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Cae) Dol: tp: doong/10.32813/2179-1120 2020.13.03. 2662 Revista Giéncias Humanas- UNITAL -1SSN 2178120 LUNTTAU, Taubaté/SP Bras 13, n 3, edicd0 28, p. 64-75, Setembro/Dezembro 2020 (AUER DIGNIDADE HUMANA E VIOLACOES DE DIREITOS EM A HORA DA ESTRELA HUMAN DIGNITY AND RIGHTS VIOLATIONS AT A HORA DA ESTRELA Flaviana de Freitas Oliveira’, Ana Maria Klein’ @ orcip ips Oliveira FF - https://orcid.org/0000-0003-3714-5820 Klein AM - https://orcid.org/0000-0002-0004-1908 Resumo ( romance A Hora da Estrela, de Clarice Lispector, narra a vida de Macabéa, que tem direitos violados cotidianamente. A narrativa nos leva a pensar sobre a importancia da dignidade e a aplicaco dos Direitos Humanos. Este trabalho ana- lisa como a tematica é abordada no romance, por meio das vivéncias da protagonista. O romance explicita violacdes a direitos da mulher, da crianga, @ alimentagao, 20 trabalho, ao afeto, a igualdade, a liberdade, entre outras. Clarice Lispector escancara a falta de dignidade humana na vida da protagonista, que ocupa um papel de vitima na sociedade. Assim, entende-se a importancia de o individuo transpor o lugar de vitima e ocupar a posicio de sujeito de direitos, ciente das reivindicagdes a serem feltas em prol da dignidade. Por meio da anslise, concluimos a importancia da obra {0 expor de forma realista as rotineiras violacdes aos Direltos Humanos em nossa sociedade. Palavras-chaver Direitos humanos. Dignidade da pessoa humana. Literatura. Clarice Lispector. Violago de direitos. Abstract ‘The novel A Hora da Estrela, by Clarice Lispector, narrates the life of Macabéa, whose rights are violated daily. The narrative leads us to think about the importance of dignity and the application of Human Rights. This work analyzes how the theme is approached in the novel, through the protagonist's experiences. The novel explains violations of the rights of women, children, food, work, affection, equality, freedom, among others. Clarice Lispector opens up the lack cof human dignity in the life of the protagonist, who plays a victim role in society. Thus, itis understood the importance of the individual to transpose the victim's position and occupy the position of subject of rights, aware of the demands to be made in favor of dignity. Through analysis, we concluded the importance of the work by realistically exposing the routine violations of human rights in our society. Keywords: Human rights. Dignity of human person. Literature. Clarice Lispector. Violation of rights. * Universidade Estadual Paulista - UNESP Correspondéncia: Navianadefreitas@gmallcom Recebio em 08 de Agosto de 2020; cet em 23 de Nowe 2020. Dsponivelomtine no endereg hip /wursuchuntaucom be 64 1INTRODUGAO Quando falamos em Direitos Humanos, no pode- mos deixar de citar as macicas violagdes que ocor- rem cotidianamente em nosso pais. Vemos estes di- reitos sendo desrespeitados pela inoperancia estatal, pela violéncia institucional ou pelos preconceitos e desrespeitos que permeiam as relagdes entre os in- dividuos. Em A Hora da Estrela, Clarice Lispector (1998) con- segue retratar de forma realista e critica as violagdes de direitos que permeiam a vida da protagonista Macabéa. A autora escancara situacdes que ferem a dignidade da pessoa humana e problematiza direitos como alimentacao, trabalho, afetividade, igualdade e até mesmo a propria existéncia humana A partir desta perspectiva, este trabalho visa ana- lisar como os Direitos Humanos so abordados em A Hora da Estrela. A literatura é um importante instru mento para a educacao informal do leitor em Dire’ tos Humanos. Entender, portanto, como estes direi- tos sao colocados em uma obra de grande relevancia literdria, como A Hora da Estrela, 6 importante para darmos a leitura 0 cunho social, critico e politico que ‘© campo da arte nos propée. O romance escolhido para andlise, escrito por Cla- rice Lispector e publicado em 1977, durante a ditadu- ra civil-militar brasileira, conta a histéria da nordesti- na Macabéa. A personagem principal, érfa de pai e mae e criada por uma tia, é desprovida de encanto e tem pouca consciéncia sobre a sua real identidade. A obra narra 0 cotidiano de Macabéa no Rio de Ja- neiro, incluindo seu relacionamento com Olimpico € sua relacdo de trabalho como datilégrafa. A Hora da Estrela é praticamente um convite ao leitor para refletir sobre a existéncia humana, as violagées de di- reitos que nos cercam e qual é a dignidade que todos merecemos. Para analisar como 0s Direitos Humanos so retra- tados nesta obra de Clarice Lispector, elegeu-se como procedimento técnico a pesquisa documental, que utiliza fontes primérias, ou seja, materiais que ainda no receberam tratamento analitico. No caso, anali- sou-se 2 abordagem dos Direitos Humanos na fonte documental escolhida, o romance A Hora da Estrela. Além disso, foi feito um levantamento bibliogréfico para dar suporte 4 pesquisa documental e trazer as, contribuiges de diversos autores sobre as tematicas discutidas neste estudo. Dessa forma, este trabalho se justifica pela perti- néncia do romance para uma reflexao sobre princi pios relevantes aos Direitos Humanos. 0 movimento de empatia e conscientizagao que a personagem nos causa traz a tona a dimensdo ética destes direitos, le- vando-nos a pensar no outro como um semelhante, titular da mesma dignidade humana. 