cabe aos congressis- ‘tas, ao Presidente da Republica, ao povo etc.), quais os prazos a serem observados (o Chefe do Executivo tem 15 dias para sancio- far Ou vetar o projeto aprovado), e assim por diante. z. O objetivo desses diversos passos € permitir a interagfo, quan- lo da produgdo das normas legais, entre os Poderes do Estado (es- pecialmente o Legislativo e o Executivo) ¢ entre o Legislativo e os grupos sociais organizados (estes através dos lobbies e da iniciativa ‘popular das leis), bem como propiciar a participagio dos grupos politicos minoritarios no Parlamento. Tudo isso conduz a um am- plo debate e choque de interesses, saudavel para que a lei venha a obter o respeito e acatamento da sociedade. 100 FUNDAMENTOS DE DIREITO PUBLICO Assim sendo, as varias etapas do processo sio juridicamente reguladas, devendo ser rigorosamente observadas na produgao do ato legislativo. 4.2 Processo judicial 15. Ha varias espécies de processos judiciais: proceso civil, processo penal, processo trabalhista — destinados, respectivamente, a aplicagao da lei civil, penal e trabalhista, com suas caracteristicas proprias. Cada um, por sua vez, admite subespécies. Os processos civis, por exemplo, podem ser, de acordo com o Codigo de Proces- so Civil: processo de conhecimento, processo de execugdo, proces- so cautelar. O exame detalhado deles é objeto das disciplinas juridicas pro- prias: os direitos processual civil, processual penal e processual tra~ balhista. Nao € possivel, a esta altura, avangar muito no seu estudo. Entretanto, pode-se apresentar esquema sumiario de um deles. 16. O processo civil de conhecimento, destinado por hipdtese 4 obtencao de sentenga condenando o devedor a entrega do bem que vendeu, seguird sucessivos passos, expostos resumidamente a seguir: — propositura da ago, com a apresentagao, pelo autor, da peti- Go inicial; —exame, pelo Juiz, da petigdo inicial, e ordem para a citagdo do réu; — citagao do réu para oferecer sua resposta; ~ fluéncia do prazo para a resposta; ~apresentagado da contestagado pelo réu; —intimagao do autor para se manifestar sobre a contestagdo; —realizagao de audiéncia de conciliagao; — decisdo sobre a pertinéncia das provas requeridas; —designagao de audiéncia de instrugao ¢ julgamento; —realizagdo da audiéncia; ~ prolacao da sentenga julgando improcedente a aga — intimagao das partes da sentenga proferida; — fluéncia do prazo para apresentagao de recursos; UMA INTRODUGAO AO DIREITO PROCESSUAL 101 — oferecimento de recurso pelo autor; — intimagao do réu para apresentacao das contra-razdes de re- — fluéncia do prazo para contra-razdes; —apresentagio de contra-razbes; —remessa dos autos ao Tribunal; —julgamento, acolhendo-se o recurso e, em conseqiiéncia, jul- o-se procedente a agao; — transcurso do prazo sem apresentagao de novo recurso; ~transito em julgado da decisao. O Cédigo de Processo Civil regula detalhadamente cada um ses eventos, estabelecendo a forma, o prazo, os efeitos de cada assim por diante. 17. O objetivo dessa seqiiéncia de etapas € permitir que a deci- 0 judicial seja, em primeiro lugar, imparcial, por ditada apés a ifestagao das partes envolvidas. De outro, que seja fruto de inciosa coleta de dados. Por fim, que nao resulte da vontade oal do julgador, mas do concurso de juizos das varias ins- ias judiciais. 3 Procedimento administrativo 18. Na Administracgaio Publica, como reflexo da diversidade de s atribuigdes, convivem miltiplas espécies de procedimentos, das a dar esteio aos diferentes atos administrativos. A contratacdo de particulares para a realizado de obras, pres- de servigos, fornecimento de bens em geral, por exemplo, de- de de licitagdo. A admissao de servidores publicos se faz median- ‘concurso piiblico. A aplicagao de sangdes administrativas é pre- lida de procedimento sancionatério. | 19. Variam os objetivos de cada procedimento. A licitagao e o o piiblico visam permitir que muitos particulares disputem, ‘modo limpo e igualitirio, o beneficio oferecido pela Administra- (0 contrato e a nomeagao para 0 cargo piblico). O procedimen- Sancionatério pretende assegurar a ampla defesa do acusado an- de ser afetado pela sangao. Capitulo VIE O que é Direita Administrative? Sempre que me pedem uma exposigéio breve sobre o ramo do direito ao qual teaho dedicado a minha vida, lembro-me das des- venturas de um Prefeito-empresario que conheci em um congresso sobre Municipios. Depois de ouvir minha palestra, o homem levan- tou-se do auditérie e, com um jeito simpatico mas sem qualquer pie- dade, passou a desancar 0 direito administrativo e os franceses. Sob as gargalhadas ¢ aplausos entusiasmados da platéia, composta ex- clusivamente de Pretcitos, cle encerrou profeticamente seu qua: discurso: —“Ou a gente acaba com 0 tal direito administrativo ou ele aca- ba com a gente!” Na saida, 0 homem me abordou para pedir desculpas pelo ex- cessa e dizer que nada havia de pessoal em sua proposti. Estava apenas pensando no Brasil... Dai, contou sua historia. Depois de comandar durante 28 anos a empresa de sua familia, em uma cidade de porte médio, resolveu se candidatar ao cargo de Prefeito. Durante a campanha, prometeu empregar sua bem-sucedi- da formula empresarial na adrainistragao do Municipio. Foi elcito Levou para a Prefeitura, como secretarios e assessores, os mais ex- perientes empregados de sua empresa, inclusive 0 advogado de con- fianga, um homem inventivo e culto, responsavel pela montagem Juridica de todos os negécios importantes que realizara na vida. Mas ficou decepcionado com seu antigo conselheiro, ja agora feito Procurador-Geral do Municipio. No cargo, este perdeu o bri- lho e o impeto; virou um burocrata, apaixonada por papéis, prazos, publicagdes, formalidades, Nao demorou e ele se pos a criar difi- culdades para qualquer coisa, uma enxurrada de ndos sem fim (— “Nao, Prefeito, iniciar a obra amanha nao € possivel; o contrato com a empreiteira precisa ser publicado antes”. — “Nem pense nisso. Eu © QUE F DIREITO ADMINISTRATIVO? 103 sei que o prego parece bom, mas comprar carteiras escolares de- pende de licitagdo”. — “Lmpossivel, Prefeito. Nao ha autorizagao le- ‘gal para a Prefeitura impedir o fumo na via piiblica”). Quem diria? Logo ele, que aparentava tanta cultura juridica, acabou também perdendo a autoconfianga (— “Eu nao sei responder agora, Prefeito, se é possivel vender 0 prédio do mercado munici- pal para quitar dividas do Municipio; parece que ha umas condi- gbes, muito complicadas, a atend O pior, entdo, foram as humilhagdes que 0 Prefeito acabou su- portando, uma em seguida 4 outra, sem que 0 adyogado a impedis- Se. Primeiro, foi a ordem do Juiz da Comarca — quase um menino - proibindg o uso do aterro sanitario recém-inaugurado, por proble- Mas ambientais. Depois, a sustagao, pela Camara de Vereadores, do _ contrato envolvendo toda a publicidade da Prefeitura, que fora con- siderado ilegal pelo Tribunal de Contas (por falta de licitagao, ai meu Deus!). A gota d’agua foi a divulgacdo de um parecer, da pré- pria Procuradoria do Municipio, entendendo aulo, por ilegalidade, ‘um ato do Prefeito: como se nao bastasse a ousadia de assinar um texto assim, o Procurador ainda deixou 0 interessado tirar uma cd- pia, que fez a delicia dos jornais! O Pracurador-Geral, desgostoso de tudo, pediu exoneragao. O Sucessor, que ioge apareceu com os mesmos vicios, também nao durou no cargo, E a histéria foi se repetindo, até que, um tanto a sério um tanto por desforra, o Prefeito anunciou pela imprensa gue iria nomear um engenheiro para o posto de Procurador-Geral. Foi ,impedido por uma liminar (mais uma!). Estressado, 0 Prefeito buscou conselho com um desembarga- dor aposentado, que mantinha uma chacara na cidade. Perguntou- the se a causa de seus problemas