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KoauMtNTACÁOEINFOflMAÇAO
'líCNICAS
REVisTA
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I NfORMAÇÃO
LEqislATivA
Bmsília • ano 32 • n. o 126
abriVjunho - 1995

E.ditot":
3oão Batista SOl.ves de SOlAsa; Dit"etot"
REViSTA.
dE
IN fo RMA.ÇÁO
LEGislATivA.

F~l)t.DORES

Senador Auro Moura Andrade


Presidente do Senado Federal- 1961-1967
Isaac Brown
Secretário-Geral da Presidência - 1946-1Q67
leyla Caslerlo 8fanco Rangel
Diretora - 1964-1988

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Senado Federal, Via N-2, Unidade de Apoio 111
Praça dos Trés Poderes
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João Evangelista Belém e lheresa eatharina de Goes campos
ECfTORAç.l.o Et..EmONlCA
Angelina Almeida Silva e Dulce Maria R. de Machado
Co'-"'OSlÇÁO E IMPRESSÂO

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CAPA
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R(\'iSl'A dr l~rOIlMN;1,o lfGi4Ari\lA ano'- n~' - mar. 1964-. Braania, Senado Federal.
v. trimestral.
Ano '-:l, n g '-10, publ. pelo Serviço de Informaçio Legislativa; ano 3-9, nlI
11-33, publ. pela Diretoria de Informação Legislativa; ano 9- , n g 34- • publ. pela
Subsecretaria de Edições Técnicas.
1. Direito - Periódicas. I. Brasil. Congresso Nacional. Senado Federal,
S..msecr&l.trria de Edições Técnicas. 11. Sousa, João Batista Soares de, dir.
COO 340.05
COU 34(05)
REViSTA
dE
INfORMAÇÃO
LEqislATivA
Brasília . ano 32 . nO 126 . abril~unho' 1995

André Franco Montara Uma visão critica do Direito 5


Osvaldo Maldonado Sanches Processo orçamentário federal: problemas, causas e
indicativos de solução 9
Edilson Pereira Nobrc Júnior Expropriação dos bens utilizados para fins de tráfico
ilítico de entorpecentes 33
José Pitas Ministério Público do Trabalho: prerrogativas do oficio
são comunicáveis à sua atuação como parte? 43
Ricardo Rodrigues Uarreira legal nos sistemas eleitorais proporcionais
47
AmoldoWald A imunidade dos fundos de pensão e o mercado de
capitais 57
Fernando da Costa Tourinho Pena sem prisão: prestação de serviços à comunidade
Neto 63
Demócrito Ramos Reinaldo O recurso especial e as decisõcs interlocutórias de-
safiadas por agravo de instrumento 67
René Ariel Dotti Consulta e parecer 75
Oswaldo Othon de Pontes A exoneração tributária dos aposentad(.~ e pensio-
Saraiva Filho nistas 83
Gilmar Ferreira Mendes Evolução do Direito Constitucional brasileiro e o con-
trole de constitucionalidade da lei 87
Rcbison Gonçalves de Castro Consideraçõcs acerca da constitucionalidade na ex-
pedição de medidas provisórias versando maté-
ria orçamentária pública (Nota técnica n. o 1/95)
103
Jorge Ulisses Jacoby Fernandes Requisitos para Ministro e Conselheiro de Tribunal
de Contas 113
Judith Martins-Costa Os princípios informadores do contrato de cempra c
venda internacional na Convenção de Viena de
1980 115
José Matias Pereira A defesa da concorrência no Mercosul 129
Élio Wanderley de Siqueira Filho ônus sucumbenciais. Situações controvertidas 137
Ivo Dantas Das Disposições Constitucionais Transitórias (uma
redução teórica) 141
Antônio Vital Ramos de Notas sobre a exegese do artigo 102, I, n, da Consti-
Vasconcelos tuição Federal 149
Fernando Whitaker da Cunha O civilista Amoldo Wald 163
Juan Marcos Rivcro Sanchcz Derccho penal como tecnología social (Notas sobre
las contradicciones deI sistema penal) J67
Fernando Braga Da codificação à lei civil brasileira 181
Jorge Miranda O direito eleitoral português 189
Toshio Mukai Licitação: pontos polêmicos 195
Maria Elizabcth Guimarães A intervenção do Estado brasileiro e a política oligár·
Teixeira Rocha quica na república velha 207
Sueli Angelica do Amaral Biblioteca e constituição 221
Heleno Taveira Torres O princípio da responsabilidade objetiva do Estado e
a teoria do risco administrativo 231
lris Elictc Teixclra Nevcs dc A legitimação do Parlamento para a função fiscal
Pinho Tavares 245
Tânia Mara Botelho Liderança: uma nova visão 249
Jarbas Maranhão Agamennon Magalhães. O estadista do social, o ad-
ministrador, o pensamento político 257
Mimey Barbosa de Sousa Da Jurisprudência como ciência compreensiva. A
Gustin dialética do compreender mediante o interpretar
269
Uma visão crítica do Direito

ANDRÉ FRANCO MONTORO

Longe de ser "estática ", a vida do direito


reveJa um contínuo "vir a ser". Forças em
conflito, que lutam por interesses opostos,
dão origem a normas e sihWÇões jurídicas,
que podem representar a dominação de al-
guns ou a conquista de muitos.
FRANCO MONTaRa.

sUMÁRIo
1. Abordagem global. 2. Dinamismo do Direito.
3. Atitude progressista.

A abordagem do Direito em nossos cursos


é, em geral, estática, parcial e paralisante. Está·
tica.. porque vê o Direito corno um sistema com-
pleto, fechado, perfeito, sem lacunas e sem con-
tradições. Parcial, porque só considera, no am-
plo campo do Direito, as normas jurídicas esta-
tuídas pelo Estado, limitando assim o campo do
Direito ao "Direito oficial". E, finalmente, parali-
sante, porque atribui ao Direito e aos juristas
uma função conservadora da ordem oficial es-
tabelecida.
Uma consideração mais atenta do Direito
vivo e da realidade jurídica, que se desenvolve
e agita no seio das sociedades contemporâne-
as, nos leva a superar essa postura e a substi-
tuí-la por uma abordagem dinâmica, global e
progressista do Direito. Na segunda edição de
nossos Estudos de Filosofia do Direito (Ed.
Saraiva. 1995) abordamos o estudo desses di-
versos aspectos.
1. Abordagem global
Só o Estado é fonte de direitos? O Direito
André Franco Montoro é Deputado Federal e estabelecido pelo Estado esgota o campo da
Presidente da Comissão de Relações Exteriores da realidade jurídica? Poderíamos repetir hoje a fra-
Câmara de Deputados. Ex-Govemador do Estado de se de Kelsen: "Todo direito é direito estatal"?
Silo Paulo. Professor de Filosofia do Direito.

8,. .111• •• 32 n. 128 . . ../1.".. 1895 5


Se partimos da idéia redutora do Direito ao o fenômeno não é novo. Já Oliveira Vianna.
ordenamento jurídico estatal. único e herméti- em seu estudo sobre as Instituiç/jes Pollticas
CO - observa Roberto Lyra Filho ., já teremos Brasileiras (Rio de Janeiro, JoséOlympío, 1949),
estabelecido, nesse primeiro passo, o engano declara que descobriu. com surpresa, "'0 nosso
que vai gerar tudo o mais. O Direito não pode direito social operário", ao investigar "esta ca-
ser captado na sua inteireza sob a exclusiva óti- mada ou subestrutura juridico-popular".
ca do Estado, e dos interesses dominantes. Nem "'0 que deparamos, eu e meus com-
há apenas um único conjunto de normas no panheiros - acrescenta -, foi todo um
seio da sociedade. complexo de normas e regras, militante.
Pelo contrário. a vída do Direitoé mais com- vivaz. estu8nte de vida e sangue, objeti-
plexa e mais dinâmica. Permanentemente, as vado em usos, tradições, praxes, costu-
necessidades sociais e os conflitos de interes- mes e, até mesmo, instituições adminis-
ses e de valores vão gerando novos direitos e trativas oficiosas. Era todo um vasto sis-
constituindo ordenamentos que regulam a vida tema regulando as atividades das obs-
de amplos setores da sociedade. Isso ocorre no curas massas do trabalho e a vida produ-
plano internacional e no plano interno. tiva de milhôesde brasileiros" (p. 15).
No plano internacional, e fora da esfera es- O Direito estabelecido peJo Estado - como
tata], forças, interesses e ideais antagônicos a Consolidação das Leis do Trabalho e a legis-
atuam continuamente na formação de novos lação posterior - constitui apenas uma parte do
direitos e novas relaçõesjurídicas. De um lado, atual Direito do Trabalho. Através de conven-
atuam movimentos em defesa dos direitos hu- ções coletivas, ajustes de empresas, negocia-
manos, da dcscolonização ou libertação de na- ções sindicais e outras modaljdades de enten-
ções, de proteção às minoria~ marginalizadas, dimento. sao as forças da própria sociedade que
de preservação da nature7..3. E preciso lembrar vão abrindo caminho para o reconhecimento e
que o reconhecimento dos direitos humanos, a consolidação de seus direitos.
inclusive sua "Declaração Universal" pela A&- N~ é somente 1\0 plano do ttabalho que a
semb]éi3 das Nações Unidas, não constituem própria comunjdade elabora seu Direito. Tam-
uma <Mdiva generosa dos Estados ou Gover- bém no plano local, as sociedades de morado-
nos, mas uma conquista que é fruto da sofrida res, as comunidades de base, as associaçtles
luta social e histórica de muitas geraçôes. De de constUllidores e outras, em luta por seus le-
outro lado. forças antagônicas atuam também gítimos interesses e opondo-se, muitas vw:s,
no plano internacional, gerando direitos e rela- a forças poderosas, vão conquistando espa-
ções jurídicas de proteção de seus interesses çoS e garantias, que constituem autênticos di-
em muitas partes do mundo. Sirva de exemplo o reitos.
chamado Acordo Trilatem], celebrado em 1973 No plano universitário, antes que alei o fi·
por 300 representantes de finnas multinacionais zesse, foi a própria comunidade estudantil Q'lt.
- ou melhor, transnacionais -, provenientes dos através de uma ação persistente e organizada,
Estados Unidos, Europa e Japão. Como infor- revogou o famoso Decreto-Lei n.o 477, que es-
ma o Professor Aldo Ferrer. em seu estudo s0- tabelecia normas restritivas à atuação politíca
bre A Comisst/o Trilaleral e a Proliferaçoo do dos jovens.
Poder Econômico Internacional. essa Comis-
são tem um Comitê Executivo de 29 membros e No campo do Direito Comercial, não são
três Presidentes Regionais. com sede em Nova apenas os usos e costumes que constituem
Iorque, Paris e Tóquio. Essa institucionaliza- fonte reronhecida de D.ircito não elaborado pejo
ção. ai iada à capacidade organi7..3tiva das gran- Estado. Acordos econômicos entre empresas,
des empresas. explica a expansão das transna- contratos de adesão impostos por grandes fir-
cionais, que passaram a atuar no campo mundi- mas e milhares de revendedores e milhões de
al. acima da soberania dos Estados. Seus acor- consumidores, são também fontes pennanen-
dos e decisões geram relaçõesjurídicas que afe- tes geradoras de direitos e ordenamentos jurl-
tam a vida de milhões de pessoas, dicas não estatais.
Em nossa Introd'uçtIo d Ciencia do Direi·
No plano interno. grupos sociais. cada vez lo, dedjcamos um capitulo (Parte V, capo 1II) ao
mais numerosos e atuantes. criam continuamen- estudo dos ordenamentos jurídicos que se de-
te nonnas de conduta social, com todas as ca- senvolvem aO lado do ordenamento jurídico
racterísticas de um Direito vivo. estatal. A maior parte desse Direito nunca é le-


vada aos Tribunais e se desenvolve indepen- entre a Administração e as associações de mo-
dentemente da vontade do Estado. Mas sua radores. entre o loteador de terrenos e os hu-
existência e importância para a vida social são mildes compradores de lotes. entre leis discri-
re""nhecidas não apenas pelos cientistas soci- minatórias e os movimentos organizados dos
ais. mas por ilustresjuristas como Hauriou. Re- setores marginalizados.
nard. Dclos. Legal e Brethe de la Gressaye. Gény, Esses e outros conflitos de interesses vão
Ehrlich. Hubcr. Leroy. EmmanueJ Levy. Gurvi- gerando, através de usos, costumes, acordos,
tch e outros autores citados no mesmo capítu- instituições e outros processos, o Direito vivo
lo. Particularmente importante é a posição de e reaL que pode representar a "conquista" de
Jellinek. que. depois de adotar urna atitude fran- grupos dominados ou a "imposição" dos gru-
camente formalista e reduzir todo o Direito à pos dominantes.
expressão da vontade do Estado, reconhece em
E, de forma significativa, no próprio Direito
seus últimos escritos:
ProcessuaL em suas diferentes especializações,
"Sabemos hoje que as leis podem está presente esse caráter dinâmico e conflitivo
muito menos do que pensávamos antes. da vida do Direito. com o princípio do contradi-
Não apenas elas são freqüentemente im- tório. A primei :a medida do juiz, ao receber urna
potentes para modificar a vida jurídica petição inicial. é ordenar a citação da parte con-
real e mostram lacunas consideráveis, trária. Não é sem razão que a lógica do Direito
mas. ainda, nos grupos autônomos sur- pode ser chamada "8 lógica da controvérsia".
gem novos ordenamentos jurídicos. que Com razão, Miguel Reale adverte que é ne-
podem concorrer com a lei. como as con- cessário superar a prevenção existente em cer-
venções coletivas de trabalho, o movi- tos círculos, quanto à compreensão dos fenô-
mento sindical e outros". menos culturais em termos "dialéticos", sem os
E, na segunda edição da Teoria Geral do preconceitos e reservas decorrentes da carga
Eçtado, amplia sua primeira definição de Direi- ideológica unida à dialética de tipo hegeliano
to - "sistema de normas que o Estado reconhe- ou marxista. Esta é apenas urna das inúmeras
ce como obrigatórias"· para caraeteri71Í·lo como concepções dialéticas, formuladas por filóso-
"toda regra garantida em um meio social deter- fos e cientistas de todos os tempos (v. O Direi-
minado". to como experiência)
2. Dinami.çmo do Direito 3. Atitude progressista
Longe de ser "estática". a vida do Direito Além de global e dinâmica, uma abordagem
revela um contínuo "vir a ser". Forças em con- moderna do Direito deve ser "progressista" e
flito. que lutam por interesses opostos, dão ori- não "paralisante".
gem a nOTInas c situações jurídicas, que podem Diante dessa multiplicidade de ordenamen-
representar a dominação de alguns ou a con- tos e normas, em continuo "vir a ser" e marca-
quista de muitos. dos por conflitos e oposições, qual a atitude do
Homens e mulheres. classes. grupos, p0- advogado. do procurador, dojuiz, do adminis-
vos e nações são participantes desse movimen- trador, do legislador?
to gerador do Direito concreto e vivo. que rege Aceitar passivamente como direito posto
efetivamente a vida social. aquele que é lhe apresentado, interpretado e
Esse processo é conflitual e dialético em defendido pelos poderosos meios de "conven-
todos os planos. cimento" das forças dominantes?
No c<lmpo internacional. é a luta constante Ou colocar corajosamente diante de si o
entre a ação imperialista. colonialista ou semi- dever de confrontar todos aqueles conjuntos
colonialista de grandes potências. c, de outro com critérios de legitimidade e de justiça? - ten-
lado. movimentos de independência política, do presente que eles se apresentam como nor-
econômica e cultural das nações em processo mas coercíveis, que afetam a liberdade e a vida
de desenvolvi menta. de pessoas, grupos. classes ou povos inteiros.
No plano interno. é a mesma relação confli- Não se trata de contrapor a realidade a um
tiva entre empregados e empregadores, entre modelo idealista e absolut9 que "fica lá longe,
consumidores. comerciantes e produtores, en- numa caverna platôlÚca". E na planície em que
tre pequenas e grandes empresas. entre o Fisco vivemos. no processo histórico-social entre li-
e o contribuinte. entre o Estado e o cidadão, berdade e opressão. minorias dominadoras e

7
maiorias sacrificadas. que se há de exercer, com tes em todos os momentos da vida do Direito.
espírito critico e independente, a tarefa de cons- Aceitar as normas jurldicas como inexorável
trução dos homens do Direito. imposição dos detentores do poder e negar ao
O campo dessa atuação é amplo: vai desde jurista outra tarefa que não seja a de simples
a tarefa de orientar a criação de novas normas, instrumento para a aplicação das mesmas sig-
através de contratos, acordos. convenções, nifica desnaturar o Direito e, mais do que isso,
estatutos, regimentos, até sua participação nos tr.ú-lo.
movimentos de transformação de leis, decre- É certo que forças poderosas atuam conti-
tos, portarias, passando pela formulação de nuamente, com habilídade e competência, no
pareceres, prolaç;1o de sentenças e notadamente sentido de impor à sociedade nonnas que aten-
pelo trabalho de interpretação das normas. dam a seus interesses e objetivos. É certo tam-
Nesse trabalho, que é de importância fun- bém que vivemos em uma sociedade marcada
damentaI, não é verdade que o advogado, o pela injustiça: somos o 9.° pais do mundo em
juiz, () jurista estejam aprisionados ao texto da produto nacional e o último, dos 34 paises es-
lei e vinculados à vontade do legislador. Com o tudados pela ONU, no tocante à distnbuiçlo
ato de sua decretação, as leis tornam-se inde- da renda nacional. Mas essa situação, em lugar
pendentes de seus autores e adquirem wna exis- de diminuir, só pode aumentar aimportAncia ea
tência objetiva. Cabe ao jurista interpretá-las. E responsabilidade dos cultores do Direito. Ela
a tarefa de intérprete do consiste em descobrir nos obriga a rejeitar o papel que se pretende
e respeitar a vontade do legislador, mas, sim. impor ao jurista: o de instrumento "neutro",
em procurar a finalidade objetiva da lei, que, destinado à defesa de um sistema de interesses
por sua natureza, deve ~ orientada para a estabelecidos. E a reafirmar a misslo e o senti·
justiça e o bem comum. E esse o sentido do do fundamental do Direito, como instrumento d
preceito geral estabelecido no art. 5.° da Lei de serviço da pessoa humana. Todo Direito foi fei-
Introdução ao Código Civil, que é, como sabe- to por causa do homem. Hominum CQUSQ omne
mos, nossa lei comum de aplicação das normas jus constitutum est é a advertência histórica de
jurídicas: Justiniano (D.I. 5.2).
"Na aplicação das leis, o juiz atende- A posição que decorre da própria natureza
rá aos fins sociais a que ela se dirige e às do Direito e que está contida em um dos man-
exigências do bem comum". damentos do advogado, redigidos por Eduar-
Nessa luta peta vigência concreta e viva da do Couture, é clara e imperativa.
justiça é que se realiza a razão de ser ou, como "Teu dever é lutar pelo Direito. Mas
diz Roberto Lyra, "a ontoteleologia do Direito". quando encontrares o Direito, isto é, a
letra da Lei, em conflito com a Justiça,
Não podemos limitar o estudo do Direito ao luta pela Justiça"!.
conhecimento pretensamente "neutro", "puro" Como adverte Stammler:
e "objetivo" da norma posta, para sua "cega" "Todo direito deve ser uma tentativa
aplicaçao. do direito justo".
A realidade social e a justiça estão presen-


Processo orçamentário federal:
problemas, causas e indicativos de
solução

OsVALDO MALOONo\OO SANO-IES

sUMÁRIo
1. Considerações iniciais. 2. Uma análise dos
proMema.ç e inadequações. 2.1. A grande mobilida-
de das estnlhlras da administração pública. 2.2. A
precariedade dos processos de artictllação intergo-
vemamental. 2.3. A excessiva flexibilidade do Exe-
ctltivo para modificar projetos orçamentários. 2.4.
A flexibilidade do Poder Executivo para executar
apenas parte da programação. 2.5. A improprieda-
de do emprego de medidas provisórias em matéria
orçamentaria. 2.6. A ineficácia do Plano Plurianual
como elemento ordenador da programação. 2. 7. A
subutilização da LDO como instrumento de formu-
lação de políticas públicas. 2.8. A precária separa-
ção dos orçammtos fiscal e da seguridade social.
2.9. Inadequações no orçamento de investimmto de
estatais. 2.10. Inadequações nos processos de apre-
ciação da Lei Orçamentaria Anual (IDA). 2.11. Ina-
dequação na estrutura e funcionamento da Comis-
são Mista. 2.12. O uso de medidas provisórias para
autorizar a abertura de créditos extraordinários.
2.13. Inadequações na estrutura de assessoramm-
to. 2.14. Deficiênciasno acompanhamento da e~C1I­
ção dos planos e orçamentos. 3. Conclusões e reco-
mendações. 3.1. Ajustes constitucionais. 3.2. Provi-
dências necessárias na órbita legal. 3.3. Ações ad-
ministrativas regimentais.

1. Considerações iniciais
A Constituição de 1988 trouxe uma série de
inovações no campo da orçamentação pública,
especialmente no que se refere à abrangência
dos orçamentos federais e à fonna de aprecia-
ção das propostas respectivas. Na nova ordem
Osvaldo Maldonado Sanches é Mestre em Ad- constitucional o orçamento das entidades da
ministração Pública pela EBAPfFGV e pela State
University of New York em Albany. Assessor de
administração indireta (autarquias, fundações
Orçamento da Câmara dos Deputados. Coordenador e empresas) deixou de constar sob a fonna de
Técnico de Assessoramentos à Comissão Mista no dotações globais; a lei orçamentária passou a
período 1992 a 1994. Ex-diretor de Orçamento do ser composta de três orçamentos: o fiscal, o de
Estado do Paraná. investimento das empresas e o da seguridade
9
social; a elaboração da lei orçamentária passou (montado integralmente) no seu âmbito e sem o
a subordinar-se a leis superordenadoras (Lei concurso dos técnicos do Poder Executivo, e,
de Diretrizes Orçamentárias e Plano Plurianu- nesse mesmo ano, a articulação de um padrão
al); as matérias orçamentárias passaram a ser de parecer-preliminar - mantido e aprimorado
apreciadas por uma comissão pennanente de nos exercícios subseqüentes - orientado para
senadores e deputados antes do seu exame pelo a obtenção de transparência nos procedimen-
Plenário do Congresso Nacional, e a prerrogati- tos, para a fixação de regras claras e mutuamen-
va de emendar os proposições sobre matéria te excludentes e para a limitação dos poderes
orçamentária passou a ser limitada por restri- dos relatores.
ções fixadas no próprio texto constitucional. Apesar dos avanços acima relatados, os
Além disso a nova Carta instituiu, coeren- quatro anos de experimentação com os proce-
temente com a melhor doutrina, uma forte vin- dimentos desenvolvidos pelo Congresso Naci-
culação entre os orçamentos públicos e o pla- onal para lidar com as matérias orçamentárias e
nejamento governamental. Nesse sentido um as avaliações disponíveis sobre as práticas da
dos instrumentos mais significativos foi a insti- administração neste campo colocam em evidên-
tuição da Lei de Diretrizes OtÇaInentárias 00100 cia que existel1\ sobretudo do ponto de vista
mecanismo de explicitação das políticas públi- do interesse público e da ótica dos agentes do
cas, de balizamento das modificações tributári- Poder Legislativo, uma série de inadequaçOes
as, de detalhamento das programações e metas nos processos, normas e procedimentos relaci-
contidas no Plano Plurianual e de controle da onados com a programação, execução e avalia-
implementação do planejamento. Expressam ção do gasto público. Essas inadequações,
essa vinculação, igualmente, as normas (arts. apontadas por vários relatores - sobretudo
165, § 7.°, 166, §§ Pe 4. o e 167, § l.°daConsti- pelos das LDOs -, por órgãos de investigação
tuição) que tomam obrigatória a compabbiliza- do Congresso Nacional - como as comissOes
ção da Lei Orçamentária Anual (LOA) com a Lei parlamentares de inquérito - e por estudiosos do
de Diretrizes Orçamentárias (LOO) e de ambas assunto, se situam em três categorias: constittlci-
com o Plano Plurianual (PPA). onais, legais, e administrativas ou regimentaisl .
O Congresso Nacional procurou ajustar-se, As inadequações na órbita constitucional
rapidamente, à nova amplitude dos seus papéis se referem mais ao emprego abusivo. pelo P0-
na programação de gastos do Governo, produ- der Executivo. de certas flexJbilidades propicia-
zindo, em 1989, um texto bastante articulado de das pela Lei Maior - articuladas para servir a
LDO - aprimorado nos anos subseqüentes - e um sistema parlamentarista que acabou não
articulando processos para atuar de forma subs- sendo efetivado - com o propósito de atender
tantiva na elaboração dos orçamentos anuais. contingências excepcionais, do que a proble-
O Poder Executivo, por sua vez, usou de sua mas maiores nas normas sobre o planejamento
experiência na coordenação de processos com- e o orçamento. De um modo geral, O capítulo
plexos e de sua capacidade de inf1uenciação "Dos Orçamentos" se acha bem articulado, sis-
para evitar que o Legislativo avançasse muito tematizando princípios clássicos ainda em utili-
rapidamente nos campos de formulação de pc- zação pelas democracias consolidadas - anua-
liticas de alocação de recursos, de balizamento lidade, exclusividade, prévia autorização, etc. -
da ação governamental e de controle do de- ao lado de concepções modernas defendidas
sempenho dos órgãos da administração. Não pelas áreas técnicas dos governos e meios aca-
se pode criticar nenhum dos atores desses pro-
cessos - ainda que alguns excessos tenham 1 A propósito das inadequações aqui referidas

sido praticados -, pois suas ações foram con- valc a pena examinar os parccercs do Senador MÁR-
sonantes com a tensão dialética que deve exis- CIO LACERDA c do Deputado JOÃO ALMEI·
sobre as LDOs para os Orçamentos de 1993,
tir entre os Poderes nos regimes democráticos. DA, 1994 e 1995, do Senador MANSUETO DE LA·
Nesse processo de ajuste merecem particu- VOR, sobre o Orçamento de 1993, do Senador GIL-
\aT Te\evâocia a edição da Resolução n.o ir:)i- BERTO MIRANDA, sobre o Orçamcnto de 1995,
CN, que instituiu as normas básicas de funcio- os Relatórios Finais das CPIs do PC (1993) e do
namento da Comissão Mista - aperfeiçoada pela Orçamento (1994), as publicações de JOSÉ AFON-
Resolução n.o 1I93-eN -, as ações estabeleci- SO DA SILVA, IVES GANDRA MARTINS e JOSÉ
das pelas estruturas técnicas do Congresso SERRA c as notas técnicas da Assessoria de Orça-
Nacional, em 1992, com o sentido de possibili- mento e Fiscalização Financeira da Câmara dos
tar que o Orçamento pudesse ser "fechado" Dcputados.
10
dêmicos, corno a estreita vinculação entre o pIa· mentá ri O brasileiro e a participação do Congres·
nejarnento e o orçamento. a instrumentalidade so NaCiOnal na alocação e fiscalização dos re-
do orçamento na redução das desigualdades cursos publicos são os seguintes: 1) a grande
inter-regionais e a proibição de se despender mobilidade das estruturas da administração
receitas de capital em despesas de custeio e de pública; 2) a precariedade dos processos de
manutenção. articulação intergovemamental: 3) a excessiva
A maior parte das deficiências constatadas flexibilidade do Poder Executivo para propor
deriva de não ter sido elaborada a lei comple- meKflficaçôes nos projetos orçamentários; 4) a
mentara que se refere o art. 165, § 9.°. da COfiS· flexibilidade de que di spõe o Governo para exe-
tituiçã02, como ficará evidenciado no decorrer cutar apenas a parte da programação: 5) a im-
desta aoon\agem. Se essa lei tlvesse sido pro- p{()priedade d() empl"eg\) de mooiOa'r> ptov\sóri-
duzida. já se poderia contar com uma melhor as para legislar sobre matéria orçamentária; 6) a
normati72ção da forma e conteudo do PPA e da ineficácia do Plano Plurianual como elemento
LDO. com normas claras sobre a abertura de superordenador da programação do Governo;
créditos adicionais, com prazos improrrogáveis 7) a subutilização da LOO como instrumento de
para a apreciação dos pm)etos sOOt<e matéria formulação de po\lticao:> púb\kas·, 8) a pteciria
orçamentária pelo Congresso Nacional, com separação entre OS orçamentos fiscal e da se-
definições legais sobre a forma de apresenta- guridade; 9) as impropriedades do orçamento
ção e conteúdo dos orçamentos fiscal, da se- de investimento das estatais; 10) a inadequa-
guridade e de investimento, e com diretrizes cla- çãO nos processos e prazos de apreciação da
ras e inambíguas sobre os regimes de caixa de Lei Orçamentária Anual; 11) a imprópria utiliza-
tais orçamentos. ção de medidas provisórias para a autorização
No plano administrativo e regimental as de créditos adicionais; 12) o funcíonamento
maiores inadequações têm a haver com a estru- centralizado da Comissão Mista de Planos, Or-
turação e operação da Comissão Mista, com a çamentos Públicos e Fiscalização (CMO); 13) o
articulação das prerrogativas desta com aque- distanciamento e a assistematicidade do asses-
las das comissões permanentes da Câmara e do soramento à Comissão Mista; e 14) a precarie-
Senado, com a estrutura de 9razos para a aprt;- dade dos processos de acompanhamento e fis-
daçãO das matérias orçamentárias em dois fó- cali 7..ação do Congresso Nacional.
runs - o Plenário da eMa e o Plenário do Con- A finalidade deste artigo é oferecer uma
gresso Nacional - e com a precariedade das apreciação fundamentada sobre os aspectos
estruturas de assessoramento colocadas ã dis- mais significativos de cada um desses proble-
posição da Comissão Mista e dos relatores dos mas, sobretudo sobre aqueles ligados às ativi-
'Principais llroietos que tramitam por esse ór- ~s do Congresso Nacional nas áreas de pla-
gão técnico. neJamento, orçamento e fiscali7..ação da ação do
De um modo geral, os problemas que mais Governo, focalizando as suas causas, as im-
comprometem a qualidade do processo orça- plicações mais significativas e apresentan-
do indicativos de solução para os problemas
2 Segundo SERRA, José. Orçamento no Brasil: e inadequações referenciados ao longo da
As Raizes da Crise. Atual Editora. São Paulo. 1994, abordagem.
(p. 54),
"A ausência da lei complementar [pre- 2. Uma análise dos problemas e madequa-
vista no art. 165, § 9.", da Constituição] tem ções
seis efeitos: a) li inexistência de uma padroni- 2.1. A grande mobi/idade das estruturas da
zação e hierarquização rígida dos diversos ins- administração pública
trumentos que aUtOTÍ7.am o gasto público; b)
li indefmição dos objehvos, diretrizell, metas COffi\) tem sido ass.everado em várias ocas)-
e prioridades no PPA e nas LDOs, faltando ões, pelos mais diversos agentes. 1Jl1l8 das prin-
também definir o significado de cada concei- cipais mazelas da administração pública brasi-
to; c) a não-atualização das classificações das leira é a falta de continuidade administrativa.
despesas, em especial li funcional-programá- Obras são iniciadas e paralisadas sem que se
tica; d) a inexistência de prazos adequados documente e se dê publicidade à sua causa,
para o processo orçamentário; e) a ausência
consultorias são contratadas e pagas sem que
de unifonnidade dos orçamenlos e balanços
dos três níveis de governo; e 1) a indefinição se dê seqüência aos projetos técnicos elabora-
das condições para a instituição e funciona- dos e equipamentos são adquiridos sernjamais
mento dos fundos." serem instalados, gerando grandes desperdíci-
Bu.fII••. 32ft. f . -'w./jun. f~ 11
os de recursos púbucosl. Essa falta de conti- grande parte dessas funções administrativas
nuidade tem sido potencializada pelas freqüen- envolve atividades fundadas na comparação
tes alterações organizacionais a que tem sido dos custos e dos resultados com os obtidos
submetida a administração federal- maior par- nos anos anteriores. Para que a estrutura g0-
te das quais simples maquiagens nas estrutu- vernamental adquira maturidade e eficácia é pre-
ras -, quase sempre por intermédio de medidas ciso que esta conte com um núcleo estável -
provisórias e com o propósito de ajustar o nú- cuja localização, práticas e serviços oferecidos
mero de cargos às demandas políticas, pouco sejam de domínio público -, como ocorre na
ou nada contribuindo para o melhor desempe- quase totalidade dos países desenvolvidor.
nho do Governo. Portanto, é imperioso que se coloque um
Tais mudanças têm não só comprometido o freio à inconseqüência dos últimos anos, em
desempenho das funções administrativas bási- que a estmtura da administração federal tem
cas (planejamento, programação e controle), sido mudada, sem consistentes fundamentos e
como onerado o Congresso Nacional com dis- de forma extremamente recorrente, há cada dois
cussões estéreis - inclusive porque a generali- anos. Nesse sentido a providência mais urgen-
dade dos elementos justificativos pouco aju- te é proibir o emprego de medidas provisórias
dam para apreciações qualitativas-, ampliado para a realização de modificações na estrutura
os custos de funcionamento da administração organizacional, bem como a fixação de nonna
(materiais de expediente que ficam perdidos oom imperativa exigindo que mudanças na estrutura
a troca de denominação elou endereço, equipa- básica da administração sejam propostas atra-
mentos danificados ou abandonados na mu- vés de projetos de lei, com obrigatória indica-
dança). afetado a motivação dos servidores e ção de elementos objetivos !1oObre os seus cus-
imposto grandes prejuízos aos usuários dos tos e beneficios.
serviços afetados pelas alterações organizaci- 2.2. A precariedade dos processos de arli-
onais e aos segmentos empresariais com atua- cufaçi10 intergovemamenta/
ção nas áreas respectivas. Nos últimos anos a programação contida
Como se pode perceber por simples racio- nos orçamentos da União, sobretudo nos orça-
nalização objetiva, não há sistema de planeja- mentos fiscal e da seguridade, tem assumido a
mento, programação ou controle que possa fun- feição tipica de orçamento municipal, sistemati-
cionar satisfatoriamente sob um tal processo zando milhares de pequenas iniciativas, tais
de ciranda organizacional, até mesmo porque como: construção de postos de saúde, circui-
tos de eletrificação rural, pontes, matadouros,
] Outras mazelas relevantes slo apontadas por creches, escolas urbanas e rurais, pequenos
CASTOR, Belmiro V J, Fundamentos para um Novo sistemas de abastecimento d'água, de sanea-
Modelo do Setor Público no Brasil. In Rtwista de mento básico, coleta de lixo, etc., em detrimento
Administração Pública. Rio de Janeiro. V. 28, n.· 3, de ações estruturadoras da infra-estrutura bá-
jul./set. 1994 (p. 1S6), que, ao referenciar os fatores
associados 4 falência do setor público brasileiro, ob-
sica necessária ao desenvolvimento do Pais.
serva: "inflaçio crescente e de&equillbrio orçamentá- tais como: conservação, complementação e
rio crônico erodirarn paulatinamente a capacidade do modernização da malha rodoviária de integra-
Estado prestar serviços ... Somem-se a esses dois ção nacional, ampliação das hidrovias, infra-
fatores as seqoelas do clientelismo, do corporativis- estrutura de ciência e tecnologia, prevenção e
mo, do populismo e da corrupção. O clientelismo repressão à criminalidade organizada e fomen-
inchou de maneira desordenada os quadros humanos to à conquista de novos mercados.
do Estado; o corporativismo criou privilégios injus-
tifICáveis para alguns estratos de funcionários das Isso tem ocorrido, sobretudo, pela ação de
estatais 4 custa do contribuinte, como os generosos membros do Congresso Nacional, que têm en-
fundos de penslo e de seguridade; o populismo apo- tendido como procedimento válido a busca de
sentou precocemente milhõcs de pessoas graças a atendimento aos interesses paroquiais das ba-
leis de favorecimento ou à simples ausência de con- ses territoriais por eles representadas. É claro
troles previdenciários; e a corrupção disseminada em que esse não constitui um entendimento uni-
todos os nlveis gerou uma relaçlIo espúria entre o forme, existindo parlamentares que a este se
Estado contratador e comprador, de um lado, e seus
fornecedores e empreiteiros de obras, de outro. A ~ Em palses como os Estados Unidos, França,
soma dessas patologias encareceu brutalmente o cus- Alemanha, Inglaterra e Canadá, a estrutura de Órgãos
teio estatal sem contribuir para a ampliaçlo dos ser- de nlvel ministerial tem se mantido praticamente inal-
viços essenciais." terada ao longo dos últimos vinte anos.

12
opõem, inclusive por ser evidente que, na mai- impossível dar consistência e sistematicídade à
or parte dos casos. a população é atendida de programação orçamentária da União. Enquanto
fonna mais expressiva éduradoura por empre- isso não for realizado, a administração federal
endimentos de maior efeito multiplicador reali- ficará impossibilitada - por ações políticas. bu-
zados no Estado ou região, embora nem sempre rocráticas e legais - de alocar, com objetivida-
tão aparentes quanto as pequenas obras. Esse de, os recursos necessários à implementação
comportamento é agravado por dois aspectos das ações necessárias à alav;mcagem do pro-
criticas: o primeiro deles é que na repartição cesso de desenvolvimento. E fora de dúvida
das rendas tributárias, realizada pela Constitui- que a redistribuição de encargos envolverá vá-
ção de 1988, os Estados e Municípios foram rios problemas concretos, os maiores dos quais
bastante beneficiados com recursos adicionais são a exigência de austeridade por parte das
sem correspondente ampliação nos seus encar- administrações habituadas a lucrar com a poli-
gos, às expensas de uma apreciável redução na tica do "fato consumado" e a resistência dos
capacidade financeira da Uniã0 5; o segundo, estratos da burocracia que perderão "poder"
que na medida em que os membros do Con- com a instituição de fronteiras claras entre os
gresso Nacional se envolvem com as questões vários níveis de governo. Não obstante, a revi-
de interesse local - que mobilizam pessoas e são e redistribuição dos encargos entre as vári-
instituições a que não podem deixar de aten- as esferas de governo é providência que pas-
der-, passam a ter pouco tempo disponível para sou a ser indispensável e inadiável.
dedicar às questões de maior abrangência. 2.3. Excessiva flexibilidade do Executivo
Assim, é preciso que se atue no sentido de para modificar projetos orçamentários
extinguir as transferências voluntárias da União,
ressalvadas aquelas vinculadas aos planos na- Quando da elaboração da Lei Maior enten-
cionais, regionais e setoriais, previamente apro- deram os constituintes que seria oportuno fa-
vados pelo Congresso Nacional e especifica- cultar ao Poder Executivo o encaminhamento
mente incluídos no PPA e na LDO. Na pior das de mensagens modificativas dos projetos de lei
hipóteses, dever-se-á limitar as transferências sobre matéria orçamentária formal izados peran-
voluntárias a um limitado percentual do orça- te o Poder Legislativo. Em conseqüência, foi
mento, exigindo que o acesso a estas se faça articulada a nonna do art. 166, § 5.° da Consti-
com o compromisso - assegurado por sanções tuição, que estabelece: "O Presidente da Repú-
apropriadas - do beneficiário informar, ao ór- blica poderá enviar mensagem ao Congresso
gão repassador, as empresas executoras das Nacional para propor modificação nos projetos
obras/serviços ou fornecedoras dos bens, a fim a que se refere este artigo [pPA, LDO, LOA e
de facilitar a fiscali7.açãO pelos órgãos de con- créditos adicionaisJ enquanto não iniciada a
trole interno e externo. votação, na comissão mista, da parte cuja alte-
ração é proposta". Racional quanto aos seus
Sem que se delineie com clareza as respon- propósitos, esse dispositivo acabou se pres-
sabilidades da União, dos Estados e dos Muni- tando a abusos por parte do Poder Executivo,
cípios. definindo de forma mutuamente exclu- que tem remetido, em média, duas mensagens
dente os encargos de um e dos outros6 , será modificativas por ano (em 1994 foram seis as
5 Saliente-se que os ganhos dos Estados e Muni- mensagens modificativas do projeto de lei or-
cípios se tomaram ainda maiores com a elevação da çamentária anual), comprometendo o funciona-
carga tributária, no período 1988 a 1992, como sali- mento do Congresso e impondo sérios prejuí-
entado por SERRA, José. Idem, Ibidem (p.64), ou zos às ações de planejamento dos demais ní-
seja: "quem ganhou com o aumento da carga [pelas veis de governo e do setor privado.
a1teraçõcs tributárias realizadas no período 1988 a
1992] não foi a União (cuja receita subiu apenas 40/. A cada mensagem recebida pelo Congres-
reais no período). mas os Estados e Municípios, cu- so Nacional, os prazos precisam ser reabertos
jas receitas se expandiram 28 e 97% reais, respecti-
vamente." mente locais (educação básica, habitação popular,
6 Segundo CASTOR Belrniro V. J. Idem. Ibidem atenção primária à saúde etc.) têm de ser da respon-
(p. 158), "Um novo modelo de atuação estatal no sabilidade das organizações públicas e privadas lo-
Brasil deve levar em conta ... a redefinição dos encar- cais, reservando-se as tarefas que envolvam territó-
gos federativos... que tem de ocorrer para compatibi- rio e competências intermunicipais aos governos es-
lizar a prestação de serviços por determinado nível taduais e limitando-se 11 intervenção direta e operati-
de poder político-administrativo às características va do Governo federal às questõcs e projetos de na-
geográficas do serviço prestado: serviços eminente- tureza interestadual."

13
(sobretudo para a apresentação de novas emen- mação incluída nos orçamentos. Essa situação
das), as proposições - já bastante complexas tem sido objetada, sistematicamente, por rela-
pela sua própria natureza - precisam ser inte- tores e parlamentares na apreciação das propo-
gradas umas às outras. com sérios prejuízos sições sobre matéria orçamentária que têm tra·
para a sua transparência, os controles sobre os mitado pelo Parlamento nos últimos anos. O
processos precisam ser ampliados (sobretudo entendimento destes tem sido de que a divisão
após a CPI do Orçamento), comprometendo as de competências instituida pela Constituição é
discussões dos temas mais sérios e retardando incompatível com o grau de absoluta autono-
a aprovação da Lei Orçamentária Anual mia com que tem contado a administração para
O mais grave desse procedimento, passível implementar ou não os itens da programação
de ser utilizado para tumultuar a apreciação das aprovada pelo Parlamento.
matérias orçamentárias pelo Congresso, é ser A sistemática atuaI possui uma séríe de in-
ele desnecessário, por já contar a administra- convenientes: em primeiro lugar, a seletividade
ção com os créditos adicionais para realizar os dos órgãos do Executivo na execução do Orça-
ajustes que se tomem necessários após a apro- mento neutraliza o esforço dos órgãos técnicos
vação do Orçamento. Além disso, essa prática do Congresso Nacional (comissões mistas e
tende a levar o Governo a não tratar a monta- permanentes) no equacionamento da progra-
gem de sua proposta orçamentária com a devi- mação governamental, sobretudo no que se re-
da seriedade, por saber que poderá modificá-la, fere à inclusão de novos subprojetos; em se-
a qualquer tempo, entre o início de setembro e gundo, a latitude propiciada ao Governo facili-
meados de novembro (a votação na comissão ta ações de retaliação contra os parlamentares
mista dificilmente se inicia durante esse perío- não-alinhados às suas preferências, pelo con·
do). Contudo, ainda que se admitisse a neces- tingenciamento (formal ou informal) das dota-
sidade de algumas correções, naturais pela pró- ções do interesse destes; finalmente, a faculda-
pria complexidade do Orçamento, estas só seri- de de poder executar apenas parte da progra-
am admissíveis com caráter pontual, desde que mação incentiva a administração a formular or-
o Poder Executivo se empenhasse em produzir çamentos superestimados - ampliando suas
uma programação embasada num processo con- margens de flexibilidade -, incluindo itens cuja
solidado de planejamento e programação. implementação fica pendente da "disciplina"
Tendo em vista os inconvenientes do pro· dos agentes neles interessados e transferindo
çedi mento atuaI, parece ser de toda conveniên- o poder decisório do Parlamento para a tecoo-
cia que se suprima o § s.o do art. 166 da Consti- burocracia estatal.
tuição ou que se modifique tal dispositivo de O grau de desconforto do Congresso Naci-
modo a restringir sua utilização. Nesse caso a onal com essa situação acha-se bem evidencia-
redação poderia ser modificada para: do no relatório do Deputado João Almeida, s0-
"§ 5. 0 O Presidente da República p0- bre a LDO para 1995, onde se assinala·
derá enviar mensagem ao Congresso "A conveniência de estabelecer mai-
Nacional para propor modificação nos or controle sobre a ampla latitude que
projetos a que se refere este artigo, den- possui o Poder Executivo para executar
tro dos trinta dias subseqüentes ã data apenas os subprojetos e subatividades
da assinatura do projeto original, veda- quejulgar do interesse da administração,
da sua proposição em relação a projeto sob a ótica da tecnocracia estatal - fre-
que já tenha sido objeto de proposta de qüentemente influenciada por fatores
modificação ou cuja votação já tenha se externos ou idiossincrasias - levou-nos
iniciado na comissão mista". a reincluir a norma constante da última
2.4. Flexibilidade do Poder Executivo para LOO, articulada por esta Comissão Mis-
executar apenas parte da programação ta em 1992 e 1993, com vistas à execução
Outro problema com que tem se defrontado mais equilibrada da programação... »
o Poder Legislativo, bem como os atores perifé- A conveniência de pôr termo a essa flexibi-
idade acha-se expressa também no relatório da
ricos do processo de alocação de recursos -
governadores. prefeitos e titulares de órgãos CPI do Orçamento, que inclui, como recomen-
da administração indireta - é o da excessiva dação:
discricionaridade que possui o Poder Executi- "tornar obrigatória a execução dos
vo para implementar, seletivamente, a progra- subprojetos prioritários, identificados
como tal na LDO e na Lei Orçamentária
f4
Anual. Com similar propósito. vedar que deste procedimento foi percebida também pela
subprojetos sejam excluídos da progra- CPI do Orçamento, cujo relatório inclui, como
mação setorial, antes de sua conclusão, recomendação, a de: "Proibir o uso de medidas
exceto com autorização específica do provisórias em matéria orçamentária".
Congresso. mediante rito próprio"? Também do ponto de vista teórico-doutri-
25. Impropriedade do emprego de medi- nário existem óbices à alteração da LDO após
das provisórias em matéria orçamentária aprovação da proposta orçamentária anual. O
prim~iro destes é de natureza lógico-temporal,
Nos últimos anos, mais especificamente a
partir de 1993, o Poder Executivo passou a util i- ou seja, se o orçamento anual deve obedecer
zar-se de medidas provisórias para legislar so- aos parâmetros preestabelecidos pelas cláusu-
bre matéria orçamentária. E marcante, nesse las balizadoras da LOO, uma vez concluída a
particular, o emprego desse instrumento para elaboração (pelo Executivo) e a apreciação do
alterar as \eis de diretrizes orçamentárias apro- Orçamento (peto Legislativo), não tçri2. cabi-
vadas pelo Poder Legislativo. O Congresso mento alterar essa lei superordenadora. O se~
Nacional logo reagiu aessa tendência. com fun- gundo, de adequação do foro e dos ritos para
damento em dois pressupostos básicos: o ca- apreciação das matérias orçamentárias, posto
ráter ~uperordenad?r da LDO e o rito especial que. se a Constituição - em razão da importân-
defim~o pela Coosutuição para sua apreciação,
cia dessas matérias - instituiu procedimentos
os quaIs induzem a que quaisquer modificações es~iais para a apreciação dos projetos res-
no texto aprovado pelo rito especial devem se pectIVOS pelo Parlamento, prevendo, inclusive,
processar segundo o mesmo rito ("quem não a sua preliminar apreciação por urna comissão
pode o maior, não pode o menor"). Essa reação mista permanente de senadores e deputados, é
baseou-se, igualmente, na defesa da competên- inadmissível que se permita a modificaçâo do tex-
cia exclusiva do Legislativo para legislar sobre to legal resultante por meio de procedimentos sim-9
matéria orçamentária, expressa no art. 68 da Lei plificados. como são as medidas proviSÓrias .
Maior. cujo § 3.°, UI, vedou, taxativamente, que põe sobre a.s ó·lretrizes para a e\aboração e execução
se delegasse ao Executivo a produção de legis- da lelOrçamentliria anual de 1994....' Em 29.1293 ...
lação sobre planos plurianuais, diretrizes orça- o Poder Executivo houve por bem baixar a Medida
mentárias e orçamentos8 . A inconveniência Provisória 0.° 396... Essa MP, no entanto. não teve
concluida a sua tramitação, seja pelas restrições aos
1Em certas situações a experiência de outros pll- dispositivos que invadiam prerrogativas do Poder
íses pode ser bastante inspiradora. No que se refere ugislatívo, seja em razão das objeções que muitos
à discrícionaridade do Executivo é exemplar a ação dos membros do Congresso Nacional apresentaram
empreendida pelo CongteS1lO .;los EUA, em 1974, quanto à constitucionalidade de se utilizar tal instru-
com vistas a fazer frente aos abusos praticados pelo mento para modificar a LOO. Em razão disso, esta
Presidente Nixon - que congelava dotações e progra- acabou sendo reeditada, em 28.1.94 ... , que, embora
mas aprovados pejo Parlamento -, alraves do Con- sanasse parte das restrições, continuava a padecer da
gr-essional Budget and Impoundment Control Ad. OOleção 1:JáSlca antes assinalada. Por esse motivo esta
Por meio desse ato o Congresso Norte-Americano - MP não teve, igualmente, ultimada a sua apreciação,
que já não pennite o veto a itens do orçamento ("Line sendo novamente reeditada em 28.2.94, sob a forma
item veto") - impôs ao Presidente li obrigatoriedade da Medida Provisória n.O 441194 (Mensagem n.O 52,
de executar a programação aprovada pelo Legislati- de 1994-CN), imediatamente secundada pela remes-
vo, podendo este, tâo-somente, se entender que cer- sa do Projeto de Lei n.O 1, de J 994..cN (PL n.o 1/94·
tos itens do programa de trabalho contrariam o inte- eM), com O mesmo teor de IlIl medida provisória."
resse público, solicitar ao Con~resso autorização para 9 Segundo snSA, losé A. ÔII. Curso de Direito
cancelá-Ius (recisiorls) ou comunicar seu adiamento Canstitucional. 9" ed. Malheiros Editores. São Pau-
para mais tarde no mesmo exercício (deferra{s).No lo, 1993, é defesa a utilização de medidas provisórias
pnmel1D caso, a proposta só tem vaJídade se aprova- em matéria orçamentárill, uma vez que segundo li
da dentro de 45 dias; no segundo, pode ser revertida, "interpretação lógíco.sistemática ... o Presidente da
a qualquer tempo, por ato isolado de quaisquer das República não poderá disciplinar por medidas pro-
Casas do Congresso. visónas situações ou matérias que não podem ser
~a A propósito desta reação afirma o Deputado objeto de delegação. Seria um despautério que medi-
JOAO ALMEIDA, Relator dos PLs 1J. Os 1/93 (LDO/ das provisórias pudessem regular situações que se-
94) e l/94 (alteraçãO da LOO!94). em seu parecer: jam ~edadas às leis delegadas." Também o Deputado
"Após a sua regular tramitação ..' o Projeto de Lei n.~ JOSE SERRA (idem. ibidem, pp. 78 e 80) tem de-
1, de I 993-CN (Mensagem n.022/93), foi convertido fendido essa tese, afinnando, por exemplo: "Um dos
na Lei n.O \\.694. de 12 de agosto de \993, que 'dis- mandamentos íl\a\~ inequ\vOCO!\ da nO'\'1I Constltui-

t$
Esse entendimento foi expresso também pelo mente articuladas pela Constituinte com o pro-
Deputado Nelson Jobim, hoje Minístro da Jus- pósito de vincular a LOA às normas da LDO e
tiça, quando relator do processo de revisão de ambas ao PPA), tumultuando a atuaçlo do
constitucional, ao propor nova redação para o Legislativo (pela freqüente modificaçllo nas
art. 62 da Constituição. Segundo o Parecer n.o normas), desmotivando os membros da Comis-
38, de 1994, não poderiam ser objeto de medi- são Místa (pela neutralização dos seus esfor-
das provisórias, entre outras matérias, as rela- ços no aprimoramento do processo orçamentá-
cionadas a planos plurianuais, diretrizes orça- rio) e neutraIi.zanck> as normas e principiosarticu-
mentárias e orçamentos. Afinna ele: lados com vistas a oferecer segurança e estabili-
"Entre as matérias que deverão estar dade à programação e execuçao orçamentária.
vedadas ao dORÚnio nonnativo da medi- 2.6. A ineficácia do Plano Plurianual, como
da provisória, adotamos sugestão prati- elemento ordenador da programaçllo
camente consensual de todas as propos- O Plano Plurianual, concebido pela Assem-
tas revisionais sobre o assunto: matérias bléia Nacional Constituinte como o instrumen-
relacionadas no § 1.° do art. 68 como in- to de planejamento estratégico do Governo -
susceptíveis de delegação legislativa. De delimitador da moldura institucional para aaçIo
fato não parece rnzoável que a Constituí- da adminístrnção pública federal e indicativo
ção proíba a delegação de poderes a~ de rumos para a iniciativa privada -. foi rapida-
Presidente da República sobre cert01 mente subvertido em fac-simile do antigo orça-
assuntos e, de outra parte, admita a com- mento plwianual de investimentos, passando a
petência deste para dispor sobre os mes- ter amesma ineficácia daquele. Com pouco mais
mos attavés de medida provisória, cujo de um ano de vigência o Plano Plwianual (apro-
procedimentode e1aboraçllo é muito mais vadopeIaLei n. °8.173, de 30.1.91) foi objeto de
discricionário que o previsto para ale· reformulação integral (aprovada pela Lei n.o
gislação delegada". 8.446, de 21.7.92). Nove meses depois teve pro-
Apesar do Projeto de Lei n.o 1194-CN repre- posta nova reformulação (Mensagem n.o 226/
sentar, em certa medida, o reconhecimento, pelo 93, de 29.4.93), proposta estaque foi substitui-
Poder Executivo, da impropriedade da utiliza- da em julho do mesmo ano (Mensagem n. 0474/
ção das medidas provisórias para legislar sobre 93, de 31.7.93), ficando em tramitação no Con-
matéria orçamentária, convém que se estabele- gresso Nacional até o final da Legislatura. Que
çam providências mais definitivas para coibir planejamento estratégico é este que nmda a cada
essa prática. Observe-se que, não obstante a poucos meses? Como pretender que um tal pla-
remessa desse projeto de lei, o Governo conti- nejamento possa ser determinante para a admi-
nuou, por vários meses, a regular a execução nistração pública e indicativo para o setor pri-
orçamentária de 1994 por intermédio de medi- vado, como determinado pela norma do art. 174
das provisórias (MPs n.... 465,490,516,538 e da Constituição?
563, de 1994), duas das quais (MPs 576194 e Além da freqüência com que foi modificado
682/94), impondo modificações sobre o texto o Plano Plurianual, tem mudado a sua forma e
resultante do próprio PL n.o 1194 - CN (Lei n.o conteúdo a cada edição. A cada proposta de
8.928, de 10.8.94). Semessaprovidêncíao Con- PPA, ou de alternção deste, o Governo tem 0p-
gresso Nacional corre o risco de tornar-se re- tado por um formato diferente pam oPiano Plu-
fém da vontade do Poder Executivo, que pode- rianual, com freqüentes mudanças na lingua-
rá utilizar-se regularmente desse instrwnento, gem, nas taxionomiasprogramáticase Da abran-
com base nos precedentes já existentes, desor- gência do documento. O pior é que tais mudan-
ganizando a estrutura de normas superordena- ças nIo ocorreram de forma evolutiva, OU "por
doras do processo orçamentário (cuidadosa- aproximações sucessivas" - como diria Limb-
d1on1o -, mas sim defonna ern\t:k:a eao sabor das
çIo refcrc-sc à proibição de que o governo altere o freqüentes mudanças de orientaçlo operadas no
orçamento sem "prévia autorizaçlo legislativa". Ora, "sistema" federal de planejamento como decor-
a medida provisória tem efeito a partir de lIU8 cdiçlo, reDCia da.'i freqüentes trocas de ministrosll •
de modo que, se o orçamento for assim alterado, se
estará violando o mencionado mandamento, pois a lO LINDBLON, Charlcs. The Sciencc of Mu·
a1tcraçlo ocolTClÍlantes de sua virtual aprovaQlo (ou ddJing Through. In P"blic Administmdon Rniew. V.
modiflCaçlo) pelo Congresso."... "A aplicaçio de ]9 (1959), pp.79-88.
medidas provisórias a matérias orçamentárias, em 11 No período ]988 a ]99S foram titulares do
geral, é inconstitucional." órglo central do sistema de planejamento federal:

f.
Contudo, a efemeridade e a mutabilidade de zon-se com os problemas e inadequações do
forma são apenas alguns dos defeitos consta- Plano Plurianual, observando no item 17 do seu
táveis nesse instrumento. Mesmo após os gran- parecer:
des aprimoramentos realizados pelo Congres- "Minha opini~o quanto ao Piano Plu-
so Nacional, durante a tramitação das propos- rianual é que deva ser drasticamente sim-
tas respectivas, os planos plurianuais produzi- plifICado, de forma aexplicitar, além das
dos até agora têm sido marcados por uma exaus- diretrizes e objetivos, apenas as grandes
tiva enunciaç~o de diretrizes, objetivos e metas prioridades do Governo federal financia-
setoriais - maior parte destas em termos genéri- das com recursos públicos. Identificaria,
cos e abrangentes -, tornando possível dar ao mesmo tempo, as ações governamen-
cobertura a qualquer ação que se intente exe- tais concebidas para alcançar as priori-
cutarl1 tornando-o inócuo como delimitador da dades, com as respectivas metas-fim pre-
ação g~vernamental. Outra gran~e de~c~ência cisamente quantificadas e o seu custo
do PPA tem sido a omissão dos diagnosticos - global para a sociedade. Importa também,
dimensionamento dos problemas e sua distri- entendo eu, explicitar na lei que aprovar
buição geográfica - em que se fundam as pno- o PPA qual o volume de receitas públi.
ridades nele indicadas, tornando impraticável a cas se espera arrecadar para o seu finan-
avaliação de oportunidade de cada programa. ciamento, como proceder em caso de re-
Na fonna atual o Plano Plurianual se acha desti- alização insuficiente ou a maior, e ~ par-
tuído de alcance prático. cela comprometida com odesenvolvimen-
Essas deficiências têm sido apontadas em to das ações prioritárias. A regio~jza­
várias ocasiões, em especial pelos Relatores dos ção das prioridades no PFA devena ~b­
PPAs e das LDOs. O Senador Dario Pereira, meter-se a critérios que tenham efetlva-
Relator da primeira revisão do PPA, assinala: mente um papel redistributivo, com a fi-
"A proposta de revisão do Plano Plu- nalidade de reduzir as desigualdades in-
rianual 1993-95 detalhou as despesas e ter-regionais e de forma a garantir que a
metas ao nível dos principais projetos. LDO e os o~mentos, compatíveis com o
Este detalhamento desagrega excessiva- Plano Pluriarmal, tenham amesma função".
mente a ação do Governo e antecipa, em
parte, o conteúdo do orçamento anual" . Uma das causas básicas das deficiências
detectadas no PPA é a crise pela qual vem pas-
De igual modo, o Deputado João Almeida, sando o sistema de planejamento federal I), com
Relator da LDOI94, salienta essa fragilidade do
documento, ao comentar a neçessidade de pro- 13 MAClEL, EVenlroo. A Crise dQ Planejamento
mover a adequação entre a LDO/94 e o PPA B1'll!Jilciro. In Revista do Sel"Viço Público. B1'll!Jília,
vigente. Afirma ele: 117 (I), pp. 37-48, jun.!set. 1989, comenta que "a
"Devemos reconhecer, entretanto, crise do planejamento brasileiro guat'l:!a vlnculos es-
que a tarefa foi grandemente facilitada treitos com as dific.uldades vivldas pelo Estado." U~
pela natureza dos detalhamentos [conti- pouco mais adiante, assinala ele.que: ~sa crise !Ol
alimentada pelas reações contrlÍrlBS ao mlervenclo-
dos no Plano Plurianual] .. , em especial nismo estatal - freqüentemente 88SOl.:18do ao plane-
no que se refere à explicitação de diretri- jamento -, pelo surgime~to de uma intensa atividade
zes, objetivos e metas setoriais, cuja ge- pc\itiça que passou li. cntIcar o e~e~to tecno~u­
neralidade e exaustividade oferece cober- roerático como uma das fachadas VlSIVC1S do regime
tura para a quase totalidade das ações autoritário, e pela aceleraçllo da crise econômica.
típicas da administração pública federal". Afinna: "Essa crise, vista em sua globalidade, é, em
Também o Senador Mansueto de Lavor, verdade, múltipla, porque enfeixa uma crise áe c~i­
bilidade uma crise de ansiedade, uma crise técmca e
Relator-Geral do Orçamento de 1993, sensibili-
uma cri~ conceptual". Quanto à crise técnica, obser-
va: "Os planos revelam u~a freqü~nte iI1:~ncia
Anibal Teixeira, João Batista de Abreu, Zélia Cardo- entre os objetivos estabelecidos e a tnsuficlencl8 dos
so de Mello, Marcílio Marques Moreira, Paulo Ro- meios mobilizados [inclusive para resolver proble-
berto Haddad, Yeda Crucius, A1exís Stcpanenko, Beni m/iS em setores onde sua açio é no máximo indicati-
Veras e José Serra. Cada titular ocupou a Pasta do va}... inexiste avaliação sistemática dos programas
Planejamer1to, em média, por menos de um ano. [levando os planos a se tomarem rapidamcnte obso-
U Segundo SERRA, Jo~. Idem. Ibide~ (p. 2), letos] ... os orçamentos revelam ~ma tlagrantc dcs-
"Na prática... o Plano Plunanual de InvestImentos sintonia com os planos [por possUIr a sua elaboraçio
tcm sido genérico demais." um curso autônomo em relação a estes últimos)".

.....,,,••. 32 n. .,• ..../IfDI. 1885 17


repercussões desestnrturadoras sobre os sub- tendidos), tomá-lo setorializado (indicando OS
sistemas estaduais. Como conseqüência direta responsáveis pela implement.açlo de cada pr0-
~ desvaIori7JlÇlo da função de planejamento·· grama), e dotá-lo de estabilidade (vedando fre-
mstaurou-se a tendência para conferir um cres· qüentes revisões) e compatibilidade (pelo em-
cente grau de generalidade aos detalhamentos prego de linguagem e categorias - programáti-
a~culadores dos planos e programas, condu- cas. econômicas e institucionais - compativeis
zlDdo à busca por formatos que conferissem com as das LDOs e LOAs). .
uma aparência de densidade técnica aos doeu· 2.7. Subuti/izaçllo da LDO como instnlIMn-
mentos de programaçlo, incapazes, ambos, de to de formu/açllo de politicas públicas
por si sós, suprir a falta de comprometimento
da cúpula governamental com os elementos de Como tem sido assinalado por vários parla-
política pública sistematizados em tais docu- mentares, em particular pelos relatores das
mentos. LDOs de 1993 a 1995, esta lei especial amstinú
Portanto, é urgente que se revita1ize o exer- o instrumento mais imponante. a inowçIo mais
cicio da funçlo de planejamento no âmbito da si8IDfi:~va, o meio de maior amplitude que a
administraçao pública federal, de modo a eme- Constituiçlo de 1988 colocou à disposiçlo do
jar ações melhor artiadadas no tempo e na base Poder Legislativo para exercer o papel de aloca·
territorial, processos mais ágeis de execuçIo e ção de recursos que historicamente lhe é atri·
ações efetivas de combate ao desperdício. Essa ~do nas sociedades modernas. Foí a partir de
necessidade, identificada também nos reJatórj. mstnunentos como a LOO e dos papéis institu·
os da CPI do Orçamento, se fundamenta no pres- idos pela nova Cana que o Parlamento bnIsilei·
10 passou a participar de forma decisiva no Or-
suposto de que, enquanto isso não for feito, se
continuará a ter, ao longo do processo orça· çamento, resgatando prerrogativas que lhe ha·
mentário, uma disputa anárquica por recursos viam sido seqüestradas. Não obstante, a forma
públicos, baseada nas conveniências e interes- eas cil'CUllSlAncias em que as LDOs vêm sendo
ses de grupos poIfticos e empresariais, combro- utilizadas CODlpIOIDdfm, em muito. oseu alcan-
tai desperdicio de recursos cada vez mais es- ce, eficácia e operacionalidade.
cassos. Além disso, esta providência é essen- Mesmo reconhecendo os aprimoramentos
cial para que se aprimorem os diagnósticos, se realizados no processo orçamentário no decor-
amplie a participaçlo das instituições da socie- rer de 1992 a 1994, pelas alterações introduzi-
dade no pIanejamento e programaçlo das des- das pelo Poder Legislativo nos te.üos finais das
pesas, e se rompa com o encastelamento dos UX>sde 1993 a 1995, bem como pdas modifica-
burocratas das áreas de planejamento e orça- ç&s nas nonnas regimentais que: regem a apre-
mento públioos. ciaçIo de matérias orçamentárias pelo C0ngres-
No que se refere ao aprimoramento do PPA, so Nacional, é fora de dúvida que a fOrma, con-
o passo mais relevante seria que se ultimasse a teúdo e utilizaçlo da Lei das Diretrizes 0Iça-
produçIo da lei complementar a que se refere o mentárias ainda se ressentem de vúias fàlhas e
art. 16S da Constituiçllo, na qual se poderá defi- i.nadeqoaç(les. A maior destas é nIo ter assu-
nir, com cIare7Jl e permanência, a fonua, o con- mido o papel de i.nstrumento de interveDçIo do
teúdo e a abrangência do Plano Plurianual. Nes- Poder Legislativo DO processo de formulaçIo
se processo dever-se-á dar-lhe caráter seletivo de poUticas p{j)Iicas, sobretudo das aIocativas,
(restringindo sua abrangência a um limitado sendo dignos de nota, tadJém oomo defià&aci·
número de programas e projetos prioritários) as. o caráter genérico com que as metas tem sido
conferir-lhe ~ (pela explicitaçAo~ 8xadase a precária deoJarIaBcm das mr:taseprio-
resultados e efeitos pretendidos com cada uma ridades aos setores da administtaçIo federal".
das açlIes), revesti-lo de expressividade (pela Quanto ao auá1er genérkDcomque ~ sido
apropriada quantificaçlo dos resultados pre- cumprida a determinaç:Io contida no art. 165, §
2.°, da ConstituiçAo, cabe observar que tal ge-
.4 No item l.2. doParcccrn.o 18l94,da Comilllllo neralidade tem levado a que as metas sejam fi-
Mista de Orçamento, 1Ie acha assinalado: "Uma das xadas de forma imprópria, mais se parecendo
principais determinantes da limitada consistencia
dcue instrumento (LDOJ é o csf8cclamcnto por que .~ Segundo SERRA, JOllé. Idem. Ibidem (p. 2).
pas80U o sistema de planejamento do Governo fede-- "As leis de dirctrizcll orçamcntt.w RIo Ifm dcfint-
ral, quer no que tange is aç&s de diagnóstico c pro- do com p~islo u prioridades e mctu flàClll c,
gnunaçID, quer no que IC n:fcrc 10 IIlXJIIIpanhamcnto pouco depois de: aprovadas, Il1o dcsrcspcit8du ou
c avaliaçlo dos cmprocndimcntos." sofrem aIfera9õcs frcqDcnres c irrc:gularcs."
f8
com descomprometidas declarações de inten- art. 165, § 5.°, que:
ção do que a expressão quantificada dos ~­ "A Lei Orçamentária Anual compre-
tados pretendidos. Segundo o texto COnstltuCI- enderá:
onal (art. 165, § 2.°) "A Lei de Diretrizes Orça- I - o orçamento fiscal referente aos
mentárias compreenderá as metas e prioridades Poderes da União, seus fundos, órgãos
da administração pública federal" . Portanto, se- e entidades da administração direta e in-
gundo a conceituação usual de meta, a LOO direta, inclusive fundações instituidas e
deveria indicar os produtos ou resultados a
mantidas pelo poder público~
serem atingidos, devidamente quantificados,
com relaçiJo à parcela a ser atingida no exer- II - o orçamento de investimento das
cicio. No entanto, bastará uma rápida observa- empresas em que a União ... detenha a
ção sobre o anexo de "metas programáticas" maioria do capital social com direito a
das LDOs dos últimos exercícios, para perceber voto;
quão distante essas se acham da caracteriza- IIl- o orçamento da seguridade soei-
ção técnica de metas acima delineada. ai, abrangendo todas as entidades e ór-
gãos a ela vinculados, da administração
A falta de especificidade na fixação das direta ou indireta, bem como os fundos e
metas tem estimulado a pulverização dos recur- fundações instittÚdos e mantidos pelo
sos em vasto número de ações insuficientemen- poder público."
te dotadas (janelas orçamentárias), as quais Assim, ao que tudo indica, a Assembléi~
acabam sendo paralisadas pouco depois de ini- Nacional Constituinte quis, de fato, que a lei
ciadas por insuficiência dos recursos ou por Orçamentária Anual fosse composta de três
falta de contrapartida local. Por outro lado, o orçamentos, cada um destes perfeitamente ca-
fato de não referenciar os setores responsáveis racterizado quanto ao seu conteúdo e abran-
pela implementação decada meta ~ prioridade gência. Esse propósito foi de tal ord~m que os
leva à pulverização das responsabilIdade entre constituintes tiveram o cuidado de Intercalar,
todos os órgãos da administração pública, in- entre a nominação destes (incisos I e III), o or-
viabilizando que sua implementação possa ser çamento de investimento das empresas.
"cobrada" de um órgão em particular (onde to-
dos são responsáveis, ninguém o é 1). Curiosamente as mesmas administrações
que têm patrocinado a montagem do Orçamen-
Impõe-se, portanto, que se avance no sen- to de Investimento das Estatais em documento
tido de dar uma nova dimensão ao conteúdo da a parte (\blume UI), têm resistido a fazê-lo com
LOO, caracterizando-a como um autêntico ins- relação aos orçamentos fiscal e da seguridade
trumento de formulação de políticas públicas, social, apesar das investidas da Comissão Mis-
estruturando-a de modo a explicitar as ênfases ta de Planos, Orçamentos Públicos e Fiscaliza-
setoriais, quantifICando - de fonna numérica ou ção nesse sentido. Em 1992, o Senador Márcio
percentual - os valores mínimos a serem aloca- Lacerda, Relator da LDO para 1993, chegou a
dos em cada setor (ao nível de programas e pro- articular no texto de seu substitutivo, normas
jetos prioritários), sobretudo no que se refere que obri~am a separação dos dois orçamen-
às despesas de capital (obrigatória pelo art 165, tos modificando-as diante da ponderação do
§ 2.°, da Constituição), de modo a expressar a Di~or da Secretaria de Orçamentos Federais,
parcela das prioridades, objetivos e metas do de que não havia tempo suficiente para fazê-lo
PPA que deverão ser atingidos no exercicio - naquele ano. De qualquer modo, deixou indica-
especialmente no caso de obras ou instalações da (p. 5 do relat6rio) a sua preocupação com o
como: estradas, barragens, linhas de transmis- problema, ao refeTC?nciarcomo um ~os~
são e sistemas de esgotos -, bem como que tros básicos que onentaram a análIse do ProJe-
desestimule a pulverização dos recursos em to (LDO/93), o de "acolher normas e procedi-
vasto número de ações. Sem isso, torna-se im- mentos que conduzam a uma mais efetiva sepa-
praticável a estruturação de processos de d~­ ração entre o orçamento fiscal e o orçamento da
são sobre realizações com base nos seus mén- seguridade social, quer por ser ist~ que preten-
tos e custos e de sistemas efetivos de acompa- de a Constituição, quer pela CODVlcçãO de sua
nhamento e avaliação da ação do Governo. conveniência para um maior controle sobre
2.8. Precária separação dos orçamentos ambos orçamentos, como estão a demonstrar a
fiscal e da seguridade social sucessão de escândalos dos últimos meses [CPI
A Constituição de 1988 estabelece, em seu do Orçamento)".
,.,..,,,__.32 ft. 126 ...../1.... 1eM
Em 1993, o Deputado João Almeida, Relator fiscal e da seguridade social, com o estabeleci-
daLOOpara 1994, intentona mesrnaprovidên- mento de uma clara delimitação das fronteiras
cia, recebendo apelo do novo Diretor da Secre- entre estes - ou seja. que tipos de empreendi.
taria de ÜlÇamentos Federais (SOF) no sentido mento são cabíveis em um e outro desses orça-
de adiar a medida. O Relator acedeu ao pedido, mentos (por exemplo, será que obras de desas-
mas deixou consignado em seu parecer (p. 5): soreamento de rios e de infra<:strutura wbana
"Outro aspecto que merece detida constituem matéria da seguridade social 1) -,
atenção do Congresso Nacional e, em criando regimes de caixa distintos, conferindo
particular desta Comissão, é a questão maior transparência à programaçlo e execuçlo
da separação entre os orçamentos fiscal do gasto público, evidenciando o respeito às
e da seguridade social. É preciso acabar vinculações legais e facilitando a avaliaçIo dos
de vez com as divergências sobre o en- resultados apurados pelos instrumentos de
tendimento pretendido pela Constituin- rontrole interno e externo.
te sobre a matéria A nossa leitura do dis- 2.9./nadequações no orçamento de inves·
positivo constitucional indica, sem som- timento de estatais
bra de dúvida, que o intencionado foi a Com relação ao orçamento de investimento
confecção de dois documentos separa- das empresas estatais, embora duas das defici-
dos, com precisa definição de receitas, ências sistematicamente identificadas nos anos
despesas e fontes de financiamento de anteriores -linútada abrangência e duplicidaàe
cada orçamento, com a clara separação no detalhamento da programação - tenham sido
da programação de um e de outro, e com equacionadas no último processo orçamentá-
regime diferenciado de caixa por ocasião rio, existem ainda alguns problemas a resolver.
da execução, sem o que não se poderia a primeiro destes é a precariedade das normas
falar em orçamento fiscal e orçamento da que regulam a execução orçamentária e a pres-
seguridade social, mas sim em programa- tação de contas de entes públicos sujeitos tam-
ção de uma e outra esfera, Não temos bém aos preceitos da Lei n.o 6.404. O segundo,
dúvidas, igualmente, que tal separação a inapropriada caracterização de várias "empre-
propiciaria maior transparência e verda- sas estatais", que no plano prático são verda·
de orçamentária..- deiras autarquias - incapazes de sobrevivercom
É fácil compreender as razões dos que obje- as receitas derivadas dos bens ou serviços que
tam à separação, preferindo um só orçamento produzem (de que são exemplo: SERPRO, EM-
com distintas programações para a seguridade BRAPA. HCPA. CPRM, COOEVASF, GEIPOTe
social e outras ações de Governo. Existem, de RADIOBRAS) - e outros têm a sua operaÇl1o
fato, alguns argumentos válidos para esta s0- deficitáriajustificada pelo caráter social ou es-"
lução, um dos quais é o de que ela facilita a tratégico das suas atividades (de que são exem-
administração do caixa do Tesouro. Convém plo: FRANAVE, TRENSURB, CB1U, ENASA,
considerar, porém, que nem sempre o que é mais URANIO, NUCLEP e ENASA).16
fácil é o que mais convém ao interesse público, 16 A propósito desta questio salienta o Relator
e que, enquanto a atual Constituição não for da última LDO (1995), em seu Parec:er: ''Rcdctini·
modificada, a separação dos orçamentos fiscal mos a abrangência do orçamento de investimento de
e da seguridade social, em documentos distin- estatais, de modo a dar-lhe a amplitude pretendida
tos - com regimes de execução e de prestação pela Assembléia Nacional Constituinte, concordan-
te com a sistemática vigente na Constituiçlo de 1961,
de contas peculiares - constitui imperativo
pela qual todas as despesas de capital das empresas
constitucional. Além disso, a separação dos constavam do orçamento plurianual de investimen·
orçamentos há de permitiruma melhor delimita- tos. Segundo o parágrafo único do art. 60 da Consti-
ção das fronteiras entre tais esferas, uma visu- tuição vigente até 1988, "As dupesas de capital (grifo
alização mais clara de onde se opera o déficit do nosso) obedecerão ainda a orçamentos plurianuais
Governo (dificultando expropriações de recur- de investimentos, na fonna prevista em lei comple-
sos da seguridade, como as realizadas no pas- mentar". Nesse mesmo texto constitucional, encon-
sado), um maior respeito às vinculações impos- tramos, no art. 62, § 3,°, a nonna: ''Nenhum invuli-
tas pela Constituição e uma maior especificida- me,do (grifo nosso), cuja cxecuçlo ultrapasse um exer-
de nos processos de controle. cício financeiro, poderá ser iniciado sem prévia in-
dusao no orçamento plurianual de investimento.....
Ponanto, é imperativo que se modifique a Portanto, na tradição da linguagem constitucional
forma atual de apresentação dos orçamentos pátria, o tenno investimento é designativo das despe-

2D
A duplicidade no detalhamento da progra- Assim, além de preservar os avanços obti-
mação, pela referenciação no orçamento de in- dos - inclusão de outras despesas de capital e
vestimentos dos programas de trabalho de es- exclusão das unidades cujas programações
tatais cujas despesas de capital se achavam tam- constem dos orçamentos fiscal ou da segurida-
bém detalhadas nos orçamentos fiscal e da se- de -, é imperativo que se desenvolva uma es-
guridade social, foi entendida pelos relatores trutura mais abrangente e articulada para o or-
das últimas LDOs como procedimento que çamento de investimento das estatais - crian-
afrontava o pretendido pela Constituinte, in- do sistemática apropriada para a elaboração do
clusive por induzir a erro quanto à real magnitu- Orçamento e para a fiscalização dos entes regi-
de das despesas de capital da administração dos pela Lei n.o 6.404 _11 e que se defina, legal-
federal. Essa percepção levou a que o Congres- mente, que só poderão ser caracterizados como
SO Nacional adotasse uma nova interpretação empresas estatais os entes públicos de nature-
da nonna constitucional, a partir do Orçamento za empresarial que não recebam recursos do
de 1993, ou seja, de que o orçamento de inves- Erário para cobrir seus custos de funcionamen-
timento de estatais deve incluir tão-somente to, extinguindo ou transformando em autarquias
as empresas cujas programações não constem todos aqueles que não se ajustem a tal critério.
dos demais orçamentos da União. Essa delibe- 2.10. Inadequações nosprocessos de apre-
ração, que resultou de amadurecida reflexão do ciação da Lei Orçamentária Anual (LOA)
Relator-Geral, do Presidente da Comissão Mis- Além da questão da precária separação dos
ta e das Assessorias de Orçamento do Congres- orçamentos, detalhada no item 2.8, e da exces-
so Nacional, se acha expressa no Parecer sobre a siva flexibilidade com que conta o Poder Execu-
LDO de 1994 (pp. 4) nos seguintes termos: tivo para encaminhar mensagens modificativas,
"Com o {. .. 1propósito de e'\-'itar ques-
tratada no item 2.3, o processo de apreciação
tionamentos, fonnalizamos a dispensa de da LOA tem sido tumultuado por vários outros
inclusão no orçamento de investimento problemas, dentre os quais cumpre salientar: o
da programação das empresas cujo pro- estabelecimento de normas - de questionável
grama de trabalho se ache explicitado, constitucionalidade - permitindo a posterga-
integralmente, nos orçamentos fiscal ou ção da aprovação do orçamento anual e facul-
da seguridade social, por entender a prá- tando - com graves efeitos colaterais - a "exe-
tica adotada no Orçamento de 1993 fun- cução antecipada" da proposta orçamentária;
dada no mais estrito bom senso. Seria o entendimento demasiado elástico do concei-
absurdo pretender que o Congresso ti- to "correção de erro ou omissão" contido no
vesse que autorizar duas vezes a mesma art. 166, § 3.0 da Constituição, sobretudo para a
despesa ou que patrocinasse duplicida- reavaliação das receitas públicas, e a dispersão
des inócuas e geradoras de equívocos e dos recursos pela sua alocação numa miríade
perplexidades." de pequenos empreendimentos sem maiores
avaliações quanto a custos, contrapartidas e
sas de capital e não do elemento ou grupo de despesa encargos de manutenção posterior.
de idêntico nome, como tem sido interpretado, res- Quanto às normas que têm facultado a exe-
tritivamente, nos últimos anos. Não há, portanto, cução antecipada, tumultuando, posterionnen-
razão para que se continue a elaborar o orçamento de
investimentos das estatais com a limitada abrangên- 11 Segundo CASTOR, Belmiro. Idem. Ibidem, p.
cia decorrente do entendimento equívoco de que este 160, "fator indispensável a um novo modelo de ad-
deva incluir apenas os gastos classificáveis no grupo ministração pública no Brasil é a modernização de
despesa (GND) intitulado "investimentos". Além seus mecanismos de controle externo, os quais se
di sso, tal interpretação é contrária ao interesse pú- revelaram até hoje incapazes de conviver com arran-
blico por permitir que importantes aportes de recur- jos organizacionais... como as empresas mistM, em-
sos do Erário nas suas empresas deixem de se tradu- presas públicas e fundações... o caminho para o con-
zir em ativos no Orçamento, frustrando o propósito trole de tais entidades passa pelo reforço dos conse-
constitucional que instituiu esse instrumento de pro- lhos de administração, conselhos fiscais e conselhos
gramação e de controle e mascarando a estrutura de curadores das fundações (onde o Legislativo e a ~
receitas desses entes. Por exemplo, grande parte das munidade organizada deveriam ter assento obrigató-
inversões do Tesouro na ELETROBRÁS não se con- rio) e não pela criação de rotinas e procedimentos
vertem em programações no orçamento de investi- burocráticos típicos da administração pública tradi-
mentos e, quando isto ocorre nas suas subsidiárias, cional, cujo resultado único é eliminar a liberdade
são lá classificados como •Recursos de Outras Ori~ operacional de que empresas, autarquias e fundações
gens' e não como 'Recul1lOS do Tesouro'." foram dotadas, sem ampliar o controle substantivo".

8r. .III••• 32 n. 126 -"'./I"". 1995 21


te, o acompanhamento e a avaliação do Orça- da União com vistas à geração de recursos adi·
mento-além de ddormar a LOAque sejaa~ cionais para o acolhimento de emendas em fa-
vada pela necessidade de ajustá-la aos gastos vor de empreendimentos de interesse local ou
já milizados - é evidente a sua incompatIbilida- regional. Dado o ambiente em que se realiza o
de com o texto constitucional O Ato das Dis- processo, essa reavaliação. por razões óbvias.
posições Constitucionais Transitórias (ADC'I) tende a se fundar mais nas demandas da racio-
dispõe, em seu art. 35, § 1.°, m: nalidade politica - imperiosa necessidade de
"oprojeto de lei orçamentária da UniIo recursos adicionais para viabilizar oacolhimen-
será encaminhado até quatro meses an- to de emendas e de pedidos por recursos adici·
tes do encerramento do exercicio finan~ onais dos órgãos da administração - do que em
ceiro e devolvido para sanção até o en- considerações técnicas.
cerramento da sessão legislativa". Além de outros aspectos negativos, essa
Tal preceito tem caráter mandamental tanto prática tende a potencializar, quando a arreca·
portratar-se de norma colWitucional como pelo dação dessas receitas se frustra, a competiçlo
caráter imperativo de sua estrutura. Segundo pelos recursos que financiam 8 programaçlo,
se pode depreender dessa norma. a única ma- levando, com freqüência - pelo maior interesse
neira de legislar diferentemente sobre tais pra- poUtico que as programações adicionais (as cri-
ZOSI' seria a produção da lei complementar a adas através de emendas) tendem a despertar-
que se refere o art. 165, § 9.°, da Constituição, a que se comprometam empreendimentos em
porcaber a esta, nos termos do 3rt. 35 do AOCT, andamento, em prejuizo do interesse público.
a fixação de tais prazos. A inconveniência do Existe, portanto, uma efetiva necx:ssidadc de que
procedimento é evidenciada também pelas prá- se delimite o que seja aceitável na alternativa
ticas dos últimos anos, pois, a cada ano, por "correção de erro ou omissao". contida no art.
razões diversas. a apreciaçlo do Orçamento tem 166, § 3.°, da ConstituiçAo, visto que a inexis-
sido conclufda mais tarde, ou seja, janeiro em tência de interpretação delimitativa tem enseja-
1991, meados de fevereiro em 1992, abril em 1993 do a prática de abusos. Os problemas constata-
e outubro em 1994, prejudicando os cidadãos, a dos derivam do 3rt. 166, § 3.° da Constituiçlo-
administração pública e, especialmente, o Par- que define as condições para a aprovaçlo de
lamento, que acaba recebendo - indevidamen- emendas ao projeto de lei orçamentária anuaI-
te - toda a culpa pelos atrasos na aprovação apresentar problemas redacionais que diminu·
dos orçamentos e pelas inadequações dos de- em. em muito, aclareza eo alcance do dispositi-
talhamentos respectivos. vo. Em conseqüência. surgem dúvidasfteqOen-
Quanto à elástica interpretação que vem tes quanto à propriedade de se utilizar esta 0p-
sendo dada ao conceito "correção de erro ou ção para a reestimativa de receitas ou de gastos
omi~" , o problema maior estã na tendência. com pessoal, encargos da divida e~­
que vem ganhando corpo ao longo dos últimos cias constitucionais.
anos, no âmbito do Poder Legislativo, de se Outra séria inadequação nas práticas orça-
utilizar desta "abertura" para reestimar receitas mentárias atuais é propiciarem a abertura de um
I' EIIlIC entendimento acha-se expresso no Parc- número excessivo de itens programáticos nos
a:!' 0.°18, daCMO, sobre aLDO para 1995, ou seja: orçamentos da União, sobretudo como decor-
"neste exercicío, mais do que em qualquer outro, 6 rência do poder de emenda do Congresso Naci-
imperioso que o Congresso Nacional ultime a apreci- onal. Nos últimos anos as emendas dos perla-
açio do Orçamento at6 o final da sclIIIo legislativa... mentares têm resultado no acréscimo de 4.soa a
Deve faze.1o... por lICl dever constitucional do C0n- 8.500 novos subprojetos às propostas do P0-
gresso Nacional concluir a apn:ciaçIo do projeto de der Executivo - que, deduzidas as subativida·
lei até o final da sessIo legislativa, em naJo do cará- eles de manutenção dos serviços e das reparti-
ter mandatório do art. 35, § 2.°, TIl, do ADCT... Tal ções públicas. têm se limitado aalgo oomo 2.600
dispositivo tem caráter mandatório tanto para o Po- a 3.700 subprojetos.l' Esse comportamento ape-
der Executivo - que nIo pode, em hipótese alguma,
furtBr«: de remeter o projeto de \ei até o dia 30 de \' Segundo dados conl\an1es Ó08 bancos de ela.
agosto -, quanto para o Poder Legislativo - que nIo dos do PRODASEN, em 19910 PL 26/91-eN (pr0-
pode, em hipótese alguma, encerrar a scssIo legisla- posta de orçamento do Executivo para ] 992) diICri-
tiva sem remeter o projeto de lei à sançIo. Onde a minava 2.6]2 subprojctos, em ]992, o PL 44192-
Constituiçlo é mandatória nio pode a lei ordinária. - CN, 3.690 subprojetos; em 1993, o PL ] ]2193-eN.
ainda que de natureza especial como a Lei de Diretri- 2.872 subprojetos; e, em 1994, o PL 3J94.CN, 2.710
zes Orçamentárias - exccpcionar." subprojetos. O Poder Legislativo adicionou 8.131
senta três graves inconvenientes: o primeiro é Dentre as inadequações, a que nos parece
a pulverização de recursos escassos num nú- mais problemática éjustamente a última das re-
mero de ações que excede a capacidade opera- ferenciadas. As normas que regem o funciona-
cional dos órgãos executores; o segundo, que mento da eMa impõem a troca anual de pelo
na maioria dos casos os recursos alocados cor- menos metade dos seus membros e proíbem a
respondem a uma diminuta parcela do custo das pennanência na Comissão por mais de dois anos
obras ou serviços - insuficientes para possibi- ou a reeleição dos ocupantes dos seus cargos
litar sua implementação, mas suficientes para de direção.20 Esse procedimento é bastante ne-
comprometer a execução dos subprojetos de gativo por oferecer vantagens ã burocracia do
onde foram cancelados - e não possuem con- Executivo que, a cada ano, trata com novos in-
trapartidas asseguradas nos orçamentos dos terlocutores que, nessa condição, têm visão li-
governos beneficiados; o terceiro, que quase mitada dos problemas, se satisfazem com infor-
totalidade dos subprojetos derivados de emen- mações genéricas e com promessas de detalha-
das tem pouco a haver com as responsabilida- mentos que acabam não sendo oferecidos pos-
des típicas da administração federal. teriormente. a fundamento dessa prática, de
2.11. Inadequações na estrutura e funcio- evitar a articulação de núcleos de poder que
namento da Comissão Mista pudessem manipular, em beneficio próprio, as
leis de natureza orçamentária, parte de urna pre-
Após seis anos de sua instituição pela Cons- missa falsa. Na verdade, a capacidade de influ-
tituição e de quatro de sua estruturação pela enciar nas decisões independe do parlamentar
Resolução n.o I, de 1991 - CN, o funcionamento ser membro efetivo da Comissão. A avaliação
da Comissão Mista de Planos, Orçamentos Pú- do que tem ocorrido na eMa demonstra que,
blicos e Fiscalização (CMO)já gerou um acervo não poucas vezes, par1amentaresquc nãoecam
de experiências suficientemente amplo para membros da Comissão operaram como "adjun-
embasar a avaliação dos seus acertos e inade- tos" dos relatores formalmente designados e
quações. Entre os primeiros sobressaem: a limi- se responsabilizam por grande parte das deci-
tação dos poderes da presidência - inclusive sões, inclusive das relativas à organização dos
pela criação de subcomissões permanentes -, a trabalhos. Portanto, impõe-se que se modifi-
instituição do parecer preliminar - fixando pa- quem as nonnas que estabelecem esse exagera-
râmetros para o acollúmento de emendas e para do rito de renovação e que impedem a consoli-
a imposição de cancelamentos -, a limitação do dação de núcleos de especialização capazes de
número de emendas aos projetos de WA -
pondo fim ao absurdo de se ter mais de 70.000 :10 Em países como os EUA o fato do parlamen-
emendas numa programação de 3.000 subpro- tar pennanecer vinculado por vários anos à mesma
jetos -, e a sistemática defesa das prerrogati- oomisslo é tido como desejávcl, por CflscjIU que este
vas do Congresso Nacional em matéria orça- se especialize no assunto, capacitand<H:l a discutir
mentária - sobretudo pelo aprimoramento das com os órgãos do Exe<:utivo com suficiente conheci-
mento e, como tal, a melhor defender o interesse
LDOs e do apropriado encaminhamento às re- público. Porém, no Congresso norte-americano o
visões do PPA. Entre as inadequações cabe processo decisório é marcado por grande fragmenta-
apontar: o retardo na implantação das subc0- ção, cuja lentidão tende a ser compensada pelo deba·
missões permanentes, o número excessivo de te amplo, pela estabilidade dos resultados propicia-
níveis de relatoria (parcial, setorial e geral), o dos e pela certeza de que o dinheiro do contribuinte
precário envolvimento das comissões perma- será bem aplícado. Em matéria orçamentária, por
nentes (Câmara/Senado) na apreciação de ma- exemplo, para que se aloque recursos a um detenni-
térias orçamentárias, o número ainda excessivo nado empreendimento, este precisa, primeiramente,
de emendas individuais e as precáriasjustifica- ser aprovado nas comissões com jurisdiçAo sobre a
ções destas, e as normas que impõem a freqüente matéria na CJjmara e ao Senado - rrcssc plOlXSSO /I
matéria é submetida à apreciaçio do "Congressional
substituição dos integrantes e dirigentes da Budget Office" (braço técnico do Congresso em ma-
CMO. téria de gasto público), que estima seu custo no pri-
subprojetos ao primeiro, 8.546, ao segundo, nenhum meiro ano de implantação e nos cinco subseqüentes
ao terceiro - por ter sido o projeto do Govemo apr0- -, depois terá de receber prioridade para alocação de
vado sem emendas no Plenário do Congresso N lICional recursos nas Comissões de Orçamento da Câmara e
- c 4.400 ao quarto. As subatividadcs não d o sendo do Senado e, finalmente, ter os recursos alocados
aqui consideradas por duas TBZÕes: se: rdllCionarcm à pelos "Appropriation CommitWcs", tudo sob li atenta
manutenção de unidades ou serviços c efIscjarem um vigilância da imprensa e dos lóbies organizados (es-
mlnimo de emendas por parte dos parlatuentares. pecialmente das üNOs).

......... 32 n. ia """./1.... 1..,


auxiliar o Congresso na competente apreciação de emenda ou dispositivo do projeto original
dos projetos de lei sobre matéria orçamentária ou substitutivo. Além disso, o fato de a estru~
ou sobre o planejamento governamental. tora de relatorias ser articulada de modo a deí-
O precário envolvimento das comissões xar os niveis superiores dependentes da con-
permanentes da Câmara e do Senado na apreci- clusão dos trabalhos no nivel inferior, algo nem
ação das matérias orçamentárias constitui tam- sempre possivel em contextos poUticos. aca-
bém urna questão critica. A participação subs- bou por gerar problemas de opemcionalizaçlo,
tantiva destas comissões na etapa inicial da prejudicando o funcionamento da relatoria-ge-
apreciação dos projetos relativos à LO" à LDO ral e contribuindo para a tardia aprovação dos
e ao PPA é da maior importância. uma vez que orçamentos pelo Congresso Nacional. A solu-
sua omisslo tem 1:0100 1:Onseqüência. de um çlIo natural para oproblema seria limitar as rela-
lado, a perda de elementos críticos que poderi- tarias a dois niveis, setorial e geral, este último
am ser por elas propiciados e, de outro, a exa- organizado sob a fonnade colegiado (compos-
cerbação das criticas ao funcionamento da to, por exemplo, pela metade dos relatores set0-
CMO, pelos membros destas, prejudicando a riais) e conceder 3/5 do prazo para as relatorias
imagem e o desempenho da instituição. Uma setoriais, 115, para a relatoria~geral e 115, para o
maneira operacional de propiciá-lo seria bloque- Plenário do Congresso.
ar, no calendário de funcionamento dessas c0- Apesar da limitaçlo estabelecida pela Re-
missões, um periodo de uma a três semanas, solução n.O 1193-CN, que fixou num máximo de
dedicado exclusivamente a tal atividade. Essa cinqüenta o número de emendas facultado a
etapa inicial seria concluída com a geração de cada parlamentar, o total de emendas à LOA-
relatório com indicações quantificadas dos sOO- cerca de 30.000 (50.594 parlamentares)- é ainda
projetos inoportunos ou com excesso de recur- muito elevado. A apreciação de tal volume de
sos, das ações insuficientemente dotadas, e das emendas consome tempo em demasia e limita a
omissões que comprometem os setores, órgãos ação dos relatores no que se refere à análise do
eprogramas de interesse da Comissão. Tais ele- Orçamento segundo as suas componentes mais
mentos subsidiariam a estruturação dos parâ- relevantes, ou seja, perfil da receita, estrutura
metros a serem observados pelos relatores das funcional de gastos, coerência da programaçllo
subcomissões permanentes da CMO no ac0- com as prioridades do PPA e da LDO. evoluçlo
lhimento de emendas e na realização das dedu- setorial de gastos e acatamento às vinculaçOes
ções compensatórias. legais e constitucionais. Como assinalado an-
Outra inadequaçfio nos procedimentos atu- teriormente, é um despropósito que se possa
ais decorre da multiplicidade dos niveis de rela~ apresentar tantas emendas a uma programaçlo
toria. Ao articular esta solução, como propósi- que, abrangidos os investimento das estatais e
to de dar maior transparência àapreciação dos os subprojetos de reequipamento das funda~
orçamentos e de ampliar a participação dos ções e órglos autônomos (escolas técnicas e
membros da Comissão nesse processo, o Con- similares), se compõe de aproxiInadaJren 3.000
gresso acabou por estabelecer um procedimen- subprojetos. lmpêle« que se fixem limites mais
to irrealista para cumprir a atribuiç1lo constitu- estritos para as emendas individuais, que se
cional. 21 A prática logo se encarregou de de- definam as circunstâncias em que estas pos-
monstrar a inviabilidade de cwnprir as tarefas sam ser propostas, e que se estabeleçam os re~
respectivas nos prazos fixados, sobretudo pe- quisitos mínimos de fundamentação. 22
las singularidades do processo legislativo,
onde, a cada nivel de relatoria, os parlamenta- 22 Essa proposta oonsta do Rc:latórío da CPI do
res possuem prerrogativas de recurso, como a Orçamento, que: recomenda: "AB emendas devem ter
de pedir destaque, para votação em separado, suas quantidadc:s fixadas através de regras de pr0-
porcionalidade, devem se ater a um conjunto de: cir-
11 Ao nonnatizar o processo, através da Resolução cunstâncias e devem preenchc:r exig6ncias minimas
n.o 1,91, o Congresso Nacional definiu que o projeto c:m termos de fundamentaçlo (coisas como manifea-
de lei orçamentária anual seria apreciado inicialmente taçio de um conjunto de: instituiÇÕC9 da localidade
por relatores psràaís, cujos relatórios lICriam sistema- bc:neficíada, certidlo do Tribunal de Contas de que
tizados por rc:1atoJcs llC10riais c: decididos pelos pJc:ná. as prestações de contas ... nJo aprc:sentam irregulari-
rios das subccmissões, sendo 09 parc:cc:rc:s dc:stas ~ dades, planilha com os custos jÁ ocorridos na execu-
tematízados pclf um Relator..(JeraJ c: submetido à Co- ção do empreendimento e parecer de órgIo técnico
misslo Mista c, em seguida, ao Plenário do Congresso do Congrc:sso Nacional quanto à razoabilidade dos
Nacional. Tudo isto no prazo de: llCtenta e cinco dias. custos totais do emprc:endimento."
Revl.t. de ''''",..... '.0 L. .,.,at,,,.
Os sucessivos adiamentos na implantação normas constitucionais. 23 No Código de Con-
e operacionalização das subcomissões perma- tabilidade Pública, de 1922 (Decreto n.o 4.536),
nentes, sob os mais diversos fundamentos, se acha estabelecido, no art. 80, § 1.°:
constituem também um fator critico no funcio- "Os créditos extraordinários serão
namento da Comissão Mista. Suas conseqüên- abertos em qualquer mês do exercício,
cias mais imediatas são a centralização do po- para ocorrer às despesas em caso de ca-
der nas mãos do presidente da Comissão - o lamidade pública, epidemias, rebelião,
que é sempre problemático -, a limitação na sedição ou guerra externa. Precederá a
operacionalidade do órgão pela inexistência de abertura do crédito parecer do Tribunal
núcleos especializados para a apreciação das de Contas ..."
matérias setoriais e a falta de sistematicidade
no funcionamento das relatorias setoriais e na Nas leis sobre formulação orçamentária, o
apreciação dos trabalhos destas pelos plenári- Decret~lei n.° 2.416, de 17.7.1940, que instituiu
os especializados. Portanto, parece ser provi- normas para a elaboração e execução dos orça-
dência desejável que se modifique, no mais cur- mentos dos Estados e Municípios, cercou de
to prazo possível, a Resolução n. o 1I91-CN, de normas restritivas a abertura de créditos extra-
modo a definir melhor as prerrogativas e res- ordinários, exigindo a submissão destes à
ponsabilidades das subcomissões permanen- aprovação do Presidente da República ou do
tes, a imediata implantação destas, bem como a Departamento Administrativo; a Lei n.o 4.320,
sua dotação com meios apropriados para poder de 1%4, por sua vez, apenas consagrou o en-
cumprir, com independência, as atribuições que tendimento secular, caracterizando este tipo de
lhe forem fixadas. crédito adicional, em seu art. 41, como os "des-
2.12. Uso de medidasprovisórias para au- tinados a despesas urgentes e imprevistas, em
torizar a abertura de créditos extraordinários caso de guerra, comoção intestina ou calamida-
de pública". No plano constitucional, as Cartas
O crédito extraordinário constitui uma das de 1946 (art. 75) ede 1967 (3rt. 64, § 2.0)tnantiw-
mais antigas modalidades de mecanismos de ram o princípios da excepcionalidade para os
ajuste orçamentário do Direito Orçamentário créditos extraordinários, restringind(H)S aos
brasileiro (sendo as primeiras referências ao seu casos de necessidades urgentes ou imprevis-
uso expressas em atos do Império), tendo sur- tas, corno guerra, subversão interna ou calami-
gido ao lado dos créditos suplementares, des- dade pública, entendimento reafirmado na atu-
tes se diferenciando pela exigibilidade dos pres- al Constituição, cujo art. 167, § 3.°, estabelece:
supostos de imprevisibilidade e urgência. Foi "A abertura de crédito extraordinário
pela Lei 8.° 589, de 9 de setembro de 1850, que, somente será admitida para atender a
pela primeira vez, se definiram normas sobre a despesas imprevisíveis e urgentes"...
abertura de créditos suplementares e extra-
ordinários em nosso País. Com relação aos Por mais de um século os créditos extraordi-
créditos extraordinários assim dispunha esta nários, pela natureza das circunstâncias que os
Lei: justificam e em consonância com a melhor dou-
"Art. 4. Se porem estiver reunido o trina, foram abertos por decreto executivo, se-
0

Corpo Legislativo não poderá o Gover- guida essa providência de comunicação ao Po-
no abrir os referidos Créditos, nem auto- der Legislativo, sem quaisquer problemas em
risar a despeza sem que elles sejão previ-
23 Segundo VIANA, Arizio de. Orçamento Bra-
amente votados em Lei. Exceptuão-se os
casos extraordinários, como sejão os de sileiro. Rio. 1950 (p.146): "O crédito extraordinário
ser aberto pelo Executivo. É da essência do
epidemia, ou qualquer outra calamidade deve govemo, do poder que administra, em detenninada
publica, sedição, insurreição, rebellíão, e emergência, calamidade, ou necessidade de ordem
outros desta natureza, em que o Gover- pública, dispor de recursos para agir imediatamente
no poderá autorisar previamente a des- em salvação da coletividade. Esteja ou não em funci·
peza, dando imediatamente conta ao Po- onamento o Legislativo, não precisa o Executivo de
der Legislativo." pOOir·lhe autorização para assim proceder. Mas, é da
Essa interpretação foi mantida no Ordena- essência do regime democrático dar o Executivo contas
mento Jurídico pátrio, ao longo de todo este ao Legislativo. Após a abertura do crédito extraordiná-
século, seja no código de contabilidade, seja rio, o Executivo làril as devidas comunicações ao Le-
gislativo, a fim de justificar e de comprovar as despe-
nas leis sobre formulação orçamentária, seja nas sas que, em caráter extraordinário, houver realÍZlldo."
25
tal procedimento. Não existem, ponanto, ele- Outro aspectO grave da atual sistemática é
mentos, sejam estes de ordem prática, legal ou permitir que o Poder Executivo se valha do p0-
doutrinária. para dar suporte à orientação, im- der normativo das medidas provisórias para R::~
plementada a partir de 1989, de se passar a au- solver situações em que o crédito extraordiná-
torizar a abertura de créditos extraordinários por rio não poderia ser caracterizado, como já tem
medida provisória. Isso ()(X)rreu, ao que parece, ocorrido várias vezes. Esse procedimento acha~
por uma equivocada interpretação do art 167, § se caracterizado na Nota Técnica n.o 10/93, da
3.°, da Constituição, dado que pela absoluta Assessoria de Orçamento da Câmara dos De~
funcionalidade do procedimento tradicional, o pulados, que assinala:
entendimento mais razoável para a referência "as situações objeto de medidas provi-
ao art. 62 da Constituição, contida no § 3.° su- sórias [autorizando abertura de créditos
pra, seria o de haver necessidade de convoca- extraordinários] têm apresentado, nor-
ção do Congresso Nacional no caso da abertu- malmente, duas caraeterfsticas que evi-
ra do crédito extraordinário ocorrer dumnte pe- denciam a inadequação do seu equacio-
riodo de recesso, valendo, quanto ao mais, a namento através de crédito extraordinã-
norma do art. 44 da Lei n,o 4.320, de 1964, que rio, quais sejam: a) adicionar recursos a
estabelece: categorias programáticas já existeDtes na
"Os créditos extraordinários serão Lei Orçamentária; e b) equacionar neocs--
abertos por decreto do Poder Executivo, sidades que se repetem todos os anos.
que deles dará imediato conhecimento No primeiro caso o procedimento apr0-
ao Poder Legislativo". priado seria a abertura de crédito suple-
Por razões inexplicáveis esem qualquerfun- mentar - que existe exatamente'para isso
damento de ordem prática. optou a administra- -, no segundo, pela regularidade dos
ção por entender a norma como indicativa de eventos, não se pode falar em imprevisi-
que doravante os créditos extraordinários de- bilidade eurgência."
veriam ser autorizados por medida provisória. Assim, tendo em vista as objeções à siste-
Essa interpretação conduziu à desnecessá- mátial atual, cumpre intervir para que se modi-
ria produção de um grande número de medidas fique a equfvoca interpretação que vem sendo
provisórias - freqüentemente reeditadas várias dada ao an. 167, § 3.°, da Consôtuiç:io, que gera
vezes -, tendo por único mérito o de atravancar a desnecessária produção de um grande núme-
a pauta do Congresso Nacional. Além do mais, ro de medidas provisórias. É fora de dúvida que
esse procedimento apresenta tantos inconve- a melhor interpretação para a referência ao art.
nientes que é surpreendente ter sido mantido 62 da Constituição, contida do § 3.° supra, in
por tanto tempo. Em primeiro lugar, ele é disfun- fine, refere-se à necessidade de convocaçlo do
cional, por instituir mais uma etapa legal - a Congresso Nacional no caso da abertura do
prévia autorização - para o equaàonamentode créditoextraordinário dar-se durante periodo de
necessidades imprevisíveis e urgentes; em se- recesso parlamentar, valendo, quanto ao mais,
gundo, é inconseqüente e inócuo, visto que, a norma do art. 44 da Lei n.o 4.320, de 17 de
sendo da natureza do crédito extraordinário pr0- março de 1964. Essa norma é suficientemente
piciar o gasto imediato dos recursos. a delibe- operacional para os dias atuais, ajustada ao di-
ração do Parlamento sobre a MP que o autoriza reito pátrio, coerente com as necessidades da
nAo terá conseqüências fáticas, limitando-se a administração e de grande praticidade para am-
legitimar, a priori, despesas cujas contas não se acha exaurida ... Ademais, mesmo na hipótese do
foram apreciadas pelos órgãos de controle; e, crédito extraordinário ser aberto irregularmente, a
finalmente, é de péssima técnica legislativa, por possibilidade de caractcrizaçlo de crime de resp0n-
redundar na produção de leis de duração efê- sabilidade nlo é maior ou mais legitima pelo emprego
mera, visto que a MP. depois de se transformar da medida provisória do que pelo uso do de<:reto,
em projeto de lei de conversão durante a sua como ocorreu, por mais de um século, na prática
tramitação no Congresso Nacional, se conver- administrativa brasileira, sem quaisquer problemas
te em lei ao ser sancionada pelo Presidente. 24 no plano do direito, da doutrina ou das con~cí­
as da administração". Similar foi o entendimento da
24 Obaerva o Deputado JOÃO ALMEIDA, em CPI do Orçamento, cujo Relatório recomendou o res-
seu Relatório, sobre o Projeto da LOOI95: "Consti- tabelecimento do processo tradicional de abertura de
tui um exagero que ae designe uma comisslo mista de créditos cx:traordinários, considerando uma impro-
deputados e senadores para apreciar, sem qualquer priedade que o Congresso despcnda tempo com a
conaeqll&Jcia fática, uma matéria cuja substância já apreciação de atos praticamente irreverslvcis.
28
bos os Poderes intervenientes no seu proces- sido colocadas à disposição da Presidência da
samento. Comissão Mista e dos relatores por simples atos
verbais. Esse procedimento possui vários in-
2.13. InadequaçiJes na estrutura de asses-
soramento convenientes: 1..,
túnguém se sente responsá-
vel pelo funcionamento dos ó~gãos técnicos
O Congresso Nacional acha-se razoavel- da CMO limitando-se a cumpnr as demandas
mente aparelhado para o atendimento de suas
necessidades atuais de assessoramento em
de mome'nto; 2."os membros da Comissão pre-
cisam concorrer com os demais parlamentares
matéria orçamentária (apoio à tramitação de (as Assessorias foram criadas para servi-los e
PPAs, LDOs, LOAs e créditos adicionais). So- apenas subsidiariamente à CMO) para ter aces-
mados os quadros de assessores da Câmara so ao assessoramento; 3.°) não contando com
dos Deputados e do Senado ~ederal, a insti~i­ urna estrutura própria de apoio técnico, os mem-
ção conta com número sufiCIente de profissIO- bros das subcomissões enfrentam dificuldades
nais especializados para as tarefas ora desem- na estruturação das rotinas de trabalho e na
penhadas e vem se equipando de forma ade- determinação dos assessores de sua confiança
quada - em termos de hardware e de software (indispensáveis para ações com<? as de ~m­
-, para fazer frente às demandas de ~us ór-
gãos e membros. 2s Os problemas. eX1st~nt~
panhamento e avaliação); e 4." a inf?rmalidade
dos procedimentos tende a g~ disputas en-
derivam mais da necessidade de ajustes msti- tre os integrantes das Assessonas das Casas
tucionais - mudança cultural nos órgãos do do Congresso, sobretudo quanto às funções
Executivo para aceitar uma participação ativa de coordenação, prejudicando as ações de ca-
do Parlamento na formulação de políticas pú- ráter substantivo.
blicas e alocação de recursos e, nos do Legisla-
tivo para desencadear ações administrativas e Portanto, parece ser de toda convetúê~cia
pr~essos que conduzam à apropriada distri- que se institucionalize uma estrutura própna de
buição dos meios e instrumentos - do que à assessoramento no âmbito da Comissão Mista.
precariedade destes. Enquanto subsistirem embaraços de ordem ad-
ministrativa à criação desta sob a forma de ór-
Não obstante, a forma de relacionamento gão autônomo - nos moldes do PRODASEN e
da CMO com as Assessorias da Câmara e Se- CEGRAF, no Brasil, ou do CBOe CRS, nos EUA
nado (assistemática e informal) precisa ~ me- - essa assessoria poderia ser composta por um
lhor equacionada, sobretudo na ~fSIlCCl.1va de número determinado de assessores (especiali-
plena operacionalização da Conussão Mista de zados em orçamento e fiscalização) requisita-
Planos, Orçamentos Públicos e. Fiscalização, dos junto à Câmara dos Deputados e ao Sena-
com a implantação das subcotnlS5ÕeS pe~­ do Federal e dotada com um certo número de
nentes. 2li Nos últimos anos as Assessonas tem cargos de livre provimento e de funções de c0-
25 A parti r de 1992 (orçamento para 1993), a
ordenação (cedidos pelas Casas do Congresso
alocaçio dos assessores passou a ser realizada em Nacional), para possibilitar a es,truturação de
função da área de especializaçao destes. Por exem- núcleos especializados no atendimento às de-
plo, para assessorar os relatores do orçamento da mandas de cada subcomissão permanente e dos
educação têm sido designados assessores que traba- relatores dos grandes projetos (pPA, LDO e
lham com essa área o ano todo, que conhecem a legis- LOA).
lação peculiar (do salário-educação,. por exemplo),
os programas contidos no Plano Plunanual e o perfil 2.14. Deficiências no acompanhamento da
da execução orçamentária nos últimos anos. execução dos planos e orçamentos
26 SANTOS, Ruy. O Poder Legislativo - suas A conveniência de ações mais decididas do
Virtudes e seus Defeitos. CEGRAF. Brasllia. 1972, Poder Legislativo no acompanhamento da açã.o
p. 139, ao tratar das deficiências de ~sessoria espe- governamental é algo que vem send~ percebi-
cializada de que se ressentem as COffilSSÕCS do Con- do há muito tempo. Em 1966, ao avallaJ' os no-
gresso, reporta-se ao Senador no~e-am~ricano La vos papéis que cabem aos parlamentos nas
Follete, para quem "uma assessona técmca compe- sociedades modernas, o Senador Milton Cam-
tente é de vital importância para o Congresso. Um pos e o Deputado Nelson Cameiro27 reportam-
dos principais fatores que contribuiu para. a transfe-
rência do poder e influencia, do legIslativo para o
ao mesmo tempo em que é negligente na colocação, a
Executivo, nos anos recentes, decorre do Par~ament?
seu serviço, dessa categoria de funcionário."
ter sido generoso em proporcionar ao Executivo !11C1-
os de admitir pessoal técnico para os seus semços, 11 CAMPOS, Milton e CARNEIRO, Nelson.