2 ALITERATURA E A EDUCACAO EM DIREI- TOS HUMANOS A literatura é uma manifestaco universal que per- mite ao ser humano estar em contato com a ficco, a realidade e a arte. Ela leva as pessoas o exercicio da reflexio, a aquisico do saber, a boa disposicao para com 0 préximo, 0 afinamento das emogées, a capa- cidade de penetrar nos problemas da vida, 0 senso da beleza, a percepcao da complexidade do mundo e dos seres (CANDIDO, 2011). ‘Ao longo da historia, ha uma intima relacdo entre literatura © Direitos Humanos. Isso ocorre porque textos literérios so capazes de denunciar mazelas sociais, e, ainda mais importante, causar empatia e educar os leitores em Direitos Humanos. Candido (1995) entende a literatura como importante instru- mento educacional Por isso é que nas nossas sociedades a literatura tem sido um instrumento poderoso de instrugao e edu- cacdo, entrando nos curriculos, sendo proposta a cada um como equipamento intelectual ¢ afetivo. Os valores que a sociedade preconiza, ou os que consi- dera prejudicial, estdo presentes nas diversas mani- festagdes da ficgdo, da poesia e da aco dramética A literatura confirma e nega, prope e denuncia, apoia e combate, fornecendo a possibilidade de vi- vermos dialeticamente os problemas. Por isso é in- dispensavel tanto a literatura sancionada quanto a literatura proscrita; a que os poderes sugerem e a que nasce dos movimentos de nega¢ao do estado de coisas predominantes. (CANDIDO, 1995, online) Revista Ciéncas Humanas -UNITAU, Taubaté/SP Brasil «13,3, edo 28, p. 64-7, Setembro/Dezerbro 2020 65 Oliveira FF Klein AM, Por meio da literatura, é possivel promover a Edu- cacao em Direitos Humanos (EDH), que pode ser efe- tivada por meio de processos educativos para que as pessoas conhecam seus direitos, reconhecam-nos no cotidiano e exijam de forma critica sua aplicagao em seu cotidiano (KLEIN; OLIVEIRA, 2019). Silva e Tavares (2013) afirmam que a EDH preten- dea constitui¢ao de uma cultura de respeito integral, formando sujeitos para atuar em consondncia com uma cultura de respeito ao outro. A literatura, por- tanto, pode ser uma forte aliada para educar em Di- reitos Humanos, ainda que informalmente (de forma no intencional). © primeiro passo para a EDH é a in- formacao e 0 conhecimento sobre Direitos Humanos e democracia, local onde a literatura pode exercer papel predominante. Por meio do contato com a informacao sobre os direitos, 0 leitor pode conseguir formar valores e atitudes coerentes com os Direitos Humanos, para, posteriormente, colocar em pratica os principios em suas vidas didrias. ‘A EDH 6 0 meio mais eficaz para que os Direi tos Humanos fiquem inseridos no cotidiano e na consciéncia coletiva. Um individuo nao exer ce seus direitos apenas sabendo quais sao estes: € necessério vivencis-los, aplicé-los as mais diver- sas demandas, valoré-los em toda a sua dimen: so étice e social. (KLEIN; OLIVEIRA, 2019, p. 243) Em A Hora da Estrela, Lispector consegue trazer para 0 romance uma proposta critica sobre a socie- dade contemporanea, revelada por meio da ausén- cia dos Direitos Humanos na vida da protagonista Macabéa. Um romance intimista, capaz de trazer tona sentimentos de revolta e empatia, podendo ser usado como um instrumento transformador na apli- cago da EDH. 3 A DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA EM A HORA DA ESTRELA Lispector expde de forma escancarada, em A Hora da Estrela, as constantes violagdes a dignidade da pessoa humana, que é principio basilar dos Direitos Humanos. Logo no comeco da narrativa, ela diz: “...] que cada um a reconheca em si mesmo porque todos és somos um e quem no tem pobreza de dinhe’ ro tem pobreza de espirito ou saudade por Ihe faltar coisa mais preciosa que ouro — existe a quem falte o delicado essencial” (p. 12). Assim, fica claro, pela vi s80 da autora, a valorizacao da igualdade (todos nds somos um) e da dignidade humana (existe a quem fale 0 delicado essencial). © narrador do romance é nomeado como Rodrigo S.M., um personagem aparentemente frio e que tem preconceitos, julgamentos e esteredtipos em sua narrativa. Ao falar de Macabéa, o narrador frequen- temente se refere a ela como “a nordestina”, mos- trando um certo desdém, ou até mesmo preconce to, em relacdo as origens da personagem principal Esta forma de expressao do narrador é uma ironia de Lispector: a autora, que possui o conjunto de sua obra de cunho extremamente existencialista, traz este narrador que corrobora a auséncia de direitos que permeia a vida de Macabéa, trazendo uma real dade ainda mais crua para o romance. O narrador deixa claro que nao tem piedade de sua personagem principal. Ainda traz afirmacdes que diminuem Macabéa, como “[...] a pessoa de quem falarei mal tem corpo para vender, ninguém a quer, ela é virgem e inécua, nao faz falta a ninguém’ (p. 12- 13), ou "ela que devia ter ficado no sertdo de Alagoas com vestido de chita e sem nenhuma datilografia, jé que escrevia to mal” (p. 15). Dessa forma, Lispector consegue expor a forma como Macabéa esta inserida na sociedade: é prati- camente invisivel, teve seus direitos violados desde a primeira infancia, e sofre preconceitos constantes por conta de sua origem, classe social e género. Logo no inicio, © narrador afirma que outro escritor pode- ria narrar a historia, mas teria que ser homem “por- que escritora mulher pode lacrimejar piegas” (p. 14), Aafirmacao reforca o