nao seria um complé, Ficou sa- bendo que nao: a causa era mesmo 0 direito administrativo, coisa de franceses, Por isso, tomou ddio do tal direito administrativo - ¢ dos franceses. Nesse ponto estava, no dia em que o conheci. Sai de [4 pensando que o direito administrativo — a parte do ordenamento juridico voltada 4 disciplina da organizagao, funcio- namento ¢ controle da Administragao Publica e, em conseqiléncia, 104 FUNDAMENTOS DE DIREITO PUBLICO de suas relagdes com terceiros — talvez seja mesma o inferno dos administradores. Sua misso parece ser essa, alids, E verdade que o ordenamento confere a Administragio Publi- ca uma série de poderes inexistentes em outros campos (nas rela- ges entre empresas, entre vizinhos etc.). Ela edita regras, fiscaliza, aplica multas, expede licengas, requisita bens, inicia desapropria- ges, langa impostos. Desse ponto de vista, é bem melhor ser 0 po- deroso Prefeito do que um diretor de empresa — que, manobrando no campo do direito privado, nao exerce qualquer autoridade ¢ tem de se virar na base do consenso. Uma boa parte da especificidade do direito administrativo vem dai; da circunstancia de regular o exercicio de autoridade piiblica, materializando-se em uma série de institutos de que o direito priva- do nem cogita (como a desapropriacao, o tombamento, a requisigao, a servidao administrativa, a licenga, a autorizagao, a revogagao etc.). Mas nao é sé, A atividade administrativa € desenvolvida por uma maquina, uma certa estrutura (pessoas politicas, drgdos, Ad- ministracao direta e indireta, autarquias, sociedades de economia mista, empresas publicas, fundagdes governamentais, servidores publicos...). Sua organizagao, relativamente complexa e bastante peculiar, baseia-se em uma série de regras: normas de direito admi- nistrativo. Inevitavel que o antigo advogado de empresa, mesmo culto, sentisse inseguranga quando defrontado com as questdes juridicas da Administragao Municipal: elas envolvem um universo todo par- ticular. Como qualquer outro ramo da drvore juridica, o direito ad- | ministrativo tem seus modos, suas tradigdes — sua cultura, enfim, | que as normas incorporam. A parcela da ciéncia juridica dedicada a seu estudo — isto é, a doutrina do direito administrativo — vale-se de termos, conceitos, classificagdes, lugares-comuns etc., nem sempre familiares ao profissional do direito privado, Tudo isso se complica porque, ao contrario de outros ramos, 0 direito administrativo nao esta codificado. Enquanto o direito civil pode ser, por assim dizer, “comprado” em uma livraria, pois suas normas estéo em grande parte reunidas e organizadas em um livro (um cédigo), o administrativo esta disperso por todo lado, inclusive na forma de principios apenas implicitos no ordenamento. O QUE € DIREFTO ADMINISTRATIVO? Ws Duas classificagdes sao indispensaveis para 0 iniciante locali- gar adequadamente o direito administrative no mundo do direito e, em seguida, comegar a entendé-lo, A primeira é a que distingue os dois grandes ramos do direito: o privado e o publico; a segunda, a que separa as fungées de Estado em judicial, legislativa e adminis- ‘rativa. As caracteristicas do direito administrativo, um ramo do direi- to publico, afirmam-se, em primeiro lugar, por oposi¢gao ao direito privado: Direito Administrativo x Direito Privado Interesses puiblicos x Interesses privados Autoridade x Tgualdade RelagGes juridicas verticais x Relagdes juridicas horizontais Legalidade x Liberdade Fungio x Autonomia da yootade Formalismo x Informalismo Publicidade x Intimidade — As normas de direito administrativo regulam a realizagio do interesse piblico e conferem 4 Administragio, encarregada de bus- ca-lo, poderes de autoridade, cujo exercicio produz relagbes juridi- cas verticais (em que ela tem uma posi¢aa de superioridade frente a0 particular). Mas esses poderes so muito condicionados: a Ad- Mministragdo sé os tem quando previstos em lei (legalidade): seu exercicio nio é mera faculdade, mas dever do administrador, e sd pode ocorrer para realizar os fins previstos em lei (fungdo). Para permitir seu registro ¢ controle, a agdo administrativa esta sujeita a publicidade e ao formalismo, exigindo a realizagdo de procedimen- tos ¢ a observancia de intimeros requisitos formalisticos. © Justamente aqui entram os franceses, Querendo impedir que o Poder Executivo ficasse sujeito aos juizes (membros da nobreza contrariada com a Revolugdo Francesa), os revoluciondrios france- ses atribuiram a missdo de julgar os atos da Administragdo a um Orgdo que a integrava, o Conselho de Estado. Esse orgio, perce- bendo a incompatibilidade entre as normas do Codigo Civil € os 106 FUNDAMENTOS DE DIREITO PUBLICO. problemas da Administracao, ¢ que viria a afirmar a necessidade de, para resolvé-los, ser utilizado um “outro direito”, 0 administra- tivo, construido em oposi¢do ao entao existente, o civil. A jurispru- déncia do Conselho de Estado foi, a pouco e pouco, identificando os pontos do Codigo Civil que nao deviam aplicar-se 4 Administra- go e, a seguir, enunciando as normas que, estas sim, serviam ao caso. Ao conjunto dessas normas denominou-se direito adminis- trativ As especificidades do direito administrativo, enquanto direito da fungao administrativa que é, revelam-se também no confronto entre os conceitos de fungao administrativa e de fungdo legislativa: Fungio Administrativa x Fungdo Legislativa Submissao 4 lei x Submissdo 4 Constituigdo Meu colega de congresso, ao tomar a imprudente decisio de empossar-se como Prefeito — e, malgrado seu, de sujeitar-se ao di- rejto administrativo —, o que fez foi colocar-se ao mesmo tempo de- baixo da Constituigdo e das leis. Realmente, o direito administrati- vo, tal qual nds o conhecemos, é fruto da separagdo de Poderes e da hierarquia normativa que dele deriva, nesta seqiiéncia: Constituicéo Lei Alo administrative As normas constitucionais estio no topo da piramide juridica e organizam 0 exercicio da poder politico, dividindo-o em fungdes {legislativa, judicial e administrativa), atribuidas precipuamente a cada um dos Poderes (Legislativo, Judiciario, Executivo). O Legis- lativo edita a lei, que sé submete diretamente 4 Constituigde, e a Administragao Publica produz atos administrativos, submetidos imediatamente a lei e dependentes dela. A direta dependéncia entre a lei e os atos do administrador esta na origemi das angustias de meu amigo Prefeito, que por certo é um homem poderoso, mas nao 0 todo poderoso. No exercicio do cargo, ele nao pode fazer o que quer, 0 que acha bom ou justo; deve fazer 0 que a lei manda — e nada mais. O QUE E DIREITO ADMINISTRATIVO? 