IJraaIII_ _ .32 ft. 126 ...../Iun. 1f1f15 Z7


se a Woodrow Wilson, professor em Princeton O aprimoramento das atividades de acom·
e mais tarde Presidente dos Estados Unidos panhamento e avaliação requer também, além
que já em 1884 observam: ' ~ reinstitucionali~do planejamento, o aper.
"O filósofo político dessa época de felçoamento dos Sistemas de controle interno e
gove~o .autônomo tem mais do que sim-
externo, como assinalado no tópico preceden-
ples dUVida para contestar a utilidade de te. ~ém de sua ênfase no formalismo, os pro-
um órgão representativo soberano que cedimentos de controle interno e externo em
se limita a legislar, abstendo-se de todas uso no setor público brasileiro têm recebido ao
as outms funções. Tão importante quan- longo dos últimos anos, duras e Jnerecidas ~­
to legislar é fiscalizar atentamente a ad- ti~. Sem dúvida, ~ossem os 6rg1os responsá-
ministração". VClS um pouco IDa1S efetivos, os eventos - de
Parlamentares dos mais diferentes partidos superfaturamento, abandono de obras e desvi-
e tendênc.ias têm expressado sua preocupação os de recursos - relatados pelas CPls do PC e
com essa Importante responsabilidade dos par- do Orçamento jamais teriam ocorrido com a
lamentos, sobretudo com os aspectos menos tnagnitude relatada. Com relação e essa ques-
formais do acompanhamento e da avaliação do tão, sugere Beltniro Castor,2S com a experiência
desempenho do Governo. O mesmo tem ocorri- de quem foi, por duas vezes. Secretário de Pla-
do com os órgãos investigativos do Congres- nejamento do Paraná e membro da Corte de
so .Nacio~, sobretudo a CPI do Orçamento, Contas do Estado por vários anos:
CUJO relat6no aponta uma série de recomenda- "Umverdadeiro controle externo de-
ções para ~ aprimoramento dessa função, den- veria em primeiro lugar estabelecer me-
treas qwus: canismos permanentes de acompanha.
1) que se dotem os órgãos de planejamento mento no nível de execução. Ou seja. 8
e orçamento do Congresso Nacional de meios fiscalização não deve ser feita em Brasf·
para: lia ou nas capitais estaduais onde está a
sede das instituições controladoras. mas
a) implantar e operar uma estrutura perma- nos lugares em que as obras são feitas e
nente de acompanhamento e avaliação da exe- os serviços são prestados. Em segundo
cução dos programas fedemis ou realizados com lugar, é indispensável que participem de
recursos da União e da performance dos ór- tais mecanismos de controle as forças
~os púb~icos (com vistas à determinação de poUticas e comunitárias antagônicas aos
lm:gulandades e à detecção de gastos impro- administradores responsáveis pela exe-
dutivos de recursos do Erário em unidades - da cução da obra ou serviço, para garantir a
administmção direta ou indireta - que não mais isenção e a idoneidade do controle."
atendam ao interesse público)~
3. Conclusões e reconrendaçiJes
b) acompanhar e avaliar sistematicamente a
execução dos planos e programas nacionais Como assinalado anteriormente, as inade-
regionais e setoriais e a execução orçamentári~ quações nos processos. normas e procedimen-
(com vistas ~ dar conhecimento de tais apura- tos relacionados com a programação. execuçIo
~ às conu5SÕeS permanentes, singulares e
e avaliação do gasto público se acham situadas
nustas, das Casas do Congresso, a otitnizar a em três categorias: constitucionais, legais e
alocação dos recursos disponíveis e a tninitni- ~ouregimentais. Oenquadramen-
z.ar as interferênci~s espúrias em tal processo); to nessas categorias, entretanto, não é rigido e
2) que se amplIem as estruturas dos órgãos nem mutuamente excludente, existindo proble-
técnicos de orçamento do Congresso Nacio- mas cuja natureza as situa como requerendo
nal, gamntindo-Ihes o acesso irrestrito ao Sis- providências em vários destes planos. Por essa
tema Integrado de Adtninistração Financeira- razão não teremos a preocupação, nesta pane
SIAFI, ao Sistema Integrado de Orçamento - da abordagem, em relacionar as recornendaçiOes
SIDOR e ao Sistema Integrado de Administra- apresentadas com os problemas a que se refe-
ção de Pessoal- SIAPE, assim como a todas as rem - até mesmo porque isso já foi feito no tópi-
demais bases de dados da administração públi- co precedente -, mas sim em sistematizar, em
cafederal. cada uma dessas órbitas. as providências que
nos parecem mais urgentes pam oaprimoramen-
Es,.,do sohre o Funcionamento dos Parlamentos.
CEGRAF. Brasflia. ]966. 21CASTOR, Belmiro V. 1. Idem. Ibidem, p.161.
28
to dos processos de planejamento e orçamento. ção legislativa;
3. 1. Ajustes constitucionais c) suprimir o § 5.° do art. 166 da Constitui-
Modificações constitucionais são providên- ção ou restringir sua utilização a uma modifica-
cias que se justificam sempre que o acordo so- ção por projeto, aceitável esta apenas dentro
cial pelo qual o poder da sociedade é estrutura- dos trinta dias da remessa do projeto original e
do e seu exercicio fracionado (a fim de evitar o se a votação da proposição ainda não tiver se
totalitarismo) passa a apresentar disfunções iniciado na comissão mista;
capazes de comprometer a estabilidade das ins- d) tomar obrigatória a execução dos sub-
tituições essenciais ao funcionamento harmô- projetos prioritários incluídos nos orçamentos
nico da sociedade. 29 Uma das evidências mais e vedar a exclusão de subprojetos antes de sua
fortes de disfunção no exeTCicio do poder, em conclusão, exceto com autorização específica
sistemas democráticos, é a prática de abusos do Legislativo, mediante rito próprio.
por um dos poderes do Estado (ainda que atra- Além disso, a era de orçamentação decre-
vés de instrumentos legalmente constituídos mental em que passamos a viver - onde, a cada
ou de práticas tradicionais), tumultuando a atu- ano, os recursos do Governo se tomam meno-
ação ou levando outro poder a reduzir a sua res e cortes adicionais precisam ser aplicados
operacionalidade. aos programas tradicionais - impõe que se re-
No cenário que delineamos ao longo desta veja, criticamente, a divisão de responsabilida-
abordagem fica evidente que o Poder Executi- des fixada na Constituição (hoje confusa em
vo tem abusado no uso de instrumentos pre- face do amplo elenco de competências comuns
vistos na Constituição, para uso excepcional, e concorrentes) -, de modo a definir, de forma
inclusive ampliando o âmbito de sua. utilização mutuamente excludente, as oompet.ência~ da
e, com isso, tumultuando o funcionamento do União, dos Estados e dos Municípios. Adicio-
Poder Legislativo. Isso tem ocorrido, sobretu- nalmente, redefilÚr, na Lei Maior, o conceito de
do, pela contínua ciranda organizacional, pelo empresa estatal, pemútindo que se caracterizem
sistemático envio de mensagens modificativas como tal apenas as entidades empresariais vin-
dos projetos orçamentários, pela modificação culadas ao setor público que não recebam re-
das LDOs através de medidas provisórias, pela cursos do Erário para cobrir os custos defunci-
excessiva discricionaridade para executar sele- onamento, transformando em autarquias todas
tivamente a programação aprovada pelo Con- as entidades da administração indireta, hoje
gresso Nacional e pelo desnecessário uso de caracterizadas como empresas estatais, que não
medidas provisórias para "autorizar" aabertura se ajustem a tal critério.
de créditos extraordinários. Impõe-se, portan- 3.2. Providências necessárias na órbita
to, que se promovam ajustes no texto constitu- legal
cional, no sentido de restabelecer o equilíbrio Uma conclusão aprioristica, diante do qua-
que deve existir no fracionamento do poder da dro delineado, é de que existe uma grande ur~
sociedade entre os poderes constituídos do gência na produção da legislação complemen-
Estado, abrangidos, os seguintes aspectos: tar - prevista no art. 165 da Constituição - fi-
a) proibir modificações na macroestrutura xando normas e procedi~entos para a elabora-
organizacional da administração federal (Minis- ção do PPA, LDO e WA. E preciso definir, atra-
térios e Secretarias) através de medidas provi- vés de nonnas de caráter permanente, a forma e
sórias, exigindo a sua proposição por intermé- conteúdo dos documentos respectivos, as ca-
dio de projetos de lei devidamente instruídos tegorias de integração entre esses instrumen-
com elementos objetivos sobre os seus custos tos de programação, a estrutura de prazos para
e beneficios~ a elaboração e aprovação dessas leis, os limites
b) proibir o emprego de medidas provisóri- de flexibilidade aceitáveis na execução da pro-
as em matéria orçamentária e nos demais casos gramação aprovada pelo Congresso Nacional e
em que o art. 68 da Constituição veda a delega- os procedimentos aceitáveis para o ajuste das
leis orçamentárias, para a fiscalização da ação
29 Segundo BAAKLINE, Abdo. Professor da governamental e para a avaliação do desempe-
SUNYA, no Seminário do MPA, em 1988, "As Cons- nho dos órgãos públicos.
tituições são estmturas normativas que dividem e
sistematizam o exercício do poder. Quem não apren-
Nesse sentido será importante que a citada
der isto jamais compreenderá 8. verdadeira natureza legislação abranja, além dos conteúdos tradici-
das Leis Maiores". 0nais presentes na Lei n. o 4.320/64 - que enca-
"'..tll• •. 32 n. 126 .,JJ.... 1995
minhou grandes avanços na orçamentação pú- de Governo - União, Estados e Municípios -
blica brasileira -, também CJS seguintes aspectos: proposta nesta abordagem, limitar as transfe-
a) clara definição da forma, conteúdo e rências voluntárias da Uniao um pequeno per-
abrangénaa do Plano Plurianual, revestindo-o, centual do orçamento, exceto no caso de pro-
como documento programático, dos atributos gramações vinculadas a planos regionais ou
peculiares a estes, ou seja: seletividade, objeti- setoriais aprovados pelo Congresso Nacional
vidade, estabilidade, expressividade, setoriali- eespecificamente incluídas no PPA ou na LIX>.
zaçao e compatibilidade programática; 3.3. AçiJes administrativas e regimentais
b) articulação de normas que conduzam à Além dos ajustes no texto da Constituiçlo
revita)jzação do planejamento como processo, e das providências na órbita legal existem algu-
DO âmbito da administração pública federal, e mas questões, igualmente relevantes, que p0-
de procedimentos que ensejem ações melhor dem ser resolvidas pela via administrativa ou
articuladas no tempo e na base territorial, pr0ces- regimental, desde que seja mobilizada vontade
sos mais ágeis e efetivo combate ao despen1fcio; pol1tica com magnitude suficiente para a sua
c) caracterização da LOO como autêntico viabili1Jlçlo. Apontam-se. como tais, as seguin-
instrumento de formulação de politicas públi- tes providências:
cas, tomando obrigatório que e&ta explicite, para a) definir com c1are7Jl as prerrogativas e res-
cada setor de governo, as três programações ponsabilidades das subcomissões permanen-
que receberão êntàse no exerdcio e o volume tes, implantá-las e dotá-las de meios apropria-
minimo de recursos a ser alocado em cada Ól"g:lIo; dos para cumprir suas atnbuiçOes;
b) suprimir as normas que impõem um exa-
d) precisa exp1icitaçAo das metas fIsiaJs das gerado rito de renovaç4o na ComissIo Mista
programa.çOes do Governo - quantificadas e de Orçamento, como forma de ampliar o nivel
situadas no tempo e no espaço - e exigência de de especializaçfto das subcomiSSOes, cuidando
que novas programaç(ks sejam acompanhadas para que o poder seja descentralizado e para
de ilÚOI"lllaÇÕes sobre as carências que iJao aten- que se assegure transparência e publicidade
der, os resultados a obter eprincipais elemen- nos processos;
tos de custos e beneficios;
c) limitar as relatorias da comissão mista a
e) completa separação entre os orçamentos dois niveis, setorial e geral, sendo as primeiras
fiscal e da seguridade social, inclusive median- em número do superior a dez ea última -com
te a montagem de documentos distintos, com a ftançao de sistematizar os pareceres das sub-
precisa definição das receitas e despesas de comiss6;s (vedada a aprovação de emendas,
cada orçamento, clara separação da programa- exceto 110 caso de destaques) -organizada sob
ção de um e de outro e regime diferenciado de a forma de colegiado e composta por parte dos
~ relatores setoriais e sob a coordenaçlo de par-
f) estmturação de normas apropriada5 para lamentar escolhido por estes;
a elaboraçlo, execuçao e prestação de contas d) fixar prazos improrrogáveis para que os
dos entes públicos regidos pela Lei n. o 6.404 Ól"glCJS do Congresso Nacional apreciem CJS pr0-
(empresas estatais) e conferindo ao orçamento jetos sobre matéria orçamentária, transferindo
de investimento das estatais abrangência com- ao n1ve1 imediato - relatoria ou órglo - compe-
pativel com os propósitos de controlar suas tência para deliberar sobre a proposição c suas
ímobilizaçlles; emendas sempre que vencidos os prazos;
g) fixaçIo de prazos improrrogáveis para que e) ampliar o envolvimento das comissôes
OS Poderes Executivo e Legi.slativo cumpram as permanentes na apreciação dos projetos de
suas atnõuiçõe8 na apreciação dos planos e PPA, LDO eLOA, bloqueando periodos de uma
leis orçamentárias e proibição de disposições a tIês semanas, em seu calendário, para essa
que autorizem a postergação da apreciaçlo dos atividade e tornando exigivel a produçlo de re-
projetos dessa natureza ou a execução anteci- latórios com as apreciações criticas sobre as
pada do Orçamento; partes dos projetos relativas aos setores de
h) instituição de normas que impeçam a competência ou interesse de cada comissllo;
ampIiaçfk) de receitas por intermédio de artfficios. f) definir os relatórios das comissões per-
manentes como as principais indicações para a
Com caráter complementar, independente- estroturaçIIo dos parâmetros a serem observa-
mente da revido de encargos entre os níveis dos no acolhimento de emendas e na realização
"."'... fi. Intor.....1to ......I.tlv.
de cancelamentos; A permanência destes deverá acarretar sérios
g) limitar as emendas individuais a 15 ou 20 prej~'?S ao Erário. ocasionar desgastes adici-
por parlamentar. restringindo o âmbito das cir- OnaJS à Imagem do Legislativo e da administra-
cunstâncias (matérias) em que estas podem ser ção pública em geral, contribuir para a potenci-
propostas, exigindo que estas preencham um a1ização dos conflitos - já bastante amplos pela
conjunto de requisitos na sua fundamentação própria dialética das relações entre poderes-.
e obrigando a alocação de recursos em mon- frustrar as equipes técnicas., comprometer a efe-
tantes compatíveis com as metas; tividade das estruturas de controle e prejudicar
o atendimento aos interesses maiores da popu-
h) instituir estrutura própria de assessora-
lação e das instituições.
mento na Comissão Mista e suas subcomissões
integrada por número determinado de assesSO: Cabe registrar. entretanto, que muitas das
res especializados requisitados junto às Asses· ~elas e inadequações do processo orçamen-
sonas Técnicas da Câmara e do Senado e por tário federal têm sido injustamente atribuidas
um limitado número de cargos de livre provi- ao Congresso Nacional. Na verdade, as pro-
mento e de funções de coordenação (custea- postas elaboradas pelo Poder Executivo têm
das parte a parte pelas Casas do Congresso deixa~o bastante a desejar - sobretudo pelo
Nacional). esvaztamento que tem se operado nas áreas téc-
. Além disso impõe-se que se formalize, por nicas que dão suporte à formulação das LOAs
mtermédio de decreto legislativo ou de outro -, trazendo em seu bojo a maior parte dos pro-
meio mais apropriado, a interpretação de que blemas posteriormente apontados. Fossem as
os créditos extraordinários, atendidos os pres- propostas orçamentárias mais bem elaboradas
supostos de imprevisibilidade e urgência. de· com apropriada especificação dos empreendi:
vem passar a ser abertos por decreto executivo mentos - abrangendo metas fisicas, áreas be-
na forma tradicional, sem a necessidade de edi: neficiadas e custos globais dos subprojetos -,
com custos realistas e setorialização das res·
ção de medidas provisórias. Tal ato deverá es·
tabelecer, igualmente. na fonna consagrada pe- ponsabilidades. os orçamentos não apresenta-
las práticas e pelo direito pátrio, que o Con- riam as falhas usualmente apontadas. Na ver-
gresso Nacional deverá ser imediatamente con- dade. a ação do Parlamento, nos últimos orça-
vocado se a abertura do crédito extraordinário mentos. tem propiciado a correção de várias
ocorrer durante algum dos periodos de recesso inadequações contidas nas propostas oriundas
parlatrentar. do Executivo. seja na regionalização dos gas-
tos. seja na alocação setorial. seja na definição
Dadas essas considerações., não podem exis-- das contrapartidas a empréstimos externos., seja
tir dúvi~s quanto à conveniência e urgência no cumprimento de vinculações legais e cons-
do equaclOnarnento dos problemas e inadequa- titucionais.
ções referenciadas ao longo desta abordagem.

31
Expropriação dos bens utilizados para
fins de tráfico ilícito de entorpecentes

EDllSON PEREIRA NOBRE JÚNIOR

sUMÁRIo

1. Introdllção. 2. Natllreza jurídica. 3. O objeto.


4. Afodode concretização. 5. Procedimento. 6. Aqui-
sição originária ou derivada. 7. Extensão. 8. O pa-
ragrafo IÍnico do art. 243 da CF 9. Destinatários.
10. Conclusões.

1. Introdução
O presente estudo, malgrado a sua singele-
za, tem por escopo gizar os contornos do insti-
tuto previsto no art. 243, coput. da Lei Funda-
mentaL ao dispor:
"As glebas de qualquer região do
País onde forem locali7.adas culturas ile-
gais de plantas psicotrópicas serão ime-
diatamente expropriadas e especificamen-
te destinadas ao assentamento de colo-
nos, para o cultivo de produtos alimentí-
cios e medicamentosos, sem qualquer
indenização ao proprietário e sem prejuí-
zo de outras sanções previstas em lei".
As nossas atenções centrar-se-ão, princi-
paJmente, no investigar a sua natureza jurídica,
seu objeto. a maneira de sua realização, sua ex-
tensão, seus destinatários, entre outros temas
correlatos.
Trata-se de inovação no direito positivo e,
como tal, capaz de justificar supostos percal-
ços do expositor.
2. Naturezajurídica
Neste tópico, passo a cotejar o art. 243 da
Constituição, com as várias modalidades de in-
tervenção estatal na propriedade privada.
Dista - e bastante - da requisição, autoriza-
qa pelos art. 5°, XXV. e 22, m. ambos da Nonna
Edilson Pereira Nobre Júnior é Juiz Federal e Apice. São basicamente dois os pontos de dis-
Professor da UFRN. tanciamento: a) naquela a ação do poder públi-
8r_III••. 32 n. 126 "'JJun. 1995 33
co preordena-se ao uso da propriedade priva- dieado pelo art. 29 do CI'N, pouco importando
da. ao invés de sua aquisição; e b) a requisição que o bem situe-se na zona urbana OU de exten-
é auto-executável, dispensando procedimento são urbana do Município.
judicial. Mister se faz que, nessas terras, sejam des-
Tampouco se enquadra como servidão ad- cobertas cuIturas de plantas psicotrópicas. con-
ministrativa. Esta, lembrava Hely Lopes aitnadas pelo art. 2. da Lei n° 8.257, de 26.11.91,
Q
Meirelles l , forte em lição de Benjamin Basavíl- como sendo aquelas que, enumeradas pelo
baso,é Ministério da Saúde. permitam a obtençIo de
"um 6nus real, incidente sobre um bem substância entorpecente proscrita4•
partiaJIar, com afinatidade de pennítiruma
utilizaçllo pública". Acresça-se, por importante, que O cultivo
precisa ser contrário ao ordojuris.
Diferente se passa com O prescrito no art.
243, coput. da Lei Maior, uma vez este implicar A ilegalidade em causa defIui do art. 2.°, §
na extinçlo do jus proprietatis do cidadão, o 2.°, da Lei n °6.368176, sectmdadapeloart. 2.°,
que não ocorre com a servidão. parágrafo único, da Lei n.°8.257/91. Reputa-se
A despeito do nomen juris atribuido pelo com tal mácula o plantio não-autorizado, pelo
Constituinte, com a desapropriação não se con- Ministério da Saúde, para fins exclusivamente
funde. É que a perda da propriedade, por ato terapêuticos ou cíentificos. Fora disso, a plan·
compulsório do Estado, não vem acompanha- taçtoé ilegal.
da de compensaçlo financeira. O conceito de cultura, minudenciado em oi·
Embora vedado a prinápio,justífica-sepor vel infraconstitucionaI, corporifica-se "pelo pre-
força de exceção constitucional, sancionadora paro da terra destinada a semeadura, ou plan-
do uso da propriedade para fins antijurldicos. tio, ou colheita".
Observe-se, por seu nuno, não ser somen-
Não se ataca aqui o espirito informador da te a propriedade o alvo da medida drástica. A
propriedade como direito individual e inaliená- simples posse também pode sofrer os seus efei-
vel do homem. tal como consagrado em inúme- tos.
ras declarações constitucionais. Todavia. quer se esteja diante de proprieda-
É que, quando a Constituição assegura a de ou posse, imprescindiveI que o respectivo
intangíbilidade do patrimônio privado, atua, titular atue com culpa lato sensu (açIo ou omis-
segundo Celso Ribeiro IJastos2, para "impedir são dolosa, negligência ou imprudência). Incon-
que o Estado, por medida genérica ou abstrata. cebivel que a perda da coisa seja imputada a
evite a apropriação particular dos bens ecollÔ- titulo de responsabilidade objetiva.
~cos", o que não se confunde com o disposi-
bVo sob exame. no quaI. torno a frisar, é reprimi- Por derradeiro. transferida, mediante arren-
da a utilizaçlo illcita da propriedade. Da fruição damento ou parceria, a posse direta da coisa a
de tal prerrogativa em contrariedade ao Direito terceiro (art. 486 do Código Civil), o confisco
é que deoorre a dispensa do ressarcimento pe- também poderá. ter lugar. Nos contratos rurais.
cuniário ao seu titular. pelos quais é cedido o uso ten1pOI'ário da terra,
constitui obrigação do arrendatário ou pareci-
3. o objeto nMJUlorgado, cujo cumprimento compete ao
O confisco, sobranceiramente permitido. arrendador ou pan::eíro-ootorpnte, exigir a uti-
atinge imóveis rurais, JocaUzad06 em qualquer lização do ímóveI rústico na maneira convenci-
ponto do território patrial, posto que oconstítu- onada. devendo, se for o caso, optar pela resci-
ínte serviu-se do vocábulo gleba, a significar área slloda avença (arts. 26,1'1, 41, n, e 48, Decreto
apropriada para o cultivo de produtos vegetais. n° 59.566, de 14.11.66).
O critério para a definição de ím6vel1Ul'81.. Assim, quer o arrendador ou parceiro-ou-
pena de afronta à efetividade da diçIo magna, é torgante tenha-se omitido no dever de fiscali-
o da cIestínaçãI:f. Exc1ui-se o da localização, ín- zar a execuçIo do contrato, quer saiba, desde o
I Di~ilo Ad1JJinwtJtivo Brasileiro, RT, 14.· ed.,
inicio, da intençlo indevida do outro contta·
pp. 524/525.
4 Mais lICVCI1l, nCSlle ponto, a Lei D.o 6.368, de
1 CommtáritJ.J à Con.!litllição do Brasil, 2,0 V., 21.10.7~, 80 vedar no IICU art 2,0, o piantio,a cultura,
Saraiva, 1989. p. 119. a colheita c a cxploraçlo, de todas 88 plantas que
s Ver arts. 4.°, L dasLcis n." 4.504/64 e 8.6291'93 contenham substincia entorpecente, ou que dc1I:r-
e do Decreto 5S.891165.
mine dcpcnd&tcia fisica ou psIquica.
tante cabível a incidência do art 243, caput, da Carlos Ari Sundfeld7 pugna pela necessida-
Constituição Federal. É hipótese de culpa in de de ajuizamento, pela União Federal, na qua-
vigilando, decorrente da não-fiscalização do lidade de titular da competência insculpida no
comportamento da parte obrigada. art. 144, § 1.0, li, da Constituição, de ação civil
4. Modo de concretizaçi1o de rito ordinário perante a Justiça Federal.
Quanto à maneira por que os bens referidos Já Clóvis Beznos, citado por Lucia ~le Fi-
no art. 243, caput. da Lei Máxima, sãotraslada- gueiredo', entende que não se cuida de direito
dos ao acervo patrimonial da adnúnistração, novo, ao fazer referência ao art. 125 do Código
toca-se, de logo, asseverar constituir monopó- de Processo Penal.
lio da jurisdição. Prestigiando tradição instau- Pode-se, assim, vislumbrar que, em se cui-
rada pelo art. 39 da Magna Cartas, outorgada dando o imóvel onde encontradas culturas ile-
por João sem Terra aos seu barões, o art. 5.°, gais, de instrumento sceJeris do delito tipifica-
LIV, do Estatuto Básico atual, proclama: "nin- do no art 12, § 1.0, I, da Lei n.o 6.368n6, sob o
guém será privado da liberdade ou de seus bens núcleo semear, a previsão constitucional já
sem o devido processo legal". constava, no regime anterior a 1988, da legisla-
Perfilha-se. sem a menor transigência, o ide- ção penal vigente (art. 91 do Código Penal).
ano do due process ofJaw. Havia, ainda. no terreno específico, o art. 34, §
2.°, da Lei de Tóxicos, ao mencionar, às expres-
Por devido processo legal deve-se enten- sas, serem os instrumentos e produtos do cri-
der o procedimento em que é respeitado o con- me, al'Ófi o trãnsi.to em julgado da sentença con-
traditório e a ampla defesa, exsurgindo inelutá- denatória, confiscados, destinando-se à aliena-
vel a figura do julgador imparcial e independen- ção para terceiros ou à utilização pela atividade
te. Por isso, não pode desenvolver-se fora da administrativa.
liçajudicial6.
A perda decorreria de efeito automático da
Fincada, em balizas sólidas, a premissa aci- condenação (cf. Celso Delmant09~ Damásiode
ma, biparte-se a doutrina no descortinar a ação Jesus 10), proferida em processo em que o pro-
adequada. prietário ou possuidor do bem fosse denuncia-
do como autor ou partícipe dos delitos defini-
, O comando da Magna Charta LiberúJlrlm, de
15 de junho de 1215, dispunha: "Nenhum homem
dos na Lei n.o 6.368176. O seu suporte vertical
livre será detido ou sujeito a prislo, ou privado dos de validade estaria no art. 5.°, XLVI, b, sendo'
seus bens, ou colocado fora da lei, ou exilado, ou de desnecessária até a edição do art. 243, ambos
qualquer modo molestado, e nós não procederemos
nem mandaremC1ll proc:c:der contra ele senlo median- rio e à ampla defesa (com todas as conseqüências
te um julgamento n:gular pelos seus pares ou de har- derivadas dessas cláusulas). É fundamental deixar
monia com a lei do pals". assentado o primeiro aspecto. O devido processo
6 Dentre muitos doutrinadores, pensa assim o legal nlo é apenas o infonnado pelos princlpios do
lente da UFRN e em. Juiz Federal José Daniel Diniz: contraditório e da ampla defesa (aspecto material),
"Diante disso, é irrecusávcl concluir que o art. 5.°, mas o realizado pelo Poder Judiciário (aspecto sub-
inciso LIV, da Constituiçlo da República, assegura jetivo). Aqueles princlpios t&11 aplicaçlo mais am-
que qualquer pessoa só pode vir a ser privada de pla, para além do processo judicial~ vinculam tam-
seus bens ou de sua liberdade em dccorr6ncia de de- bém o procedimento administrativo, nos termos ex·
cisIo tomada por julgador independente e imparcial, pressos do art. 5.°, LV, da Carta Constitucional brasi-
com competência previamente determinada em lei, leira. Mas, em se tratando de privaçio da liberdade
em cujo processo tenham sido observados os outros ou da propriedade, nlo basta o respeito a tais cláusu-
princlpios processuais básicos, como os do contra- las - é dizer, nio basta a observância do inc. LV, em
ditório, da ampla defesa, da publicidade, da motiva- sede administrativa - necessârio que o processo seja
çIo da sentença etc. Sendo assim, é evidente que judicial" (Direito Administrativo Ordenado,., Ma-
ninguém pode ser privado de seus bens em virtude lheiros Editores, 1993, pp. 105/106).
de decislo administrativa, mesmo que ela 1enha sido 1 Desapropriação, RT, Primeira Leitura, Consti-
proferida com obediência ao contraditório e à ampla tuiçio de 1988, pp. 55156.
defesa, pois lhe falta o pressuposto da independen-
cia e imparcialidade do julgador" (O Procedimento • CU1'SO de Direito Adminisl1'ativo, Malheiros
Administrativo e o Devido Processo Legal, notas do Editores, 1994, p. 221.
autor). Idem Carlos Ari Sundfeld: ''O que significa o 'Código Penal Comentado, Renovar, 3." ed., p.
processo legal, nesse dispositivo? Este deve ser en- 141.
tendido como o desenvolvido perante o juiz compe-
tente e cercado das garantias inerentes ao contraditó- 10 Código PenalAnoúJdo, Saraiva, 1989, p. 2]7.

...",. . . 3211. f28 --4... flNNf


daLexLegum. um Estado, prevalecerá o lugar do registro.
o
embate doutrinário foi merecedor de equa- ~rificando encontrar-se em ordem a inau-
cionamentovia legal. Em 26.11.91, veio a lume a gural, o magistrado, ao despachá-la, ordenará a
Lei n. ° 8.257, cujo art. 6.°, resolvendo o impasse,
citação dos réus nomeando, ao mesmo tempo,
prescreveu: "A ação exproprialória seguirá o perito.
procedimentojudicial estabelecido nesta Lei". É lidima ação real imobiliária, a ensejar a
Propiciando a melhor execução do diploma obrigatoriedade da citação do cônjuge, se o
suso mencionado, foi aprovado regulamento demandado casado for. Assim entendeu a Sele-
peloDecreton.o 577, de24.6.92. ta ..a Turma do TRF da 5.· Reg. na AC 36.819-
PE, brilhantemente relatada pelo e. Juiz Ridalw
5. Procedimento
Costa, à consideração de ser inaplicável o 3rt.
Conditio s;ne qua non para a concretiza- 16 do Decreto-Lei 11.0 3.365/41, pela Lei 11.°8.2S71
ção da perda do bem é o ajuizamento da ação 91 remeter, nas suas omissões, o intérprete ao
prevista na Lei n. o 8.257/91, cuja legitimidade adminiculo do Código de Ritos. De transcriçlo
ativa pertence à União, beneficiária da utilidade compulsória a ementa do julgado:
a ser buscada emjuizo (art.. 15, Lei n.°8.257/91;
Decreto n.o 577192, arts. 3.° e 5.°). "AÇÃO DE DESAPROPRIAÇÃO. CUL-
TIVO ILEGAL DE PLANTAS PSICo-
Compete ao representante judicial daquela, mÓPICAS. CF AKI: 243 El.EI N.0 8.2571
na peça vestibular, além da enunciação dos fa- 91. PROVA PERICIAL. OBRIGATORIE-
tos e fundamentos jurídicos, caracterizar bem o DADE. AUSÊNCIA DE CITAÇÃO DE
imóvel atingido pelo confisco, especificando sua AMBOS OS CÔNJUGES. NULIDADE.
área, limites, pan:eIa ocupada com o cultivo pros- Na desapropriação de gIeba destinada ao
crito, protestar pela produção das provas que cultivo de plantas psicotrópicas, ainda
entender necessárias e, ao final, formular o pe- que não haja indenização, é obrigatória a
dido adequado. realização de perícia, por disposição ex-
A fim de fornecer subsídios à Advocacia pressadaLein.o8.257191-art 7.0 , § 2.0 A
Geral da União, a Polícia Federal, em trabalho ação expropriatória, por envolver o direi-
articulado com o INeRA, tão logo ultimado, com to de propriedade, tem natureza n:aI im0-
êxito, a diligência de localização de culturas ile- biliária, impond<rse a citação de ambos
gais de plantas psicotrópicas, remeterá cópia oscônjuges, sob pena de nulidade (CPC,
do inquérito policial e de relatório técnico (arts. art 10. I).lnaplicabilidade do dispositiw
3.°, 4.o e 5.° do Decreton.o 577/92). Esteúlti11lO, noart. 16 daLGO (DL 11.°3.365/41), que
elaborado num prazo de oito dias da conclusão dispensa a citação de ambos os consor-
dos autos informativos do inquérito conterá: tes. A desapropriação. no caso, é regida
"'a) a caracterização do imóvel onde foi 1oca1iza- pornorma especifica (Lei R. o 8.257191),
da a cultura ilegal de plantas psicotrópicas, não se aplicando as disposições da LOD,
mediante indicação, pelo menos, da denomina- nem havendo qualquer dispositivo que
ção e das confrontações e das vias de acesso; permita que a ação seja proposta contra
b) descrição da área onde localizada a cultura; apenas um dos cõqjuges. Antes pelo con-
c) comprovação da existência do cultivo ilegal; trário, o art.. 23 da Lei n.08.257 mandaapH-
d) indicação e qualificação do proprietário ou car subsidiariament as normas do CPC'II.
do possuidor do imóvel, bem como as de todos
os seus ocupantes e de outras pessoas nele Os demandados deverão. em um decêndio,
presentes no momento da lavratura do auto de contado da juntada aos autos do último man-
apreensão; e) relação de bens móveis encon- dado de citação, apresentar resposta.
trados na área e apreendidos". O mesmo prazo servirá para ambas as par-
A qualidade de réu não é provida, necessa- tes indicarem assistentes técnicos e elabora-
riamente, pelos supostos agentes da infração rem seus quesitos.
penal, cabe, ao invés, ao proprietário ou pos- A prova técnica deverá ser concluida oito
suidor da gleba. dias após a investidura do perito l1 ,
O poderjurisdicional para o processo ejul-
gamento do feito será da Justiça Federal (art 11 DJU, Seção n, cdiçio de 2.9.94, p. 48.323.
109, I, CF), mais precisamente da SeçaoJudiciá- 11 Note-sc que a Lei n.o 8.257191, ao falar em
ria do Estado onde encravado o malsinado imó- investidura, fugiu à nova sistemática do CPC em di..
vel. Situado este em zona limitrofe com mais de pensar, ao depois da Lei n.o 8.455192, o compromi..
"_"_t. fi_ Informa,,, 1.. .,_•. ,•.,.
No particular da prova pericial, restou fixa- leridade conatural ao procedimento que regula.
do, najá citada AC n.o 36.819-PE, sercte realiza- haver dispensado a justificação se a União pro-
ção obrigatória, em fase da natureza cogente var, de plano, a ocorrência material descrita no
do art.r, § 2.°, da Lei n.08.257191.
Conquanto ausente aqui o propósito de se
art. 243 da Lei Mor.
O não cumprimento injustificado dos inter-
estabelecer indenização justa, motiva a vistoria valos temporais fixados na Lei n. o 8.257/91 en-
pericial a necessidade de se caracterizar a área sejará a imposição de pena pecuniária aos ser-
do imóvel utilizado, direta ou mediatamente, ventuários ou peritos, cujo quantum será fixa-
pelas plantações indevidas, porquanto, como do pelo juiz.
adiante se verá, somente estas as abrangidas Silente a lei pr6pria, aplicar-se-á, ausente
pelo édito judicial n. qualquer incompatibilidade, o CPC. Mais apro-
Concluída a perícia, o julgador designará priada seria, a nosso ver, a incidência dos dis-
audiência de instrução ejulgamento, oportuni- positivos instrumentais do Decreto-Lei n.o
dade na qual cada parte poderá arrolar até cin- 3.365141, dada a afinidade entre O art. 243 e a
co testemunhas. desapropriação, separada apenas pela inexis-
Veda-se, em repetição a preceptivo já cons- tência de prestação indenizatória.
tantedo CPC (art. 453, lI, § 1."), o adiamento da 6. Aquisição originária ou derivada
audiência, exceto motivo de força maior. Aspecto de interesse é o pertinente ao modo
Suspensa a audiência pela impossibilidade de aquisição do dominio pela União, se originá-
de produção de toda a prova oral no mesmo rio ou derivado.
dia, a sua continuação deverá ocorrer em data Maria Helena Diniz comenta a bipartição
não superior a três dias. clássica, entre as maneiras pelas quais alguém
Encerrada a fase instrutória, o juiz dispõe alça à condição de dominus de uma coisa, pon-
do prazo de cinco dias para proferir sentença. tificando com a maestria que lhe constitui nota
O mencionado decisório desafiará apelação peculiar, que:
no prazo da lei processual civil, contado em "Tem-se a aquisição originária quan-
dobro quando sucumbente a União, hipótese do o indivíduo faz seu o bem sem que
em que, à míngua de recurso voluntário, os au- este lhe tenha sido transmitido por al-
tos serão remetidos à Jurisdição Superior, para guém, não havendo qualquer relação
fins de reexame necessário (art. 475, lI, CPC). entre o domínio atual e o anterior, como
Prevê a Lei n.o 8.257/91 (art. 10) a possibili- sucede na acessão e no usucapião. Diz-
dade de a União imitir-se, liminarmente, na pos- se derivada a aquisição quando houver
se do imóvel. Para tanto, compete ao julgador, transmissibilidade de dorninío, por ato
pena de malferição ao contraditório, realizar causa mortis ou inter vivos. Tal se dá no
audiência de justificação de posse, sede onde, direito hereditário e em negócio jurídico
superficialmente, deverá restar provada a exis- seguido de transcrição"l4 Igualmente,
tência da plantação ilegal. Darcy Bessone l5 .
Vê-se serem requisitos distintivos entre as
Poderia o legislador, sem ofensa à máxima aquisições originária e derivada: a} o fato de
audiatur et altera pars, e em homenagem à ce- naquela inexistir qualquer ato translativo (inter
vivos ou causa mortis) entre o titular do domí-
so do perito e assistentes. O diploma acima, em sen- nio e o adquirente; b) a propriedade incorporar-
do especial, não se encontra revogada pelo Código de se plenamente no patrimônio do novo proprie-
Ritos, Lei Geral. Pennanece aqui a necessidade de os tário, desvinculada das características e ônus
expertos serem compromissados. que pesavam sobre o antigo senhor.
13 Prova insofismável disso consta de passagem Trata-se, indubitavelmente, o confisco em
do voto do relator: "Pela redação do dispositivo aci- tela, de modalidade originária de aquisição da
ma, depreende-se que a pencia é obrigatória. Sem propriedade, por dois motivos: primus - inexis-
falar que a área expropriada apresenta-se controver- te, por parte do proprietário ou possuidor, ato
tída, pertencente a vários condôminos, não se saben- de transferência em favor da União, decorren-
do, ao certo, em qual dos quinhões foi encontrada a
maconha. A pencia, no caso, afigura-se imprescindí- 14 Curso de Direito Civil Brasileiro, 4.° V., Sarai-
vel e, ainda que não houvesse disposição expressa na va, 1987, p. 97.
Lei n. O 8.257/91. a sua não-realização representaria
manifesto cerceamento de defesa". ., Direito Reais, Saraiva, 1988, p. 128.

37
do o fenômeno de provimento jurisdicional~ bem por isso, interferem energicamente
secundus - a exemplo do prescrito no art. 31 do com a liberdade individual, é preciso que
~Lein°3.365/4I,oart.17daLeino8.257/ a Administração se comporte com extre-
~) é peremptório em assentar que se a mutação ma cautela, nunca se servindo de meios
dOminial prevalecerá sobre os direitos reais de mais enérgicos que os necessários à 0b-
garantia (penhor, hipoteca e anticrese) inciden- tenção do resultado pretendido pela lei,
tes sobre o imóvel, não se admitindo embargos sob pena de víciojurídico que acarretará
de terceiro. Vou adiante: não subsistirão tam- responsabilidade da Administração. Im-
bém, pelo próprio fato da aquisição não ser de- porta que haja proporcionalidade entre a
rivada, os demais direitos reais de terceiros exis- medida adotada e a finalidade legal a ser
tentes sobre o bem, como o usufruto, o uso, a atingida".
habitação, etc. O aludido pensar é corroborado por Carlos
7. ExtensiJo Ary Sundfeld 18:
Ponto assaz delicado diz respeito à eficácia
espacial da deliberação confiscatória. Melhor "Refira-se, por fim, limite fundamen-
explicando: deverá atingir toda a propriedade, tal ao exercicio da competência para exe-
ou apenas a área afetada ao plantio? cutar materialmente atos administrativos:
A sanção contida na Constituição é de cu- o principio da proporcionalidade, direta-
nho administrativo - embora infrigida pelo Ju- mente derivado dos principios da racio-
diciário por envolver o perdimento de bens - nalidade e da razoabilidade, a que nos
independendo de condenação criminal, a qual referimos no capítulo anterior. Se toda
pode até inexistir l6 . Essa a opção escolhida pela competência é vinculada a uma finalida-
Leio.08.257/91. de, que racionalmente justifica a ação
administrativa, a medida de sua utiliza-
Forçosamente, terá de conformar-se com os ção depende do grau de sua necessida-
postulados punitivos traçados para a Adminis- de para a obtenção dos fins legais. Todo
tração, entre os quais sobressai o cânon da pro- ato - e portanto, toda constrição materi-
porcionalidade, a recomendar, em tom vincuJa~ al- mais intenso que o estritamente ne-
tivo, a adstríção da pena imposta à finalidade cessário à implementação da finalidade
legalmente prevista. buscada é, por isso, ilegitimo".
Comenta Celso Antônio Bandeira de Mello l7 : Embasado em tal princípio, o Colendo Tri-
"A utilização de meios coativos, por bunal Regional Federal da 5.· Região, por sua
parte da Administração, conforme o in- 1.. Turma, em leading case na AC 13. 308-PE,
dicado, é uma necessidade imposta em sufragou, sem embargo de brilhante voto di-
nome da defesa dos interesses públicos. vergente, a tese de que o ideal de concretização
Tem, portanto, na área de Policia, como da reforma agrária nãojustifica a perda total da
em qualquer outro setor de atuação da propriedade, mas tão-só a das glebas utilizadas
Administração, um limite c:onatural ao seu a serviço da droga. A ementa do julgado, da
exercício. Este limite é o atingimento da lavra do em. Juiz Hugo Machado, apresenta-se
finalidade legal em vista da qual foi instí- assim construida:
tuida a medida de policia. Mormente no "CONSTITUCIONAL. CULTIVO DE
caso da utilização de meios coativos, que. PLANTAS PSICOTRÓPICAS. EXPRo-
PRlAÇÃODE GLEBAS. ART. 243 DA 0"/
16 Sem embargo, nilo se olvide a comunicabilida-
88, JURISDIÇÕES CML E PENAL. IN-
de de instâncias evocada no art. 65 do Código de
Processo Penal, ao detenninar fazer "coisa julgada DEPENDÊNCIA. - A expropriação de
no cível a sentença penal que rc:oonhccer ter sido o glebas nas quais é encontrado cultivo
ato praticado em estado de necessidade, em legitima de plantas psicotrópicas tem natureza
defesa, em estrito cumprimento de dever legal ou no punitiva, mas independe de ação penal.
exercício regular de direito". Similarmente, inviável Processa-se no juizo cível e deve levar
se ignore o art. 66 da mesma ordenança codicial, ao em conta o principio da proporcionalida-
estabelecer que "nlo obstante a sentença absolutória de. - O desejo de promover a reforma
no juizo criminal, a ação civil poderá ser proposta agníria, com o assentamento de colonos,
quando nilo tiver sido, categoricamente, reconhecida não autoriza violação do Texto Constitu-
a inexistência material do fato".
11 Curso de Direito Administrativo, Malheíros
cional, que detennina a expropriação das
Editores, 4,· ed., pp. 3661367. 18 Direi/{} Administrativo Ordenador, p. 84.
38
glebas onde forem localizadas culturas zou O plantio da maconha. Por isto é que
ilegais de plantas psicotrópicas. e não o INCRA, para desestimular tais cultivos
de toda a área de terras pertencentes ao ilícitos, deve incluir nos titulos de pro-
responsável por aquelas culturas. - O art. priedade que fornece proa cláusula de
243 da CF188 alberga norma auto-aplicá- rescisão automática do negócio jurídico
vel, e assim podia ser aplicado mesmo respectivo".
antes da Lei n. o 8.257, de 26.11.91. e inde- Discordando do entendimento vencedor, o
pendentemente da ação penal" \9. em. Juiz Francisco Falcão argumentou que, não
Em seu luzido voto, colhe-se a passagem decretada a perda integral da propriedade, o
infra: anelo de reforma agrária, visado pelo Constitu-
"A expropriação, como se disse, é inte, esvaziar·se-á totalmente.
punitiva. e por isto há de ser proporcio- Concessa venia, dissentimos deso;e enten-
nal à falta. Aliás, à justiça está sempre dimento. É certo que a refonna agrária, como
ligada à idéia de proporcionalidade. Ima- vísualizada no Estatuto da Terra (Lei n. o 4.5041
ginemos que é encontrada plantação de 64, arts. 1.0, § 1.0, 16,20, I e 21), repousa num
maconha em duas Fazendas. Numa, o conjunto de práticas tendentes à redução gra-
cultivo ilícito está sendo feito em toda a dual não apenas do latifúndio, mas, })OI igual,
área. Na outra, menos de um por cento do minifúndio, considerado corno o prédio rús-
da área está com aquele cultivo ocupa- tico de área inferior ao módulo rural ou a fração
da. Evidentemente não é justo aplicar aos mínima do parcelamento (Lei n.0 4.504/64, art.
dois proprietários a mesma punição, com 4. 0, TIl e IV; Lei n. o 5.868n2, art. 8. 0, § 1.0). Há
a perda total de suas tenas. Se em uma também o óbice do art. 6S do mencionado di-
Fazenda de cinco mil hectares são en- ploma, a impedir que a divisão de imóvel rural
contrados uns poucos pés de maconha, se faça, para qualquer fim de direito, em dimen-
não se justifica a expropriação da área sões àquelas inferiores 2o .
intei ra. O argumento em contrário SÓ en- No entanto, o fato de o imóvel, ou parcela
contraria fundamento na ideologia mar- deste, ser inferior terrritorialmente a tais lindes
xi sta, contrária ao direito de propriedade. não o livra do confisco alvitrado pelo Texto
Diante de um ordenamento jurídico em Magno. A única ponderação a ser feita, no in-
que esse direito é garantido, é inadmissí- tuito de harmonizar a ação administrativa aos
vel. O único caso até agora apreciado pelo institutos vigentes, é a de que o perdimento
TRF da 5.& Região, foi continuada a sen-
terá seu espeque no parágrafo único do art. 243
tença do Juiz que determinou a expropri- da CF, abrangedor de todo e qualquer bem usa-
ação das terras em que se localizavam do a serviço de crime de tráfico de entorpecen-
culturas ilegais de maconha. Foram rejei- te, cuja destinação é diversa da refonna agrária.
tados os argumentos, que eram muitos,
dos proprietários, que pretendiam man- \érificada tal situação, remanescem à União
ter as suas terras. E, os argumentos do dois caminhos, a saber: a) alterar, na forma dos
Governo que pretendia expropriar as Decretos TI. Q162.504/68 (arts. 1.0, 2.0 e 4.0:> e63.0581
áreas totais das propriedades, e não ape- 68 (art. 1.0). a destinação do bem para uma fina-
nas "as glebas onde foram encontradas
culturas ilegais de plantas psicotrópi- 10 Essa proibição - advirta-se - no esteio do de-
cas". como dizem a Constituição e a Lei. cidido pelo Sumo Pret6rio (RE 78.048-SP, I." T., /lC.
É importante observar que naquele caso un., ReI. Min. Aliomar Baleeiro, RTJ 73/860; RE
não se tratava de grandes Fazendas, mas 87.013-MG e 92.626-7-MG), é absoluta, valendo
de pequenas propriedades. cujos donos, para as transmissões inter vivos e causa mortis. se-
responsabilizados pelo plantio ilegal, re- quer liberando a possibilidade de extinção do condo-
ceberam aquelas terras do Governo do mínio. Por outro lado, a jurisprudência não tem aco-
Estado de Pernambuco assistido pelo lhido pleitos de usucapião de imóveis de vocação
agrária, sob quaisquer de suas modalidades (extraor-
INCRA exatamente em função da refor- dinário, ordinário e especial), quando o lote usucapi-
ma agrária. Assim, pelo menos em rela- endo for inferior ao módulo rural ou a fração mínima
ção a este caso já apreciado, pode-se afrr- de parcelamento. por contrariar o objetivo, de ordem
mar que foi a reforma agrária queviabili- pública. delineado pelo art. 65 do Estatuto da Terra.
Consultar RJTJESP 90/335, 123/226 e 1361300, e
19 Julgamento em 39.94. RT 652/65.
lidade urbana. alienando-o. posteriormente, a 9. Destinatários
terceiros na forma do art. 4.° da Lei n.o 7.5601 Na hipótese do art. 243, caput. os bens con-
86 21 , cuja recepção foi reconhecida pelos tribo- fiscados serão utilizados pela União, em cola-
naise pelo Decreto n.o 577192 (art. 8.°, parágrafo boração com o INeRA, se possível dentro do
único); b) persistindo ~ta intenção de patroci- prazo de 120 (cento e vinte) dias do trânsito em
nar refonna agrária. poderá a União, nos tennos julgado de sentença, na execução de planos de
do art. 15, parágrafo único, da Lei n.o 8,257/91, reforma agrária.
ao depois de agregrar a gleba ao seu patrimô-- Penso que, in casu, aplicar-se-ão, no que
nio, desapropriar a parte restante, escolhendo couber, as normas da Lei n.08.629, de2S.2.93,
entre a desapropriação ordinária por interesse relativas à preferência da área dos assentamen-
social, facultada pelos arts. 5.°, XXI~ da CF, e tos (art. 17), ao modo de alienação (titulo de
2.°, I a 11I, da Lei n.04.132/62, efetivada com o domínio ou concessão de uso, inegociáveis por
pagamento de prévia e justa indenização em dez anos (art. 18), à ordem de preferência para a
dinheiro, ou a desapropriação - sanção regula- aquisição (art. 19, I a IV), proibições para adqui-
da pelo art. 184 da Lei Maior, Lei n.o 8.629193 e rir (art. 20), etc.
Lei Complementar n.o 76/93, caso não existam De observância compulsória também os
as situações constitucionais ou legais estorva· arts. 2 I e 22, da referida lei, ao prescreverem
doras de seu exercicio. que os contemplados assumirão O compromis-
8. O parágrafo único do art. 243 da CF so de explorar pessoalmente, ou através de seu
Eis a dição do prescrltor em epígrafe: núcleo familiar, o imóvel, bem assim que, no
"Todo e qualquer bem de valor eco· inadimplemento das condições assumidas, en-
nômico apreendido em decorrência do tre as quais a de empregar o imóvel na produ-
tráfico iJicito de entorpecentes e drogas ção de alimentos ou medicamentos, poderá o
afins será confiscado e reverterá em be- concedente resolver, de pleno direito, o contra-
neficio de instituições e pessoal especi- to, revertendo em seu favor o bem.
alizados no tratamento e recuperação de Vdl.endo-se ao parágrafo único do art 243
viciados e no aparelhamento e custeio da CF, nota-se que os bens reverterão, ora em
de atividades de fiscalização, controle, beneficio de instituições especializadas no tra-
prevenção e repressão do crime de tráfi~ tamento e na recuperação de viciados, ora na
co dessas substâncias". mantença das atividades de fiscalização, con-
Há, em relação ao caput do art. 243 da Cf, trole, prevenção e repressão dos crimes de trá-
nítida ampliação da providência inicialmente fico de entorpecentes.
arbitrada, no sentido de que todos os bens - e Fica o administrador com a opção de, se
não só as glebas - utilizados como instru~ conveniente ao interesse público, poder utili-
menta ou producta sceleris do tráfico de en- zar as coisas perdidas, no exercicio das ativida-
torpecentes serão confiscados em prol da des elencadas constitucionalmente ou, caso tal
União. Erigiu o nível magno o que continua não aconteça, aliená-las em compasso com O
no art. 34, caput, e § 2.° da Lei n.o 6.368176, art. 4.° da Lei n.o 7.560/8622 , cujo produto inte-
só que com a diferença essencial de o con- grará os recursos do Fundo de Prevenção, Re-
fisco não mais resultar da condenação crimi- cuperação e de Combate às Drogas de Abuso -
nal, mas de demanda específica, disciplina- FlJNCAB.
da, ausente qualquer incompatibilidade, pela Tais recursos serão destinados, enunciam
Lei n.o 8.257/91. os incisos do art. 5.° da lei em exame, nos se-
A qualidade de autor é da União, não sen~ guintes objetivos:
do, à falta de imóveis, imperiosa a citação do
cônjuge da parte ré. "I - aos programas de formação pro-
fissional sobre educação, prevenção, tra-
Versando sobre coisas mobiliárias, entendo tamento, recuperação, repressao, contro-
não subsistir razão para a perícia. le e fiscalização do uso ou tráfico de dr0-
A obtenção do domínio, pela União, é igual- gas de abuso; II - aos programas de edu-
mente, de feição originária. cação preventiva sobre o uso de drogas
de abuso; III - aos programas de escla-
21 TRF, 5.' Reg., 1.' 1., REü 0504902-219O-PE,

ac. un., ReI. Juiz Ridalvo Costa, DJU, Seção n, edi- 22 A lei susomcncionada teve sua execução regu-
ção de 7.6.91, p. 13.069. lamentada pelo Decreto n." 95.650, de 19.11.88.
recimento ao público; IV - às organiza- trópicas não consentido pelo Ministério da Saú-
ções que desenvolvam atividades espe- de. para fins medicinal ou de pesquisa, atingin-
cificas de tratamento e recuperação de do tanto a propriedade quanto a posse;
usuários; V - ao reaparelhamenlo e cus-
. ,c) a inf.lifio do confisco emana de processo
teio das atividades de fiscalização, con- jUdlClal, ajUIzado pela União, perante a Justi-
trole e repressão ao uso e tráfico ilícitos ça Federal, o qual tomará o rito estatuído na
de drogas e produtos controlados; VI - Lei n.o 8.257191;
ao pagamento das cotas de participação d) a Lei n.o 8.257/91, no que conceme à ma-
a que o Brasil esteja obrigado como mem- teriali7.ação do art. 243, caput, da CF, trouxe a
bro de organismos internacionais ou re- lume ação real imobiliária, sendo impositiva a
gionais que se dediquem às questões de
~r~ução ~e prova pericial, concebida para de~
drogas de abuso; VII - à participação de
hmltar as areas afetadas aQ culti.va oombativ<r
e) a movimentação do aparatojudicante d~
representantes e delegados em eventos
realizados no Brasil ou no exterior que
Es~ado, no caso do art. 243, caput, da Lei das
versem sobre drogas e nos quais o Brasil
tenha de se fazer representar; VIII - aos LelS, guarda adstrição ao postulado da propor-
custos de sua própria gestão". cionalidade, de sorte a não abranger as áreas
não vinculadas, direta ou mediatamente, ao
A alienação de tais bens será promovida plantio proibido;
direta ou indiretamente, em hasta pública, pel~
Conselho Federal de Entorpecentes - CüNFEN t) pelo parágrafo único do art. 243 da Lei
pod~ndo, com a devida autorização judicial, se; Maior, assentimento magno para o manuseio
reahzada antes do trânsito em julgado da sen· do poder-dever confiscatório estende-se a todo
tença, desde que se cuide de bens perecíveis e qualquer bem que sirva como instrumento ou
o~ ~e guarda dispendiosa, ficando as impor- produto do crime e tráfico de entorpecente;
tánclas do lanço vencedor, custodiadas em con- g) a aquisição do domínio dos bens enunci-
ta aberta em nome do citado colegiado adminis- ados no art. 243, capul, bem como no seu pará-
trativo e, igualmente, à disposição do Judiciário. grafo único, ambos da Constituição de 1988,
10. Conclusões ostenta color originário, desvinculando-se de
quaisquer encargos constituídos anteriormen-
Ao fim do exposto, conveniente sejam elen- te ao trânsito em julgado da sentença;
cados alguns remates:
h) as coisas confiscadas, ora se destinam à
a) o art. 243, caput, do Diploma Básico, in- execução de planos de reforma agrária (art. 243,
troduziu na órbita jurídica tipo corporificador caput, Cf), ora colimam beneficiar as institui-
de confisco, pois o seu império dá·se sem ne- ções especializadas na terapêutica de viciados,
nhuma compensação financeira; ou na repressão do tráfico de entorpecentes
b) incide sobre imóveis com destinação ru- (art. 243, parágrafo único, CF).
ral, onde constatado cultivo de plantas psico-

41
Ministério Público do Trabalho:
Prerrogativas do ofício são comunicáveis
à sua atuação como parte?

la..t PnAS

Fmen/a: As prerrogativas previstas na Lei Com-


plementar n," 75. de 20.5.93 são inerentes à atividade
do Ministério púhlico. como órgão essencial à fun-
ção jurisdicional (CF. art 127). ou seja. a de órgão do
Estado Integrante da prestação jurisdicional (Custos
Legis) e não se comunicam. por evidência lógica e
}uridí~\\. \\(l e'\et~ki(l f'&e\\\\a\i'l(l de part-e - n:.di'ri'lefl-
sionamenlo da natureza da INSTITLnÇÃO dado pela
Constituição de 19RR -. sob pel1ll de trair-se pelo prin-
cípio reitor do pensamento màgico. segundo o qual
não se distingue a aparencia da essência. pois "o que
tiver ficado em contato com algo. terá intercam biado
suas propriedades com as deste algo",(Mira y Lopez)

sUMÁRIo
r Das diretrizes hermenêuticas, 2, Do argumen-
to da e:mmcialidadr! da imtitllição. 3, Da intimação
pessoal. 4. Da Lei Complementar n. o 75, de 20.5.93.
5. Da questão da nulidade. 6. Da.t conclusões.

I. Das diretrizes hermenêuticas


Do pecado de erro. ninguém pode declarar,
com soberba. que está isento. Muito menos ain-
da o cientista. o filósofo ou jurista.
O fundamento lógico da verdade u.ão se en-
contra na mera convicção ou na aparência de
verdade, Se assim fosse. com apoio na história
e testemunho de quase toda humanidade, de-
ver-se~ia reconhecer como verdade patente. in-
conteste. histórica. pacífica. a observação fla-
grante de que o Sol gira em tomo da Terra.
A verdade exige além da evidência aparen~
te. o fundamento da razão. o que implíca a utili-
zação dinâmica de todas as formas de observa-
Jose Severino d<l Silva Pitas é Juiz do Trabalho. ção e de interpretação: evolutiva-histórica. gra-
Presidente da 2· Junta dc Conciliação c Julgamento matical. lógica. sistemática e teológica, sem per-
de Franca (SP). escritor e professor em curso de ex-
tensão universilária em Direito material e processual
der de vista o objeto próprio da Ciência Juridica
do trabalho da Faculdade de Direito de Franca, e o raciocínio predominantemente dedutivo,

Br. .III••. 32 n. f26l1br./Jun. f995 43


aplicável ao Direito Posto. lação à atuação do Ministério Público na Pri-
Na construção da compreensão do Direito, meira Instância, qual seja, a da completa ausên-
não raro. detecta-se a presença de um "vírus cia de membros locais. Esta circunstância cria,
desvitalizante" da higidez do raciocínio, trans- evidentemente, uma realidade diferente e conse-
mitido pela herança pré-lógica de nossa consti- qüênciasjurldicas distintas na ordemjuridica.
tuição, que pode ser ilustrada pelos "princípios Embora o Ministério Público seja a mesma
reitores do pensamento lógico", segundo os instituição, no exercício de Custos Legis, ou
quais: 1 como autor de açdo civil pública, estas duas
a) "cada objeto ou força produz seus funções são incomunicáveis, têm objetos e fi~
similares" (objetos parecidos e forças se- nalidades evidentemente incompativeis.
melhantes confundem-se em suas pro- As prerrogativas da função própria do Es-
priedades, tal que aparência e essência tado que se atribui ao Ministério Público no
são a mesma coisa); exercício do oficio de fiscal da lei, logicamente,
b) "tudo que tiver ficado em contato não se comunicam e juridicamente não podem
com algo, terá intercambiado suas pro- ser comunicadas ao exercicio que o Ministério
priedades com as desse algo" PúbUco pratica como órgão postulante da pres-
tação jurisdicional. Aqui seu tratamento deve
O Ministério Público esteve em contato por ser exclusivamente, e por eqüidade, como o
todo tempo de sua existência, praticamente, ao destinado a todos os jurisdicionados.
lado dos juízes ou tribunais, exercendo funções O argumento de que "o Ministério Público
próprias do Estado, que tradicionalJIlente tem é instituição essencial à função jurisdicional do
sido o de, paralelamente, ao oficio do magistra- Estado", por si SÓ, é insuficiente, porque a ex-
do, dar pareceres: atos de complementação da tensão deste atributo à situação de parte, por
função jurisdicional. elementar coerencia, transmitiria a todos osju-
Em razão disto, a Ordem Juridicaconferiu- risdicionados, quanto parte no processo, tam-
lhe, por necessidade do oficio, algumas prerro- bém a essencialidade à função jurisdicional do
gativas, dentre as quais a de não valer a intima- Estado e, portanto, o direito ao tratamento equi-
ção feita por mera publicação no Diário Oficial. valente.
Questão até de exigência prática, pois o mem- 3. Da intimaçdo pessoal
bro do parquet, na qualidade de fiscal da lei, Dispõe o artigo 236, parágrafo 2.°, do CPC,
sempre permaneceu em contato com o juizo que a intimaçdo do Ministério Público, em
por onde houve a tramitação da açdo. qualquer caso, será feita pessoa/mente.
Novos tempos. Novos valores. ~lhas ou
novas interpretações? Não há qualquer incompatibilidade desta
determinação com o disposto no artigo 841,
A nova Constituição revolucionou, redi- parágrafo primeiro da CLT, porque o sistema de
mensionou, revalorizou a atuação do Ministé- comunicação no processo do trabalho sempre
rio Público e lhe deu novas competências, nova esteve à frente do processo comum, e desde
natureza sua criação, não só o Ministério Público, bem
As funções inerentes de órgão do Estado como todas as partes, em primeira instdncia,
não podem intercambiar suas propriedades para têm sido intimados pessoalmente.
o exercicio das novas funções e novas circuns- A leitura sistemática do parágrafo segun-
tâncias, sem a conotação de indevida distinção do, com O caput e demais parágrafos, toma evi-
entre destinatários de tratamentos iguais. Prer- dente que a regra geral das comunicações no
rogativas de função de Estado, por absoluto processo comum é da comunicação impessoal,
impedimento lógico, não se comunicam à ativi- isto é, por publicaçtlo no órgdo oficial.
dade de outras funções, sob pena de aceitação A comunicação processual feita por via
do absurdo juridico. postal, evidentemente, é comunicação pessoal.
2. Do argumento da essencialidade da ins-
tituiçdo Apesar de a interpretaçlo dada por Pontes
de Miranda ao parágrafo primeiro do artigo 236
A organização da Justiça do Trabalho tem do CPC dever ser entendida para circunstância,
caracteristica diversa da Justiça Comum em re- tempo e valores diversos daqueles produzidos
após a revolução operada pela Constituição nas
I MIRA Y LOPEZ, Emllio. O pen.samento. Rio. funções do Ministério Público, a partir de
Ed. Teoonprint, 1964, p. 32.

".ri.,. lI. 'nforma,," ....I.Iat'''.


5.10. 1988, considerando-se, inclusive, a inexis- 6. Das conclusões
tência de membros do Ministério Público na L 3 ) O parágrafo segundo do artigo 236 do
Primeira Instância da Justiça do Trabalho, suas CPC nega a intimação ao Ministério Público pela
conclusões são compatíveis com o disposto no regra geral inscrita no caput, qual seja, pela 00-
;lartigo 841, parágrafo 1.° e artigo 778 da CLT. 2 municação dos atos processuais por órgão da
4. Da Lei Complementarn. o 75. de 20.5.93 imprensa
Pelos fatos e argumentos acima examinados, O artigo 841, parágrnfo primeiro, da CLT, na
verifica-se. com reforço da própria literalidade mesma esteira, determina que se faça a comuni-
da Lei Complementar n.o 75/93, a procedente cação processual pessoalmente. Assim se pra-
distinção que a Ordem Jurídica faz quanto ao ticam as intimações na Primeira Instância Tra-
oficio obrigatório e à atividade facultativa do balhista.
Ministério PUblico. 2.3 ) A natureza do Ministério Público confi-
É prerrogativa dos Membros do Ministério gurada pela Nova Constituição apresenta níti-
Público da União: da dualidade:
"receber intimação pessoalmente nos a) como órgão do Estado, com fun-
autos em qualquer processo e grau de ção essencial à complementação da ati-
jurisdição nosfeitos em que tiver que ofi- vidadejurisdicional, no exercício de Cus-
ciar" (artigo 18, 11, h da Lei Complemen- tos Legis, e nesta qualidade a lei lhe con-
tarn.o 75, de 20.5.93). fere prerrogativa de órgão do Estado,
O termo oficiar, como tradicionalmente usa~ sendo seu oficio obrigatório;
do, deve referir-se à atuação do Ministério Pú- b) como titular do exercício de ações
blico como órgão essencial à ~nção jurisdicio- civis públicas, como parte no processo,
nal do Estado (Custos Legis). E o que se deduz e nesta qualidade destinatário da presta-
do imperativo: "nos feitos em que o Ministério ção jurisdicional, evidentemente, não
Público tiver que oficiar" exerce atividade essencial à função juris-
As ações em que o Ministério Público tenu dicional, porque é mera parte, havendo a
faculdade de agir ou não agir, não são abrangi- Constituição redimensionado a institui-
dos pela garantia. ção, conferindo-lhe autonomia e amplas
atribuições postulatórias.
Deve-se enfatizar que não se pode conferir
o mesmo tratamento àsfunções de Estado, ine- As prerrogativas do exercício de Custos
rentes ao oficio do Ministério Público, como Legis, lógica e juridicamente, não lhes são co-
Custos Legis e à atuação de órgão postuJante municáveis (principio reitor do pensamento ló-
de direitos civis perante o Estado. gico, a contrario sensu, citado por Mira y Lo-
pez - confira nota 1).
Uma coisa éfunção complementar da ati-
vidade jurisdicional. Outra coisa é exercício 3.3 ) O fundamento de validade da interpre-
próprio da parte que vai receber a prestação tação da Norma Jurídica não é extraído de sua
jurisdicional. literalidade, exclusivamente, além da aplicação
5. Da questiJo da nulidade da globalidade dos diversos métodos científi-
cos, a exegese sujeitar-se-á ao crivo do neces-
O decreto de nulidade de ato processual, sário "postulado de não-incidência do efeito
no sistema do Direito do Trabalho, só se legiti- absurdo, impossível, ou eficaz".
ma pela evidência de manifesto prejuízo à parte
litigante (CLT, 794). Na aplicação da lei dever-se-á levar em con-
Este prinCÍpio matriz do sistema de nulida- ta que:
de, evidentemente, afeta a interpretação da apa- a) a interpretação dada por Pontes de
rência de direito. O fundamento flui dos prin- Miranda (op. cit., nota 2) à intimação pes-
cípios vetores do próprio processo, que confe- soal do Ministério Público està positiva-
rem nature7~ de instrumentalidade, certeza, se- da no artigo 841, parágrafo 1.0, da CLT;
gurança, economia e celeridade, principalmen- b) a Lei Complementar, ao criarprer-
te e com mais intensidade ao processo do tra- rogativa ao Ministério Público, presume
balho. o exercício de seu oficio, junto ao órgão
2 PONTES DE MIRANDA. Comentários ao
jurisdicional, circunstância inexistente na
CPc. Rio. Ed. Forense, 1974,2.' edição, Tomo m, Primeira Instância da Justiça do Traba-
p.301 . lho;
.....". a. 32 n. 126 ....Jjllfl. 1995
c) os atos objetos da comunicação se o sistema de nulidade adotado no pro-
processual que se sllieitariam a forma cesso do trabalho, pelo qual "só haverá
especial devem ser restritos a fatos cuja nulidade quando resultar dos atos, ma-
omissão possa importar prejuizo à fun- nifesto prejuizo à parte" (deduzido do
ção estatal do órgão; artigo 794 da CLT).
d) se é possível o uso de via mais 4.") A Lei Complementar~n. °75, de 20.5.1993,
eficaz (para apedeiçoamento do artigo confere aos membros do Ministério Público a
841, parágrafo Lo da CLT), pela certeza garantia de receber intimação pessoalmente nos
da comunicação, que se faça a intimação autos dos feitos em que tiver que oficiar (art.
por mandado, em vez da remessa dos 18, n, letra h).
autos para vista fora da "comarca", que Ora, os feitos em que o Ministério Público
secon&titui "atojurídico exótico", medi- tem que oficiar, na área civil, são OS que exigem
ante colheita de ciência com data jlexi- a complementação da prestação jurisdicional,
vel e duvidosa, além da burocracia de através da atividade de Custos Legis. Os de--
eventual extravio ou demora dos autos; mais processos dependem da iniciativa ou não
os autos do processo devem estar abso- do Ministério Público e neles atua não como
lutamente sob o controle da Secretiria órgão do Estado, mas como parte que recebe a
da Junta; prestação jurisdicional.
e) "os autos dos processos da Justi- Logo, a lei não comunica as prerrogativas
ça do Trabalho não poderão sair dos car- inerentes ao oficio de Custos Legis à sua atua-
tórios ou secretarias, salvo se solicita- ção como parte, função comum a todos os ju-
dos por advogado regularmente consti- risdicionados.
tuído por qualquer das partes, ou quan- Aextensão de prerrogativa própria do Esta-
do tiverem de ser remetidos aos órgãos do a função comum. ainda que exerpida por ór-
com{ICteotes, em caso de recurso ou re- gão público, não é llrerrogatiVa. E privilégio
quisição" (redação dada pela Lei 0.° condenado pela história das civílizaçôes e pela
6.598, de 1. 0 de dezembro de 78, DOU consciênciajuridico-democrática.
5.12.78, ao artigo 778 da CLT). A lei pode até criar prerrogativa, por exce-
Apenas na hipótese de remessa dos ção, mas o juiz não pode, por interpretaçi10
autos em caso de recurso ou requisição, extensiva. admiti-la, por ser incompativel. ile-
a secretaria deixa de exigir o registro de gal, inconstitucional, retrógrada e ilógica, ante
carga dos respectivos autos no liVTo a subversão dos princípios de eficácia, simpli-
competente, subscrito pelo respectivo cidade e segurança dos atos processuais; em
procurador. presença da patente violação da literalidade da
Por conseguinte, não se vê na legis- norma processual; em face do flagrante desvio
lação permissivo para a saída dos autos da ordem constitucional; diante da má interpre-
da secretaria da Junta por outra via. tação da Lei Complementar, perante o retroces-
so das conquista~ democn\ticas con\Ia o abu-
Não se pode. também, deduzir deste so de privilégios, e pelo elementar erro de racio-
dispositivo a possibilidade juridica de cínio induzido pelo princípio reitor do pensa-
intimação ao Ministério Público, median- mento pré-lógico que admite o intercâmbio de
te remessa dos autos de uma cidade para garantia excepcional de função obrigatória de
outra, sem violação do artigo 778 e do Estado à atividade facultativa própria de todos
artigo 841, parágrafo I. o. ambos da CLT; os jurisdicionados.
1) que na aplicação da lei, considere-

...
Barreira legal nos sistemas eleitorais
proporcionais

RICAROO RODRIGUES

sUMÁRIo

I. Introdução. 2. Definindo a cláusula de barrei-


ra. 3. A clár~sula de barreira em perspectiva compa-
rada. 3. I. Alemanha. 3.2. Suécfa. 3.3. Espanha. 3.4.
França. 3.5. Dinamarca. 3.6. AUslria. 3.7. Holanda.
3.8. Itália. 3.9. Grecia. 3.10. Israel. 3. JI. República
Tcheca. 3. I 2 Polônia. 3. 13. Hungria. 4. A cláusula
de exclusão na legislação brasileira. 5. Implicações
do estabelecimento da cláusula de barreira.

1. Introdução
Muitos estudiosos consideram o sistema de
eleição proporcional a alternativa mais próxima
dos princípios fundamentais da representação
política. Para Dieter Nohlen, por exemplo, isso
acontece porque OS sistemas proporcionais "tra-
tam de reproduzir a imagem mais fiel do eleitora-
do, a partir do ponto de vista dos partidos polí·
ticos'" . Segundo Arend Lijphart, os sistemas
eleitorais fundamentados no modelo majoritá-
rio. sejam através de métodos de maioria abso-
luta ou relativa, "são um reflexo perfeito da filo-
sofia majoritária: ganha o candidato eleito pelo
maior número de votantes e o resto do eleitora-
do fica sem uma representação" . Por outro lado,
a intenção básica da representação proporcio-
naI é, precisamente, "evitar este problema com
uma adequada representação das maiorias c
minorias e traduzir adequadamente votos em
assentos parlamentares, impedindo que a re-
presentação dos partidos peque por exígua ou
excessiva"2.
Ricardo Rodrigues é Assessor Legislativo da Não existem fórmulas perfeitas de sistema
Câmara dos Deputados. Cientista político graduado
pela Califomia State University Northridge e mestre I NOHI .EN. Dietl:-T. Sistemas elec!oTll{es de! mun-
em ciência política pela Universidade Federal de Per- do. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales.
nambuco. Entre 1985 e 1994. lecionou no Departa- 1981, p. 363.
mento de Comunicação da Universidade Católica de 2 LIJPHART. Arend. As democracias contem-
Pernambuco. em Recite. porâneas. Lisboa: Gradiva, 1989, p. 201.

Sr••flla a. 32 n. f 26 ..../lun. f 995 47


proporcional. Paises diferentes adotam diferen- papel da instituição da barreira miníma nos sis-
tes sistemas que refletem peculiaridades políti- temas de eleição proporcional, a partir de uma
cas e históricas inerentes a cada sociedade. Não perspectiva comparada. Começaremos por ana-
há, tampouco, garantia de proporcionalidade lisar a experiência de alguns paises que empre-
efetiva nestas fÓnnulas. Em um estudo recente, gam tal instrumento em suas eleições proporci-
Lijphart averiguou que a desproporcionaJida- onais e concluiremos discutindo os possíveis
de, em maior ou menor grau, é uma constante efeitos da instituição da cláusula de barreira na
em todas as fórmulas conhecidas de sistema eleiçâo para a Câmara dos Deputados no Brasil.
proporcionaP. 2. Definindo a cláusula de barreira
No Brasil, essa desproporcionalidade assu- Embora algumas fórmulas de sistema de dei-
me dimensões singulares. De acordo com Soott ção majoritária estabeleçam exigências análo--
Mainwaring, o sistema de representação pro- gasó, o requisito de uma barreira mínima de v0-
porcionaI no Brasil é. provavelmente. o mais tos ou de uma cláusula de exclusão é próprio
desproporcional do mundo. Citando Maria Cam- dos sistemas proporcionais. Sua instituiçAo
peno de Souza, Mainwaring afirma que o siste- define ''um ou alguns limiares de votação aquém
ma brasileiro "foi criado para super-representar dos quais o partido é excluido da competição
os Estados menos populosos, que são geral- eleitoral"7.
mente os mais pobres, e sub-representar os mais Evidentemente, o objetivo do instrumento
populosos, especialmente São Paulo"4. da barreira mhúma é, segundo Tavares, "deter a
A questão da desproporcionalidade não é, tendência (dos sistemas proporcionais) deatri-
contudo, o único problema presente nos siste- buir representação parlamentar a partidos que
mas eleitorais ditos proporcionais. Como os sis- aglutinam minorias demasiado escassas, sem a
temas de representação proporcionaI tendem a minima expressão do ponto de vista da sua den-
fomentar a proliferação extremada de partidos sidade relativa no conjunto da vontade coleti-
politicos~. é muito comum, por exemplo, o pr0- va manifestada eleitoralmente"s. A barreiIa mi-
blema da fragmentação do sistema partidário. nima é concebida como um freio à proliferaçAo
Tal ftagmentação, carncterizada pelo pluriparti- excessiva de pequenos partidos, sem represen-
darismo exacerbado, com um número elevado tatividade eleitoral, seja no nivel nacional como
de partidos pequenos, muitos deles de "legen- no regional.
da de aluguel", traz embutido o potencial de A exigência da cláusula de barreira nos pa-
minar o consenso parlamentar e influir negati- ises que adotam este instrumento em seus res·
vamente na govemabilidade de um país. pectivos sistemas eleitorais, em geral, toma a
Com este riscoem mente, um relevante con- fatroa deum percentual mínimo óo total Ótvo-
tingente de paises que adotam sistemas pro- tos computados em determinada eleição. Tal
porcionais de eleição exige dos partidos ou can- percentual pode ser bem reduzido, como nos
didaturas envolvidos nos pleitos a obtenção
de uma quantidade núnima de votos. para que 6 De Carreras e Vallés citam o sirtcma e1eitorB1
tenham o direito de participar da distribuição francês de 1958 como exemplo. Ver DE CARRE·
de assentos parlamentares. Trata-se de uma RAS, Francesc, VALLÉS, Josep M. Los ekcciQ1fQ;
barreira minima legal, também chamada de cláu- intN1ducciárr ti los si.slemClS ekctorales. Barcelona:
sula de exclusão, que não sendo vencida por de- Editorial Blume, 1977, p. 83. No Brasil, a Lei n."
terminado partidJ, e1imina-o, autornaticarnem da 8.713, de 30 de lletembro de 1993, estabeleceu em
repartição das vagas disputadas na eleição. seu íncíso primeiro do perágrafo 1." do art. 5." que
O objetivo do presente trabalho é analisar o "só poderia registrar candidato próprio à eleiçlo para
Presidente e Viee--Presidente da República... o parti-
do que tenha obtido, pelo menos, cinco por cento
1 LIJPHART, ATend. lhe Palitical Consequen. dos votos apurados na eleiçlo de 1990 para a Cima-
ces of electoTIII Iaws, 1945-85. AmerlcQn Política/ TIl do, Depurados, nlo computados os brancos e os
Scimce Review, v. 84, n. 2,june 1990, pp. 481496. nulos, distribuidos em, pelo rntnos, um terço dos
4 MAINWARlNG, Scott. Pollticos, partidos e Estados". Este dispositivo da lei, entretanto. foi con·
sistemas eleitorais; o Brasil numa perspectiva com- siderado inconstitucional pelo Supremo Tribunal
parativa. Novos Eshldas, n. 29, maJ'ÇO 1991, p. 36. Federal.
5 InúmerOs cientistas políticos compartilham des- 7 TAVARES, José Antonio Giusti. Sistemas elei-
sa visão. Duverger, inclusive, qualificou tal fenôme- torais rras democraciClS contemporâMlU; teoria, ins-
no como uma ~autêntiça lei sociológica". Ver LI- tituições, estl'atégia. Rio de Janeiro: Relumc-Duma-
JPHARD, Atend. As democracias corrtemporâne- ri, 1994, p. 45.
os, ibid, p. 209. I Ibid.
casos da Áustria, Bélgica e Holanda. cujas bar- cisão da fórmula - a povoar a representação
reiras não chegam a exceder 0,8 por cento do parlamentar de partidos muito pequenos, soci-
total do escrutínio. Há países onde a cláusula ológica e politicamente irrelevantes" 12.
de barreira fica entre os quatro e cinco por cen- 3. A cláusula de barreira em perspectiva
to dos votos federais, como na Suécia e na Ale- comparada
manha. No caso alemão, todavia, vale lembrar O instrumento da cláusula de barreira míni-
que a obtenção de três assentos por via majori- ma faz parte dos sistemas de representação pro-
tária garante ao partido seu acesso ao Bundes- porcionai de um significativo número de paí-
tag. Há também casos extremos, como o da Gré- ses. As fórmulas específicas de barreira adota-
da. cuja lei eleitoral exige que os partidos con- das mudam de país para país, mas o objetivo
sigam mais de dezessete por cento dos votos principal da inclusão deste instrumento no sis-
no nível estadual para poderem participar da tema eleitoral é idêntico: aperfeiçoar a represen-
distribuição geral de assentos9 . tação proporcional, reduzindo seus efeitos mais
Este último exemplo serve para evidenciar adversos. A seguir, descrevemos as fórmulas
como a exigência de uma barreira mínima pode presentes na legislação de alguns países sele-
alterar a proporcionalidade prevista pelo siste- cionados.
ma de representação proporcional. Afinal, quan- 3.1. Alemanha
to maior a exigência da barreira, mais dificil fica Não ocorrem discusSÕes sobre cláusula de
para os partidos pequenos terem acesso à re- barreiras no Brasil sem se mencionar o exemplo
partição das vagas parlamentares. O dentista da legislação eleitoral alemã. Este foi, certamen-
político Renato Lessa afirma, inclusive, que, se te, o caso durante os debates da revisão cons-
os brasileiros minimalistas quisessem um parla- titucional em 1994 e continua a ser o caso nos
mento composto por apenas dois partidos, bas- debates acadêmicos sobre o assunto veicula-
taria "propor uma cláusula de exclusão de de- dos pela imprensa nacional I3 . Em ambos os ca-
zessete por cento"IO. sos, a legislação alemã é sempre citada como
Os críticos da cláusula de barreira não es- um exemplo de fórmula que funciona bem.
tão equivocados quando observam que este A cláusula de barreira no sistema eleitoral
instrumento introduz um elemento de despro- alemão toma corpo no parágrafo 6 do art. 6.° da
porcionalidade no sistema eleitoral completa- Lei Federal de Regime Eleitoral da Alemanha.
mente contrário aos próprios fundamentos da Segundo esse parágrafo, "na divisão das va-
representação proporcional. Afinal, o intuito gas entre as listas regionais, somente se levará
dos sistemas proporcionais não é outro senão em consideração os partidos que tenham obti-
tomar a eleição mais justa, refletindo, através do um mínimo de cinco por cento dos segun-
da proporcionalidade, a vontade do eleitor. Já a dos votos validamente emitidos em todo o ter-
inserção da barreira reduz o potencial de pro- ritório federal, ou cujos candidatos individual-
porcionalidade absoluta dos pleitos, ao excluir mente tenham conseguido assentos em três cir-
partidos de pouca expressão eleitoral. cunscrições eleitorais, pelo menos"14. Isto é, a
Para Nohlen, contudo, trata-se de uma op- lei detennina uma cláusula de exclusão precisa
ção consciente de restringir o princípio da pro- de cinco por cento, mas, dada a natureza mista
porcionalidade pura "em favor de critérios polí- do sistema alemão, com eleíção majoritária de
ticos e funcionais, como a capacidade de traba- alguns representantes distritais, abre-se a ex-
lho e funcionamento do Bundestag"lI. Tava- ceção para aqueles partidos que tenham asse-
res, por sua vez, acredita que, "dentro de certos gurado pelo menos três assentos parlamenta-
limites, a cláusula de exclusão não só é consis- res em pleitos majoritários.
tente com a representação proporcionaI, como A barreira de cinco por cento da legislação
nela introduz um elemento, em alguns casos
essencial, capaz de contrabalançar a tendência 11 TAVARES, José Antonio Giusti. Ibid, p. 46.
- que, no sistema eleitoral, resulta da combina- II Exemplos recentes de debate através da im-
ção entre a magnitude da circunscrição e a pre- prensa são os artigos de LESSA, ibid, e RODRI-
GUES, Leôncio Martins. Fragmentação, governabi-
9 DE CARRERAS, VALLÉS, ibid, p. 83, inclui lidade e consenso. Folha de São Paulo, 12 de feverei-
breve; discussão sobre percentuais mencionados. ro de 1995, pp. 113.
In LESSA, Renato. A teoria da representação mí- 14 R.F. ALEMANA. Ley federal de régimen elec-
nima. Folha de São Paulo, 3 de fevereiro de 1995, toral de 7 de mayo de 1956, texto revisado de 1 de
pp. 113. septiembre de 1975. Bolehn de Legislación Exfran-
11 NOHLEN, Dieter. Ibid, p. 138 jera. set./dcc. 1990, p. 272.

Br. .llla •. 32 n. 126 ".//un. 1f1f15


eleitoral alemã está constitucionalmente con- d 'équili~rage )20.
solidada. Nohlen menciona que, em várias de 3.6. Austria
suas sentenças, o Tribunal Federal Constih.Jcio- De acordo com De Carreras e Y.111és, basta
nal tem reiteradoacorNitucíonalidadeda mencí- ao partido obter um posto na distribuição de
onada barreira, declarand~a inclusiv~ compatí- assentos distritaispara ter acesso à partilha geral
vel com o princípio da eleição proporcional H • de assentos na Austria. Segundo os autores,
3.2.Suéâa ístoequivaleria a um rnínimoestadual queosci-
A Suécia adota um sistema de barreira com- la entre 0,3 e 0,8 por cent02 l .
posta por duas variáveis, distribuídas segundo 3.7. Holanda
o nível do cargo pleiteado. Em primeiro lugar, a Ainda segundo De Carreras e \/8Ués, a le-
barreira mínima para cargos eletivos federais é gislação holandesa requer dos partidos somen-
de quatro por cento do total de votos. Mas os te a obtenção de urna cota eleitoral no nível
partidos podem, mesmo não suplantando tal estadual, que equivaleria a 0,67 por cento dos
barreira. obter assentos no nível de distrito. votos emitidos. Para os autores, esta é urna das
conseguindo um mínimo de doze por cento do menos rigorosas cláusulas de exclus40 existen-
sufrágio no distrito correspondente l ". tes22 . Ken Gladdish, entretanto, não considera
3.3. Espanha este requisito da legislação eleitoral hoIandesa
Na Espanha, a cláusula de barreira referente como urna cláusula de barreira. Para ele, o siste-
à eleição para deputados e senadores consta ma proporcional daquele país simplesmente
da Lei Orgânica do Regime Eleitoral Geral, pro- carece de uma barreira minima, o que termina
mulgada em 1985 e modificada em 1987 e em por "resultar em legislaturas multipartidárias
I991. No inciso a do parágrafo primeiro do art. das quais os governos só são compostos após
163.°, a lei determina que "não se levem em con- considerável demora esem a devida ligação re-
ta aquelas candidaturas que não tenham obti- ferencial com os eleitores"23.
do pelo menos três por cento do votos válidos 3.8.1tá/ia
emitidos na circunscriçào"l1. Na Itália, a exigência para que os partidos
3.4. França participem da distribuição de assentos parla-
A foona de representação proporcional in- mentares é considemda extremamente reduzida
troduzida na França em 1986 consolidou distri· por especialistas. Basta ao partido obter tre-
tos de múltiplos membros e detenninou a elei· zentos mil votos no nível estadual, o que equi-
ção de deputados nacionais a partir de um sis- vaie a aproximadamente um por cento dos su-
tema de listas em uma única urna. Segundo frágios emitidos. Também tetilo acesso à distri-
Byron Criddle, para terem acesso à distribuição buição de assentos, aqueles partidos que te-
de cadeiras parlamentares, tais listas devem nham conquistado pelo menos um assento em
obter mais de cinco por cx:nto dos votos dados l'. posto distrital 24 ,
3.5. Dinamarca 3.9. Grécia
Segundo De Carreras e VaUés, a Dinamarca Alei eleitoral grega de 1974 estabeleceu que
impõe, em seu sistema eleitoral, uma cláusula somente os partidos que conseguissem mais
de barreira na ordem de 2.6 por cento dos vo- de dezessete por cento do total de votos no
tos, no nível estadual. Este percentual não se nivel estadual poderiam participar na distribui-
aplica aos partidos que tenham conseguido um ção geral de assentos parlamentares. Para De
assento em qualquer distrito eleitoral do paí51~. Carretas e Vdllés, uma cláusula de barreira tio
Oleter Nohlen, por sua vez, não considera o alta privilegia de forma considerável OS gran.
método de exclusão dinamarquês como consti- des partidos em detrimento dos partidos de ta-
tuindo um cláusula de barreira. Ao invés disso, manho médio e pequeno~. Ressalte-se, porém,
chama-o de "método de equilíbrio" (méthode que em um trabalho datado de 1985 que descn:-

I~ NOHLEN, Dieter. lbid. 10 NOHLEN, Dieter. Panorama des proportio-


16 DE CARRERAS, VALLÉS. Ibid. pp. 83-84 ncUes. Pouvoirs, v. 32, 1985, p. 38.
J? ESPANA. Le-y organica dei resimcn ek:ctonU 21 DE CARRERAS, VALLÊS, ibid.
general. 80ietin de Legislación Extranjera, sc:t.!dec. 11 fbid.
199Q, p. 32. ZJ GLADDISH, Ken. lhe primacy of the parti-
11 CRIDDLE, Bynm. ElectoraI systems in France. cular (choosing an clcetoral system). JOJlrllal ofD~­
ParJiomentaryAjJairs. v. 45, n. 1,jan. 19?2.l. p. 11l. mocraL)'. v.4, n. I, jan. 1993, ll. 56.
I? DE CARRERAS, Francesc, VALwS, Josep 14 DE CARRERAS, VALLÊs, ibid.
M. Ibid, p. 84. 2~ lbid.
ve o sistema eleitoral da Grécia. Nohlen não faz lamentares nacionais p.:1SSaIIDTl pelo crivo de uma
referência a cláusulas de exclusã0 26 , cláusula de exclusão de quatro por ceI\t~.
3,lO.I~ael 4. A cláusula de exclusão na legislação
A cláusula de barreira da legislação eleito- brasileira
ral israelense é considerada eminentemente bai- A expericncia br<1sileíra com representação
xa. Desde 1992, são necessários 1,5 por cento proporcional exclUi o emprego efetivo de cláu-
dos votos em nível nadonal para que um parti- sula de barreira mínima. Nilo existe qualquer dis-
do tenha acesso ao Knesset. Antes de 1992, positivo nesse sentido na Constituição atual
esse percentual era ainda mais baixo - somente ou mesmo na legislação eleitoral vigente. No
um por cento. caso de norma constitucional anterior. não se
Para sublinhar a irrelevância desse baixo verifica a efetiva implementação de tal cláusula.,
percentual, Vemon Bogdanor argumenta que muito embora ela tenha sido inrerida em emen-
"em 1992, qualquer partido que assegurasse das constituciorulÍS em 1969, em 1978 e em 1985.
quarenta mil votos teria um assento no Parla- A Emenda Constitucional n. o 1. de 1969. que
mento. Nas eleições gerais de 1984, o partido alterou a Constituição Federal de 1967. incluiu
extremista Kach, do rabino Meir Kahane, con- um dispositivo equivalente a uma cláusula de
seguiu um assento no Knesset com apenas 25 barreira. Trata-se do inciso VII da nova redação
mil votos de um total de 2 milhões 27 • do art. 152. como segue:
3.1 L República Tcheca "Art. 152. A organização. o funcio-
Segundo Gladdish, durante as discussões namento c a e,.,1i nção dos partidos políti-
que levaram à promulgação da legislação elei- cos serã() regulados em lei federal. ob-
toral pós-comunista na República Tcheca e Es- reT'.·"dos os seguintes princípios'.
lováquia. houve uma preocupação marcante
com a questão da fragmentação partidilria nos VII - exigcncia de 5% (cinco por cen-
parlamentos. Alguns instrumentos foram inclu- to) do eleitorado que haja votado na últi-
ídos na legislação com o intuito de reduzir cssa ma eleiçào geral para a Câmara dos De-
possibilidade. Entre eles, uma cláusula de bar- putados. distribuídos, pelo menos. em 7
reira que. embora os detalhes de sua fórrnl:i1a (sete) Estados. com o mínimo de 7% (sete
sejam complexos, totali7.aYa cinco por cento para por cento) em cada um deles. "31
o parlamento federal e a assembléia tcheca211 • Em 1978, a Emcnd1 Constitocional n.o 11 rei-
3.12. Polõnia tera a ínclusão de uma barreira mínima para o
As eleições de 1991 para o Parlamento po- funcionamento dos partlQos políticos. Esta in-
lonês, foram realizadas com base na fórmula da clusão é feita espeçjficamente no inciso IT do
representação proporcional. Em 37 distritos elei- parágrafo 2° e no parágrafo 3° do art. 152, que
torais, a eleição foi realizada sem barreira míni- tiveram a seguinte redação:
ma. Quinze por cento do total de assentos par- H§ 2° O funcionamento dos partidos
lamentares (69 de 460), entretanto, foram distri· pol íticos deverá atender às seguintes exi-
buídos nacionalmente com uma cláusula de gências:
barreira de cinco por cento, além do requisito
de maioria em pelo menos cinco distritos 29 • IT - apoio. expresso em votos. de 5%
3. 13. Hungria (cinco por cento) do eleitorado. que haja
Ás eleições de 199 \ consohdaram o sistema votado na última eleição geral para a Câ-
eleitoral da Hungria não-comunista. O sistema mara dos Deputados, distribuídos. pelo
fundamentado no princípio da representação menos. por 9 (nove) Estados, com o nú·
proporcionaL é uma combinação de diferentes nimo de 3% (três por cento) em cada um
técnicas, que inclui distritos uninominais e as- deles;
sentos disputados através de lista partidilria.
Tanto os assentos regionais como as vagas par- § 3 Não terá direito a representação
Ü

26 NOHLEN. Dieter. Panorama des prC'portlO- JO Ibid, p. 60


nelles. Ibid. p 39. JL BRASIL Con~111Ulção da República Federati-
27 BOODANOR. Vemot\. lsrael debat~ rcÜmn 'Ia dI) Brasi\. Cl)Wii~i'uição do BraSIl, de 24 de janeiro
(choosing ao electoral system). JOI~rnal 01 Demo- de 1967. com a redação dada pela Emenda Conslitu-
cracy, v. 4. n. I. jan. 1993, p. 68 ~íonal n. o 1, de 17 de outubro de 1969, e as alterações
2. GLADDISH, Ken. Ibid. p. 58 feitas pelas Emendas Constltucionais n.'" 2/72 a '27i
29lbid. P 59. 85. Brasília: Senado Federal. 1986, pp. 155-l56.

51
o partido que obtiver votações inferio- tratavam da cláusula de barreira, não se aplica-
res aos percentuais fixados no item 11 do va às eleições de 15 de novembro de 1986.
parágrafo anterior, hipótese em que se- A promulgação da ConstítuíçAo Federal de
rão consideradas nulas.")2 1988 pôs fim à prática de inserir as exigências
Nota-se que, entre a promulgação das Emen· de barreiras minimas no sistema de representa·
das Constitucionais n. OI 1 e lI, as alterações ção proporcional do Pais, através do instrumen-
nas exigências da barreira minima objetivaram, to da emenda constitucional. No texto final da
taJvcz, um aperlCiçoamento emenosum aumento Cana Magna, os constituintes deixaram claro
no rigor. Afinal, manteve-se a exigência de cin- sua opçao contrária a tal inserção, com a omis-
co por cento do sufrágio nacional e modificou- são deliberada de tais exigências.
se apenas o número de Estados em que sua A discussão acerca da necessidade de bar-
distribuição deveria ser feita. A Emenda n. o 11 reiras oonirnas ou cláusulas de exclusão no sis·
aumentou o número de Estados de sete para tema eleitoral brasileiro só seria retomada do·
nove, embora tenha diminuido o percentual 00- rante a revisão constitucional, de 1994. O Pare-
nimo nestes Estados de sete por cento para três cer n.° 36, de autoria do Relator da revisão pro-
por cento. punha precisamente uma emenda constitueio--
A questão da barreira oonima volta a ga- na! de revisão que alteraria o art. 17 da Consti-
nhar fonna constitucional no Brasil através da tuição, ali inserindo uma cláusula de barreira
Emenda Constitucional n. ° 25, de 1985. Em seu minima. No substitutivo do Relator, o § 2.° do
parágrafo 1.°, a Emenda determinava que "não art. 17 da Constituição Federal seria acrescido
teria direito a representação no Senado Federal da expressão "comprovando o apoiamento de
e na Câmara dos Deputados o partido que não eleitores exigido em lei", passando o dispositi·
obtivesse o apoio, expresso em votos, de 3% vo avigorar com a seguinte redação:
(três por cento) do eleitorado, apurados emelei- "§ 2.0 Os partidos politicos, após ad·
ção geral para a Câmara dos Deputados e distri- quirirem personalidade juridic:a, na forma
buidosem, pelo menos, 5 (cinco) Estados, com da lei civil, requererão o registro de seus
o mínimo de 2% (dois por cento) do eleitorado estatutos no Tribunal SuperiorEleitoral,
em cada um deles"J3. o parágrafo seguinte, con- comprovando o apoiamento de eleitores
tudo, permitia aos eleitos por partidos que não exigido em lei". 35
obtivessem os percentuais exigidos preservar O substitutivo do Relator acrescia ao art.
seus mandatos, "desde que optem, no prazo de 11, ainda, dois parágrafos, um dos quais expli-
60 dias, por quaJquer dos partidos remanesceo- citava as exigências da cláusula de exclusão:
tes"l4. "§ 5. 0 Somente terá direito a repre-
Novamente, vale ressaltar, caíam as exigên- sentação na Câmara dos Deputados o
cias mínimas para OS partidos participarem da partido que obtiver o apoio núnimo de
partilha de assentos parlamentares. Dessa fei- cinco por cento dos votos válidos, ex-
ta, entretanto, a queda acontecia com todos os doidos OS brancos e os noJos, apurados
critérios da fónnula. Isto é, a exigência de cinco em eleição geral e distribuidos em pelo
por cento dos votos da última eleição cai para menos um terço dos Estados, atingindo
apenas três por cento, enquanto se reduz tanto dois por cento em cada um deles."36
a exigência do número de Estados de sua distri- Este parecer, contudo, não chegou sequer a
buição, de 7 para 5, como a exigência deeleito- ser votado. É de se imaginar que. dado seu pa-
rado minimo em cada um desses Estados, de drão conservador de votação, os membros do
três por cento para dois por cento. Congresso Revisor dificilmente promoveriam
Nenhum desses dispositi"os constitucio- mais essa mudança no sistema eleitoral vigen·
nais, porém, chegou a ser implementado. Na te. Afinal, rejeitaram a proposta para estabele-
Emenda Constitucional n. o lI, de 1978, o art. cer o voto distrital misto e a reeleiÇflo para os
217 excetuava de sua incidência as eleições de cargos executivos.
15 de novembro de 1982. Da mesma forma, a Com relação às emendas constitucionais an-
Emenda Constitucional n.o 25, de 1985, detenni- teriores à revisão, vale salientar que, à exceçlo
nava em seu art. 5,° que o disposto nos pará-
grafos I.°e l.odo art. 152 da Constituição, que n CONGRESSO REVISOR. RELATORIA DA
REVISÃO CONSTITUCIONAL. Pareceres produ-
l1 Ibid, p. 153. zidos (histórico) Brasília: Senado Federal, 1994, tomo
n Ibid, p. 155. n, p. 203.
14 Ibid. lO Ibid.

52
da Emenda Constitucional n.o 25, de 1985, pro- das circunscrições eleitorais estaduais, se os
mulgada durante o governo civil de José Sar- Estados forem estabelecidos como colégios elei-
ney, em plena transiçilo democrática, todas as torais, ou para o conjunto do país, se for insti-
emendas que abordaram a barreira mínima na tuído um colégio nacional único para eleição da
eleição proporcional brasileira foram geradas Câmara dos Deputados. constitui uma exigên-
pelo governo militar. Esse fato, por si SÓ, já era cia fundamental que, realizada. asseguraria ao
razão suficiente para tornar tais propostas ques· mesmo tempo maior rigor e efetividade à repre-
tionâveis para as lideranças políticas que se sentação proporcional numa república federa-
opuseram ao regime autoritário. Afinal, durante tiva como o Brasil".o.
esse período, quase todas as propostas de al- Em resumo. acreditam os simpatizantes da
teração na legislação eleitoral representavam, cláusula de barreira que sua aplicação no siste·
em parte, manobras governistas no sentido de ma proporcional brasileiro viria a fortalecer os
garantir seu respaldo parlamentar37 • partidos políticos. hoje enfraquecidos pela prá-
5, Implicações do estabelecimento da clá- tica do voto personalista. erradicaria as chama-
usula de barreira nas eleições proporcionais das "legendas de aluguel", e contnbuíría para a
brasileiras govemabiJidade no país.
Até que ponto a introdução de uma cláusu- Para os críticos da cláusula de exclusão no
la de exclusão na normatização das eleições pro- Brasil, por sua vez, não há razão para sua apli-
porcionais melhoraria a eficácia do sistema elei- cação no país. Leôncio Martins Rodrigues. por
toral brasileiro? A resposta a esta indagação exemplo, afirma que o pluripartidarismo extre-
não é simples. Em todos os países que adotam mado não representa um obstáculo à constitui-
tal dispositivo, a cláusula de barreira apresenta ção de maiorías duradouras de apoio ao execu-
tantos pontos positivos como limitações. Em tivo. Segundo ele, "os pequenos e os micropar-
geral, a aceitação da cláusula pelos legislado- tidos não contam. A soma das poltronas dos
res de determinado país demonstra que, pelo pequenos e micropartidos representaria cerca
menos, do ponto de vista daquela sociedade, de dez por cento da Câmara Federal". Martins
os ganhos com a inserção da cláusula na legis- diz ainda que, "apesar da alta fragmentação, o
lação eleitoral suplantaram os prejuízos. Trata- coeficiente de polarização ideológica não é tão
se de uma decisão consciente de limitar o aces- elevado como, por exemplo, no período de Gou-
so de partidos menores ao centro das tomadas lart. Portanto, há possibilidade de governar na
de decisão. base do consenso"4l.
Para os advogados da cláusula de exclusão Renato Lessa é bem mais ferrenho em sua
no Brasil, "não se justifica a representação, na crítica à barreira mínima, chamando-a de "um
Câmara dos Deputados, de um partido que não poderoso componente do paradigma da irres-
tenha obtido apoio de significativa parcela do ponsabilidade social máxima". Ele comenta que
eleitorado, como reflexo do interesse desperta- uma cláusula de exclusão da ordem de cinco
do por suas propostas"38. Scott Mainwaríng, por cento deixaría tanto a Câmara dos Deputa-
por e:,<emplo, acredita que o fato de o Brasil não dos eleita em 1990 como a eleita em 1994 com
contar com uma cláusula de barreira é a princi- apenas oito partidos. Segundo ele. "se a cláu-
pal razão para o país ter ''um número exagerada- sula de exclusão de cinco por cento fosse apli-
mente alto de partidos no Congresso, especial- cada nas eleições de 1982 e 1986, teríamos, res-
mente para um sistema presidencialista. A au- pectivamente, dois e três partidos na Câmara
sência de uma tal barreira à entrada facilita o dos Deputados" 42.
processo de mudança freqüente de partido por- Como a tabela I demonstra. os dados de
que rninimiza os riscos de formação de partidos Lessa não estão errados. Entretanto, o autor
personalistas através da reunião de pequenos não explica de que maneira a coexistência de
grupos dissidentes"39. dezenove partidos seria melhor para o desem-
José Giusti Tavares acredita que "a introdu- penho do Poder Legislativo. comparada com a
ção de uma cláusula de exclusão uniforme em coexistência de apenas oito. Lembremos aqui,
todo o país, definida por um percentual de cer- que muitos desses pequenos e micropartidos
ca de cinco por cento dos votos para cada uma sequer ganharíam acesso ao Parlamento se não
fosse pelo instrumento da coligação partidáría.
]1MAINWARING, Scott. Ibid, p. 40.
liVer CONGRESSO REVISOR. RELATORIA 40 TAVARES, José A. Giusti. Ibid, p. 46.
DA REVISÃO CONSTITUCIONAL. Ibid, p. 206. 41 RODRIGUES, Leôncio Martins. Ibid.
]9 MAINWARING, Scott. Ibid, p. 42. 41 LESSA, Renato. Ibid.
De fato. a questão da coligação de partidos sobre os resultados eleitorais. No caso da cláu-
é outro assunto que merece atenção quando se sula de barreira incidir exclusivamente nos re-
discute reforma eleitoral. Não são poucos os sultados de cada partido individualmente, as
beneficios granjeados por pequenos e inexpres- coliga«les serviriam apenas JIlI3 fonnalizar apoi-
sivos partidos através da coligação, sobretudo os interpartidários e para fins de quociente elei-
em relação ao quociente deitoral. Este fato pode toral. Caso não atingisse a barreira núnima, o
ser ilustrado pelo desempenho do PP no Esta- partido ficaria de fora da partilha de assentos,
do de Pernambuco nas eleições de 1994 para a apesar do quociente atingido por sua coIigar;;lo.
C!mara dos Deputados. Com apenas um candi- Concluindo, não existe consenso quanto à
dato recebendo mais de quarenta mil votos, o eficácia da cláusula de barreira. Certamente. nIio
partido. naquele Estado, naoteriaa menorchan- constitui um remédio infaltvel para todos os
cc de assegurar um assento no Parlamento. males do sistema deitoral brasileiro, nem mes-
Entretanto. como o partido pertencia à coliga- mo o único remédio possível. Muitos púses que
ção PF1.lPSDB. pode beneficiar-se do grande adotaram este instnunento tiveram que. através
número de votos recebidos por outros partidos dos anos, aprimorá-lo para que dele pudessem
da coligaçlo e garantir a presença de um depu- extrair o máximo em tennos de beneflcios. Outros
tado na amara. países preferiram deixar tal instrumento de fora
Por outro lado, um candidato expressivo de seus sistemas de representação proporcionaI
num partido sem uma coligação forte corre o e. aparentemente, nao sentem sua falta.
risco de não se eleger. Este foi o caso do ex- A discussão desse tema no Brasil, por oca-
deputado Paulo Octávio, do PRN de Brasília. sião da revisão constitucional. representou um
nas eleições para a Câmara de 1994. Como seu forte indicativo da preocupaçao dos legislado-
partido não se coligou., seus mais de 45 mil vo- res brasileiros com OS defeitos do atual sistema
tos simplesmente nao foram suficientes para re- de eleição proporcional. Transformar preocu-
conduzi.-loao Parlamento. pação em ação efetiva, contudo, é o grande
A cláusula de barreira certamente pode con- desafio dos parlamentares.
tribuir para minorar o impacto das coligações
Tabela 1- Eleições para a Câmara dos Deputados, 1990

Assentos Acesso cI Acesso cl


Votaçio total ganhos si banoeirade balTcirade
Partido (nom. + legenda) % do total barreira 5% 2%
PMDB 5.432.048 17,6 1~ SIM SIM
PFL 4.D99.1B 13,19 &) 31M SIM
PT 3.186.317 10,33 35 SIM SIM
PDT 3.073.759 9,96 46 SIM SIM
PSDB 2.946.llB 955 38 SIM SIM
PDS 2.628.421 8,52 44 SIM SIM
PRN 2.283.346 7,4 38 SIM SIM
PfB 1.836.561 5,95 38 SIM SIM
A... 1.49t814 4,84 16 SIM
PDC %1.377 292 22 SIM
PSB 713.100 2,31 11 SIM
PCB 305521 0,99 3
PTR 303.705 0,98 2
PCooB 284.914 092 5
PRS 243.231 079 4
PMN 237.176 0,71 I
PST 230.637 0,75 2
PCN 143.563 0,47 O
PSC 125.ClW 0,41 6
PRP 113.644 0,37 O
PSD 103.201 0,33 1
PTDOB 70.735 0,23 O
PSL 25.839 O,~ O
PAS 17.450 0,06 O
PD 17.063 O,<Xi O
PRONA 11.219 0,04 O
FUI 8.807 0,03 O
PNf 8.228 0,03 O
PSU 3.824 0,01 O
PAP 3.587 0,01 O
PS 1.829 0,01 O
PIN 999 O O
PMB 1 O O
TOTAL 30.855.416 100 -

ar..... •. 3211...• IIbrJJ.... f 895


A imunidade dos fundos de pensão e o
mercado de capitais

ARNOlOO WALD

I. Após a queda do muro de Berlim que,


para alguns. fTk1rcOU o fim da história, ou de um
capitulo da história mundial, sociólogos, ec0-
nomistas e juristas desenvolveram teses refe-
rentes ao desenvolvimento de dois tipos de
capitalismo: de um lado, o capitalismo anglo-
saxão e. de outro, o germânico ejaponês.
2. O primeiro se caracteriza por:
a) uma política de curto prazo;
b) um pragmatismo desenfreado;
c) uma aceitação de riscos imensos, nojogo
financeiro. abrangendo a emissão dos chama-
dos Utulos podres (junk bonds), as tomadas de
controle que constituem verdadeiras batalhas
e chegaram a ser caracterizadas, no caso Nabis-
co. como verdadeiras "invasões de bárbaros";
d) a utilização das empresas pelos seus con-
troladores, mas também pelos seus administra-
dores, no seu próprio interesse e contrariamen-
te aos interesses sociais.
3. O segundo reflete. ao contrário, por parte
dos controladores das sociedades:
a) uma visão de longo prazo;
b) uma posição institucional;
c) uma busca de consenso entre os interes-
ses dos vários acionistas, dos empregados, dos
consumidores e do próprio Estado;
d) o reconhecimento da função social exer-
cida pela companhia.
4. Surgiu assim um conflito entre o chama-
do capitalismo industrial, no qual se defendiam
os interesses da empresa e dos seus integrao-
Amoldo Wald é Advogado no Rio de Janeiro e tes, e ocapitalismo fi nanceim, baseado em gran-
Professor Catedrático de Direito Civil na UERJ. de parte na especulação.
5. Por outro lado. no Japão e na Alemanha,
Palestra rcali7.8da no Seminârio da ABRAPP re- criou-se um sistema de defesa da empresa. para
ali7.l1do em Manaus em sessão presidida pelo Minis- assegurar a competitividade empresarial e a sua
tro José Carlos Moreira Alves, do Supremo Tribu- rentabilidade. não só a curto. mas também a
nal Federal.

Br.-"••. 32 n. 126 """./lun. 1H5 57


médio e longo prazos. Embora essa situaçlo identificar com Las \egas.
decorra da concentraçao do capital nos bancos 9. Embora ajurispmdência brasileira do se
(Alemanha) ou nos conglomerados (Japão), ela tenha desenvoJvido na matéria tanto quanto a
pode continuar a ocorrer com a ascensão da americana, já temos atualmente mo bom mime-
Previdência Privada, que pxteria substitui-los, ro de decisões judiciais condenando o abuso
empane. da maioria e responsabilizando administrado-
6. Essa diferença de visfto chegou a ser con- res de empresas que as utilizaram no seu pró-
siderada como uma das razOes do relativo atra- prio intc:ressc:. Posição diferente era a dominan-
so e da atual crise da economia norte-america- te até 1960, quando os problemas entre admi-
na, fazendo com que, no plano econômico, se nistrado~ e acionistas eram considerados con-
tivessem invertido as relações decorrentes da flitos domésticos e não eram levados ao Poder
vitória dos aliados na Segunda Guerra Mundi- Judiciário. Assim sendo, nIopodemos dizer que
al. No plano econômico, vencedores se toma- se trata de problema pcculiar às naç&s mais
ram a Alemanha e o Japão e vencidos os Esta- desenvolvidas, que ainda não apresenta inte-
dos Unidos e a Inglaterra, corno aliás evidencia resse para o mercado brasileiro.
a recente crise monetária na qual o dólar está 10. Aliás, o nosso mercado se apesenta com
perdendo a sua condição de padrão monetário traços particulares que o distinguem de todos
internacional, nao obstante a luta dos norte- os demais. Nao há dúvida que já é hoje um mer-
americanos para manter a posição de sua moe- cado desenvolvido e nao mais um simples mer-
da. Há, aliás. toda uma literatura mostrando o cado emergente, como bem tem lembrado o
enfraquecimento da economia americana em eminente presidente da CVM, Or. Thcmas Tos-
virtude do capitalismo financeiro que prevale- ta de Sá, em recentes pronunciamentos. É um
ce sobre o capitalismo industrial. mercado desenvolvido quantitativa e qualitati-
7. Como bem salientam os economistas. os vamente.
resultados financeiros da empresa a longo pra- 11. Efetivamente, com wna capi.talizaçlo em
zo nJo são necessariamente correspondentes a bolsa das sociedades abertas chegando a cer-
uma série de resultados a curto prazo. Na..sua ca de 120 bilhões de dólares, representando
obra intitulada Capitalismo Inteligente, Jean cerca de um quarto do pm oacional, embora em
Peyrelevade admite que uma nova classifica- outros paises tenha alcançado cerca de ses-
ção das sociedades humanas deve ser introdu- senta ou até 80% do mesmo, mas no Brasil du-
zida, de acordo com as relações que elas têm rante muito tempo correspondeu a S% e 1001Í.
com o longo tenno, ou seja.. oom a sua visão do Essa valorizaçao das ~ brasileiras tem ocor-
futuro mais remoto, o que aliás implica a mano- rido todavia num clima de grande volatilidade,
tençlo do valor da moeda nacional e a estabili- bastando dizer que, nos últimos sete anos o
dade das instituiçOes poUticas. E acrescenta que, montanteda capitaIizaçlo variou numa :fàixa que
enquanto os japoneses se caracterizam pelo seu chegou ao minimo de cerca de trinta bilhOes e
espirito de poupança, acumulando investimen- ao máximo de quase duzentos, 00 seja uma varia-
tos e preparando as suas empresas para os de- çIo de um para seis, que ceI1amcnte é excessiva.
safios do futuro, ao contrário, nos Estados l2. Na realidade, o Brasil tem, há mais de
Unidos. a preocupação básica dos administra- vinte anos, um impottante mercado acionário,
dores está ligada aos interesses financeiros que hoje já se caracteriza pela sua sofisticaçAo,
imediatos dos seus acionistas e diretores, à seu tamanho e sua representatividade. O Cedi-
cotação diária das aÇÕC5 em bolsa,. sacrifican- mec fez um levantamento de acordo oom O qual
do-se a evoluçlo da empresa. existiriam cerca de duas mil entidades ligadas
8. Chegou-se, assim, a falar na oposiçao ao funcionamento do mercado de capitais, utili·
entre a lógica da empresa e a do mercado, sali- zando diretamente quase trinta mil pessoas e
entando-se que as bolsas do locais de inter- tendo, em sua órbita. cerca de oitocentas soci-
mediaçlo que asseguram o desenvolvimento edades abertas, que geram mais de dois milMes
das empresas. Rejeitou-se. assim, a idéia bas- de empregos diretos e de cujo capital partici-
tante disseminada, de acordo com a qual as pam quase cinco milhões de acionistas diretos
empresas só existem para que a respeito delas e sete milhões de cotistas de fundos. As em-
se possa especular na bolsa. Dando um senti- presas abertas seriam responsáveis pela gera-
do geográfico a essa afirmaçlo, Peter Dmcker ção direta de 16% do pm, por 22% das nossas
chegou a afirmar que Wall Street não se pode exportações e 2QGIa dos impostos recolhidos.