preconceito de género, sempre combatido por Lispector, ¢ coloca a racionalidade do homem acima da mulher. O narrador ainda revela que, ao escrever, desco- bre que tem um destino, Em seguida indaga: “Quem J8 no se perguntou: sou um monstro ou isto é ser uma pessoa?” (p. 15). Ao fazer esta pergunta, vem a tona mais uma vez a dignidade da pessoa humana 66 Revista Gncias Humanas-UNITAU, Taubaté/SP- Brasil v.13, n3, edi 28, p. 64-75, Setemibro/Dexembro 2020 e a necessidade de reconhecer-se humano para ter seus direitos mais basicos reivindicados e garantidos. Durante a narrativa, Lispector reforca a posicdo de marginalidade e invisibilidade de Macabéa perante a sociedade. Porém, nao reconhece a personagem principal como uma pessoa alegre ou triste ~é como se Macabéa tivesse to pouca nocao de sua existén- , que sequer consegue dizer quais séo os proble- mas que permeiam sua realidade ou ter reaces ad- versas as violacdes de direito que Ihes so impostas. Tal situac3o fica clara quando o narrador reforca a invisibilidade e a auséncia de direitos de mulheres como Macabéa: Como a nordestina, hd milhares de mogas espalha. das por cortigos, vagas de cama num quarto, atras, de baledes trabalhando até a estafa. Ndo notam sequer que sdo facilmente substituiveis e que tan- to existiriam como nao existiram. Poucas se quel- xam e a0 que eu saiba nenhuma reclama por nao saber a quem. Esse quem sera que existe? (p. 14) Esta falta de consciéncia e conhecimento de situa- Bes que ferem os Direitos Humanos e que violam a dignidade da pessoa humana acaba deixando a pes- soa 4 margem da sociedade. Saber quais sdo seus direitos é importante para que o individuo saia do lugar de vitima e se coloque no lugar de sujeito de direitos. 4 MACABEA E A REDUZIDA CONSCIENCIA DE sl ‘Ao longo do romance Lispector explicita como Ma- cabéa acaba vivenciando violéncias didrias sem que tenha percepcao de quais direitos esto sendo vio- lados. Assim, a personagem principal acaba por ndo ter consciéncia de principios referentes aos Direitos Humanos, como dignidade, igualdade, justica social, solidariedade. Quero antes afiancar que essa moca nao se conhe- ce sendo através de ir vivendo & toa. Se tivesse a tolice de se perguntar “quem sou eu?” cairia esta- telada e em cheio no chao. £ que "quem sou eu?” provoca necessidade. € como satisfazer a neces- sidade? Quem se indaga é incompleto. (p. 15-16) Percebe-se, no trecho citado, que Macabéa é des- crita como uma pessoa que nao tem consciéncia de si. O narrador coloca que se houvesse essa indaga- do, a personagem "cairia estatelada e em cheio no chao (p. 15)", mostrando que ela teria nocéo das violagées de direitos que ocorrem em seu cotidiano, Assim sendo, ela teria necessidade de garantir seus direitos, tornando-se, entdo, sujeito de direitos. No entanto, percebe-se que Macabéa esta longe de ser sujeito de direitos. Quando o chefe Ihe diz, com brutalidade, que ela errava demais na datilogra- fia, ela simplesmente pede desculpa pelo aborreci- mento. Nao Ihe passa pela cabega a possibilidade de assédio moral, de dignidade, de direito ao trabalho. Ela simplesmente pede desculpas e acaba surpreen- dendo o chefe com a resposta inesperada Logo apés este episddio, a personagem vai ao ba- nheiro, onde parecia-Ihe “que o espelho baco e es- curecido nao refletia imagem alguma” (p. 25). Em seguida, 0 narrador questiona: “Sumira por acaso a sua existéncia fisica?” (p. 25). Assim, mais uma vez, deparamo-nos com a invisibilidade de Macabéa, como uma pessoa marginalizada e que sequer tem seu direito a existéncia garantido, Uma frase que salta aos olhos ¢ quando o narra~ dor diz: “Essa moca ndo sabia que ela era o que era, assim como um cachorro nao sabe que é cachorro” (p. 26). Neste momento, temos a desumanizacéo de Macabéa, de tal forma que ela é comparada a um ca- chorro em relagio & consciéncia que tem de si mes- ma. Vygotsky (1998) diz que ha uma diferenga funda- mental entre os seres humanos e os outros animais, jd que sao as experiéncias exclusivamente humanas que formam as funcées psicolégicas superiores e, consequentemente, a prépria consciéncia. Ao com- parar Macabéa a um cachorro, o narrador ressalta 2 falta de consciéncia da personagem, diminuindo, mais uma vez, sua dignidade enquanto pessoa hu- mana. Dentro desta caracterizacéo de Macabéa, cumpre- -nos ressaltar também a sua vitimizacdo e marginal zacao perante a sociedade. Freire (1980) chama este processo de consciéncia semi-intransitiva, em que Revista Ciéncas Humanas -UNITAU, Taubaté/SP Brasil «13,3, edo 28, p. 64-7, Setembro/Dezerbro 2020 67 Oliveira FF, Klein AM, 08 sujeitos ficam imersos apenas naquilo que gravita em sua érbita, Para Cabral et al. (2015, p. 418), “exis- te uma tendéncia a0 conformismo e & passividade, @ a explicagao para os fendmenos é naturalizada ou atributde a instdncias superiores’” Neste proceso, existe a chamada “cultura do si- léncio", que para Freire (1979), se caracteriza pela inexisténcia de uma atividade na luta pela efetivacso e ampliac3o dos direitos. Entendemos que a perso- nagem principal do romance se encaixa plenamente na consciéncia semi-intransitiva de Freire (1979), jd que ela se manifesta passivamente perante os acon- tecimentos do cotidiano e tem atitudes conformistas que chegam a indignar o narrador. ‘A consciéncia simplista de Macabéa pode ser per- cebida no seguinte trecho do romance: Quanto & moga, ela vive num limbo impessoal, sem aleangar 0 pior nem o melhor. Ela somente vive, inspirando e expirando, inspirando € expiran- do. Na verdade — para que mais que isso? O seu vi- ver é ralo. [..] Para adormecer nas frigidas noites de inverno enroscava-se em si mesma, receben- do-se e dando-se 0 préprio parco calor. (p. 23-24) Ao longo do romance, o narrador insiste na falta de consciéncia que Macabéa tem enquanto sujeito de direitos: “sé vagamente tomava conhecimento da espécie de auséncia que tinha de si em si mesma” (p. 24). 