107 gdministrativos niio poderao ser fruto dos caprichos das autorida- des. Dai, também, a submissio de toda a acdo administrativa a dife- rentes niveis de controle, sem o que nao ha como impedir 6 arbitrio. A Sameer de viabilizar o co are controle de of repaceee de em exigéncias como as de realizar ‘arocedimentie, de motivar os. atos, de publica-fos etc. Flexibilidade ¢ informalismo impediriam 0 indispensdvel controle. Talvez a mais ardente chama do inferno dos administradores seja a resultante da articulagao das fimgdes administrativa e judicial. Nenhum ato administrative é definitiva; todos podem ser levados ao exame do Judiciario, para aferig4o de sua legalidade. Isso gera uma inevitavel interferéncia dos juizes no fluxo da agZo adminis- trativa, a qual, inclusive por decisdes liminares e provisérias, pode ser paralisada, proibida ou dirigida para rumo diverso. Em suma, um. inferno! Aceitando a provecagao (“Ou a gente acaba com o tal direito administrative ...” ) tentei, sem muito sucesso, convencer meu in- terlocutor da inviabilidade de sua proposta. O direito administrati- vo é um “direito constitucionalizada”, vale dizer, um direito que decorre necessariamente da Constituigao. Sem mudar o proprio mo- dao de Estado imposto constitucionalmente, simplesmente nao ha, como varrer 0 direito administrative da face do Pais. ‘ Ao dizer isso, passei ao Prefeito meu exemplar da Constitui- Gao e lhe pedi que lesse o caput do art. 37. Meio contrariado, ele impostou a voz e leu: “Art. 37. A administragdo publica direta e indireta, de qualquer dos Poderes da Unido, dos Estados, do Distrito Federal e dos Muni- cipios obedecera aos principios de legalidade, impessoalidade, mo- ralidade, publicidade, eficiéncia e, também, ao seguinte: (...)". Esse dispositivo enuncia algumas normas fundamentais do di- reito administrativo. Expliquei: log FUNDAMENTOS DE DIREITO PUBLIC — Legalidade: a Administragao nao desfruta de liberdade; so podendo agir na aplicagao de leis; — Impessoalidade: os atos da Administragao devem watar iso- nomicamente as pessoas e dirigir-se a fins ptiblicos impessoais; — Moralidade: a movalidade administrativa: é, ao lado da lei, um padrao de observancia obrigatéria para os agentes publicos; ~ Publicidade: a agao administrativa deve désenrolar-se de for- ma transparente ¢ aberta, sem segredos; ~ Eficiéncia: a Administragéo nao pode se limitar a cumprir formalidades; seu compromisso maior € com a realizagdo efetiva dos interesses publicos. ~ “Entéo vamos revogar esse artigo”, anirnou-se 0 Prefeito. “Eu elegi um sobrinho deputado federal. Ele faz a proposta. Quem ha de ser contra? Ficamos livres desse direito administrativo”. Argumentei que a supressao do artigo seria inutil: ~“E possivel, claro, fazer reformas nas leis de licitagdes, de desapropriacgao, de concessao. Viavel, também, alterar ou suprimir os dispositivos da Constituigdo que cuidam de tapicos do direito administrativo (alias, a Carta brasileira de 1988, ao contrario das de outros paises, contém muitos desses dispositivos). [sso podera alte- rar o contetido do direito administrativo brasileiro. $6 que nao com- prometera sua existéncia, tampouco tansformard sua substancia, que se mantera enquanto o modelo de Estado permanecer”. Desanimado, meu interlocutor despediu-se. Mas pude ouvi-lo resmungar, na saida: ~*Sundfeld? © nome alemao deve ser disfarce. E um francés infiltrado!” Capitulo ViIt Equilibrio entre Autoridade e Liberdade 4. A sociedade coma titular ¢ destinatiria do poder 2. Competéncia. 3. Direitos dos partieutares. 4. A sociedade como titular e destinatéria do poder J. Em uma sociedade, os individuos podem ser divididos em dois grupos: o dos que exercem o poder, como agentes do Estado (os governantes), ¢ 0 dos destinatarios do poder (os governados). O exercicio do poder politico gera relagdes juridicas entre Es- tado ¢ governados. O Fisco, ao tributar um empresario, relaciona-se juridicamente com este. Assim também o Estado-juiz quando con- dena 0 criminoso 4 prisdo ou o Estado-legislador quando edita a regulamento da pesca. Em qualquer caso, Estado e individuos assu- mem reciprocamente direitos, poderes, deveres, faculdades. Interes- $a-nos saber quais sdo os termos fundamentais dessas relagdes, ou seja, descobrir como 0 direite piiblico regula as relagdes entre os exercentes do poder ¢ os seus destinatarios. * 2.0 primeiro dado cuja considerag’o € importante - por re- percutir sobre toda disciplina da matéria ~ é gue. cratico de Direito, os individuos nao sdo meros destinatarios, istc meros sujeitos passivos, do poder. Sao, vistos em conjunto, os ver~ dadeiros titulares do poder politico. O art. 1°, pardgrafo inico, de nossa Constituigao Federal o evi- dencia: “Todo poder emana da povo, que @ exerce por meio de re- presentantes ¢leitos ou diretamente, nos termos desta Constituigao”. O Estado nao desfruta de poder, na condigdo de dono ou se- nhor, mas como representante do titular, que é o povo. Os particu- lares, embora sofram 0 poder, ndo s4o mero objeto dele. E intniti- 10 FUNDAMENTOS DE DIREITO PUBLICO. vo, destarte, que as relagdes juridicas entre Estado e individuo, con- quanto marcadas pelo signo da autoridade — visto estar em causa 0 exercicio do poder politico —, no se processam: sob 0 império da submissado. Ainda mais porque o indiyiduo, mesmo em suas rela- gdes com o Estado, apresenta-se como sujeito livre, munido de di- Teitos, As relagdes juridicas de direito publico sao, destarte, vinculos entre um sujeito que exerce 0 poder politico, mas nao o ti agente publico), e um sujeito que titulariza o poder (em co conjunto com os demais individuos), mas nao 0 exerce; ao contrario, supor- ta, Este ultimo, porém, suporta o poder até certo limite: o dos direi- tos que lhe sao conferidos pela ordem juridica. 3. Assim, 0 direito publico tem a complexa missao de regular, de modo equilibrado, as relagdes entre o Estado — que exerce a au- toridade publica e o conseqiiente poder de mando ~ e vs individuos —que devem se sujeitar a ele, sem perder sua condigdo de donos do poder e titulares de direitos préprios. Gordillo, embora se referindo especificamente ao direito ad- ministrativo, expde com propriedade esse desafiio essencial do di- reito publico e as dificuldades da ciéncia juridica para enfrenta-lo: “O direito administrative ¢ por exceléncia a parte da ciéncia do direito que mais agudamente coloca o conflito permanente entre a autoridade e a liberdade. ‘Estado e individuo, ordem e liberdade: a tensdo encerrada nestas idéias sintéticas é insoldvel’, disse um au- tor; mas ainda que nao cheguemos a crer que a tensao ou 0 conflito seja insolitvel, e admitamos a possibilidade de um equilibrio dina- mico entre ambos, ¢ evidente que a obtengao de tal equilibrio ha de ser uma das mais dificeis ¢ delicadas tarefas da ciéncia moderna. “A historia registra primeiro o despotismo estatal sobre os in- dividuos; logo, e como reagao, a exacerbagao dos direitos do indi- viduo frente a sociedade; por fim, e como anseio, o equilibrio dos dois elementos essenciais do mundo contemporfneo livre: indivi- duo e sociedade, individuo e Estado. (...) “O equilibrio politico, a sensibilidade juridica, nao se satisfa- zem apenas com declaragées sobre a liberdade; devem ser 0 /eit motiv de tudo o que se pensa e decide sobre direito administrativo; devem ser a preocupa¢ao constante do jurista, nao s6 nos grandes EQUILIBRIO ENTRE AUTORIDADE £ LIBERDADE i temas institucionais, como também nos pequenos e, por vezes, en- tediantes problemas quotidianos. “Quantos temas interessantes ou dridos escondem esse profun- do desequilibrio! Provavelmente muitissimos anos se passario an- les que se 9s isole e corrija; ou talvez isto nunca acontega: entretan- to, deve ficar-nos ao menos 0 prineipio retor, a preocupag’ia cons- tante, de insuflar esse equilibrio e essa justica em toda questo que envolva a relagao individuo—Estado, de rever com critério profun- damente critico, com a met6dica dhivida cartesiana, os fundamentos e solugGes de cada instiwigée ou diminuta questao que nos incum- ba tratar, com a atengdo alerta para descobrir e cauterizar esses des- vios e ressaibos que constituem a raiz da entermidade social e poli- tica argentina ¢ latino-americana” (Teoria General del Derecho Ad- ministrative, pp. 35 e 37-38, tradugdo nossa). 