As pessoas vinculadas, direta ou indiretamen- giu um novo ingrediente, que ensejou o cresci-
te, pelo trabalho ou pelo investimento, ao mer- mento do movimento das bolsas: foi a interna-
cado e seus dependentes econômicos repre- cionalização liderada pelos fundos de captação,
sentam cerca de 100/0 da nossa população. tanto de dinheiro novo, como de créditos exter-
13. Por outro lado, não tem aumentado o nos convertidos em investimentos. Assim mes-
número de sociedades abertas e o seu cresci- mo, no plano internaciortal, verificou-se ser o
mento, nos últimos anos, tem sido lento e rela- nosso mercado relativamente incipiente pelas
tivamente pouco expressivo em relação às ne- suas dimensões. Basta lembrar que, se das mil
cessidades de recursos das empresas brasilei- maiores empresas brasileiras só 33% são de
ras. De fato, as companhias abertas represen- sociedades abertas, se conseguíssemos que as
tam cerca de um terço do patrimônio das mil mil maiores empresas brasileiras fossem todas
maiores empresas do país, e o crescimento do abertas, a capitalização em bolsa deveria alcan-
mercado, em virtude do ingresso de novas enti- çar cerca de quinhentos bilhões de dólares,
dades, tem sido reduzido. Chegou a haver um passando a corresponder, a grosso modo, ao
decliIÚo no número de empresas abertas e gran- nosso PIB.
de parte das emissões foram feitas em debêntu- 17. Feito de modo muito sumário o diagnós-
res que, embora constituindo um titulo útil e tico, que não é novo, mas não deixa de ser im-
fecundo para o crédito a longo prazo, não se pressionante, caberia examinar o que se pode
enquadram no rol das participações acionárias mudar rapidamente para que o mercado deixe
e não criam um vínculo societário de solidarie- de trabalhar em circuito fechado, exclusiva ou
dade entre os debenturistas e a sociedade. predominantemente, no interesse dos especu-
14. Em determinados momentos, os merca- ladores, para vir a favorecer mais as empresas,
dos de opções e de futuros chegaram a sofrer seus empregados, os investidores e a econo-
certas distorções, deixando de exercer uma fim- mia nacional. Trata-se de encontrar uma fórmu-
ção complementar de garantia (hedging) em re- la para que parte importante dos recursos da
lação ao mercado à vista, para criar um clima de poupança interna e externa seja encaminhada
pura especulação, sem vantagem específica para para o mercado acionário produtivo, em vez de
as empresas industriais e comerciais que abri- serem tais recursos mantidos em operações fi-
ram o seu capital e participam do mercado. nanceiras de curto prazo.
15. A excessiva concentração nas negocia-
ções faz também com que, na realidade, nem 18. Após o exame do mercado de capitais,
todas as sociedades abertas tenham a liquidez cabe salientar a importância da missão que nele
que se presume para empresas cotadas em bol- pode e deve desempenhar a previdência priva-
sa ou transacionadas no mercado de balcão. da no momento em que se cogita da Refonna
Talvez sejamos um dos países de maior con- Constitucional. Efetivamente, além de comple-
centração nas operações em bolsa consideran- mentar a previdência social, que está pratica-
do que, na última década, nos períodos de mai- mente falida em todos os países, a previdência
or desconcentração, a grosso modo, três ações privada está sendo e pode ser, com muito maior
representavam cerca de 40% do movimento, cin- desenvoltura, a fonte básica não SÓ de financi-
co ações concentraram mais de 50% e 60% das amentos de longoptazO, mas também t\erecm-
50S que poderão representar uma maior partici-
negociações, cinqüenta ações corresponderam
a quase 80% e cem ações alcançaram a ordem pação efetiva nas sociedades abertas e até nas
de 90% das operações em bolsa. Assim. pode- chamadas empresas emergentes, que merece-
mos afirmar que o movimento normal nas bol- ram recentemente a criação de fundos especi-
sas não abrange mais de cento e cinqüenta ou ais autorizados a funcionar pela CVM. Trata-se
duzentas ações, enquanto, no mercado de bal- de uma forma de capital venture, que se carac-
cão, são poucas as ações movimentadas de teriza pela possibilidade de capitalizar e desen-
modo contínuo. volver pequenas e médias empresas de boa tec-
nologia para que, em seguida, seja aberto o ca-
16. Aprimeira fase do mercado acionáM se pital das mesmas.
desenvolveu em virtude dos incentivos fiscais, 19. A relevância do papel da previdência
que atualmente desapareceram ou estão em fase privada no mercado de capitais decorre de sua
de extinção ou de substancial redução. A partir estrutura que a obriga a raciocinar, investir e
de 1988, com a criação do Fundo Brasil nos aplicar no longo prazo, ao contrário do que
Estados Unidos e os leilões da conversão, sur- acontece com a maioria dos acioIÚstas, tanto

ar"'''__.32 n. ,2fI..,./jure. 1995


nacionais quanto estrangeiros, que sofrem da 25. No Brasil, se a previdência privada é bem
obsessIo da rentabilidade a curto prazo, à qual mais modesta em compa.raçao com os Estados
já aludimos, pois a variação da cotação em bol- Unidos, a Alemanha ea Inglaterra, mesmo man-
sa das ações das empresas por eles administra- tidas as respectivas proporções, o seu cresci-
das é considerada, muitas vezes, como sendo a mento nos últimos vinte anos nos revela um
prova da eficiência dos administradores. Por dinamismo e um aprimoramento gradativo. que
outro lado, os dividendos e o ganho de capital aliás com:sponde à sua progressiva emancipa-
competem. no mercado, com os litulos de renda ção da tutela governamental.
fixa qne, no Brasil, alcançaram uma rentabilida- 26. Inicialmente presas mDna espécie de ca-
de muito alta. misa de força e dominadas pelas tradições das
20. Numa obra pioneira, o grande pensador empresas de capitalizaçlo que, algumas vezes,
e economista americano Peter Dmcker consi- não foram felizes num país cuja moeda foi. por
derou que a previdência privada estava reali- longo tempo, corroida pela inflação, as entida-
zando uma revolução invisivel, ao permitir que des da previdência privada lutaram pelos direi-
a propriedade de grande número de ações pas- tos dos seus associados e obtiveram. aos pou-
sasse a pertencer aos empregados das empre- cos. a liberação de pesadas e minuciosas regu-
sas. Assim, os fundos de pensão norte-ameri- lamentações estatais que, muitas vezes, as obri-
canos passaram a possuir mais de 25% das gavam a investir em aplicações não rentáveis e
açaes negociadas em bolsa. Surgiu o chamado até, em certos casos, prejudiciais, em detrimen-
capitalismo popular ou de massas, ou capita- to dos seus associados e para atender necessi-
lismo dos empregados, que superou a luta de dades do Tesouro Nacional, O que, até recente-
classes para aproximar, numa luta comum pela mente, SÓ deixou de ocorrer em virtude de medi-
empresa, tanto os seus empregados, como os dasjudiciais (relativamente aa; CP's, Nl'N's etc.).
seus administradores e acionistas. 27. Atualmente, com um patrimônio de mais
21. Atualmente, os fundos de pensa0 nos de cinqüenta bilhões de dólares, abrangendo
Estados dispõem de recursos financeiros de algumas centenas de entidades vinculadas a
quatro trilhões de dólares, ou seja, um pouco duas mil empresas e beneficiando quase três
menos que o PIB americano, que é de quase milhões de empregados, as entidades de previ-
seis trilhões. Em relação às vinte e cinco maio- dência fechada aplicam cerca de 40% dos seus
res empresas norte-americanas, os fundos de fundos em ações, tornando-se, assim, verda-
pensllo possuem, na média. 50% do capital deiros catalizadores do desenvolvimento do
Alguns dos maiores fundos de pensão dos Es- mercado.
tados Unidos dispõem de mais de cem bilhões 28. A estrutura de créditos e débitos de lon-
de dólares (ou seja, um quinto do PIB brasilei- go prazo permite que os fundos participem do
ro). Os vinte maiores fundos de pensão do mun- mercado acionário com umavisão mais empre-
do gerem recursos no montante de um trilMo sarial, pensando no futuro da empresa, sem pre-
de dólares. juizo da sua rentabilidade a curto, médio e lon-
22. Na Alemanha, os fundos de pensão re- goprazo.
presentam recursos de cerca de trezentos bi- 29. Enquanto, no inicio, os fundos de pen-
lhões de dólares, ou seja, 213 do nosso PIB, e sa0 eram simples acionistas investidores, ren-
na Inglaterra alcançam um valor um pouco me- deiros, aplicadores minoritários ou titulares de
nor - duzentos e cinqüenta bilhões. ações preferenciais sem direito de voto, foram,
23. Em toc:kls os países, a imunidade tributá- aos poucos, assumindo um papel de observa-
ria e os favores e incentivos fiscais permitiram dor vigilante da evolução da empresa, ocupan-
que se criasse um instrumento que serve, si- do cargos no conselho fiscal e, eventualmente.
multaneamente, ã complementaçllo da previdên- no Conselho de Administração, exercendo não
cia social e aos financiamentos e às aplicações somente uma auditoriaformal, mas 1ambém uma
em investimentos e participações acionárias de auditoria de performance.
longo prazo. 30. Recentemente, deixaram de ser sócios
24. Criou-se, assim, um capitalismo sem ca- passivos e inertes, sleeping parlners, na ex-
pitalista'i e sem capital. Os administradores não pressão norte-americana, para, em diversos ca-
do capitalistas e os recursos não constituem sos, participarem de controle. ou até assumi-lo,
capital, mas salário diferido em favor do empre- muitas vezes numa fonna de controle partilha.
gado, quando se aposentar. do, como aconteceu no caso de aquisiçlo do


controle da Perdigão e em algumas privatiza- nárias estão entre as mais negociadas em bol-
ções, como a da Aeesita. sa, e nelas as entidades da previdência privada
31. Além de uma mudança do espírito e da podem ter uma importante participação acionâ-
política empresarial, que decorre da perenidade ria, tanto mais que, em virtude de principio cons-
dos fundos de pensão e da sua visão de longo titucional e legaI, as tarifas devem assegurar a
prazo, está, assim, ocorrendo uma intervenção compensação do capital investido, garantindo
na gestão empresarial que libera as sociedades o equilíbrio ecoIlÔmico-financeiro da empresa no
de preocupações imediatistas, permitindo que qual está incluido o direito a um lucro razoável.
realizem mais adequadamente a função social 35. Em todo o Brasil, a concessão de obra
que a legislação societária lhes atribuiu expres- está sendo utilizada e desenvolvida, sendo con-
samente (art. 154 da Lei n.o6.404n6). siderada pelo Presidente eleito, Fernando Hen-
32. Efetivamente, na gestão da empresa. es- rique Cardoso, como a mola mestra da nova fase
tamos agora encontrando além dos administra ~ econômica na qual entra o pais, com um sério
dores profissionais, equipes de especialistas déficit de infra-estrutura e a ausência de recur-
independentes que trazem à sociedade a sua sos financeiros para investir em obras e servi-
experiência externa em detenninados setores de ços, que são necessários e abrangem desde o
atividade e, ainda, os representantes da pou- fornecimento de eletricidade e de água até o
pança coletiva, entre os quais se destacam os transporte, as telecomunicações, o saneamen-
da previdência privada. to, as estradas de rodagem etc...
33. Resumindo uma evolução do direito so- 36. Já existem leis estaduais na matéria no
cietário que estamos encontrando em todos os Rio de Janeiro e em São Paulo, e a legislação
países do mundo, o Professor André Tunc as- federal acaba de ser promulgada. Mas a con-
sinala que está ocorrendo uma nova fonnula- cessão já entrou na vida administrativa, em re-
ção na estrutura da gestão empresarial. Se inici-
lação ao lixo no Municipio de São Paulo, às
aImente tivemos o comando exclusivo dos aci- estradas de rodagem nos Estados de São Paulo
onistas controladores nas grandes empresas, e do Rio de Janeiro, à manutenção da Ponte
foram eles, aos poucos, substituidos pela tec- Rio-NiteTÓi e ainda em inúmeras ouuas ativida-
nocracia dos administradores, a chamada "tec- des. Cabe lembrar que o recente eurotúnel - a
no-estrutura", cuja prepotência foi analisada maior obra de engenharia do século - somente
nos Estados Unidos, desde Adolph Bede até foi construido em virtude da utilização da técni-
John Galbraith. Posteriormente, os take over ca jurídica da concessão.
bids - ofertas públicas de compra de ações ou 37. Ora, as concessões exigem in'lestimen-
assunções não consensuais do controle - en- tos de longo prazo cuja rentabilidade não é ime-
fraqueceram os poderes pessoais dos adminis- diata, pois pressupõe a construção de obras
tradores, sem prejuízo de lhes oferecer eventu- que, somente quando terminadas, ensejarão a
ais "pára-quedas dourados", que adoçavam a possibilidade de distribuir dividendos. E, pois,
sua queda, enquanto se inventavam pílulas uma área privilegiada para a atuação da previ-
envenenadas para dissuadir os eventuais com- dência privada, e em particular das entidades
pradores do controle. Agora, os principais aci- de previdência fechada, que estão estudando
onistas dinâmicos já são os fundos de pensão, com as autoridades a viabilidade de institucio-
os órgãos da previdência privada, que partici- nalizar este tipo de investimento.
pam do controle com os fundos mútuos, mas 38. Também as privati7BÇÕeS, que devem ser
têm sobre eles a vantagem de ter tempo e se reiniciadas tanto no plano federa1- com as pro-
caracterizam com lD11a visão empresarial de lon-grnrnadas vendas das ações da Excclsa, do Ban-
go prazo, até por terem obrigações que se ven- co Meridional e da Light -, quanto em vários
cem num futuro mais remoto. Estados, podem ensejar a utilização de impor-
34. Estamos numa fase em que se cogita, em tantes recursos dos fundos de pensão, seja no
virtude de recente legislação, de concessões caso de privatização total ou até de privatiza-
de obras e em que já várias delas estão sendo ções parciais, que poderão vir a ocorrer, ou em
objeto de licitação, sendo evidente a necessi- parcerias de empresas privadas com entidades
dade de capitais que possam ser remunerados governamentais, nas áreas de monopólio que
a longo prazo, com UIl13 carência corresponden- admitem a utilização de recursos privados para
te à fase de construção e implantação do proje- determinadas finalidades, ou com a esperada
to. Em todos os paises, as empresas concessio- "flexibilização", que deverá permitir maiores in-

lIraeiINIa. 32 n. 128 ""./JUII. 1f1f15 61


vestimentas privados em áreas estratégicas da atividade predominantemente especulativa, mas
maior importância, como a de telecomwúC3ÇÕeS. um contexto adequado para incentivar a pou-
Poderemos, assim, ter recursos privados utili- pança, melhorar a distribuição da riqueza e a
zados para obras e serviços públicos no inte- qualidade de vida do cidadilo brasileiro.
resse social. 44. Pretende-se, assim, vincular, embora de
39. A presença desse dinheiro social no modo indireto, de um lado, o enriquecimento
mercado está também ligada àreintrodução do das empresas e o dos seus empregados, o fi-
verdadeiro espírito empresarial, que se caracte- nanciamento de projetos a longo prazo, úteis
riza pelo planejamento de longo prazo e pelo ou necessários ao pais, inclusive no campo da
atendimento aos principios básicos da eficiên- infra~rulura, c, de outro lado, a melhoria das
cia e moralidade. pensões e aposentadorias que sofreram, até
40. Efetivamente, enquant<l os demais acio- agora, a erosão decorrente da inflaçllo e a redu-
nistas descontentes podem abandonar a em- ção em virtude de mani]KJlaçdes governamentais.
presa. vendendo as suas ações, "votando com 45. É condição básica para que a previdên·
os pés", para usar a terminologia norte-ameri- cia privada possa desempenhar as suas fun-
cana, os fundos da previdência fechada lutam ções na sociedade brasileira, reaiitando a rev0-
pelo aprimoramento da empresa porque devem lução invisível à qual já aludimos e podendo,
atuar, nas suas operações ativas e passivas, simultaneamente, substituir em parte a Previ-
tendo sempre em vista o futuro tanto próximo dência Social, suprindo as suas deficiências e
quanto remoto. E foi justamente por ter adota- complementando a sua miSSão e, por outro lado,
do uma política imediatista, tanto na captaçao, garantir o desenvolvimento do mercado de ca-
como na aplicação, que, no passado, certas pitais, que mantenha asua imunidade fiscal, que
entidades de capitaJização acabaram sob inter- a Constituição lhe garante.
veRÇao ou liquidadas, porque nA:o pensaram no 46. Os numerosos pareceres que reoonhe·
futuro ou nã<l quisetam fazet as pteVisaes ade- ~m aimunidade mb1\ária das ertódaóes fedwa-
quadas. das de previdência privada, oriundos de auto-
41. Há, pois, na previdência fechada, um res como GilbertO de Ulhoa Canto, lves Gandra
novo espírito inspirado pela ética que se impõe Martins, Nelson Jobim, Saeha Calmon. DO cam·
na gestâo das empresas abertas. Durante lon- po jurldico, e Río Nogueira, na área atuarial,
go tempo, os economistas se esqueceram da evidenciam o estatuto constitucional dessas
moral e houve até administradores públicos e entidades, que deve ser respeitado em virtude
privados que admitiram que a sua conduta fos- do texto expresso da Magna Carta, das normas
se aélica, considerando que a economia e a legais aplicáveis, dos interesses legitimos que
poUtica. sendo prngmáticas, pudessem ser am0- se transformaram em verdadeiros direitos ad-
rais e até imorais. Fizeram com que o país cres- quiridos e dos imperativos econdmicos e soci-
cesse, mas não se desenvolvesse. ais que osjustificam.
48. Para o social liberalismo, como para a
42. Já agora, no Estado democrático de di- filosofia grega, o homem, o individuo, volta a
reito, sabem administradores e controladores ser o centro de todas as coisas. Quando o Pre-
de empresas que a economia deve submeter-se sidente da República fala em social liberalismo,
â ética e que o direito é a arte e a ciência que em desenvolvimento baseado numa parceria, a
determinam o modo pelo qual a economia deve previdência privada aparece como sendo um
conciliar« sempre com a ética. dos grandes ~doEstado< Garantir asua
43. A presença ativa no mercado dos Fun- sobrevivência e integralidade e estimular o seu
dos de Pensão gozando da imunidade tributá- crescimento constitui, pois, um dos grandes
ria e funcionando como novos investidores que meios que a mciedade bmsilciJD tem para lraDS-
aplicam a longo prazo, a democratização do ca· fonnar cada proletário num proprietário. fazen-
pital decorrente das privatizações. nas quais os do com que o aumento do PIB se acelere e se
empregados se transformaram em acionistas, e reflita, também, na renda per capila de cada
a atuação vigilante e construtiva da CVM já brasileiro, compensando. assim, as injustiças e
permitem vislumbrar, agom, que, \\O futuro, o iniqiüdades do passado e crianóo novas espe-
mercado de capital mio mais constituirá uma ranças para o futuro.

11."'.,. d. 'nfor ' ,,,.


Pena sem prisão: prestação de serviços à
comunidade

FfRNANOO DA COSTA lOURINHO NETO

sUMÁRIo
l. Introdução. 2. O ilícito penal 3. Por que se
pune? 4. As prisões. 5. A prestação de serviços ti
comunidade. 6. Conclusão.

I. Introdução
A sociedade busca a harmonia e a paz entre
seus membros e, assim, estabelece uma série de
normas de comportamento, fruto da experiên-
cia, do convívio, do que é bom e justo para
todos. Algumas dessas regras de conduta, em
face de sua importância, são impostas coativa-
mente pelo Estado, mediante lei, e, desse modo,
temos as noonas jurídicas. Violadas essas nor-
mas, temos o ato ilícito, ou seja, a prática de
uma ação contrária a uma regra jurídica, regra
que foi estabelecida e imposta pela sociedade,
como essencial à boa convivência. A violaçãO
da norma juridica dà lugar à sanção. Sanção
essa que pode ser civil (como o ressarcimento
do dano, a execução forçada, a restituição em
espécie) ou penal. A sanção penal, como já se
disse, é o meio mais enérgico, quando outro
tipo de sanção não deu certo ou foi insuficien-
te. O crime é a ameaça mais grave, mais séria, à
integridade, à paz e à estabilidade social, ao le~
sar ou ao expor a perigo um bem juridico tido
como importante, valioso, para todos os mem-
bros da sociedade, como a honra, a vida, a li-
berdade, a moralidade, a integridade física, o
pudor, a incolumidade pública, o patrimônio etc.,
e que por isso mesmo pode causar grave de-
sordem, daí por que determinados bens são
protegidos pela lei penal. Violado o coman-
do de uma norma penal, a conseqüência será
Fernando da Costa Tourinho Neto é Juiz do Tri- uma punição mais severa, a pena. Ao crime,
bunal Regional Federal da I.' Região. segue-se a pena.
Br..n'_ •. 32n. 128 __Jjun. 1N5 83
2. O iIlcito penal um animal silvestre? A lei que dispOe sobre a
Como O ilícito penal é punido com mais se- proteção à fauna assim prevê. Ou que um beijo
veridade, imagina-se que o direito penal pode lascivo, àforça, seja punido com pena de reclu-
resolver todos os conflitos que a sociedade, são que varia de seis a dez anos? (Código Pe-
mediante a aplicação de sanção civil, não resol· nal, art. 214).
veu. ou que resolveria com amplas e profundas A pena há de ser moderada e proporcional
reformas sociais. Com acerto e perspicácia, dis- ao dano causado ia sociedade, para poder ser
se Norberto Spolansky (O delito de posse de justa e alcançar seu desiderato, seu objetivo.
entorpecentes e as ações privadas dos homens, Observem: o motorista que, em altavelocidade,
in: CademosdeAdvocaciaCriminal, v. 1, n. 5, no tráfego urbano, atropela e mata, é punido
Sérgio Antônio Fabris Editor, novembro de com pena de det~, cujo núnimo é de tres
1988, p. 102): anos e o máximo de seis (Código Penal, art. 121,
"Existe uma visão ingênua e mágica § 3.'. E o que mata o passarinho...
segundo a qual com o Direito PenaI se "La gente cree que la pena termina
pode resolver todo tipo de problemas; con la saJida de la cátceJ, y no es vemad;
desde a proteção da vida até a soluçl1o la gente cree que el ergástulo es la única
da inflaçiJo. Esta é a visão ingênua e pena perpetua. y no es verdad. La pena.
mágica do Direito Penal e do Poder do si no propiamente siempre, en nueve de
Estado e pressupõe a idéia de que toda a cada diez casos, no termina nunca. Qui-
eficácia está sempre assegurada quando en ha pecado está perdido. Cristo perdo-
o Estado atua," (grifei.) na, pero los hombres no.. ," (Francesco
Carnelutti, Las miserias dei proceso pe-
E mais. A sociedade acredita que toda pena nal,1959,p.126,apudCe?arRobenoBi-
se resume em cadeia. Se O delinqüente, conde- tencourt, in "Crise da pena privativa de
nado, não foi para a prisão, entende-se - e a liberdade", Revista do MinMjrio Públi-
imprensa para isto muito contribui - não ter co do Rio Grande do Sul, n. 31, Ed. lU,
havido punição, ainda que a infração praticada 1994,p.215).
tivesse sido levíssima, Ajustiça só se realiza,
de acordo com esse entendimento, se o infrator 3. Por que se pune?
vai para o xadrez. A justificativa da pena estaria na retribui·
Triste e infeliz equívoco. Não é a severida- çIo do mal pelo mal, isto é, a razlo da pena
de da pena nem sua ferocidade que intimidam. estaria no pecado - qu;a peccatum? Ou pune-
Há aqueles que, inclusive, jamais se intimidam, se para que não se volte a pecar - ne peccetur?
daí a proposta da pena de morte, defendida por Ou pune-se porque se pecou e para que Dlo se
alguns. E a certeza da puniçAo e a rapidez na volte a pecar e, também, para que outros do
aplicação da pena que funcionam como fator venham a pecar?
de inibição da pJátiat de crime, e não o rigor da Na verdade, a pena não é só castigo (seria
pena, se a impunidade é o que prevalece. Em uma vingança? -lembremo-nos de que a crian-
meados do século XVIII, Beccacia (Dos delitos ça bate no objeto que lhe causa uma dor). Tal-
e das penas, Atena Editora: São Paulo, 4.- 00., vez. em essência, esta seja sua maior carga -
p. 111) já percebera que: fazer sofrer quem causou um mal·, apaziguan-
"Não é o rigor do suplício que previ- do, desse modo, a revolta, a indignação públi-
ne os crimes com mais segurança, mas a ca. Dizia Durkheim (apud Alberto 2acharas
certeza do castigo, o zelo vigilante do Toron, Prevenção, retribuição e criminalidade
magistrado e essa severidade inflexível violenta (o Tao do direito penal) in Livro de
que só é wna virtude no juiz quando as EstudosJurldicos, v. 7,IEJ, 1993, p. 421) que:
leis silo brandas. A perspectiva de um "A sociedade 'pune, não porque o
castigo moderado, mas inevitável, cau- castigo lhe ofereça por si só próprio al-
sará sempre uma impressiJo mais forte guma satisfação, mas para que o temor
do que o vago temor de um supllcio ter- da pena paralise as más vontades·.,..
rlvel, em relaçlJo ao qual se apresenta A pena é, igualmente. instrumento de pre-
alguma esperança de impunidade." venção geral (intimidação geral), fazendo que
Pode-se conceber que o matuto seja con- só a ameaça de sua aplicação afaste o desejo de
denado à pena mínima de dois anos por matar cometer-se ocrime. Disse Garófalo (Crimino/~
gia, SP, Teixeira & Innão-Editores: São Paulo,
... 1I• .,••t. fi• • nlor....... L.....",'''.
1893, pp. 215/216): eles nem a sociedade sofram danos maiores, e
"A imoralidade e os instintos crimi- possam eles cumprir suas obrigações para com
nosos são muito mais comuns do que se sua família e para com a vitima ou a lamilia
pensa; é necessário, pois, que o sistema desta. Em 1976, dizia o grande penalista Rober-
penal seja de natureza a anular as vanta- to Lyra (in Prefácio no livro de Sérgio de Andréa
gens do crime e a fazer seguir uma con- Ferreira, A técnica da aplicaçilo da pena como
duta honesta, senão por sentimento, ao instrumento de sua individualização nos Códi-
menos por cálculo. gosde 1940e 1969, Forense, RJ, 1977, p. lI):
"Há de unir-nos uma mensagem bra-
Tem a pena, outrossim, a ação de pre- sileira de ação contra o crime que não
venção especial, ou seja, tem por finali- prejudique no presente a sociedade, a
dade impedir que o criminosovolte a co- família (do criminoso e da vítima) e não
meter novo delito. A pena, nessa última ameace o futuro com a reincidência cau-
hipótese, reeducaria o delinqüente, rea- sada pela promiscuidade nas prisões e
justaria sua personalidade, tomando-o pelo martírio dos egressos."
apto para a vida em sociedade."
S. A prestação de serviço à comunidade
4. As prisões
Ante os maleficios, a pemiciosidade, da pri-
É sabido por todos que as prisões, em face são por um curto espaço de tempo, o legislador
da superlotação, promiscuidade, da insensibili- de 1984, mediante a Lei n.o 7.209, deu autono-
dade moral dos demais presos e dos carcerej- mia a determinadas penas restritivas de direito,
ros, embrutece, revolta, cria outros vicioso E, penas que restringem a liberdade, mas não a
por estas razões, na verdade, uma escola de privam. São elas:
pós-graduação do delinqüente, quebrando o
último vinculo que o prendia à vida social, como a) a prestação de serviços à comunidade;
cidadão, tomando-o um celerado. A prisão, b) a interdição temporária de direitos; e
deste modo, ao invés de devolver à sociedade c) a limitação de fim-de-semana (Código
homens ressocializados, corrigidos, devolve Penal, art. 43).
homens revoltados, insensíveis, perigosos. São penas autônomas, substitutivas, e não
Ademais, como observou Míchel Foucault (Vi- acessórias.
giar e punir, trad. Raquel Ramalhete, 11. a 00.,
~zes: Petrópolis, 1994, p. 236):
As penas restritivas de liberdade substitu-
em as privativas de liberdade. Logo, o juiz apli-
"... a prisão fabrica indiretamente delin- ca a pena de prisão e, em seguida, a substitui,
qüentes, ao fazer cair na miséria a família se ocorrerem as seguintes condições:
do detento: A mesma ordem que manda a) a pena privativa de liberdade aplicada. se
para aprisão o chefe de fanúlia reduz cada o crime for doloso, deve ser inferior a um ano;
dia a mãe à penúria, os filhos ao abando- entendo que deveria ser até um ano, e não infe-
no, a familia inteira à vagabundagem e à rior a um ano, uma vez que a pena aplicada é, na
mendicância. Sob esse ponto de vista o maioria das vezes, de um ano, e assim, abrange-
crime ameaça prolongar-se." ríamos um maior número de condenados que
Sim. A prisão é um mal. Mas para os crimi- prestariam serviços à comunidade; se culposo,
nosos perigosos (imaginem~se os de altissima a pena pode ser igualou superior a um ano,
periculosidade, aqueles irrecuperáveis - dizem mas, nessa hipótese, devem ser aplicadas duas
que não existe criminoso irrecuperável!), não penas restritivas, desde que exeqüíveis ao mes-
há outra solução. Disse Foucault (Vigiar e pu- mo tempo, ou uma pena restritiva e mais multa;
nir, p. 208): b) não ser o réu, tanto no caso de crime doloso
"Conhecem-se todos os inconveni- como culposo, reincidente; c) a culpabilidade,
entes da prisão, e sabe-se que é perigosa os antecedentes, a conduta social e a persona-
quando não inútil. E entretanto não ve- lidade do acusado, bem como os motivos e as
mos O que pôr em seu lugar. Ela é a de- circunstâncias do crime indicarem que essa
testável solução, de que não se pode substituição é suficiente. (Código Penal, art. 44.)
abrir mão." Decidiu a la Câmara do Tribunal de Alçada do
Ora, assim sendo, os delinqüentes não-pe- Rio Grande do Sul que, "nos crimes culposos,
rigosos, condenados a pena de curta duração, descabe a substituição da pena privativa de li-
não devem ir para a prisão, a fim de que nem berdade por restritiva de direito quando as con-

Ih. .,,. •• 32 n. 1:lt1I1br./jun. 1f1f15


seqüências são irremediáveis e a culpa do agente
é reconhecida como de elevado grau, pela sua tritiva de direito, o condenado vier a ser puni-
demonstrada imprudência ímpar (Rei, Juiz Pila do, por outro crime, com pena privativa de li-
Hoftncister. in: RT6741339). berdade, em que ocorra incompatibilidade en-
Presentes as condições, o réu tem direito - tre a execução da nova pena e a de prestaçlo de
direito público subjetivo - à substituição não serviços à comunidade em execução, esta será
podendo, pois, ficar a conversão ao arbitrlo do reconvertida em pena privativa de liberdade.
juiz. pelo tempo, evidentemente, que fàltar, isto é, se
O tempo de cumprimento dessas penas é o foram, por exemplo, cumpridos oito meses de
mesmo da pena privativa de liberdade que elas doze, a conversão será de apenas quatro me-
substituem, Se o réu foi condenado à pena de ses, o tempo restante. A conversão em pena de
um ano, a pena de prestação de serviço à comu- prisão também poderá ocorrer se houver des-
nidade, que a substitui, terá a duração de um ano. ~rimento injustificado da pena restritiva de
Em que consiste a prestação de serviços ã direito, v.g.: a) não comparecer ao trabalho pc-
nal~ b) rewsar-se a prestar o serviço~ c) praticar
comunidade? Responde o art. 46 do Código
Penal: consiste na atribuição ao condenado de falta grave, no serviço etc. (Código Penal, art.
tarefas gratuitas junto a entidades assistenci- 45). Se o descumprimento for justificável e 010
ais, hospitais, escolas, orfanatos e outros esta- puder a pena de prestação vir a ser cumprida, a
belecimentos congêneres, em programas oomu- melhor sofuçã'o é converté-Ia em mulca, um dia
nitários ou estatais. O trabalho é, frise-se, gra- da pena substituida oorresponderá a um dia-
tuito, senão deixaria de ser pena. O trabalho ai é multa, cujo valor será fixado pelo juiz.
um ônus. Ressalte-se que a prestação de servi- Não é admissivel- atente-se - a oonc:esslo
ços ã comunidade não constitui trabalhos for- de suspensão condicional da pena (sursis) em
çados porque não existe privação da liberdade relação ã pena de prestação de serviços à co-
~~dade - como a qualquer pena restritiva de
tlsica, e sim, restrição. Ademais, deve relacio-
nar-se, atente-se, com as atividades habituais diretto. O sursis suspende a execução da pena
do condenado, levando em conta sua aptidão. privativa de liberdade (Código Penal, art. 77).
As tarefas são atribuídas ao condenado de A suspensão condicional da pena (sursis) é
acordo com suas aptidões, por exemplo, se mé- medida mais gravosa do que a pena de restri-
dico, prestará serviço junto a um hospital; se ção de liberdade, dai sendo esta um direito do
advogado, em assistência judiciária~ se profes- condenado, preenchidas as condições, não se
sor, em um orfanato. Competente para determi- lhe pode negar esse tipo de pena e ooÍtceder o
nar essas tarefas, o horário, bem como a desig- sursis.
nação da entidade onde o serviço será presta- A detração (o abatimento) não se aplica às
do, é o juiz da execução, e não, o da condena- penas restritivas de direito, uma vez que se-
ção. A este cabe determinar a substituição da gundo o art. 42 do Código Penal ("CompuÜun-
pena pr:ivativa de liberdade pela de prestação se, na pena privativa de liberdade..."), só é apli-
de seMços. Se não o fez, o juiz da execução cável às penas privativas de liberdade.
pode fazê-lo, mediante o incidente da conver- No VI Congresso da ONU, realizado em Ca-
são (Lei de Execução Penal, art. 180). racas, em 1980, considerou-se que:
A prestação de serviços será de oito horas "A prestação de trabalho em favor
sema,na,is.. aos sábados, domingos, feriados, ou da comunidade caracteriza moa alternati·
em d18 útil, se não prejudicar o trabalho nonnal va construtiva e econômica à pena de
do oondenado (Código Penal, art. 46, parágrafo prisão e constitui um novo meio de se
único). Essas oito horas poderão ser desdobra- colocar o delinqüente em contato mais
das ~v.g.: quatro horas, no sábado, quatro, no próximo aos cidadãos que precisam de
donungo). ajuda e apoio,"
Apesar de ser um direito público subjetivo 6. Conc1uslJo
do condenado, a pena de prestação de servi- O sucesso desse tipo de pena depende de
ços ã comunidade não fica, como no Código todos - ~ Governo, do juiz e, principalmente,
Penal português (art. 60, n. 4), condicionada à da comumdade - para obem da sociedade. Não
sua aceitação. esqueçamos que a justiça social é o meio mais
Se, no curso do cumprimento da pena res- eficaz de prevenir e combater a criminalidade.

II."'.f. ",. 'nforma." ' ••'.''''••


o recurso especial e as decisões
interlocutórias desafiadas por agravo de
instrumento

DEMÓCRITO RAMOS REINAlOO

A criação do Superior Tribunal de Justiça


pela Constituição de 1988, como instância es-
pecial e intérprete maior da lei federal, ressusci-
tou vetusta discussão que grassava nos Tribu-
nais, especialmente na Suprema Corte, sobre o
cabimento do recurso especial em agravo de
instrumento oriundo de decisão monocrática,
proferido em primeiro grau.
A controvérsia se reacendeu no âmbito dos
órgãos jurisdicionais fracionãrios do STJ, com
revéroero na Corte Especial, chegando a preva-
lecer, na 1. a Turma, o entendimento de que "a
expressão constitucional causas decididas (ar-
tigo 105, m, da Constituição Federal) nãoabran-
geria, para o desafio através do recurso especi-
aI, arestos decorrentes de agravos de instru-
mentos contra decisões de juiz singular" (de
primeira instância).
A rediscussão da matéria, além de sua in-
discutível relevância, no momento em que o
número de processos que acorreu ao Superior
Tribunal de Justiça introjeta-no em crise só com-
parável a que afetou, em tempos idos (e já, ago-
ra, também) a Corte Suprema - causa primeira,
aliás, da criação do STJ - adveio da própria
evolução do sistema jurídico - constitucional
brasileiro-com a promulgação da Carta de 1988,
a vigência do Código de Processo Civil de 1974,
a edição da Lei n.o 8.038f90 e conseqüente re-
vogação da Lei n. o 3.396/58 e o artigo 541 da
atuaI lei do processo.
Alterada a sistemática dos recursos no Có-
digo de Processo vigente, e, em particular, o
procedimento do"agravo de instrumento" , com
as nítidas diferenciações entre este (na sua for-
ma retida) e o antigo "agravo no auto do pro-
Demócrito Ramos Reinaldo é Ministro do Supe- cesso", não se justifica, já agora, a assertiva de
rior Tribunal de Justiça. que, "cabe o especial para o exame de decisões
",. .11••• 32n. f2tJ __./Jun. fee5 67
(no sentido mais amplo), ainda que não extin- TE. Dicionário Contempordneo da Llngua
gam o processo com ou sem julgamento de Portuguesa, v. I, p. 741 - sem grifo no original).
mérito". Os que assim pensam, se limitam ao "Na técnica processual, causa se confunde oom
deslumbre da jurisprudência predominante - demanda. Empregam-se como vocábulos equi-
construída na prevalência de legislação dife- valentes. E esta acepção vem de que a causa é
rente - sem o desvelo de um reestudo acurado o fundamento legal do direito que se quer fazer
da legislação processual, para uma interpreta- valer perante a autoridade judiciária: causa, a
ção sistêmica desta, em conjugação com o pre- razão, extensivamente passou a designar pro-
ceito constitucional (artigo lOS, Un. Descoram- cesso judicial, sendo, pois, equivalente a /iti-
se, ainda, de que, a prevalecer essa compreen- gio." (De Plácido e Silva, Vocabulário Jurldi-
são. virá. em brevíssimo espaço de teml)O. invi- co. v. I, p. 321- sem grifo no original),
abilizar o STl, sufocado por um volume desco- "As expressiIes - preJeciona o constitucio-
medido de processos. nalista Pinto Ferreira - devem ser usadas pelo
A interpretação restritiva, como se verá a legislador em seu sentido wlgar. salvo se se
seguir. Jonge de prejudicar as partes, as benefi- tratar de assunto técnico, quando então será
cia. ensejando, com a desobstrução das pau- preferida a nomenclatura técnica peculiar ao
tas,julgamentos mais céleres, na instáneis der- setor de atividade sobre o qual se pretende le-
radeira gislar." (Revista de InfonnaçiJo Legislativa,
Revivenciar a controvérsia, abrindo espaço Senado Federal. n. 89, p. 183).
para um reposicionamento da doutrina e daju- Como já se observou, alhures. no conferi·
risprudência e despertar a atenção dos advo- menta de competências aos diversos órgaos
gados militantes é o.sentido predominante des- judiciários, o constituinte não se de6OOnIou uma
te despretensioso trabalho. única vez - malgrado abusar da palavra "cau-
1. A Constituição da República. ao estabe- sa" - para o emprego de termo ou expressa0 de
lecer a competência - origináriae recursal- dos significação --Wlgar", como, in exemplis: "fei-
órgãos da Justiça Federal (de primeiro e segun- to", "incidente". "questão", ou mesmo "pro-
do graus) e das Instâncias Especiais (Superior cesso", que tem conteúdo cientffioo próprio (e
Tribunal de Justiça e Supremo Tribunal Fede- sentido diverso do de "causa"). Deixou, o le·
ral), nos artigos 102 a 109, menciona o termo gislador, meridianamente clara a sua intençAo
"causa" nove vezes ("causa em que figura como de usar (ao disciplinar matéria de competência
paneEstado estrangeiro"; "causa entre a Unilo de Tribunais Maiores) exclusivamente da ter-
e os ESf:ados ou Municípios"~ "causas funda- míno)ogiajurldica, com a pre0cupaç40 media-
das em tratado"; "causa em que forem partes ta de ser compreendido e quiçá inspirado na
institui~ pteVidenciárias"', "C3llSaS dtcim- Uçãode quc"aessêuciaeooonteMada lei 1140
das porjuizes e tribunais"). estão nas palavras. mas nas idéias. no espirito.
Entretanto, salvo nos casos de usar um ter- nos superiores conceitos infonnadores da lei.
mojurídico consagrado e específico (como. por Oconteúdo espiritual dela é semam: muito maís
exemplo, mandado de segurança, habeas cor- rico do que o expressado literalmente." (Alipio
pus, reclamação, revisão, conflito de competên- Silveira, Hermen2utica no Direito Brasileiro,
cia. mandado de injunção. habeas data, etc.). v. I, p. 5 - sem grifo no original).
os vcx:ábuJos empregados pela Lei Magna são: O juiz atribui aos vocábulos sentido resul-
"causa", "liligio", "açâo" (artigo 102, I. a, e, n, e tante da linguagem vulgar; "potém, quando
111; artigo lOS, lI, c, e III; anigo 108,11; artigo empregados termos jurtdicos - ensina carlos
109, I, II,e rrI. e §§ V', 2.° e 3.'. Maximiliano -, deve-se ter havido preferência
Isso significa que o legislador constituinte, pela linguagem técnica. No direito públicousam-
ao disciplinar. em capitulo próprio. matéria de se mais dos vocábulos no sentido técnico; em
escomunal relevância. qual seja, a de estipular diJeifo privado, na acepçlovuJgar. Em qualquer
a competência de Instâncias Especiais. utilizou- caso, entretanto, quando haja antinomia entre
se de tennos essencialmente técnicos. assim os dois significados. prefim-se o adotado ge.
entendidos - nos meios judiciais como na ter- ralmente pelo mesmo legislador. conforme as
minologia técnico-jutídica. Causa. segundoos inferências deduziveis ao contexto." (Herme-
dicionaristas, em linguagem forense, "é pr0ces- nêutica e AplicaçlJo do Direito, p. 143 - sem
SO em que se debate e julga. ação. demanda. grifo no originaI).
causa civil, causa criminal" (CALDAS AULE- "Como observa Bierling (Juristische Prin-


zipienlhr. 1911, v. Iv, pp. 214-215), em gerai em- sa da que prevaleceu no Código de Processo
prega-se de preferência a linguagem técnico- Civil de 1974. Sobre o procedimento do recurso
jurídica no direito público, de modo que, caso extraordinário vigia o artigo 863 do Código de
surja diversidade de significações num mesmo Processo Civil de 1939, alterado pela Lei n.o 3.396,
vocábulo. o hcnneneuta, entre a expressão ci- de 2 dejunho de 1958, substituída, em 1974,
entífica e a vulgar, deverá preferir a primeira." pelo artigo 541 do Código de Processo Civil,
(Alípio Silveira, 00. cit.. p. lI). com vigência até o advento da Lei n.o 8.038, de
No texto constitucional- como no disposi- 28 de maio de 1990, cujo artigo 44 os revogou.
tivo sob investigação - não há nenhum indicio, Com efeito, o artigo 863 do Código de Pro-
por mais leve que seja, (como exemplo, a cone- cesso Civil de 1939 tinha a seguinte redação:
xão com outros palavras do artigo ou do capítu- "Art. 863. Dasdecisãesproferidasem
lo. o uso de palavras. no mesmo capitulo, com única ou última instância, caberá recurso
significações diversas, etc.) de que se possa para o Supremo Tribunal Federal, nos
inferir que o termo causa tenha sido emprega- casos previstos no artigo 101, m, letras
do, pelo legislador, em sentido equivalente ao a e d, da Constituição." (Sem grifo no
de questão ("questão é usada significando cau- original.)
sa, demanda. litígio. pelovulgo"). Com a promulgação da Lei n.o 3.396158, cita-
Se o constituinte pretendesse conferir ao da, o artigo 863 da antiga Lei do Processo pas-
preceito um conteúdo mais amplo, seria bas- sou a ter a redação a seguir:
tante escrever: 'julgar, em recurso especial, as "Art. 863. Caberá recurso extraordi-
questões decididas, em única OU última instân- nário para o Supremo Tribunal Federal
cia, pelos Tribunais" , sem nenhuma dificulda- das decisões proferidas, em única ou úl-
de semântica e sem prejuízo algum à clareza e tima instância, pelos Tribunais da União,
perfeição do texto. A presunção, portanto, em dos Estados, do Distrito Federal e dos
tema de redação constitucional, "é a de que o Territórios, nos casos previstos na Cons-
legislador exprima-se em termos técnicos, evi- tituição FetJeral." (Sem grifo no original.)
tando OS vulgares", adotando a denominação
juridico-científica de "causa", quando, no con- Já o artigo 541 do atual Código de Processo
texto, cuidou de matéria de natureza, também Civil estabeleceu:
técnica qual seja, a criação e as hipóteses de "Art. 541. Caberá recurso extraordi-
cabimento do recurso especial e a fixação de nário para o Supremo Tribunal Federal
competência de um Tribunal de instância derra- das decisões proferidas por outros Tri-
deira. bunais, nos casos previstos na Consti-
2. Antes de tentarmos, a seguir, uma inter- tuição da República." (Sem grifo no ori-
pretação integrada mediante a demonstração da ginal)
correlação entre a "expressão constitucional" e Como se observa, ao tempo da formação
o sistema de recursos, no Código de Processo jurisprudencial da Suprema Corte, segundo a
Civil em vigor, é oportuno expender algumas legislação vigente, "cabia recurso extraordiná-
palavras sobre a jurisprudência que se formou, rio das decisões proferidas por outros Tribu-
no Supremo Tribunal Federal, acerca do tema. nais". O substantivo decisões tinha, no Código
Tenhamos presente, desde logo, que os ares~ de 1939, abrangência maior, ooepção muíto mais
tos do Excelso Pretório atribuindo um elastério dilargante, compreendendo, até qualquerjulga-
maior ao vocábulo causa, no texto constitucio- mento: acórdão, sentença, despacho. Até mes-
nal, foram proferidos nos anos de I % I, I%5 e mo as decisões, em sentido lato, dejuiz de pri-
1967 (Recursos Extraordinários n.'" 53.124 e meiro grau (sentenças ou despachos) poderi-
57.728 e Agravo de Instrumento n.o 24.434). am ser objetodoextnlOIdinário (artigo 863),
Não tenho, é evidente, nem o pejo, nem a O Código de Processo Civil de 1913 usou
ousadia de discordar do entendimento firmado, de igual expressão: "das decisões proferidas
na egrégia Suprema Corte, na década de 60. por outros Tribunais" (artigo 541), em antino-
Naquela época, ele se justificava, tanto é que mia, aliás, com os artigos 162 e 163, que fazem
prevaleceu, com o aval de conspícuos juízes e nitida distinção entre acórdiJo, sentença, deci-
juristas. Era outro o Código de Processo Civil são (interlocutória) e despacho. Não restava,
(o de 1939), com uma sistemática recursal díver- pois, ao Supremo Pretório, na prevalência des-

.r.UI... 32n.128 ....Jlun.1895


53 legislação, senão admitir o extraordinário lei ou de Constituiçao, de fonna isolada, desar-
manifestado contra decisdo, entendida esta com ticulando-a do sistemajurldico a que estã.jun~
ampJitudee Jargueza gida. Consiste o processo sistemático. afiança
A Lei n. 8.038. de 1990, não incidiu na eno- Carlos Maximiliano, "em compararo dispositi-
o

ni~. revogando. desde logo, expressamente, no


vo sujeito a exegese com outros do mesmo re-
artIgo 44. a Lei R. o 3.396158 e o artigo 541 do positório ou de leis diversas, mas referentes 80
Código de Processo Civil, limitando ocabimen- mesmo objeto. Por umas normas se conhece o
to dos recursos extraordinário e especial "aos espirito das outras... O direito objetivo 010 é
casos previstos na ConstilJliçi1o Federa" (ar- um conglomerado caótico de preceitos; consti-
tigo 26). A alteração da legislação processual, tui vasta unidade, organismo regular. sistema.
sobretudo na parte dos recursos, impende ser conjunto hannônioo de normas coordenadas,
considerada. por ter indiscutível repercussão em interdependência metódica, embora fixada
na fi~ã? do verdadeiro sentido da expressãO cada uma no seu lugar próprio. De principios
constituctonal- julgarcousosdecididas. (arti- jurídicos mais ou menos gerais deduzem coro--
go lOS, m.) lários; uns e outros se condicionam e restrin 6

3. A Constituição de 1988, a par de instituir gem reciprocamente. embora se desenvolvam


u.m Tribunal de Instância Excepcional, conte- de modo que constituam elementos autônomos
nndo-Ihe competências originária e tee\1I5lll, em aunpos diversos" (obra citada, pp.16Se 166).
criou um novo recurso, o especial, com feição 4. Na estria de uma interpretação sistemáti6
de extraordinário, erigindo o Superior Tnbuna1 <:a, ~~te do confronto entre a expresslo
de Justiça em intérprete máximo da lei federal, COnstituCional -julgar CQllSOS decididas - e a
com função de unificar a jurisprudência dos disciplina da interposição. do processamento e
Tribunais que lhe estão vinculados, em hieTaf- dos efeit<lS 00 agravo instrumentado, como pJe-o
quia, deixando a regulamentação dos procedi- c,onizada no atual Código de Processo Civil (81'6
mentos ã legislaçãO ordinária (Código de Pr0- Ugo 522 e § 1."), a conclusão que me parece
cesso Civil e Lei n.o 8.03&'90). mais correta - entendendo-se esta em 1imçIo
do que a ordem jurldica considera como senti-
Destarte. há otn entrelaçamento de tal or- do de justiça - é a de que não tem cabida o
dem entre as normas constitucionais e o Códi- conhecimento, pelo STJ. de rocurso especial
go de Processo Civil - na parte pertinente ao manifestado contra acórdão proferido em agra-
sistema de recursos - que se não pode preten- vo de instrumento desafiando decido interlo-
der uma interpretaÇão isolada, de umas ou de cutória de juiz de primeiro grau.
outras, sem cotejá-tas, numa integração recipro-
ca. Os juristas, aliás, identificam um paralelo O Código de Processo Civil, ao indicar DO
entre a disciplina do processo e o regime c0ns- artigo 522, as hipóteses de cabimento do a8m-
titucional em que ele se desenvolve. "Todo o vo de instrumento. dispôs:
direito processual, como ramo do direito públi- "§ J. o Na petição, o agravante poderá
co, tem suas linhas fundamentais traçadas pelo requerer que o agravo fique retido nos
direito constitucional, que fixa a estrutura dos autos, a fim de que dele conheça o tribu-
órgãos jurisdicionais, que garante a distribui- nal, preliminannente, por ocasião dojul 6

ção da justiça e a declaração do direito objetivO gamento da apelBção~ reputar-se-ã renun-


e estabelece alguns princípios processuais' e o ciado o agravo se a parte nlo pedir ex-
direito processual penal chega a ser apontado pressamettte. n8S razões ou nas contra-
oomodi~oooo~tucioom~i~~~ razões da apelação, sua apreciação pelo
entre autoridade e liberdade. O direito proces- Tn'bunal." (Sem grifo no original.)
sual é fundamentalmente detemúnado pela Nesta fase, façamos um esclarecimento te--
Constituição em Itmitos dos seus aspectos e memorativo.
institutos caracteristicos. Alguns princípios que
o informam são, ao menos inicialmente, princi- No Código de ~ Civil de 1939. em-
pios constitucionaiS, ou seus corolários." (An- bora persistam alguns aspectos de convergên-
tônio Carlos Araújo Cinua. "Direito Processwd cia, o recurso de agravo tinha diferente formu-
Constitucional", iJ' Teoria Geral do Processo, lação. O agravo de ill$tnJmento era o recurso
p.75.) adequado para afrontar decisões proferidas em
incidentes processuais, mas oom o elenco deli-
Constitui regra básica de hermenêutica a de mitado no artigo 842. O agravo no auto do pro--
que se não pode interpretar uma norma, seja de
70
cesso circunscrevia-se aos casos específicos, da ao desprovimento desse agrm1o, no dizente
elencados em numerus clausus (artigo 851). às questões nele articuladas. O agravo retido
Esses recursos não poderiam ter uso indiferen- tem o efeito diferido - sem perda de sua nature-
te, pelas partes, já que os casos de cabimento za de agravo -, preservando as questões, nele
de cada espécie (agravo de instrumento ou agra- suscitadas, do risco da preclusão, transferi ndo
vo no auto do processo) eram definidos em re- sua apreciação ao tribunal ad quem, como pre-
lação exaustiva. 1. C. Barbosa Moreira configu- liminar do julgamento da apelação. Pode ser
rou, em síntese de inigualável clareza, a indole manejado no processo de conhecimento, no de
do aKrm>o no auto do processo (que se distan- execução, no cautelar e nos procedimentos es-
cia do atual agravo retido): "O cabimento do peciais. "Ocioso é acrescentar que, se agravan-
agravo no auto do processo cingia-se a deter- te o vencedor, de modo nenhum se exige, para
minados casos expressamente prescritos na lei facultar-lhe Q pedido de julgamento do agravo
(Código de 1939. artigo 851), e nesses não ha- nas contra-razões, que a apelação venha da
via alternativa para a parte, a não ser a de omi- parte contrária. O apelante pode ser o Ministé-
tir-se: não lhe era dado optar entre a retenção rio Público, até aí na função de custos legis, ou
nos autos e a subida imediata, por meio de ins- terceiro prejudicado." O. C. Barbosa Moreira,
trumento." (Comentários ao Código de Pro- Comentários ao Código de Processo Civil, v.
cesso Civil, v. V, p. 464.) V, pp. 468 e 469.)
Não se admitia, portanto, o recurso indife- O conhecimento do agnn'o retido, prelcci-
rente, mesmo consagrado pelo Código revoga- ona O processualista Athos Gusmão Carneiro,
do o princípio da fungibilidade (artigo 810), não sofre óbice algum pela ausência de apela-
porque, no caso, o uso do agravo de instru- ção voluntària, quando a sentença sobe ao re-
mento ao invés do agravo no auto do processo exame do Tribunal apenas por força do dispos-
(ou a recíproca) configurava erro grosseiro cuja to no artigo 475 do Código de Processo Civil.
"inescusabiJidade derivava da circunstância de Exegese diversa não só poderia causar grave
se haver deduzido recurso impertinente, em prejuízo ã parte contrária ã Fazenda, como in-
substituição daquele expressamente previsto na fringiria o princípio fundamental da igualdade
lei" (Revista Forense, 911123). "Os Tribunais das partes, pois o reexame necessário abrange
recusaram sempre (na vigência do Código de também as questões incidentais resolvidas em
1939) o conhecimento de um recurso ao invés desfavor ao poder público (RF, 254/3 14).
de outra espécie recursal cabível e adequada" Impende considerar que, de todas as deci-
(RF. 1631215. Revista dos Tribunais, 498/105; sões interlocutórias desafiáveis por agravo de
RP. 4/493) (S1F). instrumento, pode o recorrente pedir que ele
Em suma: na vigência do Código de Proces· fique retido. O dispositivo do artigo 522, § 1.0,
so de 1939, sendo outra a disciplina dos recur- do Código de Processo Civil é peremptório e
sos, era, em ordem de princípio, impraticável a inadmite restrições. Não importa que se trate de
interpretação sistemática, conjugando-se nor- incidentes processados em apartado, como, ad
mas da Lei do Processo e da Constituição Fe- exemplum - a impugnação do valor da causa
deral, visando ao desiderato que, agora, vigen- ou as exceções de impedimento ou suspeição.
do outra legislação, se tenta alcançar. Sendo a hipótese de agravo de instrumento,
poderá haver retenção, salvante as pouquíssi-
5. Na petição, repito, diz o atual COdigo (§ mas exceções que docomm da própria slstema-
1.° do artigo 522), que "o agravante poderá re- tização dos recursos, na legislação processual
querer que o agravo fique retido nos autos, a (verbi gratia, o agravo de instrumento contra
fim de que dele conheça o tribunal, preliminar- decisão indeferitória do processamento dos re-
mente, por ocasião dojulgamento da apelação". cursos em geral, inclusive do especial e do ex-
A interposição do agravo, com a manifestação traordinário), mas que não se inserem noobjeti-
da parte para que fique relido evita que a sen- \'0 do presente trabalha.
tença a ser proferida na causa (abrangente ou O insigne Theotônio Negrão, espiolhando
não do mérito) transite em julgado, ou torne a todo o Código de Processo, com vistas à iden-
matéria ventilada no agravo (retido),prec/uso. tificação de ded.s6es em que, embora compor-
O ataque das decisões interlocutórias. pela via tassem o agravo de instrumento, fosse inviá-
do agravo retido, tem a força de fazer com que vel, todavia. a forma retida, escreveu: "No pro-
a sentença (tenninativa da causa, em primeira cesso de execução, nem sempre cabe apelação
instância) fique com a sua eficácia condiciona-
8,__11••. 32 n. 12f111brJJun. 1995 71
e, neste caso, o agravo retido não teria como instância), ai, já abrangente das matérias discu-
chegar à superior instância" (Código de Pro- tidas nas decisões monocráticas de primeiro
ce:~:.;o CiI'i/ e Legislaçt10 Processual em Vigor, grau e daqueloutras que motivaram a apela-
23.· 00., nota 11 ao artigo 522, p. 353). Tenho, çilo, que se deve atacar pela via do recurso es-
entretanto. a ousadia de discordar do eminente pecial.
jurista. Em primeiro lugar, apesar de o agravo Esta é a conclusão que me parece mais raci-
retido di ferir ojulgamento da matéria ao Tnbu- onal, com base em interpretação sistemática. Se
nal. não perde a sua natureza de agravo, possi- prevalecente, reduzirá, em média, vinte e cinco
bilitando o juizo de retratação. Ao depois, o por cento dos recursos especiais, na área de
processo de execuçéfo, ainda quando não fo- direito público (e quiçá, percentual muito mais
rem opostos os embargos (se não ultimado sem elevado, na Seçfjo de direito privado, em que
ojulgamentodo mérito), só se extingue por uma são numerosas as questões processuais embu-
das motivações previstas no artigo 794 do CPC, tidas em agravos), sem nenhum prejuizo para
e a extinção SÓ produz efeito quando declarada as partes, porque delas não se retira a possibi-
por sentença, sendo esta apelável (artigo 795 lidade do reexame de matérias - desde que con-
do Código de Processo Civil). tidas em agravo retido - pela instância superi-
J. C. Barbosa Moreira, em seus Comentários or, nem cria óbice intransponível que impeça
ao Código de Processo Civil, alinhou, casuis· esse reexame, nem configura, por isso mesmo,
ticamente, a quase totalidade das decisões que, restrição ilegal ao direito de recorrer.
no processo de execução, estão sujeitas ao Ao revés: em prevalecendo esse entendi-
agravo (obra citada, p. 462). mento, direcionar-se-á a atividade das partes
Até mesmo na hipótese do artigo 558 e seu para o uso das formas recursais adequadas e
parágrafo único do CPC - quando, ao agravo, cônsones com a economia processual, impe-
poder-se-á conferir efeito de suspender a exe- dindo o manejo de recursos inúteis, que pos-
cução de certas medidas judiciais -, nada impe- tergam, indefinidamente, a prestação jurisdici-
de que a parte faça a opção pelo agravo retido. onal e afogam os Tribunais Superiores com in-
Em casos expressamente defmidos em lei, ojuiz cidentes protelatórios (e numeroso acervo de
perante o qual se interpôs o agravo, ou o rela- processos), dificultando OU impedi~s, até,
tor, pode. a requerimento da parte, "suspender de cumprir a sua destinação constitucional, que
a execução da decisão agravada", até o julga- é a de proferir juizo, em definição derradeira e
mento do recurso, pelo Tribunal. Acompetên- irrefragável, sobre questOes juridicas de proe-
cia, esclarece Barbosa Moreira, "para decretar minente relevância, na interpretação da legisla-
a suspensão antes da subida, remanesce no ção federal.
órgão a quo, ainda que o agravo fique retido
nos autos e só venha a subir com a apelação 6. A interpretação que defendo nfo inoorre
porventura inteJPOsta contra a sentença; neste na censura impetuosa de alguns juizes:
caso, pois, o agraV'".:mte pode requerer a sus- "Não podemos, de fonna alguma su-
pensão em qualquer momento anterior à execu- fragar interpretações que cerceiem a c0m-
ção da medida, ou mesmo em se tratando de petência do STJ quanto à salvaguarda
providência que se protraia (como a prisã~ do da inteireza do direito público federal. As
depositário infiel) enquanto ela perdure. E in- decisões dos Tnbunais de apelação, mes-
tuitivo. contudo, que normalmente optará o mo proferidas em agravo, desde que apli-
agravante. em hipóteses tais, pela subida ime- quem lei federal, não podem nunca ficar
diata" (00. ev. cits., p. 472). sem a possibilidade de reexame deste
Tribunal. Caso contrário, passaríamos a
Pois bem: ficando o agravo inserido nos ter Tribunais de úJtima instância espa-
autos, a requerimento da parte, e uma vez en- lhados por todo o território nacional, atda
cerrado o procedimento, no primeiro grau de um dando a última palavra, em termos de
jurisdição (com ou sem conhecimento do méri- interpretação e aplicação de lei federal"
to), se da sentença se interpuser apelaçilo (ou (Embargos de Divergência n.O 19.481-1).
ela estiver submetida ao obrigatório duplo grau
de jurisdição), ao Tribunal ad quem competirá, O equivoco em que incorrem os que são
ao ensejo do respectivo julgamento, apreciar avessos ao entendimento aqui defendido, s0-
as questões objeto do agravo retido. E, portan- bre vislumbrarem a possibilidade de "cerceio à
to, este último decisório (proferido em última competência do STJ e da transformação de Tri-
bunais ordinários em instâncias especiais", re-
72
sulta de inexata compreensão da tese e da ine~ fez com outros vocábulos, ao fixar o elenco de
xistência de discussão mais profunda sobre o competências de juízos e Tribunais de Instân-
alcance do tema. cia Especial (artigos 102, 105 e 109), por cuidar
Todavia. o entendimento que preconizo não de assunto essencialmente técnico;
me veio ao acaso, sem a devida meditação e b) se o constituinte pretendesse imprimir,
sem que me debruçasse, ao longo do tempo, no ao dispositivo (artigo 105, I1I), um conteúdo
estudo comparativo da Constituição e da legis- mais amplo, tê~to~ia feito, escrevendo, em seu
lação processual. contexto: ''julgar, em recurso especial. asques-
tões decididas, em única ou última instância,
A apreensão dos que dele discordam, como pelos Tribunais", sem dificuldade semântica e
se ouviu da exposição, não tem razão de ser. sem prejuízo à clareza e preci são do texto - quod
Não há restrição de competência do STl. Não lex non distinquit, non distinguere possumuS',
se quis, em momento algum, afastar as deci~ c) ao conferir competência aos órgãos judi-
SÕCS interlocutórias do crivo do Superior Tri-
ciários (em todo o capítulo II1 do Título IV da
bunal de Justiça. O que se pretende é racionali- Constituição), o constituinte não se desbordou
zar o uso do agravo. uma única vez - apesar de abusar da palavra
Não é demais repetir, com apoio nas lições "'causa" - para o emprego de termos ou expres-
dos juristas, que o agravo de instrumento, hoje sões de significação vulgar, usando exclusiva-
considerado recurso anacrônico e superado, mente de terrninologiajurídica, com o espírito
não surte, na grande maioria das vezes, outro preconcebido de evitar a confusão de conceitos
efeito prático, senão o da procrastinação (The- ou dúvidas na aplicação de seus dispositivos;
otômo Negrão, ob. cit., p. 354). Tanto que al- d) de uma interpretação sistemática resul-
guns juristas sugerem, ainda que de lege lata, tante do confronto entre a expressão constitu-
que se reconheça ao juiz o poder de indeferir, cional- julgar causas decididas - e a discipli-
por falta de interesse, a formação do instrumen- na da interposição, do processamento e dos
to, impondo ao agravante o caminho da reten- efeitos do agravo de instrumento (Código de
çl10 (MoRiz Aragão, Considerações Práticas Processo Cívil, artigo 522 e § 1.0), a conclusão
sobre o Agravo, Rf?Vista Forense, 246/65). que me parece mais correta - entendendo-se
Adverte Barbosa Moreira, que negar a via- esta em função do que a ordem jurídica consi·
bilidade da retenção é atitude que contravém dera como sentido de justiça - é a de que o STJ
de frente a uma aspiração generalizada ejusta. não deve conhecer de recurso especial mani-
A tendência que vai predominando é exatamente festado em agravo de instrumento que desafia
a oposta: prestigiar mais o agravo retido, cer- decisão interlocutória de juiz de primeiro grau,
ceando o emprego da outra modalidade para por ser a única condizente, a meu sentir, com os
evitar delongas a que costuma dar ensejo (Re- interesses da justiça e o princípio da economia
vista de Processo 311269). processual;
Interposto o agravo na sua forma retida
contra decisão interlocutória, as questões nela e) essa conclusão - a mais racional - não
suscitadas não prec/uem, mas ficam no aguar- acarretará prejuízo às partes, porque destas não
do dojulgamento pelo Tribunal ordinário, con- retira a possibilidade do reexame de matérias -
juntamente com as demais matérias que objeti- desde que contidas em agravo retido - pelo
varam a demanda. Esse último julgamento fica Superior Tribunal de Justiça, nem cria óbice in-
sob a censura do Superior Tribunal de Justiça, transponível que impeça esse reexame e não
acaso manifestado o especial. Não baverá, pois, configura, por isso mesmo, restrição ilegal (ou
nenhuma questiúncuIa, decidida no curso do pro-- inconstitucional) ao direito de recorrer; essa
cesso, imune ao reexame da instância derradeira. interpretação, ao revés, direcionará a atividade
das partes para o uso racional das formas re-
Do exposto, conclui-se: cursais adequadas (preferindo sempre o manu-
a) o legislador constituinte, ao atribuir ao seio do agravo retido) e congruentes com a
STJ competência para julgar, em recurso espe- economia processual, impedindo o manejo de
cial, as causas decididas, em única ou última recursos inúteis, que postergam, injustificada-
instância, pelos Tribunais (artigo 105, IIl), con- mente, a prestação jurisdicional e afogam as
feriu à palavra Causa o sentido cientEfico, téc- instâncias especiais com incidentes protelató-
nico-juridico, inscrevendo~a na acepção de rios, dificultando ou impedindo até o STJ de
"ação", "demanda", "litígio", tanto quanto o

"""••. 32". 128 .twJjun. 1885 73


cumprir sua destinação constitucional, que é a pIo de quesrdo, resultou de jurisprudênda, em
de proferirjuí7D. em definição derradeira, sobre principio com profundas divergencias - entre
questôcsjuridicas de proenúnente relevância, na Ministros e Turmas - constndda em décadas
i ntcrpretar;ão da legislação infraconstitueional; anteriores a 1970, quando a composiçlo do Ex-
O essa orientaçâo não restringe o uso do celso Pretóno era inteiramente outra e legisla-
agravo de instrumento, ao ponto de fazer letra ção processual (Código de 1939) - na parte per-
morta do dispositivo do Código, que o instituiu tinente aos recursos - tinha disciplina diferen-
(mesmo porque poderá ser manejado livremen- te; promulgada a Constituição de 1988. I'e\'Oga-
te na esfera das instâncias ordinárias); a parte do o Código de Processo Civtl de 1939 e tendo
continua com o direito de opçdo entre o agravo em vista as alterações previstas na Lei n.a 8.0381
de instrumento e a sua fonna retidtl; mas não 90, artigo 44, a egrégia Suprema Corte de Justi-
lhe atribuísse poderes ab.'mluto.5 na escolha do ça ainda não enfrentou a controvérsia, anali-
recurso - ou in.vtmmentado OU retido; o limite sando O texto constitucional sob o pálio de uma
do direito à opção da parte está em que deve interpretação sistemática, com as regras do
obedecer o pincípio da economia processu- Código de Processo Civil em vigor;
a/o que é o que consulta, prevaJentemente, os i) embora nas causas em que forem parte
interesses da justiça e da coletividade. Estado estrangeiro ou organismo internacional,
Há de incidir. aqui, a vetusta paremia: o di- de um lado, e, de outro, Município, julgadas,
reito mo dá todo direito, nem o seu uso confere em primeiro grau de jurisdição, pejos juízesfe-
arbitrariedade. Levado a suas últimas conse- derais. o recurso seja o ordinário para o ST', o
qüências, já não se teria o uso regular, mas o sistema de recuJSOS é o do CPC (artigos 36 e 37
abuso do direito, O que já os romanos profliga- da Lei n." 8.038); pelo principio da economia
vam com veemência com argumentos sintetiza- processual, a parte deve usar do agravo, na sua
dos no conhecido apotegrna: sumum jus, sum- fonna retida, para desafiar as decisões do juiz
ma injuritl. de primeiro grau (Lei n. o 8.038190, artigo 36, U);
No preâmbulo da Constituição, ao se cons- O Superior Tribunal de .Justiça, ao apreciar o
tituir um Estado Democrático destinado a asse- recur.;o ordinário (CF, artigo 105, Il, e), decidirá,
gurar o exercício dos direitos individuais e s0- em conjunto. todas as questões fragmentarias
ciais, se elegeu a Justiça como um dos ...-alares inseridas nos agravos retidos eas demais moti-
supremos da sociedade. Toma-se curial que, vadoras do litígio; desse decisório do STJ, pro-
ao exercer o seu direito. o titular terá que se ferido em última instância, é que poderá caber,
amoldar aos interesses maiores do idcário da nas hipóteses previstas na Constituiçao, recur-
Justiça - em seu sentido mais abrangente - e so I?rtraord;nório; optando, a parte, pelo ma-
gue condiz com a reali7.açlo do bem coletivo. nejo do agravo de instrumento contra as deci-
O processo, que é um meio, não pode exigir sões interlOCU1Órias dos jui7.es federais de pri-
um dispêndio superior ao valor dos bens - ou meira instância, se apreciados pelo STJ, pode-
da relevância da matéria - que esta<> em debate, rão surgir tantos recursos extraordinários quan-
que são o seu fim; uma necessária proporção tos forem os agravos tnstnunentados~ entre-
entre o fim e os meios deve onentar a economia tanto, se se deve ou mIo conhec:er desses re-
do processo e, conseqüentemente, a atividade: cursos, é tarefa privativa do coIendo Supremo
das partes, no âmbito do processo (conf. Eduar- Tnõunal Federal;
do Couture, Fundamentos de DireiJo Proces- j) a expressão oonstitucional CQUSQS deci-
sual Ovi/, p. 188); didas na<> pode ter compreenslo dílargante a
g) excepcionalmente, para os casos (aliás. ponto de abranger, para justificar o conheci-
ainda não identificados pelos processualistas) mento do apelo especial. arestos decorrentes
em que ajurisprudência vier a entender que lUIo de agravos instrumentados contra decisOes do
cabe, das decisões monocráticas de primeiro juiz de primeiro grau.
grau, o agravo em sua fonna retida, ai. nada
impede que o STJ conheça do recurso especial O conhecimento do recurso especial, em
em agravo de instrumento (Código de Proces- agravo de instrumCJlto, exige que cge se origi-
so Civil, artigo 558); ne de uma decisao (em primeiro grau de jurisdi-
h) o entendimento do Supremo Tribunal ção), que extinga o processo, com ou semjul-
Federal, ao conferir ao termo causa (na vigên- gamentode mérito.
cia de Constituições revogadas) o sentido am~

74
Consulta e parecer

REN( ARIEL 0001

1. o Doutor Ricardo Sampaio, na qualidade


de Presidente do egrégio Tribunal Regional do
Trabalho da 9.& Região, formula Consulta e so-
licita Parecer a propósito de aspectosjuridicos
relacionados com as requisições que recebeu
em data de 9 do corrente mês, oriundas do Se-
nhor Procurador-Chefe da Procuradoria Regio-
naJ do Trabalho no Paraná.
2. As atudidas requisições, após as indka-
ções das autoridades requisitante e requisitada
e de seus endereços, têm, respectivamente, o
seguinte conteúdo:
"Assunto: Requisição (faz)
Senhor Presidente,
Tendo em vista as atribuições cons-
titucionais conferidas ao Ministério Pú-
blico da União (arts. 127 e seguintes);
considerando a decisão do Supremo Tri-
bunal Federal ao julgar o RE 163204-6,
com voto do Ministro Carlos Veloso, se-
gundo a qual "a acumulação de proven-
t.os e 'Vencimentos somente é permi1ida
quando se tratar de cargos, funções ou
empregos acumuláveis na atividade, na
forma pennitida pela Constituição (CF, art.
37, XVI, XVII; art. 95, palágrafo único)" e
com fundamento no inciso XXXIII do 3rt.
5.° da Constituição Federal e no inciso li
doart. 8." da Lei Complementar n." 75193,
requisito de VOssa Excelência, no prazo de
IO(dez) dias, as seguintes informações:
1. Nome de servidores aposentados
em cargos públicos que estejam exercen-
do cargo em comissão ou de provimento
efetivo do quadro de Jlessoal desse egre-
gio TRf ou que estejam no exercido de
cargo de juiz nesta Região da Justiça do
Rene! Anel Dotti é professor de Direito Penal. Trabalho, com a especificação das res-
. . . ." ••• 32n. 126 ....Jlun. 1ft5 75
pectivas funções, 2. Se há algum magistrado exercendo
2, Nome de juizes aposentados que atividadesjurisdicionais na 9,1 Regilo da
se encontrem na mesma situação referi· Justiça do Trabalho que tenha prestado
da no item anterior. concurso, sido nomeado e empossado
em outra Região da Justiça do Tmbalho,
3. Quais as providências que estão
e desde quando.
sendo tomadas pela Administração do
TRT da 9,· Região no sentido de fazer 3. Quais as providências que estio
cessar a, acumuiação inconstitucional, sendo tomadas peja Administraçlo do
acaso eXistente. TRf da 9,1 Região, caso positivas as
Observo que "nenhuma autoridade respostas aos itens anteriores, no senti·
poderá opor ao Ministério Público, sob do de fazer cessar tal irregularidade.
qualquer pretexto, a exceção de sigilo, "Observo que "nenhuma autoridade
sem prejuizo da subsistência do caráter poderá opor ao Ministério Público, sob
sigiloso da infonnação, do registro. do qualquer prete.uo, 3 e."ceçao de sigilo,
dado ou do documento que lhe seja for· sem. prejuizo da subsistência do caráter
necido" (Lei Complementar n.°75/93, 3rt. sigiloso da informaçlo, do registro, do
8.°, § 2.' e aleno que "a falta injustifica- dado ou do documento que lhe seja for-
da e o retardamento indevido do cumpri- necido" (Lei Complementar nO 75193, art.
mento das requisições do Ministério Pú- 8.°, § 2.") e alerto que "3 falta injustifica-
blico implicarão a responsabilidade de da e o retardamento indevido do cumpri-
quem lhe der causa" (LC n.o 75193, art. mento das requisições do Ministério Pú-
8.°, § 3."), blico implicarão a responsabilidade de
quem lhe der causa" (LC 0.° 75/93, art.
Cordialmente. 8.°, § 3.").
Cliceu Luis Bassetti
Cordialmente,
Procw'ador-Chefe da PIIT do Parnná".
Assunto: Requisiçtlo (faz)
Cliceu Luis Bassetti
Senhor Presidente,
Procurador-ehefe da PIU do Paraná"
3. Indaga-me o ilustre ConsuJente quanto ã
Tendo em vista as atribuições cons- validade da/arma utilizada pelo autor das re·
titucionais conferidas ao Ministério Pú- quisições e sobre a legalidade da advertência
blico da União (arts. 127 e seguintes); constante do final dos expedientes,
considerando recentes manifestações do Passo a responder,
Tribunal Superior do Trabalho. no senti-
do de serem inaplicáveis aos magistrados 4. Estabelece o art, 8.°, lI, da Lei Comple 6

OS dispositivos da Lei n.o 8.112191, que


mentarn,O 75, de 20 de tnaio de 1993, que "para
tratam de permuta, tendo em vista a au- o exercicio de suas atribuições. o Ministério
sência de previsão para tanto na lei pró- Público da União poderá, nos procedimentos
pria dos juizes (Lei Orgânica da Magis- de sua competência: 1-(...); n- nquisitar infor-
tratura Nacional), em especial o Of. mações, exames, perícias e documentos de
TST.GP.CIRC. N.o 248193, endereçado autoridades da Administração Pública direta ou
pelo entlo presidente do TST, Ministro indireta"
Orlando Teixeira da Costa, a todos os Tri- O ato de requisição é vinculado às exi-
bunais Regionais do Trabalho; e com gências da fonoa, do motivo e da competência,
fundamento no inciso XXXIII do an, 5.° como se procurará demonstrar adiante.
da Constituição Federal e DO inciso 11 do 5. O exercício regular do poder-de"Cr da re-
art. 8.° da Lei Complementar n.° 75/93 re- quisição tem 3 sua base fundamental no inciso
quisito de ~ Excelência, no p~de VI do art. 129 da Constituição. Declara o texto
10 (dez) dias, as seguintes informaçt'les: que, entre as funções institucionais do MiJlisté..
I, Se existe algum magistrado que te- rio Público, está a de "expedir notificações nos
nha prestado concurso, sido nomeado e procedimentos administrativos de sua com-
empossado na 9.& Região da Justiça do petência. requisitando informações e docu-
Trabalho e que esteja vinculado 3 outro mentos para instrui-los, na forma da lei comple-
regional. porconta de "permuta", e des- mentar respectiva".
de quando. É certo que a fonte normativa decorre da Lei

li....'. de 'nfor...... 1.. .,.,.,,,.


Complementar n.o 40, de 14 de dezembro de oferecendo-lhe maior possibilidade de ação e
1981, art. 15, I. e foi reafinnada, emcaráterespe- evitando o constmngimento de se conservar -
citico, pelo § l.0 do art. 8.° da Lei n.07.347, de 24 tal qual ocorre com a apuração criminal rotinei-
dejulho de 1985, que disciplina a ação civil pú- m - como estação repetidora de prova que já
blica de responsabilid.1de por d.1nos causados lhe vem defeituosa pelos vícios da má colheita
ao meio ambiente. ao consumidor, a bens e di- e amarelecida no tempo Pela força dos entraves
reitos de valor artístico, estético. histórico, tu- burocráticos quando não O seja pelas pressões
ristico e pa isagístico 1. Neste último texto se de- ilegítimas. O inquérito civil constihIi-se na bús-
clara que o Ministério Público "poderá instau- sola a guiar o órgão do Ministério Público em
mr, sob sua presidência, inquérito civil, ou re- direção ao rumo norte da verdade material. Sob
quisitar. de qualquer organismo público ou par- outro aspecto, é um instrumento ágil e eficiente
ticular, certidõcs, informações. exames ou perí- a salvo de fórmulas barrocas e de expedientes
cias, no prazo que assinalar, o qual não poderá protelatórios que não mais se podem admitir
ser inferior a 10 (dez) dias úteis". num processo moderno. O inquérito civil deve
6. A. importância da requisição e do inquéri- ser considerada também CQmo um dQS meias
to civil como instrumentos necessários à pre· de prevenção de futuros danos ecológicos~
servação dos bens e interesses perseguidos pela além de se constituir em procedimento adequa-
ação civil pública é incontestável. A propósito do para instruir a própria ação penal, dispen-
<1.1 missão do Ministério Público na defesa dos sando o inquérito policial assim como o pemúteo
interesses difusos, e. especialmente, quanto aos § 5.°00 artigo 3900 Código de ProcessoPenal."2
nO\'os mecanismos de ação, já tive oportunida- 7. Na espécie da consulta, estão em desta-
de de salientar: "A Lei Orgânica do Ministério que dois aspectos essenciais inerentes às rela-
Público alargou o âmbito das atribuições funci- ções administrativas e funcionais entre oMinis-
onais dos membros da Instituição que, sob o tério Público e o Poder Judiciário. O primeiro
comando das regras do Código de Processo deles diz respeitoàJonna utili7.ada pelo Procu~
Penal, eram muito limitadas. Assim, além da pr0- rador para obter as infonnações; o segundo, ao
moção de diligências e requisição de documen- alerta de que "a falta injustificada e o retarda-
tos. certidões e informações junto a qualquer mento indevido do cumprimento das requisi-
repartição pública ou órgão federal, estadual ções do Ministério Público implicarão a respon-
ou municipal. tanto da administração direta sabilidade de quem lhe der causa". Tal adver-
como indireta: além de poderdirigir~se direta- tência é ditada pelo § 3.° do art. 8." da Lei
mente a qua lquer autoridade: de expedi r notifi- Complementar n. ° 75/93, que foi tmnscrito nos
cações: de acompanhar atos de investigação expedientes.
junto a org;lnismos policiais ou administrativos; 8. A requisição, para adquirir validade (e
de assumir a direção de inquérito policial. etc., eficácia), deve reunir os três elementos de cons-
(arts. 15 e outros). poderá o Ministério Público tituição do ato jurídico em geral: a) agente ca-
agora instaurar. sob a sua presidência, inquéri- paz~ b) objeto lícito; c) forma prescrita ou não-
to ch'it tmra o fim de reunir documentos, teste- defesaem lci(Cód. Civil. art. 81).
munhos e declarações e outros elementos de Diante de tal prenússa, fonnula-se a pergun-
prova. inclusive periciais. A revolucionária me- ta: na situação concreta, a requisição seria aJor-
dida estabelece om procedimento investigató- ma adequada para atender ao objetivo visado?
rio a exemplo de outros já consagrados em nos- E quanto ao conteúdo do ato, ou seja, a
sa experiência (inquérito policiaL inquérito advertência de responsabilizar o destinatário da
administrativo, inquérito parlamentar. etc.) e res- requisição pela tardança ou omissão, indaga-
gata a melhor imagem do Ministério Público, se: a ameaça de responsabilização (administra-
tiva, penaL civil, etc.) éjuridicamente possível?
I O poder-dever de requisição de caráter geral em
matéria criminal já consta do Código de Processo Finalmente, teria a autoridade requisitante a
Penal: "Art. n. Incumbirá ainda à autoridade polici- competência para dirigir a ordem?
al: - I (...): II - realizar as diligências requisitadas O assunto comporta considerações pre-
pelo juiz 011 pelo Ministério Público". "Art. 47. Se o
Ministério Público julgar necessários maiores escla- 2 "A atuação do Ministério Público na proteção
recimentos e documentos complementares ou novos dos interesses difusos", trabalho publicado na cole-
elementos de convic<yi!o. deverá Te<\.uisítá-los. direta- tânea Ação Civil Plíb(ica (Tutela dos in(e~s.se.sdijU-
mente. de quaisquer autoridades ou funcionários que: 1$01$. através da Revista do Minis/én'o Público do Rio
devam ou possam fornecê-los". GrandeJo SI//). Porto Alegre, 1986, n. o 19, pp 85/86.

8rllSfll••. 32 n. 126 ""'./Jun. 165 77


liminares. nascimento e à evolução do mesmo. Informa
9. A clássica doutrina de Direito Adminis- Brandão Cavalcanti. louvando-se em Pimenta
trativo salienta que a requisiçiJo é um instituto Buen07, que entre nós, "a tradição é de que
que. embora redutível a uma unidadeconceitu· somente em tempo de guerra ou de grave emer·
al, desenvolve-se em duas direções distintas, gência justifica-se a requisição"'.
estabelecendo relações disciplinadas pelo di· 12. Também analisando a etimologia da ex-
reito positivo. Tais relações diferem quanto ao pressllo e o seu curso histórico, o nosso De
objeto e ao conteúdo, dividindo-se, pois. em Plácido e Silva nos diz:
requisiç/Jes de coisas e requisiçiJes de serviços. "REQUISIÇÃO. Do latim requisilio.
Ensina Guido Lanzi que, "maIgmdo tale suo di- de requirere (requerer, pedir). originaria-
verso attegiarsi, la requisizione é tuttavia un mente exprime o mesmo sentido de Te-
unico istituto, il quale s'inquadra 001 comples- querimento, pedido ou solícitaçl/o.
50 dene norme di diritto pubblico, che banno la Mas, na linguagem. juridica. requisi-
finalità d' imporre ai soggetti passivi della Pub- tar significa pedir com autoridade OU
blica anuninistrazíone una contribuzione coat- exigir.
tiva, con il proprio patrimonio o con la propria
attivítá personale, per il conseguimento di. fini E a requisiçlJo. neste sentido. é a
d'interesse generale"3. exigencia legal ou a ordem emanada da
10. Em seu sentido genuino a requisiçiJo autoridade para que se cumpra, para que
caracteriza-se pela utilização de bens ou servi- se faça ou para que se preste o que é
ços particulares e assim vem conceituada pe- exigido, ordenado ou pedido. "9
Jos nossos mais emínentes doutores de Direito 13. Em situaçilo que suarda ídmtidade com
Administ:rativo~. Trata-se de uma das possiblli- ocaso pIeSeIlte. Geraldo Ataliba emitiu Pateter
dades de restrição à propriedade privada. A sua DO qual analisa oalcance das normas previstas
utilizaçllo, no entanto, passou a integrar os usos noart, 8.°. caput,e seu § 1.0 da Lei 0.° 7.347,00
e os costumes nas relaçOes entre os próprios 24 de julho de 1985. Tais dispositivos têm a se-
agentes da Administração Pública. Mas, sem guinte redação:
perder, entre outras, duas peculiaridades essen- "Art. 8.° Para instruir a inicial, o in-
ciais: a coatividade e a urg~ncia. A propósito, teressado poderá requerer às autorida-
entre muitos, Hely Lopes MeirelleS5 e Brandlo des competentes as certidões e infor·
Cavalcanti6 • mações que julgar necessárias. a serem
lI. Independentemente da condiçfo dos fornecidas no prazo de quinze dias.
agentes (ativo e passivo), dalorma (8 contigo· § 1.° O Ministério Público poderá
ra$I externa da manifest.açlo de vontade) ede instauraI, w\>suapresidbcia, i~
seu objeto (coisa OU serviço), a requisição é, civil, ou requisitar, de qualquer organis-
por natureza, coercitiva. Trata-se de uma mo público ou particular, certidões. infor·
contribuz;one coattiva, como sinteticamente maçlIes, exames ou perlcias, no prazo que
revela uma de suas faces. assinalar, o qual não poderá ser inferior a
Aliás, a origem bélica do instituto é menci- 10 (dez) dias úteis".
onada por todos os autores quando aludem ao E, interpretando-as, o prestigiado mestre de
Direito Público sustenta:
] "Rcquisizioni", vetbde em Novissimo Digesto "Ora, as requisições de que cuida o §
Italia1lo, ed. Unione Tipografico-Editricc Torincse,
Torino, 1957, v. xv, p. 487. (Grifas do original). 1.0 do art. 8.° da Lei n.°7.347/85 ficam em
4 BRANDÃO CAVALCANTI, Themistoclcs,
posiçlo intermediária: têm natureza
Curso de Direilo Admini.Jtrotivo, Livraria Freitas adminiSUMiva, mas clicácia \gua1 à das
Bastos srA, 5,· ed., p. 516; 1. CRETELLA JUNI. requisiçOes judiciais. Seu controle de
OR, Comentários à COfISliluifuo de 1988, ed. Fo- legalidade (dos atos que as veiculam) é o
rense Universitária, RJ, 1990, v. I, p. 381; MEJRE. de qualquer ato administrativo, isto é.,
LES, Hcly Lopes, Direito Administrativo Bnuilei- rea1iza-se pelo Judiciário.
1'0, Editora Revista dos Tribunais, SP, 1985, p. 527 c
GASPARlNI, Diogenell, Direito Afiminis/J'atil'O, Ed. , Direito Público Bmsikiro, p, 430.
Saraiva, SP, 1992, p. 438. ·Ob. cit., p. 517.
}Ob. e loc. cito 9 Vocabulário }".,.;dico, ed. Forense, RJ, 1990,
60b. e loc. cit vols. 3/4, pp. 108rl09, (grif0ll do original).

78
Ora, da simples circunstância de ser bémnão;
controlável pelo Judiciário - e disso não c) onde não há o dever jurídico
há como escapar, à vista do princípio da específico, não há transgressão e
universalidade da jurisdição (art. 5.°, conseqüentemente não há sanção;
XXVlO) - já se vê a impossibilidade de a
ele, Judiciário, voltar-se uma requisição d) é impossível, juridicamente impos-
(por qualquer dos outros órgãos esta- sível, órgão ou agente do Judiciário co-
tais) concernente a suas funções juris- meter o crime previsto no art. 10 da Lei
n.o 7.347185."13
dicionais.
16. No caso em exame, a forma utilizada para
Aliás, se os próprios órgãos da so- a obtenção das informações atenta contra a le-
berania nacionaJ - postos constitucio- tra e o espírito da Constituição no que concer-
nalmente no vértice das instituições e ne à independência e à autonomia do Poder
investidos diretamente pelo titular da Judiciário (art. 2.~.
soberania, o povo - não podem dirigir
injunções ou requisições ao Judiciário, A nova Carta Política brasileira destaca o
com maior razão não poderá fazê-lo ou- Ministério Público no quadro da organização
tro órgão ou agente, por mais quaJifica-
dos poderes do Estado, ao lado do Executivo,
do que seja."ll do Legislativo e do Judiciário, e não mais inclu-
ido no primeiro, assim como estabeleciam as
14. Em outra passagem de seu Parecer - as- Constituições anteriores (1934, 1946 e 1969).
sinado em 3 de fevereiro de 1992 - Geraldo Ata- Desapareceu, portanto, aquela relação de su-
Iiba destaca: bordinação que atrofiava as possibilidades de
"Se Legislativo e Executivo são ór- ação institucional. Com muita propriedade, Pon-
gãos da soberania nacional, traduzida na tes de Miranda, à luz do texto constitucional
Constituição, e ~m mesmo não podem de 1969, afirma que o Ministério Público "é
praticar ato de aplicação normativa um dos ramos heterotópicos do Poder Exe-
relativamente ao Judiciário, não podem cutivo (... )"14.
formular-lhe, por isso mesmo, raprisição, A propósito das considerações acima e an-
com maior razão não pode fazê-lo o MP, tes mesmo do advento da Carta de 1988, Hely
órgão constitucional autônomo, mas não Lopes Meirelles incluiu os membros do Minis-
designado diretamente pelo povo, nem tério Público em posição de equivalência aos
detentor da qualidade de órgão de sobera- demais agentes pollticos, como os chefes do
nia., Poder do Estado." 12 Executivo (Presidente da República, Governa-
15.E,entreasconcl~sfiwris,oemineme dores e Prefeitos) e seus auxiliares imediatos
jurista afirma: (Ministros e Secretários de Estado e de Muni-
cipio); os membros das Casas legislativas (Se-
"a) o preceito do § 1. 0 do art. 8.° da
nadores, Deputados e \treadores); os membros
Lei nO 7.347185 não se aplica ao Judiciário; do Poder Judiciário (Magistrados em geraJ); os
b) logo, a sua sanção (art. 10) tam- membros dos Tribunais de Contas (Ministros e
Conselheiros); os representantes diplomáticos
10 Há erro de impressão. O texto quer se referir ao
"e demais autoridades que atuem com indepen-
inciso XXXV, do art. 5.°, da CF: "- a lei não excluirá
da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a
dência funcional no desempenho de atribuições
direito". governamentais, judiciais ou quase-judiciais,
estranhas ao quadro do funcionalismo estatu-
11 "PODER JUDICIÁRIO - MINISTÉRIO
tário"u. E lembra que, "em doutrina, os agentes
PÚBLICO - REQillSIÇÃO DE DADOS. Nilo se
aplica ao Poder Judiciário o dever de atendimento a
políticos têm plena liberdade funcional, equi-
requisição de dados, pelo Ministério Público, na for- parável à independência dos juizes nos seus
ma do art. 8.°, § 1.0, da Lei n.o 7.347185", Parecer julgamentos e, para tanto, ficam a saJvo de
publicado em Revista de Direito Administl'atiwJ, n.o responsabilização civil por seus eventuais er-
187,janJ mar., 1992, Livraria e Editora Renovar Ltda., ros de atuação, a menos que tenham agido com
p. 338. O referido trabalho foi também divulgado
lJOb. cit., p. 342.
pela Revista Trimestl'al de Direito Público, 2/124,
com o titulo "Requisição do Ministério Público a 14Comentários à Constituição de 1967 com a
Juiz - Relações entre órgilos constitucionais autôno- Emenda n. o 1. de 1969, Editora Revista dos Tribu-
mos". (Os grifos estão neste original.) nais, SP, 1970, tomo li, p. 407.
120b. cit., p. 340. nOb. cit., p. 51.
llrasfll• •• 32 n. f 28 "'JJ.... 1N5
culpa grosseira. má-fé ou abuso de pod.er"16. iminente (arts. 1519 e 1520)".
17. Perante os juízes e tribunais o preten- 20. O Anteprojeto de Lei Geral de aplicação
dente à satisfação de um interesse - como a das nonnasjurídicas (1964 l, de autoria de Ha-
obtenção de infonnações - pede, ~quer. A roldo Y.llladão, previa a"oondenaçã'o do abuso
petição ou o requerimento é submetido ao con- de direito", nos termos seguintes: "010 será
trole de legalidade e pode ser indeferida se de- protegido o direito que for ou deixar de ser exer-
satender qualquer exigência legal (legitimida- cido em prejuizo do proximo ou de modo egois-
de. possibilidadejurldica, etc.). Tal rontrole tem ta, excessivo ou anti --social" (art. I I ).
como parâmetros o disposto nos incisos XXXIII 21. O Anteprojeto (revisto) do CódígoCivil
e XXXIV do art. 5.0 da Constituição. Se houver brasileiro ( 1973) trata de modo impHcito o abu-
o retardamento ou a omissão, a parte dispõe do SO de direito como uma espécie do gênero ato
recurso administrativo e do mandado de ilicito. Declara o art. 186: "Também comete ato
segurança. ilicito o titular de um direito que, ao exercê-lo,
18. O uso indevido do poder-dever de re- excede manifestamente os limites impostos pelo
quisição, quer quanto à fonna quer quanto ao seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou
conteúdo. caracteriza uma das modalidades do pelos bons costumes".
~~o~do~m~mfflmA~C~­
22. Tais considerações revelam que é iUcito,
plementar n. ° 75/93 estabelece uma das hipóte- data venia, O procedimento da requisiçlo ad0-
ses de desvio de poder. como se verifica peJo § tado na espécie, posto colocar em posiÇllo me-
0
1.0 do art. 8. , declarando que o membro do
nuquicamente inferioro Poder Judiciário perante
Ministério Público "será civil e criminalmente o Ministério Público, hipótese que atenta con-
responsâvel pelo uso índevido das informações tra a independência e a autonomia dos poderes
e documentos que requisitar (...)". e subverte o princípio-garantia do controle de
A propósito do tema, vale invocar o Código legalidade dos atos administrativos, exercido
Civil português. que fornece a noção do abuso pelo Judiciário. Outro raciocinio implicaria em
de direito através de um preceito incluído entre admitir que o Procurador-Geral da República
as dísposições gerais que regulam o exercício e pode "requisitar", compulsivamente, do Presi-
a tutela dos direitos. dente do Supremo Tnbunal Federal infonnaçt'les
Diz o art. 334. 0 que "é ilegítimo oexercício de cunho administrativo para instruir procedi-
de um direito, quando o titular exceda manifes- mento sob sua responsabilidade. O paradoxo
tamente os limites impostos pela boa-fé. pelos seria irremediável, já que ao Judiciário oompete
bons costumes ou pelo fim social ou econômi- o exame da legalidade do próprio ato requisit~
co desse direito". rio, cuja ameaça de responsabilidade (pelo
Conforme a lição de Fernando Augusto ~roou~~~m~~w~
Cunha de Sá, "o abuso de direito traduz-se, pois, clarada a ilegalidade.
num aeto ilegitimo. consistindo a sua ilegitimi- 23. A Constituição estabelece que o poder-
dade precisamente num excesso de exercicio de dever de requisição é sempre vinculado ao m0-
um certo e detenninado direito subjectivo: hIlo- tivo e à competência. O inciso VI do art. 129
de ultrapassar-se os limites que ao mesmo di- declara ser função institucional do Ministério
reito são impostos pela boa-fé, pelos bons cos- Público, entre outras, requisitar infOTllUlQlSes e
tumes ou pelo próprio fim social ou econômico documentos para instruirprocedimentos admi-
do direito exercidO"I'. nistrativos de sua competência. No mesmo sen-
19. O Código Civil brasileiro não tem uma tido é o texto do art. 8. 0 da Lei Complementar n.o
regra específica sobre o abuso de direito. Po- 75/93, invocado, aliás, como suporte jurldico
rém. a exegese do art. 160 pennite a conclusão da requisição: "Para o exercício de suas atribui-
de que oprincípio foi implicitamente retonheci- ções, o Ministério Público da UniIo podetá, nos
do. Reza o mencionado dispositivo: "Não cons- procedimentos de sua competência:".
tituem atos iUcitos: I - os praticados em legíti- Interpretando disposições da Lei n.o 7.3471
ma defesa ou no exercicio regular de um direi- 85, Hugo NigroMazziJü, mo dos mais qualifica-
to reconhecido; 11 - a deterioração ou destrui- dos membros do Ministério PUblico e autor de
ção da coisa alheia, a fim de remover perigo notável prestigio, escreveu: "Desde que esteja
16 Ob. C loco cil.
o órgão do Ministério Público atuando dentro
17 Abv.w de direito, cd. Ministério das Finanças.
de sua área de atribuiçlJes, terá ele o poder de
Lisboa, 1973, p. 103. requisição, pouco importa seja federal, estado-
ai ou municipal a autoridade, a repartição públi- tão submetidas ao controle de outros órgãos.
ca ou o órgão público destinatário da Consti- Conclui~se, portanto, diante do conteúdo
tuição (Lei Complementar federnl n. ° 4.0181, art. das requisições, que inexiste um procedimento
15, I e IV); poderá dirigir-se a qualquer pe&5'oa administrativo, sob a competência do ilustre
fisica ou juridica. pública ou particular (Lei Procurador-Chefe da Procuradoria Regional do
n.o 7.853/89, art. 6.°; Lei n.o 8J16919O, art 201, VI, Trabalho do Paraná, capaz de autorizar, legal-
b e C)"18. Não obstante ter sido feito antes da mente, o uso da requisição.
Carta Política de 1988 eda Lei Complementar n.o 24. No episódio em exame, a requisição re-
75/93, o aludido comentário guarda a maior atu- veste« de uma forma defesa em lei (Cód. Civil,
alidade porquanto analisa a requisição como 3rt. 82) para o exercício de um eventual direito à
um ato admi nistrativo vinculado ao motivo e à infot'l1l3Çf!jo. Caracteriza-se, dentro das circuns-
competência. tâncias de um confronto institucional, como um
Os expedientes de requisição transcritos no
instrumento de força a lembrar a origem bélica
início deste parecer não indicam a existência de do instituto da requisizione. E, longe de com-
qualquer procedimento afeto ao ilustre autor por um interesse público, o expediente utiliza-
da requisição. Abstraída a hipótese de preten- do estimula o litígio entre autoridades respeitá-
der as informações para documentar wna even- veis e expressões do Estado que devem convi-
tual ação popular - para a qual estaria a legiti- ver "independentes, sem conflito, sem rivalida-
midade como cidadão 19 - , qual seria o "proce- des sem lutas - tal como é o ideal (ou o sonho)
dimento administrativo" de competência do ilus- da ~oncepção apriorlstica da separação perfei-
tre Procurador-Chefe da Procuradoria Regional ta dos poderes"20.
do Trabalho no Paraná, capaz de "justificar" o
uSO da requisiçãor 25. O alerta de que o consulente poderá ser
responsável pela falta injustificada e o retarda-
Obviamente não seria uma irnrestigação cri- mento indevido do cumprimento das requisi-
minai, posto que o consulente, na qualidade de ções é de todo improcedente. A nonna do ano
membro do Tribunal Regional do Trabalho, tem 8.°, § 3.°, da Lei Complementar n.o 75/93, pre-
a prerrogativa de somente ser processado e jul~ vendo a responsabilidade em geral (administra-
gado pelo Superior Tribunal de Justiça (Cf, art. tiva, criminal e civel) do omisso ou retardatário,
105,1, a), Cone onde o requisitante não atua. pressupõe a validade (e a eficácia) do ato jurídi-
Seria um "procedimento administrativo" no co da requisição, o que não ocorre, em meu en-
interesse da categoria profissional a que per- tender.
tence o requisitante? Também esta hipótese Por outro lado, a ameaça penaI, por exem-
deve ser eliminada, pois a atnbuição para repre- plo, somente pode ser irrogada quand~ O retar-
sentar o Ministério Públioo Federal é do Procu- damento ou a omissão ofenderem wn tnteresse
rador Geral da República, corno chefe da insti- de ordem geral, relativo à sociedade inteira, e
tuição(LC n. D 75193, art. 26, n. não de caráter especial, isto é, limitado a uma
Seria um "procedimento administrativo" categoria profissional. Naquela hipótese, o Mi-
com a finalidade ceosória de funcionários e nistério Público atua corno defensor da comu-
magistrados do Tribunal ou da 9.a
Região da nidade de indivíduos, razão pela qual se justifica
Justiça do Trabalho? Igualmente esta cogita- que, em nome da ooletividade, se imponha a mais
ção perde substância pela manifesta falta de severadas sançõesjurídicas: a pena criminal.
competência para qualquer tipo de investiga- 26. Em conseqüência do exposto, respondo
ção disciplinar relativamente a pessoas que es- à consulta, afinnando que:
26.1. No caso da consulta, a requisição é um
U A deftsa d()s interesses difitsos em juízo, Edi-
ato jurldico inválido porque se reveste de for-
tora Revista dos Tribunais, SP, 1991, p. l67, (grifos
do original).
ma defesa em lei.
19 Tal hipótese é descartada por duas razões. Pri- 26.2. A requisição não pode ser utilizada
meiro, porque as hipóteses de requisição previstas contra um agente político que desfruta de inde-
pelo art. 8. 0 da Le n.o 75193 são previstas para o pendência e autonomia em relação ao órgão re-
exerclcio das atribuições do Ministério Público e não quisitante.
do cidadão, isoladamente considerado. Segundo, por· 26.3. Perante os órgãos do Poder Judiciário
que a Lei n. o 4.717/65 resolve a dificuldade da o.bten-
ção de informações com a requisição determmada 10 PONTES DE MIRANDA, ob. cit., tomo I, p.
pelo juiz às entidades sonegadoras. 558.

...",. . . 32 n. 126 "'J1un. 1ees af


nenhuma autoridade de outro órgão ou poder Dica entre poderes e órgãos do Estado, inde-
do Estado tem legitimidade e competência para pendentes entre si, tem suscitado os mais ex-
requisitar informações ou documentos. tensos e profundos comentários dos mais n0-
táveis escritores. João Barbalho, por exemplo,
26.4. Tratand<He de ato viciado em sua for- aludia ao sistema de freios e contrapesos para a
ma. a ameaça de responsabil~ pela demom satisfação dos altos objetivos visados pela
ou falta das informações é inócua pela ausên- Administração Pública.
cia do deverjurldico de agir por parte do desti-
natário da requisição. E o imortal Pontes de Miranda proclamou:
"Em vez, pois, de poderes rivais e vivendo em
É o Parecer, s.mj. conflito a Constituição os estatui harmt5nicos,
27. Mas, para muito além do conteúdo des- devend~ cada um respeitar a esfem das atribui-
te Parecer, vai a esperança em ver resolvido o ções dos outros e exercer as próprias, de modo
conflito funcional. que nunca de embaraços, mas de facilidade e
O tema da convivência necessária e hannõ- coadjuvação sirvam às dos demais, colaboran-
do todos, assim, a bem da comunhão"ll.

ti Ob. cit., tomo I, p. 559, (grifo do original).


A exoneração tributária dos aposentados
e pensionistas

OSWALOO OTHON DE PONlES SMWVA FIlOO

SUMÁRIo

I. Introdução. 2. A exoneração tributária das


pessoas idosas. 3. Conclusão.

L IntroduçiIo
Um bom número de aposentados e pensio-
nistas com mais de sessenta e cinco anos têm
advogado a tese de que o preceito constitucio-
nal do art. 153, § 2, 0, 11, teria agasalhado uma
imunidade tributária de aplicação imediata. Ad-
mitem, contudo, que somente lei complementar
teria o condão de contera eficácia da supracita-
da norma da Lei Maior, pelo fato da Carta Mag-
na, no inciso 11, do art. 146, exigír lei comple-
mentar para regular as limitações constitucio-
nais do poder de tributar. Como a cogitada lei
qualificada inexiste, consideram-se com o direi-
to ao beneficio constitucional integral, excluí-
do o limite fixado em lei ordinária, até o surgi-
mento da lei complementar.
\oéjamos um outro critério jurídico sobre a
questão.
2. A exoneraçao tributária das pessoas
idosas
O art. 153, § 2.°, inciso 11, da Constituição
Federal dispõe que o imposto de renda e pro-
ventos de qualquer natureza "não incidirá, nos
tennos e limites fuados em lei. sobre rendimen-
tos provenientes de aposentadoria e pensão,
pagos pela previdência social da União, dos
Estados, do Distrito Federal e dos Municípios,
a pessoa com idade superior a sessenta e cinco
anos, cuja renda total seja constituída, exclusi-
Oswaldo Othon de Pontes Saraiva Filho é Sub- vamente, de rendimentos do trabalho" .
procursdor-Gcrat da Fazenda Nacional e Coordena-
Impende esclarecer que a exoneração do
dor da Representação Judicial da Fazenda Nacional
- Advogado em Brasília, imposto de renda na fonte e na declaração só

83
atinge os proventos de aposentadoria e pen- não incidirá o imposto de renda sobre proven-
são, de modo que, existindo demais rendimen- tos da aposentadoria e pensão.
tos do trabaJho, aJcançandoestes O limite miní- É bem rerdade que a norma dom. 150, VI,
mo, o imposto de renda incidirá, indubitavel- e, do Estatuto PoUtico detennina serem imunes
mente, apenas sobre estes. à incidência de impostos as instituiçOes de edu~
Embora a norma constitucional, em comen- caça0 e de assistência social, sem fins lucrati-
to, exija que a renda total do aposentado e pen- vos, "atendidos os requisitos da lei", sendo que.
sionista seja constituida, excJusivamente, de neste caso, a Jei cogitada é, claramente, a com-
rendimentos do trabalho, para o gozo do bene- plementar nacional, uma vez que vincula todos
ficio, sob a justificativa de indevida omissão da os entes politicos tributantes, diferentemente
legislação infraconstitucional, a Receita Fede- do que sucede com o dispositivo constitucio-
raJ, na prática, não tem exigido que a pessoa nal do art. 153, § 2,0, II. o qual se liga apenas à
com mais de sessenta e cinco anos comprove União.
não possuir qualquer rendimento de capital,
A Lei nO 7.713, de 22 de derernbrode 1988.
como o proveniente de uma locação de imóvel.
para a fruição da exoneração. disciplinou a matéria em seu art. 6.°. inciso xv,
tendo fixado mo limite para a fru.içAo do bene8. ~
Colime« que o retromencionado precepti. cio que não abrangeu a totalidade dos proven-
vo da Carta Magna de 1988 não estabelece di- tos de aposentadoria.
retamente wna imunidade tributária com os seus A partir de 1.° de janeiro de 1992, data da
termos e limites constitucionalmente definidos vigência da Lei n.o 8.383/91, esse limite mensal
(como ocorre, por exemplo, com o preceito do passou a mil Ufir, correspondente à parcela dos
art. 153, § 3.°,111, da CF, hipótese em que lei rendimentos provenientes de aposentadoria c
complementar, prevista no art. 146, 11, da CF, pensão, transferência para reserva remunerada
pode, apenas, declarar o sentido da imunida- ou reforma pagos pela previdência social da
de), mas, apenas, prevê a possibilidade dessa União, dos Estados, do Distrito Federal e dos
exoneração se dar nos termos e nos limites fixa- Municipios, ou qualquer pessoa jurfdica de dí~
dos em lei ordinária federal. reito público interno, a partir do mês em que O
lniludivelmente, o preceito programático do contribuinte completar sessenta e cinco anos
art. 153, § 2.°, inciso n, da Lei Suprema não tem de idade. Na declaração, o limite corresponden-
aplicabilidade imediata, posto que o direito a te à soma dos valores mensais.
exoneração do pagamento do imposto de renda Atualmente, vigora o limite mensal de R$
sobre rendimentos provenientes de aposenta- 676,70 para os rendimentos recebidos a partir
doria e pensão, pagos a pessoas idosas, have- de 1.0 de:janeiro de 1995 (art. 9.°, inciso V, da Lei
rá de ser exercido "nos termos e limites fixados n.o 8.981, de 20 dejaneiro de 1995).
em lei". Como arremate, insta noticiar que, nos au~
Se o escopo do constituinte fosse o de ex- tos do Mandado de Injunção n.o 38581400-RJ,
cluir da tributação a totalidade desses rendi- onde os impetrantes reclamavam a falta de lei
mentos, seria outra a redação do texto constitu- complementar que garantisse o gozo da exone-
cional, como "não incidirá o imposto de renda ração prevista no art. 153, § 2.°, inciso n, da
sobre os rendimentos provenientes de aposen- Superlei. o Ministro Moreira Alves exarou V.
tadoria e pensão" pois, como se sabe, é regra Despacho nos seguintes tennos:
hermenêutica que a lei não contém palavras inú- "MANDADO DE INJUNÇÃO N."
teis. 000038581400
Trata-se, pois, de regra constitucionaJ não
auto-executável e condicionada, isto porque ela Origem: RIO OE JANEIRO
não pode ser aplicada enquanto não for edita- Relator: MlNISlRO MOREIRA ALVES
da lei, prevista pelo constituinte, que precise Impetrantes: AugtLUo Villas Boas e wtro
os seus elementos e limites. (Adv.: Bento Gonçalves Ferreira Gomes).
Observe-se que o constituinte indica, ex- Impetrados: Presidente da República e
pressamente, as hipóteses em que entende ne- Mesa do Congresso Nacional.
cessária a disciplina de determinada matéria por Despacho: 1. O inciso lI, § 2.°, doanigo
lei complementar, o que não sucede no caso em 153 da Constituição Federal deferiu à le-

..
tela, quando deixa a critério de lei ordinária a gislação ordinária o estabelecimento dos
fixação dos tennos e dos tetos sobre os quais
tennos e dos limites em que não incidirá dora do texto constitucional, de lhe cen-
sobre rendimentos provenientes de apo- surar OS EXCESSOS apontados na ar-
sentadoria e pensão, pagos pela previ- gumentação dos Impetrantes.
dência social da União, dos Estados, do Em tal caso, entretanto, resultaria ab-
Distrito Federal e dos Municípios, a pes- solutamente imprópria a via processual
soa com idade superior a sessenta e cin· eleita, porque a tanto não está autoriza-
co anos, cuja renda total seja constituí- da, pelo artigo 5.°, LXXl, da Constituição
da, exclusivamente, de rendimentos do Federal."
trabalho.
2. Em face do exposto, e acolhendo o
Sucede que a Lei n.o 7.713, de 22 de parecer da Procuradoria-Geral da Repú-
dezembro de 1988, em seu artigo 6.°, xv, blica., nego seguimento ao presente man-
regulamentou os termos e os limites des- dado de injunção (artigo 38 da Lei n.o
se beneficio, com a alteração introduzida 8.03&"W).
pela letrab do§ 3.°doartigo 12 da Lei 0.°
8.383. Brasília, 24 de abril de 1992.
Ministro MOREIRA ALVES
Ora. se a hipótese prevista no citado
dispositivo constitucional está abarca- Relator"
da por essas disposições legais, inexiste (Publ. inDJde4.5.92, s. I, p. 5833)
omissão regulamentadora a inviabilizar o 3. Conclusão
exercício do direito conferido pela Cons- Isto posto, forçoso é concluir:
tituição, não cabendo O mandado de in- a) a exoneração tnbutária aventada pelo art.
junção para se atacar essa regulamenta- 153, § 2.°, n, da Carta Magna, além de ambígua,
ção por eventuais excessos (extensão do mostra-se tênue, ao permitir o texto constituci-
beneficio a outros que não os estritamen- onal que lei ordinária fixe os tennos e estabele-
te referidos no texto constitucional) em ça os limites desse beneficio;
que tenha incidido, a juízo dos impetran- b) assim, tal preceptivo constitucional {OOS-
tes. Tem, }Xlis, razão, o parecer da Procu- tra-se como uma norma não auto~xecutável e
radoria-Geral da República, ao acentuar, condicionada;
depois de transcrever os defeitos que os
impetrantes arrolaram sobre as referidas c) diante da inexistência da vislumbrada lei
disposições legais. complementar, caso não fosse válida a legisla~
"'Ademais, se procedentes fossem as ção ordinária federal vigente e aplicável à espé-
críticas feitas às Leis federais sob exame, cie, mesmo com toda a sua reconhecida defici-
na linha de raciocínio adotada pela impe- ência, os aposentados e pensionistas não po-
tração, haver-se-ia, antes de encontrar deriam reivindicar o beneficio.
qualquer FALTA de norma regulamenta-

.....H••• 32 n. 128 abrJJun. 1885 85


Evolução do Direito Constitucional
brasileiro e o controle de
constitucionalidade da lei

GllMAR FERREIRA MENDES

sUMÁRIo

1. Considerações preliminares: A Constituição


imperial. 1. O controle de constitucionalidade na
Constituição de 1891.3. A Consütuição de 1934 e o
controle de crm.mtudonalidade. 4. O controle de cons-
titucionalidade na Constituição de 1937. S. A Cons-
tituição de 1946 e o sistema de controle de constitu-
cionalidade. 6. O controle de constitucionalidade na
Constituição de 196711969. 7. O controle de consti-
tucionalidade tia Constituição de 1988. 8. A Emenda
Constitucional n. o 3, de 1993: A ação declaratória
de constitucionalidade. 9. Conclusão.

1. Considerações preliminares: a Consti-


tuiçiJo imperial
A Constituição de 1824 não contemplava
qualquer sistema assemelhado aos modelos
hodiernos de controle de constitucionalidade.
A influência francesa ensejou que se outorgas-
se ao Poder Legislativo a atribuição de "fazer
leis, interpretá-las, suspendê-las e revogá-las",
bem como "velar na guarda da Constituição"
(art. 15, n."" 8.° e 9.°).
Nessa linha de raciocínio, o insigne Pimen-
ta Bueno lecionava, com segurança, que o con-
teúdo da lei somente poderia ser definido pelo
órgão legiferante:
"Só o poder que faz a lei é o. único
competente para declarar por via de au-
toridade ou por disposição geral obriga-
tória o. pensamento.. o preceito dela. Só
ele e exclusivamente ele é quem tem o
direito de interpretar o seu próprio ato,
suas próprias vistas, sua vontade e seus
fins. Nenhum outro poder tem o direito
Gilmar Ferreira Mendes é Procurador da Repú- de interpretar por igual modo, já porque
blica. Profesowr da UnB. Mestre em Direito pela
Univ~idade de Brasília. Doutor em Direito pela
nenhuma lei lhe deu essa faculdade, já
Universidllde de Munster (RFA) porque seria absurda a que lhe desse.