5 UMA VIDA PERMEADA POR VIOLAGOES, AOS DIREITOS HUMANOS A narrativa demonstra que as constantes viola- Ges aos Direitos Humanos da personagem existem desde a sua primeira infancia. Lispector coloca que Macabéa nasceu inteiramente raquitica, heranca do serto. Depois cita a morte dos pais, sua vida com a tia beata, as pancadas que levava na cabeca, a falta de comida. Ao longo desta construcdo de sua infan- cia, ficam explicitas as violagdes a diversos direitos da personagem, como existéncia digna, afetividade, alimentaco, igualdade, cultura, convivéncia fami entre outros. Pela narrativa, percebemos que Macabéa nao tem seus direitos tutelados desde a infancia, embora 0 Estatuto da Crianca e do Adolescente (BRASIL, 1990) geranta uma série de direitos, conforme seu artigo ae: € dever da familia, da comunidade, da sociedade em geral € do poder puiblico assegurar, com abso- luta prioridade, a efetivagao dos direitos referen- tes 8 vida, & satide, & alimentacdo, 8 educacdo, 20 esporte, ao lazer, & profissionalizagdo, & cultura, & dignidade, ao respeito, 8 liberdade e 3 convivén- cia familiar e comunitéria (BRASIL, 1990, online) Dessa forma, Macabéa, ao ser criada em uma rea- lidade de extrema pobreza no sertao nordestino, de xa de ter direitos basicos previstos em nossa legisla- do. Ao contar a histéria da personagem, o narrador chega a dizer que “a pobreza é feia e promiscua” (p. 22), além de dizer que nao pisa no bairro onde vive Macabéa por ter “terror sem nenhuma vergonha do pardo pedaco de vida imunda” (p. 30). A forma como 0 narrador constréi a histéria res- salta a auséncia de direitos na trajetoria da protago- nista. A narrativa € feita de uma fora estereotipada, em que o préprio narrar demonstra tracos de pre- conceito com a origem e a pobreza da moca. Assim, Lispector constréi Macabéa de forma desumanizada, a partir do julgamento do narrador, o que traz ainda mais criticidade sobre os direitos violados na vida da personagem. ‘Agora ndo confortavel: para falar da moca te- nho que nao fazer a barba durante dias e adqui- rir olheiras escurar por dormir pouco, 56 cochilar de pura exaustdo, sou um trabalhador manual. ‘Além de vestir-me com roupa velha rasgada. Tudo isso para me pér no nivel da nordestina (p. 20) Lispector, ao falar dos direitos, coloca insistente- mente sobre 0 “direito ao grito” (p. 13). Isso significa- ria o direito a ter voz, a ser ouvido, a ter um lugar de fala, a ser alguém no mundo. Macabéa vive em uma condigdo de subalternidade, é como se no existisse =o direito ao grito talvez seria a maior prova de uma existéncia digna. O préprio narrador se sente sufoca- do com a trajetéria de sobrevivencia da personagem e diz: “[...] através dessa jovem dou o meu grito de horror a vida. A vida que tanto amo” (p. 33). 68 Revista Gncias Humanas-UNITAU, Taubaté/SP- Brasil v.13, n3, edi 28, p. 64-75, Setemibro/Dexembro 2020 Em relaco ao direito ao grito, tio ambicionado no romance Lispector, a narrativa é sérdida. Nas pagi- nas finals, apés Macabéa ser atropelada e estar caida nna rua a beira da morte, 0 narrador escreve: “O que queria dizer que apesar de tudo ela pertencia a uma resistente raga and teimosa que um dia vai talvez rei- vindicar 0 direito ao grito” (p. 80). Para Macabéa, no entanto, 0 direito ao grito no existiu: a personage morreu sem que fosse tutelado seu direito a ter voz. Em determinado momento, ao contar que Maca- béa era datilégrafa, 0 narrador diz: "E a moga ganha- ra uma dignidade: enfim datilégrafa” (p. 15). Este momento reforca a preocupagio da autora com a dignidade da pessoa humana e 0 quanto o direito ao trabalho, considerado um dos direitos econémi- cos, sociais e culturais e previsto como um dos di- reitos fundamentais na Constituicdo Federal (BRASIL, 1988), é importante para a promocio desta dignida- de. Assim, ao colocar que Macabéa consegue ter uma profissao, é finalmente um direito conquistado na vida da personagem. O trabalho é um direito social previsto no artigo 62 da Constituicaio Federal (BRASIL, 1988), Para Alvarenga (2015): 0 Trabalho Decente, conceito formalizado pela OIT em 1999, ante os desafios impostos pela globalizacao econmica, sintetiza a sua misao histérica de promo- ver oportunidades para que homens e mulheres pos- sam ter um trabalho produtivo e de qualidade, sendo considerado condicao fundamental para a superacao da pobreza, a reducio das desigualdades sociais, a ga- rantia da governabilidade democrética e o desenvol- vimento sustentdvel. (ALVARENGA, 2015, p. 133) E a partir da visdo do trabalho como um direito humano que Lispector coloca que, ao se tornar dati- légrafa, Macabéa finalmente consegue ter uma dig- nidade. Trata-se de uma insergdo social, que permite 8 pessoa o pleno desenvolvimento das suas poten- cialidades humanas. Percebe-se, ento, que a narrativa de Lispector preza por diversos