4, A primeira constatagao a respeito do regime das relagdes de direito piblico é a de que um dos sujeitos da relagdo, o Estado, exer- ce o poder de autoridade, desfrutando de prerrogativas de que nao se encontram eyuivalentes no direito privado. Entre elas brilham es- pecialmente os poderes de, unilateralmente, impor deveres aos in- dividuos ¢ de alterar as relagdes ja constituidas. Esse é, certamente, o aspecto de percep¢ao mais imediata. Celso Anténio Bandeira de Mello expressa esse aspecto da re- lado de direito piblico enunciando o principio da supremacia do interesse publico sobre o privado. Segundo ele, sao conseqiiéncias deste principio, de uma parte, a “posigio privilegiada do orgéo en- carregado de zelar pelo interesse ptiblico e de exprimi-to, nas rela- gdes com os particulares” e, de outra, a “posigdo de supremacia do 6rgiio nas mesmas telagdes”, ou seja, a verticalidade das relagdes entre Estado e particulares (Curso de Direito Adminixtrativa, p. 28). Exemplo da posigao privilegiada é 0 beneficio usufruido pelo Esta~ do, quando integra processo judicial, de prazo em dobro para apre- sentacao de recursos. Exemplo da posi¢ao de supremacia é a possi- bilidade de desapropriar bens de particulares. 5. Fundamental, contudo, para conhecer a relagdo juridica de direito piiblico num Estado moderno — € a posigdo que nela ocu- pam os individuos — é identificar os limites des poderes de autori- dade. Sao, basicamente, dois, intimamente ligados: 12 FUNDAMENTOS DE DIREITO PUBLICO a) a competéncia; 6) os direitos dos particulares. 2. Competéncia 6, Ao desempenharem 0 poder, os governantes exercitam com- peténcias, nado direitos subjetivos. O juiz, 0 legislador, 0 adminis- trador, nao tém o direito de, respectivamente, julgar, legislar on ad- ministrar, mas, sim, competéncia para fazé-lo. A expressa0 competéncia é usada no Direito com intengéo muito definida. Significa-se, com ela, 0 poder conferido pelo orde- namento, cujo exercicio sd é licito se realizado: a) pelo sujeite pre- visto; b) sobre o territério sob sua jurisdigdo; c) em relagao 4s ma- térias indicadas na norma; d) 00 momento adequado; e) a vista da ocorréncia dos fatos indicados na norma; e, especialmente /) para atingir a finalidade que levou a outorga do poder. Em outras pala- vras, a competéncia é um poder intensamente condicionado. Eo que sublinha o ilustre Celso Ant6nio Bandeira de Mello: “Ein rigor, no direito publico, tudo se resume a um problema de competéncia. Deveras: sua nogdo integra postuta que um dado poder sé existe realmente quando presentes as condigdes de fato autorizadoras de sua deflagragfio e desde que manifestado em vista da especifica finalidade que Ihe conforma a existéncia. A este pro- posito quadra referir outra cita de Caio TAcito, em lanco excelente, ao averbar: ‘A regra de competéncia ndo é um cheque em branco’. Vale dizer, nao existe no vazio, incondicionadamente” (4to Adnii- nistrativo e Direitos dos Administrados, p. 57). Ja com o termo direffo subjetivo se designa a possibilidade de acao, conferida pelo direito aos sujeitos, para que estes realizem seus interesses pessoais (nao para a realizagao de interesses alheios ou objetivos). Por isso, 0 direito subjetivo é um fim em si mesmo. A competéncia — e este é seu mais importante condicionamen- to ~ € sempre outorgada pela norma, para que de seu exercicio re- sulte atendida certa finalidade, estranha ov exterior ao sujeito. A competéncia ¢ um meio para atingir fins determinados. Portanto, a competéncia é um poder vineulado a certa finalidade, EQUILIBRIO ENTRE AUTORIDADE E LIBERDADE 113 Paolo Biscaretti di Ruffia, um dos mais notaveis juspublicistas italianos, trabalha essa idéia ao definir os poderes do Estado como fungdes: “Deve-se, além disso, salientar como os poderes publicos de- vem ser definidos como fungées, enquanto sao exercidos nao para um interesse proprio, ou exclusivamente proprio, mas para interes- se alheio, ou pelo menos, objetivo (no interesse da coletividade hu- mana, que ¢ a base do Estado, ou no interesse do Estado a tutela objetiva da lei em relago a fungao jurisdicional penal). E isto ex- plica como, num certo sentido, todas as fungdes do Estado (...) apa- recem livres e vinculadas ao mesmo tempo: livres porque, conside- radas em seu conjunto, encabegam todo o poder de governo sobe- rano do Estado, e vinculadas porque, concretamente, nenhum ér- gao estatal pode ultrapassar os limites que lhe foram impostos (e que constituem sua competéncia) e deve exercer as mesmas fun- Ges quando e com as modalidades requeridas pelos corresponden- tes interesses piblicos que deverao ser tutelados” (Direito Consti- tucional — Instituigdes de Direito Publico, p. 134). 7, Disso resulta que a competéncia €, para o agente piblico, de exercicio obrigatério; traduz um dever. E compreensivel que seja assim. Se as competéncias sao outorgadas aos agentes publicos para © atingimento de certos fins, 0 ndo exercicio delas implicaria re- mincia a sua realizagao. O juiz é obrigado a exercer seu poder de julgar, niio podendo se escusar de fazé-lo, mesmo alegando nao estar convencido ou inexis- tir norma a ser aplicada. Dispée 0 art. 126 do Cédigo de Processo , Civil que “o juiz nao se exime de sentenciar ou despachar alegando lacuna ou obscuridade da lei”. O administrador nao pode deixar de cobrar tributo devido por certo contribuinte. Mesmo o legislador — a quem se reconhece vasta discricionariedade na decisio quanto 4 oportunidade ¢ ao contetido da lei — tem, em certas situagdes, 0 de- ver de legislar: quando a lei for indispensivel 4 eficacia de norma constitucional. Por isso, a Constituigdo brasileira criou agao judicial especifica para ver declarada como ilicita a omissao do legislador. E a agio de inconstitucionalidade por omissao (art. 103, § 22). £ ~ 8 Tanto o Estado quanto o particular comparecem _na relagdo juridica de direito ptiblico para cumprir_ um dever. Na cobranga de 14 FUNDAMENTOS DE DIREITO PUBLICO. imposto, a Administrago, como sujeito ativo, exige o pagamento para cumprir 0 dever que a norma juridica lhe imputa. O individuo, sujeito passivo, paga para cumprir seu dever de contribuinte. Como tais deveres — seja 0 do sujeito ativo, seja o do sujeito passivo — decorrem da necessidade de alcangar as finalidades pre- vistas na norma, pode-se dizer, parafraseando Ruy Cime Lima, que a relagdo juridica de direito piblico é aquela que se estrutura ao influxo de uma finalidade cogente (obrigatoria). Percebe-se a diferenga entre tal espécie de relacao juridica e a relagao tipica do direito privado, Nesta, 0 sujeito ativo exerce um direito ¢ o sujeito passivo cumpre um dever. O credor comparece na relagdo para alcancar seus interesses pessoais, nao para realizar finalidades objetivas. Nao obstante tais diferengas, 0 relacionamento entre 0 Estado 0 particular, regido pelo direito publico, é relagio juridica, do mes- mo modo que o vinculo entre dois particulares, regido pelo direito privado. Ruy Cie Lima, em célebre trecho de sua obra, embora se refira especificamente 4 Administragio Publica (dai a expresso “telagao de administragaio”), faz demonstracdo que pode ser ampli- ficada para todo o direito pablico: “Concebe-se geralmente a relagiio juridica como expressio de um poder do sujeito de direito sobre um objeto do mundo exterior, seja aquele uma coisa existente per se, seja uma abstengao ou um fato, esperados de outro sujeito. Nessa concepgao da relacao juridi- ca, sem dificuldade se compreendem todas as variedades de que a nogiio de direito subjetivo é suscetivel. “Nela, nao parece possa compreender-se, porém, nenhuma es- pécie de relacionamento juridico no qual se suponha, ao sujeito ati- vo, um dever, ao invés de um poder, sobrepondo-se-lhe 4 autono- mia da vontade, 0 vinculo de uma finalidade cogente. Alguns mo- mentos de reflexdo, entretanto, tornam para logo evidente que, en- tre essa espécie de relacionamento juridico e a que se exprime pelo conceito corrente, a diferenca apuravel nada tem de essencial. O que se denomina ‘poder’ na relacdo juridica, tal como geralmente en- tendida, nao é sendo a liberdade extrema, reconhecida ao sujeito ativo, de determinar autonomamente, pela sua vontade, a sorte do objeto, que lhe esta submetido pela dependéncia da relagdo juridi- ca, dentro dos limites dessa mesma relacdo. Limite~se ainda mais a EQUILIBRIO ENTRE AUTORIDADE E LIBERDADE 115 liberdade externa de determinagdo, reconhecida ao sujeita ative da relac4o juridica, vinculando-o, nessa determinacfio, a uma finalida- de cogente, e a relagdo se transformara imediatamente, sem altera~ Gao, contudo, de seus elementos essenciais. “A relagdo juridica que se estrutura ao influxo de uma finali- dade cogente, chama-se relagdo de administragio. Chama-se-lhe re- lagdo de administragio segundo ¢ mesma critério pelo qual os atos de administragdo se opGem aos atos de propriedade. Na administra- ao, o dever ea finalidade sio predominantes; no dominio, a vonta- de” (Principios de Direito Administrativo, pp. 55-56). 