",....... 32 n. 12f1"'Jjun. 1815 87


Primeiramente é visível que nenhum 2. O controle de constitucionalidade na
outro poder é o depositário real da von- Constituiçilo de 1891
tade e inteligência do legislador. Pela ne- O regime republicano inaugura uma nova
cessidade de aplicar a lei deve o executor concepção. A influência do Direito norte-ame-
ou juh, e por estudo pode o jurisconsul- ricano sobre personalidades marcantes, como
to fonnar sua opinião a respeito da inteli- a de Rui Barbosa, parece ter sido decisiva para
gência dela, mas querer que essa opinilo a consolidação do modelo difuso, consagrado
seja infalível e obrigatória, que seja regra já na chamada Constituição Provisória de 1890
geraI, seria dizer que possuia a faculdade (art. 58, § I,°,aeb).
de adivinhar qual a vontade e o pensa-
mento do legislador, que não podia errar, o Decreton.o 848, de 11 de outubro de 1890,
que era o possuidor dessa mesma inteli- estabeleceu, no seu art. 3.°, que, na guarda e
gência e vontade~ e isso seria certamen- aplicação da Constituição e das leis nacionais,
te irrisório. a magistratura federal só intemrá em espécie e
por provocação da parte. "Esse dispositivo (...)
Depois disso é também óbvio que o - afirma Agrlcola Batbi - consagm o sistema de
poder a quem fosse dada ou usurpasse controle por via de exceção, ao determinar que
uma tal faculdade predominaria desde a intervenção da magistratura só se fizesse em
logo sobre o legislador, inutilizaria ou al- espécie e por provocação de parte"~. Estabele-
teraria como quisesse as atribuiç(Jes des- cia-se assim, ojulgamento íncídental da incons-
te ou disposições da lei, e seria o verda- titucionalidade, mediante provocação dos liti-
deiro legislador. Basta refletir por um pou- gantes. E tal qual prescrito na Constituíçao Pr0-
co para reconhecer esta verdade, e ver visória, o art. 9.°, parágrafo único, a e b, do Decre-
que interpretar a lei por disposição obri- to n.°848, de 1890, assentava o controle de c0ns-
gatória, ou por via de autoridade, é não titucionalidade das leis estaduais ou federais.
só fazer a lei, mas é ainda mais que isso,
porque é predominar sobre ela" I. A Constituição de 1891 incorporou essas
Era a consagração de dogma da soberania disposições, reconhecendo a competência do
do Parlamento. Supremo Tribunal Federal para rever as senten-
Por outro lado, a instituição do Poder Mo- ças das justiças dos Estados, em última instân-
derador assegurava ao Chefe de Estado o ele- cia, quando se questionasse a validade ou a
vado mister de velar para "a manutenção da aplicação de tratados e leis federais e a decido
independência, equil{brio e harmonia dos mais do Tribunal fosse contra da, ou quando se con-
poderes" (art. 98). "E a faculdade (...) - dizia testasse a validade de leis ou atos federais, em
Pimenta Bueno - de fitzer com que cada um de- face da Constituição ou das leis federais, e a
les se conserve em sua órbita, e concorra har- decisllo do Tnbunal considerasse válidos emes
atos ou leisimpugnadas(art. 59, § 1.0, aeb).
moniosamente como outros para o fim social, o
bem-estar nacional: é quem mantém seu equiH- Não obstante a clareza dos preceitos. impe-
brio, impede seus abusos. conserva-os na dire- rou alguma perplexidade diante da inovação. E
ção de sua alta missão (... )"2. o gênio de Rui destacou, com peculiar profici-
encia, a amplitude do instituto adotado pelo
Não havia lugar, pois, nesse sistema. para o
mais incipiente modelo de controle judicial de regime republicano, como se vê na seguinte
constitucionaliclade3. passagem de seu magnifico trabalho elaborado
em 1893:
I PIMENTA BUENO, José Antonio, Direüo "O único lance da Coostituiçloame-
pilblico brQ.'Jileiro e analire da Con.rtihtição do Im- ricana, onde se estnba ilativamente o ju-
pério, Brasilia, Senado Federal, 1978, p. 69. izo, que lhe atribui essa intenção, é o do
~ PIMENTA BUENO, op. cit., p. 203. art. III, seç. 2.&, cujo teor reza assim: '0
] Cf., a propósito, LÚCIO BITTENCOURT, Poder Judiciário estender-se.-á a todas as
Carlos Alberto, O controlejurisdidolfal da cOIfJlitu- causas, de direito e eqüidade, que nas-
donalidade das leis, 2," 00., Rio de Janeiro, ForcniIC, ceram desta Constituição, ou das leis dos
1968, pp. 27-8; BARBI, Celso Agrlcola, Evoluçio Estados Unidos'.
do controle de constitucionalidade das leis no Brasil,
RDP, 1 (4):36; BANDEIRA DE MELLO. Oswaldo 4 BARBI, Celso Agrícola, op. cit., p. 37~ BAN-
Aranha, Teoria das Constituições rigidas, 2,' ed., DEIRA DE MELLO, Oswaldo Aranha, op. cit, p.
SAo Paulo, Bushatsky, 1980, p, ISS. 156.

88
Não se diz ai que os tribunais senten- leis manifestamente inconstitucionais e os
ciarão sobre a validade, ou invalidade, regulamentos manifestamente incompatí-
das leis. Apenas se estatui que conhece- veis com as leis ou com a Constituição."
rão das causas regidas pela Constitui- Não havia mais dúvida quanto ao poder
ção, como confonnes ou contrárias a ela. outorgado aos órgãos jurisdicionais para exer-
Muito mais concludente é a Consti- cer o controle de constitucionalidade. A refor-
tuição brasileira. Nela não só se prescre- ma constitucional de 1926 procedeu a algumas
ve que alterações, sem modificar, no entanto, a subs-
'Compete aos juízes ou tribunais fe- tância.
derais processar e julgar as causas, em Consolidava-se, assim, o amplo sistema de
que alguma das partes fundar a ação, ou controle difuso de constitucionalidade do Di-
a defesa, em disposição da Constituição reito brasileiro. Convém observar que era ine-
Federal (art. 60, a)'; quívoca a consciência de que o controle de
como, ainda, que 'Das sentenças das jus- constitucionalidade não se havia de fazer in
tiças dos Estados em última instância abstracto. "Os tribunais - dizia Rui - não inter-
haverá recurso para o Supremo Tribunal vêm na elaboração da lei, nem na sua aplicação
Federal, quando se questionar sobre a geral. Não são órgãos consultivos nem para o
validade de tratados e leis federais, e a legislador, nem para a administração (.. .)"6. E,
decisão do tribunal do Estado for con- sintetizava, ressaltando que ajudidal review
trária(art. 59, § l.°,a)'. Ué um poder de hermenêutica, e não um poder
A redação é claríssima. Nela se reco- de legislação"'.
nhece, não só a competência das justi-
3. A Constituição de 1934 e o controle de
ças da União, como a das justiças dos constitucionalidade
Estados, para conhecer da legitimidade A Constituição de 1934 introduziu profun-
das leis perante a Constituição. Somente das e significativas alterações no nosso siste-
se estabelece, a favor das leis federais, a ma de controle de constitucionalidade. A par
garantia de que, sendo contrária à sub- de manter, no art. 76, I1I, b e c, as disposições
sistência delas a decisão do tribunal do contidas na Constituição de 1891, o constituin-
Estado, o feito pode passar, por via de te determinou que a declaração de inconstitucio-
recurso, para o Supremo Tribunal Fede- nalidade somente poderia ser realizada pela
ral. Este ou revogará a sentença, por não maioria da totalidade de membros dos tribunais.
procederem as razões de nulidade, ou a Evitava-se a insegurançajurídica decorrente das
confirmará pelo motivo oposto. Mas, contínuas flutuações de entendimento nos tri-
numa ou noutra hipótese, o principio fim- bunais (art. 179)8.
damental é a autoridade reconhecida ex-
Ó RUI BARBOSA, op. cit., p. 83.
pressamente no texto constitucional, a
1 RUI BARBOSA, op. cit., p. 83.
todos os tribunais, federais, ou locais,
8 MANGABEIRA, João, Em (orno da Consti-
de discutir a constitucionalidade das leis
da União, e aplicá-las, ou desaplicá-Ias, tuição, São Paulo, Ed. Nacional, 1934, pp. 115·7;
BANDEIRA DE MELLO, Oswaldo Aranha, op.
se~ndo esse critério.
cit., pp. 159-65. Cumpre notar que o anteprojeto
É o que se dá, por efeito do espírito do continha, no art. 57, a seguinte regra: "Não se poderá
sistema, nos Estados Unidos, onde a letra argüir de inconstitucional uma lei federal aplicada
constitucional, diversamente do que ocor- sem reclamação por mais de cinco anos. O Supremo
re entre nós, é muda a este pr0p6sito"s. Tribunal não poderá declarar a inconstitucionalidade
A Lei de n.o 221, de 20 de novembro de 1894, de uma lei federal, senão quando nesse sentido vota·
veio a explicitar, ainda mais, o sistema judicial rem pelo menos dois terços de seus ministros. Só o
de controle de constitucionalidade, consagran- Supremo Tribunal poderá declarar definitivamente a
do no art. 13, § 10, a seguinte cláusula: inconstitucionalidade de uma lei federal ou ato do
Presidente da República. Sempre que qualquer Tri-
"Os juízes e tribunais apreciarão a
bunal não aplicar uma lei federal ou anular um ato do
vai idade das leis e regulamentos e deixa- Presidente da República, por inconstitucionais, re-
rão de aplicar aos casos ocorrentes as correrá ex officio, e com efeito suspensivo, para o
S RUI BARBOSA, Os atos inconstitucionais do Supremo Tribunal. Julgado inconstitucional qualquer
Congresso e do Executivo, in Trabalhos jurídicos, lei ou ato do Poder Executivo, caberá a todas as pes-
Rio de Janeiro, Casa de Rui Barbosa, 1962, pp. 54-5. soas, que se acharem nas mesmas condições do liti-

89
Por outro lado, a Constituição consagrava rém, que nâo se tratava de formulação de um
a competência do Senado Federal para "sus· juizo politico, exclusivo do Poder Legislativo,
pender a execução, no todo ou em parte, de mas de exame puramentejuridicolJ •
qualquer lei ou ato, deliberação ou regulamen- Não obstante a breve vigência do Texto
to, quando hajam sido declarados inconstituci- Magno, ceifado pelas ~cissi.tudes poUticas que
onais pelo Poder Judiciário", emprestando efei- marcaram aquele momento histórico, nIo se
to erga omnes à decisão proferida pelo Supre- pode olvidar o transcendental significado des-
mo Tnbunal FedeJal (arts. 91, Iv, e 961. se sistema para todo o desenvolvimento do
Talvez a mais fecunda e inovadora altera- controle de constitucionalidade mediante açIo
ção introduzida pelo Texto Magno de 1934 se direta no Direito brasileiro '4 .
refira à "declaração de inconstitucionalidade
para evitar a intervenção federal", tal como a Não se deve omitir, ainda, que a Constitui-
denominou Bandeira de Mello 1o, isto é, a repre- ção de 1934 continha expressa ressalva àjudi-
sentação interventiva, confiada ao Procurador- cia1ização das questões poUticas, dispondo o
Geral da República, nas hipóteses de ofensa art. 68 que "é vedado ao Poder Judiciário c0-
aos principios consagrados no art. 7, I, a a h. da nhecer das questões exclusivamente políticas".
Constituição. Cuidava-se de fórmula peculiar Manifesta-se digna de mençlo a competên-
de composição judicial dos conflitos federati- cia atribufda ao senado Fedem] pa18 "examinar,
vos, que condicionava a eficácia da lei inter- em confronto com as respectivas leis, os regu-
ventiva, de iniciativa do Senado (art. 41, § 3.'), à lamentos expedidos pelo Poder Executivo, e
declaraçilo de sua constitucionalidade pelo suspender a execução dos dispositivos ilegais"
Supremo Tribunal (art. 12, § 2."). Assinale-se, (art. 91, n). Emescólioaoart. 91, n, daConsti-
por oportuno, que, na Assembléia Constituin- tuiçilo de 1934, Pontes de Miranda destacava
te, o Deputado Pereira Lyra apresentou emenda que "tal atribuição outorgava ao Senado Fede-
destinada a substituir, no art. 12, § 2.°, a expres- ral um pouco função de AlUI. Corte Constitucio-
são "tomar conhecimento da lei que a decretar nal (...)"U. A disposição não foi incorporada,
e lhe declarar a constitucionalidade" por "to- todavia, pelas Constituições que sucederam ao
marconhecimento da lei 1oca1 argüida de infrin- TextoMagnodc 1934.
gente desta Constituição e lhe declarar a in- Finalmente, afigura-se relevante observar
constitucionalidade"lI. que, na Constituinte de 1934, foi apresentado
Esse controle judicial configurava, segun- projeto de instituição de uma Corte Constitucio-
do Pedro Calmon, um sucedâneo do direito de nal, inspirada no modelo austríaco. Na funda-
veto, atribuindo-se à Suprema Corte () poder de mentação<1a proposta tãe.da-oaediretamente. aG
declarar a constitucionalidade da lei de inter- Referat de Kelsen sobre a essência e o desen-
venção e afirmar, ipsofacto, a inconstituciona-
13 MIRANDA, Pontes de, Comentários ti Cons-
lidade da lei ou ato estadual 12 • Advirta-se, po-
tituição da Repilblica dosEs/odos UnideM do Brasil,
gante vitorioso, o remédio judiciário instituído para a 160 de Janeiro, Ed. Guanabarl, 1938, v. 1, p. 364.
14 POLETTI, Ronaldo, Controle da constituc~
garantia de todo direito certo e incontestável". Tal
disposiçio acabaria por consolidar, entre nós, um nalidade das leis, Rio de Janeiro, ForcnllC, 1985, p.
modelo concentrado de controle de constitucionali- 93. Afigura-se relevante observar que, na Constitu-
dade. NIo prevaleceu, todavia, essa orientação, pre- inte de 1934, foi apresentada proposta de instituiçlo
dominando o entendimento que assegura o poder de de um Tribunal especial, dotado de competSncia para
illaplicar a lei tanto ao juiz singular quanto aos tribu- apreciar questões constitucionais suscitadas no cur-
nais. Anote-se, ademais, que a cláusula inicial impor- so dOll processos ordinários, bem como para julgar
tava na cQIIstitucionalizaçiio dos preceitos aplicados pedido de argQiçlo de inconstitucionalidade formu-
há mais de cinco anos. lado por "qualquer pessoa de direito público ou pri-
9 BANDEIRA DE MELLO, Oswaldo Aranha,
vado, individual ou coletivamente, ainda mesmo quan-
op. cit., p. 170; ARAÚJO CASTRO, A nova Cons- do aiD tcnh& ;n~ direto (. ..)". O projeto <Jr: au-
tituição b"asileil'a, Rio de Janeiro, Freitas Bastos, toria do Deputado Nilo Alvarenga criava uma Corte
1935, pp. 246-7. Coo.!tt\tuc\OOI.\, m~tadt. n& ~ ~ Kelte\\, ~
confiava a sua provocaçio a qualquer sujeito de di·
10 Cp. cit., p. 170. reito (cf. Ana Valderez Ayres Neves de Alencar, A
li ARAÚJO CASTRO, op. cit., pp. 107-8. Competência do Senado Federal para Suspender a
12 CALMON, Pedro, Inten>enção federal; o art. Execução dos Atos Declarados Inconstitucionais,
12 da Constituição de 1934, Rio de Janeiro. Freitas Revista de Informação Legislanva, 15(57):237-45).
Bastos, 1936, p. 109. 15 MIRANDA, Pontes de, op. cit., p. 770.
volvimento da jurisdição constitucional (Wesen nalidade das leis é um campo aberto para
und EntwickJung der Staatsgerichtsbarkeit)16. a política, porque a Constituição, em si
4. O controle de constitucionalidade na mesma, é uma lei sui generis, de feição
Constituiçilo de 1937 nitidamente política, que distribui pode-
res e competências fundamentais"IS.
A Carta de 1937 traduz um inequívoco re-
trocesso no sistema de controle de constitucio- No mesmo sentido, pronunciaram-se Fran-
nalidade. Embora não tenha introduzido qual- cisco Campos19, Alfredo Buzaid20 e Genésio de
quer modificação no modelo difuso de controle Almeida Moura21 .
(art. 101,111, b e c), preservando-se, inclusive, a Impende assinalar que, do ponto de vista
exigência de quorum especial para a declaração doutrinário, a inovação parecia despida de sig-
de inconstitucionalidade (art. 96), o constituin- nificado, uma vez que, como assinalou Castro
te rompeu com a tradição jurídica brasileira, con- Nunes, "podendo ser emendada a Constitui-
sagrando, no 3rt. 96, parágrafo único, princípio ção pelo voto da maioria nas duas Casas do
segundo o qual, no caso de ser declarada a in- Parlamento (art. 174), estaria ao alcance deste
constitucionalidade de uma lei que, a juizo do elidir, por emenda constitucional, votada como
Presidente da República, seja necessária ao qualquer lei ordinária, a controvérsia sobre a lei
bem-estar do povo, à promoção ou defesa de que se houvesse por indispensável"22. Mas,
interesse nacional de alta monta, poderia o Che- em verdade, buscava-se, a um só tempo, "vali-
fe do Executivo submetê-la novamente ao Par- dar a lei e cassar os julgados"23.
lamento. Confinnada a validade da lei por dois Todavia, quando em 1939 o Presidente Ge-
terços de votos em cada uma das Câmaras tor- túlio \3rgas editou o Decreto-Lei n. o 1.564, con-
nava-se insubsistente a decisão do Tribunal. firmando textos de lei declarados inconstitucio-
Instituia-se, assim, uma peculiar modalida- nais pelo Supremo Tribunal Federal, a reação
de de revisão constitucional, pois, como obser- nos meiosjudiciários foi intensa24 . Considerou
vado por Celso Bastos, a lei confinnada passa a Lúcio Bittencourt que as críticas ao ato presi-
ter, na verdade, a força de uma emenda à Cons- dencial não tinham procedência, porque, no seu
tituição l1. entendimento, o Presidente nada mais fizera do
É bem verdade que o novo instituto não que "cumprir, como era de seu dever, o prescri-
colheu manifestações unânimes de repulsa. to no art. 96 da Carta Constitueional"25 . Conce-
Cândido Mata Filho, por exemplo, saudava a de, porém, o insigne publicista que a celeuma
inovação, ressaltando que: suscitada nas oportunidades em que atos judi-
..A subordinação do julgado sobre a cias foram desautorizados, entre nós, "está a
inconstitucionalidade da lei à delibera- demonstrar como se encontra arraigado em nos-
ção do Parlamento coloca o problema da so pensamento jurídico o princípio que confere
elaboração democrática da vida legislati- à declaração judicial caráter incontrastável, em
va em seus verdadeiros termos, impedin- relação ao caso concreto"26.
do, em nosso meio, a continuação de um
preceito artificioso, sem realidade histó- 11 MOTTA FILHO, Cândido, A evolução do
rica para nós e que, hoje, os próprios controle da constitucionalidade das leis no Brasil,
americanos, por muitos de seus represen- RF,86:277.
tantes doutíssimos, reconhecem despi- U Op. cit., pp. 246 e s.
do de caráter de universalidade e só ex- 10 Da ação direta de declaração de incanslitucio-
plicável em países que não possuem o nalidade no direito brasileiro, São Paulo, Saraiva,
sentido orgânico do direito administrati- 1958, p. 32.
vo. Leone, em sua Teoria de la polltica, 21 Inconstitucionalidade das leis, Revista da Fa-
mostra com surpreendente clareza, como culdade de Direito da Universidade de São Paulo,
a tendência para controlar a constitucio- 37:161.
22 CASTRO NUNES, José de, Teoria e prática
16 Projeto do Deputado Nilo Alvarenga, de do Poder Judiciário, Rio de Janeiro, Forense, 1943,
20.12.1933, in: Annaes da Assembléia Canstituinre, p. 593, nota 25.
Rio de Janeiro, 1935, pp. 33-35.
llNUNES,op. cit., p. 593, nota 25.
17 BASTOS, Celso, Curso de direito consh'tucio-
Z4 BITTENCOURT, op. cit., pp. 139-40.
nal, 5.' ed., São Paulo, Saraiva, 1982, p. 63; cf., Fran-
cisco Luiz da Silva Campos, Diretrizes constitucio- 2~ BlTTENCOURT, op. cit., p. 139.
nais do novo Estado brasileiro, RF, 73:246-9. 26 BITTENCOURT, op. cit., pp. 139-40.
111
Por outro lado, cumpre notar que a Carta de parágrafo único).
1937 vedou, expressamente, ao Judiciário c0- Deve-se ressaltar que, embora o constituin~
nhecer das questões exclusivamente políticas te tenha outorgado a titularidade da ação direta
(art. 94), e o mandado de segurança perdeu a ao Procurador-Geral da República, a disciplina
qualidade de garantia constitucional, passan- da chamada representação interventiva confi-
do a ser disciplinado pela legislação ordinária. gumva,já na Constituiçlo de 1934, wna peculi~
E o Código de Processo Civil, de 1939, excluiu ar modalidade de composição de conflito entre
da apreciação judicial, na via mandamental, os a União e o Estado. Cuidava-se de aferir even-
atos do Presidente da República, dos ministros tual violação de deveres constitucionalmente
de Estado, dos governadores e interventores impostos ao ente federado. E o poder atribuido
dos Estados (art. 319). ao Procurador-Geral da República, que, na C0ns-
S. A ConstituiçiJo de 1946 e o sistema de tituição de 1946, exercia a função de chefe do
controle de constitucionalidade Ministério Público Federal- a quem competia a
defesa dos interesses da União (3rt. 126) -, deve
O Texto Magno de 1946 restaura a tradição ser considerado, assim, uma simples represen·
do controlejudicial no Direito brasileiro. A par lação processual 27 •
da competência de julgar os recursos ordinári~
os (art. 10I, 11, a, b e c), disciplinou-se a apreci- A argüição de inconstitucionalidade direta
ação dos recursos extraordinários: "a) quando teve ampla utilização no regime constitucional
a decisão for contrária a dispositivo desta Cons- institufdo em 1946. A primeira açIo direta. for-
tituição ou à letra de tratado ou lei federal; b) mulada peloProcurador-Geral da República, na
quando se questionar sobre a validade de lei qual se argüia a inconstitucionalidade de dis-
federal em face desta Constituição, e a decisão posições de lndole parlamentarista contidas na
recorrida negar apliatção à lei impugnada; e c) Constituição do Ceará, tomou o n.o 93 16• A de-
quando se contestar a validade de lei ou ato de nominação emprestada ao novo instituto - re-
governo local em face desta Constituição ou de presentação - segundo esclarece Themistocles
lei fedeml, e a decisão recorrida julgar válida a Cavalcanti, se deveu a uma escolha entre a re-
lei ou o ato" . Preservou-se a exigência da maio-- clamação ea representação, "processos c0nhe-
ria absoluta dos membros do Tribunal para a cidos pelo Supremo Tribunal Fedeml"2!I. A aná-
eficácia da decisão declaratória de inconstitu~ lise do sentido de cada um teria conduzido à
cionalidade (art. 200). Manteve-se, também, a escolha do termo representaçifo, "já porque ti~
atribuição do Senado Fedeml para suspender a nha de se originar de uma representação feita
execuçiJo da lei declarada inconstitucional pelo ao Procurador-Geral, já porque a função deste
Supremo Tribunal (3rt. 64). era o seu encaminhamento ao Tribunal, com o
§ 1. "A representaçilo inlervenlivo seu parecer"30.
A Constituição de 1946 emprestou nova A ausência inicial de regras processuais
conformação à ação direta de inconstituciona- permitiu que o Supremo Tribunal Federal ~
lidade, introduzida, inicialmente, no Texto Mag. senvolvesse os mecanismos procedimentais
no de 1934. Atribuiu-se ao Procurador-Geral da que viriam a ser consolidados, posteriormente,
República a titularidade da representação de pela legislaçao processual e pela práxis da Cor·
inconstitucionalidade, para os efeitos de inter- te3 1• E, por isso, colocaram«, de plano, ques.
venção federal, nos casos de violação dos se-
guintes princípios: a) forma republicana repre- ~7 BANDEIRA DE MELW, Oswaldo Aranha,
sentativa; b) independência e harmonia entre op. cit., p. 192.
os poderes; c) temporariedade das funções ele- a Rp. n.o 93, de: 16.7.1947, Rei. Min. Annibal
tivas, limitada a duração destas à das funções Freire, AJ, 85:3; BRANDÃO CAVALCANTI. ~
federais correspondentes; d) proibição da ree~ mfstocles. Do Controle da Constitucionalidade, Rio
leição de governadores e prefeitos para o perto-- de Janeiro, Forense, 1966, p. 110.
do imediato~ e) autonomia municipal; f) presta- 2' BRANDÃO CAVALCANTI, Themlstocles,
ção de contas da administração; g) garantias op. cit., p. 112.
do Poder Judiciário (art. 8.°, parágrafoúnico, r:Je
30 BRANDÃO CAVALCANTI, Themistoelcs,
oart. 7.°, VII).
op. cit., p. 112; cf., também,Rp. n. o 94, de: 17.7.1947,
A intervenção federal subordinava-se, nes- ReI. Min. Castro Nunes, AJ, 85:31,
se caso, à declaração de inconstitucionalidade 31 BRANDÃO CAVALCANTI, Themistoeles,
do ato pelo Supremo Tribuna1 Federal (3rt. 8.°, op. cit., pp. 111-12.
•2
tôes relativas à forma da argüição e à sua pró- ao preceito invocado e basta esta con-
pria caracterização processual. Questionava-se, trovérsia para que 'o ato argüido de i.n-
igualmente. sobre a função do Procurador-Ge- constitucionalidade' seja submetido pelo
ral da República e sobre os limites constitucio- Procurndor-Geral da República ao exame
nais da argüição. do Supremo Tribunal Federal. E a dúvida
Na Rp. 94, que argüia a inconstitucionalida- é de tanto maior relevo quanto é o pró-
de dos preceitos consagradores do regime par- prio Poder Exea:rtivo quem vacila na apli-
lamentarísta na Constituição do Estado do Rio cação do cexto constitucional, no momen-
Grande do Sul, indagou-se sobre a necessida- to em que se integra o Estado na plenitu-
de de se formular requerimento ao Procurador- de de sua autonomia política.
Geral. E esse entendimento foi acolhido, tendo Grave é a responsabilidade do Gover-
o chefe do Ministério Público Federal solicitado no diante da contingência de pôr termo à
"que a medida fosse provocada, o que foi feito intervenção no Estado, entregando o
através de pedido devidamente justificado"3l. Poder Executivo, não ao seu detentor
Na opinião do insigne publicista, que exer- eleito pelo povo mas a um representante
cia o cargo de Procurador-Geral da República, a eventual eleito pela Assembléia.
argüição~e inconstitucionalidade não poderia Cumpre, por isso mesmo, o Procura-
ser arquivada, mas, aO revés, deveria ser sub- dor-Geral da República, um dever impos-
metida ao Supremo Tribunal, ainda que com to não só pela alta consideração que
parecer contrário do Ministério Público)). merece o Aviso do Exrno. Sr. Ministro da
Essa orientação tomou-se ainda mais evi- Justiça, mas ainda pelos altos propósi-
dente na Rp. 95 (ReI. Min. Orozimbo Nonato), tos que o inspiram trazendo questão de
na qual o Procurador...<Jeral da República mani- tanta relevância ao conhecimento deste
festou-se peja constitucionalidade do preceito E. Tribunal, esperando que este se pro-
impugnado, justificando, no entanto, a propo- nuncie sobre a legitimidade do artigo 2. o
situra da ação, pelas seguintes razões: do Ato das Disposi.ções Transitórias da
"Não tem esta Procuradoria Geral ne- Constituição do Estado diante da Cons-
nhuma dúvida em opinar a respeito, rea- tituição Federal, bem como sobre a cons-
firmando conceitosjá emitidos em outro titucionalidade da intervenção federal
parecer, no sentido de prestigiar o texto depois de promulgada a Constituição
votado pelas Constituintes estaduais, Federal.
cuja validade se presume, quando não Requer, por isso, a \bssa Excelência
colida com princípios fundamentais e ex- que distribuida a presente como recla-
pressos na Constituição Federal. mação, seja a mesma processada como
Esta colisão não se verifica, a meu de direito"l4.
ver, na hipótese, porquanto a norma im- O Supremo Tribuna\ Federa1 ressahou que
pugnada nada mais fez do que concreti- não se tratava de simples consulta, mas de "ex-
zar O princípio da hierarquia dos poderes posição de um conflito de natureza constitucio-
no chamamento ao exercício do Poder nal, elementarmente constitucional, não ocul-
Executivo. tando a forma algo dubitativa das comunica-
Na Constituição Federal, também é o r
ções a ocorrência do tumulto (... 5 • E, con-
Presidente da Câmara o imediato na subs- cluiu, a final, pela constitucionalidade do art.
tituição do Presidente e Vice-Presidente 2. 0 do Ato das Disposições TranSitórias da
da República, e esta é uma tradição do Constituição de Pemambuco36•
nosso Direito constitucional. J4Rp. n." 95, de 30.7.1947, ReI. Min. Orozimbo
Pouco importa que o poder não esteja Nonato, AJ, 85:55~. Nio obstante, convém assína-
ainda constituído porque o mesmoprincí- lar que o Ministro Edgar Costa não conheceu da Re-
pio se aplica a todos os casos de vaga. presentação, uma vez que esta tinha, "nilo apenas a
aparência, mas incontestável caráter de consulta" (AJ,
Subsiste, entretanto, a impugnação 85:68-9).
12 BRANDÃO CAVALCANTI, Themistooles, ))Rp. n." 95, de 30.7.1947, ReI. Min. Orozimbo
op. cit., p. 110. Nonato, AJ, 85:58.
JJ BRANDÃO CAVALCANTI, Themístoclcs, J6Rp. n." 95, de 30.7.1947, ReI. Min. Orozimbo
op. cit., p. 111. Nonato, AJ, 85:55-75.
Desde o inicio, firmou-se no Supremo Tri- necessário, ao Congresso Nacional, na
bunal Federal a orientação de que se cuidava compreensão esclarecida da sua funçIo
de uma controvérsia de índole constitucional. coordenada com a do Tribunal, nJo será
O Poder Judiciário não se limitava a opinar. A inútil o exame desses aspectos, visando
sua decisão configurava "um aresto, um acór- delimitar a extensão, aexecutoriedade ea
dão", que punha ''fim à controvérsia como árbi- conclusividade do julgado.
tro final do contencioso da inconstitueionali- Na declaração em espécie, o Judiciá-
dade"17. A propósito, vale registrar a seguinte rio arreda a lei, decide o caso por inapli-
passagem do voto proferido por Castro Nunes, cação dela, e executa, ele mesmo, o seu
naRp. n.094: aresto.
"Consiste a intervenção, nas hipóte- Trata-se, aqui, porém, de inconstitu-
ses do n.o VII, na suspensão, importa di- cionalidade em tese, e nisso consiste a
zer, na decretação pelo Congresso da inovação ~nhecida entre nós na prá-
nilo-vigência do ato legislativo. tica judicial, porquanto até entlo nJo
São duas atribuições distintas, de in- permitida pela Constituição.
dole diversa, mas articuladas: a decisão Em tais casos a inconstitucionalida-
do Supremo Tribunal situa--se no terreno de declarada não se resolve na inaplica-
juridico; a do Congresso, no plano poli- ção da lei ao caso ou no julgamento do
tico, mas a titulo de sançho daquela. direito questionado por abstração do tex-
\tm aqui, a propósito, esclarecer que, to legal comprometido; resolve-se por
nos termos do assento constitucional e uma fórmula legislativa ou quase legisla-
dos motivos de sua inspiração, o Supre- tiva que vem a ser a não-vigência, virtu-
mo Tribunal não é provocado como ór- almente decretada. de uma dada lei.
gão meramente consultivo, o que con· Nos julgamentos em espécie, o Tri-
traviria à índole do Judiciário; não se li- bunal não anula nem suspende a lei, que
mita a opinar, decide, sua decisão é um subsiste, vige e continuará a ser aplica-
aresto, um acórdão; põe fim à controvér- da até que, como, entre nós, estabelece a
sia como áJbitro final do contencioso da Constituição, o Senado exercite a atribui-
inconstitucionalidade. É nessa função de ção do art. 64.
áJbitro supremoque ele inteJvém, se pro- Na declaração em tese, a suspensao
vocado, no conflito aberto entre a Cons- redunda na ab-rogaçio da lei ou na der-
tituição, que lhe cumpre resguardar, e a rogação dos dispositivos alcançados,
atuação deliberante do poder estadual. não cabendo ao órgão legiferante cen-
Dai resulta que, declarada a inconsti- surado senão a atribuição meramente for-
tucionalidade, a intervenção sancionado- mal de modificá-la ou regê-la, segundo
ra é uma decorrência do julgado"18. as diretivas do prejulgado; é uma incons-
O Supremo Tnbunal FedemI exercia, pois, a titucionalidade declarada erga omnes, e
função de "árbitro final do contencioso da in- não somente entre as partes; a lei não foi
constitucionalidade". Não se tratava, porém. de arredada apenas em concreto; foi cessa-
afastar, simplesmente, a aplicação da lei inc0ns- da para todos os efeitos"llI.
titucional. A pronúncia da inconstitucionalida- Com essa colocação, o eminente jurista e
de, nesse processo, tinha dimensão diferencia- magistrado logrou fixar principios do próprio
da, como se pode ler no magnifico voto de Cas- controle abstrato de nonnas, que viria a ser in-
troNunes: 1IOduzioo. entre nés, pela Emenda n.o 16, de 1965.
"Atribuição nova, que o Supremo Os limites constitucionais da açfo direta
Tribunal é chamado a exercer pela pri- também mereceram aprecisa ret1exJo de Castro
meira vez e cuja eficácia está confiada, Nunes. Na Rp. D.o 94, enfatizou--se o caIáte1' ex-
pela Constituição, em primeira mão, ao cepcional desse instrumento. "Outro aspecto,
patriotismo do próprio legislador estadu- e condizente com a atitude mental do intérpre-
al no cumprir, de pronto, a decisão e, se te, em se tratando de intervenção - ensinava -
é O relativo ao caráter excepcional dessa medi-
37 Rp. n.o 94, de 17.7.1947, Rei. Min. Castro da, pressuposta neste reglmen a autonomia
Nunes, AJ, 85:33.

... la AJ, 85:33. 19Rp. n.o 94, de 17.7.1947,AJ, 85:33.

"_"'.t. fi_ ''''orma,.o ....,.,.""•


constituinte, legislativa e administrativa dos improrrogáveis, contados da comunicação da
Estados·Membros, e, portanto, a preservação respectiva assinatura, ouvia, sobre as razões
dessa autonomia ante o risco de ser elidida pe- da impugnação do ato, os órgãos que o tives-
los Poderes da União",w. E Castro Nunes adu- sem elaborado ou praticado"~!. ALei n.o 4.337,
zia que a enumeração contida no art. 7.°, Vil, da de 1%4, modificou o procedimento então ado-
Constituição de 1946, "é taxativa, é limitativa, é tado, detenninando que, após a argüição, o re-
restritiva e não pode ser ampliada a outros ca- lator ouvisse sobre as razêies de impugnação
sos pelo Supremo Tribunal Federal"41. do ato, no prazo de trinta dias, os órgãos que o
Na Rp. n. ° 95, otema voltou a ser apreciado, tivessem elaborado ou expedido. Admitia-se,
tendo pontificado, uma vez mais, O magistério contudo, o julgamento imediato do feito, em
de Castro Nunes: caso de urgência e relevância do interesse de
"Devo dizer ao Tribunal que consi- ordem púbtica, dando·se ciência da supressão
dero a atribuição hoje conferida ao Su- do prazo às partes.
premo Tribunal excepcionalíssima, só § 2. o A Emenda n. o 16. de 1965. e o
quando for possível entroncar o caso tra- controle de constitucionalidade abs-
zido ao nosso conhecimento a algum dos trato
princípios enumerados no art. 7."', n."'7, A Emendan.o 16, de 26 de nl'lVembrode 1965,
será possível conhecer da argüição. Não instituiu, ao lado da representação interventi-
basta ser levantada uma dúvida consti- va, e nos mesmos moldes, o controle abstrato
tucional. não basta que exista uma con- de normas estaduais e federais. A reforma reali-
trovérsia constitucional. Se não for pos- zada, fruto dos estudos desenvolvidos na Co-
sível entroncá-la com um dos princípios missão composta por Orozimbo Nonato, Prado
enumerados, penso que o Tribunal de- Kelly (Relator), Dario de Almeida Magalhães,
verá abster-se de qualquer deliberação. Frederico Marques e Colombo de Souza, visa-
Nesse sentido, aliás, foi o voto do emi- va a imprimir novos rumos à estrutura do Poder
nente Sr. Ministro Habnemann Guima- Judiciário. Parte das mudanças recomendadas
rnes, que salientou também esse aspec- já havia sido introduzida pelo Ato Institucional
to, igualmente ressaltado pelo eminente n.02, de 27 de outubro de 1965. A Exposição de
Sr. Ministro Relator, em seu voto. Motivos encaminhada pelo Ministro da Justi-
No caso de dúvida, ou quando duví- ça, Dr. Juracy Magalhães, ao Presidente da Re-
dosa ou remota aquela articulação, oTri- pública, ressalta que "a atenção dos reforma-
bunal não deverá conhecer da represen- dores tem-se detido enfaticamente na sobreçar-
tação que poderia transformar em expe- ga imposta ao Supremo Tribunal e ao Tribunal
diente de rotina ou meio de consulta do de Recursos". Não obstante, o próprio Supre-
Governo em todos os casos em que lhe mo Tribunal Federal houve por bem sugerir a
conviesse provocar uma manifestaçãodo adoção de dois novos institutos de legitimida-
Supremo Tnbunal. Aliás o caráter excep- de constitucional, tal como descrito na referida
cional da atribuição decorre da sanção Exposição de Motivos:
mesma, que é a intervenção"42. "a) uma representação de inconstitu-
Assentaram-se, assim, as linhas fundamen- cionalidade de lei federal, em tese, de ex-
taís da representação interventiva. A Lei n.o clusiva iniciativa do Procurador-Geral da
2.271, de22 dejulhode 1954, detenninouque se República, à semelhança do que existe
aplicasse à argüição de inconstitucionalidade para0 direito estadual (art. 8.°, parágrafo
o processo do mandado de segurança (art. 4.0.>. único, da Constituição Federal);
A primeira fase continuou a ser processada, b) uma prejudicial de inconstitucio-
porém, na Procuradoria-Geral da República, tal nalidade, a ser suscitada. exclusivamen-
como no período anterior ao advento da disci- te, pelo próprio Supremo Tribunal Fede-
plina legal (art. 2.°). "Era o Procurador-Geral- ral ou pelo Procurador-Geral da Repúbli-
diz Themistocles Cavalcanti - quem recebia a ca, em qualquer processo em curso pe-
representação da parte e, no prazo de 45 dias rante outro JUÍzo."
"A representação, limitada em sua
4fJAJ,85:34.
41 Rp. n.o 94, de 17.7. 1947,AJ, 85:34. 43 BRANDÃO CAVALCANTI, Themístocles,
42 ReI. Min. Orozimbo Nonato, AJ, 85:70-1. op. cit., p. 127.

.,...... a. 3211.128 "'./Jun. 1&85


iniciativa, tem o mérito de facultar desde Nos termos do Projeto de Emenda à Consti-
a definição da 'controvérsia constitucio- tuição, o art. 101, I, k, passava a ter a seguinte
nal sobre leis novas, com economia para redação:
as partes, fonnando precedente que ori- "k) a representação de inconstitucionali-
entará o julgamento dos processos con- dade de lei ou ato de natureza nonnativa,
gêneres'. Meiçoa-se, no rito, às represen- federal ou estaduM, encaminhada pelo
tações de que cuida o citado prea:itoams- Procurador-Geral da Repii>lica".
titucional para forçar ocumprimento, pe- E o art. 5.° do Projeto acrescentava os se-
los Estados, dos principios que integram. a guintes parágrafos ao art. 101:
lista do inciso VII do art. 7.°. De algum
modo, a inovação, estendendo a vigilân- "§ 1.° Incumbe ao Tribunal Pleno o
cia às 'leis federais em tese', completa o julgamento das causas de competência
sistema de pronto resguardo da lei básica, originária (inciso I), das prejudiciais de
se ameaçada em seus mandamentos. inconstitucionalidade suscitadas pelas
Turmas, dos recursos interpostos de de-
Já a prejudicial agora proposta, mo- cisões delas, se divergirem entre si na
dalidade de avocatória. utilizável em qual- interpretação do direito fedeml, bem como
quer causa, de qualquer instância, impor- dos recursos ordinários nos crimes poli-
taria em substituir aos juizos das mais ticos (inciso lI, c) e das revisões crilIÚ-
diversas categorias a faculdade, que lhes nais (inciso IV).
pertence, no grau da sua jurisdição, de
apreciar a conformidade de lei ou de ato § 2.° Incumbe às Turmas o julgamen-
com as cláusulas constitucionais. Ao ver to definitivo das matérias enwneradas nos
da Comissão, avocatória só se explicaria incisos lI, a e b, e mdeste artigo.
para corrigir omissões de outros órgãos § 3.° As disposições de lei ou ato de
judiciários, se vigorasse entre nós, como natureza normativa. consideradas in-
vigora por exemplo na Itália, o privilégio constitucionais em decislo definitiva,
de interpretação constitucional por urna perderão eficácia, a partir da declaração
Corte especializada, a ponto de se lhe do Presidente do Supremo Tribunal Fe-
remeter obrigatoriamente toda questão deral publicada no órgão oficial da
daquela natureza, levantada de oficio ou União".
por uma das partes em qualquer proces-
E o art. 64 da Constituição passava a ter a
so, desde que o juiz ou tribunal não a
repute manifestamente infundada. seguinte redação:
"Art. 64. Incumbe ao Presidente do
Ao direito italiano pedimos, todavia, Senado Federal, perdida a eficácia de lei
uma formulação mais singela e mais efici- ou ato de natureza normativa (art. 101, §
ente do que a do art. 64 da nossa Consti- 3.°), fazer publicar no Diário Oficial ena
tuição, para tornar explicito, a partir da Coleção das leis, a conclusão do julgado
declaração de ilegitimidade, o efeito erga que lhe for comunicado".
omnes de decisões defmitivas do Supre-
mo Tn'bunal, poupando ao Senado o de- O parecer aprovado peJa Comissão Mista,
ver correlato de suspensão da lei ou do da lavra do Deputado Tarso Dutra, referiu«,
decreto - expediente consentâneo com as especificamente, ao novo instituto de controle
teorias de direito pOOlico em 1934, quando de constitucionalidade:
ingressou em nossa legislação, mas pre- "A letra k, propondo a representa-
sentemente suplantada pela formulação ção a cargo da Procuradoria-Geral da
contida no art. 136 do estatuto de 1948: República, contra a inconstitucionalida-
'Quando la Corte dichiara l'iUegittimità de em tese da lei, constitui uma amplia-
costituzionale di una norma di legge o di ção da faculdade consignada no pará-
atto avente forza di legge, la norma cessa grafo único do art. 8.°, para tornar igual-
di avere efficacia dal giomo sucessivo alia mente vulneráveis as leis federais por
publicazione delIa decisione"'44. essa medida. Ao anotar-se a conveniên-
cia da modificação alvitrada na espécie,
44 Brasil. COIISlituição (1946): Emendas. Emendas que assegurará. com a rapidez dos julga-

..
à Constituiçlo de 1946, n. o 16: refonna do Poder Judi·
ciário, Brasllia, Câmara dos Deputados, 1968, p. 24.
mentos sumários, uma maior inspeção
jurisdicional da constitucionalidade das
leis, não será inútil configurar o impró~ A Constituição de 1967 não incorporou a
prio de uma redação, que devia conferir à disposição da Emenda n." 16, que pennitia a cri-
representação a idéia nítida de oposição ação do processo de competência originária dos
à inconstitucionalidade e o impreciso de Tribunais de Justiça dos Estados, para declara-
moa referência a atos de natureza nonua- ção de lei ou ato dos municípios que contrari-
tiva de que o nosso sistema de poderes assem as Constituições dos Estados. A Emen-
indelegáveis (art. 36, §§ l.oe 2.~conhe­ da n." 1, de 1969, previu. expressamente, o con-
ce apenas uma exceção no § 2. o do art. trole de constitucionalidade de lei municipal,
123 da Constituição"~5. em face da Constituição estadual, para fins de
A proposta de alteração do disposto no art. intervenção no munidpio (art. 15, § 3.0 , d).
64 da Constituição, com a atribuição de eficácia A Emenda n. o 7, de 1977, introduzju, ao lado
erga omnes à declaração de inconstitucionali- da representação de inconstitucionalidade, a
dade proferida pelo Supremo Tribunal Federal, representação para fins de interpretação de lei
foi rejeitada46 • Consagrou-se, todavia, o mode- ou ato normativo federal ou estadual, outor-
lo abstrato de controle de constitucionalidade. gando ao Procurador-Geral da República a legi-
A implantação do sistema de controle de timidade para provocar o pronunciamento do
constitucionalidade, com o objetivo precípuo Supremo Tribunal Federal (art 119,1, e). E, se-
de "preservar o ordenamentojurídico da intro- gundo a Exposição de Motivos apresentada ao
missão de leis com ele inconviventes"47 veio Congresso Nacional, esse instituto deveriaevi-
somar, aos mecanismos já existentes, um ins- tar a proliferação de demandas. com a fixação
trumento destinado a defender diretamente o imediata da correta exegese da lei'll.
sistemajurídico objetivo. Finalmente, deve-se assentar que a Emenda
Finalmente não se deve olvidar que, no to- n. o 7, de 1977, pôs termo à controvérsia sobre a
cante ao controle de constitucionalidade da lei utilização de liminarem represl:fltação de inrons-
municipal, a Emenda n. o 16 consagrou, no art. titucionalidade, reconhecendo, expressamente,
124, XlII, regra que outorgava ao legislador a acompetência do Supremo TrIDunal para deferir
faculdade para "estabelecer processo de com- pedido de cautelar, formulado pelo Procurador-
petência originária do Tribunal de Justiça, para GeraldaRepltllica (CF 1967/1969, 3rt. 119, I,p"f.
declaração de inconstitucionalidade de lei ou 7. O controle de constitucionalidade na
ato do Município em conflito com a Constitui- Constituição de 1988
ção do Estado" .
Se a intensa discussão sobre o monopólio
6. O controle de constitucionalidade na da ação por parte do Procurador-Geral da Re-
Constituição de 1967/1969 pública não levou a uma mudança na jurispru-
A Constituição de 1967 não trouxe grandes dência consolidada sobre o assunto, é fácil de
inovações no sistema de controle de constitu- constatar que ela foi decisiva para a alteração
cionalidade. Manteve-se incólume o controle introduzida pelo constituinte de 1988, com a sig-
difuso. A ação direta de inconstitucionalidade nificativa ampliação do direito de propositura
subsistiu, tal como prevista na Constituição de da ação direta.
1946, com a Emenda n. 0 16, de 1965. O constituinte assegurou o direito do Pro-
A representação para fins de intervenção, curador-Geral da República de propor a ação de
confiada ao Procurador-Geral da República, foi inconstitucionalidade. Este é, todavia, apenas
ampliada, com o objetivo de assegurar não SÓ a um dentre os diversos órgãos ou entes legiti-
observância dos chamados princípios sensíveis mados a propor a ação direta de inconstituci-
(art. 10, VIl), mas também prover a execução de onalidade.
lei federal (art. 10, VI, 1.8 parte). Acompetência Nos termos do art. 103 da Constituição de
para suspender o ato estadual foi transferida 1988 dispõem de legitimidade para propor a ação
para o Presidente da República (art. 11, § 2. 0 ).
Preservou-se o controle de constitucionalida- 41 Mensagem n.O 81, de 1976, Diário do Con-

de in abstracto, tal como estabelecido pela gresso Nacio1lal. O Texto Magno de 1988 não man-
Emenda ".016, de 1965 (art. 119,1, f). teve esse instituto no ordenamento constitucional
brasileiro.
~5 Brasil. Constituição (1946), cit., p. 67.
49 A Constituição de 1988 manteve a competên-
46 Brasil. Constituição (1946), cit., pp. 88-90. cia do Supremo Tribunal para conceder liminar na
~1 BASTOS, Celso Ribeiro, op. cit., p. 65. ação de inconstitucionalidade (art. 102, I,p).

ar"'''. a. 32 n. 126 abrJlun. 1ee5


de inconstitucionalidade o Presidente da Re- premo Tribunal Federal mediante processo de
pública, a Mesa do Senado Federal, a Mesa da controle abstrato de normas.
Câmara dos Deputados, a Mesa de moa As- Convém assinalar que, tal como já observa-
sembléia Legislativa, o Governador do Estado, do por Anschütz ainda no regime de Weimar,
o Procurador-Geral da República, o Conselho toda vez que se outorga a um Tribunal especial
Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, atribuição para decidir questões constitucio-
partido politico com representação no Congres- nais, limita-se, explicita OU implicitamente, a
SO Nacional, as confederações sindicais OU en- competência dajurisdíção ordinária para apre-
tidades de classe de âmbito nacional. ciar tais controvérsias51 •
Com isso satisfez o constituinte apenas par-
cialmente a exigência daqudes que solicitavam Portanto, parece quase intuitivo que, ao
fosse assegurado o direito de propositura da ampliar, de fonna significativa. ocirculo de en·
açao a um grupo de, v.g., dez mil cidadãos ou tes e órgljos legitimados a provocar o Supremo
que defendiam até mesmo a introdução de uma Tribunal Federal, no processo de controle abs-
ação popular de inconstitucionalidade'O. trato de nonnas, acabou o constituinte por res-
tringir, de maneira radicaL a amplitude do con-
Esse fato fortalece a impressão de que, com trole difuso de constitucionalidade.
a introdução desse sistema de controle abstra-
to de normas, com ampla legitimação e, particu- Assim, se se cogitava, no período anrerior a
larmente, a outorga do direito de propositura a 1988, de um modelo misto de controle de cons-
diferentes órgãos da sociedade, pretendeu o titucionalidade, é certo que o forte acento resi-
constituinte reforçar o controle abstrato de nor- dia, ainda, no amplo e dominante sistema difu-
mas no ordenamento jurídico brasileiro como so de controle. O controle direto continuava a
peculiar instrumento de correçiJo do sistema ser algo acidental e episódico dentro do síste--
geral incidente. ma difuso.
Não é menos certo, por outro lado, de que a A Constituição de 1988 alterou. de maneira
ampla legitimação conferida ao controle abstI3- radical, essa situação, conferindo ênfase nlo
to, com a inevitável possibilidade de se subme- mais ao sistema difuso ou incidenle, mas ao
ter qualquer questão constitucional ao Supre- modelo concentrado, uma vez que as questões
mo Tnbunal Federal, qx:rou wna mudança subs- constitucionais passam a ser veiculadas, fun-
tancial - ainda que não desejada - no modelo damentalmente, mediante ação dinu de incons-
de controle de constitucionalidade até então titucionalidade perante o Supremo Tn'bunal
vigente no Brasil. Federal.
O monopólio de ação outorgado ao Procu- Ressalte-se que essa alteração não se 0pe-
rador..Qera1 da República no sistema de 1967169 rou de forma ainda profunda porque o Supremo
não provocou uma alteração profunda no m<r Tribunal manteve a orientaçAo anterior, que
dela incidente ou difuso. Este continuou pre- considerava inadmissivel o ajuizamento de açIo
dominante, integrando-se a representaç!o de direta amua direito pré-conslitucionaJ em .Iàce
inconstitucionalidade a ele como um elemento da nova Constituição.
ancilar, que contribuía muito pouco para dife- A ampla legitimaçlo, a presteza e celeridade
rençá-Io dos demais sistemas difusos ou inci- desse modelo processual, dotado inclusive da
dentes de controle de constitucionalidade. possibilidade de se suspender imediatamente a
A Constituiçao de 1988 reduziu o sígnifica~ eficácia do ato normativo questionado, medi·
do do controle de constitucionalidade inciden- ante pedido de cautdar, faz com que as grandes
tal ou difuso, ao ampliar, de forma marcante, a questões constitucionais sejam solvidas. na sua
legitimação para propositura da ação direta de maioria, mediante a utilização da açAo direta,
inconstitucionalidade (CF art. 103), permitindo típico instrumento do controle concentrado.
que, praticamente, todas as controvérsias c0ns- A particular confonnaÇl1o do processo de
titucionais relevantes sejam submetidas ao Su- controle abstrato de normas confere-lhe, tam-
bém, novo significado como instrumento fede-
50 Cf., a propósito. as propostas de Vilson Souza rativo, permitindo a aferição da constitucionali-
e Vivaldo Barbosa à ComissAo de Organização de dade das leis federais mediante requerimento
Poderes e Sistema de Governo da A8Ilcmbléia Cons- de um Governador de Estado e a aferição da
tituinte, in: Asscmbl6iaNacional Constituinte, Emen-

.
das oferecidas à Comissão da Organízação dos Pode-
res e Sistema de Governo, 1988, pp. 214 e 342.
SI ANscHOTz, Oerltard, 'krbandlungcn dca 34.
Juristentags, Berlim e Lcipzig, 1927. v. 11, p. 208.
constitucionalidade das leis estaduais, median- trole de constitucionalidade a ação declarató-
te requerimento do Presidente da República. ria de constitucionalidade.
A propositura da ação pelos partidos políti- A Emenda Constitucional 0.° 3, de 17 de
cos com representação no Congresso Nacional março de 1993, disciplinou o instituto firmando
concretiza, por outro lado, a idéia de defesa das a competência do Supremo Tribunal Federal
minorias, uma vez que se assegura até às fra- para conhecer e julgar a ação declaratória de
ções parlamentares menos representativas a constitucionalidade de lei ou ato normativo fe-
possibilidade de argüir a inconstitucionalidade deral, processo cuja decisão definitiva de méri-
de lei. to possuirá eficácia contra todos e efeito vin-
. ~salte-se que não são numericamente sig- culante, relativamente aos demais órgãos do
mficabvas as a~s propostas pelas organiza- Executivo e do Judiciário. Conferiu-se legitimi-
ções partidárias. E verdade, porém, que muitos dade ativa ao Presidente da República, à Mesa
dos temas mais polêmicos submetidos ao Su- do Senado Federal, à Mesa da Câmara dos De-
premo Tribunal, no processo de controle abs- putados e ao Procurador-Geral da República.
trato, foram trazidos à baila mediante iniciativa Considerando a súbita repercussão da introdu-
dos partidos poHticos. Assim, a discussão so- ção do instituto, cumpre agora cogitar se repre-
bre a constitucionalidade da Emenda Constitu- senta ele um novum no modelo brasileiro de
cional n.o 2, de 1992, que antecipou o plebiscito controle de constitucionalidade.
sobre a forma e sistema de governo previsto no Em verdade, o dispositivo não inova. A im-
a~ 2.° do AJ?CT'2, o questionamento da legiti-
precisão da fónnula adotada na Emenda n.o 16-
mldade da lei do salário-mínimo'3, a controvér- representação contra inconstitucionalidade
sia sobre a legitimidade do pagamento median- de lei ou ato de natureza normativa, federal
te precatório para os créditos de natureza ali- ou estadual, encaminhada pelo Procurador-
mentícia~. Isto para não falar das diversas ações
?eral - não conseguia esconder o propósito
propostas contra a política econômica do Go- mequívoco do legislador constituinte, que era
verno". o de permitir desde logo, a definiçãO da con-
trovérsia constitucional sobre leis novas.
Ao lado desta ampla legitimação para a pro-
vocação do controle abstrato de normas cui- Não se fazia mister, portanto, que o Procu-
dou o constituinte de instituir mecanism~ (art. rador-Geral estivesse convencido da inconsti-
5.°, LXXI) para a tutela de direitos subjetivos ~io~li~de da ~rma. Era sufíciente o requi-
lesados em decorrência da omissão normativa. S1to obJetlvo relattvo à existência de controvér-
No mesmo passo, instituiu-se ainda processo sia constitucional. Dai ter o constituinte utili-
de controle abstrato da omissão normativa in- zado a fórmula equivoca - representaçdo con-
tra a inconstitucionalidade da lei, encaminha-
constitucional (arl103, § 2."), instituto-aexem-
pIo do anterior - ainda carente de conformação da fJf!h! Procurador-Geral da República - que
exphCItava, pelo menos, que a dúvida ou a even-
definitiva.
tual convicção sobre a inconstitucionalidade
8. A Emenda Constitucional n. o 3 de 1993: não precisava ser por ele perfilhada.
A açdo declaratória de constitucionalidade
~e. correta essa orientação, parece legitimo
. ~o bojo ~ reform~ tributária.de emergên- admlbr que o Procurador-Geral da República
CIa, mtroduzlU-se
no slstema brastleiro de con- tanto poderia instaurar o controle abstrato de
normas, com O objetivo precípuo de ver decla-
S2Cf. ADIN n'" 829, 830 e 831, Relator: Minis-
tro Moreira Alves, DJ 20.4.93, p. 6.758.
rada a inconstitucionalidade da lei ou ato nor-
mativo (ação declaratória de inconstituciona-
.~3 ADIN n.~ 737, proposta pelo Partido Demo- lidade ou representaçdo de inconstituciona-
crático TrabalhIsta - PDT, Relator: Ministro Morei- li.dade), como poderia postular, expressa ou ta-
ra Alves, DJ 22.10.93, p. 22.252. c1tamente, a declaração de constitucionalidade
S4 ADIN n" 672, Relator: Ministro Maroo Auré-
da norma questionada (açdo declaratória de
lio, DJ 4.2.92, p. 499. constitucionalidade).
S~ Cf, v.g., ADIN n. 0357, Relator: Ministro Carlos
Velloso, DJ 23.11.90, p. 13.622; ADIN n.O 562, Re-
A cláusula sofreu pequena alteração na
lator: Ministro Drnar Galvilo, DJ 10.9.91, p. 12.254; Constituiçãode 1967 ede 1967/69 (representa-
ADIN n. O605, Relator: Ministro Celso de Mello, DJ ~do do Procurador-Geral da República, por
5.3.93; ADIN n.O 931, Relator: Ministro Francisco Inconstitucionalidade de lei ou ato normati-
Rezek, DJ 2.9.93. vofederalou estadual - CF, 1967, art. 115, I, l;
ar..". a. 32 n. 126 . ../1l1li. 1e85
CF, 1967/69,art. 119,1,1). em tomo da representaçdo interventiva" -
O Regimento Interno do Supremo Tribunal confusão essa que contaminou os estudos do
Federal, na versão de 1970 56, consagrou expres- novo instituto - não permitiram que essas idéí-
samente essa idéia: as fossem formuladas com a necessária clareza.
Sem dúvida, a disciplina especifica do tema
"Art. 174.... no Regimento Interno do Supremo Tribunal
§ l°. Provocado por autoridade ou por Fedeml serviria à segurançajurldica. na medida
terceiro para exercitar a iniciativa previs- em que afastaria, de urna vez por todas, as COD-
ta neste artigo, o Procurador-Gera1, en- trovérsiasque marcaramo tema no direito c0ns-
tendendo improcedente a fundamenta- titucional brasileiro.
ção da súplica, poderá encaminhá-la com
parecer contrário". Entendida a representaçlJo de inconstitu-
cionalidade como instituto de conteúdo dú-
Essa disposição, que, corno visto, consoli- pUce ou de caráter ambivalente, mediante O
dava tradição já velha no Tribunal. permitia ao qual O Procurador..Qeral da República tanto
titular da ação encaminhar a postulaçllo que lhe poderia postular a declaração de inconstitucio-
fora dirigida por terceiros, manifestando-se, nalidadeda norma. como defender a d.ecJaraçllo
porém, em sentido contrário. de sua constitucionalidade. afigurar-se-ia legi-
Assim, se o Procurador-Geral encaminhava timo sustentar, com maior ênfase e razoabilida-
súplica ou rqJresentação de autoridade ou de de, a tese relativa à obrigatoriedade de o Pmcu-
terceiro. com parecer contrário, estava simples- rador..Qeral submeter a questão constitucional
mente a postular uma declaração (positiva) de ao Supremo Tribunal Federal. quando isto lhe
constitucionalidade. O pedido de representa- fosse solicitado.
ção, formulado por terceiro e encaminhado ao A controvérsia instaurada em tomo da re-
Supremo. materializava, apenas, aexistência da cusa do Procurador-Geral da R.epúblicaJll de
controvérsia constitucional apta a fundamen-
tar uma necessidade pública de controle.
'7 BUZAID, op. cit., p. 107; Barbosa Moreira,
Essa cláusula foi alterada, passando O Regi- As Partes na açIo dc:çlarat6ria de inconstitucionali-
mento Interno a conter as seguintes disposições: dade, Revisto de Direilo da Procuradorla-Geral do
..Art. 169. O Procurador-Ge131 da Re- Estado da Guanabara, n.O 13 (1964), p. 67 (75~76);
pública poderá submeter ao Tribunal. BRANDÃO CAVALCANTI, ThcmfstocJes, op. cit.,
mediante representação O exame de lei pp. 115 s.
ou ato nonnativo fedeml ou estadual, para ,. É certo que uma avaliaçio desse modelo brasi-
que seja declarada a sua inconstitucio- leiro de controle abstrato de nonnBll 1110 pode deixar
de considerar BIl circunstâncias polfticas dominantes
nalidade. durante todo o período de desenvolvimento dellllC
§ 1°. Proposta a representaç;to, não instituto. Os pressupostos indispensáveis penudos
se admitirá desistência, ainda que afinal por Kelllell para esse advopdo da ConsIin.içllo que,
o Procwador-Genl se manifeste pela sua segundo ele, deveria ser dotado de todas as garantias
improcedência." imagináveis tanto em face do Governo quanto em
Parece legitimo supor que essa modificação face do Parlamento (Wesen "nd Entwicklungder-Sta-
atgeri~ht.rhorkeit, VVDStRL 5 (1929), p. 30 (75».
não afterou, substancialmente, a idéia básica
nIo poderiam ser assegurados !Ob o império de um
que norteava a aplicaçlo desse instituto. Se o regime de exccçlo.
titular da iniciativa rnanifestava-se, afinal, pela O Procurador-Geral da República exercia, no
constitucionalidade da norma impugnada, é controle abstrato de nonnas, o papel especial de ad-
porque estava a defender a declaração de cons- vopdo da Constituiçdo, interessado exclusivamente
titucionalidade. na defCllll da ordem constitucional.
Na prática. continuou o Procurador-Geral a Com isso logrou o constituinte brasileiro positi-
oferecer representações de inconstitucionali- var proposta formulada por KelllCll quanto à insti-
dade. ressaltando a relevância da questão e tuiçlo de um advogado d4 Con.rJillliçlJo{Yerfll.JSlll'l-'
manifestarnlo-se afinal, muitas vezes. em favor gsanwalf) que deveria deflagrar o controle de normas
ex ojJir:io sempre que uma lei se lhe afigurasse incom-
da constitucionalidade da norma. patível com a Constituiçio (idem. ibídem). Ao c0n-
A falta de maior desenvolvimento doutriná- trário da representaçlo interventiva. que pressupõe
rio e a própria balbúrdia conceitual instaurada um interesse da Unilo na preservaçlo de principias
fundamentais da ordem federativa, o controle abstra-
36 Dl de 4 de 9Ctembro de 1970, pp. 3.971 e ss. to de nonnas independe de qualquer inteR:sse espc-

100
encaminhar ao Supremo Tribunal Federal repre- norma impugnada62 •
sentação de inconstitucionalidade contra o Ora, ao admitir o cabimento dos embargos
Decreto-Lei n. o 1.077, de 1970, que instituiu a infringentes opostos pelo Procurador-Geral da
censura prévia sebre livros e periódioogS9, não República contra decisão que acolheu repre-
serviu - infelizmente - para realçar esse outro sentação de inconstitucionalidade de sua pró-
lado da representação de inconstitueionalidadelíO• pria iniciativa, o Supremo Tnbunal Federal con-
De qualquer sorte, todos aqueles que sus- tribuiu para realçar esse caráter ambivalente
tentaram a obrigatoriedade de O Procurador- da representação de inconstitucionalidade, re-
Geral da República submeter a representação conhecendo implicitamente, pelo menos, que
ao Supremo Tribunal Federal, ainda quando ao titular da ação era legitimo tanto postular a
estivesse convencido da constitucionalidade declaração de inconstitucionalidade da lei, se
da norma61 • somente podem ter partido da idéia disso estivesse convencido, como pedir a de-
de que, nesse caso, o Chefe do Ministério Pú- claração de sua constitucionalidade, se, não
blico deveria, necessária e inevitavelmente, for- obstante convencido de sua constitucionalida-
mular uma ação declaratória - positiva - de de, houvesse dúvidas ou controvérsias sobre sua
constitucionalidade. legitimidadeque redamassem wn pronunciamen-
Na Representação n. o 1.092, relativa à cons- to definitivo do Supremo Tribunal Federal
titucionalidade do instituto da reclamação, con- Everdade que a Corte restringiu significati-
tido no Regimento Interno do antigo Tribunal vamente essa orientação no acórdão de 8 de
Federal de Recursos, viu-se o Procurador-Geral setembro de 1988 (Rp. n.<> 1.34-9, Relator: Minis-
da República, que instaurou o processo de con- tro Aldir Passarinho, RrJ 129, pp. 41 ss.). O Pro-
trole abstrato de normas e se manifestou, no curador-Geral da República encaminhou ao Tri-
mérito. pela improcedência do pedido, na con- bunal petição formulada porgrupo de parlamen-
tingência de ter de opor embargos infringentes tares que sustentava a inconstitucionalidade
da decisão proferida, que julgava procedente a de determinadas 0
disposições da Lei de Infor-
ação proposta, declarando inconstitucional a mática (Lei 0. 7.232, de 29 de outubro de 1984).
O Tribunal considerou inepta a representação,
cífico, sendcrlhe estranha mesmo a idéia de interesse entendendo que, como a Constituição previa
jurídico a ser protegido (Rp. n.o 700, Relator: Minis- uma ação de inconstitucionalidade, não pode-
tro Amaral Santos, p. 690 (714); Ação Rescisória n.o ria o titular da ação demonstrar, de maneira in-
848, Relator: Ministro Rafael Mayer, RTJ n.o 95, p. sofismável, que perseguia outros desiderato~.
49 (58); Rp. 11.° 1405, Relator: Ministro Moreira Embora o Supremo Tribunal Federal tenha
Alves, Diário da Ju.~tiça de 1.7.88).
considerado inadmissível representação na qual
Por isso, dever-se-iarn diferençar, de fOlllJ8 cl.ll1'll, oProcurador-GernJ da RcpúbJirn afirma, depJa-
as competências do Procurador-Geral da República. no, a constitucionalidade da oormaM , é certo
No primeiro processo, representava ele \) interesse
da União em face de um determinado Estado, que,
que essa orientação, calcada numa interpreta-
efetiva ou supostamente, desrespeitara princípio sen- ção literal do texto constitucional, não parece
sível estabelecido na Constituição. No controle abs- condizente, tal como demonstrado, com a natu-
trato, atuava Como representante do interesse geral reza do instituto e com a sua práxis desde a sua
com o propósito de instaurar o controle judicial das
normas estaduais ou federais (BANDEIRA DE CANIl, Themístocles, Arquivamento de represen-
MELLO,op. cit., p. 189; MENDES, Gilmar, Con- tação por inconstitucionalidade da lei, RDP R" 16, p.
trole de Constitucionalidade: aspectos jurídicos e 169', CARDOSO, Adaucto Lucio, voto na Reclama-
polítit:os, São Paulo, Saraiva, 1990, pp. 230 e ss.). ção n.o 849, RTJ 50, pp. 347·8; BASTOS, Celso,
59 Reclamação n.O 849, Relator: Ministro Adalí-
Curso de Direito Constitucional, 1982, p. 69.
cio Nogueira. RTJ 59, p. 333. 62 Embargos na Repr=ntsçilo n." W92, Relator:

,., Cf., sobre o assunto, registros da discussão Ministro Néri da Silveira, RTJ n." 117, pp. 921 e ss.
travada no Conselho Federal da Ordem dos Advoga- &:l Rp. n." 1349, Relator: Ministro Aldir Passari-
dos do Brasil, em março de 1971, in: Arqui vos do nho, RTJ n.o 129. p. 41.
Ministério da Justiça, n.O 118 (1971), pp. 23 ss.
M Representação n. o 1349, Relator: Ministro AI-
61Cf., a ptopósito. MARINHo, Josaphat, In. dir Passarinho, RTJ n." 129, p,41. O Tribunal ~onsióe­
constitucionalidade de lei - representação ao STF, rou inepta ti representação, entendendo que, como ti
RDP 12, p. 150; PEREIRA, Caio Mário da Silva, Constituição previa uma ação de inconstitucionalida-
voto proferido no Conselho Federal da OAB, Arqui- de, não poderia o titular da ação demonstrar, de manei-
vos do Ministério da Justiça, nO 118, p. 25; CAVAL- ra insofismáve\, que perseguia outros desideratos.

101
adoção pela Emenda n,o 16, de 1965. dade de se instaurar O controle abstrato com
Todavia, a Corte continuou a admitir as re- pedido de declaração de constitucionalidade,
presentações c, mesmo após o advento da tomaram inevitável a positivaç40 de um insti-
Constituição de 1988, as ações diretas de in- tuto específico no ordenamento constitucional,
constitucionalidade nas quais o Procurador- consubstanciado na ação declaratória de cons-
Gerallimitava-se a ressaltar a relevância da ques- titucionalidade.
tão constitucional, pronunciando-se, afinal, 9. ConclusiJo
pela sua improcedênciaM • Pelo exposto, constata-se tendência - ain-
Em substância, era indiferente, que o Pfo.. da que fragmentária - à adoção de um sistema
curador-Geral sustentasse, desde logo, a cons- aproximadc a modelos concentrados de con-
titucionalidade da norma, ou que encaminhas- trole de constitucionalidade. ?aTa umto, fazem-
se o pedido, para, posteriormente, manifestar- se necessários, entre outros, os seguintes apri-
se pela sua improcedência. moramentos:
Essa análise demonstra claramente que, a - criação de incidente de inconstitu-
despeito da utilização do tenno representaçiJo cionalidade, tal como acolhido no Subs-
de inconstitucionalidade, O controle abstrato titutivo do Relator-Geral da Revisão
de normas foi concebido e desenvolvido como Constitucional (Parecer Jl°27);
processo de natureza dúplice ou ambivalente. - desenvolvimento da eficácia geral
se o Procurador-Geral estivesse convenci- das decisões do Supremo Tribunal Fe-
do da inconstitucionalidade, poderia provocar deral (eficácia erga omnes, com a conse-
o Supremo Tribunal Federal para a declaração qüente supressão do obsoleto inciso X
de inconstitucionalidade. Se, ao revés, estives- do ano 52 da Constituiçi:) FedenIl), a p0s-
se convicto da legitimidade da nonIUl, então sibilitar a redução do colossal número de
poderia instaurar o controle abstrato com fina- feitos que ameaçam inviabilizar o funcio-
lidade de ver confirmada a orientação questio- namento da Corte;
nada. - adequado instrumento objetivo de
sem dúvida, a falta de um melhordesenvol- controle do direito pré-constituciona1;
vimento doutrinário sobre essa face peculiar da - via para controle da legalidade do
representação de inconstitucionalidade e a de- ato regulamentar, com a conseqOente
cisão do Supremo Tribunal na Representação supressão do inciso Vdo art. 49 da Cons-
n,o 1.349, que, praticamente, negou a possibili- tituição Federal.

~'cr., dentre outras, ADIN n,o 716·5, Relator:


Ministro Marco Aurélio, DJ 29.4.92, p. 5606.

1ft
Considerações acerca da
constitucionalidade na expedição de
medidas provisórias versando matéria
orçamentária pública (Nota Técnica nº 1/95)

R6B1S0N GONÇAIV[S Df CASTRO

sUMÁRIo
1. ll/trodução. 2. As leis orçamenfárias - sua
história. 3. A/anffestações do STF acerca de medi·
das provisorias. 4. Apresentação do prohiema. 5.
Conclusão.

1. Introdução
Com o trabalho em epígrafe. tecem-se con-
siderações acerca da expedição de medidas pro-
visórias versando matéria orçamentária pública
sob a Constituição Federal de 198&. Com esse
fito. foi compulsada bibliografia discriminada
ao término deste estudo. constituida por textos
doutrinários de obras consagradas. bem assim
textos de aTt\cuhstas rom foco específico sobre
a problemá1ica em tc\a. Foram. ainda. pesquisa-
das as jurispmdências do Supremo Tribunal
Federal ~ STF e do Superior Tribunal de Justiça
- STJ. Importante contribuição foi também ob-
tida nos pareceres do relator do processo de
revisão constituc\onat Deputado Nelson Jobitl\
pela atualid1de do trabalho. Finalmente. é de se
esclarecer que o posicionamento aqui estabe-
lecido. embora alicerçado nas fontes anterior-
mente referidas. é de op\nião do autor deste
trabalho.
Será apresentado. inicialmente. breve his-
tórico da matéria legal orçamentária na Jnglater~
ra - berÇO do Direito Constitucíonal- e no Bra-
siL como forma de incitar o leitor à compreen-
silo da relevância da matéria orçamentária nos
albores do Direito Constitucional e na proteção
da cid1dania.
A segu\r. far-se-á breve s\f\tese das deci-
sõcs do Supremo Tribunal Federal acerca da
temática das medidas provisórias, de forma a
Róhison Gonçalves de Castro é Consultor de fornecer supedâneo às afirmações que posteri-
Orçamentos.
8r••flla a. 32 n. 126I1br./Jun. 1995 103
ormente serão colocadas. que:
Em continuidade, realizar-se-á a explanação "A partir de agora, ninguém será obri-
do assunto central desse trabalho, já fornecen- gado a contribuir com qualquer dádiva,
do elementos que conduzem a conclusão que empréstimo ou beneficio e a pagar qual-
se encontra ao final. quer taxa ou imposto, sem o consenti·
2. As leis orçamentárias - sua história mento de todos, manifestado por ato do
As origens mais remotas do orçamento pú- Parlamento; e que ninguém seja chama·
blico são encontradas na Inglaterra. Lord Ma- do a responder ou prestarjuramento, ou
caulay, nos seus Ensaios sobre a história da a executar algum serviço, ou encarcera-
Inglaterra, de 1864, afinna que a máxima se- do, ou duma forma ou doutra, molestado
gundo a qual "todo imposto deve ser consenti- ou inquietado, por causa desses tributos
do pelo povo" era "tão antiga que ninguém pode ou da recusa em pagá-los."
precisara origem". No Brasil, a Constituição do Império (1824)
Os historiadores da Ciência das Finanças, atribuiu ã Assembléia Geral a competência para
no entanto, fixam essa origem na memorável fixar anualmente as despesas públicas e repar-
Magna Carta, salvaguarda das liberdades in- tir a contribuição direta. Prescreveu, ainda, que
glesas, outorgada - ou mais precisamente acei- "O Ministro da Fazenda, havendo
ta - pelo Rei João-sem-Terra (lohn Lackland) recebido de outros Ministros os orça-
emjunho de 1215, após a confrontação nos pra- mentos relativos às despesas de suas
dos de Runnymede. Isso antes mesmo da cria- repartíç(ies, apresentará na Câmara dos
ção do regime parlamentar, eis que a Câmara Deputados, anualmente logo que estiver
dos Comuns reuniu-se, pela primeira vez, em reunida, um balanço geral da receita e da
1265. despesa do Tesouro Nacional do ano an-
Na realidade, a Magna Carta foi aceita pelo tecedente e igualmente o orçamento ge-
Rei, que lhe após o selo real, por imposição dos ral de todas as despesas públicas do ano
barões, que a redigiram, rebelados contra os futuro e da importância de todas as con-
excessos tirânicos de João-sem-Terra, notada- tribuições e rendas públicas".
mente a elevação da seutage - um imposto pago Nossa primeira lei orçamentária, contudo,
pelos vassalos feudais para se eximirem do ser· somente adveio em 14 de novembro de 1827.
viço militar e para atender às despesas do exér- Alfred Buebter, professor de Finanças Pú·
cito real com as guerras - e outras exações tirâ- blicas da Universidade da Pensilvânia, asseve-
nicas. ra, lapidarmente, que "a história do orçamento
No item 12 da Magna Carta, ficou estabele- é a história de séculos de lutas pelo controle
cidoque: popular do tesouro público" (o grifo é nosso).
....No scutage or aid shall be imposed O Brasil, ao entrar no século:xx, ultrapas-
in the Kingdom un1ess by lhe common sou suas duas primeiras décadas sem maiores
council oflhe realm, except for lhe por- novidades na questão da organização das fi-
pose of ransoming lhe King's person, nanças públicas. O clima reformista e questio-
making bis first.oorn son knight, and nador que marcou a mesma época nos Estados
manying his eldest daughter once, and Unidos não foi sentido aqui. A economia brasi-
lhe aids for this purpose shalI be reaso- leira era caracterizadamente agroexportadora e
nable in amount." a industrialização eaurbanização eram fenôme-
"Nenhuma scutage ou taxa pode ser nos dmidos, a ponto de não exigirem grande
lançada no nosso reino sem o consenti- atuação do setor público.
mento geral, a não ser para armar cavalei- Em 1922, por ato do Congresso Nacional,
ro a nosso filho mais velho e para cele- foi aprovado o Código de Contabilidade da
brar, wna vez, o casamento de nossa fi- União. Tal nonna e seu regulamento Jogo baixa-
lha mais velha. E esses tributos não ex- do constituiram importante conquista técnica,
cederão limites razoáveis. De igual ma- pois possibilitaram ordenar a gama imensa de
neira se procederá quanto aos impostos procedimentos orçamentários, financeiros, con-
da cidade de Londres." tábeis e patrimoniais que já caracterizavam a
No BiII ofRights, de 7 de junho de 1628, a administração federal.
segunda Carta da Inglaterra, ficou estabelecido Para resumir, pode-se verificar que a ques-

1M
tão orçamentária no Brasil evoluiu de confonni· questionamento: como. então. poderia a ques-
dade às etapas políticas no País. Governos au- tão da cidadania, dos direitos e das liberdades
toritários afastaram o Congresso da delibera- do brasileiro estar solucionada?
ção do orçamento. bem assim como concentra- Resta evidente, no entanto, a importância
ram as receitas públicas nas mãos da União. da matéria dentro da evolução do País para o
Nas etapas democráticas a tendência era justa- que se denomina Estado democrático de direi-
mente a situação inversa.
to. O Relato! do Proce~ de Revisão Con~tltu­
Convivendo com estas sístoles e diástoles cional. em seu parecer sob o capítulo que abran-
da vida política nacional. chegamos a 1988. onde ge a matéria orçamentária, asseverou:
nova Constituição democrática é promulgada, "O orçamento público é expressão fi-
mais uma vez descentrali7~ndoreceitas para os nanceira da cidadania. Sua origem remon-
níveis inferiores da Federação e chamando ° ta às primeiras lutas em favor da prote-
Congresso a exercer sua atribuição de atuar ção da cidadania e do controle político
sobre o orçamento. não só decidindo sobre ele, do cidadão sobre o Estado, estando inti-
mas também encarregando-o de sua fiscaliza- mamente ligada à própria gênese das
ção, a que a Lei Maior denominou de controle Constituições" .
externo.
Fica, assim, cristalina a relevância do pro-
Com este trabalho, contudo, queremos afir- blema que será discutido a seguir.
mar fato, que compromete todo esse processo
evolutivo, dado que leis orçamentárias têm sido 3. AlanifestaçiJes do STF acerca de medi-
promulgadas em desacordo com a Norma Cons- das provisórias
titucional. Antes. cuntudo. de passar à anàlise Sobre a materia "medidas provisOrias~,ex-
da questão, analisar-se-á com maior profundi- traiu-se algum conteúdo de decisões do Supre-
dade o dealbar do orçamento público nas na- mo Tribunal Federal, que se exporá, resumida-
ções desenvolvidas. mente a seguir, como elemento subsidiário à
É cristalino que o orçamento público é uma melhor compreensão da problemática em tela,
conquista das idéias democráticas liberais, su- dado que fundamentam a argumentação que
perando o absolutismo, na defesa dos direitos será sustentada:
do cidadão. Inicialmente, ao permitir que o \X)vo - As medidas provisórias configuram, no
decidisse, diretamente ou mediante seus repre- direito constitucional positivo brasileiro, uma
sentantes, quais tributos seriam pagos, evitan- categoria especial de atos normativos primári-
do a extorsão do Estado perdulário. Depois por os emanados do Poder Executivo, que se re-
lhe garantir igual participação na decisão acer- vestem de força, eficácia e valor de lei.
ca dos gastos públicos e na fiscalização de sua
execução. Finalmente, por lhe possibilitar a in- - Como a função legislativa ordinariamente
clusão no orçamento das despesas públicas pertence ao Congresso Nacional, que a exe~ce
que lhes proporcionem a garantia dos seus di- por direito próprio, com observâncla da cstnta
reitos e liberdades, onde incluímos as dotações tipicidade constitucional que define a natureza
das ativídades estatais, toma-se imperioso as-
destinadas a um Poder Judiciário administrati-
vamente independente. sinalar - e adverti r - que a utilização da medida
provisória, por constituir exceção derrogatória
Retomando à realidade de nosso País, é fá- do postulado da divisão funcional do poder,
cil admitir que a questão orçamentária está lon- subordina-se, em seu processo de conversão
ge de ser resolvida. Até porque o Orçamento é legislativa, à vontade soberana do Congresso
o retrato de uma Nação. Nele estão espelhados Nacional.
o sistema tributário, as questões do endivida-
- O que justifica a edição das medidas pro-
mento interno e externo, do tamanho e das fun-
ções do Estado. da solução aplicada ao federa- visórias é a existência de um estado de necessi-
lismo fiscal. à seguridade social, ainda os bene- dade, que impõe ao Poder Executivo a. ad~o
ficios e incentivos, a distribuição dos recursos imediata de providências de caráter legislatIvo,
por funções, naturezas e órgãos. Todos esses inalcançáveis segundo as regras ordinárias de
problemas, vitais por sua natureza, estão tonge legiferação, em face do próprio periculum in
de possuir solução adequada no Brasil. Corno mora que certamente decorreria do atraso na
se poderia esperar que o orçamento fosse uma concretização da prestação legislativa.
- A plena submissão das medidas provisó-
questão bem resolvida? E daí retiramos outro

.rulll• •. 32 n. ., 2fI "./111ft. 18e$ 105


rias ao Congresso Nacional constitui exigência das nações. Todos os atos estatais que repug-
que decorre do princípio da separação de p0- nem a Constituição expõem-se a censurajuridi-
deres. O conteúdo juridico que elas veiculam ca - dos tribunais, especialmente - porque sIo
somente adquirirá estabilidade normativa, a irritas, nulos e <fesvegidos de qualquer validade.
partir do momento em que - observada a disci- - A Constituição não pode submeter-se à
plina ritual do procedimento de conversão em vontade dos poderes constituidos nem ao im-
lei - houver pronunciamento favorável e aqui- pério dos fatos e das circunstâncias. A supre-
escente do único órgão constitucionalmente macia de que ela se reveste - enquanto for res-
investido do poder ordinário de legislar, que é o peitada - constituirá a garantia mais efetiva de
Congresso Nacional. que os direitos eas liberdades não serlojamais
- Essa manifestação do Poder Legislativo é ofendidos. Ao Supremo Tribunal Federal incum-
necessária, e insubstitulveJ e é insuprimlvel. be a tarefa, magna e eminente, de velar por que
Por isso mesmo, as medidas provisórias, com a essa realidade não seja desfigurada.
sua publicação no Diário Oficial, subtraem-se - A medida provisória constitui espécie
ao poder de disposição do Presidente da Repú- normativajuridicamente instável. Esse ato es-
blica e ganham, em conseqüência, autonomia tatal dispõe, em função das notas de transitori-
juridica absoluta, desvinculando-se, no plano edade e de precariedade que o qualificam, de
formal, da autoridade que as instituiu. eficácia temporal limitada, na medida em que,
- A edição de medida provisória gera dois não convertido em lei, despoja-se, desde o mo-
efeitos imediatos. O primeiro efeito é de ordem mento de sua edição, da aptidJo para inovar o
normativa, eis que a medida provisória - qu~ ordenamento positivo.
possui vigência e eficácia imediatas - inova, - A perda retroativa de eficácia juridica da
em caráter inaugural, a ordem juridica. O segun- medida provisória ocorre tanto na hipótese de
do efeito é de natureza ritual, eis que a publica- explícita rejeição do projeto de sua conversA0
ção da medida provisória atua como verdadeira em lei quanto no caso de ausência de delibera-
provocatio ad agendum, estimulando o Con- ção parlamentar no prazo constitucional de 30
gresso Nacional a instaurar o adequado proce- (trinta) dias. Uma vez cessada a vigência da
dimento de conversão em lei. medida provisória, pelo decurso in a/bis do pra-
ZO constitucional, opera-se, ante a superveni-
- A rejeição parlamentar de medida provi-
sória - ou de seu projeto de conversão -, além ente perda de objeto, a extinção anômala do pr0-
de desconstituir-Ihe ex tunc a eficácia juridica, cesso de ação direta de inconstitucionalidade.
opera urna outra relevante conseqüência de or- 4. ApresentaçiJo do problema
dem politico-institucional, que consiste na im- O Excelentissimo Senhor Presidente da Re-
possibilidade de o Presidente da República re- pública tem, nos últimos meses, baixado diver-
novar esse ato quase-legislativo, de natureza sas medidas provisórias dispondo sobre alte-
cautelar. Modíficações secundárias de texto, que rações na lei de diretrizes orçamentárias, base-
em nada afetam os aspectos essenciais e intrin- ando-se, para tanto, no art. 62 enos inciSls xxm
secos da medida provisória expressamente re- e XXVI do art. 84 da Constituição, in vemis:
pudiada pelo Congresso Nacional, constituem ..Art. 62. Em caso de relevância e ur-
expedientes incapazes de descaracterizar a iden- gência, o Presidente da República pode-
tidade temática que existe entre o ato não con- rá adotar medidas provisórias. com força
vertido em lei eanova medida provisória editada. de lei, devendo submetê-las de imediato
- O poder absoluto exercido pelo Estado, ao Congresso Nacional, que, estando em
sem quaisquer restrições e controles, inviabili- recesso, será convocado extraordinaria-
za, nurna comunidade estatal concreta, a práti- mente para se reunir no prazo de cinoo
ca efetiva das liberdades e o exercicio dos direi- dias.
tos e garantias individuais ou coletivos. É pre- Parágrafo único. As medidas provisó-
ciso respeitar, de modo incondicional, os parâ- rias perderão eficácia, desde a edição, se
metros de atuação delineados no texto consti- não forem convertidas em lei no prazo de
tucional. trinta dias, a partir de sua publicação, de-
- Uma Constituição escrita não configura vendo o Congresso Nacional disciplinar
mera peça juridica, nem é simples escritura de as relaçõesjurídicas delas decorrentes.
nonnatividade nem pode caracterizarum irrele- Art. 84. Compete privativamente ao
vante acidente histórico na vida dos povos e Presidente da República:
foe
dativa dos demais Poderes do Estado. A
XXIII - enviar ao Congresso Nacio- edição de medidas provisórias constitui,
nal o plano plurianual, () projeto de tei de nesses casos, usurpação da competên-
diretrizes orçamentárias e as propostas cia constitucional do Legislativo e do
de orçamento previstos nesta Constitui- Judiciário.
ção;
Assim, é também evidente que o Pre-
XXVI - editar medidas provisórias com sidente da República não pode editar
força de lei. nos termos do art. 62; medidas provisórias em matérias em que
não caiba delegação legislativa."
Muitos outros doutrinadores e, também,
As exposições de motivos constantes das articulistas de menor expressão assim se pro-
mensagens que encaminham tais medidas pro- nunciam, restando evidente a coerência de tais
visórias ao Poder Legislativo em nada contri- afirmativas.
buem com o presente estudo, pois em nenhum Ainda, no Processo de Revisão Constituci-
momento tecem qualquer comentário acerca da onal, o Relator, Deputado Nelson Jobim, em seu
questão da adequação do ato à Lei Maior, as- parecer acerca da questão das medidas provi-
sumindo tal fato como pressuposto. sórias. propôs a seguinte modificação ao Texto
Contudo, os posicionamentos doutrinários Constitucional:
quanto ao uSO do instituto da medida provisó- "Emenda Constitucional de Revisão n. o
ria para regular matéria orçamentária, sobretu- A Mesa do Congresso Nacional, nos
do diretrizes. e o momento da apresentação da- termos do art. 60 da Constituição Fede-
quees atos são decisivamente desfavoráveis à ral, combinado com o art. 3. 0 do Ato das
sua constitucionalidade. Disposições Constitucionais Transltóri-
Nessa linha pronunciaram-se: as, promulga a seguinte emenda consti-
José Monso da Silva: tucional de revisão:
"Uma interpretação lógico-sistemáti- Art. 1.0 O art. 62 passa a vigorar com
ca leva a concluir que o Presidente da a seguinte redação:
República não poderá disciplinar por "Art. 62. Em caso de urgência e rele-
medidas provisórias situações ou maté- vância, o Presidente da República pode-
rias que não podem ser objeto de delega- rá adotar medidas provisórias, com força
ção. Seria um despautério que medidas de lei, devendo submetê-las de imediato
provisórias pudessem regular situações ao Congresso Nacional que, estando em
que sejam vedadas às leis delegadas." recesso, será convocado para se reunir
Olga Cavalheiro Araújo: extraordinariamente no prazo de cinco
"Por óbvio, por absoluta ilegitimida- dias.
de, não pode o Executivo editar medida § I. o Não serão objeto de medida pro-
provisória que disponha sobre planos visória as matérias:
plurianuais, diretrizes orçamentárias e I - reservadas ao dominio de lei com-
orçamento." plementar ou à competência exclusiva ou
Clemerson Merlin Cleve: privativa do Congresso Nacional ou de
"Na verdade, a medida provisória qualquer de suas Casas;
necessita ser comparada com a lei dele- 11 - relacionadas a:
gada. E a Constituição prescreve os lioú- a) nacionalidade, cidadania, direitos
tes da delegação legislativa." poUticos e eleitorais;
José Celso de Meno Filho:
b) direito penal;
"Com efeito, o princípio da separa-
c) planos plurianuais, diretrizes or-
ção de poderes constitui oostácu\Ç) ao
irrestrito exercício desse poder normati- çamentárias e orçamentos (o grifo é
vo excepcionalmente deferido pela Cons- nosso).
tituição ao Presidente da República. Ele § 2. o As medidas provisórias perde-
impede que o Chefe do Executivo invada rão eficácia, desde a edição, se não fo-
domínio tematicamente reservado à ini- rem convertidas em lei no prazo de ses-

8 ....111_ _ • 32 n. 126 .rJlun. 1895 107


senta dias, a contar de sua publicação, matérias excluidas de seu campo temáti·
devendo o Congresso Nacional discipli- co, salvaguardandCHe, como regra ge-
nar, através de decreto legislativo, as re- ral, o poder de ação do Poder Executivo
lações juridicas delas decorrentes. diante de situações urgentes e relevan-
§ 3. o Não editado o respectivo decre- tes que lhe exijam pronta atuaçlo norma·
to legislativo no prazo de sessenta dias, tiva e que não possam ser contornadas
as relações juridicas decorrentes de me- pelas vias legislativas ordinárias.
dida provisória conservar-se-ão por ela Entre as matérias que deverão estar
regidas. vedadas ao domínio normativo da medi·
§ 4. 0 É vedada a reedição, na mesma da provisória, adotamos sugestão prati-
sessão legislativa, de medida provisória camente consensual de todas as propos-
não apreciada ou rejeitada, no todo ou tas revisionais sobre O assunto: matérias
em parte, pelo Congresso Nacional." mencionadas no § 1. 0 do art. 68 como in-
Art. 2. o Esta emenda constitucional suscetíveis de delegação legislativa.
entra em vigor na data de sua publicação."
De fato, não parece razoável que a
Justificou tal proposta apresentando inú- Constituição proíba a delegação de p0-
meros argumentos relevantes, entres os quais deres ao Presidente da República sobre
transcreveremos, a seguir, aqueles pertinentes certos assuntos e, de outra parte, admita
e concordes com a tese aqui defendida: a competência deste para dispor sobre
"Cumpre reconhecer, entretanto, que os mesmos através de medida provisó-
estes cinco anos de vigência do texto ria, cujo procedimento de elaboração é
constitucional demonstraram uma série muito mais discricionário que o previsto
de falhas na disciplina excessivamente para a legislação delegada.
genérica do instituto então adotado. O
expressivo número de propostas revisi- Nesse sentido, estamos propondo,
onais apresentadas sobre o tema é indi- no substitutivo, a vedação de medida
cativo do quanto se tornou fundamental provisória sobre matérias: 1) de compe-
aperfeiçoar-se o texto do art. 62, seja para tência exclusiva do Congresso Nacional
corrigir as lacunas referentes à limitação ou privativa de qualquer de suas Casas~
do domínio nonnativo das medidas pro- 2) reservadas ao domínio nonnativo das
visórias ou à possibilidade de sua reedi- leis complementares; 3) relativas a naci-
ção pelo Executivo, seja para alterar as onalidade, cidadania., direitos poUticos e
normas que se mostraram equivocadas eleitorais; 4) referentes a planos pluria-
na experiência prática, como a referente nuais, diretrizes orçamentárias e orça-
ao prazo de sua conversão em lei. mentos.
Em relação à limitação do campo nor- A experiênciados últimos cinco anos
mativo, verificaram-se duas tendências tem demonstrado o quanto O Poder Exe-
principais entre as propostas: definição cutivo tende a abusar da prerrogativa
das matérias que poderiam vira ser disci· constitucional de editar medidas provi-
plinadas por medida provisória e, ao con- sórias, renovando, muitas vezes indefi-
trário. exclusão, de seu domínio temáti- nidamente, e ao arrepio da vontade do
co, daquelas insuscetíveis de regulamen- Congresso Nacional, medidas não apre-
tação através do instituto. ciadas e até mesmo rejeitadas. Este tipo
No substitutivo apresentado, enten- de prática contmria toda a sistemática do
demos mais adequada a segunda alter- processo legislativo brasileiro, que tem
nativa, já adotada pela Constituição em entre seus princípios básicos a proibi-
relação às leis delegadas, nos termos do ção de reapreciação de matéria numa
§ 1.0 do art. 68. Pareceu-nos que, sendo o mesma sessão legislativa., salvo pela von-
instituto da medida provisória providên- tade da maioria absoluta dos membros
cia legislativa excepcional, concebida de cada Casa, como <lisposto no art. 67
para atender a situações emergenciais não do texto constitucional. n
previsíveis aprioristicamente, seria mais E, também, no Parecer SObre o Capitulo do
conveniente enumerar no texto constitu- Orçamento Público:
cional. a titulo de exceção, apenas as "Entendeu-se ainda pertinente fazer

loa
constar do texto constitucional o impe- tanto, aperfeiçoada para que ocupe o am-
dimento de que medidas provisórias se- plo espaço que lhe foi reservado como efê-
jam usadas paro alterar quaisquer das leis tivo elemento do processo orçamentário."
a que se refere o capítulo em tela". A determinação concretizada no art. 166, §
Com a edição de tais medidas provisórias, o 3.° da Constituição, segundo a qual "as emen~
Poder Executivo tem pretendido alterar a lei de das ao projeto de lei do orçamento anual ou aos
diretrizes orçamentárias e a lei orçamentária projetos que o modifiquem somente podem ser
mediante utilização de ato legal de uso restrito aprovadas caso sejam compatíveis com o pla-
a situação emergencial e que não poderia ter nQ p\mianual eoom a lei demtetriz.es~­
versado sobre a matéria em razão de vários obs- tárias", seria tornada letra morta, pela lmpoSSl-
táculos opostos pela própria Constituição. A bilidade de seu atendimento. E, "a Constituição
Carta Magna abre exceção ao que dissemos não pode submeter-se à vontade dos Pode~es
quando estatui: constituídos e nem ao império dos fatos e cu-
"Art. 167. São vedados: . cunstâncias", conforme manifestou o STF.
De outro lado, a Constituição, na ausência
§ 3.° A abertura de crédito extraordi- de lei complementar sobre a matéria, fixa, no §
nário somente será admitida para aten- 2.° do art. 35, de suas disposições transitórias,
der a despesas imprevisíveis e urgentes, o cronograma rígido de encaminhamento e apre-
como as decorrentes de guerra, como- ciação das leis orçamentárias e, especificamen-
ção interna ou calamidade pública, ob- te, em relação à LDO, impede, mesmo, a inter-
servado o disposto no art. 62." rupção de sessão legislativa antes de sua apro-
Entende-se que somente nesse único caso, vação (art. 57, § 2.°). Parece, assim, claro, que a
pode-se valer o Executivo da edição de medi- Constituição veda modificações na LDO, após
das provisórias em matéria orçame~~ria, por o seu envio para a sanção, salvo os decorren-
ser exceção constitucionalmente admItida e pela tes de veto. Qualquer alteração na LDO, por
nature7.a emergencial da matéria de que tratam. iniciativa do Poder Executivo, somente terá lu-
Nos demais casos. a própria Lei Maior contém gar antes de iniciad.a a votação, na Comissão
impedimentos para que se proceda dessa forma. Mista da parte cuja a\\etaçào é Jlroposta, ÇQfl-
° pri meiro óbice, de narnreza lógi~-te~po­
ral, não admitiria alteração da lei de dlretnzes
soant~ decreta expressamente o art. 166, § 5.°
da Carta Magna.
orçamentárias após o térmi no da elaboração da O segundo aspecto a ser abordado refere-
proposta orçamentária anual pelo Executivo, se ao veÍCulo utili7.ado. Dentro da Seção da
pois o orçamento anual, de acordo com a Cons- Constituição que trata especificamente das ~e~s
tituição, deve obedecer a parâmetros preesta- orçamentárias, a Constituição autoriza, expliCl-
belecidos por cláusulas balizadoras, materiali- tamente o uso de medidas provisórias em um
zadas no Plano Plurianual e na LIX). único c;so, quer seja, para a abertura de .crédi-
Admitir-se alteração na LDO após elabora- tos extraordinários nas hipóteses autonzadas
do o orçamento seria destituir de sentido aque- (art. 167, § 3,0). Nenhumesforçoexeg~ticoto~­
la lei e permiti r que o Executivo inverta a lógica na-se necessário, pois, para se conclutr terrnt-
da hierarquia legislativa, executando oorçamen- nativamente que, ressalvada a hipótese aven-
to como melhor lhe aprouver, e depois tentan- tada está afastada qualquer outra utilização de
do adequar as diretrizes às s~as ações !legais. medidas provisórias versando matét?a orça-
Nelson Jobim, sob o tema, aSSlm se manifestou: mentária pública. Como bem lembra o t1ustrado
Deputado José Serra, em ~ mais recente.o~ra
"De outra parte, o Substitutivo agru- sobre a temática orçamentána, durante a V1gen·
pou, em um mesmo capitulo, o planeja- cia da Constituição de 1967, o Governo Militar
mento e o orçamento por entender que jamais usou de decretos-leis para modificar leis
são temas afins, que se hierarquizam e se orçamentárias.
sucedem cronologicamente."
Outra face da questão consiste na titulari-
E ainda: dade da competência para a apreciação de qual-
"Introduzida pela Constituição de quer proposição legislativa que envolva maté-
1988, a Lei de Diretrizes Orçamentárias ria orçamentária. Neste particular, está sendo
(LDO) tem-se revelado um instrumento novamente afrontado o Estatuto Fund.amental,
de relativa eficácia, podendo ser, entre- que reserva, em seu art. 166, § 1.0, inciso I, à
8,..t1l_ _ . 32 n. 126 -"'JJun. 1995 109
Comissão Mista de Planos, Orçamentos Públi- E O que não pode o Presidente da República
cos e Fiscalização, a competência de examinar e fazer nem mesmo por delegação do Poder com-
emitir parecer sobre os projetos orçamentários, petente, jamais poderia ser feito sob a forma de
da qual se fwtam a tramitações de medidas pr0- usurpação. O que não pode ser objeto de dele-
visórias, que seguem o seu rito próprio, institu- gação legislativa, menos poderia ser, obliqua-
ídopela Resolução n.o01, de 1989-CN. mente, alvo de Medida Provisória, que possui
O legislador constituinte, ao outorgar ao vigência e efeitos imediatos.
Congresso Nacional, a competência indelegá- O aspecto mais grave, todavia, da continui-
vel de dispor sobre planos plurianuais, diretri- dade dessas adoções de atos extravagantes pelo
zes orçamentárias e orçamentos (art. 48,11 e art. Presidente da República, é aquele referente à
68, § 1.0, lU), pretendeu garantir ao povo e às independência dos Poderes. A medida provi-
Unidades Federadas a prolação da última pala- sória constitui exceção derrogatória do postu-
vra a respeito do conteúdo dos dispêndios pú- lado da divisão funcional do poder; no entan-
blicos, bem como das formalidades que a ativi- to, possui limites. A intromissão, por essa for-
dade a eles relativa deverá atender, de maneira ma, do Poder Executivo em assuntos que esca-
a se assegurar a correção de seu exercício. De pam à sua alçada, consubstancia-se em intole-
grande justiça o dispositivo: se é o povo que rável invasão de competência, com a qual não
contribui para as despesas do Estado, natural pode compactuar o Congresso Nacional sob o
que a ele se reserve a eleição das prioridades a risco de se tornar Poder secundário da Repúbli-
serem perseguidas. ca. Não pode o Parlamentoeximir-se do aunpri-
As medidas provisórias em discussão, pos- mento de suas mais elementares missões cons-
to que em atenção a relevantes interesses polí- titucionais, entre elas a de zelar pela preserva-
ticos tenham sido admitidas pelo Congresso ção de sua competência legislativa em face da
Nacional, deparam-se, sem dúvida, submetidas atribuiçao normativa de outros Poderes e a de
a um exame acurado, com a constatação de que sustar os atos do Poder Executivo que exorbi-
a matéria por elas regulada é precisamente o tem do poder regulamentar ou dos limites de
maior óbice em desfavor de sua admissão como delegação legislativa, consagrados nos incisos
constitucional. Aquela matéria - diretrizes or- XI e V, respectivamente, do art. 49 do Diploma
çamentárias - está situada em posição imune Supremo.
ao alcance das medidas provisórias, estando 5. Conclusão
tal exclusao explícita na /ittera do art. 68 da Diante do exposto nas partes anteriores,
Constituição, dispensando maiores elaborações pode-se extrair a conclusão que medidas provi-
da hermenêutica. Ademais, como visto, veda a sórias que tratam de matéria orçamentária são
delegação legislativa em matéria orçamentária inconstitucionais, salvo aquelas que contêm
o inciso III do § 1.0 do art. 68 da Lei Maior, créditos extraordinários, porque:
verbis: a) usurpam competência legislativa indele-
..Art. 68. As leis delegadas serão ela- gável;
boradas pelo Presidente da República,
que deverá solicitar a delegação ao Con- b) atentam contra o princípio da separaçao
gresso Nacional. dos poderes, de que a medida provisória é ex-
§ 1.° Não serão objeto de delegação ceção.
os atos de competência exclusiva do Assim lastreado, pode-se asseverar que
Congresso Nacional, os de competência qualquer iniciativa legal pertinente a matéria
privativa da Câmara dos Deputados ou orçamentária, com a exceção supracitada. ha-
do Senado Federal, a matéria reservada à verá que se acomodar em projeto de lei, vedada
lei complementar, nem a legislação sobre: qualquer outra espécie de proposição.
I - organização do Poder Judiciário e Pode-se, ainda, inferir que, dada a magnitu-
do Ministério Público, a carreira e a ga- de do tema, exposta na avaliação histórica inici-
rantia de seus membros; almente realizada, bem assim como pela preo-
11 - nacionalidade, cidadania, direi- cupação com o tema que teve o Relator do Pr0-
tos individuais, poHticos e eleitorais; cesso de Revisão Constitucional, as recorren-
tes violações que vêm ocorrendo constituem
IH - p/anos plurianuais, diretrizes precedente de indisfarçável indisposição das
orçamentárias e orçamentos. " forças políticas que ocupam os Poderes Execu-

IID R_"'''. ,,_ ''''orma,'' L.....at'".


tivo - pela agressão - e Legislativo - pel a omis- DANTAS, Francisco Wildo Lacerda. O Estado de
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111
Requisitos para Ministro e Conselheiro de
Tribunal de Contas

JORGE UUSSESJACOBY FERNANDES

o Supremo Tribunal Federal acaba de brin-


dar a sociedade com notável lição de herme-
nêutica. pondo o Direito, na sua mais ampla ex-
tensão, em plena consonância com o momento
de exuberância da cidadania que se vivencia,
tornando concreto o principio da moralidade
como elemento indissociável à validade dos
atos administrativos.
Em recurso extraordinário de ação popular,
anulou a nomeação de dois Conselheiros, no-
meados há mais de três anos. Discutia-se no
RE-167.137-8-TO, do qual foi relator o eminente
Ministro Paulo Brossard, os requisitos para a
ocupação do cargo de Conselheiro do Tribunal
de Contas de Tocantins, tendo por esteio o dis-
posto no art. 73 da Constituição Federal.
Sobre o assunto, dispôs inovadoramente o
Estatuto Político fundamental os seguintes re-
quisitos para a ocupação do cargo de Ministro
do Tribunal de Contas da Uníão: a) ser brasilei-
ro (art. 73, § 1.0); b) possuir mais de trinta e
cinco e menos de sessenta e cinco anos de ida-
de (art. 73, § 1.0, I); c) possuir idoneidade mo-
raI e reputação ilibada (art. 73, § 1.°,11); d) ter
notórios conhecimentos jurídicos, contábeis,
econ6micos e financeiros ou de administra-
ção pública (art. 73, § 1.°,111); e) contar mais de
dez anos de exercício de função ou de efetiva
atividade profissional para a qual se exija os
conhecimentos mencionados na alinea ante-
rior (art. 73, § 1.°, IV).
Esses requisitos assentaram que a escolha
de um Minístro do Tribunal de Contas da União
Jorge Ulisses Jacoby Fernandes é Procurador do
Ministério Públíco junto ao Tribunal de Contas do deixou de ser um ato predominantemente dis-
Distrito Federal, Professor de Direito Administrati- cricionário para ser estritamente vinculado aos
vo da AEUDF e do Centro Brasileiro para Fonnação parâmetros da Lei. Inobstante a ênfase dada
Política e Instrutor do Instituto Serzedello Corres do pelo Constituinte no sentido de buscar a valo-
TCU. rização do controle externo e a qualificação de
113
seus membros. ainda a!&m efetivararn·se algu- no art. 73, § 1. 0 , m, da Constituição Federal-
mas nomeações, em determinadas unidades da direito, economia, contabilidade e finanças ou
federação, sem O fiel acatamento dos postula- administração pública -, como requisito indis-
dos constitucionais. pensável à validade da ocupação do cargo de
A nacionalidade e o requisito concernente Conselheiro.
a faixa etária são comuns a todos os cargos de O magistral esc6lio ao art. 73, legado por
Ministros do Poder Judiciário, assim como a aquele provecto Ministro, resultou nojul.gamen-
idoneidade moral e a reputação ilibada. A pro- to procedente da ação popular, a qual tennina
pósito, os conceitos jurídicos desses dois últi- sentenciando por "anular os atos impugnados
mos requisitos são exatamente coincidentes de nomeação dos membros do Tribunal de Con-
com a acepção wlgar: idoneidade moral é a tas do Estado de Tocantins, lesivos à moralida-
aptidão, a capacidade de situar-se no plano dos de e à finalidade da norma constitucional".
bons costumes consagrados pela sociedade~
reputação ilibada diz respeito ao conceito que a Acima de um merojulgado, a decisão abriu
sociedade atribui ao sujeito de ser "sem man- trincheiras quando assentou que, "ao contrá~
cha, puro, incorrupto". rio do que harmonicamente dizem as impugna-
A toda evidência, ao contrário do que ocor- ções à ação, a comprovada idoneidade e o no-
re nas relações e em processos criminais, no tório saber, como a própria adjetivaçao ressal-
plano moral inexiste "serviço de proteção ao ta, são elementos objetivos que não podem ser
crédito" ou "cartório de registros" para manter desconsiderados pela discricionariedade, pela
registros das condutas, podendo-se concluir vontade, pela simples avaJiaçao do Governa~
que, para ser possuidor de idoneidade moral dor. Esta visão distorcida do ato administrativo
seria suficiente que o candidato nA!> ostentas- praticado já seria, por si SÓ, suficiente para de-
se condenação criminal definitiva ou fosse fre- monstrar a sua contaminação" (grifos do ori-
quentador de colunas policiais. Já a reputação ginal).
ilibada para ocupação de cargo de Ministro - e, A possibilidade de contrastar os atos de
por extensão impositiva do ano 75 da Constitui- indicação e de nomeaçAo dos membros das
ção Federal, de Conselheiro - , é indispensável Cortes de Contas tomou-se efetiva e 010 mais
que jamais tenha sido envolvido em atos de poderá ser ignorada, sob pena de encontrar
corrupção, entre outros. sobnmoeiroe finne o "guardião da C'onslituiçIo".
A decisão é ainda mais oportuna para o Dis-
Ocorre que os conceitos, no âmbito moral, trito Federal pois, no curso de um ano, a Câma-
prescindem de registros e são muito mais seve- ra Legislativa estará, de acordo com o disposto
ros do que os jurídicos, pois não se submetem no art. 82 c/c 8.0 das disposições transitórias da
ao principio do contraditório e da ampla defesa. Lei OrgMica do DF, escolhendo um cidadlo,
Como, agora. entendeu o STF, porém, são con- dentre os que preenchem os requisitos consti-
ceitos objetivos e, por corolário, aferiveis. tucionais, para ocupar vaga de Conselheiro do
Não se dará, pois, crédito a qualquer noti- Tribunal de Contas do Distrito Federal.
cia/denúncia, mas também não se poderá con- Desde logo é imperioso que a sociedade
cluir que detém reputação ilibada, quem esteve brasiliense e as legitimas instituições represem-
envolvido em notícias mal explicadas de rique- tativas - como a imprensa, a OAB, as entidades
zas ou transações escusas. Situando-se no pia- de classe, o Ministério Público, entre outros -
no moral, para que se deixe de preencher o re- redobrem a vigilância para que "aventureiros"
quisito, não é necessária a existência de pro- - que nada conhecem do controle externo, do
cesso condenatório, mas simplesmente que, aos ônus desse encargo, do compromisso dele de-
olhos do banus pater jamilis, a conduta seja corrente, e, acima de tudo, que não preenchem
veementemente reprovável; que o "candidato" quase nenhum dos requisitos - sejam guinda-
não mais seja merecedor de crédito suficiente dos a urna posição como a de Conselheiro, fun~
para desempenhar tão elevado cargo. damental para o aperfeiçoamento da Adminis-
A fundamental lição consagrada pelo Pre- tração Pública, e evitem que aqui se repita o
tório Excelso foi mais ampla e diz respeito à exi- desastroso acontecimento que justificou a de-
gência de que o pretenso candidato possua cisão do Pretório Excelso em tela.
notório saber, nas áreas das ciências indicadas

ff4
Os princípios informadores do contrato
de compra e venda internacional na
Convenção de Viena de 19801

JUOITH M"RJINs-CoSJA

SUMÁRIO

brtrodllç(IO. I. a Parte - Os princípios de caráter


axiológicn A) () prillcípia da boajé: a.l) distillção
entr., "'Oll-f<! ol>jetiva e sllhjetim; a.l) devere.ç decor-
rente.• dll haa-fé. m () princípio da razoabilidade:
h.1i caracterí.l"/icas: h.l) normas decorrentes do
princípio. l. a Parte - Princípios de caráter dogmáti-
co. A) () prlilcipio da consmsl/alidade. a.l) ETceção à
dispositi"idad,' das normas com'encionaís. B) O prin-
cípio da illtemaôonafidad<' do contrato. Conclllsão.

Introdução
I) Se no plano do di reito interno cresce, pro-
gressivamente. a ntenção doutri nária ejurispru-
dencíal ao papel dos princípios jurídicos na
regulação, conformação e aplícação de celtas
i nstítutos 2 • com mwto mais razão, no campo do
direito dos contratos internacionais. os princí-

Io presente lrab.1lho originou-se em seminário


apresentado à disciplina --Contratos do Comércio
Internacional". coordenada pelo Professor Doutor
I-Iermes Marcelo lIuck no curso de Doutorado em
Direito da Univcrsidade de São Paulo. maio de 1994.
1 Da vasta hihliogTllfia ver. em especial. Joseph
FSSCT. Prillcipio y Norma 1'11 la F:lahoraciót' JlIris-
pnlde/lcial d(d DerecllO Primdo. trad. de Eduardo
Valenti hol. I·:d. Bosch. Barcelona. 1969. Ronald
Dworkin. l.o.ç Derec/ros en Ser;o. trad. de Marta
Oustavino. Aricl. Barct::lona. 1989. PietTO Rescigno.
'"Sui Principio Gcnerali dei Diritto". in Rivü(a Tri-
mestrale di lJiriNo e Procedrtrn Civi/e. anno XLVI.
19'n. ~. p. 379. Angelo Falzea. '"r Principi Generali
deI Dirilto". in Ri"ista di Dirilto Civi/e. anno XXXVll.
1991. 5. p. 454. Ricardo Guastini. "I principi di di-
ntto".1Il /I J)iri/((} dá .Vllm'i .\fondi. Cedam. Pádua.
1994. p. 193 e. entre nós. Eros Roberto Grau. A
Ordem Econômica na COIHfilltição de 1988. Imer-
Judilh Martins.('os111 é Pmfi:lisora dL' Direito Ci- prelaplo e Critica. j:d. Revista dos Tribunais. 1991.
vil e de Teoria eTeral do IArcito l'mado na UrROS. cm espeCial cap. IV.