direitos que permeiam a vida da personagem, sejam eles violados ou no. A autora, entretanto, no deixa de fazer criticas, por meio da ironia, na forma como o narrador se refere aos direi- tos de Macabéa: E que a moca num aflitivo domingo sem farofa teve uma inesperada felicidade que era inexplicdvel: no cais do porto viu um arco-iris, Experimentando o leve éxtase, ambicionou logo outro: queria ver, como uma vez em Maceid, espocarem mudos fogos de ar- tificio. Ela quis mais porque é mesmo uma verdade que quando se di a mao, essa gentinha quer todo © resto, 0 zé-povinho sonha com fome de tudo. E quer mas sem direito algum, pois nao €? (p. 35) Quando Macabéa experimenta um raro momento de felicidade, 0 narrador a coloca em uma catego- ria inferior, que “sonha com fome de tudo” (p. 35) Ainda diz que esse tipo de pessoa nao tem direito algum. Esta fala revela a auséncia de promogo dos Direitos Humanos na vida de grande parte da popu- lacdo, principalmente a pertencente a classes sociais mais baixas. 6 A TEMATICA DA FOME E 0 DIREITO A ALI- MENTACAO ‘Ao mencionar a pobreza, Lispector também reto- ma diversas vezes a tematica da fome. Em alguns mo- mentos do romance, fala sobre a questo da fome, de maneira geral ou na vida de Macabéa. Além disso, insinua a desnutricéo da personagem principal, co- locando-a como raquitica, muito magra, de cor ama- relada, Em uma parte do romance, 0 narrador comenta sobre um creme para pele de mulheres que nao seria para Macabéa. Em seguida diz: Executando 0 fatal cacoete que pegara de pis car 0s olhos, ficava sé imaginando com delicia © creme era to apetitoso que se tivesse dinhei- ro para compré-lo nao seria boba. Que pele, que nada, ela 0 comeria, isso sim, as colheradas no pote mesmo. E que Ihe faltava gordura e seu or- ganismo estava seco que nem saco meio vazio de torrada esfarelada. Tornara-se com o tempo ape- nas matéria vivente em sua forma priméria. (p. 38) O excerto deixa claro a situacao de fome e desnu- trigo da personagem principal. A alimentagaio é um direito humano, previsto expressamente no artigo XXV da Declaracao Universal dos Direitos Humanos (ONU, 1948), que dispde que todo ser humano tem direito a um padrao de vida capaz de assegurar a sie a sua familia satide e bem-estar, inclusive alimenta- Revista Ciéncas Humanas -UNITAU, Taubaté/SP Brasil «13,3, edo 28, p. 64-7, Setembro/Dezerbro 2020 69 Oliveira FF, Klein AM, 0, vestudrio, habitac3o, cuidados médicos e outros servigos sociais ‘Além disso, desde 2010, por meio da Emenda Constitucional n? 64, a alimentago é um dos direi- tos sociais previstos na Constituico Federal (BRASIL, 11988). Até 2 aprovacio da Emenda, o texto constitu- cional colocava como direitos sociais apenas educa- 80, satide, trabalho, moradia, lazer, seguranca, pre- vidéncia social, protecdo maternidade e a infancia e assistncia aos desamparados. © Estado tem o dever de garantir que todos as pessoas tenham condicdes minimas de existéncia, incluindo a alimentago. No Brasil, tardou para que fosse incluida como um direito social, ainda mais considerando que a Constituico incorporou muito da Declaraco Universal dos Direitos Humanos. Um momento do livro que marca é quando 0 nar- rador fala que a personagem comia papel para ma- tar a fome: “As vezes antes de dormir sentia fome e ficava meio alucinada pensando em coxa de vaca. 0 remédio entao era mastigar papel bem mastigadinho e engolir” (p. 32). A escrita de Lispector tem teor critico notério e, em diversas oportunidades, a autora se mostra pre- ocupada com a tematica da fome. Na coleténea A Descoberta do Mundo, varias crénicas revelam sua preacupacao com a fome. Em As Criancas Chatas, Lispector aborda a fome na infancia: Nao posso. N&o posso pensar na cena que visualizei @ que é real. O filho esta de noite com dor de forme e diz para a mae: estou com fome, mamae. Ela res onde com docura: dorme. Ele diz: mas estou com fome. Ela insiste: durma. Ele diz: nfo posso, estou com fome. Ela repete exasperada: durma. Ele in: siste. Ela grita com dor: durma, seu chato! Os dois ficam em siléncio no escuro, imévels, Seré que ele esté dormindo? ~ pensa ela toda acordada. E ele est amedrontado demais para se queixar. Na noi- te negra os dois esto despertos. Até que, de dor e cansaco, ambos cochilam, no ninho da resignacéo. E eu no aguento a resignagao. Ah, como devoro com fome e prazer a revolta. (LISPECTOR, 1999, p. 4) Outra crdnica que chama a aten¢3o é Dagui a Vinte e Cinco Anos, em que Lispector faz um apelo para a resolucdo da fome e da miséria: Mas, se nao sei prever, posso pelo menos desejar. Posso intensamente desejar que 0 problema mais urgente se resolva: 0 da forme, Muitissimo mais de- pressa, porém, do que em vinte e cinco anos, porque ‘nao ha mais tempo de esperar: milhares de homens, mulheres e criangas so verdadeiros moribundos am- bulantes que tecnicamente deviam estar internados em hospitais para subnutridos. Tal é a miséria, que se justificaria ser decretado estado de prontidao, como diante de calamidade publica. S6 que & pior: a fome € a nossa endemia, jé estd fazendo parte organica do corpo e da alma. E, na maioria das ve- es, quando se descrevem as caracteristicas fisicas, morais € mentais de um brasileiro, no se nota que na verdade se esto descrevendo os sintomas fisi- 05, morais e mentais da fome. Os lideres que tive- rem como meta a solugdo econémica do problema da comida