3. Direitas dos particulares 9. O segundo limite aos poderes do Estado em suas relagdes com 9s particulares ¢ o dos direitos qué a ordem juridica assegura a estes, ou, em uma palavra, 0 da liberdade. O cidadao, no Estado Democratico de Direito moderna, & livre em dois sentidos diversos. A compreensio da posigio do individuo perante o Estado requer a identificagao desses significados da liberdade: 9 antigo ¢ 0 moderno. O individuo ¢ livre, inicialmente, porque, sendo titular do po- der, pode participar de seu exercicio. Este o sentido da liberdade para os antigos. Alguns dos mecanismos para tanto sao: as eleigdes, | o plebiscito, o referendo, a iniciativa popular das leis. Os individuos sao livres, de outro lado, por terem garantida (pelo proprio Estado) a seguranga nas fruigdes privadas. E dizer, desfrutam de espagos individuais de agdo, intangiveis pelo Estado. Ejs o sentido da liberdade para os modernos. Sao exemplos: o di- reito de propriedade, de exploragao de atividade econdémica, de ma- nifestagdo e expressio, No Estado Democratico de Direito somam-se as liberdades nos dois sentidos, o antigo e 0 modemo; como garantia da participaco no exercicio do poder e como garantia da seguranga nas fruigdes privadas. - A identificagéo das “duas liberdades” encontra-se em célebre trecho de Benjamin Constant: “O objetivo dos antigos era a distri- buigdo do poder politico entre todos os cidadaos de uma mesma pa- tria: era isso que eles chamavam de liberdade. O objetivo dos mo- 116 FUNDAMENTOS DE DIREITO PUBLICO demos é a seguranga nas fruigdes privadas: eles chamam de liber- dades as garantias acordadas pelas instituigdes para aquelas frui- g6es” (De la Liberté des Anciens Comparée a celle des Modernes, apud Norberto Bobbio, Liberalismo e Democracia, p. 8). O professor brasileiro Celso Lafer desenvolveu o tema. De sua obra, colhem-se importantes observacdes: “A liberdade antiga € a liberdade do cidadio e niio a do ho- mem enquanto homem. Ela s6 se manifesta, por isso mesmo, em comunidades politicas que regularam adequadamente a interagaio da pluralidade. Dai a relagao entre politica, liberdade antiga e formas democraticas de governo, que criam um espago publico ensejado pela liberdade de participagdo na coisa piblica, do didlogo no plu- ral, que permite a palavra viva e a acao vivida, numa unidade criati- va e criadora. (...) “A polis (como diz Jaeger) é a soma de todos os seus cidadaos e de todos os aspectos de suas vidas. Ela di muito a cada cidadio, porém dele tudo pode exigir. Inexoravel e poderosa, a polis impoe o seu modo de vida a cada individuo, marcando-o como seu. “Esta presenca avassaladora do Estado e da sociedade na vida dos individuos ¢ 0 que permite compreender a importancia de uma outta dimensao da liberdade, que Benjamin Constant chamou de /i- berdade moderna. Jé os romanos, que diferenciavam juridicamente 0 status civitatis do status libertatis, defendiam a liberdade como a faculdade natural de se fazer 0 que se quer com excegao daquilo que proibe ou pela forga ou pela lei. Liberdade, neste sentido, nado é0 abrigatério, nem mesmo o autonomamente consentido, mas sim 0 que se encontra na esfera do nao-impedimento. (...) “Qual é, ou qual deve ser, numa sociedade, o tamanho desta esfera do permitido que enseja o exercicio da liberdade moderna? Como é sabido, o liberalismo moderno surge como uma contesta- ao ao Estado Absoluto e ao abuso de poder dele decorrente. Dai 0 esforgo do liberalismo de converter o Estado Absoluto num Estado de Direito, cuja atividade seria material e formalmente limitada atra- vés de alguns instrumentos juridicos ¢ politicos. Entre estes instru- mentos, cabe destacar a garantia dos direitos individuais, cuja tute- la limitaria materialmente a atividade do Estado” (Ensaios sobre a Liberdade, pp. 12-20). EQUILIBRIO ENTRE AUTORIDADE E LIBERDADE v7 40. As nogées até aqui expostas nos permitem perceber que o cidadao tem, em primeiro lugar, o direito de participar na coastitui- ¢ao do poder politico. Os direitos politicos - sobretude os de votar e de ser votado — sao os instrumentos por exceléncia da liberdade no sentido antigo. Seu estudo corresponde a importante parcela do direito constitucional. A liberdade no sentido dos antigos traduz limite aos poderes do Estado, na medida em que 0 conjunto dos cidaddos controla e participa da formagio dos érgaos piiblicos (ex.: a eleigéo do Parla- mento) e do exercicio de suas competéncias (ex.: através do plebi: cita). 1. O desfrute da liberdade moderna. porém, traduz limite ao exercicio do poder que cada individua, singularmente considera- do, pode opor ao Estado nas concretas relagdes juridicas que tra- vem. E isso por trés razdes. Inicialmente, porque a existéncia de direitos subjetivos em fa- vor do particular limita 0 contetido dos atos estatais. Assim, a ga- rantia do direito de propriedade ((CF, art. 5°, inc. XXII) impede que o Estado confisque pura e simplesmente os bens pertencentes a Jodo; a garantia da liberdade de expressao da atividade intelectual (art. 5% ine. IX) obsta a que o Pader Publico censure 0 livro de Ma- ria: a proibicdo da tortura (art. 5°, ine. IIT) evita que José a sofra na delegacia de policia onde esta recolhido. Tratando-se, nessas hipo- teses, de direitos assegurados constitucionalmente, nem a propria lei podera desconhecé-[os, Destarte, os direitos constituctonais sao um limite ao poder do legislador. Como 4 Administragao Pablica e do Judiciario cabe a aplicagiio da lei, seus atos, obviamente, obser- varao os direitos garantidos constitucionalmente (eis que a lei a apli- car nao poderia nega-los}, bem assim os direitos que, embora nao previstos na Lei Maior, hajam sido conferidas por lei, Com isto, 05 direitos de cada individuo ~ sejam os de indole constitucional, se- jam os com base Jegal — correspondem a limites em concreto do ato administrative do ato jurisdicional que o Estado edite em relagao a esse individu. Em segundo lugar, ha uma série de direitos, assegurados inclu- sive pela Constituigao, que geram a faculdade de o individue co- brar prestagdo positiva do Estado (nao uma mera prestagdo negati- 11g FUNDAMENTOS DE DIREITO PUBLICO va, como nos direitos mencionados acima). Significam a possibili- dade de o particular “conduzir” 0 poder politico em certa diregao. E exemplo o direito de o individuo exigir a prestagao de servigos ptiblicos essenciais, como o de educacdo, de satide, de transporte coletivo de passageiros etc. A terceira razdo pela qual os direitos subjetivos implicam limi- tes que todo individuo, singularmente considerado, opde ao exerc cio do poder estatal esté em que eles sao protegidos através de agdes judiciais (e 0 direito de agiio, isto &, de ir a juizo contra o Estado, é um especifico ¢ auténomo direito dos individuos, nos termos do art. 58, inc. XXXV: “a lei ndo exeluira da apreciacdo do Poder Judicia- rio lesio ou ameaga a direito”. Portanto, o controle jurisdicional. provocado pelo individuo em defesa de seu direito, limita concreta- mente o exercicio do poder politico. 