.r.. tII••. 32 n. 12& IIbr./Jun. 1995 ff5


pios desempenham papel regulador e formador sim, questões de grande indagação no campo
de direitos e deveres, além de atuarem, como é da teoria geral do direit06•
tradicional, para a integração e a interpretação Entre os problemas que peculiari7JlDl OS con-
dos contratosJ • tratos internacionais de compra e venda está o
Essa relevância dos princípios no direito do que se poderia denominar de "meio ambiente"
comércio internacional se deve, basicamente. a onde formados e desenvolvidos 7. Particulariza.
urna dupla ordem de fatores: uma que se pode- o a interligação econômica entre palses cujos
ria nomear como interna aos próprios contratos pesos políticos, no panorama internacional. são
internacionais e outra como externa a estes con- fundamentalmente desiguais - daí decorrendo
tratos, ai ligando-se mais propriamente ao ~­ as diferentes formas de dominação econômica'
pel dos principiosjurídicosem si mesmo conSl- - e a incidência de uma imbricada teia de fato-
derados. res ideológicos e sociológicos. Paralelamente a
2) No que concerne à ordem de fatores aqui esse especial "meio ambiente" está a questlo
chamada de "interna" aos contratos internaci- das fontes normativas dos contratos internaci-
onais, em especial os contratos de comp~ e onais, marcada pela pluralidade e ínsita dinami-
venda, vale lembrar algumas das particulanda- cidade.
des que os cercam. É sabido que desde os iníci-
os deste século, uma série complexa de fatores 4) À questão das fontes normativas dos
politicos e econômicos passou a determinar a contratos internacionais se liga, urnbilicalmen·
intensificação do comércio internacional e a te, o problema dojus mercalorum e, por exten-
expansão da economia mundial, com base na são, os prindpios gerados pel~ prática do c0-
ação dos grandes conglomerados transnacio- mércio internacional. Com efeito, desde os fins
nais, especialmente os norte-americanos: urna dos anos 60, fala-se na existência de uma nova
"nova ordem econômica internacional"· foi inau- lex mercaloria que teria o condão de flexibilÍ7Jlr
gurada e, nela, a compra e venda joga papel as rígidas regras do direito legislado', urna vez
detenninante. constituir, esta, "o conjunto de regras e de prin.
dpios consagrados como normas juridicas no
Nessa "nova ordem" econômica internaci- comércio intemacional"'o. Contudo, o renasci-
onal, a consideração do papel dos contratos de mento do jus mercatorum não tem o efeito de
compra e venda e, conseqüentemente, da sua eclipsar a questão das fontes normativas dos
regulação jurídica, tem conduzido a uma série contratos internacionais de compra e venda,
de problemas: estes se ligam à própria existên- sabendo-se que ainda hoje inúmeros sistemas
cia de bem acabados sistemas jurídicos que re-
gulam de modos distintos a compra e venda, às são perfeitamente recebidas nos contratos, civis e
diferentes concepções de sistema econômico, comerciais. de direito interno.
e às diversas ideologias dos governos partici- 6 Tratei de alguns destes problemas, em especial
pantes. Contudo, a enorme variedade de pro- os ligados à fase fonnativa dos con,tratos in~~~
blemas aí plasmados - e, por igual, as soluções nais e à responsabilidade pré-ncgocial em artigo 1~1J­
que vêm sendo apontadas - não deve desper- tulado "As cartas de intenção no processo fonna1Jvo
tar a atenção apenas do especialista em Direito da contratação internacional: os graus de eficácia dos
Internacional. Estes problemas e estas soluções contratos e a responsabilidade pré-negociar, Revis-
tada FaculdadedeDireitoCÚJ UFRGS, v. 10,1994,
acabam, num jogo marcado pela dialética. se p.39.
refletindo também nos contratos de compra e
7 Para estas observações consultei Bruno üppe.-
venda de direito internoJ , desenhando, outros- tit, "Autour du Centrat International", in Droirs, 12,
] Ver Wílhelm Wengler, "Les Principes généraux 1990, pp. 107 e ss.
du droit en tant que loi du contrat", in Reme Critique • Para esse exame ver Noam Chomsky, op. cU.
du Droit Internationol Privé, 1982, p. 17. 9 Ver entre outros, René David, "n diritto dei
• Para o exame critico dessa "nova ordem" ver comm~io internazíonale: un nuovo compito per i
Noam Chomslcy, "Novos Senhores da Humanida- legislatori nazionali o una nuov~ lex mercatoria?". in
de", artigo,jornal Folha de SiíoPaulo, Caderno Mais!. Riv. Dir. eivile, 1976, Parte Pnma, p. 577.
p. 6, 25.4.93 e, por igual, entrevista de Bernar~ de
10 Conforme a definição que lhe foi dada pela Corte
Carvalho com o lingüista e escritor norte-amencano
intitulada "Para Chomsky, nova ordem é igual à ve- de Apelação de Paris de 13 de julho de 1989. cit. por
lha", mesmo jornal, 00. de 3.3.91, caderno 2, p. B. Andrea Giardina, "La Lex Mercatoria e la certezza
deI diritto nei commerci e negli investimenti interna-
, Assim. por exemplo. as cláusulas de hardship zionali". Riv. di dir. inter. prll>ato eproce.ssuaJe, 1992,
que, geradas na prática do comércio internacional, 3, p. 465.

118
admitem a consuetudo como fonte legítima de contratuais no comércio internacional, tendo em
produção normativa. conta a diversidade dos sistemas jurídicos na-
O que se tem. na verdade, é uma mescla de cionais l4 . As condições gerais dos contratos,
modelos de fontes. de um lado o modelo da ou condições gerais de venda, constituem a
prática, traduzida na expressão "usos do co- consolidação de modalidades usuais na con-
mércio internacional", origem da [ex mercato- tratação: são "regulamentações detalhadas às
ria, de outro o modelo da regulamentação de quais as partes podem se referir em suas nego-
ordem convencional. Em ambos convivem os ciações"I~, facilitando, assim, a tarefa de estru-
prin,eípios que. em geral, passam do plano da turar e redigir o instrumento negociai; os con-
prátlca para o plano da regulamentaçãojuridica tratos-tipo assemelham-se às condições gerais
convencional, sendo, desta forma, recolhidos de venda, porquanto constituem, igualmente
ou recebidos pelo direito escrito 11 • "regulamentações ou fórmulas padronizadas:
com numerosos pontos comuns, diferindo ge-
Inviabilizado o modelo "puro" de regula· ralmente tão-só no que tange às particularida-
~entação punctual das regras contratuais, em des de cada ramo do comércio"16. Por sua vez
VIrtude das próprias especificidades do comér- os incoterms. expressão que designa os "ter-
cio !nt~rnacional, admite-se, outrossim, que a mos usuais do comércio internacional", consti-
ausenC13 de qualquer regulação poderia con- tuem espécie de súmula dos costumes interna-
d,u~ir a um estado de profunda insegurançaju-
cionais em matéria de compra e venda, repre-
ndlca. Por esta razão a Comissão de Direito sentadas por dez siglas, periodicamente edita·
Comercial das Nações Unidas, mais conhecida das pela Câmara do Comércio Internacional, que
pela sigla UNCITRAL I2 , vem há décadas se indicam certas cláusulas-padrão nesses contra-
dedicando à tentativa de normatizar os pontos tos~ estas contemplam outros deveres resultan-
mais polêmicos desse comércio, em especial a tes do vínculo que não os deveres principais
arbitragem, o câmbio, a moeda e, de forma parti- de entregar a coisa e pagar o preçol?.
cular, o contrato de compra e venda, À UNCI·
6) Ora, pelo mero arrolamento das fontes
TRAL se deve a organização das convenções
sobre o tema, entre elas a Convenção de Viena usuais do contrato de compra e venda interna-
de 1980, fonte da mais importante regulação con-
cional já se pode perceber QUe, nesta matéria, a
vencional a esse respeito. tendência é a de unificar e unifonnizar as regras
contratuais. A unificação, contudo, não sofre,
5) Importa lembrar que, entre as fontes de em nossos dias, da pretensão codificadora oi-
produção normativa dos contratos internacio- toccntista que buscou sistematizar e reduzir
nais estão as leis uniformes, as condições ge- todo O direito a um mesmo corpus normativo.
rais dos contratos, os contratos-tipo e os in- Hoje em dia objetiva-se. mais do que uma unifi.-
coterms. Como é por todos sabido, as chama-
das leis uniformes resultam de convenções in- tra~sferência de propriedade na C&V Internacional,
ternacionais 13 e pretendem uniformizar as regras HaIa, 1958; a Convenção sobre Competência, Haia,
1958; a Convenção Unifonne sobre a Compra e Ven-
11 É, de fato, característica dos princípios jurídi- da Internacional, Haia, 1964; a Lei Unifonne sobre a
cos o fato de terem sua origem na prática, ou "direito Fonnação dos Contratos, Haia, 1964; e a Convenção
costumeiro", Daí existirem alguns que se situam em sobre a Compra e Venda de Mercadorias, VleJla, 1980.
'~zona pré-positiva", sendo progressivamente posi- 14 Estudo interessante sobre o caráter nonnativo
tlvados seja por intervenção legislativa, seja por in- dos tratados internacionais - que constituem, ao
tervenção judicial, que os "recolhem" e completam o mesmo tempo, ~ato jurídico" e nonna - está em Paul
seu processo de positivação. No caso do direito in- Reuter, "Le Traité Intemational, acte et nonne", in
ternacional, as leis unifonnes, as convenções e a arbí- Archil'es de Phi/osophie du Droit, 32, 1987, p. 111,
tragem cumprem este papel de recolha e positivaçãO. onde acentuado o seu caráter paradoxal, no qual se
12 Uniled Natiam Comission for Internationa/
combinam "lei" e "contrato", prevalecendo. contu·
Trade Law, criada pela ONU em 17 de dezembro de do, segundo o autor, os aspectos consensuais.
1962 com a especlfiCB missão de "fomentar a hanno- 15Nesse sentido, SUZlIn Lee Z8ragoza de Rovira
nização e a unificação progressivas do direito comer- "Estudo Comparativo sobre os Contratos Internaci~
ciai internacional através da coordenação dos traba- onais: aspectos doutrinários e práticos", in COfltra-
lhos de outras organizações: preparar novas conven- tos Internacionais, Ed. Revista dos Tribunais, Silo
ções; infonnar sobre as legislações nacionais inclu- Paulo, 1985, p. 61.
indo a jurisprudência". ' l'Idem. ibidem.
n ~o consideradllS leis unifonnes a Convençio 17 Assim, Maria Lu~a Machado, "Os Incoter-

de HaIa, 1955, a COI1venção sobre a lei aplicável à ms", in Contratos Internacionais, cit., pp. 143 e ss.

BrIUliIl••. 32 n. 128 MwJJun. 1995 117


cação. uma uniformização punetual das nor- a relevância dos principios para o estudo da
mas (principios e regras 18) relativas a certos Convenção de Viena - se pode alinhar uma tri-
setores do comércio internacional, e a certos plice argumentação. Em primeiro lugar, está a
tipos contratuais formando, assim, espécies de circunstância de tradicionalmente ser aponta-
microssistemas normativos. Assim ocorre com a do aos princípios o papel de fundamento de
compra e venda internacional de mercadorias. regras ou de um conjunto de outras normas22 •
7) Em matéria de compra e venda internacio- Se por "fundamento" for entendida "a razão que
nal de mercadorias, uma lei uniforme se aJoca justifica" determinada nonna, fácil éoompreen-
com especial relevância. justamente porque vem der que os princípios constituem. ou devem
se mostrando fonte particularmente bem suce- constituir, um guia de racionalidade do con·
dida no escopo de pennitir o desenvolvimento junto normativo onde inseridos. Asseguram
de um direito contratual internacional unifonne eles, na verdade, a influência de um certo qua-
no setor que pretende regulamentar. É a Con- dro de valorização e revalorização na tarefa. ja-
venção das Nações Unidas sobre os Contratos mais esgotada, da construção de um ordena-
de Compra e \-enda Internacional de Mercado~ mentojurídico.
rias, firmada em Viena em Ii de abril de 198019 . Em segundo lugar, está a linguagem na qual
Vários vetores se entrecruzam quando se quer são formulados os principios, em especial os
acentuar as razões do seu sucesso, tal como as principios de valor. Embora não constitua a va-
elaboradas discussões que precederam a apro- gueza semântica23 traço exclusivo dos principi-
vação de seu texto, a qualidade dos represen- os, não se pode desconhecer que os termos
tantes dos países signatários, o próprio núme- que expressam valores possuem uma zona de
ro de signatários, as soluções de conciliação indeterminação semântica bastante acentua-
entre regras origínadas nos diferentes sistemas da14, oque vem permitir a maior ductílídade na
jurídicos dos Estados signalários20, o conteú- sua aplicação, à vista das circunstâncias con-
do inovador de algumas de suas normas21 , etc. cretas. Desse modo, a técnica de regulamentar
Entre esses vários vetores está. por igual, a cir- por principios se aloca, na contraeorrente da
cunstância de a Convenção ter abrigado fértil técnica de regulamentação por fattispecie",
principiologia, por forma a permitir - em razão como ensejadora de maior flexibilidade ao sis-
do próprio caráter de certos principios que adota tema ou aos mierossistemas jurídicos.
- a sua própria constante flexibilização, redu-
zindo, por essa via, o imobilismo que marca e 22 Para uma slntese dessa linha de argumentaçlo,
enrijeoe. em regra. os textos regulamentares. Dai Ricardo Guastini, op. cil., nota 2, Sllpl'Q, pp. 194 e 88.
a importância da atenção, particularizada. a es.-
]) Uma norma pode ser "vaga" em vArias acep-
tes prindpios. ções. Será vaga, por exemplo, no sentido de que nIo
8) Já do ponto de vista dos prindpios con- tem um campo de aplicaçio preciso. Bem assim, IICI'!
siderados em si mesmos - oque nomeei, acima, vaga no sentido de que é dotada de um conteúdo
como ordem de fatores externos quejustificam teleológico ou programático, nIo prescrevendo, pune-
tuaImente, certa e determinada conduta., nem quais
.1 Utilizo, aqui, a classificação proposta por Ro- os meios que devem ser empregados para que se
nald Dworkin in Los ~rechos en Serio, trad. esp. atinja o fim ou o valor que indicam.
de Marta Gustavino, Ed. Ariel, Barcelona, 1989, pp. 24 So~ esse tema ver Claudio Luzzati, La Va-
61 e ss e, igualmente, por J.J.G. Canotilho, in Direito gltezza delle Norme, Ed. Guitrre, Millo, 1990.
Constitucional, 5.'cd., LivrariaAlmedina, 1991. (vide
nota 39, infra). %, A técnica da regulamentaçlo por !attispecie,
19 O Brasil nlo é signatário da Convenção. Na
também dita "técnica da casuística", consiste em re-
América Latina é adotada pela Argentina, Chile e gulamentar determinadas matérias, ou detenninados
Venezuela. conjuntos de matérias mediante a contiguTllÇio da
hipótese legal - enquanto somatório dos pressupos-
]0 Embora a Convençlo tenha adotado soluções
tos que condicionam a estatuiçlo - circunscrevendo
de compromisso, a influência preponderante é a do particulares grupos de casos. Ai o legislador cria uma
direito norte-americano, em especial a do Uniform espécie de repertório de figuras e disciplinas tlpicas
Comercial Code (UCC). onde estio claramente definidos OS pressu))O'toll da
21 Têm especial relevância na compreensão da estatuiç.1lo c as suas conseq6encias, ou efeitos juridi-
Convençlo, as nonnas dos artigos 1. 0 (campo de apli- coso (Sobre este ponto consultei Karl Engish, Intro-
caçIo), 14 (fonnaçiodo contrato), 25 (violaçio fun- dução ao Pensmnento Jurídico, trad. de l. Baptista
damentaI do contrato) e 55 (critério de fixaçilo do Machado, Ed. Fundaçio Oulbenkian, Lisboa, 3.' cei.,
preço n.1lo estabelecido no contrato). p. 188.)
118
Por fim, em terceiro lugar. uma ciJCU~cia verdadeiramente normativo e até mesmo como
que o Direito Comparado bem esclarece. E que, uma fonte autônoma de produção jurídica. Sua
nos sistemas da civil/aw, aos princípios era positividade estava plenamente reconhecida
atriblúdo um papel "exterior" à ordemjuridica. desde o momento em que as Cortes nacionais
meramente destinado a exprimir urna referência os uti[i7.aram como fundamento de decisões 29 .
a um determinado conjunto de valores. ou a Ao fazer expresso recurso aos princípios,
cumpriruma função descritiva. Eram tidos. por- como se verá, delineia a Convenção não só um
tanto. como proposições de ordem exclusiva- modelo basta nte flexível para o direito da com-
mente conceitual, e não normati va"l6, cuja ori- pra e vel.da. internacional, como um modelojus-
gem era basicamente doutrinária ou "científi- tificadamente ancorado na prática preexistente,
ca". Isto porque os ordenamentos de origem por forma a afastar os perigos de uma constru-
romanística se construíram, nos últimos duzen- ção eminentemente doutrinária. Correndo o ris-
tos anos, de forma fortemente atada à lei escri - co da arbitrariedade, ouso afirmar que a Con-
ta, de origem parlamentar, como fonteprimordi- venção é informada por dois grandes grupos
aI de produçãojurídica. Diferentemente, no sis- de princípios. De um lado, o que indicarei por
tema da common /aw, vinculado à dicçãojuris- principiasjuridicos de valorJO. Aí estão os prin-
prudencial como fonte principal da produção cípios da boa-fé objetiva e o da razoabilidade.
do direito, os princípios provêm da prática e De outro, o que chamarei de principias de ca-
estão inseridos na própria estrutura técnica ráter dogmático: são os princípios da consen-
do sistema como guias de comportamento, reti- sualidade e o da intemacionalidade do contra-
rados pelo juiz dos casos preced.entes 27 . Seu to. Os quatro princípios constituem o objeto
papel é, pois, indiscutivelmente normativo. deste comentário.
Ora, em razão do contágio, via a prática do l.a Parte - Princípios de caráter axiológico
comércio internacional, entre as duas famílias Indica a Convenção de fliena, na segunda
jurídicas, progressivamente a acepção norte- alínea do art. 7, que as questões respeitantes
americana de "princípios" foi ingressando na às matérias reguladas na presente Convenção
cultura dos juízos arbitrais. Assim o demonstra e que não são expressamente resolvidas por
Bruno Oppetit em primoroso estudo em que in- ela serão decididas segundo os principios ge-
dica decisões que, passo a passo, fizeram re- rais que a inspiram ou, nafalta destes princi-
curso aos "princípios gerais do direito interna- pios, de acordo com a lei aplicável em vir-
cional privado" como "normas fundamentais tude das regras de direito internacional
que devem reger as transações internacionais"
ou "princípios gerais do direito integrantes da 29Na matéria ver, igualmente Philippe Kahn, "Les
lex mercatoria" 28. principes généraux du droit devant les arbitres du
Nesta peTSl)ectiva, quando elaborada a Con- commerce internationat" , Journal du Draü Internu-
venção de Viena, já os sistemas de tradição ro- nonal, 1989, I, p. 305.
manística estavam preparados, do ponto de vis- 30 Discutem alguns a precisão da expressão «prin-
tajuscultural, a atribuir aos principios um papel cípios de valor", na medida em que todos os princí-
pios jurídicos teriam caráter axiológico. A observa-
ção se liga, fundamentalmente, à própria polissemia
26 Assim, Bruno Oppetit, Les principes géné- do termo "princípios", que em acepção larguíssima é
rau.l' en droit intemanonal privé, Archives de Philo- empregada para designar tanto os princípios expres-
sophie du o,.oit, 32,1987, pp. 180 e 181. sos em lei quanto os inexpressos, as máximas de
H Sobre este tema ver Ronald Dworkin, op. cil, conduta, standards de comportamento e até axio-
pp.6\ e ss. e Cami\\e Jauffrct.Splnosl, Commenl Juge mas. Concordando com a asserção segundo a qual os
le Ju~ Anglais?, in o,.oil8, v. 9. o, 1989, pp. 58 e !IS. principios, quaisquer que sejam, traduzem, em mai-
]8 Dp. cit., pp. 181 e 182. Assinala o autor a or ou menor medida, certos valores, consigno toda-
variedade da terminologia emprestada, nas decisões via, a distinção entre os «princípios de valor" (por
arbitrais. a estes "princípios gerais", ora vistos como exemplo, os princípios da boa-fé, da razoabilidade,
"nonnas fundamentais que devem reger a organiza- da moralidade) os "princípios de caráter dogmático",
ção e o funcionamento das sociedades anônimas", gerados por COI1strução doutrinária (exemplificativa-
ora como "princípios gerais fundamentais", ora como mente, o chamado principio da ação, no processo
"principios gerais formulados pela jurisprudência civil, o principio do consensualismo, em matéria con-
arbitral", e ainda como "princípios gerais amplamen- tratual, o da sanação do nulo, no direito civil e admi-
te admitidos como redores do direito comercial in- nistrativo), por entender que existe uma distinção de
ternacional" e "princípios gerais aplicáveis às rela- grau na carga valorativa. Essa é, nos primeiros, ime-
ções econômicas internacionais". diata, e, nos segundos, mediata.
1Ir_"__. 3211. 126 --./Jun. 1995 119
privado JJ • texto acima reproduzido, fundamental é, desde
Como se vê, os principios gerais que a in· logo, distinguir entre o conceito de boa-fé ob-
fonnam têm supremacia sobre a lei aplícável jetiva e de boa-fé subjetiva, em especial tendo
segundo os cinones de direito internacional em conta que os juristas brasileiros, salvo mras
privado, a qual só será chamada em caráter 50- exceções, acostumaram-se a operar apenas a
pletivol2 • Devem. portanto, os problemas sur- segunda acepção.
gidos do contrato ser resolvidos precedente- a.l) DistinçiJo entre hoa-jé objetiva e sub-
mente com base nos princípios nela inscritos, a jetiva
partir dela produzidos ou dela deduzidosJ). A expressão "boa-fé subjetiva" denota "es-
Assim os princípios da boa-fé objetiva e o da tado de consciência" ou convencimento indi-
razoabilidade. vidual de obrar (a parte) em conformidade ao
A) O principio da hoa-fé direito (sendo) aplicável. em 1'egra. ao campo
Consigna a primeira alínea do 3rt. 7 da Con- dos direitos reais, especialmente em matéria
venção que, na sua interpretação, "ter-se-á em possessória"JI. Diz-se "subjetiva" justamente
conta o seu caráter internacional, bem como a porque, para a sua aplicação, deve o intérprete
necessidade de promover a uniformidade da sua considerar a intençdo do sujeito da relaçAo ju-
aplicação e de assegurar o respeito da boa-fé rldica, o seu estado psicológico ou intima con-
no comércio intemacionarM • Estão ai indica- vicção. Antitética à boa-fé subjetiva está a má-
dos dois principios (o do caráter internacional fé, também vista subjetivamente como a inten-
e o da boa-fé) e uma diretiva (a da promoção da ção de lesar a outrem.
unifonnidade na aplicação das regras conven- Já por "boa-fé objetiva" se quer significar -
cionais)~). A respeito da parte assinalada do segundo a conotação que adveio da interpreta-
ção conferida ao parágrafo 242 do Código Civil
II Grifos meus. Alemão, de larga força expansionista em outros
l2 MClimo no direito francês, onde o peso do exe- ordenamentos e, bem assim, daquela que lhe é
getismo se faz sentir ainda em nossos dias, relata atribui da nos países da common lowl1, - mode-
Bruno Oppetit significativo o,..,.êl da Cour de Cos- lo de conduta social, arquétipo ou standard
sation pelo qual se estabeleceu que poderiam impor- jwidico segundo o qual "cada pessoa deve ajus-
se ao juiz francês des principes de juslice uniwrse//e tar a sua própria conduta a esse arquétipo,
considét-és dans /'opillionfrançaise comme doués
de va/eur intemationa/e abso/ue. Tal acórdão, já an- obrando como obraria um homem reto: com
tigo (Civ. 23 ma; 1948, Lau/our, D. 1948,351, nota honestidade, lealdade, probidade":lll. Por este
Lerebous-PigeonniCl'e) e que restou por muito tem- modelo objetivo de conduta levam-se em con-
po isolado, poderá, talvez, segundo o autor, ller hoje sideração os fatores concretos do caso, tais
renovado, considerando-se o consenso doutrinário como o status pessoal e cultural dos envolvi-
no sentido de existirem, à volta dos códigos nacio- dos, não se admitindo uma aplicaçlo mecânica
nais, princípios cuja força obrigatória é reconhecida e do standard, de tipo meramente subsuntivo.
cuja aplicaçlo é realizada. (in Les Principes Obtê-
rala en Droil lnternotiono/ Privé, ArchivCli de Phi- TO: o art. 40 da Lei n.o 8.078190 (Código de Defesa do
losophie du Droít, 32, 1877, p. 187). Con~umidor) contém princlpios tais corno o da boa-
n Anota Philippe Kahn Clitarem ai inseridas "di- fé e o da vedação do abuso (inciSOll m, in fine e VI,
rectives assez Oouées pour teur oontenu positif, mais primeira parte) e diretivas, tais como a da protcçlo
clAires pour leur contenu négatíf: ne pas faire appel aos intc:resses econômicos dos consumidorcs (ca-
aux droits nationaux - ni utiliser un pointillisme qui put) e a do incentivo à criação, pelos fornecedores, de
conduirait à nier la bonne foi", in ConvenJion de v,- meios eficientCll de controle de qualidade e segurança
enne du 11 awif /980. Caroc/eres et Domaine dos produtos e serviços (inciso V).
d'opplication, Droit et Praticque du Commerce In- )6 Conforme aludi no artigo "Crise e Modifica-
ternatianal, T. 15, 3, p. 397. ção da Idéia de Contrato no Direito Bmsileiro", in
)I Grifos meus. Rl!Vista Direi/o do Consumidor, v. 3, Editora Revis-
l5 Alguns autores promovem distinção entre prin.
ta dos Tribunais, São Paulo, 1992, p. 141.
cipios e diretivas. Enquanto aqueles teriam um forte )1Para esse exame ver DaW!IOfi, J. The Gen~1
conteúdo axiol6gico, direcionando o intérprete à con- C/ouses Viewed from a distalll:e e F. Kesskr e E.
cretízaçlo de um valor, como a boa-fé, os bons c0s- Fine, Cu/pQ in COI1/rohendo. B01'goining in Good
tumes, o comportamento razoável, etc., as diretivas, Faith ond Freedom ofContract: Q compara/iw stN-
ou policies visam a orientar o intérprete na direção de dy, in Harward Law Rev1ew, 1977, p. 401.
um objetivo de ordem polltica, social ou econômica. u A expressA0 é de Ernesto Wayar, in Derecho
Pode-se exemplificar com normas do direito brasitei- Civil- Obligaciones, Tomo I, p. 19.

120
A expressão "boa-fé objetiva" se despren- ternacional que o princípio exprimia não ape-
de, portanto, da pesquisa da intencionalidade nas um estado psicológico, o conhecimento ou
da parte, de nada importando, para a aplicação a ignorância do fato (acepção subjetiva), mas
do princípio. a sua consciência individual no indicava referência aos usos, a uma "regra mo-
sentido de não estar lesionando direito de ou- ral de comportamento". A boa-fé na acepção
trem ou violando regrajuridica. O que importa é objetiva traduzia, assim, tleterminadas exigên-
a consideração de um padrão objetivo de con- cias de comportamento que poderiam ser re-
duta, verificável em certo tempo, em certo meio conduzidas ao princípio geral da responsabili-
social ou profissional e em certo momento his- dade, por forma a conduzir, no caso concreto, à
tórico J9 • aplicação das regras concernentes à responsa-
a.2) Deveres que decorrem da boa-fé bilidade contratual por ruptura do ajuste, e o
Do princípio geral da boa-fé objetiva nas- conseqüente dever ressarcitório à parte preju-
cem, em matéria contratual, outros princípios, dicada pela ruptura.
como o da responsabilidade e o da tutela da Outros casos, recolhidos da prática do c0-
confiança legítima. e certos deveres de condu- mércio internacional, bem demonstram a extre-
ta aos quais as partes estão adstritas mesmo se ma abrangência do princípio da boa-fé. Na ver-
não explicitados, estes deveres, no instrumen- dade, este se põe como uma concha hospedei-
to contratual. Já antes de expressamente con- ra de uma imensa gama de deveres. No "caso
sagrado pela Convenção de Viena, o princípio Amco"41, o princípio da boa-fé foi consagrado
da boa-fé vinha sendo aplicado nas relações como gerador do dever de não-contradição, o
comerciais internacionais corno "princípio ge- qual vem indicado, em certos sistemas, pelo
ral do direito contratual integrante da lex mer- brocardo venire contra factum proprium, atu-
catoria". Foi enunciado, por exemplo, em 16 de almente reconduzido. nos sistemas da civil law,
outubro de 1979, no célebre "caso Norsolor"4ll. à boa-fé objetiva. Efeitos similares são atingi-
Na espécie, afirmou a Câmara do Comércio In- dos, no sistema anglo-saxão, pelas regras da
estoppel4l •
39 Fundamental para esta compreensão é o dis- Como se vê, este princípio, além de atuar
crime entre os princípios e as regras. ambos espécies
como cânone hermenêutico, importa na criação
do gênero "norma jurídica". Segundo Dworkin, am-
bos têm a mesma substância, distinguindo-se, contu- de deveres para as partes, deveres estes que,
do, entre si, em função das diversas dimensões de numa relação contratual, se alocam a lalere dos
sua atuação. As regras são aplicáveis como disjunti- deveres principais43 - na compra e venda, o
vas .. isto é, ou se aplicam ou não se aplicam - con- dever de transmitir o domínio, para O vende-
forme haja ou não a correspondência extra entre a dor, e de pagar o preço, para o comprador. Na
hipótese abstratamente prevista e o fato concreto. Convenção está posto, como cânone herme-
Se os fatos que são previstos abstratamente pela nêutico, no art. 7, retrocitado. Suas conseqüên-
regra se conflguram. ou bem a norma incide e projeta cias, no que concerne à criação, confonnação e
eficácia. ocorrendo, aI. as conseqüências da estatui- regulação dos direitos e deveres laterais po~
ção. ou bem não incide. e, então, de nada importa a
sua exislência (rectills: previsão normativa) para a
dem ser vislumbradas nos seguintes artigos:
decisão do aplicador da lei. Obedecem, portanto, ao
do por Goldman. mesma revista, p. 379.
critério do tudo ou nada. Diferentemente, os princí-
41 Ref. in JOllma/ dll Droit lntemationa/, 1981,
pios jurídicos de valor não estabelecem "conseqüên-
cias" que possam operar automaticamente quando p. 914 e aludido por Kahn, op. cit., p. 323.
satisfeitos os pressupostos abstratamente previs- 42 O princípio do venire contra jactum proprium
tos. Isto porque obedecem. os princípios, á dimen- indica li proibição de se beneficiar de suas próprias
são do pe.m e do valor. não apontando apenas a um contradições em detrimento de outrem. Seu campo
tipo de decisão em particular. Podem, portanto, se primordial de aplicação é o direito processual, embo-
assim o indicarem as circunstâncias concretas, ser ra não se restrinja a este. No sistema da common law
afastados em razão da colidência com outro princí- é conhecido sob a denominação de estoppel, tendo a
pio (Dworkin, op. cit.. pp. 75 e ss). Assim opera o função de flexibilizar o formalismo processual ve-
principio da boa-fé objetiva. Não é "pensável" a sua dando à parte que, por suas declarações, sua atitude,
aplicação se adotado o critério próprio ás regras. As seus atos, enfim, conduziu a outra parte a modificar
circunstâncias concretas são determinantes e vincu- a sua posição em seu próprio detrimento.
lantes da ação do intérprete. que deve pesá-las e va- 4J Assim, Clóvis do Couto e Silva, "O Princípio
lorá-las complessivamente. da Boa·fé no Direito Brasileiro e Português", in Es-
40 Referido por P. Kahn, op. cít.. p. 321. Este t14dos de Direito Civil Brasileiro e Português, Ed.
caso vem reproduzido na Rev. Arb. 1983, e comenta- Revista dos Tribunais. São Paulo, 1988, p. 43.
121
- art. 27: prevê o direito da parte que comu- perder o direito a exigir. do vendedor. a cxecu-
nicou. notificou ou avisou a outra, e cujo aviso, çao das suas obrigações contratuais;
comunicação ou notificação se atrasou ou re- - art. 54 : assinala o dever de diligência,
cebeu equivocada transmissão. prevalecer-se que incumbe ao comprador, para que as finali-
de tal comunic3ça<> desde que ela tenha sido feita dades do contrato sejam plena e eficazmente
"por um meio adequado às circunstâncias"; alcançadas;
- art. 32. I : contém o dever de aviso. que - art. 62: contém o dever de lealdade, in-
incumbe ao vendedor, de comunicar ao com- cumbente ao vendedor, na execuçlo do contra-
prador que expediu as mercadorias, se estas não to, sob pena de incidir, como ocorre para o com-
estiverem "claramente identificadas para os fins prador. a vedação do principio do venire con-
do contrato"; trafaetum proprium;
- art. 32, 2 : prevê o dever de diligência. - 3rt. 68 : prevê o dever de informar. a cargo
que incumbe ao vendedor, quando estiver obri- do vendedor, sobre o risco de perda, deteriora-
gado a tomar providências para o transporte ção ou perecimento das mercadorias, se tal ris-
das mercadorias, devendo "celebrar os contra- co conhecia OU "deveria saber". sob pena de
tos necessários para que o transporte seja efe- inversão da regra do risco contratual;
tuado até o lugar previsto, pelos meios de trans- - art. 77: prevê o dever de cooperar com a
porte apropriados às circunstdncias e nas con- contraparte para o bom adimplemento do con-
dições usuais de tal transporte"; trato e de tomar as medidas necessárias para
- art. 32, 3 : assinala o dever de informar, ntlo aumentar o seu prejulzo, traduzindo o que
que incumbe ao vendedor. relativamente às con- no direito anglo-saxão é conhecido como duty
dições para o estabelecimento do seguro sobre of mitigate: o credor deve tomar as medidas
a mercadoria vendida, se não estiver obrigado necessárias e razoáveis. à vista das circunstân-
a subscrever. ele próprio, uma apólice de segu- cias. o que o traduz., também, como manifesta-
ro de transporte; ção do principio da razoabilidade~
- art. 35. 1e 2, alínea d: prevê os deveres de - art. 79. 4: prevê o dever de informar, a
guarda. custódia e adequado acondiciona- cargo de ambos os figurantes da relação con-
mento das mercadorias. os quais incumbem ao tratual. quaisquer fatos impeditivos da execu-
vendedor; ção das obrigações contratuais e os seus efei-
- art. 35,2 : regula o dever, incumbente ao tos no cumprimento do contrato.
vendedor. de adequar as mercadorias vendi- Como se observa. é extenso o rol dos deve-
das às finalidades do contrato; res que decorrem da boa-fé e cuja quebra pode
- art. 35, 3 e art. 36, I e 2 : assinala dever de conduzir inclusive à configuração do inadim-
garantia. no caso. o de garantir a coisa vendi- plemento contratual, mesmo quando prestada
da contra riscos; a obrigação principaL Constitui, nesse sentido,
umafonte de otimização da conduta contralu-
art. 38, I : contém o dever (que incumbe ao a~. tendo em vista o pleno e eficaz atendimen-
comprador) de examinar as mercadorias rece- to da finalidade para a qual foi criado o vinculo.
bidas em prazo breve, "tendo em conta as cir- qual seja, o adimplemento contratual.
cunstâncias"·\ É característico dos principios jurídicos.
- art. 46, I: registra o dever, incumbente ao além da multifuncionalidade que lhes é própria.
comprador. de agir eom lealdade na execução a interconexão com outros principios ou regras
do contrato e conseqüente proibição do venire pertencentes ao sistema ou micr0s9stem8 onde
contra factum proprium - que é um princípio inseridos. Nessa perspectiva, articula-se à boa-
decorrente da boa-fé objetiva·' - sob pena de fé objetiva o padrão do comportamento razoá-
.... Aqui se nota a atuação, sempre in concreto, do velou standard da razoabilidade.
princípio da boa-fé objetiva: a sua aplicaçio jamais
prescinde do exame das circunstâncias objetivas do
caso. Para o exame punctual da obrigação de exami· brasileiro in "O Principio da Boa-fé", Rm$ta Ajuri.r,
nar 8S mercadorias, vide Ben Abderrahmane, "La v. 50, p. 207, Porto Alegre, 1990.
Confonnité des marchandises dans la Convention de
.. Sobre 09 princlpios juridic09 de valor como
Vienne du 11 avril 1980 sur Ies contrats de vente inter-
"fontes de otimização" de condutas ver, por todos,
nationale de marchandises", in Droit et Pratique du
Robert Alexy, "Sistema Jurldico, Principios y Ra-
C ilmmerce InternatiOllal, v. 15,4, 1989, pp. 555 e 98.
zôo Práctica", in Revista Dom, Universidad de A1i-
•! Comentei a aplicação do princípio no direito cante, 1988, p. 143.

122
B) o princípio da razoabilidade circunstâncias concretas do caso e das finali-
O princípio da razoabilidade traduz o stan- dades da existência da própria relação contra-
dard da reasonable person, uma das mais im- tual. No contexto da Convenção, devem ser ti-
portantes contribuições do direito norte-ameri- das em conta, na sua aplicação, as circunstân-
cano à Convenção. Este não vem expresso, cons- cias e as peculiaridades do comércio internaci-
tituindo, portanto, o que a doutrina nomeia por onal, e, inclusive, de cada setor econômico deste
"princípio inexpresso ou implícito". O fato de comércio: as circunstâncias do comércio de ae-
não estar expresso não lhe retira a força vincu- ronaves são. por certo, diversas daquelas do
lante e o seu perfil é deduzido de regras que comércio de produtos agrícolas, e cada uma
permeiam toda a Convenção. delas deve ser, em particular, consideradasl .
Segundo anota Clóvis do Couto e Silva· 7 , o b.2) Normas decorrentes do principio
conceito de "irrazoabílidade" de certa conduta O princípio geral da razoabilidade admite
ou de certa disposição contratual deve-se à cri- numerosas variantes. V.g., o padrão da pessoa
ação dos tribunaisjudiciários norte-americanos razoável, o do comportamento razoável, O da
que, mesmo antes da adoção, pelo Uniform disposição contratual razoável, o do prazo
Commercíal Code, do conceito de unconscío- razoável. Expressa-se, de maneira especial, nas
nah/eU!, "manipulavam a aplicação das leis ou seguintes disposições:
fatos para impedir resultados intoleráveis em - art. 8, I : contém nonna de interpretação
certos contratos de adesão". Desta forma, por das declarações de vontade e comportamento
construçãojurisprudencial, foi elaborado o con- das partes, levando-se em conta a intenção do
ceito de "cláusula não razoável" o qual "permi- declarante "quando a outra parte conhecia ou
tiu que se pudesse considerar. no direito ameri- não podia ignorar tal intenção", vale dizer, ~­
cano, não escrita a disposição contratual que do. razoavelmente ou segundo o senso comum,
ferisse a "consciência"49 ou atribuir ao juiz o não seria lícito à parte para a qual dirigida a
direito de reduzir-lhe os efeitos a quase nada"50. declaração ignorar o sentido que a contraparte
b.l) CaracterizaçiJo lhe teria querido dar: trata-se, pois, de referên~
Na substância do conceito de cláusula irra- cia à vontade cognoscivel, forçando as partes
zoável está um parâmetro de conduta. o da ra~ "a uma maior responsabilidade na sua atuação,
zoabilidade. Standards constituem arquétipos que é sobretudo exigível no domínio do comér-
exemplares da experiência social concreta que cio intemacional"s2;
são chamados a atuarjuridicamente, ou através - art. 8. 2 : o arquétipo do comportamento
de princípios ou através de cláusulas gerais, razoável está aí expresso na medida em que,
proporcionando ao intérprete um critério de inaplicável a norma de interpretação do pará-
aplicabilidade do conjunto normativo. Existen- grafo anterior, por qualquer circunstância que
te o princípio ou a cláusula geral. o intérprete é obste a pesquisa da intenção do declarante
reenviado ao standard. o qual, por isso, não devem as declarações e os comportamentos
permite visualização in ahstracto. sendo de serem interpretados "segundo o sentido que
dogmatização inviável. lhes teria dado uma pessoa razoável, com qua-
Poder-se-ia afinnar que o padrão da razoa- lificação idêntica à da contraparte e colocada
bilidade constitui a tradução do "senso co- na mesma situação". Como se percebe, de pou-
mum"', vale dizer, do que é tido, como em certas co importa, aqui, a pesquisa da intenção do
circunstâncias. em certo momento e em certa agente. O que deve o intérprete verificar é se,
comunidade (seja nacional. cultural, profissio- razoavelmente, a tal ou qual declaração ou a
nal ou outra) como racional, equilibrado. pru- certo comportamento poderia ser atribuído de-
dente ou sensatQ. Também é con<:eito pata set tenninado significado. Para \2..\ verif~es­
concretizado: sua aplicação se faz, como a do tará ainda o standard vinculado à identificação
princípio da boa-fé objetiva. sempre à vista das entre a qualificação (profissional. técnica, cien-

47 In O Princípio da Boa-Jé e as Condições Ge- SI Ver, nesta Revista, Vera Maria Jacob de Frade-
rais dos Negócios, op. cit., p. 31. ra, "O Conceito de Inadimplemento Substancial no
art. 25 da Convenção de Viena de 1980.....
48UCC, parágrafo 2-302.
~2 Assim, Maria Angela Bento Soares e Rui Ma-
~9 Entre
aspas. no original. nuel Moura Ramos, Cantratoslntemacionais- Com-
~Clóvis do Couto e Silva, ob. por último cit., p. pra e Venda, Cláusulas Penais, Arbitragem, Ed. Li-
32. vraria Almedina. Coimbra, 1986. 39.

Braa/II••• 32 ft. 126 8brJIun. 1985 1%1


ótica. cultural) da contraparte e a do seu parâ- gue. para o comprador, o direito fonnativo ex·
metro. idênticas, ainda, às situações objetivas tintivo de denúncia, ocorrendo a falta de con-
e concretas; fonnidade das mercadorias ao pactuado, se este
- art. 8. 3 : contém explicitação das nonnas nao a denunciar. precisando a sua natureza
de interpretação antes aludidas. Para determi- ~num prazo razoável a partir do momento em
nar a intenção da parte (parágrafo I) ou concre· que a constatou ou deveria ter constatado";
ti7.ar o standard da pessoa razoável (parágrafo - art. 43, I : trata, por igual, de caso de extin-
2), o intérprete deve considerar "todas as cir- çilo do direito formativo extintivo de denúncia,
cunstâncias pertinentes" ao caso, "nomeada- no caso de o comprador, em prazo razoável, RIo
mente as negociaç/Jes que possam ter havido denunciar ao vendedor o direito ou a pretensão
entre as partes, as práticas que se tenham esta- de terceiro eventualmente incidentes sobre o
belecido entre elas, os usos e todo e qualquer objeto contratual;
comportamento ulterior das partes"; - art. 46, 3 : versa odireito do comprador de
- art. 35, I, b: trata de regra de execução exigir do vendedor que supra a falta de confor-
contratual. considerando as mercadorias "con- midade entre a mercadoria recebida e aquela
foones ao contrato", entre outros requisitos, se prevista contratualmente. Tal direito será obs-
"forem adequadas a qualquer finalidade espe- tado, contudo, se for "irrazoável" O suprimento
cial expressa ou tacitamente levada ao conheci- da falta contratual, "tendo em conta todas as
mento do devedor no momento da conclusão circunstâncias" . Caso, portanto, em que tam-
do contrnto", salvo se resultar das circunstân- bém é necessária a concretização, devendo a
cias que o comprador "não confiou na compe- jurisprudência internacional apontar, mediante
tência e apreciação do vendedor, ou que não casuistica, as hipóteses de irrazoabiJidade do
era razoável de sua parte fazê-lo". Em outras dever de reparar a falta contratual;
palavras se, no momento da conclusão do con- - art. 48, I : direito do vendedor de reparar
trato, o comprador leva ao conhecimento do qualquer falta às suas obrigações, mesmo ul-
vendedor, expressa ou tacitamente, certa finali- trapassado o prazo de entrega das mercadori-
dade especial do contrato e, à vista disto, rece- as, elidindo, assim, a resolução. Contudo, tal
ba as mercadorias, estas nlJo serão tidas como direito só se configura se atendido o padrlo da
boas ao adimplemento se o comprador invocar razoabilidade, urna vez que é obstado se o atra-
e provar que nao poderia, ou seria irrazoáveI, so for irrazoável e se tiver causado ao compra-
de sua parte, confiar no vendedor; dor prejuizos também irrazoáveis. Trata-se de
- art. 38,3 : tem-se o caso em que o stan- uma espécie de inadimplemento relativo, asse-
da,.d da razoabilidade informa certos prazos gurado, ao comprador, a indenizaçlo pela mora;.
contratuais. Trata a norma da hipótese de mer- - art. 48, 2 : insere outra vez o padrao do
cadorias reenviadas em trânsito ou reexpedi- prazo razoável no que conceme ao dever de
das peJo comprador e deve ser entendido à luz resposta do comprador frente à demanda. do
da nonna contida no parágrafo I do mesmo ar- vendedor, de receber a aceitação expressa da
tigo, segundo o qual compete ao comprador execução~
"examinar as mercadorias ou fazê-Ias examinar
- art. 49, 2, a: trata do direito à resolução,
num prazo tlio breve quanto possfvel". Contu-
do, havendo a reexpedição ou o reenvio, e des- por parte do comprador, no caso da falta de
de que o comprador nao "tenha tido razoavel- entrega das mercadorias no prazo suplementar
mente a possibilidade de as examinar", conhe- concedido no art. 47, I. Se tais mercadorias f0-
cendo o vendedor ou devendo conhecer a pos-
ram entregues, ainda que tardiamente, O exerá-
sibilidade do reenvio ou da reexpedição, tem--se cio da resolução é, contudo, obstado, se não
a faculdade, ao comprador, de ver diferido o exercitado em prazo razoável, contado a partir
da entrega efetiva;
exame até a chegada das mercadorias ao novo
destino; - art. 60, a: trata do dever de colaboração
para o eletivo adimplemento ci:J contnUo. Além
- art. 39, I: outra hipótese em que o stan- de decorrer do principio da boa-fé objetiva, tal
dard da razoabilidade informa a consideração dever deve ser razoavelmente exercido, tendo
de prazos contratuais. Substitui-se aqui, peJa em conta a finalidade do contrato, não poden-
flexivel normatizaçlo do standard, a rigidez da do o comprador praticar atos que obstem ou
fixação de prazos decadenciais, comuns nas le· dificultem a entrega das mercadorias. por parte
gislaçOes estatais, na medida em que se extin-
do vendedor~ c1uído por escrito nem de constar de documen-
- art. 65, I: novamente o prazo razoável é to escrito e não está sujeito a nenhum outro
exigido em matéria de especificação de merca- requisito de forma". A regra se completa com a
dorias. pelo comprador. Se esta não tiver data indicação, no mesmo texto, de que "o contrato
acordada. deve ser efetuada em prazo razoável pode ser provado por qualquer meio, inclusive
a partir da recepção do pedido, pelo vendedor, a prova testemunhal".
sob pena de o direito a especificar ser conferi- A adoção deste princípio se deve à circuns-
do ao vendedor; tância de, na vida internacional, não raroorigi-
- art. 79, 1: é regra geral em matéria de exo- narem-se contratos nos modernos meios de
neração da responsabilidade por danos. Ado- comunicação que nem sempre propiciam o re-
ta~se aqui a teoria da causalidade adequada. a gistro por escrito~4. A ausência de forma escri-
qual toma por padrão o fato ou ato que poderia ta, contudo, tem o defeito de ensejar grande
ser razoavelmente esperado. insegurança. Por isso é que, embora a Conven-
Na Convenção de Viena convivem, com os ção consagre o consensualismo, reconhece a
princípios e standards acima examinados, ain- circunstância de grande parte dos contratos
conc1uir~se por escrito, em razão da necessida-
da outros princípios, o da consensualidade ou
ausência de forma e o da interpretação segun- de de segurança nas relações jurídicas. A Con-
do a intemacionalidade dos contratos. venção indica, nesse particular, que "o termo
'escrito' abrange as comunicações enviadas por
2. a Parte - Principias de caráter dogmático telegrama ou telex" (art. 13). Por analogia, a ex-
Se endossada em caráter absoluto a posi- pressão engloba também aquelas enviadas por
ção segundo a qual todo e qualquer princípio telefax ou por qualquer outro meio eletrônico
teria caráter valorativo, não teria sentido falar que reproduza a escrita.
em "princípios de caráter dogmático". No con- a.l) Exceção à dispositividade das normas
texto deste comentário, contudo, parece-me jus- convencionais
tificável a distinção. Os princípios antes comen-
tados vieram. como se viu, da prática do comér- Contrastando com a dispositividade da
cio internacional, sublinhando valores consen- maior parte das normas da Convenção~s está o
sualmente aceitos neste universo. Já o princí- art. 12, o qual leva em conta que, embora privi-
pio da consensualidade e o princípio do caráter legiado o princípio do consensualismo, alguns
internacional da Convenção (este tipificando Estados nacionais consagram, em seu direito
mais propriamente uma diretriz) são princípios interno, o princípio inverso, qual seja, o dofor-
de elaboração doutrinária; aí é mais rarefeito o malismo, prescrevendo imperativamente a for-
caráter a'l:iológico, tendo maior peso o papel que ma como condição de validade, ou, por vezes,
jogam na dogmática contratual em causa. Em de eficácia do ajust~. Por esta razão, a solu-
relação a estes dois princípios, diferentemente ção de compromisso do art. 12, o qual abre aos
dos precedentes, não se pode falar na influên- Estados que o adotam a possibilidade de, feita
cia do direito norte-americano, uma vez ser o a declaração de não-aceitação da forma livre,
primeiro tradicional em alguns sistemas da civil prevista no art. 96 57 , não aplicarem as disposi·
Jaw e, o segundo, típico dos contratos interna- 54 Confonne Maria Angela Bento Soares e Rui
cionais há longa data. Manuel Moura Ramos, op. cit., p. 43.
A) Princípio da consensuaJidade 55 Dispõe o art. 6 que "as partes podem excluir a
Conforme à tradição que é de certa forma aplicação da presente Convenção ou, sem prejuízo
comum aos sistemas da civil faw e da common do disposto no artigo 12, derrogar qualquer das suas
Jaw, o contrato de compra e venda internacio- disposições ou modificar-lhe os efeitos".
nal prescinde de exigências de forma 53 • Vigora, ~6 O ordenamento civil brasileiro contempla hi-
pois, o principio do consensualismo, ou da póteses em que a fonna é elemento de validade, por-
consensualidade, do qual é contraponto o prin- que conceme com a substância do negócio (v.g., a
cípio do fonnalismo. hipótese prevista no art. 134, m, e outras em que é
tão-somente requisito de eficácia, visando à publici-
Para os efeitos da Convenção de Viena, a dade do ajuste. Se se tratar de requisito que a lei
forma escrita não é exigida sequer adprobatio- imponha tão-só para a publicidade do contrato, este,
nem, consoante o art. lI, segundo o qual "o ausente a fonna detenninada pela lei, não é nulo, mas
contrato de compra e venda não tem de ser COR- não terá eficácia perante terceiros.
57 Art. 96: "Qualquer Estado contratante cuja le-
5JC. Civ. Bras., art. 81, infine e art. 129.

Br. .,,. •. 32n. 126 ""'J1un. 1995 125


ções que consagram a liberdade de forma nos prática e consolidados ou reconhecidos pela
casos em que uma das partes tenha o seu esta- jurisprudência dos foros internacionais - de-
belecimento nesse Estado. Essa é, segundo O vem conformar a interpretação a ser conferida
artigo 6, a única norma rigorosamente cogente às normas convencionais e às disposiçt5es con-
da convenção, não podendo as partes a derro- tratuais, nos casos concretamente considera-
garem nem modificarem os seus efeitos. dos. É de fundamentaI importância, nesse sen-
B) O principio da natureza internacional tido, a conexão entre este princípio e o stan-
do contrato dard da razoabilidade, pois indica que a con-
ereção do último deve levar em coma o que é
O art. 7, precedentemente transcrito, con- razoável não num certo pais, mas no meio pr0-
tém ainda relevandssimo cânone de interprepa- fissional dos contratantes, qual seja. a comuni-
ção que reveste a globa/idade do contrato. E o dade comercial internacional.
principio (ou a diretriz) atinente ao atendimento Por outro lado, a inserção do principio, co-
do caráter internacional do instrumento nego- nexionado aos demais, antes aludidos, permite
ciaI. Anotam Maria AngeJa Bento Soares e Rui aos árbitros a elaboração de uma consistente
Manuel de Moura Ramos que essa diretriz "é teia de deveres que devem reger o comércio
conseqüência do próprio escopo da iniciativa e internacional, tais como o dever de informar o
constitui a bem dizer uma exigência da sua na- ~ntratante, o dever de minimizar os danos,
tureza"5I, pois, à toda evidência, interpretação o de garantir certos riscos, o de não-amtradi-
que não levasse em conta tal caráter "frustraria ção, etc. 61 •
de todo a obra uniformizadora, fazendo retro-
O principio do caráter internacional do ajus-
gredir a situação ao estádio anterior de conflito te tem, por igual, considerável peso na avalia-
- se não já entre leis nacionais diferentes, entre ção e interpretação de certos institutos, recebi-
distintas versões de urna ordenação que se quer dos na Convenção através de urna verdadeira
comum"w. "mistura de tipos" ou de regras tipicas dos di-
Trata-se, como se vê, de principio que de- reitos pertencentes às diferentes fimúliasjurldi-
corre da própria natureza do contrato interna- cas, em especial as da civil law e da common
cional. Não necessitaria, nesta perspectiva. se- l~. Estes, comumente, se desprendem pro-
quer estar previsto de forma expressa, valendo gressivamente de sua pureza original - assim
aqui a conhecida lição de Esser, segundo o qual entendida a conformação particular que têm em
existem principias cujajustificaçãodecorre, "de cada ordenamento particularmente considera-
la naturaleza de la cosa o de la institución res- do - passando a constituir tipos relativamente
pectiva, y constituyen una piezafuncionairmm- novos que, por sua vez, influenciam o direito
te necesaria de toda solución concreta que entre intemo63 . A circulação de modelos jurldicos,
en este círculo común de problemas"60. característica de nossa época, rejeita o volun-
Com isto se quer significar que todos os tarismo, porque os elementos de ordem socio-
aspectos que peculiarizam o contrato de com- lógica têm aí papel preponderante. será ditlcil,
pra e venda internacional, concernindo à sua senão impossível, que um determinado concei-
particular natureza - em especial a importância
dos usos e de certos principios formados pela 61 Assim, Philippe Kahn, op. cit., p. 397.
gislação exija que os contratos de compra e venda 6J Exernplificativamente, a expressão "boa-f~".
sejam concluidos por escrito ou constem de docu- em matéria contratual, adquire diferente signifleado
mentos escritos, pode declarar em qualquer momen- quer se trate do direito alemílo, qu~r se trate do di~
to, de acordo com o artigo 12, que qualquer disposi- to francês. Neste, e nos que seguiram a sua matrIZ,
ção dos artigos 1 I e 29, ou da segunda parte da pre- está historicamente vinculada ao principio do con-
sente Convenção, que permita uma forma diversa da sensualismo, à id~ia de obrigatoriedade da promessa,
forma escrita para a conclusio, modificação ou extin- que vem do direito canônico. Já no direito alemão,
ção por acordo dum contrato de compra e venda, ou liga-se à concepção da obrigação como u~ ~rcx:es80,
para qualquer proposta contratual, aceitação ou ou- onde convivem, ao lado dos deveres pnnclpalS, os
tra manifestação de intenção, se não aplica desde que deveres laterais de conduta, derivados do mandamen-
uma das partes tenha o seu estabelecimento nesse to de agir com lealdade.
Estado".·
63 É o que se vê, ~g.. do 8CÓrdAo do TIROS pu-
"Op. cit., p. 35.
b1ic. in RITJRGS v. 97, p. 397, ReI. I)es. Ruy Rosa-
'9 Idem, ibidem. do de Aguiar Jr., que acolheu a doutrina da violaçílo
110 In Principio y Norma e1I la ElahOl"lJcíon Juris- antecipada do contrato, não previ!lta expressamente
pn4de1ldal dei Derecho Privado, op.cit., p. 7. na legislação brasileira.

1R
tojurídico receba. em mais de um sistema, idên- sistemas jurídicos, freqüentemente pouco c0-
tica compreensão. Por isso os intérpretes da nhecidos aos Estados de diferente tradição, a
Convenção não devem perder de vista a diretriz presença de Estados com sistemas econômi-
do caráter internacional, sob o risco de inter- cos também diversos e não raro contrapostos,
pretarem as suas normas com os óculos. para a diversidade dos patamares de desenvolvirnen-
este efeito deformantes, da pré-rompreensão64 to econômico, sistema~ políticos distintos e com
que lhes é dada desde o direito interno. freqüência contrastantes, alguns Estados com
Conclusão problemas de integração regional, não sendo
de olvidar-se, ainda, o fato da desconfiança de
O direito, em qualquer uma de suas mani- alguns países em relação às precedentes con-
festações, traduz uma experiência prática, razão venções que haviam imposto o dominiocomer-
pela qual, no seu campo, a "aderência ao real" cial das nações mais potentes.
se põe como uma necessidade ineludivel. A anâ- O que resultou, portanto, foi uma soluçdo
lisc dos princípios informadores da Convenção de compromisso. Esta, longe de ser um defeito,
de Viena sobre a compra e venda internacional pode ser vista como um grande beneficio da
de mercadorias bem evidencia, ao meu ver, o Convenção aos próprios direitos nacionais. O
papel da prática comercial na construção de um direito comparado demonstra que, mesmo quan-
modelo dinâmico de solução das concretas si- do ocorrem circunstâncias políticas que permi-
tuações problemáticas, por forma a conduzir o tem a recepção integral de um sistemajuridico
seu intérprete a uma pelll18C1ente revisão das por outro, mesmo assim, os costumes nacio-
regrasjurídicas que contém. nais, preexistentes à recepção, conformam e
Nesta perspectiva se pode concluir com uma modificam o direito recebido. Esta solução de
dupla afirmativa. a primeira dela dizendo respei- compromisso, ao incorporar os princípios aci-
to aos aspectos intrinsecos da Convenção, a ma indicados, tende a aumentar o grau de efici-
segunda referíndo-se aos seus aspectos extrin- ência das nonnas convencionais. Para isto, é
secos. notadamente no que diz respeito à rele- preciso, contudo, que os princípios que a infor-
vância do seu estudo para os juristas brasileiros. mam sejam bem compreendidos e eficazmente
No que diz com a primeira das assertivas, utilizados.
importa ultrapassar o maniqueísmo que por ve- No que se refere aos aspectos extrínsecos
zes ainda assalta aos estudiosos e concluir que da Convenção, perspectivados da sua relevân-
a Convenção não é nem "boa" nem "má" - foi o cia entre nós, cabe considerar que, muito em-
acordo possível, em face das objetivas condí- bora não seja o Brasil signatário da Conven-
çôcs vigentes à época de seu nascimento. Acen- ção, o seu estudo se reveste, como bem salien-
tua. com procedência Justin Sweet. em análise tou Ruy Rosado de Aguiar Jr. 66 , de dupla im-
comparativa entre a Convenção e o Uniform portância entre n6s. De um lado, essa regula,
Comercial Code norte-americano. fonte de ex- além dos contratos de compra e venda de mer-
pressa inspiração para várias "onnas da Con- cadorias celebrados entre partes que tenham o
venção que. naquele "o esforço de unificação seu estabelecimento em Estados signatários
era (... ) baseado sobre uma língua comum, so~ (art. 1.0, I, a), também os contratos aos quais se
bre uma comum tradição jurídica. sobre uma aplicam. pelas regras do direito internacional, a
formação jurídica relativamente unifonne, so- lei de um Estado contratante (art. 1.0, 1, b). Sabe-
bre a existência de leis simílares, sobre práticas se que a Lei de Introdução ao C6di.go Civil Bra-
comerciais relativamente comuns; se fundamen- sileiro detennina que, "para qualificar e reger as
tava. além do mais em uma fé comum em um obrigações. aplicar-se-á a lei do país em que se
sistema de mercado, na autonomia privada, em constituírem", assentando que "a obrigaçAo
um sistema judiciáriofamiliar econhecido e sobre resultante do contrato reputa-se constituída no
uma reconhecida exigência de uniformidade"65. lugar em que residir o proponente" (art. 9, CQ-
Já a Convenção operou sobre base cultural put e § 2.°). Já por aí se percebe que, em caso de
diversa: a presença de Estados com diversos compra e venda de mercadorias celebrado en-
tre parte estabelecida no Brasil e parte estabe-
.... Para o exame da noção de "pré~ompreensão", lecida, V.g, na Argentina, "provindo desta a
vide, por todos. Joseph Esser. Precomp"rnsione e proposta de negócio. a nossa regra de direito
sce/la dr:! merodo ne/ processo di individuazione dei
dirirro. Trad. italiana de S. Palti e G. Zaccaria. Edizi- 66ln "A Convenção de Viena (1980) e a Resolu-
oni Schienti fiche Italiane, Camenno, 1983. ção do Contrato por Incumprimento", Revista da
6j Op. cit.. p. 303 Faculdade de Direito da UfRGS, v. lO, 1994, p.7.

8rlUllI••• 32 n. f26 -'wJJun. 1995 t27


internacional privado faz incidir sobre o contra- sunção, firmado no âmbito do Mercosul. ter
toa lei deste outro pais contratante a qual será consi~do, em seu art. 1.0 , a adoça0 de com-
porissoaplicável,naformadoseuart.1.°,I,b."67 promlSSO entre os Estados-Membros, afim de
De outro lado, acentua o mesmo autor a re- viabilizar a livre ciJcuJaçIo de bens entre os seus
~evância ~o seu estudo porque a Convenção, territórios, para o que devera<> os mesmos, har-
~roduzmdo estruturalmente o regimejurldi- m.0nizar a ~a ~egislaçiJo, notadamente no que
C? Vigente no Brnsil, introduz principios e crité- diz com o direito das obrigações e dos contra-
nos modernos - como o da boa-fé objetiva _ tos. Neste esforço, os principios da Conven-
para a regulação e a interpretação dos contra- ção de Viena certamente serão considerados,
tos de compra e venda, que bem nos podem senão como um modelo, ao menos como um
servir de parâmetro e orientação doutrinária ou parâmetro para a elabornçlo do conjunto nor-
legislativa"68. A essas judiciosas observações mativo concernente à compra e venda entre os
acrescentaria ainda o fato de o Tratado de As- países do Cone Sul.

~7 Idem. ibidem.
&lIdem. ibidem.
f28
A defesa da concorrência no Mercosul

JoSÉ MATl.o\S PEREIRA

sUMÁRIo
Apresentação. 1. Introdução. 2. Coordenação
de políticas macroeconômicas. 3. A defesa da con-
corrência na União El4ropéia. 4. A defesa da con-
corrência no AfercoslIl. 5. Conclusão. 6. Projeto de
Protocolo de Defesa da Concorrência no Mercado
Comum do Sul- Mercosul

Apresentação
O Mercado Comum do Sul (Mercosul) não
deve ser entendido como uma organização in-
ternacional consolidada, considerando que ain-
da se encontra numa fase de transição.
Esse estágio de transição está de acordo
com o fenômeno de organizações internacio-
nais que buscam se aperfeiçoar no tempo, es-
pecialmente no campo da integração econômi-
ca regional.
O trabalho aqui apresentado é o produto de
pesquisa e troca de opiniões desenvolvidas com
inúmeras pessoas, cujas idéias penneiam qua-
se todas as páginas. A todas elas sou extrema-
mente grato e, de maneira especial, aos Conse-
lheiros do CADE, Carlos Eduardo Vieira de Car-
valho e Neide Teresinha Malard.
Assim, o presente estudo sobre "Defesa da
Concorrência no Mercosul" apresenta-se como
uma contribuição para estimular o debate sobre
esse importante e complexo tema.
1. Introdução
José Matias Pereira é advogado e economista. Creio necessário, antes de defender a ne-
Mestre pIa Universidade de Bmsília - UnB. Técnico cessidade da aprovação de um acordo de "De-
de Planejamento e Pesquisa do Instituto de Pesquisa fesa da Concorrência no Mercosul", destacar
Econômica Aplicada - IPEA. Exerce o mandato de alguns aspectos relevantes do Tratado para a
cnselheiro do Conselho Administrativo de Defesa constituição do Mercado Comum do Sul (Mer-
Econômica - CADE, do Ministério da Justiça. Re- cosul), finnado pelos governos da Argentina,
presentante do Brasil na Comissllo de Defesa da Brasil, Paraguai e Uruguai, na cidade de As-
Concorrência do Mercosul.
8,. .,,__. 32n. 12Sabr./J.... 1N5 129
SlUlçãO, Paraguai. no dia 26 de março de 1991. relação a terceiros Estados ou agrupamento de
O Mercosul não deve ser entendido como Estados e a coordenação de posições em foros
uma organi7.ação internacional consolidada, econômico-comerciais regionais e internacio-
visto que se encontra num estágio de transi- nais; a coordenação de políticas macroeconô-
ção. Teve suas estruturas decisórias e as suas micas e setoriais entre os Estados-Partes - de
instituições definidas. a partir de janeiro de 1995, comércio exterior, agrícola, industrial, fiscal
confonne previsto nos artigos 1.0 e 18 do referi- monetária, cambial e de capitais, de serviços.
do Tratado. Esse estágio de transição está de alfandegária, de transporte e comunicações.
acordo com o fenômeno de organizações inter- entre outras.
nacionais que buscam se aperfeiçoar no tempo, Dos instrumentos adotados pelo "Tratado
especialmente no campo da integração econô- de Assunção", sobressai o programa de libera-
mica regional. O melhor exemplo é o caso da ção comercial, que visa alcançar reduções tari-
Europa. que nasceu com a instituição do Trata- fárias progressivas, lineares e automáticas,
do de Paris em 1951. que criou a Comunidade acompanhadas de eliminação de restrições não-
Européia do Carvão e do Aço - CECA, à qual tarifárias ou medidas de efeito equivalente, as-
se agregaram a Comunidade Econômica Euro- sim como de outras restrições ao comércio en-
péia - CEE e a Comunidade Européia de Ener- tre os países, para chegar a uma tarifa zero s0-
gia Atômica - EUROTON, instituídas pelo Tra- bre a totalidade do universo tarifário.
tado de Roma, de 1957, aglutinando gradual- Na fase atual, deve-se ressaltar, o Mercosul
mente seus órgãos originários em órgãos c0- - que não possui personalidade internacional
muns (Tratado de Fusão. de 1967), com a deno- - deve ser definido como um processo, que vem
minação de Comunidades Européias (ou Euro- sendo conduzido por duas instituições transi-
pa dos Doze), sendo posteriormente rebati71lda tórias, o Conselho do Mercado Comum e o Gru-
de Comunidade Européia (através do Ato Uni- po do Mercado Comum. auxiliado por uma Se-
co Europeu, de 1987). para finalmente, com a cretaria Administrativa, Esses dois órgãos tran-
entrada em vigor do Tratado de Maastricht, em sitórios (visto que assim foram definidos pelo
1992. dcnomínaNle União Européia Tratado de Assunção, que igualmente se defi-
O tratado que instituiu o Mercosul. deve-se ne transitório), apesar de possuírem uma certa
destacar, tem como objetivos principais a inser- organicidade, não devem ser entendidos como
ção mais competitiva das economias dos qua- uma pessoa jurídica de Direito Público Interna-
tro países num mundo em que se consolidam cional.
grandes blocos econômicos e onde o progres- Pode-se perceber que, para que ocorra com
so tecnológico se torna cada vez mais essenci- sucesso a fase de transição, será necessário
aI para o êxito dos planos de desenvolvimento. resolver a questão da tarifa externa comum e a
Visa também favorecer economias de escala, definição do modelo institucional do Mercosul.
reforçando as possibilidades de cada um dos Quanto à institucionalização definitiva do
países-membros com o incremento da produti· Mercosul, está claro que a sua estrutura só de-
vidade, além de estimular os fluxos de comércio verá ocorrer a médio prazo. Isto porque a entta-
com o resto do mund<', tomando mais atraen- da em operação dos órgãos que comporlo a
tes os investimentos na região. Nesse sentido, sua estrutura institucional estará sujeita aos
não se trata de reproduzir. num plano regional, avanços logrados no final do periodo de transi-
uma política de substituição de importações. ção, que está ocorrendo de forma segura e gra-
Busca ainda promover esforços de abertura duaI. Quanto aos órgãos intergovernamentais
nas economias dos quatro países. que deverão que eventualmente venham a substituir o Con-
conduzir à integração gradual da América Lati- selho do Mercado Comum e o Grupo do Merca-
na, bem como balizar as ações dos setores pri- do Comum., creio recomendável que mantenham
vados e da sociedade como um todo, que deve- as mesmas características desses. Isto porque
rão ser os principais agentes do processo de o fenômeno da integração do Mercosul implica
integraçao. uma gradualidade com vista à instituição defi-
nitiva de órgãos decisórios e legisladores, cuja
Tem o Mercosul como características pri- função, no futuro, terá o poder de alterar os
mordiais a livre circulação de bens e serviços e procedimentos para consolidar a integração.
de fatores produtivos entre os países; o esta~ O processo de integração do Mercosul está
belecimento de uma tarifa externa comum e a superando a fase de uma zona de livre comércio
adoção de uma política comercial comum em
130
para entrar no estágio seguinte - a união adua- cia e o livre acesso ao mercado no âmbito do
neira -. onde cerca de 85% das tarifas já foram Mercosul.
harmonizadas e os 15% restantes convergirão Em relação à promOÇão da harmonização da
num prazo de dez anos (sendo que em cinco legislação antitruste dos países-membros do
anos mais 5% delas e em dez anos os 10% res- Mercosul, faz-se necessário registrar, na busca
tantes). BUSC3 3ssim o Mercosul, no campo da de um paradigma, que a União Européia não se
integração econômica regionaL tomar-se uma submeteu, ainda, a um processo de harmoniza-
união aduaneira. com tarifas externas comuns e ção Observe-se, porém, que no "Tratado de
polilica externa comum. onde se pretende, ve- Roma", e de forma específica. nos seus artigos
nha haver liberdade de movimentação dos fa- 85 a 90, foram estabelecidos os referenciais bá-
tores de produção. a exemplo do que ocorre na sicos,de defesa da concorrência nos países da
União Européia. UE. E importante observar que a própria natu-
Caso prevaleçam os pressupostos de que reza econômica do direito de defesa à concor-
continuará havendo confiança recíproca entre rência, que está ocorrendo a nível internacio-
os Estldos·Partes. determinação política, cres- nal,já conduz a uma harmonização natural. No
cente envolvimento empresarial e de outros tocante à matéria substantiva, pode-se consta·
segmentos da sociedade civil, bem como o tar que o direito antitruste do Brasil, da Argen-
constante ajustamento macroeconômico e co- tina, da Alemanha ou dos Estados Unidos da
ordenação de políticas macroeconômicas, o América, exceto na parte processual, possui
processo de integração do Mercosul se tomará poucas diferenças.
irreversível. Entendo que essa consolidação irá
3. A defesa da concorrência na Unido Eu-
facilitar, no futuro. caso venha a ser do interes-
se dos países-membros, uma negociação de ropéia
adesão. em bloco, dos integrantes do Merco- Deve-se observar que no texto deste traba-
sul ao Acordo Norte-Americano de Livre Co- lho, várias são as referências à legislação da
mércio - NAFTA. composto pelo Canadá, Es- União Européia sobre concorrência. contida nos
tados Unidos da América e México. artigos 85 a 90 do Tratado de Roma. Creio ne-
cessário fazer algumas considerações sobre a
Nesse sentido. ainda. é importante o esta-
mesma.
belecimento de entendimentos dos países-mem-
bras do Mercosul com a União Européia, com Diretamente aplicáveis em todo o território
vista a negociar um tratado para a formação de da DE, as regras européias sobre concorrência
uma associação inter-regional de comércio, es- aplicam-se aos casos em que exista efeito sobre
pecialmente nos setores industrial e de servi- o comércio entre Estados-Membros.
ços, cooperação científica e tecnológica, meio O artigo 85 proíbe acordos que possam afe-
ambiente. transferência de capital, defesa da tar o comércio entre os Estados-Membros e que
concorrência. entre outros, considerando os tenham como objeto ou efeito produzir um im-
interesses recíprocos que existem atualmente e pedimento, restrição ou distorção na concor-
que tenderão a aumentar gradativamente entre rência no interior do Mercado Comum. Isso in-
ambos. clui, de modo particular, fixação de preços, divi-
2. Coordenação de políticas macroeconô- são do mercado, restrição de produção ou de
micas desenvolvimento tecnológico, bem como a im-
posição de condições discriminatórias de for-
No que diz respeito à coordenação de polí- necimento ou quaisquer outros condicionamen-
ticas macroeconômicas do Mercosul, as ativi- tos não razoáveis. Tais acordos são automati-
dades nessa área vêm se reali7.ando gradual- camente inválidos, a menos que tenham sido
mente e de forma convergente com os progra- objeto de uma isenção pela Comissão Européia,
mas de desgravação tarifária e eliminação de órgão executivo da 00.
restrições não-tarifárias. Esse esforço busca
assegurar condições adequadas de concorrên- Essas isenções, previstas no artigo 85, pa-
cia entre os Estados-Partes e a evitar que even- rágrafo 3. 0 , que têm como fonte de inspiração a
tuaís descompassos nas políticas dos países- forma de aplicação da "regra da razão" norte-
membros favoreçam ou prejudiquem artificial,- americana, só poderão ser outorgadas se o acor-
mente a competitívídade de bens e serviços. E do contribuir para a produção, distribuição, ou
nesse contexto que se toma imprescindivel as- progresso econômico, ao mesmo tempo que
segurar as condições adequadas de concorrên- permita aos consumidores uma participação ra~

.r.. III••. 32 n. 126 .br./lun. 1~ 131


zoável nos beneficios e concomitantemente não Diante desse entendimento, fica evidente
imponha quaisquer restrições indispensáveis que o processo de integração econômica inter-
ou suscite a possibilidade de eliminar a concor- nacional é um projeto reconhecidamente com·
rência. A Comissão pode conceder uma isen- plexo, considerando que envolve questões de
ção indi\'idual a um acordo. caso este tenha livre circulação de mercadorias, servíços, pes-
sido notificado, assim como pode também con- soas e capitais. Cinco são as fases que deverão
ceder isenção em bloco para certas categorias ser superadas, para que ocorra a referida inte·
de acordo. gração econômica, que vaí desde a criação de
O artigo 86 proibe o abuso de uma posição zona de livre comércio, união aduaneira, merca-
dominante. na medida em que ela possa afetar o do comum, união econômica, até alcançar a
comércio entre os Estados-Membros. O referi- união econômica e monetária.
do artigo contém uma lista não excludente de Assim, a partir dos estágios iniciais da infe..
práticas que poderiam ser consideradas como gração econômica regional, torna-se necessá-
constituindo abusos, tais como a imposição de ria a existência de instrumentos de defesa da
pTCÇOS desleais da compra e venda, ou outras concorrência. Isto porque a "defesa da concor-
condições comerciais desleais. rência" tem como objetivo garantir e defender a
Em relação aos atos de concentração, o Re- liberdade dos mercados dos países-membros,
gulamento Europeu de Controle de Fusões, de mediante a projbi~o de atos e práticas comer-
2 I de setembro de 1990, prevê que a Comissão
ciais que possam impedir, restringir ou prejudi-
Européia controlará as fusões que tenham di- car a livre concorrência.
mensão comunitária. Isso é definido como uma
fusão em que as partes tcnham um faturamento Feitas essas considerações, registre-se que
mundial global que exceda 5 bilhões de ECU. e o "Tratado de Assunção" não incluiu no seu
em que pelo menos uma das partes detenha um texto, como no caso europeu (artigos 85 a 90 do
faturamento comunitário superior a 250 milhões Tratado de Roma), a questllo da defesa da con-
de ECU, a menos que cada um dos empreendi- corrência, razão pela qual entendo que se criou
mentos alcance mais do que dois terços de seu a necessidade da aprovação de um instrumen-
faturamentocm um único Estado-Mernbro. Re- to para garantir, corno mencionado anteriormen-
gras especiais apl icam-se a instituições bancá- te, a liberdade dos mercados dos Estados-Partes.
rias, financeiras e seguradoras. Qualquer fusão Não se deve esquecer, porém, que o acordo
dentro deste patamar tem de ser pré-notificada a ser aprovado deve ser compatível com os
à Comissão Européia dentro de uma semana. objetivos traçados no "Tratado de Assunção",
Nas seções 2 e 3. das regras da concorrên- considerando a necessidade de assegurar as
cia do Tratado dc Roma, estão contidas as prá- condições adequadas de concorrência entre os
ticas de dump;ng (artigo 91), e os auxílios con- paises-membTOS.
cedidos pelos Estados-Membros (artigo 92), Partindo-se do entendimento de que a uniao
fora, portanto, confonne citado anteriomente, dos quatro mercados nacionais requer que as
do âmbito da legislação da União Européia s0- atividades econômicas sejam exercidas sob as
bre concorrência, que trata da matéria nos arti- mesmas condições de liberdade e igualdade ju-
gos 85 a 90 do referido Tratado. ridica, em todos os Estados-Panes, deve o acor-
4. A defesa da concorrenc;a no Mercosul do afirmar a proibição de acordos colus6rios
Torna-se recomendável observar, antes de entre empresas, que tenham por objeto ou como
entrar no mérito da questão da defesa da con- efeito impedir, restringir ou prejudicar a concor-
corrência no MercosuL que qualquer processo rência em todo ou em parte substancial do Mer-
de integração tem o sentido da construção de cosul.
um futuro comum. Busca-se, dessa forma, as- É importante cuidar-se, também, nesse di-
segurar uma união que venha a pennitir solu- ploma. de evitar que agentes econômicos que
ções criativas, notadamente no campo econô- detenham posição dominante num dos merca-
mico, com reflexos no social e no político. Deve dos nacionais utilize sua condição privilegiada,
ser entendida como a forma de diminuir as dis- em prejuízo da concorrência.
tâncias entre os povos e os Estados-Partes, atra- Deve o acordo atentar para a questAo da
vés da consolidação de um esforço cooperati- concentração econômica, manifestada sob qual-
vo, que resulte em vantagens efetivas para as quer forma. que importe em efeitos para o mer-
economias dos p.1íses participantes dessa inte- cado concorrencial.
gração. Com relação à questão dos monopólios, vale
132
observar que o princípio do monopólio legal, matéria no texto do acordo como prática de pre-
no interesse comum e beneficio do Estado, tem ços predatórios, vedando aos agentes econô-
tratamento favorecido na Constituição Federal micos utiljzar-se de posição dominante para, em
do Brasil. A inclusão de um artigo específico todo ou parte substancial do Mercado Comum,
no acordo, estabelecendo que as empresas go- praticar condutas que prejudiquem a concor-
vernamentais que exerçam atividade sob regi- rência.
me de monopólio legal estão sujeitas às regras 5. Conclusão
de concorrência no Mercosul, creio inadequa- Assim, com base nos argumentos técnicos
da. Os monopólios em questllo, bem corno as expostos, creio inadequada a inclusão no texto
empresas governamentais, no que se refere a de um acordo de defesa da concorrência no
condutas específicas, objeto de leis especiais, Mercosul a queS\§C dos monop6lios legais,
nlIo poderiam ficar submetidos às regras do considerando os obstáculos de natureza cons-
acordo ora defendido. titucional existente na Constituição do Brasil,
Dessa forma, a Constituição brasileira indi- bem como os temas subsídios e dumping, visto
ca que cabe à União a exploraçllo~ dire~m:nte que não são matérias afetas a uma legislação
ou mediante concessão, dos servJços pubhcos sobre concorrência.
de telecomunicações, os quais são concedidos Creio necessário reafirmar que a proposta
apenas a empresas sob controle acionário esta- de acordo está formulada como estatuto comum
tal, e ainda da difusão audiovisual, de transpor- aos Estados-Partes do Mercosul. Todavia, di-
te ferroviário e aquaviário, rodoviário interesta- ante da indefiníção do modelo institucional do
dual e internacional de passageiros, bem como Mercosul, e da ausência de órgãos supranacio-
dos portos maritimos, fluviais e lacustres. nais para legislar e julgar os casos de infração à
O artigo 177 da Constituiçllo do Brasil colo- concorrência, recomenda-se que o controle dos
ca sob o monopólio da Unillo a exploraçllo de atos de concentração seja feito pelos órgãos
petróleo e seus derivados, proibindo, ao mes- nacionais competentes de acordo com a legis-
mo tempo, a concessão de qualquer participa- lação doméstica, fixando-se corno tal a partici-
çlIo nessa exploração (contrato de risco). pação igualou superior a 20% (vinte por cento)
Diante desses aspectos, tal regime de in- do mercado relevante de bens e serviços, medi-
tervenção estabelecida não proporciona nenhu- da adotada pela legislação brasileira, para re-
ma via integracionista, nem possibilita um regi- gistro obrigatório daqueles atos.
me preferencial que desse vantagens aos esta- Ao concluir, vale ressaltar que não se che-
belecimentos de empresas dos países contíguos ga a uma integração sem compromissos efeti-
com os quais se busca criar um mercado co- vos, razão pela qual creio oportuna a aprov~­
mum, se não \evantados os obstáculos de na- çlIo de acordo. nos termos propostos a segUlr,
tureza constitucional. sob a forma de protocolo de defesa da concor-
Assim, embora a própria Constituiçllo Fe- rência, como medida necessária, para evitar que
deral abrigue, entre os princípios gerais da ati- ocorram atos e práticas comerciais que possam
vidade econômica, o da livre concorrência, em impedir, restringir ou prejudicar a livre concor-
que qualquer um tem a liberdade de atuar no rência no Mercosul.
mercado, independentemente de autorização de
6. Projeto de Protocolo de Defesa da Con-
órgãos públicos, estabeleceu exceçõ,es que se
justificam pela necessidade do atendImento ao
corrência no Mercosul
interesse social ou da segurança coletiva. A República Argentina, a República F~e­
Por sua vez, os compromissos de conces- rativa do Brasil, a República do Paraguai e a
são de subsídios, diretos e indiretos, por parte República Oriental do Uruguai, doravante de-
dos Estados-Membros do Mercosul, estilo de- nominadas "Estados-Partes",
vidamente regulamentados no âmbito do Acor- Consíderando:
do Geral de Tarifas e Comércio (GATI), e em Que o Mercado Comum implica a livre cir-
especial dos acordos incorporados à Ata Final culação de bens e serviços entre os Estados-
da Rodada Uruguai de Negociações Comerci- Partes, sendo imprescindível assegurar as con-
ais Multilaterais, concluída em 15 de dezembro dições adequadas de concorrência;
de 1993. Que as atividades econômicas devem ser
Em relação à prática de dumping intra-Mer- exercidas nas mesmas condições de I iberdade e
cosul. o mais recomendável seria a inclusão da igualdadejurídica;

133
Que o presente Protocolo deve conter as necedor, com o pr0p6sito de dissuadi~lo de de-
regras de que se valerão os Estados-Partes e as terminada conduta, aplicar-lhe represália ou
empresas para a defesa da concorrência no obrigá-lo a agir em determinado sentido.
Mercado Comum; e Segunda Seção - Do Abuso de PosiçlJo
A necessidade de se garantir a liberdade de Dominante
concorrência e o livre acesso no âmbito do
Mercado Comum, Art. 4.° É vedado aos agentes econômicos
utilizar-se de posição dominante para, em todo
Acmdam: ou parte substa.crcial do Mc«:ada COilt«ilf. pc-.
Capítulo I - Objeto e Âmbito de ApUcaçifo ticar condutas que prejudiquem a concorrencia.
Art. 1.° O presente Protocolo tem por objeto Parágrafo único. O abuso de posição domi-
a defesa da concorrência e o livre acesso ao nante poderá consistir, dentre outras, nas se·
mercado no âmbito do Mercado Comum. guintes condutas:
Art. 2.° Em matéria de concorrência. as em- a) impor, direta ou indiretamente, preços de
presas governamentais ou com participação compra, ou venda ou condições de transaçlo
estatal que explorem atividade não monopolís- não equitativas;
tica terão idêntico tratamento ao conferido às b) restringir, de modo injustificado, a pro-
empresas privadas. dução, a distribuição e o desenvolvimento tec-
Capítulo 11 - Das Práticas Restritivas da nológico, em prejuízo das empresas ou dos con·
Concorr~ncia sumidores~
Primeira Seção - DosAcordos CoJustÍt'ios c) aplicar a terceiros contratantes condiç&:s
Art. 3.° São proibidos os acordos e as práti- desiguais em caso de prestações equivalentes.
cas concertados entre os agentes econômicos colocando-os em desvantagem na amcorrência;
e as decisões de associações de empresas Que d) suboTdiJlaT a ceJcbraçlo de t:mJtm/> à
tenham por objeto, ou por efeito, impedir, res- aceitação, por parte do outro contratante, de
tringir ou distorcer a concorrência eo livre aces- prestações suplementares que, por sua nature-
so ao mercado para a produção, processamen- za, ou de acordo com os usos comerciais, do
to, distribuição e cotnereialização de bens e ser~ tenham relação com o objeto do contrato;
viços, em todo ou em parte, do Mercado C0- e) recusar, injustificadamente, a venda de
mum, que possam afetar o comércio entre os bens ou a prestação de serviços;
Estados·Partes, tais como:
f) condicionar as transações. injustificada-
I - fixar, direta Ou indiretamente, os preços mente, ou de modo não fundado nos usos, c0s-
de compra ou de venda, bem como quaisquer tumes ou práticas comen:iais, à não-utilizaçlo,
outras condições para a produção ou comerci- aquisição, venda, distribuição ou submissIo de
alização de bens ou serviços; bens OU serviÇQs produzidos, processados, dis-
lI-limitar ou controlar a produção, a distri- tribuidos ou comercializados por terceiro;
buição. o desenvolvimento tecnológico ou in-
vestimentos; g) vender bens ou prestar serviços a preços
inferiores ao seu custo, com a finalidade de eli·
UI - dividir mercados de bens, ou serviços minar a concorrência no mercado.
ou fontes de supriIncnto de maténa-prima 0lJ
insumos; Terceira Seção - DosAtos de ConcentraçlJo
Art. 5°, Os Estados-Partes adotarão na le-
IV - acordar ou coordenar ações em con- gislação nacional o controle dos atQs e acor·
cursos, leilões ou licitações públicas; dos que resultem na concentração e<:onômica,
V - adotar, em n:lação a parceiros comerci- entendido como tal a participação igual ou su-
ais, condições desiguais, no caso de presta- perior a 200/0 (vinte por cento) do mercado rele-
ções equivalentes, colocando-os em desvanta- vante de bens ou serviços e de quai5quer atos
gem na concorrência; ou acordos que possam produzir efeitos anti-
VI - subordinar a celebração de contratos concorrenciais em todo ou em parte do Merca-
ou a reali7.ação de n~gócios à aceitação de pres- do Comum.
tações suplementares que, pela própria nature- Capítulo IIl- Consultas e Soluçiks de Con-
za ou pelos usos comerciais, não tenham rela- trovérsias
ção com O objeto do cont:rato ou do negócio;
Art. 6.° Os Estados-Partes cooperarão entre
VII - exercer pressão sobre cliente ou for-
134 "_"'.f. d_ .nlor....1Io 1 ..._.at.".
si e com a Comissão de Comércio do Mercado espanhol e português, sendo ambos os textos
Comum no sentido de assegurar o cumprimen- igualmente autênticos.
to oportuno e adequado das normas, procedi- PELO GOVERNODAREPÚBLICA
mentos e ações que forem estabelecidos em ARGENTINA
matéria de defesa da concorrência e do livre
acesso ao mercado, Os mecanismos de coope- PEW GOVERNO DA REPÚBLICA
ração poderão consistir no intercâmbio de in- FEDERATIVA DO BRASIL
formações, consultas, assessorias, cooperação PELO GOVERNODA REPÚBLICA DO
técnica e outros que sejam convenientes. PARAGUAI
Art. 7. 0 Com objetivo de prevenir eventuais PELO GOVERNO DA REPÚBLICA
causas anticompetitivas descritas nos artigos ORIENTAL DO URUGUAI
3.° e 4.°, os Estados-Partes elegerão, por inter-
médio da Comissão de Comércio do Mercado
Comum, mecanismos de coordenação entre as
Bibliografia
respectivas autoridades encarregadas da apli-
cação das leis nacionais de defesa da concor- ALMEIDA, Paulo Roberto de. Solução de Contro-
rência, vérsia no Mercosul: O Protocolo de Brasília
Art 8.° A Comissão de Comércio do Merca- ao Tratado de Assunção. Boletim da Socieda-
do Comum zelará pela aplicação do presente de Brasileira de Direito In/emacional, V XLV,
Protocolo. n.o 77/78,jan.ljun.l1992.
BARBOSA, Rubens Antonio. America Latina em
Art. 9. 0 As questões levantadas pelos Esta- Perspectiva: a integração da retórica à reali-
dos-Partes sobre a aplicação do presente Pro- dade. Edições Aduaneira, São Paulo, 1991.
tocolo deverão ser submetidas à Comissão de CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Cons-
Comércio do Mercado Comum. Se no âmbito da titucional.4" ed., Livraria Almedina, Coimbra,
Comissão não for obtido o consenso ou se a 1986.
controvérsia for solucionada apenas em parte, CARVALHO, Carlos Eduardo Vieira de. A Apura-
aplicar-se-ão os procedimentos previstos no ção de Práticas Restritivas da Concorrência.
Sistema de Solução de Controvérsias para o Anais do II Seminário Internacional de Defe-
Mercado Comum do Sul. sa da Concol'Tênçíll. Cj\J)E. BT'aS\\\2>, 12 2> \61
9194.
Capítulo IV - Disposições Finais COELHO, Inocêncio Mártires. A defesa da livre
Art. lO. O presente Protocolo entrará em vi- concorrência na Constituição de 1988. Anais
gor 30 (trinta) dias após o depósito do segundo do II Seminário Internacional de Defesa da
instrumento de ratificação, com relação aos dois Concorrência. CADE. Brasília, 12 a 16/9/94.
primeiros Estados-Partes que o ratifiquem. DAWSON, Frank Griffith. Regime de integração de
Para os demais signatários, entrará em vi- empresas da Comunidade Européia. Anais do
gor no trigésimo dia após o depósito do res· II Seminário Intemacional de Defesa da Con-
pectivo instrumento de ratificação, e na ordem corrência. CADE. Brasília, 12 a 16/9194.
em que foram depositadas as ratificações. FARIA., Wetet R. Constituição Econômica. Uber-
Art. lI. A adesão por parte de um Estado ao dade de iniciativa e concorrência. Sérgio An-
Tratado de Assunção implicará, ipso jure, a tonio Fabris Editor, Porto Alegre, 1990.
adesão ao presente Protocolo. FAUNDEZ, Júlio. Jurisdição Internacional e con·
corrência - Do confronto à harmonização.
Art. 12. O Governo da República do Para-
Anais do II Seminório Internacional de Defe-
guai será o depositário do presente Protocolo e sa da Concorrencia. CADE. Brasília, 12 a 16/
dos instrumentos de ratificação, e enviará cópi- 9194.
as devidamente autenticadas dos mesmos aos FERRAZ,Tércio Sampaio. O Conceito jurídico de
Governos dos demais Estados-Partes. oligopólio e a legislação sobre o abuso do p0-
Da mesma maneira, o Governo da República der econômico. Anais do II Seminán'o Inter-
do Paraguai notificará aos Governos dos de- nacional de Defesa da C07IcOI"Tência. CADE.
mais Estados-Partes a data de entrada em vigor Brasília, 12 a 1619/94.
do presente Protocolo e a data de depósito dos GATI. Rodada de Negociações Comerciais Multila-
terais (Ata Final da Rodada do Uruguai, con-
instrumentos de ratificação.
cluída em 15.12.93). Câmara dos Deputados.
Feito na cidade de , aos dias do mês Mensagem n,o 408194, do Poder Executivo.
de de 1994, em um original, nos idiomas
GRAU, Eros Roberto. A Ordem Econômica na Cons-

135
tituiçôo de 1988 - Inte"pnlaçilo e critica. Edi- Direito e experiincia antitruSU no Breuil e no.r
tora Revista dos Tribunais, São Paulo, 1990. EE. UU. Editolll Revista dos Tribunais, 810
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MALARD, Neide Teresinha. Integraçlo de Empre-
sas: Concentração, Eficiência e Controle. Anais SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constituo
do Il Seminário Internacional de Defesa da cional Positivo. Malheiros Editores, 9" ceI., SIo
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MATIAS PEREIRA, José. Os Direitos e Interesses
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SHIEBER, Benjamin. Abusos do poder econômico.

f. lIevlat. ". .rrtor....,. L. .'.''''••


Ônus sucumbenciais
Situações controvertidas

Éuo WANDrRtfY DF SIOU[IRA FILHO

Visa O presente estudo à análise de detenni·


nados aspectos do instihlto dos ônus sucum-
benciais. notadamente sob a ótica de imputa-
ção à parte tida como vencida. Procurou-se
abordar a temática diante de diversas circuns-
tâncias consubst<1nciadas na realidade fática.
O objetivo da abord.:1gem é. precisamente, o de
lançar no meio doutrinário e jurisprudencial a
polêmica sobre o assunto.
Primeiramente. é de se salientar que o art. 20
da Lei Adjetiva Civil consigna que "a sentença
condenará o vencido a pagar ao vencedor as
despesas que antecipou e os honorários advo-
catícios"_Qual o espírito que norteou o legisla-
dor ao editar tal regra? Buscou-se, exatamente,
proporcionar à parte vitoriosa a plena repara-
ção do que dispendcu com as custas processu-
ais e com honorários advocatícios. Para que o
êxito processual seja absoluto, é imperioso. pois.
que sejam reparadas as perdas com o adimple-
mento de tais verbas.
Vê-se da i claramente quanto impTÓpria foi a
postura do novel Estatuto do Advogado quan-
do atribuiu a titularidade da verba honorária
estabelccidajudicialmcnte ao advogado da par-
te vencedora. Com efeito. coruiena-'Se Q venci-
do a pagar dita verba para a parte adversa, a fim
de que esta tcnha condições de pagar ao seu
constituído. Obviamente que tal raciocínio se
aplica em tese. vez que há, também, os honorá-
rios ajustados contratualmente, que. geralmen-
te, são fixados em montante bem superior ao
assinalado R<1 sentença.
Mas a intenção da norma, verdadeiramente,
é a de possibilitar que o vencedor não tenha
qualquer dano em seu patrimônio com a ação,
Élio Wanderley de Siqueira Filho é Juiz Ft.'lieml na qual obteve um pronunciamento jurisdicio-
Substituto Auxiliar da 3" Vara - PE. nal favorável. Se se atribui ao advogado tanto

137
os honorários advocatícios contratuais como Em segundo lugar. tem-se, no inciso IV; ain-
os judiciais. é evidente a sançilo patrimonial da do referido art. 269. a menção aos institutos
sofrida indevidamente pela parte vitoriosa. O da prescrição e da decadência. Também neste
que se pretende é oferecer à parte vencedora. particular, não se pode dizer, sem leviandade,
através da condenação à verba honorária, sub- que se está diante de uma sucumbência. In casu,
sidios financeiros para que possa pagar ao seu o julgador não julga. efetivamente. nem proce-
advogado. Constata-se. pois, de plano, a im- dente nem improcedente o pedido. O deferimen-
propriedade da nova regrn legal. to da pretensão fica obstaculizado por uma
Feita tal avaliação preliminar, impõe-se aven- questão meritória, mas 010 intrinseca ao seu
turar em divagações filosóficas sobre o que vêm teor, qual seja, a ocorrência das extintivas da
a ser os conceitos de ''partes vencida e vence- prescrição e da decadência. Por motivo alheio
dora", bem como sobre o que se deve entender às vontades das partes. consignado DO orde-
por "sucumbência". A descriçãojuridico-posi- namento juridico pátrio. o processo chega ao
tivada não traz maiores luzes a tais indagações. seu término, sem que se possa reputar sucum-
Há que se perquirir se a sucumbência hábil a bente uma das partes. considerando que não
acarretar os ônus concernentes às despesas se acolheu. nem se rejeitou o pedido formulado
processuais e aos honorários advocaticios é a pela suplicante.
processual 00 a substancial. Distinguem-se, de Finalmente, no que pertine ao inciso V do
plano, as figuras da extinção do feito com ou citado dispositivo legal, também não se con-
semjulgamento do mérito. substancia um pronunciamento em que se con-
Quando O pronunciamento jurisdicional é fira a imputação a qualquer das partes da quali-
emitido com fulcro no art. 269, I e lI, do Código dade de sucumbente. Se o autor renuncia ao
de Processo Civil. ou seja, por ser acolhido OU direito sobre que se funda a ação, pratica, nos
rejeitado o pedido do autor, ou por reconhecer casos em que tal postura é admitida. um ato de
o réu a procedência do pedido. 010 resta dúvi- mera liberalidade, não se podendo identificá-lo
da que se está diante de uma hipótese em que como sucumbente, diante do réu. pela mesma
uma das partes sucumbe diante da adversária. razão exposta quanto à figura da transaçAo.
Aliás. quanto ao mencionado inciso lI, é pe- Constata-se, pois, claramente que nestas três
remptório ocomando exarado no art. 26 do mes- situações há dificuldade em se vislumbrar uma
mo diploma legal. Já quanto aos incisos m, IVe das partes como sucumbente, dentro da con-
V, permitem-se alguns devaneios acerca da te- cepção terminológica mais adequada da expres-
mática em apreço. são.
m.
Em primeiro lugar, J'q)Ol1Oome ao item que
Quando se parte para a extinção do feito,
alude à hipótese de transação. Em verdade. a
transação pressupõe a mútua rent)ncia de inte- sem apreciação do mérito, ai sim é que grassa a
resses entre as partes litigantes. A medida em impertinência da imputação dos ônus sucum-
que há uma posição de mera liberalidade dos benciais. Se não se chegou a verificar que. efe-
contendores. na hipótese em que isto seja ad- tivamente. merecia a chancela judicial, se a pre-
mitido pelo ordenamento juridico pátrio, não se tensão deduzida pelo autor ou a resistência 0fe-
pode afirmar. sem que se esteja esvaIando para
recida pelo réu. como se pode visualizar um
uma imprecisão, que uma das partes sucumbiu deles como vencido diante do outro ? Esta in-
diante da outra. O tratamento da questão pela dagação fica sem resposta. desafiando os in-
norma positivada foi explicitado no § 2. 0 do já térpretes do ordenamentojuridico pátrio. O art.
citado art. 26. Por simples concessão da regra. 26. § 2. 0 da Lei Adjetiva Civil registra que. se o
estabeleceu-se que, silente o acordo, as despe- processo terminar por desistência do pedido.
sas seriam divididas, equitativamente, entre as as despesas e os honorários serão pagos pela
partes. Não se reportou aos honorários advo- parte que desistiu. Dito comando não satisfaz.
eaticios. Na realidade, se as partes transigiram, Quem desiste não sucumbe, necessariamente.
não se pode, a rigor. tecnicamente, se afirmar vez que pode, como. diga-se de passagem. nas
que qualquer uma delas sucumbiu. Muito me- demais hipóteses de extinção do feito, semjul-
nos. até por uma injunção lógica. é impossivel gamento do mérito (exceto a prevista no art.
dizer que ambas sucumbiram. Há. pois, apesar 267, V, do CPC), renovar o pedido em nova de~
da regra expressa do Código de Processo Civil, manda.
nebulosidade na configuração de uma sucum- Como a sucumbência. conceitualmente. re-
bência propriamente dita. clama uma substancial vitória de urna das par-

138
tes, devem ser consideradas, para o efeito de da piores. Para que uma pessoajuridica de di-
imposição de ônus, tão-somente as situações reito privado possa ajuizar uma demanda, há
descrítas no art. 269, I e lI, da Lei Adjetiva Civil. que demonstrar, de plano, que existe no mundo
A sucumbência, nO caso, apenas será a subs- jurídico e que o signatário do instrumento pro-
tancial, e não a meramente processual. Destar- curatório tem poderes estatutários elou legais
te, salvo se for traçado novo perfil da definição para representá-la. Se, embora instada a fazê-lo,
do instituto, a rigor, somente nas duas hipóte- a parte não comprova que dito signatário pos-
ses indicadas, pode-se considerar, efetivamen- sui estes poderes, gera-se um contexto que, fa-
te, uma das partes como sucumbente. talmente, conduzirá à inviabilização do prosse-
Partindo deste enfoque, firma~se, de pron- guimento do feito, até os seus ulteriores ter-
to, um posicionamento contrário ao dimensio- mos. Se este signatário for alguém completa-
namento excessivo que se procura emprestar mente alheio aos negócios sociais, que, de má-
ao termo "sucumbência", fulcrado tal posicio- fé, esteja pretendendo causar-lhe prejuízo, como
namento nas peculiaridades intrínsecas à pro- se pode imputar o pagamento das verbas con-
pria estrutura conceitual da aludida expressão. cernentes à sucumbência à pessoa jurídica?
E, na vivência prática, o exegeta depara, em cer- Por outro lado, pode acontecer de uma pes-
tas ocasiões, com controvérsias de dificil, se- soa jurídica ingressar com uma ação, sem decli-
não impossível, deslinde, à luz da interpretação nar seu domicílio e sem comprovar a sua exis~
ampliativa ora repelida. Em seguida, relJOrtar- \ência, com os registros t.tJmeTtlais QU civls
se-á a ditas controvérsias, de certo já conheci- pertinentes. Concedido prazo para a correção
das de inúmeros julgadores. do vício e inerte a parte interessada, como deve
É evidente que a parte se "presenta" nos se posicionar o magistrado? Logícamente, se a
autos através de seu advogado constituído pessoa jurídica inexiste (pelo menos é o que se
mediante o competente instrumento procurató- depreende do que dos autos consta e, ao que
rio. O defeito na representação, como é do co- se sabe, o que não está nos autos não está no
nhecimento geral, em regra, pode ser sanado, mundo), quem arcará com os ônus sucumben-
cabendo ao magístrado conferir à parte esta ciais? O seu advogado? Não, porque não há
oportunidade. Não se desincumbindo o inte- mandatário sem mandante. Cuida-se de uma
ressado deste mister, decorre, pleno jure, a in- pergunta que ficará sem resposta.
viabilização da constituição da relação juridi-
co-processual, inexistindo pressuposto funda- Vê-se, portanto, que não é de tão simples
mental, de índole subjetiva, da dita constitui- deslinde a questão dos ônus sucumbenciais,
ção. Sem capacidade postulatória, será inviável
como, à primeira vista, para o analista desavisa-
alcançar a prestação da tutela jurisdicional, de do, possa parecer. Acrescente-se, ainda, a hi-
caráter meritório.
pótese de extinção do processo, por perda de
objeto. Em algumas circunstâncias, pode ser
Suponha-se, por exemplo, que não se tenha atribuída dita perda à responsabilidade de um
demonstrado que a assinatura lançada no ins- ou outro litigante, ao qual incumbirá, via de
trumento procuratório tenha partido do punho consequência, os ônus sucumbenciais. Em ou-
do suposto constituinte autor, através do me- tras, a análise meritória fica prejudicada por fato
canismo apropriado do reconhecimento carta- completamente alheio à vontade e à consciên-
rário da finna. Em não sendo corrigida a irregu- cia das partes. Mais uma vez, resta o magistra-
laridade, no prazo legal, sucede-se a extinção do atado, sem ter como impor a um ou a outro o
do feito, semjulgamento do mérito. Sobre quem pagamento das despesas processuais e hono-
recairão os ônus sucumbenciais? Ao advoga- rários advocatícios.
do? É evidente que não, vez que não está; habi-
litado p'cla suposta parte interessada. A dita Eis um tema a ser pensado e discutido no
parte? É óbvio que também não, já que não seiojudicial. O ordenamento jurídico não escla-
manifestou sua vontade em constituir o signa- rece. A apreciação da expressão "sucumbên-
tário da petição inicial, pelo menos do que se cia" , a teor de suaconcepção terminológica, em
depreende do fato da assinatura não ter sido cotejo com o seu enfoque dentro de um encaixe
reconhecida em Cartório, comprovando-se, compatível com a análise axiológica e teleológi-
quantum satis, o exercício de tal prerrogativa. ca do texto nonnativo, não satisfaz. Partindo,
Note-se, pois, o quanto complexa se toma a como se partiu, da visão estrita do tenno "su-
solução da questão. Mas existem situações ain- cumbência", não desautorizada pela hennenêu-
tica jurídica, diante do contexto vivenciado na
139
espécie, tem-se que, salvo quando o magistra- dida reamhece a procedência, não se pode, ex-
do julga, efetivamente, procedente ou improce- ceto se subvertendo a lógica. condenar qual-
dente o pedido ou quando a parte adversa alu- quer das partes aos ônus sucumbenciais.

140
Das Disposições Constitucionais
Transitórias
(uma redução teórica)

Ivo DANTAS

sUMÁRIo
1. Importância do tema. 1.1. NOl'a Constihtição
e as situações anteriores. 1.1. Frmções das Disposi-
ções Trmu;tórias. 1.3. Técnica Legislatim e Dispo-
sições Transitórias. 1. Conceito de "Disposiçães
Gerais" e de "Disposições Transitórias". 3. O Di·
reito Constihlcional Brasileiro, o Direito Estrangei-
ro e as ,.Disposições Transitórias ". A dOlltrina bra-
sileira e o eshldo do tema. 4. C oncltlsàes.

l.Importância do tema
O estudo das denominadas Disposições
Transitórias Constitucionais comporta, em
nosso modo de entender, a elaboração de uma
Redução Teórica. que. conrndo. ainda não des-
pertou as atenções dos estudiosos nacionais
do Direito Constitucional.
Assim, enquanto alguns se limitam a uma
análise seqüenciada dos assuntos que as com-
põem no texto jurídico-positivo, outros. inclu-
sive, em "manuais" ou "comentários", nem nes-
sa perspectiva enfrentam a matéria, apesar de a
prática nos ensinar, seja ele de capital impor-
tância, sobretudo, quando tomado em seu ver-
dadeiro sentido. e não. com objetivos fisiológi-
cos ou para atender interesses pessoais de al-
guns responsáveis por sua elaboração.
A constatação do que ora se afirma poderá
ser feita ao longo da leitura dos artigos que as
compõem, visto que a atual Constituição de
1988, em seus 70 artigos (versão originária) in-
cluiu matérias que. por mais boa vontade que
tenha o intérprete, não justificam sua elevação
ao nível constitucional, mesmo que levada a
Ivo Dantas é Doutor em Direito Constitucional extremos a teoria das denominadas Constitui-
- UFMG. Livre Docente em Direito Constitucional
- DERJ. Professor da Faculdade de Direito do Reci- 1 Capítulo do livro Constituição Federal - Teoria
fe - UFPE (Mcstrado e Grndullçl'lo) e Advogado. e Prática - (Editora Renovar, RJ, vol. IV), em preparo.

. . .ua a. 32 li. 12fj . . .JJ.... 1885 141


ções Analíticas. tituição de Weimar, arts. 166 e seguintes -, como
Em decorrência da omissão quanto ao estu- também, na parte pennanente de algumas C0ns-
do das Disposições Transitórias, sérios proble- tituições, se inserem nonnas transitórias, como
mas deixam de ser enfrentados, o que se reflete sucedia em nossa Constituição de 1891"1.
no mundo das relações jurídicas privadas ou Ressalte-se que tanto a Constituição Fran-
públicas, como ocorreu com as Ações Diretas cesa de 1958. quanto a Constituição Portugue-
de Inconstitucionalidade (n.o, 829.830 e 831) sa de 1976, seguem a mesma técnica da referida
que objetivavam impedir a antecipação da con- Constituição de Weimar (1919).
sulta plebiscitária prevista no art. 2.° do ADCT Em artigo intitulado Sobre as Normas Cons-
da Constituição Fedeml de 5.10.1988. julgadas titucionais, doutrina Palhares Moreira Reisl:
em conjunto pelo STF, tendo sido Relator O Min. "Sobre regra constitucional transitória, que por
Moreira Alves. vezes vem no próprio texto constitucional, a
lição maior é a de Gustavo Capanema, quando
1.1. Nova Constituiçilo e as situações an- deputado constituinte em 1946. Segundo sua
teriores emenda ao texto constitucional proposto (n. a
Visando analisar o assunto sob Oponto de 3.616) deveria, em vez de um titulo especial da
vista teórico, devemos enfrentar três questões Constituição. ser feita uma lei constitucional
preliminares, a saber: especial. denominada lei constitucional transi-
a) relação existente entre as Disposições tória.
Transitórias e a Constituição; Na sua justificação, disse: as disposições
b) funções das Disposições Transitórias; transitórias. em regra, têm curta duração. SIo
c) técnica legislativa utilizada na redação das preceitos que logo deixam de ter aplicaçlo. In-
DisposiQÕCS Transitórias. corporá-los ao texto constitucional, destinado
a vigorar indefinidamente. nao é de boa técnica
A primeira das questões pode ser apresen-
J......l ; ca" .
tada sob a forma interrogativa: as Disposições
Transitórias integram a Constituiçilo ou silo 1.2. Funções das Disposições Transitórias
um conjunto de normas independentes? No tocante àFunçiJo das DisposiçDes 1hm-
Cremos nós que as Disposições Transitóri- sitórias, é de trazer-se à análise um aspecto
as são parte integrante do textO constitucional, pertinente à Teoria da Constituição, qual seja
a ponto, inclusive, de que qualquer uma das aquele que se refere à supralegalidade do texto
suas nonDas só poderá ser alterada pelo mes-- constitucional frente às demais nonnas que
mo processo de emenda previsto nas Disposi- compõem o ordenamento juridico.
ções Permanentes (CF, 1988, art. 60). Como afirmamos em nossos livros Poder
Como Relator daADIN n. 0833- JDF, escre- Constituinte e RevoJuçilo - Breve Introduçilo
veu o Min. José Carlos Moreira Alves que "não à Teoria Sociológica do Direito Constitucio-
tem sentido pretender-se que o ato que as con- nat4 e Constituiçilo Federal - Teoria e Práti-
tém seja independente desta, até porque é da cw, sendo a Constituição resultado de um HIa-
natureza mesma das coisas que, para haver ex- to Constitucional (não necessariamente rev0-
ceção, é necessário que haja regra, de cuja exis- lucionário, no sentido sociológico), a partir do
tência aquela, como exceção. depende. A enu- qual a sociedade, geralmente, estará subordi-
meraça:oautônoma, obviamente, não tem o con- nada a um novo modelo constitucional, cum-
dão de dar independência àquilo que, por sua pre às Disposições Transitórias, exatamente,
natureza mesma, é dependente". equacionar, pelo menos, três situações :
E prossegue: "A autonomia da numeração a) aplicação do "novo Direito";
se justifica por motivo de ordem prática: o de b) regular a situação de detenninadas nor-
evitar, no texto permanente da Constituição, mas de Direito Público;
dispositivos que, exaurida totalmente sua efi-
cácia provisória, perdem a vigência. Há exem- 2 Texto xcrografado, fornecido pelo Min. Moreira
plos. POrém. de Constituição que, em seu titulo Alves ao autor, pp. 5~.
final, com numeraçlo que continua a da parte J "Informativo Consulex", Ano VIII, n.o 22.
pennanente, apresentam dispositivos transitó- 30.5.94, p. 543.
rios cujo cotlteúdo, as mais das vezes. é de di-
reito intertemporal-asmn, por emnpIo, aCons- 4Ed. Jalovi, 2.- cd., 1986.
5Ed. Renovar, vol. L 1994.
• 42 11• .".1. li••ntor....... 1.. .,_.."••
c) estabelecer normas referentes a situações aquele colegiado que, na hipótese, "para efeito
que serão objeto de legislação infra--constituci- do controle direto e concentrado de constituci-
onal posterior. onalidade a representação sejulga prejud.icada"8.
A aplicação do novo Direito, com a perma- Outro tipo de situação poderá surgir: na vi-
nência de situações jurídicas (de direito priva- gência da Constituição anterior, praticaram-se
do ou de direito público) constituídas anterior- atos marcados pela constitucionalidade, que
mente, ou seja, à luz do ordenamento constitu- não existiria se considerado o novo texto cons-
cional substituído, refere-se, no dizer de Pon- titucional. Como resolver esta situação?
tes de Miranda em seus Comentários à Consti- Detalhe importante a ser lembrado, é que os
tuição de 1967 com a Emenda n. 01, de 1969,6 atos juridicos são regidos pela lei vigente à ép0-
ao Princípio da Continuidade da Legislação, ca de sua prática. Ademais, o principio consti-
a propósito do qual escreve: "O principio da tucional do direito adquirido, ato jurídico
continuidade da legislação, a despeito da perfeito e coisaju/gada é mandamento univer-
mudança de Constituição, apenas traduz a ne- salmente aceito, dele não escapando o sistema
cessidade de se evitar o 'vazio jurídico' (o vá- jurídico brasileiro.
cuo): já os habitantes contavam com a estabili-
dade da ordem jurídica, que não dependia de- A propósito, demos novamente a palavra a
les~ a anterioridade não se impõe contra as
Pontes de Miranda que, ao referir-se a um outro
regras posteriores que sejam contrárias às an- principio - da imediata incid.ência das regras
teriores, mas enche o que, no tempo futuro, está constitucionais - doutrina: "E princípio básico
vazio". o principio da imediata incidência das regras
jurídicas constitucionais, salvo se a própria
Destaque-se que a vigência de um novo Com1ituição protrai a incidência de alguma ou
modelo constitucional cria, em relação às nor- de algumas das suas regras jurídicas, ou se a
mas anteriores, duas possibilídades: na primei- retrotraí. Quando se diz que as novas Consti-
ra, se não há choque entre a norma inferior e a tuições incidem imediatamente e há, aí, princi-
nova Constituição, esta recepciona àquela; na pio inegável, de modo nenhum se enuncia que
segunda, se entre ambas existe choque, há de as novas Constituições têm retroatividade e que
prevalecer o conteúdo da Lei Maior. o principio do respeito aos direitos adquiridos,
Cabe, por oportuna, uma observação: na à coisa julgada e aos atos jurídicos perfeitos
primeira situação, não se há de falar em incons- não exista para as Constituições. O que aconte-
titucionalidade, mas, sim, em revogaçiJo de ce é que à própria Constituição ficou a possibi-
toda legislação anterior que lhe seja contrária, lidade de afastar, explícita ou implicitamente, o
conforme pacificas posições doutrinária e ju- princípio do que surgira em virtude de incidên-
risprudencial, inclusive do Supremo Tribunal cia de lei anterior, inclusive de Constituição. Ai,
Federal, segundo se verificado Acórdãoprofe- a Constituição, que poderia protrair a sua inci-
rido na ADIN n.00000074/927 : dência, como ocorre com a Constituição de 1967,
"A incompatibilidade vertical, super- explicitamente a retrotrai"9.
veniente de atos do poder público, em Pois bem, o texto de 67 ~9 (como os anterio-
face de um novo ordenamento constituci- res) consagrava o respeito ao "direito adquiri-
onal, traduz hipótese de pura e simples re- do, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada"
vogação dessas espécies jurídicas, posto (art. 153, § 3.°), no que foi seguido pelo modelo
que lhe são hierarquicamente inferiores". vigente (art. 5.°, XXXVI). Manteve-se, portan-
Este posicíonamento por parte do STF tem to, o mandamento, ndo havendo quebra de
uma explicação, qual seja a de que lhe compete continuidade.
ser "Guardião da Constituição" em vigor. Em Entretanto, nada impede que a Constitui-
decorrêncía - como se disse - se a matéria dis- ção nascente exclua, desta proteção, algumas
cutida dá-se em relação ao texto constitucional situações concretas e expressamente mencio-
anterior, restam duas alternativas: ou foi pelo nadas, visto que, conforme lição do Min.
novo texto recepcionada, ou encontra-se revo- Thompson Flores lO , "inexiste direito adquirido
gada. Em ambas as hipóteses, tem entendido I Veja-se, a propósito, o [)J de 25.11.88, onde
existem dezenas de deçi!lÕes, todas neste sentido.
6Ed. Forense, 1987, Torno VI, p. 379.
7 Publicada no DJ (25 .09.92), Relator Min. Celso
90b. cit., p. 385.
de Mello. IORTJ 71/461.