serio t8o abengoados por nés como, em comparagio, 0 mundo abengoaré os que des- cobrirem a cura do cancer. (LISPECTOR, 1999, p. 11) Assim, percebe-se como a tematica da fome é re- corrente na escrita da autora. Na prépria obra ana- lisada neste estudo, A Hora da Estrela, ela faz um contraponto entre a riqueza e a miséria, ressaltan- do a questo da fome. O narrador, ao falar sobre a pobreza de Macabéa, diz: “Se o leitor possui alguma riqueza e vida bern acomodada, saird de si para ver como é as vezes 0 outro. Se é pobre, nao estard me lendo porque ler-me é supérfluo para quem tem uma leve fome permanente” (p. 30-31). De acordo com Gotlib (1995, p. 66), a manifesta- do de Lispector em A Hora da Estrela se da “sob a forma de grito de rebeldia, denunciando a fome e a impoténcia das personagens, ela também prisioneira como os macabeus, mas que, como eles, resiste, nor- destina na cidade grande, massacrada por um siste- ma social desumano”” Dessa forma, na conducao da narrativa, € possivel escancarar a indignago da autora com a fome e com a miséria, sempre retornando ao tema da falta de dignidade humana dos personagens. Para a escrito- ra, a situacdo de miserabilidade e invisibilidade das pessoas e, principalmente, a fome, é inaceitavel (AL- VES, 2017). 70 Revista Gncias Humanas-UNITAU, Taubaté/SP- Brasil v.13, n3, edi 28, p. 64-75, Setemibro/Dexembro 2020 7 A CONDICAO FEMININA E A SUBMISSAO. DE MACABEA Durante a narrativa de A Hora da Estrela, Lispector constréi a condi¢ao feminina de Macabéa. Percebe- -se que a personagem é criada pela tia com sua sexu- alidade reprimida, de tal forma ela nao reconhece o feminino que hd em si e tampouco consegue reivin- dicar seus direitos enquanto mulher. Cértes (2019) caracteriza como as personagens femininas claricea- nas so construidas: Clarice Lispector se destaca pelas reflexdes feitas so- brea mulher do século XX habitante dos grandes cen- tros urbanos. A escritora inovou a estética literdria brasileira e se destacou pela perspectiva intimista, no que tange a estrutura do texto narrativo. As persona- gens clariceanas representam a situacao alienada dos individuos das grandes cidades, geralmente tensas imersas num mundo repetitivo e inauténtico, que as despersonaliza. As mulheres esto sempre envolvidas com os problemas de casa e nao se dao conta do quao mediocre éa vida que levam e os homens so sempre inexpressivos ou autoritarios. (CORTES, 2019, p. 1) Ao longo do romance, percebe-se que Macabéa se encaixa no padrao das personagens femininas de Lis- pector. Esta representacdo da mulher em uma posi- 40 de submissao e subalternidade acaba revelando, de forma irénica, a discriminagao de género existen- te em nossa sociedade. Em muitos momentos, Lispector escancara a po- sicdo extremamente submissa de Macabéa perante ‘0 mundo: “Vez por outra ia para a Zona Sul e ficava olhando as vitrines faiscantes de joias e roupas ace- tinadas — s6 para se mortificar um pouco. E que ela sentia falta de encontrar-se consigo mesma e sofrer um pouco é um encontro” (p. 35). Macabéa & uma personagem com pouca consci- €ncia de sua posi¢o enquanto mulher e que mal se encontra consigo mesma. Nas palavras de Perrot (2005, p. 42), “dizer “eu” nao é facil para as mulheres ‘a quem toda uma educacao inculcou a conveniéncia do esquecimento de si” Em uma passagem, a personagem principal resolve faltar a0 trabalho por estar com as costas cansadas e experimenta uma verdadeira sensa¢io de liberdade: [..J ela teve pela primeira vez ne vida uma coisa a mais preciosa: a soliddo. Tinha um quarto s6 para ela. Mal acreditava que usufrufa 0 espaco. Enem uma palavra era ouvida, Entéo dancou num ato de absoluta cora- ‘gem, pois a tia ndo entenderia. Dancava e rodopiava Porque ao estar sozinha se tornava: Liv--e! (p. 41) Neste momento, Lispector ressalta a sensagio de solidao da personagem, que vem junto a uma experi- Encia de liberdade, sentimentos jamais percebidos por Macabéa em sua condigao feminina, Inclusive cita a atitude de danear como um ato de absoluta coragem, fazendo referéncia criagdo dada pela tia, que repri- mia de forma veemente a sexualidade feminina. Esta repressio sexual ¢ percebida em outras passa- gens do romance, quando Macabéa tem vontades se- xuais ¢ tenta reprimi-las. A sensagao de liberdade a0 estar sozinha demonstra uma emaneipagio por parte da personagem: “Encontrar-se consigo propria era um bem que ela até entéo no conhecia. Acho que nunca fui t@o contente na vida, pensou. Nao devia nada a ninguém e ninguém Ihe devia nada” (p. 42), Apesar deste sentimento momentineo de emane’ pagio e liberdade, o romance permanece enfocando na condicio submissa de Macabéa. Quando ela co- mega a namorar Olimpico, 0 percebe como alguém muito superior a ela, dando a ele atributos de extrema inteligéncia e masculinidade. 