12, Assim, e em sintese, a relagao juridica de direito piiblico entre o Estado e os particulares é uma relagao equilibrada por dois fatores a) De um lado, 0 fator autoridade, que confere prerrogativas ao Estado, entre as quatis a de impor, unilaleralmente, obrigagdes aos particulares. Com isto, realiza-se a supremacia do interesse pi- blico sobre 0 privado. 5) De outro lado, 0 fator limites da autoridade, a saber: a com- peténcia (definida pela finalidade a ser atingida pelo ato estatal) eo respeito dos direitos dos particulares. Assim, garante-se a efetiva realizagdo do interesse piblico (visto a competéncia nado poder ser utilizada seudo para o fim previsto pelo Direito), a9 mesmo tempo el que se preserva a liberdade. 2¢ Parte O Direito Piblico Capitulo LX Direito e Ciéncia Juridica 1. Introdugda. 2. Normas juridicas. Os mundos do ser e do dever- 3. Sistema juridico. 4. Direito e ciéncia juridica. 5, A atividade do prow fissional do direito, 6. Divisdo da ciéncia juridiea em ramos. er. 4, Introducdo Na biblioteca de casa, cercado de livros, espalhados sobre a mesa ¢ pelo chao, 0 autor tenta iniciar mais wm capitulo de seu Fun- damentos de Direito Publico. O trabalho nao vai adiante; 0 compu- tador mais apaga que insere. Desanimade, suspira — Por que, em qualquer texto cientifico, as nogGes essenciais Jo sempre as mais dificeis de expor? Como explicar as idéias de Gireito e de ciéncia juridica de modo ao mesmo tempo adequado, simpies e compreensivel? Sera que este trecho esté bem? Na diivida, sai para a sala, em busca de alguém que leia o ja escrito. Mas as Quatro Esta¢des, de Vivaldi, redando no toca-dis- cos, sfio um concorrente invencivel. Ninguém quer saber de troca- las por duas paginas de norma juridica, mundo do ser e do dever- ser. Voltando ao escritério, sente-se terrivelmente so. Abre um Ii- ro ao acaso e parece que escuta a voz de Karl Engisch — “Quem se proponha. familiarizar 0 principiante ou 0 leigo com a ciéncia do Direito (jurisprudéncia) e o pensamento juridico, ao tentd-lo vé-se a bragos com uma série de dificuldades ¢ ditvidas que nao encontraria noutros dominios cientificos, Quando o jurista, situado no circulo das ciéncias do espirito e da cultura, entre as quais se conta a jurisprudéncia, olha ao derredor, tem de constatar, angustiado e com inveja, que a maioria delas poe contar extra mu- 12 FUNDAMENTOS DE DIRE!TO PUBLICO ros com um interesse, uma compreensio e uma confianga muito maiores do que precisamente a sua ciéncia. Especialmente as cién- cias (teorias) da linguagem, da literatura, da arte, da miisica e da religiao fascinam os leigos devotados a assuntos de cultura numa medida muito maior do que a ciéncia do Direito, se bem que esta, nao s6 quanto 4 matéria mas ainda metodologicamente, tenha com ey aquelas estreitos lagos de parentesco”. —E. A ciéncia do direito nao tem grande prestigio como leitura de cabeceira... Indiferente a interrupgao, Engisch continua: ~“Sem grandes hesitagdes se depositaré um livro de arqueo\o- gia ou de historia da literatura sobre a mesa dos presentes, mas a custo se fara o mesmo com um livro juridico, ainda que este no exija da parte do leitor conhecimentos especiais. As usuais introdu- Ges a ciéncia juridica, com raras excegdes, apenas parecem ter al- gum interesse para o jurista principiante, mas ja no para o leigo”? — Convenhamos: nado fazemos grande forga para interessar os leitores, No fundo, no fundo, escrevemos para nés mesmos. “As razées deste desinteresse do leigo pelo Direito ¢ pela ciéncia juridica sao faceis de descobrir. Todavia, trata-se de algo muito estranho. Com efeito, a custo qualquer outro dominio cultu- ral importara mais ao homem do que o Direito. Ha na verdade pes- soas que podem viver e vivem sem uma ligacdo intima com a poe- sia, com a arte, com a miisica, Hd, também, na expressiio de Max Weber, pessoas ‘religiosamente amusicais'. Mas nfo ha ninguém que nao viva sob o Direito e que nao seja por ele constantemente afetado e dirigido. O homem nasce e cresce no meio da comunida- de e — 4 parte casos anormais — jamais se separa dela. Ora, 0 Direito é um elemento essencial da comunidade. Logo, irtevitavelmente, afeta-nos e diz-nos respeito. (...) Por que, pois, do pouca abertura de espirito para o Direito e a jurisprudéncia?”’ —Acho que Kelsen poderia explicar a razao da falta de simpa- tia para com o direito e a ciéncia que o estuda. O coragéo do ho-~ mem nao ¢ capaz de bater mais forte pela ordem juridica: apenas a 1. Introducdo ao pensamenta juridico, p. 5. 2. Idem, ibidem. 3. Idem, pp. 5-6. DIREITO E CIENCIA JURIDICA 13 idéia de justiga o comove. E os tratados de ciéncia juridica nao cui- dam do que é justo... Chamado, Kelsen se anima a participar: ~ De fato. “A afirmagao: ‘Certa ordem social tem o carater de Direito, é uma ordem juridica* nado implica o julgamento moral de qualificar essa ordem como boa ou justa. Existem ordens juridicas que, a partir de certo ponto de vista, s%o injustas, Direito e justiga sao dois conceitos diferentes”. — Pois &. O cientista do direito vive seu dilema. Se compde uma obra para expor suas idéias sobre justo on injusto, o bom e o mau, conquista simpatias mas frauda seus leitores, porque nao faz cién- cia do direito, mas filosofia da justiga. Se apenas descreve 0 funcio- namento dos mecanismios de que se compée o sistema juridico, ou se expe certo sistema juridico positivo (o brasileiro, o francés...}, cumpre adequadamente sua fungdo, mas seu trabalho perde charme mundano. 2. Normas juridicas. Os mundos do ser e do dever-ser CO didlogo reanima 0 autor. Os pensamentos se multiplicam; as duvidas também. Se direito no é justig¢a, o que sera? | Imediatamente, salta da estante a Hipdtese de Incidéncia Tri- utdria, ¢ Geraldo Ataliba, apds alisar 0 bigode, esclarece: ssencialmeate, em ultima andlise, reduzido o objeto a sua mais simples estrutura, 0 direito nao é senao um conjunto de nor- mas (conjunto este a que se convencionou designar sistema juridi- co, ordenagao juridica)”? ~ O direito é um conjunto de normas... Entéo, para compreen- dé-lo, necessario entender o que é uma noma... Sentado na cadeira em frente, rabiscando figuras humanas em uma folha de papel, Celso Antonio Bandeira de Mello explica: ~ “As normas, no seu conjunto, pressupdem trés elementos: hi- potese, mandamento e sangao. A hipdtese, que é a previsao abstrata de uma situagao ou de um comportamento; 0 mandamento, que é 0 4. Teoria Geral do Direito e do Estado. p. \3 5. Hipotese de incidéncia tributaria, p. 25, ng FUNDAMENTOS DE DIREITO PUBLICO comando, o ditame de cardter obrigatério; e a sangdo, que ¢ a con- seqiléncia juridica desfayoravel, imputada a alguém, pela violagio do fundamento. Esta é a estrutura das normas juridicas”.° ~ Realmente, é possivel visualizar, por exemplo, o art. 12] do Cédigo Penal, com base neste esquema. A norma diz: “Matar al- guém. Pena: reclusio de 6 a 20 anos”. A hipdtese é: “havendo al- guém (um ser humano)". O mandamento: “é proibido mata-lo". A sangao (isto é, a pena), aplicavel a quem nao obedece o mandamen- to, é: “reclusaio de 6 a 20 anos”, Mas tudo isso, embora correto, ainda parece pouco para com- preender as normas juridicas. Entusiasmando-se, Celso Anténio lembra da distingdo entre o mundo do ser (da natureza) e o do de- ver-ser (das normas): ~“O mundo do direito difere profundamente do mundo natu- ral. O mundo normativo tem a sua existéncia propria, diversa do mundo natural, desligada dele, com um modo de ser e de existir, proprio, diverso do mundo natural. Todos nds conhecemos uma de- finigdo de lei, segundo a qual as leis seriam as relagdes necessarias, que derivam da natureza das coisas. Esta definigdo pode servir para qualquer coisa, menos para definigdo de uma lei, em sentido juridi- co, menos para definir uma norma de direito, porque as relagdes de direito néo derivam da natureza das coisas, mas da vontade dos ho- mens, que as constroem com liberdade. Ha uma independéncia pro- funda entre o mundo natural ¢ o mundo normativo e a apreensiio do significado dessa diferenga é da mais fundamental importancia para a interpretagdo, para a hermenéutica do direito”.” —E possivel explicar melhor? Celso Ant6nio, apés tamborilar 0 cigarro sobre a mesa, saca um elegante isqueiro ¢, enquanto 0 acende, responde: —“No mundo natural, se soltarmos um cigarro, ele inelutavel- mente caira, em razdo da lei da gravidade, que enuncia relagdes que decorrem, efetivamente, da natureza das coisas. (...) No mundo do direito as coisas nao se processam assim. Os homens constroem, livremente, certas situagGes hipotéticas e enlagam a esse anteceden- 6, “Teoria Geral do Direito”, p. 4. 