" ' ' '••. 32 n. 128 . .JI.... 1_ 143


contra a Constituição Federal. Mas, para tanto, outubro, só vigorou a partir do dia 30 do IDeS-
mister se tomaria que ensejasse ela, e não as mo mês.
Cartas locais, esta conclusão, pois é ela própria Preccupado com esta questão, Raul Macha-
que assegura, como garantia individual, o direi- do Horta, em texto que reproduz conferência
to adquirido. Esta, de resto, é a orientação do pronunciada no "Curso de Atualizaçlo sobre a
Supremo Tribunal Federal" (RE n.o 74.284, in Constituição Federal de 1988" e intitulado Ato
Ementário 91512; 74.534, idem 915/2 e 75.102, das DisposiçiJes Constitucionais Transltóri-
idem 91112; RE n.o 75.418, AC STF Pleno). asll , escreve que
Neste sentido, entendeu de agir o constitu-
intede 87-88, filzendo.odejonna expressa, como "a incidência imediata da Constituiçfto
se constata do art. 17 (ADCT): acarreta a substituição da ordem consti-
tucional anterior pela impossibilidade da
"Os vencimentos, a remuneração, as coexistência no tempo e no esp89O, na
vantagens e os adicionais, bem como os condição de fonte e matriz do mesmo or-
proventos de aposentadoria que estejam denamento juridico estatal, de duas C0ns-
sendo percebidos em desacordo com a tituições, a antiga, que desapareceu. e a
Constituição, serão imediatamente redu- nova Constituição, que se torna o fun-
zidos aos limites dela decorrentes, não damento monistico de validez c da eficá-
se admitindo, neste caso, invocaçilo de cia do ordenamento jurídico do Estado.
direito adquirido ou percepção de exces- A Constituição nova, salvo no caso limí-
so a qualquer titulo" (destaque nosso). te de ruptura revolucionária radical, 1110
A segunda das funções por nós aponta- acarreta a supressão total do ordenamen-
das, objetiva regular a situaçilo de determina- tojurldico anterior. A técnica constituci-
das normas de Direito Público, principalmente onal elaborou soluções de acomodaçAo
aquelas que, não sendo recepcionadas pelo normativa, que afastam o colapso que
texto constitucional emergente, são por este adviria do vazio juridico: a recepçao do
contempladas com a previsiJo expressa de pro- direito anterior pela Constituição, a vi-
trairem-se, embora tempomriarnente, até que o gência da legislação anterior que nIo
novo texto passe a ter aplicação e eficácia. contrariar as disposições da nova Cons-
Foi o que sucedeu, por exempro, com o Sis- tituição e as normas de transição para
tema Tributário Nacional anterior a 1988, que regular situações discrepantes das nor-
teve sua vigência protraida sob o novo modelo mas constitucionais permanentes" 12.
constitucional, a teor do que prescreveu o Mais adiante, arremata Machado Horta:
ADCTemseuart 34:
"o distanciamento entre normas de tran-
"O sistema tributário nacional entra- sição, para garantir O direito anterior, e
rá em vigor a partir do primeiro dia do constituição, fundamento supremo do
quinto mês seguinte ao da promulgação novo Direito, desfez-se a partir do m0-
da Constituição, mantido, até entilo, o mento em que a Constituição incorporou
da Constituiçilo de 1967, com a reda- ao seu conteúdo material as disposições
çilo dada pela Emenda n. o 1. de 1969, e transitórias, com a função de regular a
pelas posteriores" (destaque nosso). permanência de situações anteriores à
Sendo impossível a substituição imediata vigência da Constituição nova. A formu-
de uma ordem por outra, o texto constitucional lação do Direito Privado ingressou no
previu, de forma expressa, uma vacatio legis, Direito Público"]).
exatamente para que oaparelho estatal tornas- Finalmente, cabe às DisposiçiJes Transitó-
se possivel a aplicação e eficácia do novo re- rias fixar, com vig~ncia provisória, determi-
gramento. nadas situaçDes que deverilo ser objeto de le·
A previsão de vacatio legis constitucíona- gislaçilo infra-constitucional própria, do que
lis, embora não seja técnica usual, aconteceu são exemplos, dentre outros, OS arts. 10, 27, §
entre nós com o texto constitucional de 1967, 7.°,29,55, 56e70, todos da Constituição Brasi-
repetindo-se com a EC n.o 1/69. visto que o pri- 11 Publicada na "Revista da Faculdade de Direito
meiro, tendo sido promulgado em 24 dejaneiro, da UFMG" v. 33, 1991.
somente entrou em vigor a 15 de março de 1967,
enquanto a EC n.o 1169, promulgada em 17 de nOb. cit., pp. 191-192.
I)Idem, p. 193.

fU
leirn de 5.10.88 (ADCT). passageiro.
1.3. Técnica legislativa e Disposições Tran- São situações de direito ou de fato
sitórias que, embora transitórias, não devem nem
No aspecto referente ã técnica legislativa podem ser, por isso mesmo, descuradas
utilizada pelas Disposições Transitórias, é de pelo legislador. . .
ressaltar-se que a matéria nelas inserida ~o t~ Dado esse seu caráter - de translton-
obedecido à mesma fonnulação das DIsposl- edade - não seria admissível tratá-las no
ções Pennanentes. vale dizer, não se e~nt~m texto do ato da ordem legislativa, nem
os assuntos distribuídos de forma diferenCIa- promiscuí-las com o arti~ado ,efetivo
da, igualmente não existindo "Títulos", "Capí- deste, pois, uma vez atendlda a SituaçãO
tulos" ou "Seções". ou o caso especial, o dispositivo deixa
Toda a matéria que lhe compõe é apresenta- de interessar: é absorvido pelo tempo ou
da sob forma de "artigos", "incisos" e "pará- pela consumação do fato previsto" - con-
grafos". clui.
Referindo-se à matéria, escreve Mayr
2. Conceitos de "Disposições Gerais" e de Godoy 17:
"Disposições Transitórias"
"nem todos os dispositivos legais são
Em sua parte permanente costuma a maioria
grafados com a idéia de perenidade. Al-
das Constituições fazer referência às "Disposi- guns vão para o texto com vida curta,
ções Gerais", definidas por Pinto Ferreira em
apenas para regular urna situação passa-
seu Curso de Direito Constitucional14 como
geira, criada muitas vezes com razão ~e
"normas que interessam a todo o corpo da Cons-
condições díspares da lei nova e do di-
tituição, não sendo assim objeto de um capítu- reito anterior.
lo especial".
Essas são as disposições transitóri-
Ao contrário das Disposições Transitórias.
as ou provisórias, que vigem enquanto
que trazem em si um sentido de temporalidade, não se esgota, no tempo, a razão de te-
de passagem, de adaptação, as Dispo~ições rem sido criadas".
Gerais são aquelas que "abrangem vános as- Plácido e Silva, no Vocahulário Juridico l8,
pectos comuns e repetitivos", como observa
é taxativo:
Mayr Godoy na monografia Técnica Constitu-
inte e Técnica Legislatival~. "É a regra jurídica que se estabelece
em uma lei, em caráter temporário, para
Topograficamente, são colocadas ao final regular negócios ou casos que se apre-
do texto permanente e antes das "Disposi~s sentam pela sua própria promulgação.
Transitórias", mantendo a numeração sequen- Não têm, pois, vigência duradoura, E
ciada de seus artigos com relação às "Disposi- se extinguem tão logo se reajustam ou se
ções Permanentes", mas com uma particulari- liquidam os casos por ela previstos, den-
dade: não se encontram divididas em "Títulos", tro do prazo que ela mesma estipula".
"Capítulos" ou "Seções", no ~e, n~e.ponto, Pedro Calmon, em seu Curso de Direito
se assemelham às Disposlçôes I ransltónas, sob Constitucional Brasileiro - Constituiçao de
o ponto de vista da Técnica Legislativa. 194619, ensina:
Hésio Fernandes Pinheiro no seu já clássi-
co livro Técnica Legislativa - Constituiçtlo e "charnam-se Disposições Transitórias as
Atos Constitucionais do Brasi/16, preocupan- que têm prazo curto de ~~, ao co~­
do-se com as Disposições Transitórias, ensina trário das normas constltuClOnatS propn-
amente ditas, que são permanentes e inal-
que
teráveis até a reforma ou a revisão do
"na fase de transição de um sistema legal
texto. Nelas se reúnem as providências
preestabelecido e aquele determinado por complementares, medidas de emerg~
um novo ato da ordem legislativa, situa-
decisões que não teriam, por sua espécIe
ções aparecem que exigem imediata.dis-
transitória, lugar e oportunidade entre os
ciplina, porém, com caráter especJaI e preceitos da Constituição, e até - o que é
I'Ed. Saraiva, 1993,6,' ed., p. 647. I?Ob. cít., p. 147.
15Ed, Leud, 1987, p. 145. 1BEd. Forense, 1987, 1/01. ll, p. 103.
16Liv. Freitas Bastos, 1962,2,' 00" p. 121. 19Ed. Freitas Bastos, 1954, 3,' ed., p. 341.

. . .,,__.32 n. 12f1 ...../Iun. 1995 145


mau - regras que a modificam", Os textos de 1967 e J969 (a denominada
Finalmente, FilJippo Pestalozm, no verbete, Emenda Constitucional n° I), uniram as duas
"Disposizioni Transitorie", escrito no Nuovo em um só bloco, tendo-lhe dedicado os arts.
Digesto Ita/iano'lO, afirma: 173a 189 (l967)eosarts. 181 a217(ECn.° 1169).
A Con.-rtituiçi1o de 5 de outubro de 1988
"Sono la voce disposizioni transito- separa as "Disposições Constitucionais Gerais"
rie si deve interdere quel complesso de (Titulo IX -arts. 233 a 245) do "Ato das Dispo-
nonni e di principi che regolano ineffica- síçôes Constitucionais Transitórias", originari-
cia della legge nel tempo". amente compostas de 70 artigos, aos quais, por
Em última análise, portanto, as disposições força da Emenda Constitucional de Revislo n.O
transitórias funcionam, principalmente, como I, de 1°.3.94. foram acrescidos os arts. 71, 72 e
Pri.ncipios de Direito Intertemporal, podendo- 73, referentes ao ''FundoSocia1 deEmergência".
se mdicar, além dos autores referidos, os estu- N~ Dúdto Constitucional Estrangeiro, podo-
dos de Wilson de Souza Campos Batalha no se verificar que, se nem todos os textos a 008-
livro Direito /ntertemporafl 1e José Alfredo de sagram, como é o caso da Constituiçlo Italiana
Oliveira Baracho, Constituiçdo Nova e Ordem de 1947, a grande maioria, embora com conteú-
Jurldica Anterior22, para cujos trabalhos re- do diferente, dedica-lhe atenção e refere-se às
metemos os leitores. disposições de que ora nos ocupamos.
3. O Direito Constitucional Brasileiro. o Di-
reito Estrangeiro e as "Disposições TransitÓl'i- A Constituiçi1o da Espanha (1978) fala em
as", A Doutrina brasileira e o estudo do tema "Disposiciones Adicionales" e "Disposiciones
T~itorias", as primeiras com apenas quatro
Os textos constitucionais brasileiros exce- artlgos e as segundas contando com nove arti-
çao feíta à Carta Política de 1824, de uma'1õnna gos. Ao lado destas. consagra o texto dois ou-
ou de outra. sempre consagraram as denomina- tros tipos de disposições, a saber: "Disposici-
das DisposiçiJes Gerais e Disposições Transi· ón Derogatoria" e "Disposición Final".
tórias.
A ConstituiçlJo de Portugal, na redação
Assim, a Carta de J824 apenas tratava das ~da pela 3.· Revisão, englobando as "Dispo-
"Disposições Gerais" em seus arts. 173 a 179 Sições Finais e Transitórias", refere-se no art.
nelas incluindo o conceito do que seria maté~ 290.°, expressamente, ao Direito anteriol" nos
ria constitucional (art. 178) e as Garantias dos seguintes termos: '
Direitos Civis e Politicos dos Cidadi'Jos Brasi-
leiros; a Constituiçi1o de 1891 fixava as "Dis- "I. As leis constitucionais posterio-
posições Gerais" em seus arts, 79 a 91, enquan- res a 25 de abril de 1974 do ressalvadas
to as "Disposições Transitórias" constavam de neste capitulo são consideradas leis or-
8 artigos, estnltura esta que do foi atingida dinárias, sem prejuízo do disposto no
pela Emenda Constitucional de 1926; a Consti- número seguinte.
tuiçi10 de J934 mantinha a divisão do texto de 2. O direito ordinário anterior à entra-
1891 e dedicava às "Disposições Gerais" os arts. da em vigor da ConstituiçAo mantém-se
174 a 187, e às "Disposiçaes Transitórias" os desde que não seja contrário à Consti:
arts. 1.0 a ~6.0; a Carta Politica de 1937, por tuição ou aos principios nela consigna-
nÓS denommada de Constitucionalismo Apa- dos".
rente no livro Direito Constitucional e Insti- Evidentemente, esta segWlda determinaçao
tuições Politica?, em razão de que seu texto seria totalmente dispensável, tendo-se em con·
nunca entrou em vigor, englobou as "Disposi. ta o Principio da Supralegalidade Constitu-
ções Transitórias e Finais" em seus arts. 175 a cional.
187; a Conslí/rtíçi1o de 1946 dedicava às "Dis- A Corrstiflliçilo da França, promulgada em
posições Gerais" os arts. 195 a 218 e às "Dispo- 4.10.1958, no seu 1itre XJ.7 utilizando a numera-
siçaes Transitórias" 36 artigos, ção das "Disposições Permanentes". consagra
a expressão "Dispositions Transitoires", com-
10 A cura di Mariano D'Amelio - Unione Tipo-
gráfICO - Editrice Torínesc, 1938, XVl- vol. V, p. S3, postas dos "artieles" 90 a 92, enquanto a recen-
te Lei Maior Argentina (25,8.94) contém a ex-
%1 Forense, 1980, pressilo "Disposiciones Transitarias", compos-
n Jornal Minas Gerais, órgão oficial do Estado tas de 17 cláusulas.
lie Minas Gerais, 13.9.88. Como se vê, a nivel de direito positivo Dlo
23Ed. Jalovi, 1986, p. 117. há, no direito estrangeiro, um modelo ou uma
linha de Técnica Legislativa sempre seguida, posições Transitórias.
justificando, desta fonna, um estudo teórico que Assim, uma análise completa de qualquer
ainda está por vir. artigo constitucional terá de ser uma análise sis-
4. Conclusões têmica, cruzada, tal como temos defendido ao
Com estas considerações de ordem concei- longo de nossos estudos, sob pena de uma vi-
tual·teórica, embora breves, tivemos em mente são acanhada e limitada, não passível de ser
introduzir o leitor na dimensão verdadeira das inteligível em toda a sua dimensão.
Disposições Constitucionais Gerais e do Ato Se a Constituição de um Estado é a espécie
das Disposições Constitucionais Transitórias legislativa que mais sofre as influências políti-
dentro de uma Constituição, onde, fazendo par- cas e ideológicas, além das históricas, nela, as
te de seu texto, suas normas gozam da mesma Disposições Transitórias servem (e a repetição
importância e autoridade que as demais, por isto é proposital), exatamente, para proceder à subs-
mesmo, carecendo, como aquelas, de um trata- tituição de um texto pelo outro (apesar do aci-
mento científico, qual seja o correto uso das ma analisado Principio da Imediata 'Vigência
regras de interpretação, a qual deve estar alheia das Constituições), sobretudo, quando o no-
a valores pessoais e, portanto, subjetivos. vel ordenamento não resultou de uma ruptura
Disposições Permanentes e Disposições social e política profunda (no sentido socioló-
Transitórias muitas vezes se completam para gico entendida como "revolução"), nem alte-
uma correta compreensão da matéria, oferecen- rou substancialmente o ordenamento jurídico
do as primeiras os conceitos necessários para a nacional.
aplicação, marcada pela temporalidade, de de- Neste sentido, observa Pinto Ferreira: 24
terminações contidas nestas, como, por exem- "Diversas Constituições do mundo
plo, e dentre muitos outros, no texto de 1988, o têm o seu corpo de disposições consti-
conceito de Juros Legais referidos no art. 47 tucionais transitórias, como por exemplo
das Disposições Transitórias, mas cuja com- as Constituições alemãs de 1871 e 1919;
preensão haverá de ser buscada no art. 129 pa- outras assim não procedem, já que a sua
rágrafo 3. 0 das DisposiçõesPermanentes. nova organização politico-juridica muito
Por outro lado, os princípios referidos nas difere do regime anteriormente estabele-
Disposições Permanentes, muitas vezes, sofrem cido, com o qual rompe de maneira revo-
exceçõesexpressamente mencionadas nas Dis- lucionária".

2-40b. cit., p. 648.

ar""'__.32 n. 128 ""'JJUIt. 1895 147


Notas sobre a exegese do artigo 102, I, n,
da Constituição Federal

ANlôNlO VllAl RAMOS Df. VASCONCELOS

sUMÁRIo
I. Introdução ao tema: a ino'Wlção: as duas hi-
póteses; a restriçãojurisprudencial. 2. Interesse pe-
culiar da magistral1lra: o interesse do fimcionalis-
mo em geral: o conceito de interesse geral e pecu/íar
da magistratura nacional; as razões da competin-
cia originaria; a impossibilidade de discipJinação,
por legislação outra, dos direitos e deveres do ma-
gistrado; osprecedentes existentes; a vitaliciedade e
a licença-prêmio examinadas à luz de legislação lo-
cal. 3. O impedimento ou suspeição da maioria: hi-
pótese referente unicamente a "ação": as etapas
necessárias: exaurimento da cam'QCação de todos
os substitutos; inaplicabi/ídade a procedimentos
administrativos por questão de competênâa privati-
va do tribunal de origem. 4. Conclusão: evolução e
aprimoramento da jurisprudência sintonizada com
a vonlade do constituinte.

1. Introdução ao tema
Uma das mais significativas inovações da
Carta Política de 1988 resultou no prestígio, em
sede constitucional, de uma modalidade de ação
de competência originária do Supremo Tribu-
nal Federal, quando ocorrer interesse de todos
os membros da magistratura ou quando existir
impossibilidade de julgamento por qualquer tri-
bunal em decorrência de a maioria de seus mem-
bros estar impedida ou suspeita, por direta ou
indiretamente interessada no desfecho da de-
manda.
O teor dicotômico da alínea n do inciso I do
artigo 102 da Constituição Federal possibilita
distinguir duas modalidades de ação (ou recur-
50 - RTJ 131/949) que passam à competência
originária da Suprema Corte:
a) quando todos os membros da ma-
Antônio Vital Ramos de Vasconcelos é Juiz Fe- gistratura sejam direta ou indiretamente
deral aposentado. Professor. Advogado.
t49
interessados; e vo dosjuízes), haverá plena adequação ao per-
b) quando mais da metade dos mem- fil da demanda referida no art. 102.1, n. da Cana
bros do tnbwtal de origem estejam impe- da República.
didos ou sejam direta ou indiretamente Um dos pontos de partida, a trato do tema e
interessados. motivador desta incursão, prende-se á recente
A proliferação de demandas invocando a decisão ~o STF, na Ação Originária 269-9/SP,
ocorrência de uma das circunstâncias configu- em queJUíza federal substituta questionava ato
radoras da competência originária do STF fez do tribunal de origem que sobrestou seu vitali-
que com a Suprema Corte, de forma paulatina, ciamento. Deliberou o Ministro Francisco Re-
fosse aprimorando sua jurisprudência sob a di- zek, Relator, em decisão monocrática, deixar de
retriz de wna interpretação restritiva, de forma reconhecer a competêncía originária da Corte,
tal que.o entendimento hoje prevalente, para as ao fundamento de inexistir, no particular, inte-
duas hipóteses. pode ser assim sumariado: resse especifico da magistratura.
a) no primeiro caso, há necessidade
de que ocorra a discussão sobre direito No exame do relevante problema, afere-se
peculiar à magistratura, o que não pode que o núcleo do indeferimento repousa na ale-
ser confundido com direito que se esten- gação de que a decisão do TRF, suspendendo
de à generalidade do funcionalismo. Des- uma vitaliciedade já consumada pelo decurso
sa forma, deixaram de ser reconhecidas do ~iênio, não ~ria frustrando uma garantia
como da competência do STF causas em atnbuída aos magtstrados como taís. Para esse
que se discutia sobre vencimentos, cor- desiderato, o ínclito Relator invocou jurispru-
reção monetária de pagamentos atrasa- dência da Corte "no sentido de ser incompe-
dos, URP e tantas outras matérias con- tente para apreciar pedidos desta natureza, vis-
gêneres, por não dizerem respeito a tema to que inexiste, na controvérsia, interesse es-
especifico dos magistrados; pecifico da magistratura a justificar a invoca-
b) no segundo caso, há necessidade ção do mencionado dispositivo constitucional"
de que o impedimento ou a suspeição da (llJU de 3.3.95, p. 4119- (grifos nossos) indi-
maioria dos membros do tribunal de ori- cando três especificos precedentes em '.....-,
gem seja aferido depois de se esgotarem originárias. '"""""'"
todos os meios de convocação de subs- . A dicção co~~cional, no particular, pre-
titutos, até que resulte definitivamente VIU como ação ongtnária do STF aquela "... em
comprovado que a corte originária não q~ t~ os. membros da magistratura sejam
teria condições de julgamento da causa. dIreta ou mdIretamente interessados ...".
em razão do que necessariamente esta Dando interpretação ao preceito, a orienta-
passaria a ser de competência do Supre- ção da Suprema Corte tornou-se sólida, na es-
mo Tnbunal Federal. pécie, no sentido de limitar sua competência
Note-se, com a merecida ênfase, que quan- originária às hipóteses em que a ação tenha por
do a Constituição Federal confere ao STF com- objeto direitos, interesses ou vantagens pecu-
petência originária ou recursal, significa que o liares à magistratura (AOr. n. 08, Min. ~lloso,
órgão colegiado, como um todo, com sua com- RTJ 13813; AOr. n. 011, Min. Gallotti,RTJ 1281
475; AOr. 38, Min \W.oso, RTJ 138111; Pet. S06
posição constitucional, deve proceder ao jul-
gamento da ação. Por conseguinte, não pode a Min. Néri da Silveira; MS 0. 0 21.441. Mio. Gal:
matéria ser apreciada nem por qualquer de suas vão, entre outras).
Turmas. nem tampouco pelo relator, monocrati- ?'- a~o proposta buscava aferir, na soluçlo
camente, julgando o mérito de causa, corno in- da bde Instaurada, se a garantia constitucional
constitucionalmente dispõe a Lei n. o 8.038/90 davitaliciedade, assegurada pelo art. 95, inciso
em seu artigo 38, posto que a matéria é de com- I, da Constituição Federal. e disciplinada exau-
petência exclusiva da Corte Maior. rientemente pelo art. 22 da LOMAN (Lei Com-
2. O ;nteresse peCU#Ol"da mag;S/rafl/ra pJementar n. o 35n9), podia sofrer regramento
a) Análise de uma hipótese restritivo pelo regimento interno de um tribu-
Quando o objeto da demanda, de conteúdo nal, mormente acrescendo requisito novo.
constitucional e de manifesto interesse de toda Tal como configurada (criada pela Consti-
a magistratura nacional, tiver colorido próprio tui~o e disci:plinada pela LOMAN), essa ga-
de um direito peculiar (mesmo que não-exclusi- rantia de vitaliciedade indubitavelmente encaí-

1110 "...1.,. d. Infor. . . . . L"'.'''''"


xa-se na originária previsão constitucional, na lado.... " (grifos nossos).
medida em que toma todos os membros da ma- Decompondo as idéias, pela literalidade do
gistratura direta ou indiretamente interessados, dispositivo, em sua exposição sintática, tere~
tendo em vista que o tema constitucional é pe- mos dois períodos: O primeiro, de estágio pro-
culiar à magistratura. Não pode, por isso mes- batório durante dois anos de exercicio; o se-
mo, ser classificado como vantagem que se es- gundo, de aquisição de vitaliciedade pelo cum-
tenderia aos servidores em geral. primento dos requisitos constitucionais. O re-
A vitaliciedade, criada pelo art. 95, I, da gimento interno do tribunal, contudo, criou um
Constituição Federal e disciplinada integralmen- terceiro e inovador período, ou exigência: a de-
te pela LOMAN, constitui - sem margem de claração formal da Corte como condição sine
dúvida - um direito constitucional peculiar à qua reore pama aqul!>lçào daquela gaIantiawr.s-
magistratura, pois passou a ser objeto de regra- titucional. Portanto, a norma regimental restrin-
menta adicional por tribunais e tomou-se sus- giu e apequenou garantia específica do magis-
cetível de esdrúxula "suspensão", como no caso trado estatuída, de forma integral e com eficácia
concreto, depois de o magistrado ter completa- plena, no art. 95, I, da Constituição Federal.
do o biênio no regular exercício de sua ativida- Entremostram~se diversos os disciplinamen-
dejurisdicional. tos, de forma que a espécíe de vitaliciedade
Assim, o cerceamento, no particular, está disciplinada no citado art. 95, I, da Constituição
sendo exercitado por tribunal e em relação a Federal e secundada pela clareza do art. 22, 11,
juiz, situação que conduz a que o assunto seja a, da LQMAN (LC n. a 35179, recepcionada no
classificado como específico da magistratura particular) é típica, especifica, peculiar da ma-
(~sa mooal\dade de exercicio de vita\ideóade gistratura, na medida em que o prá.prio texto
está disciplinada em lei complementar à Consti- constitucional cuidou de estabelecer gradações
tuição - LOMAN) e não se estende â generali- (vitaliciedade em primeiro e segundo graus, e
dade do funcionalismo. nos demais tribunais do país), de prever o tem-
Inescondível, neste quadro contextual, que po e modo de aquisição (dois anos de exercí-
a relevante garantia constitui o primeiro e um cio) e de disciplinar que, nesse período, a perda
dos marcantes predicados da magistratura, e do cargo poderia ocorrer por deliberação do tri-
não pode ser confundida com a vitaliciedade bunal a que o juiz estiver vinculado.
assegurada ao Ministério Público, porque esta No tocante ao Ministério Público, o trata-
tem disciplinamento constitucional próprio e mento é distinto: não há previsão constitucio-
peculiar. nal sobre a perda do cargo durante o estágio
Com efeito, a vitaliciedade I:kl membtO do probatório, eis que o texto constitucional vi-
Ministério Público, embora referida pela Carta gente assegura ao membro do Mi nistério Públi-
Maior (CF, art. 128, § 5. 0 , I,a), vem garantida de co garantia mais ampla ("não podendo perder o
forma transversa pelo seguinte texto que se re- cargo senão por sentençajudicial transitada em
porta a lei complementar que estabelecerá "as julgado").
seguintes garantias": Fixadas tais diretrizes, por vereda da apru-
mada conclusão lógica, vê-se, pois, que distin-
"a) vitaliciedade, após dois anos de tas são as confrontadas garantias. A primeira,
exercício, não podendo perder o cargo criada pela própria Constituição, quantum su-
senão por sentença judicial1ransitada em fficit, com duas modalidades de disciplinamen-
julgado", to quanto à perda do cargo: uma durante a fase
A vitaliciedade do magistrado está garanti- do estágio probatório (deliberação do Tribu-
da no próprio texto constitucional, independen- nal}, outra, somente por sentençajudicia\, de-
do de lei complementar que a discipline, posto pois de completado o biênio de exercício na ju-
que a norma constitucional é de eficácia plena: dicatura.
"Art. 95. Osjl.Úzes gozam das seguin-
tes garantias: Noutra esteira, espalha-se o fulgor de outra
realidade: o que se discute na ação originária é
I - vitaliciedade, que, no primeiro exatamente o discrímen em relação ao magistra-
grau, só será adquirida após dois anos do, ou seja, a possibilidade de peràa do cargo
de exercicio, dependendo a perda do por "deliberação administrativa" do tribunal,
cargo, nesse período, de deliberação hipótese nem sequer cogitada no texto consti-
do tribunal a que o juiz estiver vincu~ tucional para o órgão do Ministério Público.
...,,,__• 32 ft. 126 Mr./lun. 1M5 151
No caso concreto, resultou comprovado que Com efeito, não é juridicamente possível a
a juíza substituta ingressou na magistratura e "suspensão" do decurso do tempo; a única al-
completou o biênio em pleno exercício da fim- ternativa pJauslvel, com respaldo legal, seria o
çãojudicante. Assim, restava apenas examinar "afastamento" do magistrado de suas funçGes
se, depois de completado o biênio, a aquisição judicantes, mediante o devido processo legal.
da vitaliciedade opera-se de pleno direito, ou Nesse caso, não estando ojuiz no "exerclcio",
ainda estaria na dependência de algo que não impossibilitada estaria, nesse lapso de tempo, a
foi previsto pelo constituinte, mas acrescido por aquisição da vitaliciedade. Se, porém, Ido foi
norma regimental: afastado nesse interregno e implementou o tem-
"Art. 319. Os Juízes Federais substi- po de dois anos de exercicio, operou-se, de pleno
tutos tomarão posse perante o Tribunal direito, a aquisição da comentada vitaliciedade.
Regional Federal da Terceira Região. Esse apontado ato estatal de efeitos QOIl~
§ LO - Avitaliciedade dos Juízes Fe- eretos (Regimento Interno, editado pelo Tnbu-
derais Substitutos será adquirida após naI), ainda que veiculado em textO de aparente
dois anos de exercicio e da declaração lei fonnal para osjufzes vinculados àquela Cor-
confirmatória pelo Tribunal em Sessão te, passa a ser questão prejudicial de mêrito
Plenária." (Regimento Interno do TRFda suscetJvel de tornar todos OS magistrados dire-
3. a Região). ta OU indiretamente interessados na soluçlo da
Com esta diretiva, quando o texto constitu- controvérsia, posto que a densidade normativa
cional diz que ojuiz, em primeiro grau, adquirirá no conteúdo do preceito regimental desquaJifi~
avitaliciedade pelo só exercicio após dois anos, ca-o - enquanto objetojuridicamente inidôneo
passou a ser direito <tue interessa direta ou in- - para produzir efeitos em relaçilo à discipüna
diretamente a todos os magistrados saber se da matéria referente à aquisição de vitalicieda-
pode ROnna inferior, infraconstitucional e de de pelo juiz.
hldole regimental, acrescentar uma exigência a A ação de competência originária do 8Tf,
mais e totalmente fora do controle do interessa- sob o influxo da primeira parte do art. 102, I, n,
do, qual seja, "3 declaração confirmatória pelo da CF, transforma-se em il1SU1Ulle1Jto espedlí-
Tribunal em Sessão Plenária" . co de defesa objetiva da ordem normativa ins-
crita na Constituição relativamente à magistra-
Apenas em linha de configuração do perfil tura nacional, posto que conduz à válida e ade-
da demanda originalmente proposta, exsurge quada utilização desse meio processual relevan-
claro, do texto constitucional, que essa cogita w
te para a aferiçâ'o do ato estataJ impugnado em
da "declaração do Tribunal" é a referenciada cotejo exclusivo com o ordenamento especifi-
"deliberação do tribunal a que o juiz estiver vin- 00 do texto oonstitudonal.
culado" para a perda do cargo durante o está-
gio probatório. Transmudou-se o texto consti- Desse modo, a inconstitucionalidade deve
tucional e alterou-se a vontade e a dicção do transparecer diretamente do texto do ato esta-
constituinte. Acrescentou-se um plus às con- tal impugnado, na medida em que a prolaçlo
dições de aquisição da vitaliciedade do magis- desse juizo de desvalor não está na dependên-
trado. Portanto, a questão ganhou nítido con- cia de prévia análise de outras espécies juridi-
torno de interesse específico da magistratura, cas infraconstitucionais, para, somente a partir
na medida em que a garantia da vitaliciedade, desse exame e num desdobramento exegético
no particular enfoque, é peculiar ao juiz e s0- ulterior, efetivar-se o reconhecimento da ilegíti-
mente a ele diz respeito. midade constitucional do ato questionado.
Deveras, a infringência â Norma Constituci-
Portanto, na viseira abertae sem tangenciar onal é manifesta, bastando, para isso,verificar-
a realidade, a questão nuclear, pois. consiste se o conteúdo do disciplinamento. Ou seja, se a
no exame, pelo Supremo Tribunal Federal, da Norma InfralegaJ inovou o comando constitu~
eventual validade da nonna locaI, de sede regi- cional, essa SÓ circunstância a descredencia
mental, que simultaneamente criou a figura da como instrumento válido, tendo em vista que a
suspensilo da vitaliciedade com o acréscimo de regência da matéria esgota-se no próprio texto
que tal garantia somente será adquirida pelo constitucional
magistrado após a declaração do tnbunal, mal- Nesse relevante aspecto, na trilha do ensi-
grado tenha ojuiz completado os dois anos em namento do Min. Celso de MeDo, "o repúdio ao
pleno exercício da função judicante. ato inconstitucional decorre, em essência, do

I.
princípio que, fundado na necessidade de pre- denamento constitucional específico, até mes-
servar a unidade da ordem jurídica nacional, mo para a preservação da incolumidade da atu-
consagra a supremacia da Constituição" de for- açãojudicante que se transrnuda em segurança
ma que, como corolário, "esse postulado fim- para osjurisdicionados em geral.
damental de nosso ordenamento normativo im- No altiplano do detido exame da tese, o con-
põe que preceitos revestidos de menor grau de teúdo da lide em foco necessariamente implíca
positividadejurídica guardem, necessariamen- o interesse geral da magistratura, o que induz à
te, relação de conformidade vertical com as re- incidência de norma de competência excepcio-
gras inscritas na Carta Política, sob pena de ine- nal do STF. Deveras, como disciplinada pela
ficácia e de conseqüente inaplicabilidade", im- Carta da Repúbl ica, a vitaliciedade do magistra-
pondo a conclusão de que "atos inconstitucio- do constitui uma garantia que se adquire pelo
nais são, por isso mesmo, nulos e destituídos, só decurso do prazo de dois anos no pleno exer-
em conseqüência, de qualquer carga de eficá- cício da judicatura. Nessa fase, o juiz encontra-
ciajurídica" (ADIn 652-5-MA, Plenário, DJU se em estágio probatório e quaisquer procedi-
de 2.4.93, p. 5615). mentos administrativos, para fins da perda do
Extrai-se do julgado em comento a diretriz cargo, somente podem aoorrer durante esse
segundo a qual a declaração de inconstitucio- período. Deveras, completado o biênio, najudi-
nalidade de qualquer norma jurídica alcança, catura. opera-se a aquisição da vitaliciedade,
inclusive, os atos pretéritos com base nela pra- ipso jure, A declaração formal do tribunal, efe-
ticados, eis que o reconhecimento desse su- tuada posteriormente - malgrado superfetativa
premo vício jurídico - que inquina de total nuli- mas com evidente propósito solenizador -,
dade os atos emanados do poder público em pode representar, quando muito, apenas e ex-
qualquer de suas esferas - desampara as situa- clusivamente uma confirmação de uma situa-
ções constituídas sob sua égide e inibe, ante çãojuríclicajã operada e que ingressou no mun-
sua absoluta inaptidão para produzir efeitos do como ato jurídico perfeito, posto que reali-
jurídicos válidos, a possibilidade de invocação zado em plena consonância com a vontade e
de qualquer direito. diretrizes constitucionais.
Como a matéria atinente à magistratura na- Estabelecido esse indefectível perfil, jamais
cional vem rigidamente disciplinada na Carta poderá a vitaliciedade, já adquirida pelo trans-
Política, o constituinte preocupou-se com sua curso dos dois anos de exercício da judicatura,
fiel observância, de maneira que as ações que ser retroeliminada ou ficar na dependência de
versarem sobre tais direitos, de in.teresse gemi uma manífestaçã,Q ulteriQf não ~)Iev\sta 00 Tex-
e peculiar dosjuízes brasileiros, passam à com- to Maior.
petência originária da Suprema Corte, único tri- Assim, sem permeios e nesses exatos limi-
bunal eleito constitucionalmente para remover tes, a vitaliciedade passa a ser uma questão tí-
do ordenamento positivo a manifestação esta- pica, ínsita, natural, específica, restrita, peculiar
tal inválida e desconforme ao modelo plasmado e vinculada ao magistrado, pelo que todos os
na Carta Magna, com todas as conseqüências juízes brasileiros passam a ter interesse direto
daí decorrentes, inclusive a plena restauração ou indireto na matéria, razão por que o consti-
de eficácia das leis e das normas afetadas pelo tuinte brasileiro - com sua excepcional previsi-
ato declarado inconstitucional por pretensa bilidade do alcance da questão - disse perten-
vontade de afetar direito específico do magis- cente ação dessa natureza à competência origi-
trado. Esse poder excepcional- que extrai a sua nária e privativa do Supremo Tribunal Federal,
autoridade da própria Carta Política - converte visto que a solução dada pela Suprema Corte
o Supremo Tribunal Federal em verdadeiro le- terá, entre outras virtudes, aquela de pacificar a
gislador negativo. questão para toda a magistratura nacional, evi-
Desse modo, a ação referida na primeira parte tando a desnecessária proliferação de deman-
da alínea n do inc. I do art. 102 da Carta da das em patamares inferiores, a par de trazer se-
República revela-se como instrumento proces- gurança e tranqüilidade para o exercício - já por
sualmente adequado à colirnação do fim pre- demais desgastante - da judicatura nacional.
tendido, posto que o interesse geral e peculiar Essa garantia, mais que voltada ao juiz, cons-
da magistratura, em questão dessa envergadu- titui um predicado destinado basicamente ao
ra constitucional, impõe seja a restrição impos- jurisdicionado, eis que o magistrado carece de
ta por norma regimental confrontada com o or- um mínimo de segurança para o exercício de

8r..a,_ _. 32 n. 128 "'./jun. 1f185 153


seu mister e não pode viver em instabilidade juiz que nele seja parte venha a ser alcançado
após completar seu biênio de exercício, para fi- pela eficácia de jure da sentença a proferir.
car no aguardo de uma "posterior confinnação Com essa compreensão, que não é ampla,
do Tribunal" (em data que sequer foi preconi- mas restrita ao preceito constitucional, sem a
zada), numa atitude afrontosa àquilo que oTex- criação de qualquer dilema hermenêutico, p0s-
to Maior tratou de disciplinar exaurientemente. to que o interesse de fato da magistratura, in
Pelo relevo da matéria, a inovação proces- casu, para deslocar a competência, há de ser
sual marcante, na Constituíção vigente, foi a efetivo, atual e concreto, longe está de se divi-
previsão, no artigo 102, I, n, da competência sar, no mandamus examinado, interesse mera-
originária do Supremo Tnbunal para "a ação em mente hipotético.
que todos os membros da magistratura sejam Ao ver do Ministro Sepúlveda ~ a
direta ou indiretamente interessados, e aquela competência da Excelsa Corte estaria firmada
em que mais da metade dos membros do tribu- quando ocorrente a presença atual e efetiva do
nal de origem estejam impedidos ou sejam dire- interesse de toda a magistratura na questao de
ta ou indiretamente interessados". direito deduzida em juízo por um ou mais dos
A foco dessas colocaÇÕeS, divisa-se, no seus integrantes., ou, utilizando a sua precisa
particular, essa competência originária, nãopeJa construção:
presunção universal de interesse e conseqüen- "Em outros termos, como a entende-
te impedimento dos tribunais para julgar, em mos, só se firma a competência cogitada
sede jurisdicional, os seus próprios atos, mas quando o simples fato de ser magisl1'a-
porque é inevitável o interesse de toda a magis- do baste à concretização da hipótese de
tratura na causa em que se discute o modo de incidência da nonna sobre cuja i.n.terpre-
aquisição da vitaliciedade do magistrado. lação se controverta no processo" (gri-
A questão resulta simples, pelo confronto fos nossos).
do ato praticado (suspensão do vitalíciaInento,
no aguardo de posterior declaração do tribu- Sua Excelência arrolou casos em que corre-
nal). Lógico que há determinação da competên- tamente se ajuizaram no SlF OS mandados de
cia originária do SlF em função do interesse de segurança pendentes em tomo da incidência
toda a magistratura no desfecho da lide, haja do IR. sobre a representação paga aos magistra-
vista que a Constituição não partiu de um res- dos da União; sobre ser devido aos juizes o
trito conceito jurldico de interesse, que faria acréscimo de um terço (Constituiçio Federal,
ociosa, nessa parte, a alínea discutida: raia pelo artigo 7.°, XVII); sobre os vencimentos de am-
inirnaginável a hipótese de causa cuja decisão bos os meses de férias do magistrado; de direi-
irradiasse eficácia própria sobre a situação in- to de greve, para concluir que "do hipóteses
dividual de todos os magistrados do pais. nas quais a decisio judicial- embora de eficá-
Não seria de se cogitar de eventual declara- cia restrita ao juiz litigante - em tese constitui-
ção em tese da inconstitucionalidade ou njo de ria precedente invocável, perante a Adminis-
norma do estatuto nacional da magistratura, tração ou a Justiça, como pertinente à situaçlo
porque isso não se está impugnando, nem tam- atual de todo o magistrado, apenas porque e
pouco de qualquer resolução ou ato adminis- enquanto o seja".
trativo concreto do tribunal de origem: nessa Assim, definir, nos termos da Constituiçlo,
hipótese, sim, a cornpeféncia originária e priva- qual o procedimento válido pam que todos os
tiva do STF para a ação direta é objetO de outro magistrados adquiram a garantia da vitalicie-
preceito (Constituição Federal, artigo 102, I, a), dade, ao singular fundamento de que, segundo
aqui nem aventado. a norma local e malgrado completado o biênio
certos os fatos e, pelo menos, como pre- em exerclcio, imp(le-se que o tribunallocal"de-
missa. encartados em nonna constitucional de c)are" adquirida a \lÍfaIícíedade,mz resultar um
eficáCia plena, resta, nesse contexto, e por interesse concreto, atual, emergente. Noutras
conseguinte, como a leitura mais adequada a palavras: saber se o texto constitucional, quan-
dar sentido útil e atender às óbvias inspirações do fala "vítaliciedade, que, no primeiro grau,
éticas da norma excepcional de competência da só será adquirida após dois anos de exercicio,
Suprema Corte, a que se satisfaça com o "inte- dependendo a perda do cargo, nesse período,
resse de fato" de todos os magistrados na ques- de deliberação do tnbunal...", está a admitir re-
tão juridica objeto do processo, ainda que só o gramento ulterior por quem não detenha pode-

154
res constituintes. A deliberação, referida no tex~ dam de matéria de interesse do funcionalismo
to constitucional, é objetivamente para a perda em geral.
do cargo, ou pode ser ela transmudada para No caso examinado, contudo, a situação é
uma "confinnação" da garantia adquirida medi- diversa e distinta. Cuida~se de rígido discipli-
ante a fonna instituída na Cana da República? namento constitucional da garantia de vitalici-
Inegavelmente, o deslinde dessa relevante edade especifica do magistrado, que não pode
questão constitucional não afeta apenas o au- ser tida como um direito aplicado à generalida-
tor da ação - pois constituirá aquele cogitado de dos funcionários públicos.
"precedente invocável, pera~te a Ad~nistra­ A situação enfocada na referida ação origi-
ção ou a Justiça, como pertmente à SituaçãO nária (mandado de segurança contra ato de tri-
atual de todo o magistrado, apenas porque e bunal, modificativo de vitaliciedade já adquiri-
enquanto o seja". da na fonna constitucional) amolda-se com pre-
O eminente Ministro Sepúlveda Pertence, cisão na hipótese ensejadora da competência
Relator no AgRg n. o 423-o~SP, disse, com sin- originária do STF e guarda estreita harmonia
gular propriedade, que dada a supremacia das com a orientação da Suprema Corte quanto à
garantias constitucionais do due process e seus competência prevista na letra n do artigo 102 da
corolários (v. g. , CF, art. 5. 0 , LUI e LVII e art. 93, Cana da República, em virtude de ter por objeto
IX) - outorgadas a quem quer que seja o sujeito direitos, interesses ou vantagens peculiares à
do litígio substancial posto emjuízo -, cumpre magistratura.
amoldar à efetividade delas a interpretação da Uma esclarecedora lição proveio da Supre-
vetusta disciplina legal (...) em ordem a assegu~ ma Corte quando, em sessão plenária de
rar que "as leis é que se devem interpretar con- 16.1 D. 91, resolvendo questão de ordem susci-
fonne a Constituição e não, O contrário" (DJU tada pelo eminente Relator, Ministro Néri da
de 13.3.92, p. 2.921) pelo que repugna à consci- Silveira, estabeleceu o verdadeiro discrímen
ênciajuridica ~rer impor mera norma re~~n­ para negação da competência do STF: "nas cau-
tal à vontade clara e soberana do constitumte sas em que o interesse da magistratura é co-
em operacionalizar, no Judiciário brasileiro, to-- mum ao interesse de todo o funcionalismo"
das as vitaliciedades adquiridas na fonoa da (Pel. 506-MG, in DJU de 19.1O.91,p. 16.605). No
Constituição Federal a um posterior placet do mesmo sentido, a decisão tomada na AOr 91-2-
tribtmallocaI. RS, in DJU de 14.2.92, p. 1168). A contrario
b) Os precedentes sensu, se o interesse da magistratura, por ser
Para dar pela incompetênr::ia do STF, no próprio a ela, não for comum ao funcionalismo
caso concreto, o eminente Relator invocou três em geral, tinnada estará a oompetência excepcio-
precedentes. Todos, porém, dizem resJX:ito a nal da Suprema Corte para o deslinde da questão.
postulações de IndoJe retributiva de magistra- Na evolução dajurisprudência do STF res~
do, porquanto referentes a rnaté~a ~e venci- too firmada a diretriz segundo a qual se os inte-
mentos, que é, obviamente, um direito que se resses, direitos ou vantagens constitue~ situ-
estende à generalidade do funcionalismo pú- ações juridicas comuns a outras categonas fun-
blico. Examinem-se os precedentes citados: cionais ou inerentes a diversos estratos soci-
a) NaAOr 32-7, ReI. Min. Marco Aurélio ais descaracteriza-se, em função desse estado
(DJU 2.4.93, p. 5610), cuidava-sede magistra- de ~munhão jurídica, a própria ratio essendi
dos de São Paulo postulando pagamento de justificadora da especial e inovadora compe-
diferenças de vencimentos. tência originária do Supremo Tribunal Federal,
b) Na AOr 33-5, ReI. Min. Moreira Alves em ordem a esta resultar recusada quando os
(DJU de 13.11.92), magistrados de São Paulo direitos reclamados não tenham qualquer co-
propuseram ação ordinária para obten~o de notação de natureza corporativo-institucional
correção monetária das parcelas de venCimen- e não se restringirem, por isso mesmo, apenas
tos pagas com atraso. àqueles que estejam investidos no desempe-
c) NaAOr 34-3, ReI. Min. Francisco Rezek nho dos cargos judiciários.
(DJU de 22.3.93), magistrados de São Paulo
igualmente requereram matéria de "índole retri- Destarte, sempre que a globaJidade dos di-
butiva". reitos envolver, inegavelmente, pelo elevado
Os três precedentes, por conseguinte, não grau de extensão e de quase indeterminação
têm pertinência com o caso concreto, pois CUÍ- subjetiva de seus titulares, todos os agentes

. . . " ••• 32n. 12f1 __Jjun. 1185 f55


vinculados à Administração Pública,. tal circuns- tagem que é dos servidores públicos, de
tância será falor de descaracterização da com- modo geral. A norma de competência do
petência excepcional da Suprema Corte, corno art. 102, I, n, da Constituição tem caráter
restou destacado pelo Ministro Celso de Mello excepcional, motivo por que deve ser in-
(cf. AOr R.o 20-3/32D-AL, inlllU de 3.2.92, p. terpretada restritivamente. Registre--se,
348 e AOr nO 85-8132D-DF, in DJU de 3.2.92, pp. por outro lado, que uma ínterpretaçao
3WJ). amplíativa da citada norma de competên-
Porém, com atenção à própria teleologia da cia - art. 102, I, n - traria para a Corte
nonna de competência em questão, ela resulta- Suprema milhares de ações relativas às
rá finnada sempre que, na causa, haja existência vantagens pecuniárias e ao próprio regi-
de tema concernente a direito que seja exclusi- me jurídico do pessoal da União, pois
varr.tenle peculiar à magistratura. como, na es- essas vantagens e normas do regime jurí-
~le, o da vital!c!edade, com a forma e exigên-
dico do pessoal da União são extensivas,
Cias de sua aqWSlçãO, nos termos do artigo 95, de regra, aos magistrados" (RTJ 138/10).
I, da Carta da República, de forma que a aludida Na linha desse incensurável posicionamen·
competência, editada intuill/ personae, visa to, ena in~e~o restrita exígida pela Nor-
exat;arnente ao e~e de lide cujo objeto seja ma CollSbtuClOnal, a questão sobre a vitalicie-
um mteresse específico da magistratura, corno dade do magistrado, nos limites aquí aborda-
no caso concreto, em que se verifica inexistir dos, é tipica e peculiar ao juiz, nao se estenden-
qualquer comunhão jurídica concernente ao do ao funcionalismo público em geral.
universo de servidores públicos. Deveras, admitir o contrário seria suprimir
DefIui daí, claramente, que a vitaliciedade da Suprema Corte a oportunidade constituci~
não é comum a todo o funcionalismo. na1 de, contrariamente à situação faetual invo-
Evidencia-se, in casu, a plausibilidade da cada, deixar que proliferassem inúmeras açôes
alegação da oompetência originária do STF para em graus inferiores, em desgastantes lides en-
julgar o mencionado mandado de segurança, tre juízes e tnbunais (demandas que a ninguém
posto que a solução da lide passa pela questilo aproveita e a todos prejudica), trazendo ínsta-
prejudicial de saber, em face da Constituição bilidade para o exercicio da função judicante,
Federal e da LOMAN, se os juizes podem ser quando uma só e definitiva decisão da Supre-
afetados por "suspensão" do prazo de vitalici- ma Corte do Pais, por sua força e autoridade
arnento, monnente quando continuaram no exer- predominantes, eliminaria de vez qualquer con·
cício da judicatura e completararn o biênio exi- trovérsia e traria, no particular, a sempre perse-
guida paz social.
gido pela Carta da República.
Aínda sob a égide da Constituição anterior.
Em hipótese ainda menos rígida, a Suprema
Corte deu-se por competente para julgardeman-
o Supremo Tribunal, em histórica decisão to:
mada no RE n. o 100.912-8·Sp, sendo Relator o
da em que juiz de direito, em disponibilidade, Minístro Néri da Silveira, deu provimento a re-
postulou licença-prêmio com base em legisla- curso interposto, contendo a ementa esta sig-
ção local, circunstância que exigiu do STF o nificativa passagem:
exame da causa face aos preceitos da Lei Com-
plementar da magistratura nacional (AgR na "Vitaliciedadeapós dois anos de exer-
AOrn.o I53-6-RS; Relator Ministro sepú1veda cicio. Juizo de não-vitaliciamento. ao tér·
Pertence, in DJUde 7.8.92; apudRT68812l1). mino do biênío, por parte do Tnbunal (...).
Merece ser invocado trecho do voto do Perda do cargo e na~vitaliciamento. Hi-
Ministro Carlos ~Uoso, naA ar 8, antes referi- pótese em que se reconhece configura-
da, que bem retrata o pensamento do STF s0- da ofensa ao art. 153, § 15, da Leí Maior"
bre a aplicabilidade do referido dispositivo, es- (STF, 1.- Turma - julg. em 22.10.1985; in
tabelecendo O nCCCS$ário marco divisório: • DJU de 19.12.85, P. 23.628).
E da sólida doutrina e da remansosa juris-
"O que determinaria a competência prudência que vitaliciedade, muíto maís do que
~ Supremo Tribunal parajulgar origina-
uma ~tia essencí~ aojuiz, é wna segurança
riamente a causa é se ela dissesse respei- da ~ledade, na medída em que o magistrado,
to a um direito, vantagem ou prerrogati- sentindo-se tranqililo, pode exercer ajudicatu-
va peculiar à magistratura. No caso, a ra com equilibrio e serenidade. Nessa linha, o
causa tem por objeto um direito ou van· insigne Décio Cretton leciona que:
f.
..A vitaliciedade constitui o maior re- (censura), encerrado ficou seu direito de pu-
forço de independência dos magistrados nir" (DJU de 19.12.94).
e a melhor garantia constituciona\ con~ Ao tratar das garantias em prol da magistra-
cedida a eles e a seus jurisdicionados. tura, o Texto Supremo assegurou a vitalicieda-
Foi instituída para que a importantíssima de dos juízes de primeiro grnu na dimensão exa-
função de julgar seja desempenhada com ta em que condicionou a sua efetivação ao ter-
autonomia e imparcialidade. Essa prerro- mino do lapso temporal de dois anos em pleno
gativa é indispensável às altas funções exercício. Dessa forma, exauriu a questão pelo
da magistratura" (O Estatuto da Magis- discipiinamento integral da ganntia e fonna de
tratura Brasileira, p. 29). sua aquisição.
O saudoso Hely Lopes Meirelles, cuidando Essa garantia constitucional de vitalicieda-
de distinguir a peculiaridade dessa garantia, de do magistrado, tal qual tratada no Texto
pontificou: Maior, não ficou na dependência de qualquer
"A vitaliciedade não é uma prerroga~ outTO disciplinarnento uJterior, como bem desta-
tiva do funcionário, mas sim uma condi- cou, com propriedade, o Ministro Sepúlveda Per-
ção para que o exercício de certas fun- tence, quando Procurador-Geral da República:
ções públicas que exigem garantias es- "Cuida-se de garantias constitucio-
peciais de permanência e definitividade nais, às quais a Constituição mesma as-
no cargo" (Direito Administrativo Bra- segurou aplicação imediata (artigo 5.°, §
sileiro. p. 369). 1."), tanto mais inegável, na espécie,
quanto é certo que nenhuma delas de-
Nesse eito, decidiu o Egrégio Superior Tri- manda logicamente regulação infra-
bunal de Justiça, em acórdão da lavra do Minjs~ constItucional.
tro Armando Rollemberg, que o biênio indica-
do, como objetiva condição temporal, é requisi- Lei complementar sobre o estatuto da
to constitucional, adquirindo o magistrado, "a magistratura, aliás, já existe: é a LOMAN,
completar dois anos de exercício, condição que a nova ordem constitucional rece-
para a vitaliciedade" (MS n.o 90.0001468-9, in beu em tudo quanto com ela não se te~
DJU de l7.12.90)(grifo nosso). nha tomado incompative\: verificada a
A propósito, o Egrégio Superior Tribunal incompatibilidade, como se alega na
de Justiça decidiu, outra vez, e recentemente, espécie, a norma legal viciada de in-
na vereda do entendimento ora sufragado. Fê- constitucionalidade superveniente se há
lo ao apreciar o RMS 0.° 4.012-7 (Proc. n.o de substituir pela que seja adequada aos
94.000519-9-MG), em sessão realizada no dia preceitos constitucionais novos" (pare-
22.ll.94. Com efeito, segundo o voto do Minis- cercolhido no MS n. °20. 87J-2/SP).
tro Adhemar Maciel, Relator, abraçado unani- De par com a estatuição da vitaJiciedade no
memente por seus pares da 6.' Turma daquela tempo e forma mencionados, o constituinte cui-
Corte, ficou averbado que, durante o biênio para dou, também e igualmente, da hipótese de per-
a aquisição da vitaliciedade, o aludido lapso da do cargo no aludido entretempo, matéria de
temporal somente pode ficar sobrestado se hou- alçada do tribunal a que ojuiz estiver vincula-
ver instalação de antecedente processo admi- do, o que não se confunde nem tampouco con-
nistrativo que afaste o magistrado de sua ativi- flita com a superveniência da vitaliciedade no
dade judicante, pois a inobservância dessa cau ~ biênio esgotado. Em suma: são realidades dis-
tela fará com que ocorra, a exemplo do quanto tintas abrigadas num mesmo preceito normati-
se verifica in casu, a configuração da vitalicie- vo, donde a impostergável oonclusão de que,
dade após o perfazimento do periodo de dois enquanto pendente a vitaliciedade pelo não-
anos no pleno exercício do cargo. oompletamento do período probatório, o tribu-
No aludido julgamento, o STJ destacou que nal detém poderes para infligir a perda do cargo
o período de aquisição da vitaliciedade do ma- com a simples deliberação de seu Plenário.
gistrado somente fica sobrestado, pendente Em rico precedente em que o TJMG mani-
conditione: suspensão do erercicio funcional festou-se pela inconstitucionalidade do art. 100,
do vitaliciando, concluindo: "No caso concre- § 2.°, da Constituição Estadual, uma vez que ele
to, não tendo o Tribunal afastado o juiz de sua contraria O inciso J do art. 95 da Constituição
atividade judicante e lhe aplicado pena menor Federal, votou o Desembargador Gudesteu Bí-

• .-111••. 32 n. 126 IIINJjun. 1995 157


ber no sentido de que: que se tornou afrontosa emenda aditiva ao tex-
..A Constituição Federal condicionou to constitucional, sem que proviesse de um
o vitaliciamento não à decisão adminis- poder constituinte.
ttativa de Tnbtmal, masa decurso de lapso A norma regimental não tem o condAo de
temporal que ela própria estipula (dois dispor sobre matéria esgotada no Texto Maior.
anos) mediante determinada condição daí falecendo de um mínimo de densidade juri-
(exercicio do cargo). Na medida em que dica o sobrestamento davitaliciedade, monnen·
o magistrado reuniu essas duas (únicas) te quando estajá foi adquirida na forma preco-
condições, ele está automaticamente vi~ nizada na Constituição Federal. Otema, tal qual
talidado, independentemente de quaJ~ posto na aç.io originária, ganha contornos pre-
quer declaração do Tribunal nesse senti- cisos de matéria peculiar da magistratura, o que
do. Se o Tribunal de Justiça pudesse es- acarreta o interesse direto ou indireto dos jui-
ticar a seu bel prazer o tempo de duração zes brasileiros, na medida em que a restriçlo à
do estágio restaria como letra morta o aquisição da garantia da vitaliciedade está sen·
dispositivo constitucional inserido no do imposta exclusivamente aos magistrados.
art. 95. i. Se oTribunal entende incom,'C~ Releva notar, em SUJtla. que a discussão s0-
nientevitaliciar determinado juiz, de duas bre o tempo e forma de aquisição da vitalicie-
wna: ou imprime rapidez ao procedimento dade do magistrado, com a disciplina contida
administrativo para que a decisão a ~ no art. 95, inciso I, da Constituição Federal, c0ns-
peito seja proferida dentro do prazo cons- titui cl313 matéria de interesse privativo da ma-
titucional de dois anos; ou terá que afas- gistratura nacional. como comprovaram. às es·
tar Ojuiz do exercício de sua função, evi ~ câncaras, os documentos que instruiram a ação
tando-se o vitaliciamento automático originária dizendo respeito à singular situaçlo
pelo decurso do prazo estando ojuiz em de exigência de declal3ção posterior do tribu-
exen:icio" (apudRMS4.012-7IMG; Proc. nal (após os dois anos deexercicio najudicatu-
n ° 94.000S19-9-MG, ooSTJ). ra), como condição retrooperante para a aqui-
Destarte, conquanto O tribunal detenha p0.- sição daquela garantia.
deres para impor, dessa forma e nesse prazo, a Ou noutras precisas palavras: se seria cons·
perda do cargo, ressente-se ele. contudo, de titucionalmente possivel fosse um magistrado
poderes para dispor administrativamente acer· submetido a um procedimento para a perda do
ca do sobrestamento (rectius: «suspensão") da cargo, depois de haver comprovadamente com-
vitaliciedade, máxime porque inexiste qualquer pletado o biênio em pleno exerctcio. Tal tema.
base legal para tanto; ao contrário, existe disci- pela magnitude de seu alcance e pelo peculiar
pUnamento oposto no Texto Maior, ao estatuir interesse que envolve, amolda-se à hipótese
que «nesse período" pode o tribunal delibel3r a contemplada no art. l02, I, n, da Carta da Repú.
respeito da perda do cargo, competência cons· blica, pois somente o Supremo Tribunal Fede-
titucional que se exaure com o próprio esgota· ral pode, com uma decisão sobranceil3 e pred0-
mento do biênio do pleno exercício. minante, com efeito vinculativo, dar a sua n::cla-
Ressalte-se que não há supedâneo legal rnada e indispensável palavra final.
para a sanção em debate porquanto tal hipóte- A questão alusiva aos direitos e deveres
se consta tão-somente de Regimento Interno e dos magistrados, que são "membros de Poder'",
não de legislação complementar à Constituição, vem inserida em topologia própria da Consti-
conforme determina o figurino constitucional tuição da República (Capitulo 111 - Do Poder
por meio do seu artigo 93. Por óbvio, um singe- Judiciário), secundada. em sua disciplinaçlo,
lo remeditar do Plenário, a ocorrer a qualque,. por lei complementar referida no próprio texto
tempo posterior, dará margem ao reconhecimen- constitucional (LOMAN). Dessa forma, as
to desse &to que macuL1 inexoravelmente a san· questlles que digam respeito à aplicaçifo de leis
ção objeto do problema tematizado. outras, mormente as locais, sobre esses direi-
Dessa forma, as disposições regimentais, tos específicos da magistratura (v.g.: vitalicie-
estabelecedoras do critério de que, malgrado dade, inamovibilidade e irredutibilidade de ven-
completado o biênio em exercicio, somente de- cimentos; licença-prêmio; limite de idade, aces-
pois da dec/araçt1o expressa do tribunal é que soa tribunal, inte,.plures) fazem surgir um inte-
ojuiz adquirirá a vitaliciedade, são matéria os- resse concomitantemente geral e peculiar da
tensivamente inconstitucional na medida em magistratura.

158
Em precedente de porte, decidiu o SlF, por presidente do tribunal de origem sustentou que
votação unânime de seu Plenário, inclusive com ao ~mpetrante "não interessava, efetivamente,
voto de seu Presidente, que: a diSCUSsão em tomo da subsistência, em face
"STF: competência (art. 102, I, n): do regime da LOMAN, da licença-prêrnio insti-
causa cuja decisão pende da solução de tuída pela lei local. Aliás, pressu}lOS1O da sua
questão prejudicial, de interesse geral e pretensão é plena vigência da lei estadual, no
peculiar da magistratura (aplicabilidade ponto focado, o que, de resto, não foi questio-
ou não aos magistrados de lei local que nado na decisão administrativa, que simples-
outorga direito à licença prêmio aos ser- mente indeferiu o pedido pela consideração de
vidores em geral) - (Reclamação n. o 414- que não preenchidos os requisitos previstos
na lei local".
7~ Relator Min. Sepúlveda. Pertence, in
DJU de lO.3.95,p. 4.880). Acrescentou a autoridade: "Desse modo,
Malgrado discutido nessa ação que não salvo melhorjuízo, sobre contrariar, o tema sus-
seri~ lícito ao magistrado computar, para efeito citado, os próprios interesses do reclamante
de lIcença-prêmio, o tempo de disponibilidade permito-me ponderar que a questão aqui verti~
punitiva, o STF reconheçeu sua competência da não se apresenta, sob o ponto de vista da
originária para julgamento da causa, não pelo controvérsia estabelecida, com contornos idên-
fundamento da inicial, mas por envolver maté- ticos aos do precedente invocado (RTJ no/
ria de interesse de toda a magistratura - direito 1285), onde, então sim, abertamente se discutia
dos juízes à licença-prêmio concedida por lei a subsistência da lei estadual concessiva de
local, em face da Lei Complementar n. o 35, de licença-prêmio aos magistrados, causa do in-
14.3.79 (LOMAN) -, e deferiu a liminar, autori- deferimento do beneficio de que resultou o afo-
zando provisoriamente a pretendida contagem ramento da ação lá tratada".
de tempo, avocando os autos do mandado de Em adendo às informações, após conside-
segurança que tramitava no tribunal de origem, raremoart.13daLein.oS.038190eoart.156do
por acolhimento da reclamação formulada. RI -STF, tratando da legitimidade para o exercí-
A tônica da inicial defesa residiu em que a cio da reclamação, fizeram essa observação:
questão imediatamente discutida no mandado "Do enunciado desses dispositivos, a impres-
de segurança avocado - contagem do tempo são que se colhe é a de que, como em qualquer
de disponibilidade punitiva para fim de Iicença- causa, não agindo esse Pretória ex o.fficio, deve
prênúo (ou espe::ial) - teria interesse meramen- o reclamante se apresentaI com legítimo inte-
te local, por envolver questão relativa à inter- resse na reclamação, requisito que talvez não
pretação de norma estadual reguladora de be- preencha quando se considere que o acolhi-
neficio concedido a todos os funcionários pú- mento da reclamação, pelo fundamento aco\hi-
blicos e não apenas aoS juízes. do na r. decisão liminar, implicará, inexoravel-
mente, o próprio indeferimento da pretensão de
O órgão do Ministério Público, opinando direito material deduzida na ação que propõe".
sobre o feito. destacou que antes do exame des-
se tema de fundo deveria ser feito, pelo STF, o Sopesando tudo isso, o eminente Relator
da própria admissibilidade da concessão a ma- foi categórico: "O argumento é inteligente, mas,
gistrados de licença de tal espécie, em face do data venia, não procede", esclarecendo que
regime jurídico nacional estabelecido pela Lei seria preciso distinguir as hipóteses: se a recla-
Complementar n.o 35/79. "Ou seja: antes de de- mação visava resguardar a autoridade dejulga-
liberar sobre a possibilidade de tal ou qual tem- do do STF, então, sim, a parte interessada para
po ser contado para efeito de licença-prêmio, o ajuizá-\a seria apenas aquela a quem aproveita-
órgão julgador deverá deciwr se a própria li- ria a observância da decisão que se pretende
cença é lícita. E esse, sem dúvida, é tema de desrespeitada; entretanto, o mesmo não suce-
interesse de toda a magistratura do país, a jus- deria se a reclamação, sobretudo quando inter-
tificar a competência originária do Supremo Tri- posta antes da decisão definitiva da causa no
bunal Federal (art. 102, inc. I, alínea n, da Oms- tribunal de origem, fundava-se em alegada usur-
tituição da República)". pação da competência da Suprema Corte, hipó-
tese em que, além do Ministério Público, qual-
Preliminarmente, discutiu-se à exaustão, quer das partes estaria legitimada a reclamar,
nesse precedente, a magna questão de compe- sem que coubesse espewlar se, afirmada a com-
tência originária do STF, na medida em que o petência da Corte, a decisão de mérito que nela

8r. .III••• 32 n. 1 . "JJun. IBM "511


se viesse a tomar seria ou não desfavorável ao cebido que foi com a premissa de que a função
reclamante. judicante difere das demais pela sua relevãncia
Para proclamar a competência do Supremo e peculiaridade. Como destacou o Ministro
Tnbunal Federal, o julgadodisse pouco impor- Demócrito Ramos Reinaldo, por ela se atribui
tar, até, que na origem não se tenha ocupado da ao cidadão autoridade para julgar os seus pa-
questão de existência de interesse geral da ma- res, defender-lhes o patrimônio e a liberdade,
gistratura, fulminando: "A admissibilidade, em propiciar-lhes a oJdem e a tranqüilidade, sem o
tese. da concessão de licença-prêmio a qual- que seria impossível a vida em sociedade
quer magistrado é questão prejudicial do pro- f'apud" RT71 1/17).
blema de saber se, para concedê-la, conta-se Daí a necessidade de observância do prin-
ou não o tem\1O em que o magistrado se enoon- cipio da correlação 16gica entre o elemento dis-
tra em disponibilidade punitiva Ora, cuidando- criminador e o discrimen estabelecido, ou seja,
se de questao prejudicial do mérito do manda- que o direito material - objeto da lide - diga
do de segurança, não há como fugir da sua de- respeito a um interesse peculiar da magistratu-
cisão, ainda quando não a tenha suscitado a ra, entendendo-se como tal aquele que tem dis-
autoridade coatora, de tal modo que, sendo o ciplina pecuJiar aos integrantes do Poder Judi-
seu objeto de interesse geral e especifico da ciário, o que é denotado pela regência da CF e
magistratura, a competência originária se des- da LOMAN, e que, por isso mesmo. nIo se es-
loca para o Supremo Tribuna1". rende à genemlidade do funcionaIjsmo público.
Mulatis mutandi, a ação inicialmente enfo- Note«, a respeito, que até mesmo preceito
cada encerra também nitida quesllJo prejudici- constitucional autorizador de aposentadoria
al, de real interesse peculiar da magistratura, facultativa proporcional (art. 40, m. c) aos ser-
qual seja, se pode regimento interno criar pen- vidores públicos civis não pôde ser aplicado
dente conditione de forma qual que irrelevante aos magistrados eao Ministério Público, tendo
seria que o vitaliciando tivesse completado os em vista a existência de ordenamento constitu-
dois anos em exercido da atividade judicante: cionaJpróprioepeculiar(aJt. 93, VLe 129, § 4.0),
ainda seria necessário que o tribunal o "decla- consoante reconheceu o STf na ADIo n.o 94-0
rasse" vitaliciado. Ou. noutras palavras: se se- (DJUde8.4.94, p. 7225), fortenodc:c:lararque,
ria constitucionalmente possível regimento in- relativamente a essas duas categorias profissi-
terno criar, poracréscimo ao texto maior, condi- onais. há regime de aposentadoria voluntária,
ção outra pm:a aquisição de vitaliciedade pelo de explicito, previsto na Carta da República, de
magistrado. Asemelhança do exemplo focado, forma exauriente, pelo que se declarou a na&-
tal questão prejudicial de mérito há de ser ne- aplicabilidade da nonna ampla destinada ao fim-
cessária e ante.cedenlemente examinada pela oom.lismo-em getal. Naesptcle, foi ~a
Suprema Corte. E esse, sem dúvida, é tema de eticáciado§ 3,°doart. 231 dal..ei Complementar
interesse de toda a magistratuIa do pais, a jus- n.o 75, de 20.5.1993, decisao a:m a qual se fortaIe..
tificara oompetência originária do SupremoTri- oe o ponto de vista exposto neste trabalho.
bunal Federal (&no J02, me. I, aliDe3 n, da Con&- Nessa linha, deixa de ser objeto de dissen-
tituiçao da República). 50 na incipiente doutrina que se constrói, como
Assim. quando a questão de direito materi- najurispmdênciajá desenvolvida, a iliceidade
al estiver disciplinada em capitulo especifico de disciplinação da matéria referente a magis-
referente ao magistrado, pelo principio herme- trado, que nao aquela contida na Constituição
nêutico da sedes moteriae, a ela não se aplicam Federal e na LOMAN.
nem as normas constitucionais tratadas em ca~
pítulo especifico (Dos servidores Públicos Ci- Com efeito, o cerne da quaestio, e sua razlo
vis) nem tampouco, e especialmente, as leis or- de ser, decorre de um ekmento potititovalota-
dinárias e demais outras modalidades de legis- do pelo constituinte, que traçou parâmetros ri·
laça0, inclusive as de âmbito local. gidos atinentes aos direitos e deveres dos ma·
gistrados. não pennilindo que qualquer legisla-
Na formulação da cam:íra da magístratura, a ção viesse tratar de forma diversa dessa rele-
CF e a LOMAN são exaurientes no tocante aos vante questão, posto que afetaria a unifonnida·
direitos. garantias e deveres dos juizes. Qual- de do discípJinamento nacional e modificaria
quer il1O\l8Çfo legislativa, seja ampliando, seja clara e suficiente preceituaçlo constitucional.
restringindo tais elementos, há de ser tida como
infringente desse ordenamento jurldioo, con- 3. O impedimento ou suspeiçiJo da matoria
A segunda forma de atraçJo da competên-
fflO _ ....f. fi. 'nIor....... 1 .......'''.
cia originária do STF, prevista inovadoramente I46-3·RJ; DJU 27.3.92, p. 3.800); se rejeitado o
na Constituição Federal. consiste na hipótese óbice invocado. a ação permanecerá na compe-
de "ação" em que a maioria dos membros do tência do tribunal de origem; porém, se acolhi-
tribunal de origem esteja juridicamente impos- do o incidente. a ação passará automaticamen-
sibilitada de atuar no julgamento da causa. te ã competência originária da Suprema Corte.
Na sadia interpretação dada ao dispositivo Esta última conclusão se impõe em fare doprin-
constitucional, o STF depurou o sentido da cípio de que ninguém pode serjuiz de seus pró-
mens /egis para entender que a declaração do prios atos.
óbice de atuação dos componentes do tribunal 4. Conclusão
pode ser provocada ou espontânea, devendo Na permanente luta neurotizante, por meio
ser vencidas as etapas necessárias de convo- de ações judiciais para a preservação dos direi-
cação de todos os eventuais substitutos e, so- tos, o constituinte brasilei ro de 1988 previu, em
mente nessa impossibilidade de composição de dispositivo próprio, uma nova modalidade de
quorum válido, a ação passará automaticamen- fixação de campetênda originária da. Su?tema
te para a competência da Suprema Corte, com Corte, e fê-lo com nítida atenção aos valores ali
fundamento no aventado dispositivo constitu- protegidos:
cional. a) num primeiro aspecto, que o interesse
A Constituição Federal utilizou o termo peculiar da magistratura resultasse evidencia-
"ação", onde também se engloba o "recurso": do em todas as ações que tratassem de preten-
portanto, tão-somente as causas de tcor juris- sa violação de direitos assegurados pelo texto
dicional sofrem a influência da vis atractiva da constitucional, impendendo concluir que inte-
disciplinação em comento. A competência ori- resse "peculiar" não tem a acepção de "exclusi-
ginária do STF prende-se apenas ao processo vo", bastando verificar se a afetação, por nor-
de conhecimento; logo, não se estende ao pro- ma jurídica outra, teve o condão de alterar a
cesso de execução cODSeQÜencial daquele, onde especifica disciplinação constitucional;
se cuida apenas de realizar, com relação exclusi-
vamente às partes, a norma individual já defi oi- b) num segundo aspecto, igualmente rele-
tivamente fixada na sentença exeqüenda" (RTJ vante, passou à competência do STF toda
132/620), intelecção com a qual o Supremo es-
"ação" em que a maioria dos membTos ostente
tabeleceu nítida distinção entre "processo de óbice legal para participar do julgamento da
execução" e a expressão "execução de senten- causa, seja por impedimento, seja por suspei-
ça" nas causas de sua competência originária, ção, levando a que essa impossibilidade somen-
referida na alínea m, imediatamente anterior, do te há de ser verificada quando esgotadas as
dispositivo em comento. etapas necessárias de convocação de todos os
substitutos, não se cogitando, nesse caso, de
Com efeito. um aspecto fundamental da procedimento administrativo que há de ser de-
questão se sobressai: a competência do STF, cidido pelo tribunal de origem e em face de sua
sob a 6ptica do art. 102, I, n, da Constituição autonomia.
Federal, finna-se em razão do impedimento (de A primeira parte do dispositivo constituci-
índole objetiva) ou suspeição (de caráter sub- onal busca a preservação da predominância dos
jetivo) da maioria dos integrantes do tribunal, preceitos constitucionais regedores da magis-
"mas não em face de processo administrativo, tratura nacional, impedindo seja o ordenamen-
cujo desfecho cabe, por certo, ao próprio Tri- to jurídico nacional (tratado na Constituição e
bunal, no exercido de sua respectiva autono- na LOMAN) modificado por legislação infra-
mia", como destacado nas AOr n." 146, Perten- constitucional, afetando o interesse geral e par-
re(RTJl401361)e229..o, Galvão (mUde 8.4.94).
ticular dojuiz brasileiro.
Por último, nesse aspecto, cumpre destacar A segunda parte, contudo, só se verifica se
que compete a cada tribunal julgar exceção de o tribunal a quem compete julgar a ação ou o
suspeição ou de impedimento contra qualquer recurso estiver "impossibilitado de ver consti-
dos seus juízes; se acolhida, em relação à maio- tuído O quorum necessário, por impedimento
ria de seus membros (ou dos membros do or- ou suspeição da maioria de seus membros, ain-
gão especial), passa a ser competente parajul- da que se recorra à convocação de outros ma-
gamento da ação o STF; entretanto, se rejeita- gistrados, na forma regimental" (RTJ 131/949).
da, a Suprema Corte passa a ser competente O fim visado por este dispositivo consiste "em
pamjulgamento originário do incidente (AOr impedir que quem tenha interesse direto na cau-

f81
sajulgue-a isoladamente ou em colegiado" (RTJ car aconstante evolução eo aprimoramento da
1351%8). jurisprudência da Suprema Corte, dando a inte-
A experiência haurida após a vigência do lecção verdadeira do alcance da preceituaçllo
atual texto constitucional tem permitido verifi- do art. 102, 1, n, da Constituição Federal. de-
monstrando sintonia fina com a vontade do

.,u
o civilista Arnaldo Wald

Ff.RNANOO WHITAKER DA CUNHA

A eleição de Amoldo Wald para a Acade-


mia Brasileira de Letras Jurídicas, em sucessão
a José Frederico Marques, na cadeira fundada
por Orlando Gomes, notáveisjuristas, deu opor-
tunidade para uma reavaliação de sua marcante
presença no Direito brasileiro, com projeção
internacional. demonstrando o alto critério se-
letivo com que a Casa presidida pelo ilustre Prof.
Othon Sidou, seu insuperável consolidador,
escolhe seus integrantes.
Ao transferir-me para o Rio de Janeiro, ain-
da muito moÇO, egresso do glorioso Ministério
Público paulista, conheci, em minha função ju-
dicante, dois jovens e destacados advogados,
em seus respectivos setores: Arnoldo Wald e
Heleno Fragoso, cujas teses de concurso ha-
viam recebido a melhor acolhida dos doutos,
sem intuir que, no futuro, colaboraria emjustís-
simas obras coletivas em homenagem a eles e
que exerceríamos a cátedra na mesma U Diversi-
dade, vindo a saudar, em nome da congrega-
ção, novos professores titulares, inclusive Fra-
goso.
Acompanhei, assim, com estima e admira-
ção, a evolução da obra desses dois insignes
jurisconsultos e de suas iniludíveis presenças
em nosso pensamento jurídico, com atuação
relevante na entidade de classe.
Civilista, comercialista, administrativista e
constitucionalista, professor catedrático de Di-
reito Civil da UFRJ.livre-docente das Faculda-
des de Direito da Universidade Federal do Rio
de Janeiro e da Universidade Federal fluminen-
se, professor associado da Faculdade de Direi-
to de Paris, procurador do Estado, por coneur-
Fernando Whitaker da Cunha é Desembargador 50 a que se submeteram, também, Rayrnundo
do Tribunal de Justiça e Professor da Faculdade de Faoro, 1.C. Barbosa Moreira e Ricardo Pereira
Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Lyra. além de outros. ex-Procurador-Geral da
.""a a. 32 n. 126 aIw./Jun. 1995 183
Justiça, ex-Vice-Presidente do Instituto dos cias de Tullio Ascarelli, René David, AndJé Tunc
Advogados Brasileiros, ex-Presidente da Co- e Pontes de Miranda, prefaciador de seu Curso
missão de v.tlores Mobiliários e membro do de Direito Civil, justamente, apreciado. feito,
Conselho Monetário Nacional, autor de impor- como o clássico Code Civil, de Mourlon, para
tantes anteprojetos de leis, como o que se trans- os alunos, mas destinado a um público maior
formou na Lei n.o 7.913/90, que dispõe sobre a de operadores do Direito, como excelente mate-
ação civil pública por danos causados aos in- rial de estudo e consulta.
vestidores no mercado de valores mobiliários, Foi um ahmo excepcional, como ohavia sido,
portador de sólida fonnação humarústica, influ- em Harvard, o ministro George Brandeis. da
enciado por seus esclarecidos pais, colaboran- Corte Suprema dos Estados Unidos.
do desde os 14 anos no Suplemento Literário
~o Con-eio da ManhiJ, dirigido pelo austero Lembra o culto Des. Semy Glanz, apreciado
Alvaro Lins,jornaJista reputado, Amoldo Wald, civilista, que foi seu inestimável colaborador
nascido em 1932, fez-se notar ainda como estu- na ampliação e atualização de Obrigações e
dante por seus dotes intelectuais, elaborando a Contratos, que, na biblioteca da Faculdade.
substanciosa e precisa monografia sobre a In- perguntou "a um colega quem era aquele que
fluência do Direito Francês sobre o Direito consultava uma obra tão absorto~ respondeu:
Brasileiro no dominio da Responsabilidade não sei, mas é um colega que só tira dez". e que
Civil, premiada pelo governo francês e pela iria receber o Prêmio Astolfo Rezenda.(Jornal
Associação Benri Capitant, da qual seria Se- do Comércio 16.9.94).
cretário-Geral, e cujo Grupo Brasileiro presidi- A importância de Wald como professor e
ria, e que foi, a rigor, o ponto de partida de uma advogado foi assinalada em magnificas disser-
vasta, densa e significativa produção intelec- tações por Simão Benj6, Carlos Henrique Fróes
tual, que se espraia por livros e incontáveis ar· e Juradir Scarcela Portela, bem como suas rela-
tigos em revistas especializadas. ções com o Direito Econômico, pelo talentoso
"Desde o curso secundário", depõe ele, "in- Professor Washington Peluso Albino de Sou-
teressei-me pelo Direito como fonoa de defesa za, e a cultura jurídica francesa. por Philippe
da dignidade humana e da distribuição de justi- Malinvaud.
ça, sob a influência da literatura e do meio fami- As teses compactas e avançadas de Wald,
Iiar". quer sobre o mandado de segurança, quer s0-
A Segunda Guerra Mundial fê-lo perceber bre a correção monetária, a adoção e o desqui-
que direitos indisponíveis teriam que ser de- te, anteciparam e preconizaram inevitáveis trans-
fendidos. formações em nosso Direito, comprovando sua
posição de inovador, com "tecnologia de pon-
Tendo ingressado na então Faculdade Na- ta". A Súmula 341, pela qual é presumida a cul-
cionaldeDireito, em 1949, e participado de uma pa do patrão e comitente pelo ato culposo do
tunna, que possuia reais valores, com os quais empregado ou preposto, encontra raizes em uma
se vincularia, como Luís Octávio Galloui, Julio sua construção doutrinária.
Cesar Leite e Jarbas Medeiros, Wald captou,
principalmente, a mensagem de dois grandes Pregou o div6rcio e a introdução do lea-
mestres. que o influenciaram por toda sua vida: sing, entre outras propostas.
o lúcido. exato e oceânico San Tiago Dantas e o O problema da correção monetária preocu-
erudito Amoldo Medeiros da Fonseca, rara pou-o muito antes que a tivéssemos, como um
vocação de educador e de advogado. do qual corolário da responsabilidade civil.
seria companheiro de escritório, em banca cuja A questão das dívidas de valor, originária
tradição remontava a Carlos de Carvalho e a dajurisprudência alemã, no primeiro p6s-guer-
Carvalho Mourão, e afilhado de casamento com m, compreensivelmente, atraiu-lhe o interesse.
a heráldica e combativa Heloisa, mulher de gran-
de personalidade, que lhe daria quatro filhos Dificilmente o civilista é comercialista, no
advogados e o clima para suas importantes re- sentido técnico dos vocábulos, pelas diferen-
flexões. ças orgânicas dos ramos que compõem o Direi-
Do primeiro rocolheu, precipuamente, a im- to privado.
portância do fator econômico no Direito, e o Toda"'ia, Ward notabilizou-se nos dois, por
segundo chamou-lhe a atenção para os aspec- sua própria edificação científica, o que o fez,
tos sociais dajustiça. Recebeu também influên- provocado por seletiva clientela, abrir escritó-

tU
rio de advocacia em São Paulo, embora manti- o artigo 5.° da Constituição Federal incisos
vesse o do Rio de Janeiro, ao qual se dedica um Ve, principalmente, o X, dão autonomi~ â inde-
de seus competentes filhos. nização pelo dano moral, o que não ocorria. de
m~o geral, antes, pelo que se entendia, majori-
O Direito Civil era o direito próprio da cida-
dania romana. confundindo-se com o Direito tariamente, que a acwnulação do ressan:imento
Romano, ou o Jus Quiritum. que estendeu pela material com o do moral consistiria um bis in
Idade Média. onde o civilista era o romanista. idem, porque se tinha em vista os reflexos ec0-
Savigny deixou claro que, em Roma. Jus nômicos do último.
Publicum significava "não o direito que con- O dano moral pertine aos direitos da perso-
cerne ao Estado. mas toda a lei sem distinção, nalidade, conseqüência de uma conduta que
todo o Jus publicum stabilitum". provoca dor ou sofrimento, que se relacionam
Lentamente, o Direito Civil foi identifican- com o núcleo ético de ser humano, podendo
do-se como o Direito Privado. deixando de ser reparado, em certos casos. sem repercus-
abranger o Direito Público. sões econômicas visíveis, por importar mesmo
em dano material presumido.
O límpido Mareei Planiol. professor da Fa-
~~de de Direito de Paris. cuja elegância esti-
D1'z. \:lem Wald que"a idéia de que a óor hu-
hstica não passou despercebida a Amoldo mana não pode ser traduzida em algarismos
Wald, em seu modelar Traité Élémentaire de matemáticos, ou seja, em valor monetário não
Droit Civil, Tomo I, p. 10. explica a razão. É que, mais prevalece numa época como a nossa:'.
após a.queda da administração imperial, certas Tendo sido Wald autor de anteprojeto de lei
prescnÇÔeS perderam ou foram perdendo valor referente às concessões de obras e serviços
e utilidade, pelo fato de Estado se reger por públicos, é altamente significativa sua exposi-
outras normas e instituições poUticas. ção "Novos Aspectos da Concessão de Obras
e do seu Financiamento" (in Revista de Infor-
"Par suíte", ensina ele, "Les jurisconsultes maçi10 Legislativa, n.o 112) em que, além de
n'allaient pios chercher dans les recueils de reafirmar sua preocupação com o econômico e
Justinien que les régles de droit privé. C'est de o social, e de sustentar que "não há mais hoje a
la sorte que le droit civil prit peu à peu son sens distiJ19ão tradicional rígida entre a área pública
actuel et devint le droit privé" . °
e a pnvada. entre Direito Público e o Direito
Desse bloco monolítico desligaram-se, com Privado", reclama a apropriada legislação so-
autonomia, o Direito Comercial e o Direito Pro- bre concessões. "a fim de evitar um risco de
cessual. que veio, posteriormente. a integrar ° frustração do País, em virtude da falta de recur·
l?ireito Público, no sentido atual da expressão. sos adequados para que as empresas conces-
E por isso que o Direito Civil empolgava o Di- sionárias possam cumprir o papel que delas se
reito Privado. espera".
Sem ter perdido a perspectiva histórica Escritor que domina um instrumento expres-
Wald não deixou de assimilar, como resídu~ sional despojado, mas agradável, inteligência
cu~tural, a originária natureza publicística e to- penetrante e possuidor de vasta informação,
°
tahzadora do Direito Civil, que lhe possibili- Wald mostra, em sua obra, indisfarçável reper-
tou alargar seu campo de investigação jurídica cussão do Direito francês, de cujo governo foi
com rara maestria bolsista em 1954. trabalhando no Instituto de
Como registrou no prefácio da 1.8 edição de Direito Comparado em Paris, de sorte que em
seu Curso de Direito Civil, "no mundo da téc- seu espírito ressoa a catedralesca codificação
n!cs, o Direito deve assegurar a disciplinajurí- elaborada por Tronchet, Portalis, Bigot-Préame-
dica, baseado num conhecimento profundo das neu e MaIeville, todos com intensa vida públi-
realidades econômicas e sociais". Essa visão ca, detenninada pela Constituição de 1791, que
ampla também está explícita no ensaio Desen- estabeleceu regime monárquico e representati-
volvimento, Revoluçilo e Democracia (p. 62). v.o, ~otivando projeto de Cambacéres, que se-
n~ consul d~a\, com Napo\efto, pela Con&i-
Na 1P edição de Obrigações e Contratos ~ição de I?9.9 (Lebnm foi cônsul qüinqüenal).
Cpp. 117/120), Wald trata do dano patrimonial e vlOdo particIpar ambos dos debates sobre o
moral. inv~do a Constituição de 1988, que, Código Civil. cujo nome foi restituído pelo art.
como é notóno, resolveu todo o ordenamento 68 da Carta Outorgada de 1814. revista em 1830,
jurídico brasileiro, razão pela qual, sob sua ótica, que manteve sua força obrigatória, denomina-
todas as controvérsias devem ser enfrentadas.
ar. .". a. 32 n. f 28 "'./Jun. fft5 185
çlo que perdurou mesmo quando um decreto contrato eà limitação da propriedade iJDividuaI"
de 1852, do tempo de Napoleão UI, restituiu-lhe observa Paulino Ja<x(ues (Da Norma Jurldica'
o nome de "Código Napoleão" e cujo motivo 2. a ed., p. 35). '
principal de permanência foi seu realismo social. Do Código de Processo Civil (1807). prepa-
porque os redatores levaram mais em conside- rado por comissllo integrada por TreilhaRl. que
ração os costumes (sobretudo os de Paris) do votou pela condenaçAo do rei. Try. Seguier.
que o Direito romano (este vigorava no Midi, Berthereau ePigeau. a principal fonte foi a "or-
aqueles no Norte, atingidos pelo espirito ger- donnm:e" de 1667. do reinado de Luiz XIY. além
mânico), porque. como se lê em Aubry e Rau das leis revolucionárias e dos debates no Con-
(Cours de Droit Civil Français, 5a 00.• Tomo I, selho de Estado.
p. 36), "Ie Droit coutumier était le Droit de la
majorité des françaís. et ]a p]upart des membres MareeI Proust. romancista sobre o qual
de la Section de legislation du Conseil d'État Wald escreveu na juventude. como trataria de
étaient originaires de pays de coutume". outros ternas literários e de assuntos filosófi-
Outras fontes foram as "onlonnances" reais, cos e pollticos, registra em Le Temps Retrouvé
o Direito intermediário, ou seja. as leis que vi- últimovo]ume de Em Busca do 1émpo Perdido'
goravam desde a Revolução. o Direito canô- que viu inscrever-se "no losango de sua jane:
~a". o campanário da igreja de Combray que.
nico. a jurisprudência dos parlamentares e a
profunda contribuição de Pothier. grande ma- pondo assim sob meus olhos a distância das
gistrado e advogado, fàlecido em 1772. Os prin- léguas e dos anos. viera em meio da luminosa
venhua e com tom inteiramente outro do som·
cipios fundamentais do estatuto foram a igual-
dade dos franceses perante a lei. a independên- brio que parecia apenas desenhado":
cia do Direito CiviL em face das crenças. a pro- Através desse losango de palavras, as quais.
teç40 da liberdade individual e a garantia da segundo o poeta Francis Ponge. constituem.
inviolabilidade da propriedade. "00 monde concret. aussi dense, aussi existant
O intervencionismo estatal nas relações pri- que le monde exterieur", evoca-se. palidamen-
vadas foi uma reação a esses principios. te. a majestosa elaboraçAo te6rica de Amoldo
WaId, que o situa. indubitavelmente, entre os
Com a publicação do livro de Gastão Morin. maiores civilistas brasileiros, intérprete de wna
La Revolte du Droit Contre /e Code "010 hou- visAo arejada. corajosa, substancial e renova-
ve mais dúvida quanto à restrição à autonomia dora do fenômeno juridico.
dos indivíduos, à decadência da soberania do

1M
Derecho penal como tecnología social
(Notas sobre las contradicdones dei sistema penal)

SUMARIO

J. Derec/IO penal c1à.~icoY Sll melamoifosis. I.i.


EI modelo c/ósico dei derecho penal. 1.2. Transfor-
mación deI derecho penal clósico. J. EI derecho pe-
naI como tecnologia social. 2.i. Transformaciones
deI derecho penal material. 2.2. Transformaciones
deI derecho penal procesa[ y de ejeCllción de /a penCl.
2.3. Transformaciones de la teoria penal. 3. Vn e}em-
pio reciellte: "reformas IIrgenles" en el sislema pe-
naI coslarricense. 4. Crílica dei derecho penal como
lernolagia .meial. 5. EI F:stado de derecho en la rena-
za de la lerjrimación. 6. Derecho penal y prohibición
deI !'.lceso. 6.i. E.çlado d<' derecho y prohibicíón deI
exce.m. 6.1. Los parámetros dei e.Tceso: idoneidad.
carácter nece.mrio y proporcionalidad. 7. Dos dis-
tinciones. 7.1. Alimento cl((lntilativo v aumenlo roa-
lilativo de la delinCllencia. 72 Prev~nción normali-
va y prevención lecniCfl. 8. Crítica de 'a crilica. 8.1.
Crilica dei principio de prohibición dei e.Tceso. 8.2.
Critica de las distincioneuantidad - cllalidady pre-
vención lécnica - prevención normativa. 9 La pers-
pectiva de IIn derecllO penal democrálíco. 9. I. Dere-
cIJo penaI.I' democracia. 9.2. La idea de Im derecho
penal democrálico como parámetro crílico dei siste-
ma penal. iO. ('lIatro peligros o las trampas de una
politica jllrídico-penaI "Men intencionadtl ". 1O.i.
Escalologia penal. 10.2. Es hllmano el sancionar?
10.3. EI derecho a ser desobediente. 10.4. La sospe-
c!la como metodo.

I. Derecho penol clásico y SIJ metamorfosis


1.1. FI modelo cfásico dei derecho penal
EI sistema dei derecho penal clásico se de-
sarrolla como consecuencia de la critica ai dere-
cho natural por parte deI idealismo aleman I.
Juan Marcos Rivero Sancho: és Especialista en COR anterioridad se habían buscado los
Ciencias Penales. Univt"rsidad de Costa Rica. Doc-
tor en dem:ho. !Jniversidad de Frankfurt a.M. Prof. I Ver: I1ASSEMER. Winfried. Produktverarl-

Universidad Autónoma de Centroamérica. Prof. Iworhmg inr modemen Slrafrecht. Heidelberg, C.F.
Universidad de Costa Rica. Müller Jurislischer Verlag. 1994. p.4.
187
principios de la filosofia práctica en ideas obje- doce la represiÓD penal ai núnimo posible'. A
tivas deI bien y de la justicia, en la voluntad eUo colabora0., decididamente:, las siguicntes
divina. en la naturaleza dei bombre. etc. Por ello tnixirms:
podja considerarse aceptable una nonna penal EI principio dei derecho penal como ulli'!"2
eo la medida cn que ella guardara correspon- ralio. que seflala que el derecho penal. debido
dencia con la ley divina o natural. tanto a sus consecuencias estigmatizantcs
EI idealismo alemãn. por el contrario. pro-- como a los vinculos que debe guardar con eI
blematiza la creencia en la posibilidad de un Estado de derecho. 5610 debe reaccionar frente
conocimiento a priori de valores materiales. a las perturbaciones más importames de la con-
Kant pone de manifiesto la cuestionabilidad vivencia social y ésto a condiciÓD de que las
epistemológica de las construeeiones de la me- dernás ramas deI ordenamiento juridico bayan
tafisica tradicional y muestra que ellas fracasan fracasado en la tarea de proteger los valores
a la hora de fundamentar leyes práeticas con fundamentales eo juego. La idea esencial en
pretensi6n de validez universal, pues la razón este sentido es la de que el derecho penal no
humana sólo puede reconocer carácter necesa- puede protegerlo todo; es solamente "Ia més
rio y vinculante a aquellas normas y regias que atilada espada deI contraI estatal..,.
eUa misma se ha dielado. Luego de la "Critica EI principio deI den:cho penal fragmentario.
de la Raz6n Pura", resulta en consecuencia im- según el cuaI el derecho penal constituye un
posible. como lo ha puesto de manífiesto eI Prol conjunto discootinuo de ilicitudes donde los
Hassemer extraer d contenido concreto de las espacios vacios significan necesariamcnte li-
normas jurldico-penales de un código divino o bertad.
de una ley natural eterna. En e1 centro de la EI principio de no confusión entre el dere-
filosofia práctica de Kant ~tá más bico e1 coo- eho penal y la moral, de confurmidad a:m c1
cepto de autonomia. de la razóo práctica como cuallos leros que 500 contrarios a la moral de
auto-Iegisladora. Para el idealismo alemán no un grupo detenninado no necesariamente tie-
se trata en consecuencia de derivar el ordena- nen que ser por ese ~smo hec~ tipificados
miento juridico de un conjunto de princ!p~~ como delito. De grau importancia es til este
supremos. sino más bieo de seflaIar la poslblh- sentido el concepto de bien jurldico. que com-
dad de concertar el orden juridico a través de pIe originariamente una funci6n descri~
aquellos que se verão regidos por él. EI modelo doca: Las sanciones pena)es (penas o medidas
de esta teoria lo constituye el contrato social. de seguridad) que tienen por fin no la protccci.-
La idea fundamental es que a través de este 6n de un bien juridico concreto. sino que sola-
contrato no se modifica eI volumen o la extensi- mente persiguen asegurar concepciones mora-
ón de la libertad dei hombre. sino sólo su moda- Ies. no resultan legitimas7•
Iidad: se renuncia a la libertad "saIvaje" o "sin
ley" en beneficio de una 1ibel1ad "segura", ejer- El principio de aJlpebilidad. que ~ la pena
cidad aI amparo de leyes justas3. Es un orden dependiente de la posíbilídad de que se formu-
fundado eo la libertad y para la libertad. le ai sujeto unjuicio de reproche por no baber~
En este marco conc:eptual se desarrolla el se comportado confOl'l7U! a derecho pudiendo
derecho penal clásico. el cuaI viene a cumplir haberlo hecho. Este juicio de reproche es de
uo encargo social determinado: debe marcar (y carácter estrictamente jurldico: se reprocha no
asegurar) los limites de la libertad civil. EI dere- haber aetuado conforme ai ordenamientojurl-
cho penal clásico se configura as' como el dere- dica, no el haber violado tal o cual precepto
cho de "Ias violaciones a la libertad y sus con-
secuencias" 4 y postula una serie de principios 5 Ver: HASSEMER, Wmfricd. op. cit.• p. 3 ff.
cuya filosofia, si se la mira detenidamente, pa- 6 AsI: ALBRECHT. Peter-Alcxis, Formali.ic-
rece poder reducirse a la idea de que la única nmg versus Flex.ibilisierung: Strúrecht quo vadis'1,
cn: ~ guten, da noch stets da Bole schlffi. En-
poUtica criminal conveniente es aquelJa que re- ,'Jayos cie"tifico-criminales ert honor ih, Herbert
J4F, oditado por Lormz BiJl1illF YRDdig:r Laut-
2 HASSEMER, Winfried, Theorie und sonolo--
mann, Frankfurt a.M., Suhrkamp, 1993. p. 255.
gie MS Verbfffhens, Frankfurt a.M., Athcn um Ver·
7 AIIÍ: HAssEMER. Winfricd, Sozialtechnolo-
1ag. 1973, p. 29.
J Ver: KERSTINO. Wolfgang. Wohlgeordnete
gic und Moral; Symbole IUld R.cchtlgt)1Cr. cn: IWcItu
F~iheit. Frankfurt a.M. Suhrkamp. 1993, p. 351. und Moral, editado por Hcike JUOS. Heinz M01Ier·
Dlc1z y mfricd Ncumann, Baden-Badcn, Nomos,
.. HASSEMER. Winfried. op. cit.• p. 5. 1991, p. 331.
ia
moral. Con eI principio de culpabilidad se ex- dicionales fórmulas deontológicas de legitima-
cIuye además la responsabilidad por eI resulta- ción se considera0 entonces insuficientes para
do. La culpabiJidad se configura asi como un justificar la intervenciÓD jurídico-penal. El sis-
elemento constitutivo deI delito, sin el coai no tema penal como tecnologia social se ve así ante
es posible hablar de un hecho punible. la imposible tarea de demostrar en todos los
E] principio de inocencia, según el cuaJ na- campos en los que es requerido, que es funcio-
die es culpabIe hasta tanto no se demuestre en nal, que produce consecuencias favorables y
juicio su culpabiJidad. Fundamento deI princi- evita las desfavorables 'o.
pio de inocencia es la idea de que vale más de- 2. Derecho penal como tecnologia social
jar Jibre a un delicuente que sancionar a un ino- Puede afirmarse que el tránsito dei derecho
cente, lo que, según mi manera de ver las cosas, penal bacia una tecnologia social se observa
oonduce a limitar las bipótesis de prisi6n pre- en la mayoria de los ordenamientos jurídicos
ventiva. En fecto, si el imputado no es culpable deI mundo actual. En Alemania, por ejemplo, la
hasta tanto una sentencia no lo declare tal, la nueva tendencia encuentra respaldo en una
restricci6n de su Jibertad en el proceso debe ser parte significativa de la teoria y práeticajudici-
la excepc:i6n y no la regla. al, precisamente aquella que podriamos llamar
El principio deI debido proceso, que se re- conservadorall . Las directrices generales de esta
suelve en una serie de derechos que configu- nueva orientación deI derecho penal son claras
ra0 la noci6n moderna deI proceso y entre los
y pueden sintetizarse, como ya ba sido puesto
que se destacan, sin querer ser exahustivo, los de manifiesto l2 , en los siguiente puntas funda-
siguiente: a) amplías posibilidades de defensa mentales:
en juicio, b) derecho de ser oido en eI proceso, 2. L Transfonnaciones dei derecho penal
c) notificaci6n de las resoluciones, d) posibili. material
dad de apelar las decisiones judiciales sin que En primer lugar se producen cambios signi-
sea posible que se resue]va la apelaci6n en per- ficativos a nível dei derecho penal material.
juicio deI apelante (prohibici6n de la reforma- Meta dei derecho penal material pasa a ser
tio in peius), e) derecho a unjuez natural (sólo sobre todo la persecución pronta y eficaz de
aquel que ha sido investido con arreglo a la una serie de fenómenos que ]a llamada "opini-
constituci6n y las leyes con la potestad de diri- ón pública", manipulada de ordinario por los
mir los conflietos juridico-penales puede deter- medios de comunicaci6n colectiva, considera
minar si una persona ha cometido un delito e peligrosos. EI derechopenal esllamado acurn-
imponerle la sanci6n correspondiente), f) dere- p]ir eficazmente su funci6n represiva en los más
cho a no ser juzgado dos veces por el mismo variados campos: Ia eoonomía, la política ambi-
delito (non bis in idem). ental, la política fiscal, el derecho deI consumi·
1.2. Transformación dei derecho penal
clásico \0 lbid., p. 331.
En estos principios se refleja un particular 11 Una encuesta realizada en Alemania a los Jue-

aspecto de "la dialéctica de la modemidad"8. ces y funcionarios dei Ministerio de lusticia de Hes-
Pues con ellos se pretende combatir originaria- sen, seflala que la mayoría de estos funcionarios estA
mente un derecho penal moralizante oon armas de acuc:rdo en acelerar el preceso penal por medio de
medidas tan radicales Ç()IllO la limitaci6n de los medi-
tomadas del arsenal de la filosofia política de la os de prueba, de las oportunidades en que pueden
ilustraci6n. La batalla, como lo seftala el Prof. ser p~sentados así como de los recursos de que dis-
Hassemer, file ganada yel enemigo result6 der- pone el imputado en contra de las resoluciones judi-
rotado. Pero las annas adquirieron autonomia y ciales (!). Sobre el punto, ver: ALBRECHT, Pcter-
se ban vueIto en contra de los principios ai ser- Alexill, op,cit. (supra nota 6), W. 260 llll. Ver tambi-
vicio de los cuales estaban. EI derecho penal, aI én en este sentido ef proyecto de ley alentán para
radicalizarse la Iucha contra las concepciones "descargar" la administraci6n de justicia, publicado
moralizantes, toma entonces el camino que lo en: Deutscher Bundestag, 12. Wahlpe::riode, Druck-
lleva a convertirse en una tecnologia sociaI9• sache 12/3832. Este proyccto contempla también oon-
EUo coloca aI derecho penal bajo la presión de siderabJes limiÚlciooes de los derechos dei imputado.
11 Una exposiciÓll de estas ideas pucde verse en:
una nueva necesidad de ]egitimaci6n. Las tra-
HASSEMER, Winfricd, Sozialtechnologie; op.cit. (su-
pra nota 1), pp. 329 SIl.; dei mismo autor: Produktve-
• Ibid. rantwOl"hmg (supra nota I), pp. 6 und S8.; ALBRE·
, Ibid., p. 329. cm, Petc::r·Alexis, op.cit., (supra nota 6), pp. 264 86.
dor, consumo de drogas. etc. Ellema de la nue- modificarse en dírecci.6n a una desformalizaci-
va tendencia parece ser: deI cielo a la tierra yde ón de la posición dei prisionero seguido ésto
la cona a la tumba. todo y todos dentro deI sis- de una reducción de los beneficios que se con-
tema penal. ceden a la clientela de las prisiones.
En lugar de perseguirse la proteceión de bi- 2.3. Transformaciones de la teoria penal
enes jurídicos individuales y concretos, se bus- A nivel de la teoria penal se prefi.eren expU-
ca la tutela de bienes juridicos indeterminados caciones funcionalistas que permiten la adap-
y universales (Ia salud pública, el orden públi- tación de los institutos penaIes a los requerimi-
co,la moral y las buenas costumbres. etc.). entos de la moderna politica criminal. EI dere-
Se recorre a la multiplicación de los llama- cho penal deja de ser un limite de la politica
dos delitos de peligro abstraeto, es decir, de criminal-a>mo loconsideraba v. Liszl-. El dere-
aquellos que reprimen una oonducta que ni dafta cho penal se convierte más bien en instrumen-
Di pone concretamente en peligro un bien jurl- to de aquella.
dica lI}, sino que en eJ fondo criminaJjzan tm Las teorias de la pena se fundamenIan iBU8l-
sólo la posibilidad de la posibilidad de una lesi- mente en criterios sociotecno16gicos. La razón
6n a un bienjuridico. por la que se castiga se bus<:a no cn la retribu-
Se reducen los pre5Opuestos de la imputa- ción dei hecho según 50 reprobabilidad, sino
ción de delitos. Se tiende a reprimir las fonDaS de conformidad con las consecuencias que la
de tentativa en lugar de los delitos consuma- sanción pueda tener con relación ai desarrollo
dos; se aumenta la represión de las formas de de la criminalidad. EI individuo eleja de ser la
participación criminal (autoria y complicidad); meta de la pena y se convierte en instrumento
se aumenta el número de los delitos de omisión de la politica criminal.
y culposos. Finalmente se refleja esta tendencia en una
serie de esquemas cognitivos y nonnativos. Se
Se recorre ai uso de cláusulas generales y trata de dominar el futuro, de prevenir riesgas.
conceptosjuridicos indeterminados, oon lo que en lugar de sancionar los hechos ya cometidos.
se lesiona el principi.o de legalidad criminal (5610 Se profesa una fe en la posibiJidad de que el
ellegislador puede determinar que es delito y derecho penal configure activamente la reali-
50S concecueocías) y la seguridadjurídica. dad socioecoDÓmica. La legitimación de las in-
Todo ello va acompaftado de un aumento tervenciones juridico-penales se busca no cn
generalizado de los limites núnimo y máximo de el concepto de justicia sino en el de eficacia. no
las sanciones penales, con lo coai se pretende es la persona dei delincuente y la reprobabili-
satisfacer eI interés de la prevenci6n general. dad de sus 3etos lo que es relevante. sino los
2.2. Transformaciones dei derecho penal imperativos funcionales de una sociedad des-
procesal y de ejecución de la pena personalizada.
A nivel dei derecho procesal penal se ob- Por lo dernás puede decirse que la tenden-
serva la tendencia a mejorar la eficiencia dei sis- cia de convertir ai derecho penal en una tecn0-
tema a costa de los derechos dei imputado. Esto logia social tiende a impregnar todas las mani-
se manifesta en el aoortamiento, abaratamiento festaciones dei quehacer jurldico penal y afec-
y desformalización dei proceso y el rechazo de ta de ordinario todas las instaneias de contrai
supuestas "perturbaciones dei proceso" pro- social: legislaci6n, administrnción de justicia, eje-
venientes dei imputado y 50 defensa. El proble- cuci6n de la pena. policia, rninisterio público. etc.
ma radica en el hecho de que todas esas refor- 3. Un ejemplo reciente: "reformas urgen-
mas, que pretende0 verificarse en favor de la tes" en el sistema penal costarricense
protección de la vletima dei delito. corren, por
decirlo así. a cuenta deI imputado y no dei Esta- Un ejemplo reciente de esta tendencia pue-
do represor u . Elias se traducen a menudo en de verse en el proyecto de Iey que rue reciente-
una reducci6n de las posibilidades de defensa mente sometido a la consideración de la Asam-
asi como de los trámites procesales e investiga- blea Legislativa costarricense por el Ministro
ciones tendientes a la averiguación real de los de Seguridad y que \leva el significativo titulo
hechos. de "Reformas Urgentes aI Código Penal, el Có-
EI derecho de ejecuión de la pena tiende a digo Procesal Penal y Ley Orgánica de la Juris-
dicción Tutelar de Menores"·4.
13 HASSEMER, Winfried, Sozia/technologie; 14 La critica siguientc se basa en cl proyecto pro-
op.cit. (supra nota 1), p. 329. puesto el 14 de diciembre de 1992. en trimite co la
170
En sus líneas generaIes se basa la propues- bis) Yque configura0 una política de tratarnien-
ta en los siguientes aspectos: to deI menor, que en el mejor de los casos es
Se plantea una nueva tipificación de deter- inadecuada y obsoleta y que se resuelve, en
minadas condudas. En este sentido se propo- sus rasgos fundamentales, en las siguientes
ne considerar como delito internacional el tráfi- medidas: I) sometimiento al menor a exámenes
co de vehículos automotores proveniente de técnicos para detenninar su adicción a las dro-
aetividades ilícitas (reforma ai art. 7 C.P.); se gas o aI alcohol, 2) internación dei menor como
introduce la figura de la conspiración para co- medida tendiente a su recuperación (!) y 3) se
meter el delito de homicídio tanto simple como propone la especializaci6n de determinados ór-
calificado (arts. 111 y 112 C.P.), aspecto éste ganos (O.u., Centro de Infonnación Policial deI
que se relaciona con la inclusi6n de un articulo Ministerio de Seguridad Pública, Ministerio
"47 bis" en la Parte General deI Código Penal, e1 Público), en la investigación y represión de las
cuaI vendria a establecer la figura de la "cons- conductas realizadas ]Xlr los menores.
piración"; se reprime aI que sin estar debida- La concepci6n general deI proyeeto es en
mente registrado yautorizado en el Ministerio reaIidad simple. EUa se resuelve, como puede
de Seguridad Pública, reaIice actividades pro- apreciarse, en un aumento de penas, tipificaci-
pias de los miembros dei servicio de vigilancia ón de nuevas conductas como delitos, reducci-
privada, de la Reserva de la Fuerza Pública o ón de las garantias procesales y persecución
desempefle cualquier clase de labores de segu- de los menores infraetores. Con elJo se preten-
ridad privada (art. 308 C.P.). de introducir una manera de combatir la crimÍ-
Se propone un aumento sistemático de los nalidad basada en lo fundamentaI en una re-
limites mínimos y máximos de las penas privati- ducción sistemática de las Iibertades individu-
vas de libertad previstas para determinados ales y un aumento correlativo de las facultades
delitos. Están en esta hipótesis la reforma aI art. intervencionistas-represoras dei Estado. Todo
74, según la coaI a los autores, coautores, cóm- el proyecto reposa, pues, en la firme creencia
plices e instigadores que realicen el hecho pu- de que ai fenómeno de la delincuencia se le com-
nible con la participaci6n de menores de 18 bate con más represi6n, sacrificio de las liberta-
aflos, se les aplicar la pena más grave aumenta- des individuales y de los principios deI Estado
da en otro tanto; la reforma ai artículo 77 que de derecho.
prevê un aumento de las penas en el caso eo No es mi intención analizar los problemas
que la VÍctima sea un menor de 18 aflos y las que presenta en detalle el anterior proyecto de
reformas a los artículos 209, 229, 213,214,321 Y reforma - los que sin lugar a dudas son muchos
322, que agravan las penas en determinadas y muy graves15. Más bien quisiera llamar la aten-
hipótesis dei delito de robo, daflos, hurto y ex- ci6n sobre la concepción general que lo anima
torsión. En estrecha relación con la idea de agra- y sobre su actitud ante el problema de la delin-
var las penas de prisión se encuentra la propu- cuencia.
esta de introducir pena de prisión para las con- 4. Crítica dei derecho penal como tecnolo-
travenciones previstas por los artículos 374 y gia social
413 c.P. y la introducción de un requisito eco- La concepción dei derecho penal como tec-
nómico para el otorgamiento de la libertad con- nología social es criticable, pues no medita su-
dicional y de la condena de ejecución condicio- ficientemente sobre las causas de la delincuen-
naI (articulos 60 y65 C. P.). cia y las medidas legítimas para combatida.
Se propone como complemento de estas
15 Merece resaltarse en este lugar, y a manera de
medidas una reforma deI artículo 298 dei Códi-
ejemplo, la desaguisada política que se pretende se-
go ProcesaI Penal que tendria corno objeto otor- guir en relación con la reforma de la Ley de la Juris-
gar la posibilidad de negar la excarcelación cu- dicción Tutelar de Menores, la que se basa (según se
ando la víetima deI delito haya sido un menor deduce dei texto de la propuesta de reforma de los
de 18 aflos y coando se imputen delitos de hur- artículos de dicha ley números 21 bis, 23, 32, 43, 51
to, robo agravado y extorsión relacionados con bis y 52) en la idea parad6jica de lograr la recuperaci-
vehiculos automotores. La propuesta de refor- ón dei menor por medio de su intemamiento en ins-
ma de algunos artículos de la Ley de la Jurisdic- tituciones de control. Paradójica porque eI problema
ción Tutelar de Menores (21 bis, 23,32,43 Y51 no se ataca recluyendo ai menor en un establecimien-
to de este tipo, sino sólo por medio de la modificaci-
Comisión de Asuntos Jurídicos de la Asamblea le- ón efectiva de las condiciones socioecon6micas en
gislativa de Costa Rica. las que aquél vive.