0 relacionamento, no entanto, relava didlogos abu- sivos ao longo da historia. Macabéa, no entanto, com sua consciéneia semi-intransitiva, conforme denomi- nagdo de Freire (1979), se resigna com as respostas dadas por Olimpico e tende a achar que ele sempre tem razio ao diminui-la ou classificd-la. Esta situagao pode ser percebida no seguinte didlogo: ~ E vocé tem cor de suja. Nem tem roste nem corpo para ser artista de cinema -Vocé acha mesmo? (1 -£, dessa vaca nfo sai leite. (p. 54) relacionamento da personagem com Olimpico se desenvolve totalmente baseado na resignacao de Macabea. Ela “nunca esqueceria que no primeiro Revista Ciéncas Humanas -UNITAU, Taubaté/SP Brasil «13,3, edo 28, p. 64-7, Setembro/Dezerbro 2020 7 Oliveira FF, Klein AM, encontro ele a chamara de “senhorinha’, ele fizera dela um alguém” (p. 54). Assim, percebe-se que a personagem tem um sentimento de servidio pelo namorado, justamente por ele ter sido, talvez, a pri- meira pessoa a enxergé-la, a primeira pessoa a tird-la da invisibilidade. Enquanto Macabéa se julga irrelevante, Olimpico, por sua vez, também de origem pobre e migrante nordestino, é ambicioso e quer conquistar espaco na sociedade carioca. Para se sentir superior, ele dimi- nui a protagonista: - Escuta aqui: voce esta fingindo que ¢ idiota ou é idiota mesmo? ~ No sei bem 0 que sou, me acho um pouco... de qué?... Quer dizer no sei bem quem eu sou. = Mas vocé sabe que se chama Macabéa, pelo me- nos isso? E verdade, Mas néo sei o que esta dentro do meu nome. $6 sei que eu nunca ful importante. - Pois fique sabendo que meu nome ainda seré escri- to nos jornais e sabido por todo 0 mundo. (p. 56) Hirigoyen (2006) afirma como o homem, ao longo da histéria, sempre foi considerado 0 Unico deten- tor do poder, deixando as mulheres excluidas desse espaco. Para 0 autor, isso acabou por condicionar 0 pensamento de ambos, de tal forma que os estered- tipos, ainda nos dias de hoje, se mantém. Assim, no relacionamento entre Olimpico e Ma- cabéa, a estrutura proposta por Hirigoyen (2006) se mantém: Olimpico 0 detentor de poder, enquanto Macabéa sequer possui um espaco préprio. Os per- sonagens se inserem em uma ideologia machista, em que Olimpico domina Macabéa e esta se submete 20 poder masculino: “(...] ainda se encontra mulher ba- rata. Voc me custou pouco, um cafezinho, No vou gastar mais nada com vocé, esta bem? Ela pensou: eu ndo mereco que ele me pague nada porque me mijei (p. 55-56)”. Dessa forma, entende-se como a condi¢ao femini- na de Macabéa é totalmente inserida em uma socie- dade machista. Olimpico, quando termina o romance com a protagonista, diz: "Vocé, Macabéa, é um cabe- lo na sopa. Nao dé vontade de comer. Me desculpe se eu Ihe ofendi, mas sou sincero (p. 60)”. Ainda as- sim, a personagem no se revolta com a forma como 6 tratada pelo companheiro. Ressalta-se que a estrutura machista também tem reflexos nas outras personagens mulheres do roman- ce. Quando Olimpico deixa Macabéa para ficar com Gléria, 0 critério utilizado foi de que “apesar de feia, Gloria era bem alimentada. E isso fazia dela material de boa qualidade (p. 59)”. Posteriormente, Macabéa vai & cartomante para saber sobre seu futuro e a mulher Ihe diz: Eutinha um homem de quem eu gostava de verdadee que eu sustentava porque ele era fino e no queria se gastaremtrabalhonenhum. Eleeraomeuluxoeeuaté apanhava dele. Quando ele me dava uma surra eu via que ele gostava de mim, eu gostava de apanhar. (p. 74) Logo, percebe-se que a narrativa repete a discri- minagao de género existente em nossa sociedade, escancarando ao leitor a violéncia fisica, verbal e psi- colégica contra a mulher. 8 DIREITO A AFETIVIDADE E AO PROJETO VITAL Macabéa é uma personagem que nao experimen- ta tragos de afetividade em sua trajetéria. Lispector exibe uma mulher miserdvel, que passa fome, que 6 um retrato da subalternidade em uma sociedade corrompida. Mas a autora vai além: mostra mais um direito humano violado na vida da protagonista - 0 direito a afetividade. Quando a personagem vai a cartomante para saber sobre 0 futuro, ela se sente intimidada pela forma carinhosa como ¢ tratada: “Macabéa sentou-se um pouco assustada porque faltavam-Ihe antecedentes de tanto carinho (p. 72)". Sawaia (2003) esclarece a importancia das dimensdes afetivas para que a pes- soa tenha sua dignidade reconhecida de maneira ampl Os excluidos, como todos os homens, tém fome de dignidade. Eles desejam ser reconhecides como “gen- te’, como seres humanos. Necessitam de afeto, de atengio, de sentir que realmente so Unicos e que, 72 Revista Gncias Humanas-UNITAU, Taubaté/SP- Brasil v.13, n3, edi 28, p. 64-75, Setemibro/Dexembro 2020 ‘a0 mesmo tempo, so iguais aos seus semelhantes, 0 que thes & negado nas relagGes sociais injustas e dis criminadoras. Suas necessidades e desejos no se es- gotamna luta pela sobrevivéncia biolégica. O impulso natural de conservacdo da vida exige a expansio de suas possibilidades, que é 0 fundamento do processo de humanizacdo. alegria, a felicidade ea liberdade so necessidades téo fundamentals quanto aquelas, classicamente, conhecidas como basicas: alimen- taco, abrigo e reproducso. (SAWAIA, 2003, p. 55) Conforme a percepgao de Sawaia (2003), felicida- de e alegria so necessidade fundamentais do ser humano. Macabéa, entretanto, em sua posicéo de marginaliza¢o social, ndo experimenta claras sensa- G6es que permeiam a afetividade. Nao se considera feliz, tampouco triste. Quando Olimpico a deixa, 0 narrador explicita que a tristeza nao fazia parte do mundo da protagonista, jd que 0 ato de se sentir tris- te 6 um luxo. Depois que Olimpico a despediu, jd que ela ndo era uma pessoa triste, procurou continuar como se nada tivesse perdido. (Ela nao sentiu desespe- ro etc. etc.) Também que & que ela podia fazer? Pois ela era crénica. € mesmo tristeza também era coisa de rico, era para quem podia, para quem nfo tinha 0 que fazer. Tristeza era luxo. (p. 61) Outro aspecto que chama a atenc3o em A Hora da Estrela € a falta de um projeto de vida para a perso- nagem. De acordo com Damon (2003, p. 53), “proje- to vital é uma intenco estavel e generalizada de al- cangar algo que é 20 mesmo tempo significativo para © eu e gera consequéncias no mundo além do eu’. Macabéa, porém, apenas sobrevive a uma vida de direitos violados, sem anseios ou pretensées. Quan- do ela vai a cartomante, a mulher Ihe pergunta se ela pensa em seu futuro. Conforme o narrador, “A per- gunta ficou por isso mesmo, pois a outra nao soube o que responder” (. 