7, Idem. p, 7. DIREITO F CIENCIA SURIDICA 125 te um certo conseqiiente. Figuram uma relagdo entre um anteceden- fe, que é livremente construido pelos homens, e um conseqiiente, também livremente instituido pelos homens”.> ~ Tem raziio. E a vontade do iegislador que atribui, ao compor- tamento “matar alguém”, a conseqiiéncia: “reclusdo de 6 a 20 anos”. —“Por isso os sistemas juridicos podem varia. Um dado siste- ma pode impor que é obrigatério o voto. O enlacamenio enire essas duas relagdes é feito pela vontade do legislador, Ele relaciona ante- cedentes com conseqiientes. No mundo natural vigora a lei da cau- salidade, a relagdo de causa e efeito: se A for, B sera. No mundo do direito vigora a relagdo de imputagiio: se A for, B deverd ser”? — Essas idéias sao suas, nao Kelsen? — Pois é. “A regra de Direito e a lei da natureza nao diferem tanto pelos elementos que relacionam quanto pela maneira em que é feita a conexdo, A lei da natureza estabelece que, se A ¢, B é (ou sera). A regra de Direito diz: Se A é, B deve ser. A regra de Direito é uma norma (no sentido descritivo do termo). O significado da co- nexao estabelecida pela lei da natureza entre dois elementos é 0 *é’, ao passo que o significado da conexdo estabelecida entre dois ele- mentos pela regra de Direito é o ‘deve ser’. O principio segundo o qual a ciéncia natural descreve seus objetos € o da causalidade; 0 rincipio segundo o qual a ciéncia juridica descreve seu objeto € o normatividade”.'° Maria Helena Diniz, andando apressada pelo corredor, escla~ fece, na passagem: ' ~ “Para formular sua teoria, Hans Kelsen introduziu em sua obra o dualismo kantiang do ‘ser’ e ‘dever ser’, que constituem duas categorias originarias ou ‘a priori’ do conhecimento, isto é, que nao derivam de nenhuma outra, Sdo duas formas mentais, primadrias e basicas, correspondentes a dois dominios incomunicaveis: 0 dos fa- tos ou da natureza fisica, espiritual ¢ social ¢ o das normas. Com base nessa distincdo fundamental entre ‘ser’ e ‘dever-ser’, conside- rou o ‘dever-ser’ (so/len) como expressao da normatividade do Di- reito que deve ser investigado pela Ciéneia Juridica, A Jurisprudén- 8. Idem, ibidem. 9. Idem, ibidem. 10. Teoria Geral do Direito e do Estado, p. 49, 126 FUNDAMENTOS DE DIREITO PUBLICO cia passa, entdo, a ser uma ciéncia normativa, pois seu objeto con- siste em normas que ndo enunciam o que sucedeui, sucede ou suce- dera, mas tdo-somente o que se deve fazer. Em contraposigio, 0 ‘ser’ (sein) diz respeito 4 natureza, que ¢ regida pela lei da causali- dade, que enuncia que os objetos da natureza se comportam de um determinado modo. A substancia da concep¢io de Kelsen esta nes- sa distingdo e contraposi¢ao légico-transcendental entre ‘ser’ e ‘de- ver ser’, isto é, entre o mundo fisico, submetido as leis da causali- dade, e o mundo das normas, regido pela imputabilidade”."' A explicagao propicia ao autor uma conclusdo importante: ~ Essa diferenciagao basica nos permite compreender por que a norma juridica, mesmo desrespeitada, continua existindo. A nor- ma nao descreve a realidade, nado diz come ela é, mas apenas como deve ser. 3, Sistema juridico A conversa, de repente, desaba. Novamente sozinho, 0 autor se sente perdido, Tenta reanimar o didlogo. ~ Pois bem. S6 que a religiao e a moral também sao conjuntos de normas (nao matards... nao cobigaras a mulher do préximo...). Como distingui-las do Direito? E Kelsen quem responde; ~ "Como ordem coativa, o Direito distingue-se de outras or- dens sociais. O momento coagao, isto é, a circunstancia de que o ato estatuido pela ordem juridica como conseqiiéncia de uma situa- ao de fato considerada socialmente prejudicial deve ser executado mesmo contra a vontade da pessoa atingida e — em caso de resistén- cia — mediante o emprego da forea fisica, é 0 critério decisivo”. — Quer dizer: estaremos diante de uma norma juridica quando seu descumprimento pelo destinatario ensejar a aplicagao coativa de uma sangio. O direito, portanto, é 0 conjunto de normas cuja sangao se aplica coativamente, com o uso da forga fisica, se ne- cessario. Il. 4 Cigneia Juridica, pp. 27-28 12. Teoria pura do Direito, pp. 61-62. DIREITO E CIENCIA JURIDICA 127 —O que vocé diz é certo, mas no muito esclarecedor, inter- yém Bobbio. —Como? & ~“O que comumente chamamos de Direito é mais uma cara teristica de certos ordenamentos normativos do que de certas nor- mas. Se aceitarmos essa tese, o problema da definigao do Direito se torna um problema de definigao de um ordenamento normativo e, conseqiientemente, diferenciagao entre este tipo de ordenamento normativo e um outro, nao o de definigao de um tipo de normas. Nesse caso, para definir a norma juridica bastara dizer que a norma juridica é aquela que pertence a um ordenamento juridico, transfe- rindo manifestamente o problema da determinagao do significado do juridico da norma para o ordenamento. Através dessa transfe- réncia demonstra-se que a dificuldade de encontrar resposta a per- gunta: “O que se entende por norma juridica?” se resolve amplian- do-se o campo de pesquisa, isto é, colocando uma nova questio: “O que se entende por ordenamento juridico?”. Se, como parece, s6 a esta segunda pergunta se consegue dar uma resposta sensata, isso quer dizer que o problema da defini¢do do Direito encontra sua localizagao apropriada na teoria do ordenamento juridico e no na eoria da norma. (...) S6 em uma teoria do ordenamento - esse era 0 nto a que importava chegar — o fenémeno juridico encontra sua lequada explicagao™." Ataliba concorda: — Por isso mesmo eu afirmo que “o direito (em sentido objeti- vo) é um conjunto de normas que — por isso que integrando a or- dem juridica — se chamam normas juridicas”.'4 O tema parece suscitar a unanimidade. Kelsen também esta de acorda: ~*O Direito é uma ordem da conduta humana. Uma ‘ordem’ é um sistema de regras. O Direito nao ¢, como as vezes se diz, uma regra. E um conjunto de regras que possui o tipo de unidade que entendemos por sistema. E impossivel conhecermos a natureza do Direito se restringirmos nossa atengao a uma regra isolada. As rela- 13. Teoria do Ordenamento Juridico, p. 28. \4. Hipétese de incidéncia tributdria, p. 25 (grifo nosso). 128 FUNDAMENTOS DE DIREITO PUBLICO gées que concatenam as regras especificas de uma ordem juridica também sao essenciais 4 natureza do Direito. Apenas com base numa compreensao clara das relagdes que constituem a ordem juri- dica é que a natureza do Direito pode ser plenamente entendida”.'