Br. .UI• •• 32 n. 126I1br./Jun. 1995 171


En efedo, no es poco frecuente que los le- empeoramientode las condiciones minímas de
gisladores pasen por alto el hecho de que el existencia de amplios sectores de la población
delito es su propia creación. se responde, no creando condiciones favora-
bles a un mejor reparto de la riqueza y de las
Más bien la opinión común es la de que bar oportunidades de acceso a la educación, cultu-
delincuentes por naturaleza, que éstos se en- ra y deporte, sino mediante un aumento de la
cuentran "allí atuera" , en la calle, y que basta represión. Con ello no sólo se desvia la atenci-
con perseguirlos, reprimirios y encerrarlos el ón de los verdaderos problemas que aquejan a
mayor número de aftos posible para que el deli- la sociedad sino que se crea otro adicional: cl
to y la delincuencia se reduzcan sensiblemente deI mantemiento de un aparato repre5ÍVo que
o desaparezcan por completo. crece dia con dia.
No hace falta sefialar lo ingenua que es esta Toda campatla que tiende ai aumento de los
visión de las cosas. Frente a eUa quisiera resal- delitos y de 50S penas reposa sobre la creencia
tar en forma de tesis, los siguientes aspectos. de que existe en la socíedad un bloque monoU-
Nadie es delicuente por naturaleza. Delito, tico de valores y una jerarqwa axiológica que
delicuente y deticuencía son creaciones dei sis- es compartida por todos los miembros dei con-
tema de represión de una sociedad (integrado glomerado social. El razonamíento dei legisla-
por las distintas agencias de control, tales como dor es más o menos el siguiente: siendo la vida.
ellegislador, los tribunales, la policia y las prisi- la libertad y la propiedad valores fundamenta-
ones). De aqui se sigue que en la medida en que les para todos, puede lograrse una reducción
se amplie el catálogo de delitos -o se agraven de la criminalidad amenazando a los delícuen-
las consecuencias jurldicas de los hechos pu- tes potenciales con privaciones de estos bie-
nibles-, lejos de reducírse la delincuencia ésta nes. Abora bico, este supuesto no es necesari-
va a aumentar, con la consecuencía de que abo- amente cierto. La vida Y la libertad no son bie-
ra los tribunales van a tener que resolver un nes supremos para todos. Para algunos pudic-
mayor número de casos (1os relativos a los nue- ra ser más importante el disfrutar de determina-
vos delitos) y se va a tener que gastar más dí- dos bienes materiales por un tiempo determina-
nelO eo aumentar ]05 recursos policíales y del do. aÚD coando ello pudiera comprometer su
sistema penitenciario. vida o libertad. Esto explicaria él porqué. Ia in-
Existe, claro está. el fenómeno de la violen- troducción de la pena de muerte o el aumento
cia. Esta es un feoómeno omnipresente en toda de la de privaciÓll de la 1iber1ad no vayan siern-
sociedad. El problema de la reacción dei siste- pre acompafiadas de una reclucciÓD co el núme-
ma penal ante la violencía, sin embargo, no pu- ro de delitosl6 • Y la propiedad como valor sólo
ede resolverse de un modo que engendre nue- tiene sentido para aquellos que la poseen. Por
va violencia por medio de más represi6n De
eso no es posible establecer una conexión inc-
aqui la importancía de investigar en que medida ludible entre el aumento de las penas Y delitos
otras ramas juridicas y otros sistemas sociales Yun m.ejoramiento dei sistema de prevención
diferentes del jurldico (como la polltica, la ec0- general en la sociedad
nomia, la família, la educacíón o la cultura) pue- Que se puede hacer entonces ante el pro-
den aportar soluciones viables para la solucí6n blema de la delincuencía? No es acaso legitimo
o adecuado tratamiento dei problema de la via- el interés que tienen los ciudadanos en que el
lencia y 50S distintas manifestaciones en la 50- Estado defienda 50S vidas, integridad, hbertad
ciedad. Claro está que ello requíete un mayor y propiedad? No es acaso deber ineludible dei
derroche de irnaginación que el que necesita el Estado bacer halgo por mantener O CO 50 caso
recurso aI fácil expediente de aumentar penas y restablecer el orden, la seguridad y la tranquili-
multiplicar los delitos. Pero ese mayor derroche dad públicas?
se ve compensado con el fortalecímíento de las Estimo que una adecuada poHtíca criminal
instituciones democráticas y el respeto a los
derechos fundamentales de los ciudadanos. 16 El Estado actual de las investigaciónes condu-
Las campallas de la ley y el orden no persi- cc a la atinnaci6n de que no existe ningún fundamen-
guen, de manera general, otra cosa más que to cmplrico pera sostcncr la tesís de que la pena de
desviar la atenci6n de las causas socíoecon6- mucm pocda tcner un efcçto preventivo general de
micas de aquellos comportamientos que aten- la delincucncia. Sobre cI punto, ver: MARTIS, Ro-
ta0 contra los valores de la cultura oficial. AI derich, D;~ Fvnktionm der Todustmjf!, Bonn, Fo-
rum Verteg Godesberg, 1991.

172 11."'''. fi. ,rtIor~ .........,,,.


debe tomar en serio estas preguntas y paralela- En efecto, la raz6n fundamental por la euaI
mente admitir que su planteamiento es válido. el sistema penal se toma cada día más ineficien-
EI problema radica en consecuencia no en si el te radica ep el hecho de que ha ido asumiendo
Estado debe velar por los derechos e intereses paulatinamente funciones que no le correspon-
legitimos, sino eo el cómo debe Uevar a cabo den 'j pTetensiones que no está en capacióad
esta politica. de cumplir. EI derecho penal está diseflado para
5. EI Estado de derecho en la tenaza de la reaceionar, fundamentalmente, ante conflictos
legitimación de carácter estrietamente individual. Por eUo fra-
casa coando se le asignan funciones de control
Yo creo que el interes de los ciudadanos en de complejos sistemas sociales tales como las
que el Estado asegure sus vidas y sus bienes relaciones económicas, la cultura, la poHtica, el
debe relacionarse siempre con el interés básico ambiente. En estos campos lo único que puede
de toda persona en que el Estado garantice la hacer el derecho penal es mostrar los dientes19
existencia de espacios de libertad, entendidos de manera simbólica., lo que bien puede tran-
estos como âmbitos en los que las agencias de quilizar momentáneamente a las masas de vo-
represión no tienen ingerencia. Ninguna politi- tantes, pero con el tiempo hace colapsar ai sis-
ca criminal puede pasar por alto estos dos im- tema penal.
tJerativos sin que el Estado pietda \egiumidad,
entendida ésta en el sentido en que el sociólo- No obstante: el discurso de la descriminali-
go alemán Max Weber le atribuyó a este térmi- zaci6n no es, por si mismo, suficientemente cri-
no, esto es, como explicaci6n dei porqué y bajo tico. Pues no da respuesta a cuales conductas
qué circunstancias la estruetura y sistema dei deben descriminalizarse y cuales no, oi tampo-
orden social existente es aceptado o ai menos co seflala eual reacei6n ante las conduetas que
tolerado por los sujetos y grupos que lo cons- no han sido descriminalizadas puede conside-
tituyen. El concepto de legitimación designa rarse legítima. Es necesario, en consecuencia.,
pues la base de confianza sin la cualla estruc- avanzar todavía más.
tora dei orden social no es capaz de mantener- 6. Derecho penal y prohibición deI exceso
se l7 . Esto explica la complicada situación dei 6.1. Estado de derecho y prohíbición deI
Estado de derecho, que debe combatir la crimi- exceso
nalidad, porque sino incumple su función de Un principio de solución dei problema con-
garante de los derechos e intereses de sus ciu- siste en comprender que ellegislador no puede
dadanos. Pero para combatir este fenómeno no definir cuando y como se le antoje cuales con-
puede recurrir a cualquier medio, porque la 00- duelas deben ser consideradas como delito oi
plementaci6n de medidas que reduzcan siste- tampoco es libre de reprimir indiscrimidamente
máticamente los derechos fundamentaIes Ilevao esas conduetas con las penas y medidas de
con el tiempo a socavar los fundamentos mis- seguridad que arbitrariamente decida imponer
mos dei Estado de derecho. El Estado de dere- sin lesionar ai mismo tiempo con eUo el princi-
cho se autoelimina tanto si no hace nada frente pio de prolubici6n dei exceso ( ObennafJvel'bot).
al problema de la delincuencia, como si se exce- En este sentido resulta í1ustrativa la juris-
de en su represi6n. prodencia dei Tribunal Constitucional Alemán
Por encima de todo debe tenerse muy en (Bunde:rverfassungsgerícht), el cuaI en una se-
cuenta que la única funna de lograr unajustic:ia rie de sentencias ha elevado el principio de la
penal eficaz, que garantice a los ciudadanos la prolu'bición dei ex<:eooa\ tango 1k ronDa tt.CU>-
protecci6n de sus intereses esenciales y a la ra de toda actividad estatal:lO.
vez respete losámbitos de hbertad y los derechos Según la doctrina alemana mayoritaria, la
fundamentales de las personas, consiste en im- prohibición dei exceso se deduce de manera
plementar una poUtica de descriminalizacónl8• necesal'ia dei principio dei Estado de dere-
17 WEBER, Max, W;rtschajt Wfd Gese/lschaft, 4. Albrccht., Winfried Hassemer y Michacl Voá, Ba-
Edicióo, TUbungcn, J.C.H. Mohr, vol. n, 1956, pp. dcn-Baden, Nomos, 1992.
551 58.
I' La exprcsióo, sumamente gráflC8., cs de: ~
II Sobre el punto rcsultan ilustrativas las reoo-
mendacioncs realizadas por la comisión de Hcsscn
BREClIT, Pdcr-Alexis, op.cit (supra nota 6), p. 256.
"Política Criminal" para la Reforma dei Dcrccho Pe- 20 Sobre d punto: STERN, IClaus, Das Staasts-
nal, que cstán publicadas cn: Recht.sgüterschutz tbu- recht du Bundesrepub/ik Deut.scnkmd, MUnchen,
ch Entkriminalisienlllg. cd\tado por Petet·Aluis C.H. Beck, 19M, p. ~ 1.
173
Ch011 • EUo tiene importantes consecuencias En resumidas cuentas puede decirse que el
prácticas. Pues si la prohibici6n deI exceso referido principio obliga a la observancia de una
es un elemento esencial deI Estado de dere~ razonable relaci6n medio-fin, sobre todo en
cho, de forma tal que éste no se puede con- aquellos aspectos que tienen que ver COR la
cebir sin aqueUa, entonces no resulta nece- limitación de los derechos fundamentales77.
sario para aplicar el criterio de la prohibici6n EI principio de la prohJbiciÓD dei exceso c0-
deI exceso el que éste se encuentre previsto bra una enorme importancia en relación con é1
expresa o implícitamente en la ley. Más bien deI derecho penal, en virtud de las gravosas
se trata de un criterio reclor de toda activi- consecuencias que las sanciones penales acar-
dad creadora de derecho, especialmente de rean para los sujetos que tienen que sufridas. Y
la legislativa11 • puede afirmarse que el precio que hay que pa-
6.2.ldoneidad, carácter necesario y pro- gar por convertir aI derecho penal en una tec-
porcionaJidad nologia social es, a menudo, la creación de un
sistema de represi6n excesivo, cuya constituci-
EI principio de la prolnbiciÓll deI exceso sefta- onalidad es cuestionable.
la que las intervenciones legislativas en el ám-
bito de la esfera privada sólo son admisibles en 7. Dos distinciones
la medida en que siendo indispensables para la La doctrina reciente propone además una
tutela de los intereses públicos sean además: a) doble estrategia para reaccionar ante la crimi-
id6neas, b) necesarias y c) proporcionadas. nalidad: se sugiere distingir entre un aumento
ldoneidad significa que los medios de que meramente cuantitativo de la delincuencia y uno
se vale ellegislador deben ser razonablemente cualitativo. En segundo término se propone una
adecuados para alcanzar la meta legal propues- consecuente distinci6n entre prevenci6n nor-
taD • En especial debe analizar el tribunal cons- mativa y prevenci6n técnica.
titucional si las medidas adoptadas por ellegis- 7.1. Aumento cuantitativo y aumento cua-
lador son inapropiadas o inútiles para alcanzar litativo de la delincuencia
y fomentar el fin o fines perseguidos por la ley. La primem estrategia consiste en estable-
La jurisprudencia constitucional alemana cer, como ya se dijo, una distinci6n entre un
también ha dicho que el principio de la prohibi- mero aumento cuantitativo de la criminalidad y
ci6n deI exceso significa que las medidas legis- uno de carácter cualitativo. La doctrina afinna
lativas de intervenci6n en la esfera privada no que ambos fen6menos se diferencian en cuan-
s610 deben ser adecuadas para lograr el fin pro- to a las causas que les dan origen y requieren
puesto por el legislador, sino también deben diversas estrategias de prevención y represi-
ser necesarias en el sentido de que el fin legis- 6n 18. EI aumento cuantitativo de la delincuen-
lativo no pueda ser realizado de una manera cia se presenta con el fen6meno de la Uamada
menos gravosa para la persona24 • delincuencia en masa (Massenkriminalitdf). Un
Finalmente se requiere que el peso de los aumento cualitativo de la delicuencia podria
deberes que se hacen recaer sobre los ciudada- marcarJo la aparici6n dei fen6meno de la crimi-
nos como consecuencia de la intervención le- nalidad organizada, entendida ésta en su senti-
gislativa esté en relaci6n de razonable propor- do estricto, esto es' como aquella que tiene por
cionalidad con las ventajas que se deriva0 para fin acceder y controlar precisamente a aqueDas
ellos mereced a la intervenci6n dellegisladof5. instituciones que tienen por objeto el combatir
Si la medida resulta "inexi.gible", "desproporci- la criminalidad: policia, ministerio piblico, tri-
onada" o "excesiva" de conformidad con este bunales, sistema penitenciario. "Lo propio de
criteno es contraria a la Constituci6n16• la criminalidad organizada es la parnlizaci6n dei
brazo que se encarga de combatirla; con la cor-
21 Ibid. mpci6n dei aparato estatal apareceria verdade-
n Ibid, p. 864. ramente una nueva forma de criminalidad"~.
B BVerroE, 35, 382 (401). Se refiere a la senten-
ri Ibid, p. 863.
cia deI Tribunal Constitucional Federal Alernán (Bun-
desverfassungsgcricht), citado aqui y eu lo sucesivo 21 HASSEMER, Winfried,Recht.utaadiclreGren-

según cI número de tomo, sentencia y página. zen der Bekdmpftmg der' Organmer'fen Kriminali-
tãl, Frankfurt a.M., Manuscrito de la conferencia
2<1 BVerfOE, 39, 156 (165); 57,250 (270).
pronunciada ante la EuropAische Rcchtsakadcmie
25 BVerfOE, 38,281 (302). Tria, 1994, p. 1 88.
]li STERN, Klaus, op.cit., (supra nota 17), p. 866. l' Ibid., p. 2.

174
EI sentimiento de inseguridad de la poblaci- 8. Critica de la critíca
6n y 50 temor frente a la posibilidad de ser víc- Las soluciones antes expuestas, por más
tima de un delito se basa, en lo fundamental, en sugerentes que puedan ser, no dejan de ser en
un aumento cuantitativo de la criminalidad, que el fondo insatisfaetorias.
se manifiesta sobre todo en delitos taIes como
el robo de vehículos, robos practicados en las 8.1. Critíca deI princípio de prohibición
viviendas o en la vía pública (llamados popu- dei exceso
larmente "carterazos"), bandas juveniles, etc. EI principio de prohibici6n deI exceso, apli-
Ahora bien, el hecho de que los delitos se cado aI derecho penal, quiere suministrar un
realicen de manera profesional, por media de paràmetro de crítica de las políticas criminales
bandas, a nivel internacional, con el empleo de excesivas. Pera las posibilidades reates que ofre-
moderna tecnología o incluso con el empleo de ce este principio para controlar eI aumento de la
medios financieros considerables, no represen- represión estatal no deben sobreestirnarse. En
ta, en general, nada cualitativamene nnevo, sino efecto, lo que es "idóneo", "necesario" y "pro-
tan sólo, como lo afinna la doctrina de comenta- porcionado" no puede apreciarse de manera
ri030, un aumento cuantitativo de las prácticas absoluta. Algo es idôneo, necesario y propor-
delincuenciales comunes. Para la represión de cionado sólo para determinados sujetos, en
este tipo de criminalidad bastarian por lo gene- determinado tiempo y en detenninado lugar. De
rallas leyes penales existentes (en lo funda- fQrma tal que· dependiendQ de los sujetos, los
mentai eI Código Penal, Procesal Penal y leyes tiempos o la sociedad - podria estimarse inclu-
conexas). A lo sumo se requiere Wla cuidadosa so que la supresi6n de derechos fundamenta-
adaptación, pero no la sustitución de los prin- les de los individuos (por ejemplo, la pena de
cipias clásicos garantes de los derechos fim- muerte) es necesaria para combatir la delincu-
damentales31 • 8ólo para combatir un aumento encia. Abora bien, estas restricciones o supre-
cualitativo de la delincuencia, en especial al fe- siones de los derecbos fundamentales resultan
nómeno de la criminalidad organizada, p:xIrian inadmisibles, como se exprondrá más adelante,
resultar necesarias medidas más enérgicas. si se parte de la perspectiva de un derecho pe-
nal democrático. Por lo demás, no debe perder-
7.2. Prevención normativa y prevención se de vista que el principio de prohibición del
técnica exceso pierde su carácter crítico y se convierte
La distinci6n entre prevención normativa y en un elemento de legitimaci6n deI control so-
prevenci6n técnica es también importante. Por cial, en aquellos casos en los que el Tribunal
prevenci6n normativa se entiende aquella que Constitucional sefiala que las medidas adopta-
tiene lugar por media de la creación de delitos y das por ellegislador no son excesivas.
sancionesjurídico-penales. La segunda es aque-
tIa que combate la crimi nalidad con una serie de 8.2. Critica de las distincíones cantidad-
medidas de carácter técnico que tienden a eli- cualidad y prevención técnica~ prevención
minar los supuestos fácticos que favorecen las normativa
conductas deIictivas. En este sentido se ba pro- La distinción entre el aumento cuantitativo
puesto recientemente como alternativa al recm- y cualitativo de la criminalidad es doblemente
decimiento de la prevenci6n normativa un me- criticable. En primer ténnino, porque se conten-
joramiento de las medidas de prevenci6n técni- ta con afirmar que para reprimir un aumento
ca. Por ejemplo: para combatir fenómenos de cuantitativo de la criminalidad bastan las leyes
corrupciÓfl en la admínistración pública no ha- existentes, con lo cual se deja sin problematizar
ria falta crear más delitos y agravar las penas el sistema de represi6n existente. Por otra parte,
existentes, sino adoptar medidas de reorgani- sugiere que ante un aumento cualitativo de la
zación admi nistrativa que hagan desaparecer o crimínalidad se pueden utilizar medidas más
modifiquen las estructuras que favorecieron eI P.nérgicas. Ahora bien., estas "medidas más enér-
surgi miento de los problemas de corrupciôn. O gicas" suponen, de manera general, un ataque
bien: para combatir el problema de la droga es a los principias deI Estado de derecho.
necesario hacer desaparecer el mercado ilegal, Ai concepto de prevenciôn técnica también
a lo que podría contribuir, paradójicamente, su se le pueden hacer varios reparos: I) no debe
legalización. olvidarse que toda medida de prevención téc-
)0 Ibid. nica, en tanto que provenga de algún ente pú-
blico, debe estar amparada por alguna norma
H Ibid.
• r..al• •. 3211. 1211 . . ../JIIII. 1995 175
dei ordenamiento jurldico. A ello obliga el prin- la represión jurldico-penal.
cipio de legalidad administrativa. Por tanto, las Las sociedades modernas son, en rcalidad.
medidas técnicas tienen también una base nor- sociedades de minorias. en eI sentido de que se
mativa, 2) por otra parte, debe tenerse cuidado componen de una serie de grupos y subgrupos
en no caer en la trampa de que las medidas téc- muy heterogéneos, cada uno de los cuales se
nicas vengan a resultar más peligrosas que Ias rige por sus propias representaciones dei mun-
estrietamente normativas. En efedo, un aumen- do y de lo que se considera valioso o no. La
to considerable de la intervención estatal re- llamada "cultura oficial" no es la cultura de t~
dunda. en general, en detrimento de la libertad dos, Ri siquiera de la mayoria. La cultwa oficial
individual Yen beneficio deI sistema de control es también cultura de minorias, precisamcntc la
oficial. de aquellas que han logrado elevar sus propias
9. lA perspectiva de un derecho penal de- representaciones ai rango "oficial".
mocrático La existencia de una cultura oficial supone
9.1. Derecho penal y democracia necesariamente la presencia de una serie de te-
Conviene primero que nada relacionar dos presentaciones culturaJes que no son oficiales
conceptos: derecho penal y sociedad democrá- y que, por tanto, concurren con aquella. Como
tica. la cultura oficial a menudo se encuentra reves-
tida dei poder definitorio de lo que debe ser
EI derecho penal constituye un conjunto de considerado valioso o no, no es raro que la te-
normas cuya estnJctura lógica está constituida laci6n entre la cultura oficial y Ias subculturas
por un supuesto de hecho (comportamiento que que existen a 50 lado se traduzca en represi6n,
la norma define como delito o contravención) y la que se resuelve a favor de la primera y en
un efecto juridico (que es siempre una valoraci- detrimento de las segundas. Por esta razón es
ónjuridica dei comportamiento definido como frecuente que el fenómeno de la reprcsión se
delito). EI efectojuridico propio de las normas presente como una especifica variante de las
juridico-penaIes se resuelve en el deber ser de relaciones de poder entre minorias concurren-
una sanción que consiste siempre en una pena teso La represión tendrla 50 origen coando por
o en una medida de seguridad. diversas razones de orden sociológico una mi-
En la estrnetura lógica de la nonnajurldioo- noria alcanza el poder de definici6n relativo a
penaJ se relevan así dos problemas que mere- que conduetas deben ser sancionadas como
ce0 resaltarse: él deI poder de definición dei desviadas, nocivas, perjudiciaJes, etc. y priva
comportamiento como delito O contravención de vaJidez a toda otra manifestación cultural.
y la represión que se revela en la sanción que La represi6n lIega a uno de sus pontos más
se liga a tal comportamiento y que lleva implici- problemáticos cuando una minoria aJcanza el
ta una lesión de los derechos fundamentaJes de poder de definir cuales conduetas se conside-
lapersona. ra0 delitos, cuales son 50S consecuencias y
Por sociedad democrática entiendo aquella quienes deben ser considerados delincuentes.
en la que todo ciudadano tiene la oportunidad: En una sociedad democrática. por d contra-
I) de desempeftarse potencialmente tanto en eI rio, el poder de definici.6n relativo a las c:onduc-
rol de legislador como de destinatario de nor- tas que cleben considerarse como delitos y a
mas. 2) de participar en los procesos de decisi- las sanciones que se aplica0 como consecuen-
ón de los problemas de la comunidad, y en la eia de aquellos, debe ser objeto de critica por
que 3) e1 fundamento último de legitimidad de parte de todos los grupos que componen la
toda decisión o instituci6n poJitica o juridica sociedad. Todo ciudadano en 50 doble rol de
radica en el hecho de que es producto de una legisladorpoteocial y destinatariode normas dcbe
discusi6n en la que todos los miembros deI con- poder participar activamente en Ia critica y ~
glomerado social han podido tomar parte. blematizaciÓR de dicho proceso de definici6n.
9.2. lA idea de un derecho penal democrá- La politica criminal, la dogmática penaI y en
tico como parámetro critico dei sistema penal general las ciencias penales, en 50 calidad de
De la uni6n de estas conceptos -derecho discursos especializados en la tematiZ3CÍón de
penal y sociedad democrática- se sigue, en lo los problemas criminales, juegan en los proce-
que aqui interesa, un parámetro para criticar: 1) 50S de definición de los delitos y las penas un
la legitimidad de las medidasde represi6njuri- papel de gran importancia. Con todo ddJe scfta-
dico-penaIes y 2) determinar el limite mismo de larse que en una sociedad democrática el dis-

.78
curso de las ciencias penales no puede recla- ma de las garantias jurídi~procesales, pues
mar una absoluta autoridad epistemológica en en este caso se niega o reduce la posibiJidad de
lo que concieme a la comprensión de la crimi- hacerjusticia, sin la cual ninguna sociedad de-
nalidad y los medios de combatirla. No existe mocrática puede existir.
una "realidad alU afuera", que "la ciencia" cap- EI ejercicio de los derechos fundamentaJes
ta Y la presenta como verdad revelada a los dei ser humano (politicos y sociaJes) es lo que
mortales. La ciencia en general no hace en el hace posible el intercambio efectivo de ideas y
fondo otra cosa que producir una nueva reali- la formaci6n de discursos que problematizan
dad, que concorre con las producidas por otros los diversos campos dei quehacer humano. Yel
discursos sociales (moral, cultura, política, ec0- desarrollo dinámico de estos discursos da lu-
nomia, etc.) y las producidas por las concienei- gar a su vez aI nacimiento de los procesos de-
as de los sujetos individuales. En una sociedad mocráticos, los que SOn responsables de la cre-
democrática debe siempre existir, en consecu- ación legítima deI derecho. Por eUo no pueden
encia, la posibilidad de que eI discurso de las limitarse sistemáticamente los derechos funda-
ciencias penales sea problematizado no sólo mentales de las personas, sin que se afecte a su
"desde adentro", es decir, por los teóricos de vez el carácter demcrático de una socieda.d. De
las eiencias penales, sino también desde afue- aqui se sigue, entre otras cosas, la prohibici6n
ra, por todos los sectores de la población intere- de la pena de muerte, que es la negaci6n abso-
sados o afectados por los problemas eriminales. luta de toda posibilidad de desarrollo de la pro-
En el concepto de sociedad democrática va pia personalidad, de la pena de prisión y gene-
impUcita una barrera de la represi6n jurídico- ral de las penas perpetuas o excesivamente lar~
penal: esta no puede llevarse aI extremo de que gas. Todas ellas se traducen en obstáculos in-
dificulte o ponga en peligro la existencia misma salbables para que determinadas personas o
de los procesos democráticos de decisi6n y grupos de personas se integren efectivamente
enlendimiento. a los procesos de discusi6n democráticos.
10. Cuatro peligros o las trampas de una
Sin querer ser exhaustivo en este punto, creo política criminal "bien intencionada"
que la represi6n jurídico-penal hace peligrar
esos procesos democráticos cuando menos en Con todo, esta manera de razonar esconde
los siguientes casos: cuatro peligros. En primer ténnino, puede fá-
cuando pone en entredieho la existencia de eilmente transformarse en un medio de legiti-
aquel derecho humano primigenio dei que ha- maci6n de la opresión de las clases menos fa~
blaba Kant, a saber, el derecho de toda persona vorecidas de la sociedad. En segundo término,
a participar de las mismas libertades de que no da respuesta precisa aI problema de si el
gozan todos los demás sujetos 32. Tal sería el castigar puede annonizarse realmente con la
caso de una política criminal racista, aÚIl cuan- idea deI Estado de derecho y de democracia. En
do refleje la opini6n de la mayoria; tercer lugar, no dice que hacer en los casos en
que determinadas personas o grupos, de he-
cuando la represión se traduce en un obstá- cho o pot razones iurldicas, quedan tOlalmente
culo para que detenninados grupos de perso-- excluidos de participar en los proceSOs demo-
nas se desenvuelvan como miembros activos cráticos de decisión. Porúltimo, no explica como
de la colectividad y participen en los procesos es posible racionalizar aquello que es irracio-
políticos, económicos, etc. Tal es el caso de la nal: el sistema de control social. De manera tal
eriminalizací6n de detenninadas formas o esti- que es necesario complementar la tesis de un
los de vida (homosexualidad entre adultos, con- derecho penal democrático, con las siguientes
sumo de drogas, confeciones religiosas o cre- observaeiones.
dos políticos);
10.1. Escatología penal
cuando la represi6n se traduce en una nor-
El discurso deI derecho penal mínimo no es
n "Freíheit (Unabhllngigkeit von eines anderen inofensivo. Esconde en realidad una trampa muy
nõtigender Willkür), sofem sie mit jedes anderen peJigrosa. Dicho discurso seftala que el dere-
Freiheit naeh einem allgemeinen Gesetz zusammen cho penal, esa "espada afilada" deI Estado, só10
bestehen unn, ist dieses einzige, ursprüngliche, jedem debe intervenir: I) ante las violaciones más gra-
Menschen, kraft seiner Menschheít, zustehende Re- ves, 2) de los bienesjuridicos más importantes
eht". KANT, lmmanuel, Die Metaphysik der Sinen, de la sociedad y 3) cuando las demás ramas deI
en: Werlazusgabe, editado por Wilhelm Weischedel, ordenamiento jurídico han fracasado en el in-
Frankfurt a.M., Suhrkamp, T. vn, 1977, p. 345.

ar....... 3211. 12fJIlbrJj.... 1N5 177


tento de defender los bienes en juego. Ahora 10.2. Es humano el sancionar?
bien, como el derecho penal está diseftado 8610 NonnaImente no se cuestiona si la idea de la
para resolver -y mal-los conflictos individuales pena, de la sandón, dei castigar, está en reali-
de caráeter tradicional, resulta que el discurso dad en armonia COR la idea deI Estado de dere-
deI derecho penal mínimo supone una adver- cho y de sociedad democrática. Los tratados
tencia para que se renuncie a la pretensi6n de tradicionales dedican largas páginas a la teoria
controlar por medio dei derecho penal la crimi- de las penas. Pero raramente se repara en el
nalidad econ6mica, ecol6gica, la criminalidad hecho de que la pena de prisión es en si misma
de las grandes empresas. en una palabra: la cri- algo profundamente degradante e inhumano.
minalidad de los poderosos. En estas circuns- La pena de prisión trae siempre aparejado un
tancias el Uamado para reducir el derecbo penal mal irreparablepara quien la sufre: el tiempoy
ai Ininimo necesario, se resuelve en última ius- las oportunidades perdidas. Una sociedad que
taocia en una lucha por reforzar el caráeter cla- tolere que existan grupos de personas privadas
sista tipico deI derecbo pena11ibe13.l. Redm:cj~ de su llbertad cn cl fondo deja de ser dcmoaá-
ón de la represión significa entonces represi6n tica, pues las personas sin libertad no son suje-
de las conductas tradicionales, de la clientela tos dei discurso democrático. Derecho penal
tradicional deI derecho penal, en una palabra, democrático no supone que todos se pongan
de las clases y grupos pertenecientes a los es- de acuerdo para crear más delitos sancionados
tratos inferiores de la sociedad. Un lIamado en con penas privativas de la libenad o que au-
favor de la constituci6n de un dereeho penal menten los limites mínimos y máximos de las ya
democrático entrafta, en estas circunstancias, existentes. La discusión democrática de las san-
una burla siniestra. Pues significa lIamar a las ciones debe llevar más bien a eliminar todos
clases desfavorecidas a participar en una dis- aquellos impedimentos para que toda persona
cusi6n que desde el principio no tiene otro fin pueda participar plenamente en los procesos
que eI de criminalizarias. Es como pedirle al que democráticos. Esta discusi6n debe conducir
debe ser ahorcado que se coloque la soga en el especialmente a la institucionalización de pe-
cuello, o decide a aIquien que cabe su propia nas alternativas, que regirian en lugar de Ia pena
tumba. La sonrisa de beneplácito deI sistema de prisiÓD y en los casos en que el proceso de
penaI ante la idea de su democratización es la deslegitimación dei sistema penal no haya De-
dei sepulturero que se alegra ai ver que los deu- gado al grado de la descriminalización -siempre
dos cargan el féretro deI pariente difunto, por- deseable-, de la condueta34 •
que ello significa trabajo para él. La lucha por 10.3. El derecho a ser desobediente
un derecho penal democrático se inserta asi en
Por otra parte debe reconocerse un derecho
esa dialéctica dei bien, que engendra eI mal como a la desobediencia civil, que estaria fundado en
su propia negación. aqueIlos casos en que determinadas personas
Por eso la idea de democratizar eI proceso o grupos han quedado excluídas de la partia-
de definición de los delitos y las sanciones 8610 paci6n eo los procesos democráticos. Este es
puede escapar a esa trarnpa en la medida en que el caso, por ejemplo, de las minorias reprimidas
se toma condeneia de la existencia de esta dia- por el Estado. El reconocimiento de un derec::ho
léctica bien-ma1 y se transforma eI proceso de -moral Yjurídico- a Ia desabediencia civil, es el
discusi6n democrática de los delitos y las pe- resultado neeesario de afirmar el fundamento
nas no en un instrumento de legitimación dei de legitimidad de las normas jurldicas en los
sistema penal, sino en uno de crítica Yde deste-
gitimacíón, fundamentalmente de aquellas re- furt a.M., Suhrkamp, T. lU, 1989, pp. 179 SI.
laciones de represión que ejerce una minoria 34 Sobre el problema de la sustilución de la pena

sobre las demás que componen la sociedad. de prisi6n, véase; LODERSEN, KJaus, Stufenwoile
El1ICtZUng der Frciheitsstrafe, en: SIra.fr«Jttspolitik.
Yo CftX) que un proceso democrático de dis- Bedirrgw.gerr der Slrafrechtsrefomt. Editado por
cusión dei poder punitivo debe tomar el cause Wmfricd Hassemcr, Frankfurt a.M.lBemlNew York.,
de una critica deI poder de definición el cual, Peter Lang Verlag, ] 987. pp. 83 88.; Luzón Pefla,
como lo advirtiera Walter Benjamin en un céle- Diego-Manuel, Die Ersetzungsformen der Frciheits-
bre ensayo, reposa en última instancia en un und anderer Strafen in der spanischen Strafrceh~
ejercicio de violencia11 • form, co: SII'tl.frechtspolitik. Bedirrgrurgm der Strcz·
frechtsreform. Editado por Winfried Husemcr,
33 Ver: BENJAMIN, Walter, Zur Kritik der Frankfurt 8.M,lBemINew York, Peter Lang Verlag.
Gewalt, cn; GesammelteSchri.ften,2. Edición.Frank- 1987, pp. 103 Si.
.,78
procesos de discusi6n democráticos. En efec· que para evitar ese riesgo conviene elevar la
to: las nonnas jurídicas no pueden imponerse sospecha a rango de principio y afirmar que la
legítimamente a aquellos que no han podido razôn es siempre la máscara de la sinrazón. Toda
tener la posibilidad de discutirIas. Y si la aplica- institución, incluso aquellas que afirman ser
ción de la norma es ilegítima, debe tenerse el razonablemente democráticas, deben someter-
derecho de oponerse a 50 aplicación. se a la prueba de la sospecha de ser irraciona·
10.4. La sospecha como método les. Yo creo que esto conduce a rechazar toda
Con todo, no encierran estas elucubracio- pretensi6n de darle a las instituciones -eualquí-
nes otra trampa? Pues, no es en el fondo con- era que éstas sean- un fundamento esencialis-
tradietorio querer racionalizar lo que por princi- ta. Tan sólo queda la posibilidad de buscar fun-
pio no es racional, es decir, la venganza organi- damentaciones de tipo procedural. Es decir, tan
zada e institucionalizada en manos dei Estado? pronto como se semeten las instituciones y las
Corno es posible interactuar racionalmente con ideas aI "torbellino de la problematización"3~, no
lo irracional, sin correr a 50 vez e\ nesgo de quedan más que 9roceoos de di'DlSión. en los
irracionalizarse o, lo que es todavia peor, de lle- cuales unos argumentos sustituyen a otros en
gar a encontrnr ~ razón en la sinrazóni 'lo creo un proces<l perrnanentede IeMVación. 'j critica.

J~ Sobre el papel esencialmente critico de una


moral racional, véase: HABERMAS, Jorgen, Fakti-
zitiilllnd Geltung, Frankfurt a.M., Suhrkamp, 1992,
p. 145.

....." ••• 32 n. 128 __./1l1li. f ft5 179


Da codificação à lei civil brasileira

FERNANDO BRAG4.

sUMÁRIo

1. A lei como idéia e princípio. 2. A codificação


antiga (histórico). 3. A polêmica. 4. As Ordenações.
5. A codificação civil brasileira. 6. Apresentação do
Código Civil Brasileiro. 7. Divisão do Código Civil
Brasileiro. 8. Esquema da evolução do Direito (qua-
dro demonstrativo).

I. A lei como idéia e princípio


A lei é a relação causaI ou funcionaI cons-
tante, existente entre formas de comportamen-
to social.
Deste conceito a polêmica surgiu com a idéia
de um código, como conjunto de preceitos ou
proibições, socialmente aprovados e garanti-
dos por um sistema de sanções, e, juridicamen-
te, como um conjunto de leis e disposições ins-
titucionais, formulado e relacionado com os
aspectos nonnativos da legislação, agrupando
um sistema de mores, que no entendimento de
Ellsworth Faris 1 diz-se de um padrão de com-
portamento sancionado pela sociedade que o
adotou, sendo essas sanções presas à conser-
vação de costumes drásticos, podendo ser le-
gais em todos os casos desde que exista con-
sagrado em lei, e que represente a moral de uma
sociedade, como padrões de comportamento,
mesmo coercitivos.
2. A codificaçiio antiga (histórico)
O Código de HamurábP foi dado a conhecer
em es:rita ameiforme, em lingua~, con-
I In A Natureza e a Significação dos Mores (Es-
tudos de Organização Social, dirigidos por DanaM
Pierson). São Paulo, 1949.
~ Habilidoso rei, soldado, diplomata e legislador.
Viveu provavelmente 2.000 a.C. na Babílônia.
Fernando Braga é Advogado e Professor Univer- ] Adj. de Sumere, regiilo sul do mais antigo Impé-
sitário. rio Caldeu. 3000 a.C.

a,.."••. 32 n. 1 . "JlIIII. 1fNl5 181


tendo 280 artigos. dividido em duas partes. A do direito que a lei trazia implicita, expediente
primeira, trata do direito de propriedade, repres- que os livraria da insegurança vital, resultado
são a roubo e transações comerciais, e a segun~ do ocu1tamento das fórmulas sacramentais de
da, das pessoas, da família, do casamento, dos correntes dos mores majorum. que consistia
crimes contra a fidelidade e do relacionamento privilégio de casta do patriarcado dominante."
de homens livres e escravos. Esse código, se- Este código foi o marco na história do direi~
gundo alguns autores e estudiosos do assun- to humano. E estruturado por uma lei delegada
to, é notável pela sua amplitude, onde discipli- (Iex data) e elaborada pelo magistrado ern ra~
na a vida familiar, a simpatia pelos devedores e zão de poderes recebidos através de uma (Iex
proteção do indivíduo contra a violência e o rogata) proposta por um magistrado e votada
crime. As sanções comínadas ao delito têm uma por cúrias (Jex curiata) oupelos comJcios epor
semelhança com as de talião·, onde, mesmo não centúrias (Iex centuriata) ou ainda quando
sendo configurado o dolo, Q agente da ação proposta por um tribunal submetido à delibera-
pagava do mesmo jeito com que delinqüira. ção dos coDÚcios da plebe (plebiscitum). No
Ampara a mulher casada, dando-Ihe direitos concernente ao Direito Público, abstraída a parte
iguais aos do marido, em se tratando dos bens, referente ao direito penal, são poucas as dispo-
e valoriza os cidadãos como trabalhadores, sições: proibidas de propor aos comícios leis
numa mostra de progresso, na época, superior em prejuizo de um particular (privilegium)~ ~
a qualquer sistema europeu. visão de apelação para os comícios por centúri-
O Código de Hamurábi cogita de uma tripli- as das sentenças condenatórias à morte (pr0-
ce base wútária: administrativa, jurídicae religi- vocativa ad populum). No referente ao direito
osa, estabelecendo urna técnica oficial para os privado: o pátrio poder (patrio potestas) - es-
atos públicos, instituindo uma religião ao Esta- stncia estnttumJ da famíliti ll<JdireiftJ lC1i1lIlLKJ-
do, fazendo do poder urna espécie de realeza de , mereceu apenas duas disposições: a primeira,
direito divino. Esse conjunto de normas se es- revigorando o teor de uma lei régia, a qual obri-
tendia à sociedade, tendo para o tempo enfo- gava o paterfami/ias a matar, logo após o par-
que original e moderno, onde trata da legisla- to, o descendente estupidamente disforme, uma
ção social, caracterizando dois elementos es- espécie de eutanásia; a segunda, também cal-
senciais: a fixação dos salários e o reconheci- cada em lei régia, estabelecia que, se o pai ven-
mento das responsabilidades profissionais. desse ofilho tres vezes, perderia o pátrio poder.
Este é () mais sucinto c6digo existente, apa-
Na cultura original, apare<:eraJn. na Índia, as recido no século V a. C., tendo os estóicos in-
legislações de Mano, líder espiritual, tendo troduzido uma distinção entre a lei do pais (jus
como fonte os livros sagrados, como o Guata- civile) e a lei da natureza Uus naturae). Foi cha-
ma-OItarma-Ctlstra. o nshnu-DItarma-C4stra mado de Doze Tábuas por ter sido escrito em
e o Mdnava-Dharma-Cãstra. Neles se encon- doze pedaços de madeira, à imitação das pe-
tram as doutrinas das muitas escolas brâmanes dras da Lei de Moisés que, pregando a monola-
sobre o Dharma, ou deveres civis e religiOS()s. tria, induzindo OS homens à adoração de um só
Este código fora escrito em Sânscrito, dividin- deus, OU seja, o monoteísmo, devotando essa
do-se em 121ivros, nos quais apenas uma quar- adoração única a Javé ou Jeová, fazendo surgir
ta parte se detém sobre matéria juridica, COm dessa aliança Os Dez Mandamentos, um códi~
textos no livro oitavo, contendo leis de nature- go simples que, relacionando a religião à moral,
za civil e criminal, sendo que a moralidade e a lei mudaria o curso histórico do mundo.
são subordinadas a um sistema de castas, onde
a sacerdotal é a de maior autoridade. Sobre a Lei das Doze Tábuas, Clcer06, em
afirmação tida exagerada pelos romanistas, di-
A cuJturajuJidiaJ de Roma tinha .iníciocom zia que q lióellú'J"OOIltinha todoq direit<J rmna-
a Lei das Doze Tábuas (Lex XII Tabularum), no e valia lnais pela autoridade e utilidade que
que segundo o Professor A. L. Machado Neto, a biblioteca de todos os filósofos.
in Compêndio de Introdução d Ciencia do Di- Roma legou ao univen;o das normas o Cor-
reito' diz ter surgido "quando os plebeus rebe- pusJuris Civi/e, de Justiniano (482-565 a.C.)',
lados reivindicavam a lei escrita, a publicidade que, coligindo documentos de grandes juristas
• Pena que consistia vingar Um delito, causando 6 Marco Túlio Clccro. Sb:ulo I aC. Orador e es-
ao criminOllO dano ou mal 9CJllelhante ao que pratiCllnl. critor latino.
5 Op. cit., lJ. 203. TImpenuior de Bizâncio. Governou de 527 • 565.
182
romanos, reurnu um trabalho de grande mérito, xo do racionalismo perpetrado por integrantes
o qual. até hoje, segundo especialistas, seJVe da Escola Clássica do Direito Natural, influen-
de modelo para a elaboração de códigos da ci- ciados pelo Code Napoleon (dura lex sed lex)
vilização moderna. de 1807 e ratificado em 1852, tendo como intér-
O primeiro Código foi promulgado em 529 e pretes Blondeau e Bugnet, na defesa da lei corno
teve a participação de Triboniano e Teófilo, pro- fonte exclusiva do direito, levando o movimen-
fessores da Escola Jurídica de Constantinopla, to à meditação liberal constitucionalista e ao
seJVindo como alicerce para o Digesto ou Pan- princípio da legalidade (nullum crimem. nulla
dectas, que entrou em vigor em 533, constituin- poena sine proevia /ege). A expansão desse
do-se de ;0 livros, que, à exceção dos de núme- movimento acompanhou a luta pela conquista
ros 30, 31 e 32, se dividem em títulos, subdividi- de constituições escritas, tendo como funda·
dos em leis ou fragmentos precedidos do nome mento o modelo clássico liberai que, repercu-
do autor, contendo uma parte inicial (princi- tindo na Alemanha, o pais mais feudal da mo-
pium) e vários parágrafos, tendo sido elabora- derna Europa Ocidental, iria gerar a famosa po-
do por Triboniano, 15 jurisconsultos, sendo 11 lêmica, tendo, de um lado, Thibaut8 , partidário
advogados, 2 professores da Escola de Berito, da codificação, espelhado no exemplo francês
Doroteu e Anatólio e 2 professores da Escola (napolcônico), defendendo um sistema de logi-
de Constantinopla, Teófilo e Cratino. Ultimado cidade e de mais fácil conhecimento, advogan-
o Digesto. Justiniano designou uma comissão do a realidade histórica amparada pela Egolo-
tríplice romposta de Triboniano, Doroteu e Te- gia, com a lógica do dever-ser aplicada à ideia
ófilo, tomando como padrão os ensinamentos do tempo existencial; e do outro, Savigny9, ir-
de Gaio, para a elaboração de um compêndio racionalista que postulava contra a codificação,
jurídico de 4 livros, o qual recebeu a denomina- partidário do sistema consuetudinário, evocan-
ção de lnstitutiones, derivados de lnstituere do como manifestação maior o espírito nacio-
(ensinar). Nessa obra, os livros foram divididos nal (Volksgeist) na justificativa de que a codifi-
em títulos, e estes, numa parte inicial, em pará- cação seria um esderosamento do direito escri~
grafos. O segundo Código, ou Codex Repeti- to pelo seu constante descompasso com a mu-
toe Praelectionis (Código de Preleção Repeti- tável realidade, em Ta7.ão de uma legislação ex-
da), promulgado em 534, objetivando harmoni- travagante e constantemente revogada.
zar o primeiro código com as inovações super- Foram estes os argumentos de Savigny: "o
venientes, elaborado por uma comissão com- direito é produto da vida social e não de uma
posta por Triboniano, Doroteu e 3 advogados. abstração, não se podendo fixar sob a forma de
Constou de 12 livros divididos em títulos, sub- artigos de um código; a codificação manieta o
dividido da mesma maneira que o Digesto, com desenvolvimento desse produto histórico, que
a diferença de que as subdivisões, também cha- é o direito, impedindo o seu envolver, e sufoca
madas leis, denominaram-se instituições, e não a sua principal fonte de criação; é inútil a codi-
fragmentos. Entre a vigência do segundo Códi- ficação' pois o texto codificado é suplantado
go e da morte de lustiniano, foram promulga- pela elaboração espontânea do povo, tornan-
das outras leis (Novellae), com mais 177 novas do-se, em breve prazo, antiquado e superado" .
normas. Essas Nove/as, que não foram reuni- Estes argumentos, mesmo revistos depois
das em corpo único, compõem-se de prefácio, por Savigny, retardaram a codificação na Ale-
capítulo e epílogo. Ao conjunto da legislação manha.
justiniana (Institutos, Digesto, Código e Nove-
las) deu-se o nome de Corpus Juris Civi/is. Dessa polêmica resultou o esforço da razão
Após a queda do Império Ocidental, o co- humana entre o dever-ser e o vir-o-ser, levan-
nhecimento cientifico e histórico do Direito do, inclusive, alguns sociólogos a meditarem
Romano perdeu-se gradualmente, até que uma sobre as manifestações da "revolta dos fatos
cópia do Digesto, principal parte do Corpus contra os códigos". Vingou, todavia, a tese de
Juris, fosse encontrada na Itália Setentrional, Thibaut (a norma escrita), cabendo àjurispru-
no sé<:ulo XI, tendo, por isso, o estudo do Di-
reito Romano se expandido pela Europa Conti- SFriedrich Justus Thibaut. Jurista alemão (1772-
1840). Autor (Da Necessidade de: um direito civil
nental. geral para loda a Alemanha), )% 14.
3. A polemica
9 f'riedrích Karl Von Savigny. Jurista alemão
No século XIX, teve inicio o mais ferrenho (1779-1861). Fundador da Escola de Jurisprudência
movimento codificadorda história, sob o influ- Histórica.

183
dência histórica de Savigny (a nonna pelos caraeteristicas de soberania: leis, governos. li-
costumes), servir, mais tarde, de base para o berdades, privilégios, usos e costumes. e ainda
sistema científico-racional. a administração da justiça prometida com pro-
4. As Ordenações pósito legislativo de unidade. Além do p~­
50 ordinário, foi também conservado O sumário
A idéia da codificação nos vem de Portugal, e instituido o especial, este aplicável a certas
detentor da pedra angular do nosso direito, causas, como as do despejo, as de executivo
desde as Ordenações. nascidas na Consolida- fiscal e as possessórias, segundo lições do Pr0-
çiJo do Reino, em 1139, com a ind~ncia fessor Antonio José de Souza Levenhagenl2 .
da Lusitânia do jugo espanhol, onde Vigora- Nestas Ordenações, foi editada. em 1729, a Lei
vam leis esparsas denominadas Cartas Forais da Boa RaziJo, que enfraquecia as influências
e Diplomas. disciplinando as ~pçôes, di~i­ do Direito Romano e do Canônico, por q~
to e privilégio, referentes aos direitos ~scal, JU- toes de rivalidade do Estado com o Clero.
dicial e agricola. A vigência dessas leiS perdu-
rouatéD. Diniz, "O Lavrador" (1261-1325), que As Ordenações Filipinas, mesmo depois
da Revolução de 1640)), continuaram em vigên-
depois promulgou a Lei das Sete Pt1!'tidas, ali-
cerce jurídico das Ordenações, fortificadas no cia por força da lei promulgada por D. J~o 1'1,
reinado de D. Duarte "O Eloqüente" (1391-1438), em 29 de janeiro de 1643, e se estendiam ao
ao promover diversas medidas destinadas à Brasil.
organizaçãojurldica (Estado dentro do Estado), 5. A codificaçilo civil brasileira
a integrar os semitas na sociedade portuguesa, A extravagância da legisla.ção contida nas
nascendo assim a idéia de um código único, Ordenações, bem como sua complexidade de
que substitufsse e unificass~ as disposições par- disposição, de diflcil consulta, eram sentidas
celares, às vezes contrárias elou contraditórias. pelos juristas brasileiros. Esse pensamento sur-
ge justamente com as primeiras manifestaçOes
Em 1446, na chamada Idade ch Ouro, foram de uma nova codificação. Após proclamada a
tornadas públicas, por Afonso V; "O Africano" Independência., a lei de 23 de outubro de ~ 823
(1442-1481), as OrdenaçlJesA/onsinas, que ins- determinava a vigência, com algumas modifica-
tituíram, para as causas de pequeno valor, o
processo exclusivamente real e a obriçat~rie­
ções, de toda a legislação portu~ nec:es-
sária., ainda, à continuidade da ordemJuridica,
dade de os juízes tentarem aJcançar, preliminar- ressalvando, entretanto, que vigoraria até a ela-
mente. a conciliação entre as partes. boração de um código que atendesse juridica e
No período denomínado Novos Mundos ao socialmente, uma normatíz.açao essencialmente
Mundo, surgiam as Ordenações Manue~inas~ brameira.
no reinado de D. Manuel 1, "O Desrobndor' Em 1855, oGavemJimperialddiberou,OJmO
(1469-1521 )10, com substanciais modificações na medida preliminar ao novo código, a consoli-
legislação anterior, apenas sumariadas, ~ dação de nosso Direito Civil, em virtude de se
ênfase ao processo comum e ao dever de JUSti- enconttar a legislação, na época, completamen-
ça, atuantes no movimento nacionalista, emen- te esparsa., sem sistemática e sem ordem.. encar-
dadas e atualizadas. regando-se desse engenho, Augusto Teixeira
Coma morte do Cardeal D. Henrique (1512- de Freitas que entregou. em 185~, a obra CaI!-
1580), na era dos fogos de Crepúsculo, mas solidaçao das Leis Civis, COnsl~O o ~­
sob o Poder dos Austrias, como documenta meiro tratadojurídico nacional, admirável b-
João Ameal, Portugal passa para o domínio es- nha de organicidade.
panhol, com o reinado de Felipe 11 de Espanha e
I de Portugal (l580-1598)1l. Eram as OrdenaçX)es Depois da elaboração desse trabalho, o
Filipinas que passavam a viger, com as noonas emínentejurista fo13 conlratBdo para eJabonu o
Projeto do Código Civil, o qual fez divulgar em
estabelecidas nas anteriores, como o processo
1865, parte do esboço com quase 5.000 artigos,
escrito, a mínima iniciativa dosjuízes e a obser-
vância das três fases processuais: a postulató- U In Manual de Direito ProceSSlUJI Civil. Editora
ria ou ordinária, a probatória ou instrutória e a Atlas, 3." 00., São Paulo, 1978.
decisória. bem como a conservação de todas as II Conhecida como a "Jornada de 1.0 de dezem-
bro", quando a Coroa e o Cetro vol~ restaurados
10 In História de Portugal (Das origens até 1940).
para Portugal, conquistados em A1Jubarrota, pelo
f," 00., Livraria Tavares Martins, Porto, 1%8.
Soberano de Castela, D. Joio IV (1604-1656), o
11 Perlodo de reinado. "Restaurador" e fundador da Dinastia de Bragança.
iN
sendo severamente criticado pela Comissão Emjaneiro de 1899, Clóvis Bevilácqua inicia
encarregada de estudá-lo, que o achou longo e seu trabalho, entregando o Projeto, em novem-
prolixo. Entretanto, a obra de Teixeira de Frei- bro do mesmo ano, à Comissão incumbida do
tas, considerada genial, influenciava o jurista estudo, sob a presidência do Ministro Epitácio
Velez Sarsfield, para adaptá-Ia à codificação ar- Pessoa. o qual solicita a colaboração de outros
gentina, como autor, também, naquele país, de juristas e entidades especializadas. Após mui-
um Projeto que levou seu nome. tas criticas e debates em reuniões sucessivas,
Nabuco de Araújo, ministro na época do onde foram emendados e alterados alguns pon-
contrato de Teixeira de Freitas, fora encarrega- tos, surge, então, o Projeto Revisto, que é en-
do de novos estudos atinentes à elaboração do caminhado à Câmara dos Deputados em 17 de
Projeto, vindo a falecer antes de sua conclu- novembro de 1900 e recebido para examiná-lo
são, deixando apenas redigida urna minuta con- pela "Comissão dos vinte e um" que, trabalhan~
tendo 182 artigos. do seriamente, produziu um enorme compêndio
em 8 volumes de atas.
Em 1881, foi apresentado por Joaquim Felí-
cio dos Santos um outro Projeto, estudado por Concluiu-se a aprovação do Projeto em 1902
uma COmissão fonnada por Lafayette Rodrigues pelo PlenáriQ da Câmarn, sendo envlado ao Se-
Pereira, Antônio Joaquim Ribas, Francisco Jus- nado e recebido por outra Comissão encarrega-
tino Gonçalves de Andrade, Antônio Coelho da de revisá~lo, tendo como Relator o Doutor
Rodrigues e Antônio Ferreira Vianna, tendo Rui Barbosa, que apenas em três dias redigiu o
sido, de imediato, criticados tais apontamen- seu parecer, revisando todos os artigos e ex-
tos, pela falta de sistema e também pela prolixi- pondo uma apresentação de emendas. Era pre-
dade. Dissolvida a Comissão, FeUcio, sabendo cedido o trabalho de mestre Rui de uma crítica
de sua tentativa frustrada, entregou seu traba- de conjunto que concluía por acentuar a neces-
lho como colaboração, à Câmara dos Deputados sidade de espelhar o código à cultura nacional,
que o arquivou como documento histórico. para o que requeria vazado em linguagem es-
O Conselheiro Cândido de Oliveira, Minis- correita, de fonna a "considerá-lo à posteridade
tro da Justiça, nomeia, em 1889, uma outra CO-
como um monumento impecável".
missão, reformando o propósito de elaboração Na seqüência desse assunto, faz-se urgen-
do Projeto do Código Civil, mas é alcançado te e necessária a transcrição de uma peça literá-
pela Proclamação da República, não realizando, ria de mestre Rui, intitulada de Gramática e
assim, o seu trabalho. Língua u
"Para bem redigir leis, de mais a mais
Campos Sales, em 1890, verificando os re- não basta grarnaticar proficientemente. A
sultados infrutíferos do trabalho em Comissão, gramática não é a língua. O alinho gra-
entrega ao jurista Coelho Rodrigues o penoso matical não passa de condição elemen-
encargo. Em 1893, termina ele a tarefa, que é tar, nos exames de primeiras letras. Mas
também rejeitada, apesar de o Senado da Repú- o escrever requer ainda outras qualida-
blica tentar, sem êxito, convertê-lo em lei. des; e, se se trata de leis, naquele que
A idéia persiste. O Congresso vota nova lhes der forma se hão de juntar aos dotes
deliberação encarregando o Governo de nome- do escritor os dojurista, rara vez aliados
ar outra Comissão ou designar um só jurista na mesma pessoa. São as codificações
que a concretizasse. monumentos destinados à longevidade
Campos Sales, agora Presidente da Repú- secular; e só o influ.xo da arte comunica
blica (1898-1902), juntamente com o Ministre durabilidade à escrita humana, só ele
Epitácio Pessoa, escolhem o jovemjurista cea- marmorisa o papel, e transfonna a pena
rense Clóvis Bevilácqua, Professor em Recife. em escopro. Neçessário é, portanto, que,
Essa escolha é criticada, conforme transcreve nossas grandes formações jurídicas, à
Mário da Silva Pereira,·4 "sob a alegação de cristalização legislativa apresente a sim-
não set ele profundo oonhecedot da língua, e plicidade, a limpidez, e a transparência
por faltar-lhe, para a tarefa, amadurecimento de das mais puras formas de linguagem, das
idéias", uma vez que a recomendação feita a
Bevilácqua era de aproveitar, no possível, o Pr0- 15 In Coletânea Literária (1868-1922). Organi-
jeto de Coelho Rodrigues. zada, anotada e prefaciada por Baptista Ferreira, 4."
14 In Instituições de Direito Civil, v. I. 2." od., ed. Cia. Melhoramentos, Editora Nacional, 1940, pp.
1966, p. 63. 209-10.
8''''''••. 32 n. 1. . . . ../1.... 1885 185
expressões mais clássicas do pensamen- fez em francês a Anatole France na Aca-
to. Dir-se-á que ponho demasiadamente demia de Letras. E quando da campanha
longe, alto em demasia, a meta que subli- eleitoral na Bahia (1919), quem o recebeu
nho a wn ideal praticamente irrealizável. em nome do povo foi o venerando mes-
Mas eu não exijo que igualemos essa tre e contendor."
perfeição custosa e rara. Basta que, ao O Projeto não teve o andamento que mere-
menos, dela nos esqueçamos. não a p0- cia, fazendo com que, em 1911, João Luis Alves
dendo alcançar: que a lei não seja impre- propusesse sua aprovação provisória, O que
cisa, obscura, manca, disforme, solecis- não foi aceito. Serviu, porém, sua insistência de
ta. Porque, se não tem vernaculidade, cla- estimulo no Senado que, de imediato, o discu-
reza, concisão, energia, não se entende, tiu, votou e aprovou, devolvendo à Câmara para
não se impõe, não impera: falta às regras discussão final das emendas.
da sua inteligência, do seu decoro, da
sua majestade." Finalmente, pela Lei n." 3.071 17, de 1.0 deja-
neiro de 1916, é convertido em realidade o s0-
Divulgado o parecer de Rui Barbosa, é aplau- nho de quase um século, tendo trabalhado em
dido pelos juristas e filólogos, como Cândido sua elaboração os civilistas brasileiros, nota·
de Figueiredo, sendo também criticado por ou- damente na última fase, ada votação, que des-
tros. pertou o interesse de todo o pais e a colabora-
Ainda sobre a apresentação do Projeto do ção de juristas de todos os Estados, com pare-
Código Civil. e à guisade ilustração, éo Profes- ceres, colaborações, críticas e artigos doutriná-
sor Ebion de Lima l6 quem comenta: rios, entrando em vigor somente em 1.° de janei-
"Em 1902 o Presidente da Comissão ro de 1917, wn ano depois. 18
Especial do Código Civil, Dr. Joaquim 6. Apresentaçi10 do Código Civil Brasileiro
Seabra, solicitou ao seu antigo profes- O método na codificaçi1o
sor Carneiro Ribeiro a correção lingüísti- Todo código supõe-se uma distribuição sis-
ca do maior cometimento de nossas le- temática das partes que se compõem. A ordem
trasjurídicas. O gramático, dispondo ape- metódica na classificação das matérias é, por-
nas de quatro dias para rever cerca de tanto, essencial em uma boa codificação.
2.000 artigos, abalançou-se à empresa, em O método histórico tradicional
atenção à amizade e ao serviço patrióti-
co. Passado da Câmara ao Senado, cou- Gaio foi o seu autor. Éa figura mais enigmá-
be a Rui Barbosa emitir o parecer sobre o tica da Jurisprudência Romana. No Digesto
Projeto. Rui impugna-o a começar pela encontra-se fonnulado: Omne jus quo urimur;
linguagem. apontando 524 scnêJes de gra- vel adpersonas pertinet. ve/ adres, ve/ ad ac-
mática, entre os quais 7 correções indé- tiones.
bitas de Carneiro Ribeiro. Este revida em Nesse método o Direito Civil compreende-
Ligeiras Observações. Quanto aos 7 pon- ria as regras referentes às pessoas, às coisas e
tos observados, defende 2 e passa em às ações. Foi aplicado no Code Napo/éon (pes-
seguida a criticar as demais emendas ao soas, bens e as várias maneiras pelas quais se
Senador. Foi então que Rui produziu a adquire a propriedade).
sua Réplica, monumental exibição de fi- A França, como berço do numinismo, prefe-
lologia onde analisa com documentação riu adotar a sistematização compreensiva e ci-
dos clássicos, cada um dos senões no
17 A Lei n." 3.071, de I." de janeiro de 1916, no
parecer que dera. Carneiro Ribeiro retru-
Código Civil foi modificada pela Lei n." 33.725, de
ca com volumoso comentário de 900 pá- ]5 de janeiro de ]9]9.
ginas, demonstrando não me~os vasta e 18 A Lei de Introdução ao Código Civil (Decreto
profunda erudição vernácula. E a Trépli- n,o 4.657, de 4 de setembro de 1942) foi modificada
ca. Foi a mais célebre polêmica filológica pela Lei n.o 3.238, de 1.0 de agosto de 1957. A Lei n."
do Brasil. Proveitosa para a boa lingua- 6.952,de6de novembro de 1981, publicada no DOU,
gem. Muito nobre, porque se terminou a de 7 de novembro de 1981, acresc:enta parágrafo ao
refrega sem rancor. Rui envia ao seu anti- Art. 134 da Lei n."3.071, de 1.0 de janeiro de 1916. A
go mestre um exemplar da saudação que Lei de Introduçio ao Código Civil Brasileiro, em seu
art. 4," eslatui: "Quando a lei for omissa, o juiz deci-
16 In Curso de Literamra Brruileira. VII. Editora dirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e
FTD. S/D pp. 251-2. os princlpios gerais de direito."

I.
entífica. Essa assertiva é oportuna, porque é justa-
o processo de Leibnitz mente na Parte Geral que se enfeixam regras es-
Fundado nas causas geradoras, ou seja, a senciais sobre pessoas, bens como objeto de
diferenciação entre as causas que fazem nascer direito e sobre fatos jurídicos, como causas
ou extinguir o direito. Essas causas são: natu- geradoras, ou extintoras de direitos.
reza, convenção, posse, sucessão e delito. 7. Divisão do Código Civil Brasileiro
Essa classificação não é satisfatória, segun- Conforme já foi dito, nosso Código foi ela-
do alguns juristas, em razão de o direito poder borado pelo método científico-racional, consa-
ter causas diversas, como por exemplo, o usu- grado peios países mais desenvolvidos:
fruto que pode advir da lei, da convenção ou
Alguns estudiosos tem observado algumas
do testamento. omissões, bem como contemplação de institu-
Classificação deduzida na natureza do tos em decadência, sustentando, porém, que
Direito na época de sua elaboração não se afiguravam
Esse critério (pessoais e reais) foi proposto como hoje os institutos apreciados.
por Teixeira de Freitas. A noção, embora sendo Prova-se, no entanto, que a solidez da obra
exata, porque todo direito é pessoal ou real, de Bevilácqua tem resistido ao tempo e, por mais
impossibilita, estabelecidas as divisões, proce- que se a adapte, não há por que mudá·la em sua
der-se às subdivisões, não resolvendo, portan- substância.
to, as dificuldades. 8. Esquema da evolução do Direito (qua-
O método científico-racional dro demonstrativo)
Preconizado, como vimos, por Savigny e O Código Civil Brasileiro é wna peça rigoro-
adotado pelo Código Civil Alemão, compreen· samente científica, devendo apenas ser atuali-
de uma Parte Geral e outra Especial. Na primei- zada, adaptada elou acrescida aquelas partes
ra, são apresentadas as pessoas, as coisas, os que o desenvolvimento sócio-político vem pre-
atos jurídicos e a disposição sobre prescrição e mindo l9 , valorizando ou extinguindo, na razão
exercício dos direitos. Na segunda, estão o di- direta da necessidade atual 20, porque é, sem
reito das obrigações, das coisas, de família e dúvida alguma, o nosso Código, um "monu-
sucessões. mento impecável", uma riqueza de que se orgu-
O método usado no Brasil lha alei Civil Brasileira.
O método científico-racional foi o usado pelo
legislador brasileiro, o qual, segundo o Profes-
sor Washington de Barros Monteiro, com mais
técnica que a verificada no Código Alemão, ao
dar à Parte Geral outra disposição (pessoas, 19 O projeto do futuro Código está redigido com

bens e fatos jurídicos), e invertendo a ordem 2.099 artigos que, se aprovado, substitui o Código
das matérias na Parte Especial (família, coisas, em vigor, bem como a Primeira Parte do Código Co-
mercialde 1850,eaLein. u3.071,de l.udejaneirode
obrigações e sucessões), pois, sendo a família
1916, que contém 1.807 disposições, tendo sido en-
o motivo maior da sociedade, é ali que se en- viada ao Congresso em 1975, pelo então Presidente
contram os mais importantes institutos jurídi- da República Ernesto Geisel. O referido projeto di-
cos e morais. vide o Código em sete livros: Parte Geral, Direito das
Críticas têm sido dirigidas à compreensão Obrigações, Atividade Negociai ou Empresarial, Di·
reito das Coisas, Direito de Famllia, Direito das Su-
da Parte Geral, dizendo-se encerrar princípios
cessões e Livro Complementar, este abrigando as
meramente acadêmícos, elementos heterogêne- disposições transitórias neçessárias à passagem de
os ou abstrações inúteis, que poderiam ser dis- uma parte para outra codificação. O projeto fora ela-
pensados sem prejuízo para o Código, susten- borado pelos juristas Miguel Reale (Supervisor), João
tando-se, inclusive, que as futuras codificações Carlos Moreira Alves, Agostinho de Arruda A1vim,
de Direito Privado não mais precisarão da Parte Sylvio Marcondes, Ebert Chamoun, Clóvis do Cou-
GemI. to e Silva e Torquato Castro. Sua vigência, se aprova-
Washington de Barros Monteiro sustenta do, está prevista para um ano após sua publicação.
que "a subsistência da Parte Geral é um fato e 10 Sendo o direito uma ciência mutável e tendo

apresenta incontestável utilidade. Nela são dis- sido o Código elaborado numa época em que preva-
postos todos os princípios e regras de aplica- lecia o individualismo e a fonnação agropecuária no
ção comuns a qualquer relaçãojurídica." pais, é providencial a sua atualização, yr:z que hoje
predomina o interesse social.
187
Bibliografia FERGUSON, loho - Frmdtullenlo8 da Civilizaçllo
Ocidental, Zahar Editores, 1964.
CORREIA, Alexandre e SCIASCIA, Gaetano - NOGUEIRA, Adallcio Coelho - IntrodvçlJo ao Di-
MtJmla[ de Direito Ronumo e le:tIo.s em cor- reito Romano, Rio de Janeiro, 1966.
respondência com os artigos do Código Civil
PEIXOTO, José Carlos de Matos - Cww de /Jini-
Brasileiro, Silo Paulo, 1957.
to Romano, Rio de Janeiro, 1950.

188 ••"'.ta fi••rrror......oL. .,.,at,v.


o direito eleitoral português

JORGE MIRANDA

1. Vai fazer, dentro de pouco mais de um


mês, vinte anos que se realizaram as eleições
pala a Assembleia Constituinte. E vai fazer, den-
tro de poucos dias, vinte anos que começou a
campanha para estas eleições.
Viriam a ser, apesar de alguns incidentes de
percurso, as primeiras eleições com garantia de
liberdade em Portugal após cinquenta anos. Vi-
riam a ser as primeiras eleições com sufrágio
universal da nossa história.
Viriam a ser eleições participadas a 91 0/0, em
que votariam cerca de 7 milhões de eleitores
(quando, em 1973, só estavam recenseados
1.800.000 eleitores). Nunca esquecerei a como-
ção que me assaltou quando, muito antes da
abertura das assembleias de voto, às 8 horas, vi
nas ruas grandes filas de pessoas, preparando-
se para ir votar - o que nunca tinham feito nas
suas vidas!
E os eleitores optaram, mais de 800/0, cons-
cientemente, pelas candidaturas e pelos parti-
dos identificados com a democracia de tipo oci-
dentaI e com o Estado de Direito. O chamado
voto em branco, para o qual alguns sectores
militares apelaram. não teve expressão signifi-
cativa e os partidos leninistas revelaram-se ela-
ramente minoritários.
Esse dia - 25 de Abril de 1975 - deve consí-
derar-se o momento fundador da democracia
portuguesa. É não menos importante que o 25
de Abril de 1974: pois, se a Revolução convo-
cou ela própria a Assembleia Constituinte e logo
restaurou as liberdades públicas, o denso e tur-
bulento processo político que se seguiu che-
gou a ameaçá-la e, apenas depois das eleições,
foi possível resistir a todos os desvios e per-
Jorge Miranda é Professor da Faculdade de Di· versões.
reito da Universidade de Lisboa.
8r..n._ •. 32 n. f."'Jjun. ff1f15 10
Só as eleiÇÕeS deram pleno sentido ao 25 de sufrágio.
Abril. Somente as eleições o tomaram irreversi- Na Constituição de 1&38 as duas Câmaras
vel. Momento fundador, portanto, distinto da emm electivas. Para a CâJnara dos Deputados o
situação provisória emergente do aeto revolu· censo baixava para 80.000 réis, mas para capa-
cionário. Momento fundador de wna nova legi- cidade passiva elevou-se a 400.000 réis. E Riti-
timidade - da legitimidade assente na ideia de do era o caráeter classista da Câmara dm Sena-
que todo o poder politico vem do povo através dores, ao prever como duas primeiras categori-
do voto e deve ser exercido no respeito da lei. as de elegiveis os proprietários que tivessem
Momento fundador de uma nova ordem politi- de renda anual dois contos de reis eos comerci-
ca - a que se radicaria na Constituição de 2 de antes e fabricantes cujos lucros anuais fossem
Abril de 1976. avaliados em quatro contos de reis (art. 77.'.
Pode perguntar-se por que só agora, tão Quanto à COnstituição de 1911, ela nada
tardiamente em confronto com os outros paí- prescrevia sobre a capacidade eleitoral e a lei
ses europeus? Para responder, impoJ1a lembrar ordináriaconsagraria-ern 1913 -~­
a história juridico-constitueional portuguesa te a exclUSão do voto feminino. Por seu turno, o
desde 1820, a qual se reflecte directamente na Presidente da República era eleito pelo Parla-
evolução do Direito eleitoral. mento.
2. Como se sabe, são três os períodos histó- Sidónio Pais, no seu efémero governo, alte-
ricos do nosso Direito constitucional: o perto- raria a Constituição por UIIl decreto ditatorial, o
do do constitucionalismo h'beIaI, de 1820 a 1926~ Decreton.o 3.997. que instituiria, por um lado, o
o periodo do constitucionalismo autoritário, de sufrágio de todos os cidadãos de sexo masculi·
J926a 1974; eoperiodoaetual, doconstitucio- no maiores de 21 anos e, por outro lado, uma
nalismo democrático. São quatro as Constitui- forma de representação territorial e proporcio-
ções liberais-de 1822, 1826. 1838 e 1911; uma, nai no Senado.
a de 1933, Constituição do período autoritário; De todo o modo, o próprio principio de uma
e urna também, a de 1976, Constituição do peri- legitimidade politica assente nas eleições nIo
000 democrático. E oferecem-se completamen- pôde implantar-se em toda essa época - de mais
te diversas. irredutiveis e mesmo antagônicas de 100 anos - por caUS8$ ligadas as debífída-
as instituições e a prática do Direito eleitoral em des socioculturais e poUticas do pais. A fal~
cada uma dessas fases. de partidos estruturados, o caciquismo e ou-
a) Assim, quanto à fase liberal, caracteri· tros vicios, bem descritos na literatura (A M(Jr-
zam-na o sufrágio restrito, o predominio (com gadinha dos Canaviais, O Conde de Abranjas.
variações e oscilações) dos sistemas maioritá- Uma e/eiçilo perdida, etc.).
rio e de representação de minorias na eJeíÇllo do b) Se O constitucionalismo liberal nlJo pfJde,
Parlamento e a introdução também da regra da o constitucionalismo autoritário nlJo quis adap.
eleição para os órgãos dos municípios. tar o princípio da legitimidade democrática.
Por sinal, a Constituição de 1822, a primeim
das nossas Constituições, foi a que mais aberta A Constituição de 1933 previu a eleição tan-
se mostrou na atribuição do sufrágio. As Cor- to do Presidente da República como da Assem-
tes, unicamerais. eram eleitas directamente. E. bleia Nacional por sufrágio directo e que nunc:a
decerto. num intuito educativo, estabelecia-se
deixou de ser restrito, de natureza censitária e
que, para futuro. nJo teriam direito de voto os capacitária. Em 1931 as mulheres <Uiverarn, peJa
que, chegando à idade de 25 anos completos, primeira vez, emborn muito limitada e discrimi-
não soubessem ler e escrever, se tivessem me- natoriamente, direito de voto. Em 1959, oPresi-
nos de 17 anos quando se publicasse a Consti- dente passou a ser eleito pOr um colégio forma·
tuição(art.33.0). do pelos Deputados, pelos Procuradores à Cá-
mara Corporntiva e por representantes dos mu-
Na Carta, a Câmara dos Deputados (que nicípios e dos territórios ultramarinos.
coexistia com a Câmara dos Pares) em eleita por
sufrágio indirecto e mais restrito do que na C0ns- Na eleição da Assembleia Nacional adop-
tituição de 1822: não tinham direito de voto os tou-se, primeiro, a representaçao maioritiria em
que não tivessem de renda líquida anual 100.000 circulo único (só sendo eleitos os candidatos
réis. Apenas o Aeto Adicional de 1852 voltaria da lista vencedora e que tivessem obtido, pelo
ao sufrágio directo e alargaria um pouco mais o menos. 1110 dos votos atribuidos a essa lista);
e mais tarde. desde 1945, a representação maio-
f80
ritária em cí rculos distritais com sufrágio pluri- um "mau passado" de fraudes e de descrédito
nominal. Daí a Câmara monocolarque sempre dos aetos eleitorais foi vencido e não mais se
se fonnou. Aliás, os partidos estavam proscri· admitiu outro modo de escolha do rumo colce-
tos e só em I%9 se consentiram "comissões tivo que não fosse o voto. Esta convicção está
eleitorais". hoje bem arreigada, só ela tem permitido a alter-
A originalidade do regime era a tentativa de nância, quer a nível nacional, quer a nível local,
um sufrâgio corporativo, aplicado por via pira· só ela permitiu as revisões constitucionais atra·
midal (não sem, paradoxalmente, lembrar o mo- vés das quais se reconfonnou, em parte, a Cons-
delo dos sovietes ou do "poder popular"). Des- tituição.
de os chefes de família e as juntas de freguesia 3. De um prisma formal, recortam-se identi-
aos conselhos e às câmaras municipais, aos camente três fases no desenvolvimento do Di-
conselhos de província (e, depois, de distrito) e reito eleitoral português, se bem que não so-
à Câmara Corporativa. Porém, esta nunca subs- brepostas, salvo a última, com as acabadas de
tituiu a Assembleia Nacional de sufrágio dito indicar. Há uma primeira fase que se reporta às
"inorgânico" . três Constituições monárquicas; uma segunda
Na prática. nenhumas eleições eram em sen- fase abrange quer a Constituição de 1911, quer
tido material. Não se tratava de escolher os go- a Constituição de 1933; e uma terceira que co-
vernantes, mas de realizar outros fins (para o meçaem 1976.
regime, preparação de quadros, propaganda, Aquilo que marca a fase das Constituições
conhecimento dos adversários, aparência de- monárquicas é o relevo directo e imediato que
mocrática para o estrangeiro; e para a Oposi- as eleições adquirem no corpo das nonnas for-
ção, oportunidade de presença, possibilidade malmente constitucionais. A matéria das elei-
de se fazer ouvir sem as restrições do resto do ções entra a ser objecto de normas constitucio-
tempo, lançamento de certas ideias·força). O nais formais. Mesmo sem serem exaustivas (nem
próprio Salazar escreveu que as eleições se des- pcxliam ser) as Constituições ocupam-se, em
tinavam ao "reconhecimento solene das bene- numerosos preceitos e com minúcia, das maté-
merências do regime e à afirmação da confiança rias eleitorais (Constituição de 1822, arts. 32. o a
do Pais na realidade sempre fecunda dos prin- 74.°; Carta, arts. 63.o a 70.°; Constituição de 1838,
cípios da Revolução Nacional". Se a oposição arts. 71.('> a 79.").
ganhasse, seria um "golpe de Estado constitu- No que diz respeito à Constituição de 1822,
cional". é bastante significativo que ela trate das elei-
c) O nosso aetual Direito eleitoral democrá- ções antes do Parlamento (ao contrário do que
tico remonta à legislação para a eleição da As- farão as Constituições de 1826 e 1838). E isso
sembleia Constituinte publicada ainda em 1974. vem na lógica do princípio representativo: o
É nessa altura que, finalmente, se alcança - Direito eleitoral precede e confonna o Direito
com atraso de décadas sobre os demais países parlarrentar.
europeus - o sufrágio universal de ambos os A segunda fase abrange as Constituições
sexos, a partir dos 18 anos, independentemente de 1911 e de 1933. Aqui, chega --se a uma situa-
de se saber ler e escrever, e extensivo, em certas ção inversa. As Constituições, praticamente,
condições, aos residentes no estrangeiro. E não se ocupam da matéria eleitoral e devolvem-
outros aspectos merecem, outrossim, tooo o na para lei ordinária; apenas contêm algumas
relevo: os cuidados postos no recenseamento, normas reguladoras da eleição do Presidente
a regulamentação das campanhas eleitorais, o da República.
papel primordial dos partidos e a adopção do
sistema de Teptesentação proporcional com o Por último, a meio caminho entreas Consti-
método de HONDT. tuições monárquicas e as duas primeiras Cons-
Graças ao significado histórico das eleições tituições republicanas situa-se, quanto ao modo
de 25 de Abril de 1975 (nW1C8 é demais insistir), de tratamento do Direito eleitoral, a Constitui-
assim como aos progressos da cultura CÍvica ção de 1976. Porém, mais do que isso, avultam,
dos portugueses, ao rigor das normas jurídicas em primeiro lugar, a inserção do direito de su-
e à interferência de instituições como a Comis- frágio no contexto dos direitos, liberdades e
são Nacional de Eleições e o secretariado Téc- garantias e, em segundo lugar, a fonnulação de
nico para os Assuntos do Processo Eleitoral um conjunto de princípios gerais de Direito elei-
(STAPE) - por essas normas então criadas- toral objectivo (no art. 116.") aplicáveis irned.ia-

a,..",••. 32ft. 1:M.,./Iun.1N5 1111


tamente às eleições para os órgãos de sobera- Por sua vez, a periodicidade liga-se ao prin-
nia, para os órgãos das regiões autônomas e cipio da renovação ou da Dão-vitaliciedade dos
para os órgãos do poder local. cargos politicos (art. 121.~ edetennina a tq)dibi-
Nas Constituições do século XIX há um tra- lidade dos actos electivos ao longo dos tempos.
tamento quase regulamentário (chegando a de b) Regras gerais sobre as eleições poUticas,
1822 a dispor em ponnenor sobre o processo de em tennos institucionais. são as que estipulam:
votação nas assembleias eleitorais). Nas Cons- - O caráeter oficioso, pennanente e único
tituições de 1911 e de 1933 - não obstante os para todas as eleições por sufrágio directo e
seus diversos principios - ocorre urna obnubi- universal do recenseamento eleitoral (art. 116.°,
lação. Na de 1916 procura-se um sistema urútá- 0.°2).
rio e homogéneo tanto do Direito eleitoral subs- - A marcação do dia das eleiçOes do Presi-
tantivo quanto do Direito eleitoral adjectivo. dente da República, dos Deputados à Assem-
Só é pena não se ter até agora (não obstan- bIela da República, dos Deputados portugue-
tejá há vários anos estar pronto um texto) ver- ses ao Parlamento Europeu e dos Deputados
tido em Código toda a dispersa legislação ordi- às assembleias legislativas regionais (mas não
nária de desenvolvimento e execução dos prin- dos titulares dos órgãos do poder local) pelo
c1pios e preceitos constitucionais. Ganhar-se-ia, Presidente da República, de hannonia com a lei
por certo, em rigor, em certeza e em viSIbilidade eleitoral [art. 136.°, aUneab).
num Direito que não é tanto para os juristas - A liberdade de propaganda [art. 116.°, n.o
quanto para os cidadãos comuns - os cidadãos 3, alínea a).
eleitores. - A igualdade de oportunidade e de trata·
4. Importa agora apresentar os aspectos mento de diversas candidaturas [art. 116.°, 8.°
essenciais desse Direito eleitoral formalmente 3, alinea b), com direito a tempos de antena re·
constitucional. guiares e equitativos na rádio e na televislo
(art. 400.°, 0.°3).
a) Para a Constituição, se a soberania reside
no povo (art. 3.°, n.o 1), aformaprimeirn do seu - A imparcialidade das entidades p&licas
exercicio é o sufrágio universal, igual. directo, perante as candidaturas [art. 116.°, n.°3, alineac).
secreto e periódico (art. 10.°, aditado na revisão - A fiscalização das contas eleitorais [art.
constitucional de 1982). Este principio, concre- 116.°, n. o 3. alínea d).
tizado rnaisde uma vez (arts. 116.°,0.° 1,124.°, - A representaçao proporcional nas eleições
n.o 1, 233.°, n.o I, e 241.0), vem a ser um limite para órgãos colegiais ou, porventura, numa in-
material da revisão constitucional, juntamente terpretação mais restrita, nas eleiçOes para as-
(embora noutro nive1) com o principio da repre- sembleias (arts. 116.°,8.° 5, 155.°, 23J.O, n.o 2, e
sentaçãopropon::ional [art. 288.°, alineah]. 241.'.
Sufrágio universal e igual significa que o - A necessidade de, no aeto de dissoluçlo
sufrágio é um direito de todos os cidadãos mai- de órgãos colegiais baseados DO sufrágio di-
ores de 18 anos, ressalvadas as incapacidades recto, ser marcada a data das novas eleições, a
previstas na lei geral (art. 49.°, n.o 1), não p0- realizar nos 90 dias seguintes e pela lei vigente
dendo estas ser senão as decorrentes do Esta- ao tempo da dissolução, sob pena de inexistên-
do de Direito democrático. O mesmo principio ciajuridicadaqueleacto (art. 116.°, n.°6).
vale para a capacidade eleitoral passiva (art. 50.°, - A competência dos tribunais para o julga-
n.o 1). mento da validade e da regularidade dos aetos
O exercício do sufrágio é pessoal (art. 49.°, eleitorais (m 116.°, 0.°7).
n.° 2) - o que exclui qualquer tipo de represen-
tação ou procuração, conquanto não, dentro c) Fonnuladas a propósito da eleiçlo dos
de limites razoáveis, o voto por correspondên- Deputados à Assembleia da República, devem
cia, salvo na eleição do Presidente da Repúbli- ainda ter-se por extensivas às eleições das de-
ca(art. 124.°, n.o 2). Eo seu exerdcioconstitui mais assembleias pollticas e das câmaras nmní-
um dever civico - o que não implica, nem tão- cipais as seguintes regras:
pouco impede, o chamado voto obrigatório ou - No caso de a Constituiçao ou a lei prever
obrigação sancionada de votar, a esse dever circulos eleitorais, o número de titulares a ele-
acrescem o de recenseamento e o de colabora- ger por cada circulo é propon::ional ao número
ção com a administração eleitoral, nas formas de cidadaos eleitores nele inscritos (art 152,0,
previstas na lei (art. 116.°, n. Oo 2 e 4). 0.°2).
1ft
- Os titulares dos órgãos colegiais repre- fase objecto de reclamação ou recurso no prazo
sentam toda a colectividade - todo o País. toda legal ou, tendo-o sido, não sendo declarada a
a região autónoma, toda a autarquia - e não os invalidade ou a irregularidade, já não mais po-
círculos por que são eleitos, quando por eles derão ser contestados no futuro.
sejam eleitos (art. 152.°, n.o 3). À face do art. 225.°. n.o 2, alínea c, o Tnbunal
- Ninguém pode ser candidato por mais de Constitucional dir-se-ia funcionar apenas como
um círculo eleitoral ou figurar em mais de uma tribunal eleitoral de última instância. Mas a Lei
lista (art. 154.°, n.02). n.O 28182. de 15 de Novembro, dilatou a sua com-
petência em matérias eleitorais, fazendo-o in-
- O preenchimento das vagas que ocorre- tervir também sem ser como tribunal de recurso
rem, bem como a substituição temporária dos (dilatou-a talvez demasiado, com sobrecarga de
titulares por motivo relevante, são regulados trabalho em certos periodos em detrimento, na
pela lei eleitoral (art. 156°). prática, da sua competência por natureza que é
5. O Direito eleitoral adjectivo repousa na a de fiscalização da constitucionalidade e da
intervenção dos tribunais. Ao contrário do que legalidade de nonnasjurídicas).
sucede noutros países, o contencioso respei-
tante a todos os procedimentos eleitorais está- 6. A par dos tribunais existe desde 1974 (sal-
lhe confiado - em coerência, aliás, com os prin- vo durante um pequeno lapso de tempo) a Co-
cípios do Estado de Direito. missão Nacional de Eleições.
Trata-se de um contencioso de tipo admi- Não contemplada na Constituição, ela inse-
nistrativo, mas atriblÚdo aos tribunais judiciais re-se de pleno no âmbito da administração elei-
e ao Tribunal Constitucional, e não aos tribu- toral a que alude o art. 116.°, n.o 4. Segundo a
nais administrativos, dada a natureza especifi- Lei n.o 71n8, de 27 de Dezembro (que continua
camente constitucional da administração elei- a regulá-la), cabe-lhe, essencialmente, assegu-
toral (e daí a necessidade de uma interpretação rar a igualdade de tratamento tanto das candi-
adequada do art. 214.°, n.o 3 da Constituição). daturas como dos cidadãos e todos os aetos de
De resto, embora o art. 116.°, n.o 7 não fale espe- recenseamento e operações eleitorais. E, quer
cificamente em tribunais judiciais, a competên- as sucessivas leis eleitorais, quer as leis sobre
cia destes aparece consonante com o princípio referendos locais e nacional ter-lhe conferido
geral da sua competência no domínio dos direi- novos poderes, como a distribuição do número
tos, liberdades e garantias - pois que está em de Deputados a eleger por cada circulo eleitoral
causa (mesmo nas eleições para os órgãos das do território nacional em razão do número de
autarquias locais) um direito, liberdade e garan- eleitores por ele inscritos (art. 13.° da Lei n.° 141
tia, o direito de sufrágio. 79) ou a verificação das declarações dos parti-
São regras tradicionais do nosso contenci- dos quanto à tomada de posição sobre ques-
oso eleitoral duas: que as irregularidades ocor- tões submetidas ao eleitorado (art. 32.° da Lei
ridas no decurso da votação e do apuramento n.045191, de 3 de Agosto).
apenas podem ser apreciadas em recurso, des- Nem por isso o nosso sistema se converte
de que hajam sido objecto de reclamação ou num sistema misto. Pode falar-se, sim. um siste-
protesto apresentado no acto em que se tenham ma complexo. com um duplo controle dos pro-
verificado (assim, por toda a legislação actual, cedimentos eleitorais - jurisdicional e adminis-
o art. 117.° da Lei n.o 14179, de 16 de Maio); e trativo. A separação afigura-se clara e. se não é
que a votação em qualquer assembleia de voto completa, é apenas porque os tribunais ainda
(ou em qualquer círculo eleitoral) só é julgada possuem certas competências materialmente
nula, implicando a sua repetição, quando as ir- administrativas (as atinentes à apresentação das
regularidades possam influir no resultado geral candidaturas) - ao passo que a Comissão Naci-
da eleição (art. 11 9.° da mesma Lei n.o 14n9). onal de Eleições deixou de exercer, em 1982, o
A jurisprudência do Tribunal Constitucio- poder de suspensão do direito de antena dos
nal formulou também o princípio da aquisiçilo partidos, por se reconhecer que ela era de natu-
sucessiva. Todos os aetos dos procedimentos reza jurisdicional. Aliás, das decisões da Co-
eleitorais são impugnáveis e não é possivel missão Nacional de Eleições há recurso - ainda
passar de uma fase a outra sem que aquela es- em contencioso administrativo constitucional
teja definitivamente consolidada. Porém, não - para O Tnbunal Constitucional [art. 9.°, alínea
sendo os aetos correspondentes a uma dada Ida Lei n.o 28/82, de 15 de Novembro].
Assim como os princípios da descentraliza-
8r. .llI• •. 32 n. , . . . ..//.... f B5 1113
çãoe da participação (arts. 6. 0 , n. o 2, e 267.0 • n. 00 7. Para terminar. ainda uma nota.
1 e 2 da Constituição) explicam várias adminis- O Direito eleitoral poUtico constante da
trações especiais ou sectoriais (arts. 63. 0 • 64. 0 , Constituição e da lei serve de direito subsidiá-
76. 0 e 267. 0 , 0. 0 3), assim como o princípio da rio da regulamentação de quaisquer outras elei-
separação dos órgãos de soberania (art. 114.0 , ções, públicas ou privadas, que decorram no
n. o 1) justifica a adminístração específica da âmbito da ordem jurídica portuguesa. E há al-
Assembleia da República (art. 184.0), assim guns princlpios constitucionais tão essenciais
como o do Estado regional justifica o Poder que se lhes aplicam directamente.
Executivo próprio das regiões autónomas [art.
229. 0 , n. o I. alineag] -assim o principio demo- São tais principios, pelo menos: o do sufrá-
crático representativo fundamenta a adminis- gio universal e igual relativamente aos mem·
tração eleitoral e o carácter de órgão indepen- bras da categoria ou comunídade a que se re-
dente da Comissão Nacional de Eleições. Nem porte a eleição~ o do sufrágio secreto (como, de
1ària sentido que aadministração ligada ao exer- resto. a Constituição explicita para as eleições
cicio do sufrágio pelos cidadãos, através do em grupos que regula. as das comissões de tra-
qual se manifesta a soberania popular (arts. 3.0 , balhadores, das associações sindicais e das
0. 1.10.0 .11 1,0,117.0 , n.o I), quedasse, dequaI-
0 comissões de moradores); o principio de sufrá-
quer modo. dependente de um órgão derivado gio periódico; o da liberdade e da igualdade de
desse mesmo sufrágio, o Governo. propaganda; o dajurisdicionalidade da apreci-
ação (ou dá última apreciação) dos recursose1ei-
Tal como a Alta Autoridade para a Comuni- torais, e, talvez, o da representação propomo--
cação Social, o Conselho Superior de Magis- oal para efeito de eleições de assembleias.
tratura OU a Procuradoria-Geral da República. a É também por isto - e por razões que se
Comissão não perteoce. pois, a qualquer das prendem com a coerência do regime democráti-
estruturas da administração - directa, indirecta co, tendo corno sujeitos primaciais (embora
ou autóooma - subordinadas (ainda que por não-exclusivos) os partidos politicos - que ve-
vias e graus diferentes, ao Governo). nem de- nho defendendo a extensllo do Direito eleitoral
pende (ou qualquer dos seus membros. 00 exer- ao Direito dos partidos ou. doutra perspectiva.
cicio das suas funções) de ordens ou instru- a necessidade de a lei dos partidos abranger
ções dele ou de outra qualquer entidade. E essa regras precisas (mas de flexível concretização)
qualidade de órgão independente vem ainda sobre as eleições partidárias. Pois se destas elei-
reforçada pela composição tripartida (comjuiz- ções decorre. em Iarguíssirna medida. o sentido
conselheiro--presidentc. designado pelo Conse- das eleições gerais - tanto no momento das
lho Superior da Magistratura. cinco cidadãos candidaturas corno nos momentos subsequen-
designados pelo Parlamento e técnícos desig- tes da acção dos eleitos - a lei do Estado demo--
nados pelos departamentos minísteriais; e pela crático não as pode ignorar.
fixação de um mandato dos vogais em corres-
pondência com a duração da legislatura.

fN
Licitação: pontos polêmicos

105HI0 MUkAl

sUMÁRIo
i. introdução. 2. Os pontos polêmicos.

I. Introdução
A Lei n.08.666/93 - a denominada Nova Lei
de Licitações -, com as alterações que lhe fo-
ram introduzidas, a par de conter inúmeros avan-
ços, em especial, no sentido da moralização das
licitações, contém vícios de inconstitucionali-
dade, regras distorcidas e conflitantes, e, ain-
da, nonnas obscuras, que tem levado os estu-
diosos do assunto a ter visões dist\ntas e oon-
trovertidas sobre vários dos comandos inser-
tos nessa legislação.
O objeto da presente exposição, que nos foi
detenninado pelos organizadores deste exce-
lente, oportuno, democrático Seminário, a quem
parabenizo efusivamente nesta oportunidade,
por sua realização, é não só apontar e comentar
os pontos polêmicos da referida legislação,
como também indicar as distorções, os pontos
conflitantes e as deficiências legislativas que,
certamente, são encontradas na Lei n. o 8.666/93.
Por oportuno. apenas para mantennos urna
metodologia razoável de indicaçãO e análise
desses pontos, esclarecemos que iremos seguir
a própria ordem dos artigos e demais dispositi-
vos da Lei.
Outro deta lhe que queremos esclarecer: não
teceremos criticas a autores ou articulistas. pois
todos, indistintamente, merecem de nós o maior
respeito científico por seus posicionamentos.
2. Os pontos polêmicos
Toshio Mukai é Doutor em Direito - USP.
Assim, vejamos tais pontos:
Aula magna, ministrada no 1.0 Seminário Nacio- I) Art. I. a e parágrafo único - A polêmica
nal de Direito Administrativo - Recife - 27.11.94 a aqui é quanto à inconstitucionalidade da Lei,
2.12.94 - Editora NDJ. no ponto em que diz que ela estabelece nonnas
. ,. .IU••• 32n. 126abrJJun. fP95
gerais sobre licitações e contratos administrati- 2) Art. 5. co-Controvérsia quanto ao signifi-
vos (art. 1.0 - caput) e logo declara que todas cado da expressão "fonte diferenciada de re-
as entidades da Administração Pública, direta cursos".
ou indireta, devem se subordinar ao regime (in- Ao início da vigência da Lei n.o 8.666193
tegral) da Lei (parágrafo único). Ou seja, a Lei entendiarnos que essa expressão apontava para
diz simplesmente que todas as suas disposi- as diversas dotações orçamentárias indiaKJ8S
ções são normas gerais. nos próprios contratos, por onde correriam as
Há quem tenha defendido esse comporta- despesas (obras e serviços públicos, serviços
mento do legislador. de terceiros, fomecimentos)~ contudo, outros
Para nós, e temos evidenciado isso em l0- lhe deram diferentes significados: por exemplo,
dos os lugares em que falamos dessa Lei, essa fontes de recursos para a merenda escolar. rela·
estratégia do legislador levou ao seguinte re- tivos aos SUOS. etc. Hoje entendemos que este
sultado: urna lei ordinária federal a pretender último entendimento é o correto.
legislar sobre licitações e contratos (em todos 3) Art. 7. ~ § 3. co - Controvérsia sobre a ex-
os aspectos, especificas e procedimentais) para pressão "explorados sob o regime de conces-
Estados, Municípios, Distrito Federal e empre- são". Alguns têm entendido que sob essa ex·
sas, autarquias e fundações de qualquer nível pressão cabem as concessões de serviços pú-
de governo; para isso, declarou que todas as blicos. Entendemos que a ressalva SÓ se justifi-
suas normas são gerais. Ora, se observarmos ca para as concessões de obras públicas, por-
que a Lei n. o 8.666/93 veio substituir um Estatu- que é da natureza delas que os recursos para a
to Jurídico de Licitações e Contratos, que regia, implantação da obra pública sejam do conces-
portanto, todos os aspectos das licitações e sionário.
contratações. é evidente que ela também tem 4) Art. 7.°, § 4. Veda O contrato "guarda-
(> -

esse caráter. portanto, na realidade, se constitui chuva" (aquele em que os serviços e forneci-
de normas gerais, especificas e procedimentais. mentos são fixados por estimativa).
No caso, as enquadrou todas como sendo
gerais. a pretexto de se fundar na competência Entendem alguns que a norma veda a esti-
exclusiva da União para baixar normas gerais mativa em contratos de fornecimento ou de ser-
sobre licitações e contratações (art. 22, inc. viços. Entendemos nós que o § 4. 0 do art. 7.°
XXVII da CF). Om, ai. exatamente p:nque ooons- somente trata de contrato de execuçlo de obra
tituinte falou apenas em normas gerais, é por- pública, pois somente aqui há fornecimento de
que ele deixou de fora as normas especificas e materiais e sen4çosconcomitantcmenre.
procedimentais. O legislador, ao trazer estas úl- 5) Art. 12 - Consideração do requisito "im·
timas para o campo das normas gerais, à evi- pacto ambiental" para a elaboração do projeto
dência, infringiu a Constituição. básico.
Além disso, quando declarou, na ementa, A norma labora em erro, mas não chega a
que aLei n. o 8.666/93 regulamenta o art. 37. inc. ser inconstitucional.
XXI. da CF. declarou-se agindo inconstitucio- Équeo § 1.0 , inc. IV, doart. 225 da CF exige,
nalmente, posto que, à evidência, quando o na fonoa da lei, para a instalação de obra ou
constituinte ali falou" ... nos termos da lei", não atividade potencialmente causadora de signift-
poderia estar dando ao legislador ordinário da caUva degradaçi10 do meio ambiente estudo
União competência para regulamentar matéria prévio de impacto ambiental, a que se dará pu-
puramente administrativa (que é o caso das lici- blicidade.
tações e contratos) através de lei nacional.
Portanto. não é qualquer obra que está a
Não. Sendo o Brasil uma Federação. com exigir estudo prévio de impacto ambientaI.
Estados e Municipios autônomos política, le-
gislativa e administrativamente (art. 1.0 - caput A controvérsia: poderia a lei ordinária, no
e art. 18, da CF). a lei ali mencionada só pode ser caso, exigir mais do que a Constituição exigiu?
federal para as licitações e contratações fede- Temos para nós que sim.
rais, estadual para as dos Estados e municipal 6) Art. 15 - inc. IV-As compras, sempre
para as dos Municípios. Além disso, o caput que possível, deverão "ser subdivididas em tan-
do art. 37 fala que os Poderes da União, Esta- tas parcelas quantas necessárias para aprovei-
dos, Distrito Federal e dos Municípios obede- tar as peculiaridades do mercado, visando ec0-
cerão aos incisos que indica. nomicidade".
i.
A norma parece indicar que o legisladorcstá tra tal aberração jurídica, ou seja, o fato de uma
a induzir a "picotagem" das compras. fazendo lei ordinária federal vir mandar que os Munici-
com que sejam sempre utilizados os convites. pios publiquem seus avisos de licitações, não
Será isto que a Lei pretende? nos seus Diários Oficiais ou em jornais locais
que lhes façam as vezes. mas sim no Diário
Se formos ao art. 23, em especial, aos seus Oficial do Estado.
§§ 1.0 e 2.°, teremos, infelizmente. a resposta
positiva. pois o primeiro dispositivo repete. com É mais uma flagrante inconstitucionalidade
redação mais detalhada, o inc. IV referido. e o da Lei. como tantas outras que se contém nela.
segundo dispõe que, no caso do § 1.°, "a cada 10) Ar!. 21. § 3. °- Contagem dos prazos de
etapa ou conjunto de etapas da obra, serviço apresentação dos envelopes a partir da última
ou compra há de corresponder licitaçào dis- pub\icação ÓO ooita\ resumido.
tinta, preservada a modalidade pertinente para A Lei n. o 8.666/93 exigia, na sua redação ori-
a execução do objeto em licitação". ginaL três publicações. As MPs reduziram para
Verifica-se que a retirada da expressão "do uma publicação e a Lei n. o 8.883/94 alterou a
total do" antes do vocábulo objeto, constante redação do dispositivo para dizer que não era
da redação originaI (art. 8."), promovida pela Lei da primeira publicação que se contava o prazo,
n.o 8.883/94, deu à regra aquele sentido. mas sim da última; esqueceu-se o legislador que
7) Art. 15. § 7. ~ 1 - vedação da indicação de só há uma publicação.
marca.
11)Arl. 22 - §§ 2. °e 9. 0 _ Conceito de To-
Tem-se, algumas vezes, admitido a indica- mada de Preços.
ção de marca, nesses casos, com argumentos
frágeis. O § 2.° dQ art. 22 da Lei, desde a redw;ãQ
original, conceituava a Tomada de Preços como
O certo é que, talvez dificultando a aquisi- a modalidade de licitação "realizada entre inte-
ção de certas mercadorias como remédios, por ressados devidamente cadastrados ou que
exemplo, a norma existe e não pode ser violada. atenderem a todas as condições exigidas para
Observe-se que aqui a norma veda expres- cadastramento até o terceiro día anterior à
samente a "indicação de marca", enquanto que, data do recebimento das propostas, observa-
no inc. I do art. 25 (que fundamenta a padroni- da a necessária qualificação".
zação), veda-se a "preferência de marca", o que Ocorre que a Lei n.o 8.883/94 incluiu o § 9. 0
significa que não se pode escolher a marca pela ao art. 22, expressando que "na hipótese do §
marca 2.° deste artigo. a Administração somente po-
8) Arts. 17 e 18 - Alienação de bens. In-
derá exigir do licitante não cadastrado os
documentos previstos nos arts. 27 a 31, que
constitucionalidade.
comprovem habilitação compatível com o ob-
A despeito de vozes tímidas que ao início jeto da licitação, nos termos do editar'.
pretenderam (pasmem!) defender a constitu-
cionalidade dessas disposições (que pre- Portanto, a segunda parte do § 2.° (do con-
tenderam legislar a respeito dos bens públicos, ceito de tomada de preços), embora tenha o le-
de maneira uniforme para todas as entidades gislador se esquecido de subtraí-Ia do texto,
políticas), já o STF, em cautelar (decisão provi- está revogada por esse § 9.°, posto que, segun-
sória), declarou inconstitucionais tais normas do a LICC (§ 1.0 do art. 2. 0 do Decreto~Lei n.o
em relação aos Municípios. 4.657, de 4.9.42), está revogada disposição de
E com inteira razão, posto que, num sistema lei anterior por disposição de lei nova: "... quan·
federativo como o nosso, é inconcebível que do expressamente a declare, quando suas dis-
uma lei ordinária federal vá dizer ao Município posições são incompativeis, ou ...".
de que modo ele vai administrar os seus bens No caso, à evidência, o disposto no § 9. 0 é
(públicos) e, em especial, em que condições ele inteiramente incompatível com o que se contém
pode aliená-los. no § 2.° do art. 22, segunda parte. Portanto, esta
9) A rI. 21 - inc. Il- Trata da publicação de disposição está revogada.
12) Ar!. 23, §§ 1. Q e 2. Q - Impõem a divisão
avisos das concorrências e tomadas de preços
dos Municípios no Diário Oficial do Estado. em tantas parcelas quantas necessárias se com-
provem técnica e economicamente viáveis, das
Temos registrado que nenhuma voz (salvo obras, serviços e compras (§ 1.0), bem como
engano nosso), na doutrina, se levantou con- que a cada etapa ou conjunto de etapas deles,
197
corresponda licitação distinta, preservada a mais pela norma infraconstitucional.
modal idade cabivel para cada etapa ou conjun- Portanto, se em determinado caso o objeto
to de etapas (§ 2."). da contratação estiver ao alcance da iniciativa
O § 1.", com o acréscimo das "comprns", foi privada (como ocorreu no caso do R.E. n.o
transportado do § I.", art. 8." da Lei n." 8.666193 87.347, l."T. -4.3, 1980, ReI. o Ministro Xavier
(redaçãooriginaJ), pela Lei n." 8.883/94. de Albuquerque: "Não cabe dispensa de licita-
ção, em favor da Petrobrás, para instalar postos
O § 1." do art. 8." dizia que as obras, servi- de gasolina e de socorro mecânico em estrada
ços e fornecimentos seriam divididos em tantas estadual" - ~vx-Iegis, v. 137, pp. 20 e s. -maio
parcelas quantas se comprovarem técnica e eco- de 1980), sem dúvida que caberá a licitaç!o. não
nomicamente viáveis, a critério e por conveni- obstante a redação atual do inc. VIII do art. 24
ência da Administração .... omita aquela exceção.
O § I." do art. 23 (pela redação da Lei n."
8.883/94) excluiu do texto esta parte final, com o 14) Art. 25. "caput" -Inviabilidadedecom-
que a estatuição tomou-se imperativa (As obras. petição. Comparecimento de apenas um inte-
serviços e comprns ... seriIo divididas ... ). ressado.
Assim, toda vez que estivermos perante Não obstante haja entendimentos no senti-
objetos Iicitat6rios cindiveis por natureza de- do de que, em comparecendo apenas um inte-
vemos, de regra, proceder a licitações distintas, ressado na licitação e em atendendo ele a todas
não podendo (salvo se. comprovadamente, isto as condições do instrumento convocatório, é
não for viável técnica e economicamente) efe- lícita a sua contratação, temos entendido que
tuar mais, como antigamente aurna só licitação não há fundamento legal para tal.
com julgamento cindido ou por itens. Aliás, pela ausência da competitividade,
13) Art. 24, inc. VIII da Lei n. 08.666193 - princípio fundamental da licitação, inscrito no
Operações entre órgãos e entidades públicas. inc. I do § 1.0 do art. 3," da Lei n.o 8.666/93, tal
A redação original do inciso VIII do art. 24 não será possivel.
era: "quando a operação envolver exclusiva- Mas, por outro lado, se, aberto um certame,
mente pessoas jurídicas de direito público in- em que se deu ampla divulgação, compareceu
terno, exceto se houver empresas privadas ou apenas um interessado, pelo menos nesse caso
de economia mista (sic) que possam prestar ou específico, ficou exatamente comprovada a in-
fornecer os mesmos bens ou serviços, hipóte- viabilidade de competição, dai por que caberá a
se em que ficarão sujeitos à licitação". contratação com base no art. 25, caput, da Lei
n." 8.666/93. Para tal, fonnar-se-á, com os ele-
A redação dada pela Lei n. ° 8.883/94 foi to- mentos extraídos do processo do certame Hei-
talmente diferente: "VIlI- para a aquisição, por tatório, um processo especifico de inexigibili-
pessoa juridica de direito público interno, de dade de licitação, com a observância das for-
bens produzidos ou serviços prestados por ór- malidades do art. 26 da Lei, e contratar-se-á di-
gão ou entidade que integre a Administração retamente a única empresa que compareceu ao
Pública e que tenha sido criado para esse fim certame.
específico em data anterior à vigência desta Lei, 15)Art. 30-Qualificaçãotécnica: compro-
desde que o preço contratado seja compatível vação de aptidão para desempenho de ativida·
com o praticado no mercado". de pertinente e compatível com O objeto da lici-
Com essa redação amplíssima (as contrata- tação.
ções podem agora ser tanto na horizontal, ou Sabe-se que a Lei n." 8.666/93 veio, quanto
seja, no ãmbito do mesmo Governo, como na às exigências técnicas, dizer que a comprova-
vertical, ou seja, entre órgãos elou entidades ção de aptidão referida no inc. 11 do art. 30, no
da União, Estados e Municípios; e a exceção caso de obras e serviços, seria feita por atesta-
quanto à possibilidade do oferecimento do bem dos fornecidos por pessoas juridicas de direito
ou do serviço pela iniciativa privada foi excluí- público ou privado, devidamente certificados
da do texto) a nonna ofenderá. em muitos casos pela entidade profissional competente, limita-
concretos, o princípio da licitação. das as exigências a:
É que a exceção referida é em respeito ao a) quanto à capacitação técnico-pro-
principio da livre iniciativa, inserto no texto fissional-
constitucional, e não poderá ser afastada sem u u ,

lIe"'.t. de Imor........ I.,,'.'at'''.