65). Para KLEIN (2011, p. 25), os projetos de vida sdo “possibilidades de escolha dos individuos e expres- 80 maior de nossa humanidade”. Assim, a consta- taco de que Macabéa no tem um projeto vital nos leva a perceber mais um direito humano violado no cotidiano da personage. Quando sai da cartomante e percebe que tem uma boa perspectiva de futuro, pela primeira vez a prota- gonista se anima com a possibilidade de vida que tem adiante. Neste momento, 0 narrador diz: “Macabéa nunca tinha tido coragem de ter esperanca (p. 76)’ Ou seja, além da afetividade, esperanca e projeto vi- tal nunca fizeram parte do cotidiano da personagem. No fim do romance, quando Macabéa é atropelada estd caida na rua, mais uma vez Lispector ressalta a falta de alteridade na vida da personagem. “Algumas pessoas brotaram no beco nao se sabe de onde e ha- viam se agrupado em torno de Macabéa sem nada fazer assim como antes pessoas nada haviam feito por ela, s6 que agora pelo menos a espiavam, o que the dava uma existéncia” (p. 81). Mais uma vez, as pessoas passam pela vida de Ma- cabéa sem Ihe conceder nenhum direito, sem ao me- nos Ihe dar um pouco de afeto. No entanto, neste momento, caida na rua, & beira da morte, ocorre algo ‘que nunca havia passado na vida da personagem: ela sai da invisibilidade, finalmente Ihe dao alguma exi téncia. E que existéncia € esta, que foi retirada de Maca- béa durante toda sua trajetéria? Silva (2010, p. 15) dispde que “o direito a existéncia consiste no direito de estar vivo, de lutar peio viver, de defender a pré- pria vida, de permanecer vivo. |...) Existir 6 0 movi mento espontaneo contrdrio ao estado morte”. Assim, quando Lispector confessa que sua perso- nagem finalmente recebe o direito de existir, escan- cara para o leitor que a vida de Macabéa se tratava de uma mera sobrevivéncia. Como relatado na narra- tiva: “A datilégrafa vivia numa espécie de atordoado nimbo, entre céu e inferno. Nunca pensara em “eu sou eu”. Acho que julgava nao ter direito, ela era um ‘acaso. Um feto jogado na lata de lixo embrulhado em um jornal (p. 36)”. Dessa forma, percebemos que Lispector ultrapas- 5a a abordagem dos Direitos Humanos em suas di menses mais simples, como direitos civis, politicos, sociais, econémicos e culturais. Ela vai além, polemi zando direitos como afetividade, projeto de vida e até mesmo existéncia. Nas paginas finais do roman- ce, declara: “a vida é um soco no estémago” (p. 83). Revista Ciéncas Humanas -UNITAU, Taubaté/SP Brasil «13,3, edo 28, p. 64-7, Setembro/Dezerbro 2020 73 Oliveira FF Klein AM, 9 CONSIDERACOES FINAIS O que significa a existéncia de Macabéa em A Hora da Estrela? Esta ¢ a indagacdo que o romance de Lis- pector nos propée: a narrativa nos leva a buscar qual 6 0 significado da protagonista em uma sociedade que no a enxerga e ndo a permite que tenha direi- tos basicos. ‘Ao analisar o romance da perspectiva dos Direitos Humanos, concluimos que a obra ressalta, do inicio a0 fim, a violagao a estes direitos. Neste quesito, Lis- pector é extremamente critica, pois coloca situagées banais e cotidianas que parecem simples, mas que revelam o quanto a dignidade da pessoa humana é deixada de lado quando se trata da personagem prin- cipal. ‘Ao longo da narrativa, vemos violacées a direitos da mulher, da crianga, a alimentacdo, a0 trabalho, a0 afeto, & igualdade, a liberdade, entre outros. A dig- nidade € colocada a prova em diversos momentos: 0 mero direito a existéncia € questionado na sofrida vida da protagonista. E hd alguma diferenca entre a ficgdo e a realidade? Entendemos que a relevancia da obra, no tocante 0s Direitos Humanos, esté justamente em sua expo- si¢do realista e crua de nossa sociedade. Temos inti- meras Macabéas, que possuem seus direitos viola- dos cotidianamente e sequer tem conhecimento de quais sdo as normas e os principios que as protegem. Dessa forma, a vivéncia de Macabéa nos revela a necessidade da Educaco em Direitos Humanos, exercida nao apenas nos ambientes informais de en- sino, mas também em espacos como midia, arte e movimentos sociais. Por meio desta educagio, é pos- sivel 0 individuo transpor o lugar de vitima e passar a ocupar a posicdo de sujeito de direitos, ciente de suas escolhas e reivindicagées. Os Direitos Humanos ndo se resumem a direitos sociais basicos, como alimentacao, satide e moradia. EA Hora da Estrela nos mostra isso de forma extre- mamente empatica e sensivel. Como diria Eduardo Galeano (2009, p. 81): “O sistema, que nao dé de co- mer, tampouco dé de amar: condena muitos a fome de pio e muitos mais a fome de abracos”. REFERENCIAS AIVARENGA, Rubia Zanotelli de. O trabalho decente como direito humano e fundamental. R. TRT 8 Re- Bido, Belém, v.48, n. 95, p. 1-421, jul/dez 2015. Dispo- nivel em: . ‘Acesso em 02 mar. 2020. ALVES, Joyce. 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