* Kelsen perde o félego. Celso Antonio vem em seu socorro: -“A segunda caracteristica” (do direito), “e Kelsen insiste so- bre isso, é que o direito ndo se compreende examinando a estrutura de uma norma, ou considerando uma norma em si, mas s6 se com- preende quando consideradas as normas no seu conjunto. Por isso, diz esse mestre que o direito ‘nao é uma norma, mas um sistema de normas’. Com efeito. As sangdes nfo constam, necessariamente, associadas ou ligadas ao corpo da norma; podem estar espalhadas ao longo de um sistema. Por exemplo, diz 0 Cédigo Civil: “Nao se podem casar: as pessoas casadas’. A conseqiiéncia juridica desfa~ voravel, a sangao a essa norma, ndo consta do mesmo texto, que diz que nao podem se casar as pessoas casadas. Mas nds encontramos que” (este casamento) "é um ato nulo. Em outro dispositivo estara a sangdo, que é a ndo-produgao dos efeitos juridicos proprios do casamento; e isto ¢ que é nulidade. (...) Mas, além disso, vamos en- contrar, no Cédigo Penal, que é crime, sendo casada uma pessoa, casar-se novamente. Verificamos que existem duas sangdes espa- lhadas no sistema. Este exemplo singelissimo ja serve para demons- trar que ‘nao se pode conhecer, de modo algum, o direito, levando em conta” (apenas) “uma norma, se nao um sistema’. Esse evento chama a ateng&o para o fato de que ninguém sera nem sequer advo- gado, quanto mais especialista em qualquer coisa, se nao tiver ab- soluta ¢ clara consciéncia de que as normas nunca podem ser exa- minadas isoladamente. Nao s6 tendo em vista este aspecto, que en- fatizei, mas porque a compreensao dela se faz inserida num contex- to. Por isso Kelsen assevera que o direito é um sistema de nor- mas” !6 — Ja que estamos todos de acordo quanto ao fato de o direito ser um sistema de normas, que tal se alguém esclarecesse como uma norma se integra a esse sistema? Sem se identificar, uma voz grita em meio a pilha de livros: 15. Teoria Geral do Direito e do Estado, p. \\. 16. “Teoria Geral do Direito”, p. 6. ae DIREITO E CIENCIA SURIDICA 129 — A chave é a validade! O autor tenta localizar a origem do som. Nada encontra. Mas a idéia o faz pensar. — Validade... Sera esta a idéia que permite entender a relagao existente entre as normas juridicas? Mais uma vez, observado atentamente por todos, é Kelsen quem explica: ~“O Direito regula a sua propria criagio, na medida em que uma norma juridica determina o modo em que outra norma é criada ¢ também, até certo ponto, 0 contetdo dessa norma. Como uma nor- ma juridica é valida por ser criada de um modo determinado por outra norma juridica, esta é o fundamento de validade daquela. A relagdo entre a norma que regula a criagao de outra norma € essa outra norma pode ser apresentada como uma relagdo de supra-infra- ordenagao, que ¢ uma figura espacial de linguagem. A norma que determina a criagdo de outra norma é a norma superior, ¢ a Nonna criada segundo esta determinagio é a inferior. A ordem juridica, es- pecialmente a ordem juridica cuja personificagao é o Estado é, por- tanto, ndo um sistema de normas coordenadas entre si, que se acham, por assim dizer, lado a lado, no mesmo nfvel, mas uma hie- rarquia de diferentes niveis de normas™.'7 4. Direito ¢ ciéncia juridica Reconfortado, o autor prossegue em suas meditagoes. —Eo Direito uma ciéncia? Sentado na cadeira em frente, um homem de barba ri gostosa- mente, os dedos presos ao suspensério: Eros Grau. Acende o ca- chimbo e respond ~“A indagacao assim formulada *é o Direito uma ciéncia?’ é analoga a que nos seguintes termes se introduzisse: ‘as relacdes en- tre a terra e o homem sao uma ciéncia?’ Todos sabemos que as rela- des entre a terra ¢ 0 homem nao sio uma ciéncia, mas sim que ha uma ciéncia — a geografia humana que estuda e descreve as rela~ gGes entre a terra e 0 homem. O mesmo ocorre em relagdo ao Direi- 17. Teoria Geral do Direito e do Estado, p. 129 130 FUNDAMENTOS DE DIREITO PUBLICO to. O Direito ndo ¢ uma ciéncia. O Direito é estudado e descrito; é, assim, tomado como objeto de uma ciéneia, a chamada Ciéncia do Direito. Essa é a primeira verificagdo que cumpre sublinhar: 0 Di- reito nao é uma ciéncia, porém o objeto de uma ciéncia™.'* ~ Pode-se dizer que a ciéncia do direito é normativa? --“O Direito é normativo. O Direito naéo descreve; o Direito prescreve. A ciéncia que o estuda e descreve nao é, no entanto, nor- mativa. E, como toda ciéncia, descritiva. Impée-se distinguirmos, assim, o Direito e a Ciéncia do Direito. Esta ultima descreve— indi- cando como, porque e quando ~ aquele. Esta distingado é de impor- tancia fundamental e, intimeras vezes, deixam de percebé-la os es- tudiosos do Direito. Por isso se perdem, também intmeras vezes, esses estudiosos, em raciocinios contraditorios e equivocados”.'? — O direito, como discutimos agora ha pouco, é um conjunto de normas. A ciéncia juridica é composta de um conjunto de propo- sigdes. Qual a diferenga? —“Proposigées juridicas — esclarece Kelsen — so juizos hipo- téticos que enunciam ou traduzem que, de conformidade com o sen- tido de uma ordem juridica - nacional ou internacional ~ dada ao conhecimento juridico, sob certas condigdes ou pressupostos fixa- dos por este ordenamento, devem intervir certas conseqiiéncias pelo mesmo ordenamento determinadas. As normas juridicas, por seu lado, nao sao juizos, isto é, enunciados sobre um objeto dado ao conhecimento. Elas so antes, de acordo com o seu sentido, manda- mentos, € como tais, comandos, imperativos. Mas nao sao apenas comandos, pois também sao permissdes e atribuigdes de poder ou competéncia. Em todo o caso, nao sio — como, por vezes, identifi- cando Direito com ciéncia juridica, se afirma — instrugdes (ensina~ mentos). O Direito prescreve, permite, confere poder ou competén- cia — nao ensina nada”? ~ Por isso, uma diferenga fundamental entre a proposigio ¢ a norma esta na circunstancia de aquela ser produzida pelo cientista e esta por um Orgao juridico, nao? 18. Direito, conceitos ¢ normas juridicas, p. 20 19. Idem, pp. 20-21. 20. Teoria pura do Direito, p. \il. DIREITO E CIENCIA JURIDICA 131 — Exato. “A ciéncia juridica tem por missao conhecer de fora, por assim dizer — 0 Direito ¢ deserevé-lo com base no seu conheci- _ mento. Os drgios juridicos tem — como autoridade juridica — antes de tudo por missao produzir o Direito para que ele possa entao ser conhecido e descrito pela ciéncia juridica. E certo que também os 6rgios aplicadores do Direito tém de conhecer — de dentro, por as- sim dizer ~ primeiramente o Direito a aplicar. O legislador que, na sua atividade propria, aplica a Constituigdo, deve conhecé-la; e igualmente 0 juiz, que aplica as leis, deve conhecé-las. O conheci- mento, porém, nao € o essencial: é apenas o estadio preparatério da sua fungio...! — Quer dizer, a proposigao é ato de conhecimento, enquanto a norma juridica é ato de vontade. Dai ser correto afirmar que a pro- posigdo pade ser verdadeira ou falsa — quer descreva bem ou mal seu objeto de estudo —, ao passo que a norma juridica nao é verda- deira nem falsa, é valida ou invalida... Jé um pouco impaciente a esta altura, Kelsen cone lui: —“A ciéncia juridica, porém, apenas pode descrever 0 Direito; ela nao pode, como o Direito produzido pela autoridade juridica {através de normas gerais ou individuais), prescrever seja 0 que for. Nenhum jurista pode negar a distingo essencial que existe entre uma lei publicada no jornal oficial e um comentario jyridico a essa " lei, entre o codigo penal e um tratado de Direito penal. A distingdo tevela-se no fato de as proposigdes normativas formuladias pela cién- cia juridica, que descrevem o Direito e que nao atribuem a nin- guém quaisquer deveres ou direitos, poderem ser veridicas ou in- veridicas, a0 passo que as normas de dever-ser, estabelecidas pela autoridade juridica — e gve atribuem direitos e deveres aos sujei- tos juridicos = nao sao veridicas ou inveridicas mas validas ou in- validas...”? 1 Faz-se siléncio pela sala, enquanto o autor tenta ordenar, num quadro, as diferengas entre direito e ciéncia do direito. 21, Idem, p. 112 22. Idem, pp. 113-114,

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