b) vetado. A norma previu que deverá ser apresenta-
O veto recaiu sobre a exigência de apresen- doo balanço patrimonial e demonstrações celO-
tação de prova de capacitação técnico-opera- tábeis do último exercício social, já exigíveis e
cional, constituída por atestadosfornecidos em apresentados na forma da lei, que comprovem a
nome da empresa, limitados os quantitativos boa situação financeira da empresa, vedada a
das obras e serviços executados a 50% (cin- sua substituição por balancetes ou balanços
qüenta por cento) do objeto da licitação. provisórios ...
Quando da aprovação da Lei n. o 8.883/94, o Diante dessa regra, vinhamos entendendo
Congresso aprovou novamente os itens a e b, que ela era simplesmente inconstitucional, pos-
agora como incisos [ e 11, tendo este segundo to que não admite que empresas com menos de
sido novamente vetado. um ano de existência possam participar das lici-
A nossa posição a respeito dessas exigên- tações, violando o prinCÍpio da igualdade.
cias, desde o início, foi no sentido de que, se as Entretanto, Marcos Juruena Villela Souto e
comprovações de aptídão por desempenho téc- Flavio Amaral Garcia, recentemente, publicaram
níco anterior eram: 1- a capacidade técnico-pro- artigo intitulado "Qualificação econômico-finan-
fissi<mal (o acervo té<:l\ioo do profissional) e ceira das empresas recém-<:onstituídas" no Re-
11- a capacidade técnico-operacional (os ates- pertório 10B - Jurisprudência - n. o 20/94, p.
tados em nome da empresa) e tendo esta última 407, concluindo que "aquela vedação da Lei
sido vetada, só se poderia exigir, nos editais de somente se aplica às empresas já constituídas
obras e serviços de engenharia, a capacitação há mais de um ano e que, portanto, estariam
técnico--profissional, ficando vedada a exigên- compelidas a apresentar a documentação rela-
cia de atestados em nome da empresa. tiva à qualificação econômico-financeira, não
Entretanto, analisando os argumentos de significando que as empresas recém-<:onstituí-
outros estudiosos, em especial os que nos fo- das estariam dispensadas da apresentação de
ram apresentados pelo Prof. Carlos Ari Sun- qualquer tipo de documentação rc;:lativa à qua-
dfeld, curvamo-nos ao acerto da tese oposta, lificação econômico-financeira. E preciso que
ou seja. aquela pela qual é possivel, mesmo após elas também comprovem a sua idoneidade fi-
o veto, exigir-se nos editais de obras e serviços nanceira, cabendo, nesta hipótese, a substitui-
de engenharia atestados de desempenho ante- ção por balancetes ou balanços provisórios. Aí
rior, em nome da empresa. a vedação do art. 31, inc. I, da Lei n. o 8.666/93
E o argumentojurídico para tal entendimen- não incide (posto que seu balanço de exercício
to l\OS parece irrepreel\sivel. ainda não é exigívelr .
Essa interpretação do texto nos parece bas-
Entende-se que a exigência de comprova- tante razoável, a salvá-lo da eiva de inconstitu-
ção de aptidão por desempenho anterior está cionalidade.
prevista, antes de mais nada, no inc. 11 do art. 30
e melhor especificado, para o caso de obras e 17) Art. 38, Vil. em face do art. 43, Vi-
serviços de engenharia, no § 1. o do art. 30. Competência para adjudicar e homologar.
Tendo o Sr. Presidente vetado o inc. 11 do § Há quem pretenda que a Lei n.o 8.666/93 te-
1.0 do art. 30 da Lei n. o 8.666/93, o que acabou nha alterado o iter final do procedimento licita-
sendo extirpado do texto legal não foi a possi- tório, entendendo que a Comissão de Licitação
bilidade de se exigir atestados de desempenho apenas classifica as propostas, sendo que a
anterior em nome da empresa, que estes já são autoridade superior, após homologar a licita-
exigidos naquelas disposições citadas foi sim ção, é quem adjudicaria o objeto corresponden-
eliminada a limitação (a 50% do objeto da licita- te. Esse entendimento tem base na interpreta-
ção, em termos de quantitativos), pois a parte ção isolada do inciso VI do art. 43, que reza:
final do § 1.0 do art. 30 referia-se aos incisos 1 e "deliberação da autoridade competente
11 como sendo limitações ("... Iimitadas as exi- quanto à homologação e adjudicação do
gências a: "). objeto da licitação."
Assim, o veto recaiu sobre a limitação da Ocorre que o inc. VII do art. 38 dispõe:
exigência, não sobre a exigência em si que con- "VII- atos de adjudicação do objeto
tinua a existir no inciso n do art. 30 e no § 1. 0 do da licitação e da sua homologação."
mesmo artigo. Como se verifica, esta última regra contém
16)Art. 31, inc. l-Balanços.
dois comandos claros: a) determina que o ato
.r..al_ _. 32ft. 1218 ""'JJun. 1H5 199
de adjudicação é de competência de um órgão fixar nos instrumentos convocatórios valor glo-
inferior à autoridade homologante; b) determi- bal máximo como limite.
na que a adjudicação seja anterior à homologa- Portanto, embora aquela regra do § 3.° do
ção e que esta recaia também sobre aquela e art. 44 permaneça no texto atual, ela está rev0-
não só sobre o procedimento licitatório até a gada porque é incompativel com a nova J'Cda.
classificação. ção do inc. X do art. 40, dada pela Lei n. o 8.8831
Portanto, ante essa aparente antinomia en- 94 (§ 1.0 do art. 2.0 da LICC), não se podendo
tre as duas disposições, ao intérprete resta a fixar limites minimos para os Pl'eÇ(lS. Entretan-
missão de tentar harmonizá-las. to, existe um limite minimo genérico na Lei: pre-
E, para isso, se dermos prevalência ao inc. ço simbólico, de valor zero ou irrisório, incom-
VI do art. 43, restará violado o comando do inc. pativeJ com o preço de mercado, acrescido dos
VII do art. 38, pois a adjudicação será posterior respectivos encargos (§ 3.0 do art. 44).
à homologação e a própria autoridade superior Além disso, o preço máximo global pode ser
estará adjudicando o objeto da licitação, em fron- fixado em valores de reais e não em percentual
tais descompassos com o inc. VII do art. 38. sobre o orçamento detalhado em planilhas.
Ao contrário, se dermos prevalência a esta 19) Art. 45 - § 4. o - Contratação de bens e
última norma, será possivel, harmoniosamente. serviços de informática.
eliminar o conflito, pois otexto do inc. VI do art A referência ao 3rt. 3. 0 da Lei n° 8.248, de 23
43 permite uma interpretação razoável para tal, de outubro de 1991, e a obrigatoriedade do tipo
ou seja. no sentido de que essa norma apenas de licitação de técnica e preço foram regras que
indica que a autoridade superior, recebendo o levaram à ilegalidade das disposições do De-
processo, deliberará se hon.ologa ou não o pro- creto R,o 1.070, de 2 de março de 1994. exata~
cedimento, inclusive a adjudicação ("delibera- mente no ponto em que criou fonna diferente
ção quanto à homologação e adjudicação do dejulgamento para o tipo de licitaçllo de técni-
objeto da licitação"). ca e preço daquele previsto na Lei n.o 8.666193
Com essa interpretação eliminaremos o apa- (e um decreto não poderia fàzê·lo), e, ainda, no
rente conflito entre as duas normas. ponto em que. após o julgamento, dá preferên.
18) Arl. 40. inc. X-Critério de aceitabilida- cia. ainda sem empate, a empresas em determi·
de dos preços unitário e global nadas condições (por exempJo, empresas brasi-
leiras de capital nacional).
Com a redação original, nos casos de obras
e serviços, onde há, obrigatoriamente, o "orça- 20)Arl. 49- Caráter motivado da revogaçlo.
mento detalhado em planilhas", era fácil fixar, Muitos ainda teimam em ver na revogaçlo
legalmente. os limites máximos e núnimos (ailé- do procedimento licitatório, como ocorria antes
rios de aceitabilidade) dos preços. Havia dúvi~ do Decreto-Lei n. 02.300/86, um ato puramente
das se se poderia fixar o limíte mínimo, pois o discricionário, dependente, para a sua efetiva-
tipo de licitação seria de menor preço. En- ção, apenas dos critérios de oportunidade e
tendiamos perfeitamente possivel tal fixação, conveniência.
pois o § 3. do art. 44 da Lei dizia expressa-
0
OCorre que já o Deaeto-Lei n.o 2.300/86 exi-
mente.... ainda que o ato convocatório da gia que a revogação se fundasse no interesse
IicitaçlIo nlIo tenha estabelecido limites ml- público.
nimos ... , com o que a Lei admitia o preço Portanto, a revogação, ainda que discricio-
minim:>. nária, deveria ser ato motivado no interesse
o
Ocorre que a Lei n. 8.883/94 veio dar reda- público demonstrado.
ção diferente ao referido inciso X do art. 40 da
Lei n.o 8.666193, nestes termos: Com o advento da Lei n. o 8.666/93, a revo-
gação de uma licitação não pode mais se basear
"critério de aceitabilídade dos preços uni- em critérios de conveniência e oportunidade. e,
tários e global, confonne o caso, vedada sendo assim, trata-se de um ato obrigatoriamen-
a fixaçlIo de preços minimos, critérios te motivado e comprovado o interesse público.
estatisticos ou faixas de variaçlIo Segundo o art. 49, vinculada à ocorrência
em relaçdo a preços de referência" de um interesse público decorrente de fato su-
(grifei). perveniente devidamente comprovado, perti-
No artigo 48, 11, previu a possibilidade de se nente e suficiente parajustificá-la. a revogação
aí, na realidade, é quase que um ato vinculado. "A investidura dos membros das
Essa distlOSição, ainda, deixa claro que a ComissõesPermanentes não exooien de.
revogação da licitação é exceção (a expressão um ano, vedada a recondução, para a
"somente poderá revogar" é indicativa dessa mesma Comissão, no período subse-
condição), sendo a regra, a contratação. Quem qüente"(grifei).
vence uma licitação, em princípio, salvo essa Qual teria sido a mens legis dessa regra?
exceção, tem direito subjetivo ao contrato. Além Evidentemente, salta aos olhos que a dis-
disso, deixa expresso que o fundamento básico posição exigindo, a cada ano, a renovação com-
é, ainda, o interesse público, este, entendido pleta da Comissão, pretendeu evitar a formação
como interesse público primário (da coletivida- de feudos que dominassem ad aeternum as
de) ou secundário (do órgão ou entidade públi- comissões de licitações.
cos). Essa, sem dúvida, a finalidade da norma.
21) Art. 51 - Competência da Comissão. O § 4,Odoart. 51 da Lei n.o 8.666193 trouxe a
Membros "qualificados". Condição juridica dos mesma regra, mas com alteração de redação,
membros. talvez com outra intenção do legislador:
O art. 51 traça a competência da Comissão "A investidura dos membros das Co-
de Licitação, deixando claro que lhe compete missões Permanentes não excederá a I
julgar as propostas e não apenas classificá-Ias. (um) ano, vedada a recondução da totali-
Julgar exige resultado, o vencedor. Daí a dade de seus membrospara a mesma co-
adjudicação ter que ser ato de competência da missão no período subseqüente" (grifei).
Comissão, pois adjudicar é declarar o vencedor Essa regra pode levar à seguinte interpreta-
da licitação, resultado final do julgamento, sem ção: se a totalidade é que está proibida de ser
o que não há falar nem neste nem naquele. reconduzida, a maioria pode ser. Ou seja, se te-
A adjudicação é ato inerente ao julgamen- nho uma Comissão de 7 (sete) membros, posso
to, pois este exige o resultado final, que é a reconduzir 6 (seis) ou 5 (cinco).
indicação do vencedor, e esta indicação já é a Essa interpretação não pode ser aceita, a
adjudicação. nosso ver, porque:
A norma fala, ainda, que 2 (dois) dos mem- a) repousa numa visão privatista do princí-
bros da Comissão deverão ser servidores qua- pio da legalidade, ou seja, o que não está proi-
lificados pertencentes aos quadros permanen- bido, está admitido, não passhrel de acatamen-
tes dos órgãos da Administração. A expressão to em Direito Público;
qualificados é de difícil compreensão. A nós b) viola o princípio da finalidade adminis·
tem parecido que o legislador pretendeu que trativa, corolário essencial do principio da lega-
duas vagas de membros não fossem preenchi- lidade, no dizer de Caio Tácito, posto que, se
das, sendo que isso ocorreria em e para cada posso reconduzir, de sete, seis, está formado o
licitação, dependendo do objeto da licitação. feudo, o que a Lei procura evitar. Haveria, ai,
Assim, se se tratar de licitação de obra ou portanto, flagrante desvio de finalidade.
serviço de engenharia, as duas vagas seriam Portanto, a interpretação mais consentânea
preenchidas somente para essa licitação, por com o Direito Público é aquela que vê, na nor-
dois engenheiros. Em outros casos ocorreria o ma referida, a vedação de recondução de qual-
mesmo. quer membro da Comissão, interpretando-se a
Por outro lado, como o § 3.° do art. 51 dis- expressão "totalidade de seus membros" no
põe que os membros das Comissões de Licita- sentido de todos e cada um.
ções responderão solidariamente por todos os 23)Arl. 57, incisos I, JJ e IV-Duração dos
atos praticados pela Comissão, entende-se que contratos.
todos os membros das Comissões devem ser
funcionários do órgão ou entidade, posto que, Algumas dúvidas surgiram com as novas
a não ser assim, não há possibilidade de puni- redações dadas, pela nova legislação, aos inci-
ção com o caráter solidário. sos I, 11 e IV do art. 57. A regra continuou a
22) Art. 51, § 4." - Recondução dos mem~
mesma do art. 47 do Decreto-Lei n.O 2JOO/86: a
duração dos contratos é adstrita aos respecti-
bras da Comissão.
vos créditos.
O§ 4.° do art. 41 do Ot'cret~Lei n.o 2.300/86
dispôs, pela vez primeira, que: Quanto ao inciso I, que trata de projetos

ar-tUa a. 32 n. f 2fJ . . ../1.... 1" " 201


cujos produtos estejam contemplados nas me- Entendemos, portanto, que a locaçto de
tas fixadas no Plano Plurianual, a principal dú- equipamentos se refere aos de infonnática s0-
vidajá não mais existe, ou seja, se os 5 (cinco) mente.
anos de que falava o inciso I do art. 47 se referia A locação de outros bens móveis pode ser
ao prazo máximo de duração do contrato ou da enquadrada no inciso 11, já que o inc. II do art.
prorrogação. Nós entendíamos que era da pror- 6.° da Lei n.o 8.666/93 enquadra a locaçlo de
rogação. O TeU, por mais de uma vez, enten- bens como sendo serviço e, evidentemente, há
deu que era do contrato. de ser serviço contínuo.
Agora a regra inexiste, razão por que o pra-
ZO é livre, para ser fixado pelo edital, de acordo
24)Art. 61, §§ 2. 0e3. o-vetadosnaLein. °
com o vulto da obra. Aprorrogação é discricio- 8.666/93 (nlJo indicados após a Lei n. () 8.883/
nária (a única que restou, com tal carncteristi- 94) - Proibição de efeitos financeiros retroati-
cal, mas a sua admissão e o seu prazo devem vir vos.
fixados também noeditaJ. O art. 61, na redaçao original da Lei n.°8.6661
93, repetia o § 2.° do art. 51 do Decreto-Lei n.o
Quanto ao inciso 11, serviços continuas, 2.300/86, proibindo atribuição de efeitos finan-
havia quem continuasse entendendo, na reda- ceiros retroativos aos contratos regidos pelo
ção original da Lei n.o 8.666193, que o primeiro Decreto-Lei e às suas alterações. O § 3.0 repetia
período devesse ser de, no máximo, um ano (ads- o § 3.° do art. 51 doDecreto-Lei n. °2.300/86. ou
trito ao respectivo crédito) e a prorrogação se- seja, abria uma exceção àquela proibição.
ria de mesmo prazo. Discordávamos desse en-
tendimento, pois a Lei n.o 8.666/93 não repetia Ambos os dispositivos foram vetados e não
as expressões do inc. II do art. 47 do Decreto- foram recriados pela Lei 0.° 8.883194.
Lei n.o 2.300/86, ou seja: "estender pelo exerci- Tendo havido o veto e inexistindo a proibi-
cio seguinte ao da vigência do respectivo cré- ção na legislação, indaga-se se é possível dar-
dito". Entendíamos que o primeiro período era se efeitos retroativos aos contratos. Evidente
livre, podendo ser de dois, três anos ou mais, que não, pois trata-se, no caso, mais uma vez,
porque a nonna falava em prorrogação por igual da aplicação do principio da legalidade pública,
período, e só. Tínhamos receio de abusos e, ou seja, o que não está autorizado está vedado.
exatamente por isso, o legislador, preocupado 25) Art. 61. parágrafo único - Publicaçllo
com esse aspecto, limitou tais contratações a 5 resumida do contrato. E quanto aos "outros
o
(cinco) anos (modificação da Lei n. 8.883/94). documentos hábeis?
Outra modificação é que o inc. 11, com a re-
dação atual, não mais admite prorrogação con- O Parágrafo único determina a publicaçto
tratual discricionária. Ele impõe a fixação do pra. resumida do instrumento de contrato ou de seus
zo total do contrato e uma vez ele fixado não aditamentos na imprensa oficial.
prevê qualquer prorrogação; esse prazo pode ir O 3rt. 62 dispõe que o instrumento é obriga-
a 5 (cinco) anos. como dito, no máximo. tório nos casos de concorrência e de tomada de
Qualquer prorrogação somente será possi- preços. bem como nas dispensas e inexigênci-
vel se ocorrer uma das 6 (seis) hipóteses pre- as cujos preços estejam compreendidos nos li-
vistas, de prorrogação, no § P do art. 57. mites dessas duas modalidades de licitaç!o,
facultando nos demais casos a substituição do
Quanto ao inc. IV, a dúvida ficou por conta instrumento contratual por outros instrumen-
da expressão "ao aluguel de equipamentos ...". tos hábeis, tais como earta-eontrato, nota de
Tratar~se-á de qualquer equipamento ou somen- empenho de despesa, autorizaçto de compra
te o de informática? ou ordem de execução de serviço.
De inicio entendíamos que ali se enquadra-
ria qualquer equipamento. Entretanto, posteri- A dúvida é se tais outros documentos há-
ormente, soubemos que essa norma adveio de beis também devem ser publicados, resumida-
solicitação do setor de informática, para que os mente ou não.
prazos de locação ou utilização de programas Temos entendido, desde o Decreto-Lei n.o
de informática, pelos trabalhos que dão a im- 2.300/86, ser necessário, sob pena de ineficácia
plantação dos equipamentos no local onde fun- jurídica de tais documentos, as suas publica-
cionarão e também os prazos de retirada que ções, na imprensa oficial.
são razoáveis, fossem longos, f1XID1do-os em 48 E que tanto o art. 37, caput, da CF quanto o
(quarenta e oito) meses. art. 3.° da Lei n.o 8.666193 exigem que seja. ob5er-

202
vado, dentre outros, o princípio da publicida- das, desde que admitidas e nos limites autoriza-
de. Por outro lado, se esses outros documen- dos pela Administração (art. 72). nas condições
tos hábeis substituem o termo de contrato (art. previstas no edital e no contrato (parte final do
62) e se este deve ser publicado, aqueles de- inc. VI do art. 78).
vem ser publicados, pois estão no lugar, fazen- 27) Art. 82 da Lei n. () 8.666/93.
do as vezes, daquele. Essa disposição contém uma redação que
26) Art. 72. emface do art. 78, inc. 111. poderia levar os menos avisados a um entendi-
O art. 72 da Lei n.o 8.666/93 reza: mento enganoso do seu conteúdo.
"O contratado, na execução do con- Reza ele:
trato, sem prejuízo das responsabilida- "Os agentes administrativos que pra-
des contratuais e legais, poderá subcon- ticarem atos em desacordo com os pre-
tratar partes da obra, serviço ouforneci- ceitos desta Lei ou visando a fmstrar os
mento, até o limite admitido, em cada caso, objetivos da licitação sujeitam-se às san-
pela Administração" (grifei). ções previstas nesta Lei e nos regula-
Essa norma, corno se verifica, prescreve dois mentos próprios. sem prejuízo das res-
comandos importantes: a) não admite a sub- ponsabilidades civil e criminal que seu
rogação das responsabilidades, das obrigações, ato ensejar" (grifei).
do contratado para o subcontratado; b) não A Lei 0.° 8.666/93, em teMOS de sanções
admite a subcontratação total do objeto do con- administrativas, somente as prevê para a em-
trato. presa concorrente (art. 87), não as contemplan-
Nessas condições, como ficaria a interpre- do para o agente administrativo.
tação do disposto no inc. VI do art. 78, que diz Assim. poder-se-ia pensar nas sanções pe-
ser motivo de rescisão contratual: nais.
Entretanto. isso não ocorre, eis que, para
"a subcontratação total ouparcial do seu que só o fato do descumprimento de alguma
objeto, a associação do contratado com das disposições da Lei, se constituísse em cri-
outrem, a cessão ou transferência, total me, \.aI estatuição teria que teI sido feita na Se-
ou parcial, bem como a fusão, cisão ou ção III - Dos crimes e das penas, em termos de
incorporação, não admitidas no edital e tipificação penal, que os especialistas denomi-
no contrato" (grifei). nam de norma penal em branco.
Se lida isoladamente do contexto, tal regra,
poderíamos entender que, se o edital e o con- Como isso não ocorre, com certeza o art. 82,
trato admitissem, seria possível a subcontrata- com a redação que contempla. ficou inócuo em
ção, a cessão ou a transferência totais do con- tennos de comando legal. A corroborar a nossa
trato, o que seria um absurdo, primeiro porque interpretação, veja-se a parte final da referida
o contrato administrativo é sempre intuitu per- disposição, que diz: ... sem prejuízo das res-
sonae, máxime quando decorrente de licitação, ponsabilidades civil e criminal que seu ato
e segundo porque, então, uma empresa que ensejar.
sequer tenha participado da licitação, executa- Portanto, somente quando o descumprimen-
ria o total do contrato. to de alguma disposição da Lei n. o 8.666/93 for
Como vimos, por outro lado, o art. 72 im~­ considerado pelos arts. 89 ou seguintes, como
de aquele entendimento, pois ele somente ad- sendo crime, é que haverá a apenação. Fora daí,
mite a subcontratação se parcial. não.
28)Art. 87 - Competência para a aplicação
Destarte, a única interpretação posSÍvel para das sanções de suspensão tempotária para hei-
o inc. VI do art. 78 é no sentido de que será lar e contratar com a Administração e de inido-
motivo de rescisão do contrato o fato de o con- neidade.
tratado ceder, subcontratar ou transferir o con- Tem surgido opiniões errôneas quanto à
trato totalmente a terceiro, sem dar conhecimen- abrangência ou âmbito de validade dessas san-
to do fato à Administração. O edital jamais p0- ções.
derá prever a cessão, a subcontratação ou a
transferência, totais, do contrato. A Lei n. o 8.666/93 não fixa a competência
Já a cessão, a transferência ou a subcontra- para a aplicação da primeira sanção (a mais leve),
tação parciais, estas, sim, poderão ser efetua- fazendo-o apenas quanto à segunda, no § 3.°

ar.." . . . 32n. 126-"JJun. 1eM 2D3


do art. 87 ("A sanção estabelecida no inc. IV provadamente inidônea, às suas lici/a-
deste artigo é de competência exclusiva do Mi- ções ou contratações, ..." (LicitaçiJo e
nistro de Estado. do Secretário Estadual ou Contrato Administrativo, RT - 10.· 00.,
Municipal, confonneocaso ..."). pp. 25(1251).
Os incisos DI e N do ano 87 definem as duas Emais:
sanções administrativas: "A inidoneidade só opera seus efei-
"III - suspensão temporária de parti- tos em "'aça0 Q Administraçl10 que a
cipação em licitação e impedimento de declara. pois sendo uma restriçikJ a di-
contratarcom a Administração, por pra- reito. niJo se estende a outras Adminis-
zo não superior a 2 (dois) anos; trações".
IV - declaração de inidoneidade para Com a mesma orientação, vejam-se Wolgran
licitar ou contratar com a Administração Junqueira Ferreíra (Licitações e Contratos na
Pública enquanto perdurarem os motivos Administraçi10 Pública, Edipro, 1994, p. 285),
determinantes da pwtição ou até que seja Raul Armando Mendes (Comentários ao Esta-
promovida a reabilitação perante a tuto das LicitaçiJes e Contratos Administrati-
própria autoridade que aplicou a penali- vos, Saraiva, 2. a 00., p. 221), Carlos Ari Sundfeld
dade ...". (Licitação e ContratoAdministrativo, Malhei-
No primeirocaso, já que a Lei silencia quan- ros, p. 117) e Marcos Jurnena Villela Souto (Li-
to à autoridade que aplica a pena, subentende- citações & Contratos Administrativos, Espla-
se que esta seja a autoridade superior do órgão nada, p. 170).
elou entidadcque homologa as licitações. Por- E é assim porque, como lecionou Hely L0-
tanto, a abrangência da penalidade se esgota pes Meirelles,
no âmbito do órgão. "a competência resulta da lei e por
Quanto à sanção de declaração de inidonei- ela é delimitada. Todo ato emanado de
dade, embora o inc. IV do art. 87 fale em "decla- agente incompetente, ou realizado altm
ração de inidoneidade para licitar ou contratar do limite de que dispiJe a autoridade
comaAdministraçikJ Pública ...", evidentemen- incumbida de sua prática, t inválido,
te, essa expressão genérica não pode levar à por lhe faltar um elemento básico de sua
conclusão de que a sanção estenderia seusefei- perfeição, qual seja, o poder juridico para
tos a toda a Administração, posto que, à evi- manifestar a vontade de Administraçlo"
dência, sanção supõe competência para a sua (Direito Administrativo Orasileiro, J 9.·
aplicação e, nesse sentido, o âmbito de sua va- ed.,Rev. Tribs., 1994,p.134).
lidade está limita~o pela competência (atribui- Finalmente, a propósito do ato sancionató-
ções) do agente. E impossível que uma sanção rio que pretenda extrapolar o âmbito da compe-
aplicada a urna empresa por prefeito do interior tência do agente sancionador, o antigo TFR,
da Bahia, por exemplo, tenha validade perante pela palavra do Relator de acórdaO especifico
qualquer outro Municipio ou Estado, ou pemn- ~Gtema{inRDA 144f42), Min.. ~B.
te órgãos federais. de Souza, deixou registrado:
A doutrina é quase unânime nesse sentido. '"Ao invés de sugerir ao Sr. Presiden-
Dissemos nós a respeito: te da República que baixasse ato especi-
"Já aquela prevista no inc. IV valerá fico declarando a inidoneidade das em-
para o âmbito geral, abrangendo a enti- presas para licitar na Administraçlo Pú-
dade politica que a aplicou ..:' (O Novo blica Federal, sua Excía., o Sr. Ministro
Estatuto Jurldico das LicitaçDes e Con- da Saúde atribuiua si a prerrogativa que
tratos Públicos, Ed. Rev. Tribs. - 2. a ed., é exclusiva do Chefe da Nação e baixou
p.84). ato relativo a toda a Administraçlo Pú-
blica Federal, quando deveria ater-se o
No mesmo sentido, Hely Lopes MeireIles: mesmo aos órgãos do seu Ministério."
..... a declaração de inidoneidade não
é, a tigot, uma penalidade oonttatllai, mas, "'Todos os tratadistas que discorre-
sim, uma sanção administrativa genéri- ram sobre a declaração de inidoneidade
ca. imposta por determinada entidade para licitar prevista no Decmo-lei n.02001
estatal, com a finalidade de impedir o 67, são unânimes em afirmar que no al-
acesso de pessoaflsica oujurldica, com- cance do ato limita-se aos órgãos subor-
di nados à autoridade que o baixou." A Lei n.o 8.666/93, no inc. I do art. 109, re-
"Na verdade, tal como se acha forma- produzira, nesse aspecto, aquela disposição:
lizado, o ato ministerial impugnado soli- 1- recurso, no prazo de 5 (cinco) dias
cita acatamento de toda a administração úteis a contar da intimação do ato ou
pública federal, e, neste sentido, é da lavratura da ala ..." (grifei).
exorbitante. Deveria restringir-se ao âm-
bito do Ministério da Saúde. Ocorre que esta Lei contemplou um novo
dispositivo, o § 5.°, dizendo que
Ao ampliar a extensão do ato sancio-
natório, a ilustre autoridade coatora ul- "nenhum prazo de recurso, represen-
trapassa os limites postos pelo art. 20 do tação ou pedido de reconsideração se
Decreto-Lei n.o 200/67, com as alterações inicia ou corre sem que os autos do pro-
do Decreto-Lei n.o 900/69." cesso estejam com vista franqueada ao
interessado" (grifei).
Destarte, nenhuma razão assiste aos que
pensam estender os efeitos da declaração de Portanto, a contagem do prazo de recurso
inidoneidade para além do âmbito de compe- não é feita da intimação do ato ou da lavratura
tência do agente sancionador. da ata, como diz o inc. I do art. 109.
29) Art. 109,1 e § 5. O-Contagem inicial dos Podemos (e devemos) dar prevalência ao
prazos recursais. disposto no § 5.° do art. 109, afastando o inc. I
Aqui, apontamos apenas distorções da Lei, do mesmo artigo, em homenagem ao direito à
quando o legislador impôs nova data inicial de ampla defesa (inc. LV do art. 5.° da CF), já que o
contagem dos prazos dos recursos e se esque- conteúdo do referido § 5.°, pela sua simples lei-
ceu de alterar disposição que indicava outra tura, deixa demonstrada a intenção do legisla-
data. dor em prestigiar a ampla defesa.
Com efeito, desde o Decreto-Lei n.o 2.300/ Essas as considerações que tínhamos a fa-
86, existia regra que contemplava o "direito a zer, a propósito dos pontos polêmicos, das dis-
recurso, no prazo de cinco dias úteis a contar torções, lacunas e conflitos existentes na nova
da intimação do alo ou da lavratura da ata legislação sobre licitações e contratações pú-
..." (art. 75, n. blicas.
A intervenção do Estado brasileiro e a
política oligárquica na república velha

MARIA EUIABElH GUIMARÃES TEIXEIRA ROCHA

sUMÁRIo

1. A intervenção. 2. O decl mio das oligarquias.


3. Conclusão.

1. A intervenção
A atividade intervencionísta do Estado no
domínio econômico é o objeto essencial do Di-
reito Econômico. A questão da oportunidade
ou não desta intervenção não constitui mais
motivo de discussão, pois as constituiçõel> ela-
b<uadas por diversos países, principalmente
após a 11 Guerra Mundial, incluem um capítulo
denominado "Da Ordem Econômica e Social".
A intervenção econômica do Estado é, por-
tanto, um fenômeno historicamente permanen-
te. Pode-se dizer que sempre existiram fonuas
de intervenção, embora qualitativa e quantitati-
vamente diferentes das que são características
dos nos1>OS dial>.l
As normas interventoras anteriores às atu-
ais eram de caráter proibitivo e de polícia. Esta
Maria Eli7.abeth Guimarães Teixeira Rocha é
atitude de abstenção do Estado das atividades
Especialista em Direito Constitucional pela Univer- econômicas está ligada a um determinado mo-
sidade Federal de Minas Gerais. Mestra em Ciências delo juridico - o liberaI - e a uma deterrttinada
luridico-Pollticas pela Universidade Católica Portu- ideologia - a do individualismo. 2 Este modelo
guesa. Doutoranda em Direito Constitucional pela jurídico assenta-se em dois postulados essen-
Universidade Federal de Minas Gerais. Professora ciais: a separação absoluta entre o direito pú-
Titular de Direito Constitucional na Âssociaç.ão de blico e o privado e o predomínio da autonomia
Ensino Unificado do Distrito Federal - AEUDF. da vontade privada na esfera econômica.
Professora Adjunta da Faculdade Cândido Mendes
-Ipanema - RJ e do Centro de Ensino Unificado de O Estado Liberal que emergiu da Revolução
Brasília - CEUB-DF. Francesa e cuja predominância durante o sécu-
lo XIX acentuou nitidamente a separação entre
Trabalho apresentado ao Professor Washington a atividade econômica e política caracterizou~
Albino Peluso de Souza, na disciplina de Direito se pela ausência do seu domínio sobre a eco-
Econômico I, no curso de Doutorado em Direito nomia. O bem-estar geral traduziu-se na soma
Constitucional, na Universidade Federal de Minas
Gerais. OBS: NOTAS AO FTNAL DO ARTIGO.

8,. .fII• •• 32 n. 126 ""JJun. 1995 207


de diversos casos de bem-estar individual, sen- fase liberal. Não havia condições de criar ou
do as relações governadas pela invisible hand fot,nentar a indústria e a saida era a exportação.
de Adam Smith. ' A mtervenção do Estado se caracterizava pelas
Entretanto, durante o século XIX importan- refonnas alfandegárias, sendo a mais famosa a
tes transfonnaçõe5 econômicas e sociais iriam de Alves Branco, em 1844, que põe em vigor a
alterar o funcionamento do regime liberal. As nova lei de tarifas, taxando pesadamente têx-
descobertas cientificas, a Revolução Industri- !Cis e bebidas, que constituíam o grosso das
al, o aparecimento dos aglomerados urbanos e importaçOOs brasileira<;. A taJüà de 1844 inaugura
de empresas de grande porte exigiriam a inter- uma nova política, encerrando afase hberal.1
venção cada vez maior do Estado na vida eco- Os surtos econômicos decorrentes da arre-
~ô~ca para resolver conflitos de grupos e de cadação aduaneira e da abolição do tráfico de
mdividuos.) E a substituição da mão invisível escravos carreou recursos para serem aplica-
smitlúana pela mão visível do Estado,justifica- dos em novas atividades industriais. Durante
dajurídica e ideologicamente pela realização da este período, o Barão de Mauá tenta introduzir
justiça social. um novo sistema de atividades econômicas mas
O crescimento das escolas socialistas o se vê tolhido pela presença do governo. '
Manifesto Comunista de Karl Marx. em 1848, No dizer de Raymundo Faoro, a regulamen-
~vl1J!l a indicar que novas concepções poli- tação econômica do Estado faz-se sentir com
tIcas, diametralmente opostas às existentes, iri- maior incidência no comércio e na indústria.
am obrigar, ainda mais, o Estado a abarcar maior Tudo dependia do governo e, fora deste, nada
número de atribuições. se conseguia na indústria privada. 9
Com o advento da I Guerra Mundial o libe- Um fato importante deste período é a ad0-
ralismo econômico romper-se-ia\ dando origem ção do Código Comercial, que, com poucas al-
a um novo enfoque ideológico, que já vinha terações, vem sobrevivendo até os dias de hoje.
sendo consolidado, sobre a atuação do Estado Entretanto, este surto de modernismo foi
e a necessidade de uma maior intervenção. 5 apenas um episódio de um sistema econômico
Após a Guerra e até a Grande Depressão de que continuou a manter o predomínio da ec0-
1929, o Estado tentou se proteger de tais crises. nomia agrária, predomínio este que se esten-
Assim Keynes recriou a concepção que a econo- deu até 1930, quando então houve uma ruptura
mia e a política estão indissoluvelmente ligadas. 6 do poder hegemônico das oligarquias.
O plano histórico é caracterizado por duas
experiências de intervencionismo antiliberal De fato, desde a colônia, a classe agrária
onde o Estado passa. a controlar tudo, inclusi: sempre dominou o Brasil. Apesar das diferen-
ve o processo econômico: o fascismo e o nazis- ças regionais e dos diversos graus de seu de-
mo. E da mesma época a experiência da sociali- senvolvimento material, ela apresentou e apre-
zação dos meios de produção na União Soviéti- senta pontos comuns que a definem como clas-
ca com a adoça0 dos planos qüinqüenais e téc- se social una, dentre os quais se destacam a
nicas de planejamento governamental. posse da terra e seu dominio sobre a socieda-
O mundo assiste também à intervenção do de. Pouco importa se no curso da história uma
Estado nos Estados Unidos da América, com a parte dela se voltou para a produção do açúcar
New Dea/, de Roosevelt, para sanar os efeitos eoutra para a produção cafeeira~ o que a carac-
da Grande Depressão. terizou foi a posse dos meios de produção, vol-
Na verdade, o que se configurou foi inter- tados essencialmente para a monocultura e o
vencionismo social, e o conceito da interven- mercado externo e a manutenção da hegemonia
ção foi se consolidando a partir da realidade política, moldando, com isso, a sociedade à sua
imagem. 10
poHtica e econômica de cada Estado, ajustao-
do-se aos sistemas jurídicos vigentes. As sólidas alianças que se teceram entre as
E no Brasil, como se comportou a interven- diferentes frações da classe agrária e o poder
ção do Estado no domínio econômico? central forjaram a consolidação de um Estado
No final do século XIX, regido pela Consti- nacional colaboraclonista.
tuição de 1824, o Brasil teve um regime estável O pacto oligárquico pode ser classificado
graças ao Poder Moderador, que proporcionou em etapas distintas, que correspondem aos di-
relativo progresso à vida econômica do paíS. 7 ferentes níveis de articulação anteriores a 1930.
Entretanto, a economia ainda estava numa O período posterior à Independência até a
maioridadedeD. Pedron-1822-1838-émar- sível, como aliás já o mencionara a própria lei, o
cado pela indefinição inicial das alianças entre advento de uma modalidade de trabalho livre
o poder centraI e os diferentes segmentos das que permitisse a substituição do escravo sem
oligarquias regionais em formação. A partir do destruir a economia da grande fazenda. O cami-
2. 0 Reinado, o Estado será transformado em nho para essa substituição estaria na abertura
avalista das relações sociais coordenadas pe- de correntes migratórias de países que tives-
los centros hegemônicos, como também em sem excesso de população". 14
mediador e elo de ligação entre as oligarquias
O Estado colaborou com o novo regime fun-
tradicionais e as emergentes, coesas em torno diário, transferindo para os Estados-Membros
da perpetuação de interesses comuns. suas terras devolutas, com respaldo na Consti-
Após o golpe da maioridade, a escravidão tuiçãode 1891.
prolonga-se por mais cinqüenta anos, com o A situação do trabalhador diante deste novo
respaldo do Estado, que nela encontrou a fonte quadro político se alterou, demarcando novos
de legitimidade de que foi carente em seus pri- espaços para o fazendeiro e o campesino. O
meiros anos de existência autônoma, tomando- campesinato tradicional de agregados e pos-
se o denominador oomumentre OS grn\'lOf> regi.o- selTos deu lugar ao campesinato moderno, de
nais diferenciados e potencialmente divergen- pequenos proprietários, dependentes do mer-
tes. Consoante esta lógica, o pacto social se cado. '5
exauriu com a abolição da escravatura, que cul-
minou com a queda do Império. II Foi este o processo característico das Regi-
ões Sul e Sudeste, vez que, no Nordeste, a eco-
A Abolição, contudo, não trouxe no seu nomia canavieira há muitojá havia entrado em
bojo as transformações esperadas por muitos crise. 16
abolicionistas, como a distribuição da proprie- Diante de tal contexto, a República desem-
dade que findasse o monopólio da terra e criasse penhou papel fundamental no cenário das trans-
uma ampla camada de pequenos proprietários. formações conjunturais do Estado brasileiro,
A própria transição para o trabalho livre, pois somente ela propiciaria novas recomposi-
longe de liberar a mão-de.-obra de um rígido ções de forças, responsáveis pela reformula-
controle, imobiliza-a nas zonas mais decaden- ção do pacto de dominação da classe agrária.
tes em razão da utilização de trabalhadores imi- Após os primeiros anos de hegemonia mili-
grantes mais qualificados nas zonas de expan- tar e de indefinição política, as oligarquias, re-
são cafeeira. 12 articuladas com o Estado já descentralizado,
Na verdade, as alterações sociais, econômi- legitimaram seu projeto com a "política dos go-
cas e políticas, prenunciadas e efetivadas no vernadores" . 17
quadro nacional, não afetaram a hegemonia Por meio desta, o idealismo democrático da
política e econômica da classe agrária; ao con- Constituição de 1891 seria reinterpretado a fa-
trário, consolidaram o poder de uma de suas vor do fortalecimento e da hierarquização das
facções - a oligarquia cafeeira paulista - cujo lideranças regionais, através das novas funções
apogeu coincide com o período que se estende mediadoras do Estado. 18
da Presidência Campos Sales às vésperas da Na verdade, com a República. a classe agrá-
Revolução de 30. ria atingiu seu apogeu. expresso pelo absoluto
A Abolição, já pressentida, foi habilmente domínio econômico, social e político. Foi a cha-
cercada de anteparos legais bem antes de 1888, mada "era das oligarquias". 19
a fim de preservar a lavoura de grandes abalos. O grande debate da Constituinte de 1891
Já em 1850, datada proibição do tráfico ne- girou em tomo da discriminação de rendas en-
grei TO, foi promulgada a Lei de Terras em 18 de tre a União Federal e os Estados Federais. As
setembro, que instituía um novo regime fundiá- idéias extremadas dos representantes das oli-
rio lJ • Por detenninação legal, ficavam proibidas garquias desejando maiores recursos para os
a abertllTa de novas posses e a aqulslção de Estad% são c.ontrabalançadas rom o dese)o de
terras devolutas por outro titulo que não fosse outros que pregavam o equilíbrio entre a recei-
ode compra. ta federal e a estadual.
É importante notar que o regime adotado
O sentido da medida era claro e atingia dire- pela Constituição de 189 I ainda deixa o Estado
tamente os camponeses da época. "Diante do bastante afastado das atividades econômicas. 20
fim previsível da escravidão, era também previ-

8,..,U• •. 32 n. 12B aIw./jun. 1995


Neste perlodo, o café continua como o sus- pouco depois da crise camcterizada pelo enci-
tentáculo da economia, apesar das úmidas ex- lhamento, e após a luta militar contm Floriano,
periências industrializantes, como a proposta começam a cair OS preços do café. O valor mé-
por Rui Barbosa. 21 dio da saca exportada em 1896 foi de 2,91 libras,
Pam proteger este produto, se processam contra 4,09 em 1893. Em 1897continua aqueda.
medidas de intervenção pWs ativa do Estado que vai alcançar 1,48 libras em 1899. 23 Neste
no dominio econômico. E atmvés de mecanis- contexto, tomava-se extremamente diftci~ com
mos monetários e financeiros que o processo os mecanismos habituais, "socializar os prejuf-
de intervenção se acentua, cabendo destacar a ros". A descentmlização fedemtiva apresenta-
criaçao, em 1908, da Caixa de Convenção.22 va uma saída interessante: caberia aos gover-
O desenvolvimento da economia acentuou nos estaduais defender uma poHtica própria, a
a debilidade da União Federal para resolver os da "valorização" no caso do café, que permitis-
problemas. A I Guerra Mundial (1914-1918) \cio se manter os lucros da classe dominante ligada
desequilibrar a vida econômica do pais, mos- ã exportação. Para efetivar essa política, em in-
trando a fraqueza e a inadequação do regime dispensável apoio externo. Esse apoio foi en-
jurldico constitucional, obrigando a uma refor- contrado no capital financeiro, eaaliança. 0utro-
ma constitucional, em 1926. ra tácita, estabeleceu-se de maneira expUcita.
Mas a despeito de seu descenso econômi-
Esta reforma ampliou os poderes da União co, a oligarquia ruml teve maleabilidade sufici-
para intervir na economia. A modificação mais ente pam adaptar-se às novas circunstãncias,
importante foi a do art. 34, alinea 5, que deu ao preservando seus privilégios e mantendo a do-
Congresso Nacional competência para legislar minação do sistema polttico.
sobre comércio exterior e interno. Entretanto,
tal fato não foi suficiente para timr o Estado da As justificativas pam este comportamento
posição absenteísta, incapaz de resolver os pro- são variadas: a experiência de poder, que a clas-
blemas sociais e econômicos do Brasil. se acumulam desde a colônia, controlando as
2. O declinio das oligarquias municipalidades e pressionando direta ou indi-
retamente a metrópole; o fato de ser ela a única
A derrocada do predonúnio oligárquico se classe social capaz de se organizar moderna-
dá por várias razões, sendo a principal delas a mente, isto é, criar seu partido político, não im-
crisede 1929. portando que ele se apresentasse sob facções
Seu descenso, contudo, é progressivo. Nas variadas, com tendências opostas - monarquis-
décadas de 1910 e 1920, o crescimento da socie- tas ou republicanas -, pois ao fim, seus objeti-
dade, decorrente do incremento das atividades vos eram idênticos: deter o mon0p6lio das p0-
wbanas, representa o primei~ momento de con- sições superiores no Executivo, Legislativo e
testação ao regime agrário. E certo que as clas- Judiciário, o que se traduzia numa identificaçlo
ses UIbanas não se encontmvam em condições completa entre a classee o Estado; e, por derra-
de, efetivamente, ameaçarem a estrutura, con- deiro, a existência de outm classe social, ou tàc-
forme será analisado a seguir. Porém, de um seg- ção, que pudesse se antepor a ela. Desta ma-
mento institucional do regime - o Exército - oeim, seu predomínio foi absoluto e incontes-
partiria um grito de insatisfação. te, tendo a classe oligárquica conseguido, nos
Paralelamente, a fundação de novos parti- momentos de transição do pais, impor seu mo-
dos políticos - o Partido Libertador (1928), no delo - Constituições de 1824 e 1891 - via meca-
Rio GrarwJe do Sul, o Partido Democrático (1926), nismos de domfnio do eleitomdo, fator que jus-
em São Paulo - põe fim à hegemonia no interior tificou legalmente seu poder polttico. Enquan-
da própria classe, cindindo-a; cisão esta, apro- to isso, as outras classes sociais continuavam
fundada pelos episódios de contestação ã marginais, sem nenhuma experiência de poder
"política café-com-leite", que privilegiava os e, o mais 24importante, sem condições de con-
Estados de Minas Gerais e São Paulo nas elei- quistá-Io.
çõespresidenciais de 1910,1922 e 1930. Transcorreu-se, assim, a primeim fase da
A crise econômica, social e política, provo- República, fase do triwúa1ismo oligárquico,
cada pelo crack de 1929, daria expressividade embalado pela aliança "café-<:om-Ieite".
ao descontentamento dos estados deslocados Num segundo momento, a República oligár-
do eixo do poder centmI. quica enfrentaria sérias e prolongadas crises.
Na realidade, mui1D antes de 1929,já em 1896, Efetivamente, com a entrada do Rio Grande do

210 II_III.t. fi_ ''''orrnap'' , . .,....,,,.


Sul na cena política nacional, desestabilizou-se O coronelismo se caracterizou pelo rígido
o pacto de poder entre São Paulo e Minas Ge- controle dos chefes políticos sobre os votos
rais, o que levaria à Revolução de 30. Ademais, do eleitorado, o chamado "voto de cabresto",
os movimentos tenentistas, sobretudo o de 24,25 isto é, o eleitor e o seu voto ficavam sob tutela
minariam os fundamentos da política oligárqui- dos coronéis, que deles dispunham como coisa
ca, abalando a natural submissão da cúpuJa do sua. 32
Exército às autoridades constituídas. Ele consagrou um sistema eficaz de exclu-
Tal qual ocorrera no início da República, as são política de todos os dissidentes que não
contestações urbanas e rurais serão dissocia- pudessem movimentar urna clientela para ne-
das. Nem o movimento operário nascente nem gociar posições políticas. A fraude eleitoral era
a classe média (em cujas fileiras incluíam-se os uma prática usual e, na hipótese de urna even-
jovens tenentes) sensibilizaram-se no sentido tual "surpresa" , havia ainda o sistema de verifi-
de urna ação conjunta. Os "bandidos cangacei- cação dos poderes - a conhecida "degola" -
ros" são considerados facínoras e expostos, mediante o qual poderia ou não ser legitimada a
quando mortos, aos olhares de indiferença ou eleição dos adversários do governo. 33
hostilidade, nas cidades. O bando de Lampião, Conseqüência da fraqueza da estrutura ad-
em contato com a Coluna Prestes, lhe foi indi- ministrativa do Estado, despTovido de condi-
ferente ou adverso. 26 ções para atender às atribuições de sua esfera,
Por seu turno, o camponês permaneceu em o coronelismo exprime uma "política de com-
sua condição histórica de "excluído". promissos", configurada "pelo encadeamento
rígido do tráfico de influências" que fOljou acor-
Excluído da condição de proprietário da ter- dos entre o eleitorado, o colOnel e o poder mu-
ra,21 tratado como agregado da fazenda, pos- nicipal, estadual e federal. 34
seiro ou sitiante, seus direitos só eram reco- Isto resultou num pacto entre as classes
nhecidos como extensão dos direitos do fazen- dominantes e o Estado, na aliança entre o p0-
18
deiro, predominando a relação de troca. der central e o poder local.
Excluído da condição de escravo, já que não
podia ser convertido em renda capitalizada do "O Estado usava o Exército e a força parti-
tráfico colonial. 29 cular para manter a ordem escravocrata e a inte-
gridade territorial, fechando os olhos aos abu-
Excluído, finalmente, de toda e qualquer SOS perpetrados pelo poder local". As classes
participação política, pois a Constituição de dominantes, por seu turno, "uniram-se para
1824, confirmando a exclusão política dos p0- sufocar discordâncias ou rebeliões das classes
bres, estabelecia urna restrição essencial de or- dominadas, que denunciassem a asfixiante at-
dem econômica, para o cidadão tornar-se elei- mosfera dessa sociedade injusta e violenta".3s
tor ou elegível. 30 Seria, porém, na década de 30, que severifi-
Com o advento da Lei n.o 16, de 12deagos- carla o descenso das oligarquias. Novas forças
to de ] 834, que alterou a Constituição do Impé- sociais se desencadeiam com a crise de 29 e a
rio e a criação das forças de repressão - as Guar- Revolução de 30, comoasformaçõespartidári-
das Municipais e a Guarda Nacional -, ampliou- as do operariado e da pequena burguesia.
se o poder provincial e, conseqüentemente, a A estrutura econômica e financeira, extre-
participação dos proprietários na vida política mamente frágil, que escorava artificialmenteos
da municipalidade. mecanismos de mercado, tomou-se insusten-
Subordinada ao Ministério da Justiça e não táveL
ao do Exército, a Guarda Nacional era emprega. O cultivo do café requeria crédito, vez que o
da como urna força de elite. 31 investimento necessitava de quatro anos até
que os cafeeiros frutificassem. Inicialmente, os
Seus integrantes, graduados segundo urna financiamentos provinham dos intennediários,
hierarquia militar, eram denominados "tenentes", responsáveis pela comercialização do produto,
"majores" e "coronéis". A patente de coronel, que retinham os empréstimos, seus juros e lu-
paulatinamente, deixou de se relacionar ao exer- cros. Quando veio a decadência, a dependên-
cicio da função militar, passando, populannen- cia dos agricultores em relação a estes interme-
te, a designar os chefes políticos e regionais, diários aumentou e, em 1850, o Banco do Brasil
marcando a presença do fenômeno conhecido começou a financiar diretamente os cafeicuJto-
por "coronelismo". res em dificuldades. 36

.....,..... 3211. 128 ....JJun. 1885 211


Os debates havidos na época, no Congres- 3. ConclusiJo
so Nacional, os documentos da Sociedade Ru- A intervenção do Estado brasileiro no do-
ral Brasileira, controlada pelos interesses do mínio econômico durante a república velha nao
café, evidenciavam um esforço sistemático e foi, como se viu, conseqüência de uma evolu-
constante em transferir ao governo federal a ção polftico-social que visava ao desenvolvi-
responsabilidade pela condução da politica ca- mento,O
feeira no país e a absorção de seus custos. 37 Ora, o intervencionismo propõe o impedi.
A busca de apoio oficial para a defesa dos mento, pelo Estado, dos abusos econômicos,
interesses dos oligarcas era vista como uma para restabelecer a liberdade contratual e a ini-
medida temporária, para compensar uma situa- ciativa econômica ao nível proposto pelo libe-
ção adversa no inercado internacional. Com o ralismo, compreendendo a dinamização de um
tempo, no entanto, a própria política de valoriza- conjunto de instrumentos estatais a serviço de
ção transfonnou-se num processo permanente.)8 interesses privados."
Porém, o respaJdo financeiro dado aos agri- A idéia de intervenção carrega, em si, a preso-
cultores não obedecia a qualquer lógica econô-- suposiçAo da existência de um campo reserva-
mica. A déMcle, portanto, era inexoráveL 3!1 do à ação econômica do setor privado. NAo
Outro fator de agravamento da decadência houvesse tal área circunscrita, não haveria in-
oligárquica em o usopredatório da lemiI, sobre- tervenção.
tudo no \!aJe do Panúba, que ainda se encontra- Nestes tennos, a adoção do regime inter-
va em sérias dificuldades para superar o pro- vencionista não opera a substituição do capi-
blema de substituição da mão-de-obra escrava, talismo pelo socialismo, pois o mercado sub-
em extinção a partir de 1850. 411 siste preservado como mecanismo de coorde-
nação do processo econômico, vez que nele se
Quanto à oligarquia paulista, se ela havia encontram as condições mais propicias à dina·
resolvido o problema da força de trabalho com mização dos dois valores fundamentais do ca-
a imigração, persistia a questão das flutuações pitalismo: a propriedade privada dosbens de pro.
do preço do café no mercado internacional,41 duçlo ea hberdade de iniciativa econômica. 4'
E certo que as iniciativas para o acordo de
A intervenção só se justifica, portanto, para
Taubaté, e as subseqüentes medidas de con-
trole de preços, provieram dos cafeicultores corrigir distorções do liberalismo, preservando
paulistas. Segundo Delfim Neto, tal fato justifi- sempre o mercado. Donde decorre que o metal-
ca-se por serem os cafeicultores de São Paulo do se nutre do intervencionismo.
os principais plantadores do produto, mais vul· No sistema econômico da república velha
neráveis às flutuações de preços. 42 este encadeamento lógico não se verificou. O
mercado e suas condições de operacionaliza-
A Revolução de 30 modificaria o panorama ção foram colocados de lado para atender os
econômico nacional, marcando o desenvolvi- interesses exclusivos da oligarquia rural.
mento do capitalismo no BrasiL Foi nesta déca- Na verdade, não houve intervencionismo
da que se implantou um núcleo básico de in- ou planejamc::to estatal, concretizado por meio
dústria de bens de produção, transformando o de um plano econômico cuja finalidade seria a
pólo urba~industrial no eixo dinâmico da ec0- adaptação da produçAo às necessidades soci-
nomia. ais, mas uma inversão do processo, com a utili-
Por certo, os condicionantes dessa moder- zação do Estado como instrumento de classe.
nização estão relacionados à conjuntura inter- A conseqüência mais nefasta gerada por
nacional, desestabilizada pela eclosão da crise esta politica de dominação, foi o desvirtuamen-
de 29. Mas estio, sobretudo, atrelados ao mo- to das funções do Estado na medida em que,
mento social e politico vivido intensamente e num sistema capitalista típico, definidas as fun-
que pode ser definido como de séria crise de ções tradicionais, delimitado estava o campo
hegemonia do grupo cafeeiro paulista. Neste no qual começava a intervenção.4li
momento, esgotaram-se as possibilidades de Nestes termos, não houve uma "ação su-
preservação do modelo agrário-exportador ba- pletiva do Estado" a amparar classes sociais
seado no café, após sucessivas tentativas de em ascensão, e sim, uma efetiva conquista do
valorização do produto que socializavam seus Estado, consolidada com a "polftica dos gover-
ônus por toda a sociedade brasileira benefici- nadores",
ando um só grupo em detrimento dos demais.
212 "evl.f. de ...ror..... L"'.I""v.
Notas por falta de capital e de demanda, e conseqüente
lOS diversos autores que estudam, dentro do "absorção" estatal para evitar a crise; d) fraciona o
Direíto Econômico, o capítulo da intervenção, pr0- mercado internacional pelo surgimento de novos Es-
curam, em primeiro lugar, estabelecer a distinção en- tados e de um novo nacionalismo econômico, deter-
tre o intervencionismo e a intervenção. minando ademais o definitivo desenvolvimento nu-
mérico e o despertar classista das massas operárias,
Eros Grau considera as palavras intervenção e de quem acresce o peso poUtico e a força organizat6-
intervencionismo, como designadoras da ação desen- ria, colocando em posição de condicionar a tradicio-
volvida pelo Estado no e sobre o processo econômi- nal supremacia das antigas classes dirigentes e de
co. Portanto, a intervenção é uma modalidade de ação exigir a revislo em sentido social do intervencionis-
que lança mio o Estado na prática do intervencionis- mo". In VIGORITA, Vincenso Spagnuolo -
mo. In GRAU, Eros Roberto - Elementos de Direito L 1njziatÍVa Economio Privada nel Diritto Publico,
Econômico, SP, Ed Revista dos Tribunais, 1981, pp. Napoli, Jovene, 1959, pp. 170-172. Apud. VENÂN-
61-63. CIO FILHO, Alberto - op. cit., p. 12.
Para Washington Peluso Albino o intervencio-
S Os autores tratam a I Guerra Mundial como o
nismo constitui·se na expressão polltica da interven-
çio. In SOUZA, Washington Peluso Albino de - divisor de águas entre a era liberal pura e a era inter-
DireitoEconâmico,RJ,EditoraSaraiva, 1981, p. 399. vencionista. Foi neste momento histórico que os ju-
ristas e fil6sofos do Direito compreenderam e senti-
Eros Grau conclui que tudo é, na verdade, uma ram a presença do Direito Econômico. In SOUZA,
tentativa de variações da expressão que levam a um Washington Peluso Albino de ~ op. cit., p. 410.
mesmo objetivo: ~o das distorções do libera-
6 SOUZA, Washington Peluso Albino de - op.
lismo, para preservação da instituição básica do sis-
tema capitalista, o mercado. cit., p. 426.
Outra questão que ocupa os autores é a tipologia 7 VENÂNCIO FILHO, Alberto - op. cit., p. 25.
das intervenções. • SODRÉ, Nelson Werneck - Formoção Hislóri-
Todos eles apresentam a sua c1assificaçlo que, ca do Brasil, RJ, Ed. Civilização Brasileira, 9.' edi-
em suma, representa a mesma coisa com outros no- ção, 1976, pp. 254-255.
mes. ~ FAORO, Raymundo - Os Donos do Poder,
Uma consideração interessante é devida a Wa- Porto Alegre, Ed. Globo, 1958, p. 210.
shington Albino, que apresenta as classificações de 10 CARONE, Edgar - A República Liberol. Insti-
learl Mannhein, Guaita e de Laufenburger. O autor tuiçàesSociais (1945-1964), São Paulo, Difel, 1985,
conclui afinnando que o planejamento econômico é a Tomo I, p. 133.
técnica mais aperfeiçoada de intervenção, sendo que 11 Na verdade, a Abolição atendeu muito mais
esta pode verificar-se com ou sem o planejamento, "aos interesses que engendrava a nova etapa do ex-
mas que a reciproca nlo é verdadeira. In SOUZA,
pansionismo inglês (necessidade de estimular a ex-
Washington Peluso Albino de - op. cit., pp. 436439.
panslo dos mercados para os produtos manufatura-
lá Eros Grau afinna nlo incluir o planejamento dos do Império Britânico), do que às veleidades
como uma modalidade de intervenção, porque o mes- libertárias..."Ademais, pese o fato de que, já estando
mo, apenas qualifica a ação intervencionista do setor estabelecido o monopólio da terra nas mãos de uns
público em relação ao processo econômico. In GRAU, poucos proprietários, era mais econômico contratar
Eros Roberto - cp. cit., p.66. assalariados ou explorar a mlo-de-obra através de
2 MONCADA, Luis S. Cabral de - Direito Eco- ama ampla gama de relações de produção semi-ser-
nômico, Coimbra, Coimbra Editora, 2.' edição, 1988, vil, que seguir mantendo a força de trabalho escra-
p.15. vo", a esta altura, já bastante onerosa. In BAMBIR-
3 VENÂNCIO FILHO, Alberto - A Intervenção RA, Vânia e SANTOS, Theotônio dos - "Brasil:
do Estodo no Domínio Econômico - RJ, Fundaçio Nacionalismo, Populismo y Dictadura: 50 Anos de
Getúlio Vargas,I968, p.8. Crisis Sociais", In América Latina: Historia de Me-
4 No dizer de Vigorita, "A I Guerra Mundíal rom- dio Siglo-América dei Sur, coordinati6n: Pablo Oon-
pe a tradição do liberalismo econômico, acelerando záles Casanova, Argentina, Siglo Veintiuno Editores,
violentamente a ação dos fatores desagregadores. De 1986, 6.' ed., p. 131.
fato, tal guerra: a) dilata desmensuradamente as exi- 12 REIS, Elisa Maria Pereira, em sua obra Con-
gências de armamento geral e coativo da vida econô- servatÍVe Modemiultion in Brazilian Agriculture ~
mica; b) em virtude disso, constitui uma experiência The Post Abolilion Plonlation, Houston, LASA,
concreta da total disciplina pública da economia, as- 1977, esposa a tese segundo a qual, se as duas Regi-
sumido como modelo de futuros objetivos autoritá- ões - O Nordeste e o Centro Sul - tivessem compe-
rios de política econômica; e ao mesmo tempo cria tido pela mio-de-obra, o destino dos trabalhadores
hábitos e métodos dirigistas dificilmente anuláveis; rurais teria sido radicalmente distinto. Sustenta ain-
c) provoca excessos dimensionais e distribuições er- da, que a opção pelos programas de imigração funcio-
radas na industrialização, com predisposição à ruina nou como uma coalização reacionária com as elites

. ,. . .,••. 32 ft. 128 __./1.... IBM 213


do Nordeste, negando aos ex-ellCravos e li milo-de- I~HOBSI3AUM,Eric J. - Les Pn'mitift et la Ré-
obra doméstica. livre acesso ao mercado de trabalho. voUe dans L 'E limpe /llodeme, traduzido para o fran-
cês por Reginald Laars, Paris, Fayard, ] 966. Caps.
13 GmMARÃES. Alberto Passos - Quatro Sé-
VIll e IX.
clllos de Latifiímlio. Rio dc Janeiro. Pll7. e Terra. 1977,
5." 00., pp. LU-135. 16 A análise sobre o emprego de uma nova mio-

I~ Houve, no Brasil, dois padrõcs de imigraçilo: a de-obra nas regiões brasileiras, no periodo de transi·
"colonização" e a "imigração" simplesmente. O pri- ção da Aholiçllo da Escravatura, encontra-se em:
meiro, dirigido e induzido pelo governo central, foi BEIGUELMAN, Paula - Formação Políh~a do Bra-
uma tentativa de eriar no país um campesinato de sil, São Paulo, Livraria Pioneira, Ed., 1967 e A For-
tipo europeu. independente e produtivo. O outro, mação do Povo no Comple:ro Cafeeiro: Aspect03
promovido pelos agricultores de Silo Paulo e, poste- Político.~. São Paulo, Livraria Pioneira, Ed.. 1968;
riormente. pelo governo estatal, visa especialmente li ANDRADE. Manoel Correia - A Terra e o Homem
provisilo de milo-de-obra pIIra as f87.endas de café. O no Norde,,'e, São Paulo, Ed. Brasiliense, ]973,2.·
padrão de "coloni:l.ação" obteve êxito relativo nos 00., pp. 96 S5.
Estados sulinos do Rio Gmnde e Santa Catarina, onde 11 A politica dos governadores que apressou a

se estabeleceram grandes colônias de alemães. O de integração dos Estados li Federaçilo vemcalizou llS
"imigraçilo", entretanto. foi o dominante. e São Pau- relações sociais, consolidando o ehefe regional nos
lo tornou-se. cada vez mais. a área promotora e de Estados e o "coronel". no Município. Sua conseqüên-
destino deste lluxo. O quadro abaixo representa, em cia no campo foi a feudalização do campesinato, t0-
termos percentuais. o volume de imigrantes que che- talmente dependente de uma polltiea, o qual sob
garam ao Brasil e a São Paulo. nos anos de 1884 a condições de lealdade e confonnidade absolutas, ~
1888. deria usufruir parcialmente a terra e alguns outros
bens e serviços.
Para uma disctlssilo sobre a existência no Brasil
de relações feudais ou semifeudais, consultar SO-
ANO N."IMIGRANTES ~."IMIGRAN1tS DRÉ, Nelson Werneck, Formação Histórica do Bra o

(Brasil)
.---.- .. __ .-
(São Paulo)
._._-
.sil, op.eit.. pp. 307 88.
------- • o •• •• - _'o ._ - - - - _ . -

I&W 24.800 2lJ Em sentido contrário, ver PRADO JúNIOR,


Caio - "Contribuiçilo para a Análise da Questlo
1885 35.+1<) 18 Agrária no Brasil", in Revis'a Brasiliense. n.o 28,
1886 33.486 28 março-abril 1960. pp. 163-238; "Resposta" in Re-
1887 55.963 57 vista Brasilien.se n.o 32, novembro-dezembro, 1960,
1888 133.153 fi} pp. 155-157 e A RCl'OIIlfão Bra.rileira, São Paulo,
Ed. Bmsiliense. 1966. cap_ U. Segundo Prado Júnior,
jamais houve no Brasil LIma estrutura feudal ou res-
tos de feudalismos. De um lado. porque o fazendeiro
In SCIIWARTZMAN. Simon - Ba,çes do A"to- era um homem de negócios. de outro, porque preva-
rirari.'m1O Brasileiro. Rio de Janeiro. Editora Cam- lecia no campo o assalariado.
pos LIda.. 1982, 2." ed.. pp. 81·82. Discordando de ambas as posições. por enten-
Ora. a explicação para o sucesso da a~ricultura der que a relação concreta entre o fazendeiro e o
paulista passa. necessariamente. pela analise da s0- colono é complexa e contraditória, onde se mesclam
lução dada pelo Estado Íl questão da mão-de-obra na o pagamento de diárias em espécie, o trabalho gratui.
transição do trabalho escravo para o Imbalho livre. to. a produçllo de alimentos e ainda a parceria, regime
em primeiro lugar. e na política de sustentaçllo de no qual parte da produção de alimentos é entregue ou
preços ao nivel internacional. depois. Para uma aná- recebida pelo colono. ver: MARTINS. José de Sou-
lise referente aos dois temas. ver: REIS. EliSll Maria 7..8 - O Cativciro da Terra. Silo Paulo, Livraria Ed. de
Pereim - Política Cafeeira e IlIfere.tçes de Cla.ues, Ciências Humanas. 1979. pp. 7-93.
(tese de mestrado). Rio de Janeiro. Instituto Univer-
IB CAMARGO. Aspásia de Alcântara - "A
sitârio de Pesquisa do Rio de Janeiro, 1972.
Questilo Agrária: Crise do Poder e Reforma de Base
Uma descrição dos padrões de imi~ração no Bra- (1930-1964)", In História da Civilização Brasileira,
sil pode ser encontrada em NElVA. Artur Hehl - O São Paulo. Difel. Tomo rn: "O Brasil Republicano",
Prohfl'ma Migratório Bra.çilt'iro. Rio de Janeiro. pp. 130-131.
Imprensa Nacionn1. 1945. separata n. O 2 da revista de 19 A produção historiográliea relativa às oligl1r-
Coloni7.ação e Imigração: AZEVEDO. Silvio de Al- quias na Primeira República é extensa e proflcua.
meida .- "Imigração e Colonização no Estado de São Linhas de interpretação emergem a respeito do tema.
Paulo". In R<!1'i.~fa do Arquivo. Silo Paulo. Departa- Autores como Nelson Werneck Sodré e Hélio Jagua-
mento de Cultura. 1941. V. 75 e MARTINS. José de ribe destacam a idtia de uma contradição fundamen-
Souza - A /miwafll0 e a Cri.~e do Urasil AWtírio. tai entre o setor a!!rário-exportador e os setores urba-
Sil.o Paulo. Livraria Pioneira. Fd.. 197:'1.

214 Re,,'.f. de 'nlor"..qH Leg'.'''''''.


no-industriaís, enfatizando o papel vanguardista da antigo setor exportador - tese defendida por Bci-
classe média nas reivindicações burguesas. guelman - e que havia uma complementariedade de
interesses das duas esferas econômicas. A partir desta
Segundo esta análise, a Primeira República é en-
perspectiva, é retomada uma análise de conjunturas,
focada em termos de um sistema de dominação do
classicamente considerada como de expansão dos
latifúndio, cuja dinâmica se configura em três etapas:
setores urbanos (governos Deodoro, Floriano Peixo-
a da implantação, em que haveria um predomíni?do
to Hermes da Fonseca e a década de 20), para de-
poder da classe média através da atuação dos .mlllta-
m~nstrar que, nesses períodos, as oligarquias não
res' a da consolidação, onde o controle exclUSIVO es-
perderam nem tiveram reduzidos seus i~teresses: O
taria sob a tutela das oligarquias latifundiárias; e o
artigo traça, ademais, um quadro evolutivo dos dife-
declínio, marcado pela expansão da burguesia indus-
rentes governos e aborda a montsgem do pacto. oli-
trial e da classe média e pela disputa desses setores
gárquico e da política dos governadores. Nesta h~ha
pelo controle do poder. Sob esta ótica, a R~volução
de interpretação, consultar, na mesma obra, o artigo
de 30 representou um conflito entre o ~tor mdus~n­ de FAUSTO, Boris -A Revolução de 30: história e
a! e o agrário, uma luta entre a burgueSia e o latlfun-
historiografia, São Paulo, Brasiliense, 5." ed., 1978,
dio. In SODRÉ, Nelson Werneck - Formação Histó-
pp. 227-255. Propondo precisar o significado da
rica do Brasil, op. cit., e JAGUARIBE, Hélio ~ Pro-
Revolução de 30, o autor caracterJZ8-a como o resul-
blema do Desenvolvimento Econômico e a Burgue-
tado de conflitos intra-oligárquicos, fortalecido por
sia Nacional, São Paulo, Centro da Federação das movimentos militares dissidentes, cujo objetivo era
Indústrias do Estado de Silo Paulo, 1958, 2." ed.
golpear a hegemonia da. oligarquia cafreira, contudo,
Tal abordagem insere-se num modelo mais am- em virtude da incapacidade das demaIS classes ou
plo de interpretação da realidade brasiJeira, cuja ~ frações de classes para assumir o poder de maneira
central defende a existência de dOIS setores SÓCIO- exclusiva, e com o colapso dos oligárquicos do café,
econômicos básicos; o pré-capitalista, localizado no abriu-se um vazio de poder. A resposta para essa
campo e expresso pelo latifúndio, onde pred~mina a situação foi o Estado de compromisso. Em outra
relação de tipo semifeudal; e.o urban~apJtahsta, obra, Pequenos Ensaios da História da República,
que deu origem a uma burgueSIa mdustnal e à classe 1889-1945, São Paulo, Cebrap, 1972, o autor apro-
média urbana. Um dos desdobramentos desta con- funda as críticas às contradições dualistas de classes
cepção é a caracterização dos conflitos de clas~ ,no - oligarquias agrárias versus setores urbanos i~~us­
país como resultado do antagonísmo entre o .Iatl~un­ triais - ao enfatizar que a concentração das atiVida-
dío - aliado ao imperialismo - e as forças. nacl0~als - des econômicas em áreas geográficas definidas pro-
constituídas de segmentos da burgueSIa naCIOnal,
piciou a fonnação no pais de lJma estrorura reBional
pequena burguesia e classes populares. de classes.
Este posicionamento foi adotado .pelo. Partido
Comunista Brasileiro e pelas forças naCIOnalIstas nos Merece destaque, também, no campo de estudos
sobre as oligarquias, as contribuições dos brasilianis-
anos 50.
tas tais como LEVINE, Robert - A velha usina:
Contestando a proposta de Werneck Sodré ver
pe:."ambuco nafederação brasileira 1889-1937, Rio
BEIGUELMAN, Paula - "A propósito de uma in-
de Janeiro, Paz e Terra, 1980; LOVE, Joseph - O
terpretação da História da República", In Pe9ue'!os
Regionalismo Gaúcho e a~ Origens da Revoluçã~de
Estudos de Ciência Política, São Paulo, Ed. PIOneIra, 1930 São Paulo Perspectiva, 1975; A Locomotiva:
1973, pp. 83-99. São Paulo najederação brasileira, Rio de Janeiro,
Com a implantação do regime autoritário em 64.e Paz e Terra, 1982, e WIRTH, John - Ofiel da balan-
a conseqilente impossibilidade de manuten.ção de taIS ça: Minas Gerais na federação brasileira, Rio d~
teorias, abriram-se espaços para novas mterpreta- Janeiro, Paz e Terra, 1975. As refendas obr811 ~ah­
ções da conjuntura brasileira. sam 8ll oligarquias nos Estados de Sio Paulo, Mmas
PRADO JúNIOR, Caio, em obra pioneira: A e Pernambuco, desde a Proclamação da República
Revolução Brasileira, op. cit, produziria uma re~i­ até o Estado Novo.
são crítica sobre a atuação das esquerdas no Brasil,
Um outro enfoque sobre a atuação das oligarqui-
os equívocos de suas teses, estratégicas de ,ação poli-
as regionais encontra-se em FURTAOO, C~lso - For-
tica, dando azo a uma reVisão global das mterpreta-
mação Econômica do Brasil, São 'paulo,plfel, ~ 959.
çôcs na Primeira República.
Segundo ele, a hegemonia da ohgarqula pauhsta.e
Outro texto fundamenta! é o de SOUZA, Maria mineira sustentava-se na preeminência da economia
do Carmo Campelo de - "O Processo Político-Parti- exportadora cafeeira. Este IIrranj? pol!tico ditava ~
dário na Primeira República", In Brasil em Perspec- orientação do governo federal, cUJa pohtlca financeJ-
tiva, coletânea organizada por Carlos Guilherme ra sempre esteve voltada para beneficiar este setor.
Mota,SiIoPaulo,Difel, 1982. 13." ed., pp. 162-227. Celso Furtado chega a afirmar a existência de uma
Tomando como ponto central da análise o processo quase total subordinaçio da política econômi.ca do
político-partidário, a autora conduz sua .análise ~o governo federal aos designos do setor caf~elro. A
sentido de demonstrar que o desenvolVimento In- conseqilência desta postura governamental e o con-
dustrial no Brasil não criou um antagonismo com o ceito, elaborado pelo autor, de "socialização de per-

215
das", vez que o mecanismo de deprecia9Io cambial do Brasil, op.cit. p. 196.
geraria a lOCializlçlo dOll prcjulzos das oligarquias, 22 VENÂNCIO mHO, Alberto - op. cit.. p. 29
decorrentes do dcclfnio dos preços do caf6. Em sen-
23 SODRÉ, NcllIOD Wemeck: - op. cit.. p. 303.
tido contrário • tese de Celso Furtado, consultar:
PELÂEz, C.M. - "A8 con8CqQ6ncias econômieali :N CARONE, Edpr - op. cit. pp. 135-136.

da ortodoxia monctúia cambial e fi9Cal no Brasil en· 25 O tcncntisrno, sua ideologia, llCU projeto e 8UU
tre 1889-1945". In RevUta Brasileira de &0If0mi4. repcrcusBÕeS sociais ultrapassam os limitcs delta
Y25l~:'0 3, 1971, pp. 5.82; SUZIGAN. WiIIlOll c monografIA. Neste lICIItido consultar: Sn.VA, H61io -
P~ Carlos ManocI - HiJIórla MonetiÍria do 1912 - Sangue na Ama de CopaC4btJna. Rio de
Brasil. Bruilia, UnB, 1982 e Politic(J do ~ e Janeiro. Civiliz8çlo BrasilciJa, 1964 e J926 -A Gnm-
crucimmto d(J economtalmuiidrtJ, 1889-1945. es- de Man:ha, Rio de Janeiro. Civilizaçlo Bra8ileira,
crito com Annibal Vilela, Rio de Janeiro. IPEA- 1985; DRUMOND, José Augusto de - O MOl'i-
INPES. 2.' cd.• 197 5; FRITSCH, Winston - "A. mmto Tenmti&la: InlenlenfãoMilitar e Conflito Hi-
pectos da polltica econômica no BruiI: 19()6...1914", erárquico (1922-1935). Rio de Janeiro, 0rIal, 1986.
In EconOfffUJ BI'tuilelNl: rmt(J mão histórica. coor-
CAMARGO, AspUia. op. cit., p. 132.
:16
denador Paulo NcuhaUB. Rio de Janeiro, Campu8.
1980, pp. 257-315 c "Apogeu c Cri8C na Primeira O poema de Dem6cri1o Rocha, publicado no j0r-
República: 1900-1930" In A Ordem do Program. nal O Povo, de 4 de julho de 1931, sob o pseudônimo
Cem anw de politic(J econômica repIIbJietm(J (1889- de Antônio Garrido, rctra1a com lirismo "a entrada
1989). orpnizlldo por MarccIo de Paiva Abreu, Rio da coluna no Nordeste". "contra a qualllC ergueram
de Janeiro. Campus. 1989, pp. 31-72, FRANCO, todas as forças coligadas da oIiprquia, do miB1icit-
Gustavo BarroBo - Refontta monetária e instabili- mo e do banditismo":
dade thuwr,. all'tnuíção repIIblicana, Rio de Jancí- " ...Lá vem eles!
ro. BNDES. 1983 e "A primeira d6cada rcpublica. O fantasma da lei sofria vertigens no Ccar6 c pe-
na" ,InA Ordem do Progruso. C_lUIO$de políCicG dia socorro
econôMica ,..,blic_. op. cit, pp. 11-30. Em t0-
das estllS obras. buaca-IIC rdativizar o p8pC1 e o peso • bcnçIo do padre Ck:ero
de SIo Paulo e da oligarquia cafceira no EBtado brasi- e 80 chap6u de couro
leiro, salieJ1tBndo a exist6neia de pfCIIIllcs contJáriu e • cartucheira de Lampilol
a da, provenientes de outros grupos oIi(lérquicos re-
Sionais e doe próprios banqueiros internaciOnai8. Lá rim elesl
Em 0& Bulializm/os: O Rio de Janeil'o e (J Repíl- E dois mil cangaceil'Ol
blica qt4e nãofoi. SIo Paulo, ComJl8llhia das Letras. cmpiquetavam as fronteiru com o Piauí.....
1987, 3.' ed., CARVAllIO. JOIIé Murilo de, faz um
relato intat:sunte sobre .. pritiC88 oIis'rquicas na "O Brito da oligarquia era o de que "Prestes nIo
primcirlI d6cada republicana e o lIijamcnto das claBBcs entrará". pois
papu1IRS do excrcici.o de 8CUS direitos de cidadlnia.
governantes, beatos e cangaceiros, estipcndlados
Finalmente LESSA. Renato c JANOTn Maria pelos cofres do
de Lourdcs em 8UU obras, respectivamente, A in-
l"mf80 npllbJicQlfQ, SIo Paulo. V6rtic:e, 1987 c O Erário, opunham a rcsistancia men:cnéria aos do-
CCJrOfffflümo, _a POlJtiC4 de Compromi&w. 810 Blgni08 da miUcia
Paulo, BruilienllC. 1981. concentram sua atcnçIo na MVOIucionúi.a libertadora".
política dos governadores e nas diSllCllllllc8 de S1UUl
facç&s. In: OOMES, Anseia de Castro e FERREI- "Prestes nIo entrará!
RA. Maricta de Moncs - "Primeira República: um Um chuveiro de beIu - • toa
beIanço historiográfico", In Estwdw Hislórico.t. SIo
Paulo, Vértice, 1989, pp. 146-250. riscava de fogo as estradas reai8
21' Examinando-lC a competancia da Unilo na
rnUéria, vcr-lO-á q~ se limita. instituiçlo de bsnooB
Prestes nIo entrati
cmiS801'ClI e à criaçIo e manutcnçlo de alflndegas E. o dinheiro do ~ro
(art 7.... § ],0. itens I c 2). Cabe. ainda,. destacar o enchia a bolsa de todos 08 bandidos nos 1IClrtlIcI...
lIJtiso 13, onde BC remcll: JlIIf8 a lei ordinária o direito Preste. nIo cntratil"
di Unilo c dos Estados de legislarem sobre viaçIo
f6m:a e navep;lo interior. e uma manifestaçIo inci- In BONAVIDES. Paulo - Dem6crlto Rocha -
piente de um papel mais ativo do Est8do em defesa UtIUJ Vocação ptmI a Liberdade, FDf'taIc::za, editado
da economia DICionaI , quando o puágrafo único date pela FundaçIo Demócrito Rocha. 1988, 2.' ed., pp.
mesmo artigo determina q~ a navegaçlo de ~ 17·18.
sem llCIi feita por naVÍOlJ nacionais. In VENANCIO
1'1 No BraaiI. a abundincia de tatu nIo fortaJo.
FILHO, Alberto - op. oit. p. 28
11 FURTADO. CelllO - Forrrwção ECOlfÔlflica
eeu sua distribuiçlo mais eqaitativa. o. proprictúi-
os de terra reduzem-se a um número limitado de pes- cedência legal sobre direitos de posse. Se \) fazendei-
soas. que controlam grandes extensões, impossíveis ro, tornado sesmeiro, tivesse instalados posseiros
de serem utilizadas produtivamente. Em contrapar- em suas terras e nllo os quisesse como agregados,
tida, uma categoria numerosa de pessoas utilizam pela Lei de 18 de setembro de U~50, ele estava, uni-
lotes insuficientes para assegurar a subsistência fa- camente, obrigado a indenizá-los, pelas benfeitorias.
miliar e cuja dimensão nilo permite a racionalização e Litteris~ Art. 5.° " .. " .
mCCllnização da produção. Abaixo desses dois extre- § 2.° - "As posses em circunstâncias de ser legi-
mos encontram-se, ainda, diferentes tipos de traba- timadas, que se acharem em sesmarias ou outras con-
lhadores rurais, tais como os parceiros, arrendatári- cessões do governo, não incuT1Ias em comissão ou
os, assalariados, "bóias-frias", que, em esmagadora revalidadas por esta Lei, só dario direito à indeniza·
maioria, trabalham para terceiros. çIo pelas benfeitorias" In; Legislação Agrícola do
Os dados do censo agrícola no Brasil e da produ- Brasil, Rio de Janeiro, Imprensa Nacional, V. m-
tividade da terra por hectare estio in SILVA, José (1808-1889), 1911, pp. 17-18.
Gomes da - A Reforma Agraria no Brasil, Rio de
Para um maior aprofundamento do tema consul-
Janeiro, Zahar, 1971, pp. 51-52 e CAMARGO,
tar: LIMA, Ruy Cime - Pequena História Territori-
Aspásia, op. cit., pp. 124-125.
al do Brasil: Sesmaria e Terras Devolutas, Porto
11 Era a troca de tudo por tudo, que envolvia um
Alegre, Livraria Sulina Editora, 1954,2' ed.; ARAN-
complicado balanço de favores prestados e recebi·
TES NETO, Antonio Augusto - "A Sagrada Familia
dos, desde as relações materiais - a cessa0 da terra
- Uma Análise Estrutural do Compadrio" In Cader-
em troca de parte dos gêneros alim~tícios produzi·
nos do InstiMo de Filosofia e Ciências Humanas,
dos - até a recíproca lealdade - tio caractenstica pela
n.O 5, São Paulo, Unicamp - Brasiliense, 1975; POR·
trama religiosa e do compadrio, através do qual, o
TO, JrnIé da Costa - O Sisrema Sesmaria' do Brasil,
ag~o colocava seu filho 80b a tutela e proteçJo
Distrito Federal, Ed. Universidade de Brasília, 1980.
do fazendeiro - padrinho, tecendo uma teia de rela-
lO Nas eleições paroquiais, a renda liquida anual
ções sagradas. Sobre o assunto consultar: LEAL, Vi-
mínima era 100$000 (cem mil réis) - § 5.°, do art. 92,
tor Nunes - Coronelismo, Enxada e Voto: O Municí-
nas provinciais, a exigência dobrava: 200$000 (du-
pio e o Regime Represenlalivo no Brasil, Rio de Ja-
zentos mil réis) - § 1.°, do art. 94, e, em se tratanto
neiro, Forense, 1948', QUEIROZ, Maria lsaura Pe-
reira de - O Mandonismo Loca/no Vida Política
das eleições gerais, passava para 400$000 (quatro-
centos mil réis) - § 1.0, do art. 95.
Brasileira e Outros EMaios, São Paulo, A1fa-ôme:-
ga, 1976, PRADO JÚNIOR, Caio - Fomração do n Sobre a Guarda Nacional consultar: SODRÉ,
Brasil Contemporâneo, São Paulo, Ed. Brasiliense Nelson Werneck - História Mililar do Brasil, Rio de
Ltda, 1957, 5.' ed., e BEZERRA, Maria do Nasci· Janeiro, Civilizaçlo Brasileira, 1968,2." ed., pp. 116
mento - A Estratégia do Patemalistno na Parceria, ss.
Natal, Editora Universitária, 1987. J1 MARTINS, José de Souza - Os Camponeses
l'Nesse sentido ver: NOVAIS, Fernando A. - ~ 1981, p. 46.
e a Política, Petrópolis, Ed.
Portugal e Brasil na Crise do Antigo Sistema Colo- J] In LEAL, Vitor N Ul1es - Coronelismo, Enxada
nial (1777-1808), São Paulo, Ed. Hucitec, 1981, pp. e Voto: O Município e o Regime Represenwtivo no
92-106 e MARTINS, José de Souza - O Cativeiro Brasil,op. cit., p. 166 e Vll.LAÇA, Marcus VinIcius
da Terra, op. cit., pp. 7-93. É importante ressaltar e ALBUQUERQUE, Roberto C. - Coronel, Coro-
que, no penedo colonial, quem não tivesse sangue néis, Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1965, pp.
limpo, estava excluido da herança. Assim, os bastar· 217-221 . Estes eram os mecanismos "institucionais"
dos, os mestiços de branco e Indio, estavam impedi- utilizados pelos "coronéis" para combater os dissi-
dos de se tornarem proprietários. dentes. Paralelamente a eles, os "coronéis" mobiliza·
Ademais, pelo regime do morgadio - que tomava ram com freqüência seus "jagunços", inclusive «ja-
o primogênito herdeiro legal dos bens de um fazen- gunços profissionais", que existiam em grande nú-
deiro - interditava-se a dispersão da riqueza pela mero, para conter ou exterminar seus adversários; In
herança, mas nlo obstava a abertura de novas fazen- MARTINS, José de SoU1A - Os Camponeses fi a
das e a constitu1ção de novas propriedades, mediano Política, op. cit., p. 48. Sobre o assunto consultar
te simples ocupaçio e U80 da terra. Aliás, era este o ainda: PANG, Eul- Soo - Coronelislno e Oligarqui-
processo de obtençlo de sesmarias. Somente após a IJ.J - 1889-1943, traduçlo de VeTa Teixeira Soares,
ocupaçio da terra credenciava-se a legitimação da Rio de Janeiro, Civi1izaçllo Brasileira, 1979~ DUAR-
sesmarill. Um mestiço pobre poderia até abrir sua lE, Nestor - A Ordem 17iYada e a Organizoção
posse, mas nunca se tomar um sesrneiro em raz.lo Política Nacional, Slo Paulo, Companhia Editora,
dos mecanismos de exclusio da propriedade da terra. 1966,2." ed.
A estrutura fundiária brasileira pouco se altera- 34 JANOTTI, Maria de Lourdes M. - O Coro-
ria, no tocante ao seu caráter elitis~ e segregador, nelismo, Uma Política de Compromissos, op. cit.,
com a il1dependência. Pela Lei D.O 601, de 18 de se- pp. 11-21. Os vicios do sistema oligárquico seriam
tembro de 1850, a concessio da sesmaria tinha pre- vigorosamente apontados por Rui Barbosa.. desde a
217
campanha civilista ( 1910 ). A este propósito, escre- pela ação permanente do Estado no mercado do café,
veu Luis Viana Filho: "Desde que se proclamara a o que, finalmente conseguiram na década de 20 ... As
Repilblíca, as eleições haviam sido apenas um mito. práticas de intervencionismo econômico reforçaram
Banido o Imperador, que de certo modo coibia as a dominação polltica dos plantadores. Com este p0-
ambições imoderadas, destruidos os velhos partidos, der, os plantadores puderam superar a resistencia
agora substituldos por transitórios agrupamentos, inicial do Executivo. intervir no mercado e reforçar as
agitado o pais pelas revoluções, aos eleitores ficara Práticas monopolísticas que asseguravam preços ar-
apenas a função de sancionarem as combinações acer- tificialmente altos para o café. Uma vez que as oli-
tadas pelas maiorias politicas eventuais. Apenas um garquias agrárias conseguiram garantir sua represen-
ou outro deputado conseguia eleger-se em oposição. tação exclusiva na arena poIltica. o liberalismo ec0-
Principalmente após a administração de Campos nômico perdeu sua rai.ron d 'éIN. Como consc:qO!n-
Sales, que incentivara a chamada "polltica dos gover- cia, os principias do laissez-fQire, estabelecidos nas
nadores" cuja fórmula se resumia num apoio recípro- normas constitucionais, foram abandonados em be-
co entre o Presidente da República e os Govemad~ neficio da intervenção continua do Estado no merca·
rcs dos Estados da Federação, havia desaparecido do. REIS, Elisa Maria Pereira - Política Cafeeira... ,
completamente o pensamento de se organizarem op. cit., p. 166.
partidos estáveis. Vivia-se dentro de verdadeiro cir- 39 UNHARES, Maria Yêda e SILVA, Francisco
culo vicioso, que funcionava com exatidão, esmagan- Carlos Teixeira - História da Agricultura Brasikira,
do qualquer veleidade de rebeldia contra aquelas for- Slo Paulo, Brasiliense, 1981.
ças conjugadas. Prestigiados pelo Presidente, os
40 Sobre o cultivo do café no Vale do Paralba,
Governadores elegiam deputados da sua conflJlJ1Ç8
incumbidos de apoiarem, no par1amento, a vonlade nomeadamente no munícfpío de Vassouras, consul-
do chefe da Nação". VIANA FILHO, Luis - A Vida
tar: STEIN, Stanlcy J. - Grandeza e ~cadincia do
de Rui Barbosa, Rio de Janeiro, José Olympio, 1977, Café no Vale do Paraiba, tradução Edgar MagaIhIes,
8.' ed., pp. 523 ss.
Slo Paulo, Ed. Brasiliense, SD.
41 Nesse sentido, "um esforço sistemático para o
35 JANOTTI, Maria de Lourdes M. - O Coro-
controle da oferta e para influenciar os preços do
nelismo, Uma .... op. cit., pp. 23-24. café no mercado internacional principia-IIC em 1906,
16In SCHWARTZMAN, Simon - B~s do Au- COm o Acordo de Taubaté. firmado pelos governos
toritarismo ... , op. cit., p. 79. A intervenção do Esta- estatais de São Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro.
do era tamanha, que um observador da época chegou Tentativa de controle fora fcita pelo governo de SIo
a afirmar que "em nenhum lugar do mundo - pelo Paulo quando em l902, proibiu o plantio de novos
menos nlo nas fndias Holandesas - se proporciona cafeeiros durante cinco anos". REIS, Elisa Maria
aos agricultores tantas garantias legais para permitir- Pereira, Política Cafeeiro .... op. cit., p. 9.
lhes cultivarem suas terras em paz, como no Brasil". 42 DELFIM NETO, Antônio - O Problema do
In: STEIN, Stanley J. - Vassouras, a Brazilian Co- Café no Brasil, Rio de Janeiro, Editora FGV: Minis-
ffee Cmml)l 1850-1900, Cambridge, Harvard Uni- tério da Agricultura, 1979, pp. 33-34.
versity Press, 1957, p. 241. 43 A gradação de Piettrt que estabelece as tres
37 A proteção ao setor exportador operava-se atra-
M1ades econômicas, a saber: economia subordinada,
vés das desvantagens cambiais, mecanismo de mani- independente e dirigida - gradações estas, que o BÍs-
pulaçio da taxa de câmbio, que regulava as trocas tema capitalista liberal tipico vivenciou ao longo dos
entre a moeda nacional c as estrangeiras, de maneira a séculos, manifestou-se de forma anômala no Brasil.
permitir que, sobrevindo uma queda nas exporta- Nem a retórica radical do Etat Gendarme propalada
ções, o setor exportador recebesse proporcionalmente pelos franceses nem, tampouco, a moderac;lo teórica
mais, em razão da desvalorização da moeda nacional. de Adam Smith relativa a ação do Estado na ativida-
Tal medida onerava o consumo da coletividade de econômica prosperam no pais, onde se podia vis-
vez que os produtos importados passavam, tam- lumbrar um modelo polltico econômico n1i geMris.
bém, a custar mais; com isso, o setor exportador In SOUZA, Washington ~luso Albino de - IAreito
ficava protegido, às custas da sociedade, que acabava Econômico e Economia Política, 2.° volume - Direito
por arcar com o ônus da desvalorizaçio. In COHN, Eoonômico Brasileiro, Belo Horizonte. 1971, P. 253.
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los Guilherme Mata, São Paulo, Difel, 1982, 13." pp_ 99 e 143-l44.
ed., pp. 293-294. 4S GRAU, Eros Roberto - op. cit., p. 62.

31 Sob o impacto de crises recorrentes do merca- 46 SOUZA, Washington Peluso Albino de - Direi-
do, as preferências pela ação do Estado em relação a to Econômico e Economia ... ,cp.cit., pp. 253·254.
esforços cooperativos os levaram - (os oligarcas) - a
renovar suas demandas a favor da intervenção esta-
tal. Depois de três instâncias de "intervenção teor
poriria", os fazendeiros passaram a fazer campanha

218 "evl.l. de In'.....' . . L.....atI".


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_~ __~ "Os Camponeses e a Polftica",

Br..JI,••• 32 n. f2fl..,./jun. 1fH15 219


Biblioteca e Constituição

SUElt ANGÉLICA DO AMARAL

sUMÁRIo
1. Introdução. 2. Edllcação e biblioteca no con-
texto brasileiro. 3. Biblioteca e C o/'utihlição. 4. Bibli-
otecário.~ brasileiros e a Constituição de 1988. 5.
ConsideraçÕl.'sfinais.

I. Introdução
O processo de elaboração da atual Consti-
tuição brasileira. promulgada em 5 de outubro
de 1988. foi um momento ex}X)nencial na histó-
ria do Brasil. Todos os segmentos da socieda-
de foram convocados a contribuir nesse pro-
cesso. Pela primeira vez a sociedade brasileira
pôde participar da organização básica do País,
a partir das oportunidades concedidas às di-
versas parcelas de opinião de expressar. discu-
tir e defender suas reivindicações junto aos
constituintes eleitos em 15 de novembro de 1986,
durante o trabalho desenvolvido pelas diver-
sas comissões temáticas organi7.adas pela As-
sembléia Nacional Constituinte. Nos constitu-
intes o povo depositou sua confiança, credi-
tando-lhes poderes para expressar os anseios
da sociedade brasileira e garantir o resgate da
Sueli Angélica do Amaral é profe~sora e pesQui- cidadania do nosso povo na construção da
sadora no Departamento de Ciência da Inlormação e democracia.
Documentação da Faculdade de Estudos Sociais
Aplicados da Universidade de Brasília, Mestre em Os brasileiros desejavam que a Constitui-
Biblioteconomia e Documentação pela Unl3. Espe- ção representasse. fundamentalmente. um avan-
cialista em Mllrketing para empresas públicas pela ço social com a transformação da sociedade
Fundação Getúlio VllTIZ8S de Brasílin. Atualmente em brasileira pelo progresso e implementação de
Doutoramento na UnA. Trahlllhou na Bihlioteca do mudanças necessárias para alcançar a melhoria
Senado Federal. Recebeu dois prêmios: Menção hon- da qualidade de vida de nosso povo. Entretan-
°
rosa no XI Concurso de Monograllas sobre Servi· to, esperar o T1l<1ximo de uma Constituição pode
ço Público pela Escola Nacional de Administração ser utópico. Certamente ela foi escrita refletin-
Pública c foi vencedora do conCll~ para comriblltl.'d do as limitações que temos. Somos um País de
papers. promovido pela Intenmlional Federalion of
Librnrv Associntion no âmbito da Américll Latina e
grande extensão territorial e imensas riquezas.
do Ca;;be. mas considerado "em desenvolvimento". Nos-
",__11_ _ • 32 11. 128 .",../}.... 1"5 221
sa Carta Magna foi redigida retratando essa si- ises do mundo. Todas essas características as-
tuação. seguraram à federação a legitimidade para ex-
Embora cada cidadão tivesse sua parcela pressar as reivindicações dos bibliotecáriosjun-
de responsabilidade e cada segmento pudesse to à Assembléia Nacional Constituinte.
ter sido representado para expressar seus an- 2. Educaçilo e biblioteca no contexto bra-
seios e lutar pelos seus ideais, no caso especí- sileiro
fico dos bibliotecários brasileiros, acredita-se Segundo Cristóvam Buarque1, o desafio à
que nem todos tomaram conhecimento da par- imaginação e sensibilidade dos constituintes
ticipação da classe no processo de elaboração seria definir uma organização da sociedade bm-
da Carta Magna. Neste sentido, no momento sileira, onde a liberdade fosse o elemento-eha-
em que a revisão constitucional vem sendo co- ve da modernização econômica, ao mesmo tem-
gitada, é apresentado este artigo, visando in- po que fossem eliminados todos os sistemas
formar sobre as atividades realizadas por essa que mantivessem o atraso social. Neste enfo-
categoria profissional. que, a educação representaria o elemento es-
O objetivo primordial dos bibliotecários bra- sencial no caminho para alargar o horizonte da
sileiros era destacar a instituição biblioteca no prática da liberdade e a eficiência do processo
texto constitucional, ressaltando-Ihe o verda- produtivo. Sem esse elemento, a economia nIo
deiro papel no contexto do país. O termo biblio- ampliaria sua produtividade e não seria possí-
teca foi entendido considerando-se todas as velo atendimento dos requisitos necessários à
designações como: centro, e/ou sistema, dou modernização social Aeducação seria o cami-
serviço de documentação, elou informação, ou nho para a mobilização social sem o que a mo-
qualquer outra designação que pudesse ser atri- dernização econômica não distribuiria seus fru-
buído a uma unidade de informação conforme tos, constituindo-se, por estas razões, meio e
sua atuação e extensão. fim do processo.
Diversos eventos foram organizados pelos A. educação integral do homem pernÕ\iráque
bibliotecários, visando à elaboração de propos- as potencialidades de cada um possam ser de-
tas que englobassem os interesses fundamen- senvolvidas a serviço do bem-estar de todos e
tais da classe. Pela sua representatividade em de cada um. A vida humana só pode atingir
caráter nacional, destacou-se o XIV Congresso significado pleno, quando existe uma cones-
Brasileiro de Biblioteconomia e Documentação, pondência harmoniosa entre o processo técni-
realizado em Recife, de 20 a 25 de setembro de co-cientifico e o processo social. Assim, a edu-
1987, concomitantemente com o XII Encontro cação é a assimilação da soma de conhecimen-
Nacional de Informação Jurídica. Na ocasião to e de habilitações práticas adquiridas em
foram apresentados alguns trabalhos sobre o vários domínios da vida social, quer na produ-
assunto, embora grande parte deles não tenham ção, quer na administração, quer no consumo
sido incluídos nos volumes dos anais do evento. ou nos serviços e que sintetizam a experiência
Pelo mesmo critério de representatividade histórica das gerações precedentes. Esta assi-
nacional, neste artigo será comentada a atua- milação economiza tempo epennite a cada nova
ção da Federação Brasileira de Associações de geração dar mais um passo avante na evolução
Bibliotecários (FEBAB). A FEBAB congrega as histórica da sociedade. 2
associações bibliotecárias do Brasil e as Co- No Brasil, quando se discute sobre educa-
missões Permanentes, que atuam em diversas ção, de um modo geral é sempre lembrada a es-
áreas do conhecimento, interagindo com os cola como instituição essencial. Entretanto, a
usuários específicos de cada setor. É uma insti- biblioteca também é uma instituição educativa
tuição sem fins lucrativos, mantida pelas Ass0- básica, apesar de não ser reconhecida deste
ciações de Bibliotecários. Foi fundada em 26 de modo, sendo considerada apenas como com-
julho de 1959, durante a realização do 11 Con- plementação ao ensino.
gresso Brasileiro de Biblioteconomia e Docu- Nem todos têm uma visão ampla da biblio-
mentação, em Salvador, Bahia. Pelo Decreto fe- teca e o Estado não a reconhece como um seg-
deral n.o 50.S03, de9 de novembrq de 1966,foi
considerada de utilidade pública. E filiada à In· I BUARQUE, Cristóvam. Nosso cllrso sobre

temational Federation ofLibraries Association Constituinte. In: ABREU, M.R. cd. Constituinte c
- IFLA, entidade internacional, que congrega Constituição. Brasllia: UnB, 1987, p. 9
as federaÇÕeS de bibliotecários de todos os pa- 1 ABREU, Maria Rosa, ed. Constilllinle e Cons-
tituição. Brasllia: UnB, 1987, p. S
mento responsável pela ação continuada e in- mos o termo biblioteca nas constituições es-
tegrada de ensino e cultura. Constata-se que, trangeiras indexadas na base de dados CONS,
tanto nos programas de ensino, quanto nos alimentada pela Subsecretaria de Análise do
programas culturais, a biblioteca não é encara· Senado Federal, que integra o Sistema de Infor-
da como tendo méritos suficientes para adqui- mações do Congresso Nacional (SICON). As
rir direitos de prioridade. Na área pedagógica, constituições pesquisadas não representam o
consideram-na como complementação educa- censo total das constituições existentes. Entre-
cional, quando seu caráter é essencial, posto tanto. no universo pesquisado foram encontra-
que a leitura é fundamental aos processos de das quatro constituições estrangeiras em que o
ensino e de constante auto-aperfeiçoamento. termo biblioteca constava do texto constitucio-
Na área cultural, mais propensa às realiza~ nal. Em 16 de maio de 1987, quando foi realizada a
çôes de maior apelo popular, que embora fortui- pesquisa, obtivemos interessantes informações.
tas simulam modificar a curto prazo o perfil do Entre as constatações, observou-se que na
cidadão, não se obteve ainda o reconhecimen- Constituição da Bulgária de 16 de maio de 1971,
to de que as bibliotecas são as bases para a capítulo I1I, artigo 46, referente aos direitos e
ação governamental e comunitária no desen- deveres fundamentais dos cidadãos, consta
volvimento cultural de uma coletividade. que:
" A criatividade no domínio da ciên-
A biblioteca é um projeto muito além da es- cia, cultura e arte serve ao povo e desen-
cola e dos demais veículos de cultura de massa. volve-se no espírito comunista. O Esta-
Integra-os, articulando-os. Participa da educa- do dedica cuidados especiais ao desen-
ção formal, da auto-educação, da educação de volvimento da ciência, da arte e da cultu-
massa, do processo de produção de idéias, do ra, criando estabelecimentos de ensino
ensino em qualquer grau. Sendo mais livre que superior, instituições de pesquisas, edi-
a escola, a biblioteca é a instituição que pode toras de livros, bibliotecas, museus, ga-
neutralizar as tendências massificantes dos ve~ lerias de arte, teatros, cinemas, rádio e
ículos de comunicação. Sua função educativa televisão".
não visa à reprodução do sistema, mas busca a
transformação do homem e sua conscientiza- Na Constituição italiana de 1. o de janeiro de
ção do mundo. Para a tomada de consciência, o 1948, Parte 11, Ordenamento da República, Títu-
ato de ler é fundamental e determinante para o lo V, as Regiões, as Províncias, os Municípios,
homem se libertar. Privilegia-se, assim, a men- reza o artigo 117:
sagem escrita, porque ela permite aos grandes "A Região decreta as seguintes nor-
contingentes humanos deterem-se no texto, na mas legislativas nos limites dos prin-
mensagem, avançando e revendo, chegando à cípios fundamentais estabelecidos pelas
reflexão de acordo com o ritmo, capacidade e leis do Estado, desde que ditas nonnas
motivação de cada um. l não conflitem com o interesse nacional e
com o de outras Regiões:
A biblioteca não marginaliza o público anal-
fabeto ou iletrado, pois utilizando recursos a - ordenamento das repartições e das
partir da tecnologia educacional, pode criar ser- entidades administrativas dependentes
viços de atendimento a essa grande parcela da da Região;
população brasileira, oferecendo a informação - circunscrições comunais;
segundo suas necessidades. 4 - política local urbana e rural;
3. Biblioteca e Constituição - museus e bibliotecas de entidades
Pesquisadas as oito Constituições brasilei- locais;
ras, percebemos que o termo biblioteca não fi- - outras matérias indicadas por leis
gura em nenhuma delas. constitucionais. As leis da República
Decepcionados com a constatação, busca- podem conferir à Região o poder de de-
cretar nonnas de atuação das mesmas".
] FEDERAÇÃO BRASILEIRA DE ASSOCIA- Na Constituição da Polônia, de 22 de julho
ÇÕES DE BmLIoTEcÁRIoS. A biblioteca e o de 1952, no Capítulo VIII- Direitos e Deveres
Constituição; contribuição à Assembléia Nacional Fundamentais do Cidadão, o artigo 73 determi-
Constituinte eleillJ em 1 j de novembro de J986. Rio na que:
de Janeiro: FEBAB, 1986, 32p. "Os cidadãos da República Popular
4Op. cit., 3.

Br. .llI• •. 32 ft. 128 alwJJun. 1fIfI4J


da Polônia têm direito a desfrutar das mais diversas: criar novas bibliotecas públicas,
conquistas da cultura e a participação escolares e especializadas; melhorar a infl'a-es-
criadora no desenvolvimento da cultura trutura das bibliotecas existentes; tomar obri-
nacional. Este direito está garantido de gatória a biblioteca em empresas com mais de
uma forma cada vez mais ampla pelo de- 50 funcionários, entre outras. As sugestões
senvolvimento e fácil acesso às biblio- foram analisadas com o simples objetivo de
tecas, aos livros, à imprensa, ao rádio, verificar quantitativamente o interesse da c0-
aos cinemas, aos museus, às exposições, munidade nas bibliotecas. Foi possível consta-
às casas de cultura e às salas de recreio, tar indicios do interesse popular de mobiliza-
pelo estimulo da criação cultural das mas- ção com referência ao processo de elaboração
sas pelo desenvolvimento dos talentos de nossa Lei Maior.
criadores". 4. Bibliotecários brasileiros e Q Constitui.
Na Constituição das antigas Repúblicas Çao de 1988
Socialistas Soviéticas, de 17 de outubro de
1977, no Capitulo VII - Direitos, Liberdade e \bificado O interesse dos bibliotecários em
Deveres Fundamentais dos Cidadãos da URSS, destacar a biblioteca para a sociedade brasilei-
dita o artigo 46 que: ra, era preciso atuar nesse sentido. No momen-
"Os cidadaos da URSS têm direito a to em que o processo histórico-:social brasileiro
desfrutar dos progressos da cultura. Este exigiu a atuação efetiva das instituiç6es com-
direito é garantido mediante o acesso prometidas com as transfOl'llUlÇ(ies desejadas
geral aos valores da cultura pátria e uni- na área da educaçao. por meio da livre manifes-
versal, que se encontram nos fundos es- tação de posições frente aos distintos proble-
tatais e sociais, mediante o desenvolvi- mas a serem superados, o movimento associa-
mento e a distribuição proporcional das tivo bibliotecário brasileiro se pronunciou, bus-
instituições culturais e educativas no ter- cando ddender a organizaçIo biblioteca e a res-
ritório do pais, mediante o desenvolvi- ponsabilidade das funçt'Ies desempenhadas por
mento da televisão e do rádio, da publi- essa organização no contexto brasileiro.
cação de livros e da imprensa periódica, A informação está ligada ao processo de
da rede de bibliotecas gratuitas, medi- desenvolvimento de toda sociedade. Numa de-
ante a ampliação do intercâmbio cultural lllOC1'3Cia. os cidadãos devem ter acesso • in-
com os estados estrangeiros". formaçlo nJo-manipulada para tomarconheà-
mento dos seus direitos e deveres. Assim. tor-
Sem a pretensão de aDaIisar profundamente nar-se-4\) aptos ao questiotlatne\\ cntieo da
a importância da concepção de biblioteca em sistema politico-social vigente.
cada Constituição, observa-se que seja qual for
essa concepçlo, o fato de ser mencionada no A proposta de urna sociedade livre. aberta,
texto constitucional empresta à biblioteca um democrática, com postura critica só é possível
destaque especial em relação aos aspectos de apartir da implantação de um sistema informa-
sua funçlo educativa. social, poUtica e cultural cional igualmente livre, aberto e democrático.
no desenvolvimento de um país. As concep- que possibilite a fonnação de massa critica e a
çôes podem assumir diferentes conotaçé5es, mas conseqilente participaçfto ativa e efetiva de l0-
oertamente, o fato de o tenno biblioteca ser dos em todos os processos. quer polfticos ou
mencionado permite admitir a possibilidade da 010. Esta afirmação toma-se mais enfática. se
participaçlo desse organismo no processo de comiderarmos que o sistema informacional re-
desenvolvimento, embora não seja destacada a flete o sistema politico-social vigente. É preci-
preocupaçao de interferência ou não do Estado so que o sistema politico-social brasileiro be-
nesse processo. neficie a maioria dos cidadlos. considerando a
cultura popular e não privilegiando as elites. O
Sobre o interesse dos cidadAos brasileiros controle ideológico é tendencioso e RIo deve
pelas bibliotecas, foi pesquisada a base de da- ser~.
dos SAlC, organizada pelo Centro de Proces-
samento de Dados do Senado Federal - PRO- Portanto, os bibliotecários brasileiros têm a
DASEN, contendo as sugestões encaminhadas obrigação de alertar a sociedade para a impor-
aos constituintes. A pesquisa, realizada em tânciada iJlfonnaçIo, bem comum. c:apez de a1IJ-
março de 1987, registrou 221 sugestões refe- ar como fator de integração. democratizaçIo.
rentes à biblioteca. As reivindicações eram as igualdade e oomo insumo de poder econ6mico.
social e politico, despertando a soci~~ para A estratégia da FEBAB ao elaborar o docu-
essa reflexão. Conseqüentemente, a bIblioteca mento-base, contendo as reivin~icações da
assume seu papel de destaque quando consi- classe bibliotecária a serem enC3mlOhadas aos
deramos o desempenho de suas funções edu- constituintes. foi enfatizar a biblioteca, privile-
cativa, cultural, social e política no cenário bra- giando as áreas da educação e cultura, por en-
sileiro. tender a Federação, que este grito de alerta se-
As palavras de Anísio Teixeira: "temos que ria o ponto forte da reivindicação bibliotecária.
reconstruir as instituições básicas da educa- A partir do reconhecimento da biblioteca pelo
ção brasileira para novas, instantes e mais altas Estado em toda a amplitude da sua dimensão e
necessidades nacionais, que já podem ser es- valor, todas as demais reivindicações justas da
tudadas e conhecidas a ponto de indicarem por categoria profissional poderiam ser também
si mesmas OS rumos a seguir..." constituíram o consideradas. O importante era voltar a aten-
lema da DiretoriaExecutiva (1987-1989) da FE- ção dos constituintes para a biblioteca, pois
BAB. até aquele momento, nem mesmo. o ~rmo bib~­
A Federação recebeu sugestões para serem oteca constara nas demais ConstJtUlções braSl-
encaminhadas à Assembléia Nacíonal Consti- leiras,
tuinte, provenientes das Associações de Bibli- Da estrutura organizacional da Assembléia
otecários e demais instituições ligadas à área Nacional Constituinte fazia parte a Comissão
de Biblioteconomia. Dessa fonna pôde liderar o da Família, da Educação, Cultura. Esporte, C0-
movimento em defesa da organização bibliote- municação Ciência e Tecnologia, constituída
ca junto aos constituintes. de três subcomissões. Dessas subcomissões,
a Subcomissão de Educação, Cultura e Esporte
Foi elaborado um documento, que tomou foi aquela cuja atuação foi dia a dia acompa-
como premissas os rumos fundamentais 9u;e nhada pela FEBAB.
deveriam tomar a educação e a cultura brasJlel- Todos os membros da Subcomissão de Edu-
tas na nova Constituição que seria elaborada cação, Cultura e Esporte receberam o docwnen-
àquela época. O documento enfatizava o direi- to elaborado pela FEBAB, entregue também aos
to à educação e cultura e mantinha a liberdade presidentes, vice-presidentes e relatores das
de comunicação dos conhecimentos. Intitula- demais comissões e subcomissões e constitu-
do A biblioteca e a Constituiçi1o; contribui- intes sensiveis aos interesses da Federação em
çi10 à Assembléia Nacional Constituinte elei- prol da biblioteca Todas as portas se a~riam ~
ta em 15 de novembro de 1986, o texto foí sub- reivindicações da FEBAB e grande fOi o apoiO
metído à aprovação da classe e inciuiu além das recebido.
sugestões propostas, considerações sobre a No dia 12 de março de 1987, em comemora-
biblioteca, como subsidios para os constituin- ção ao Dia do Bibliotecário, a Associação dos
tes, uma bibliografia e infonnaçôes sobre a FE- Biblioteaírios do Distrito Federal promoveu um
BAB. Abordou variados aspectos e funções painel no auditório da Câmara dos Deputados,
da biblioteca, como a ação educacional; alfabe- em Brasllia. Naocasião,a pt':Sidente da FEBAB,
tização de adultos; aut~ucação; a biblioteca Elizabet Maria Ramos de Carvalho teve oportu-
como centro de infonnaçõe5 de utilidade públi- nidade de discorrer sobre a importância da bi-
ca, como centro de informações técnicas, como blioteca no âmbito da educaçãO e da cultura
biblioteca pública; cidadania; comunicaçã? de brasileiras, destacando os pontos principais da
massa; comunidade; cultura de massa; eosmo; valorização da biblioteca em seu discurso, quan-
escola' intãncia; legislação; leitura; liberdade do presentes constituintes convidados para O
dem~tica; recursos humanos; sistemas de evento.
educação; tecnologia e educação. Essa ~r. Posterionnente, a FEBAB dirigiu-se à Sub-
dagem deixou clara a concepção ~ orgamza- comissão de Educação, Cultura e Esporte, quan-
ção biblioteca, como o lugar o!Jde ~ lnfOnnação do no dia 6 de maio de 1987, novamente a presi-
poderá ser obtida qualquer seja o Upo de docu- dente da Federação discursou, desta vez em
mento em que ela tsUáa: livro, folheto, fotogra- audiência pública realizada pela Subcomissão
fia. mapa, fita magnética, filme 00 outro tipo de ~ na Sala 19 da Ala Al.~~
material. A biblioteca é vista como centro de do senado Federal. A importância da biblioteca
cultura, onde são organizadas projeções, expo- no contexto educacional e cultural brasileiro foi
.siçõe5, palestras e outras atividades, de aco,rdo outra vez ressaltado pela presidente da FEBAB.
com o interesse da comunidade a ser atendida, Após seu pronunciamento, a presidente foi
" " "••• 321t. 1. . . ../1.... 1 _
parabenizada e respondeu a diversas pergun- cesso democrático e de estimulo à auto-
tas fonnuladas pelos constituintes presentes, educação.
que demonstraram interesse pela questão pro- É responsabilidade do Estado desen-
po~~ mesma audiência pública, a bibliotecária volver e incentivar sistemas de bibliote-
cas, arquivos e museus, como institui-
Walda Antunes, íntegrante da Diretoria da FE- ções básicas detentoras da açlo cons-
BAB, discursou sobre o livro e sua problemáti- tante, ininterrupta e permanente na inte-
ca, representando o Instituto Nacional do li- gração dos bens culturais".
vro. Em seu discurso foram apresentadas su-
gestões para uma política nacional do livro, Além dessas, duas sugestões foram enca-
apoiada na criação de um sistema nacional de minhadas pelo constituinte Deputado Mauricio
bibliotecas públicas e escolares. Fruet, com a seguinte redação:
Todos colaboraram. Cada membro da Dire- "É vedado à União, aos Estados. ao
toria, assessorias e representantes prestaram Distrito Federal e aos Municlpios insti-
suas contribuições. Os esforços foram recom- tuir tributos sobre livros,jomais e perió-
pensados na primeira fase da luta. A FEB~ dicos, qualquer que seja o suporte fisico
conseguiu ver as propostas que foram encanu- que os contenha, assim como sobre o
nhadas aos constituintes transformadas em papel e os demais insumos a serem defi-
sugestões de constituintes a serem discutidas nidos em lei suplementar".
e inclUÍdas nos relatórios das comíssaes e sub- e
comissões da Assembléia Nacional Constitu-
inte. A estratégia de concentrar os esforços na "A União estabelecerá poUtica de in·
direção do fortalecimento da organização bibli- formação científica e tecnológica, na for-
oteca surtia o efeito esperado. A vitória naque- ma em que dispuser a lei, como base do
la etapa do processo de elaboração da Consti- desenvolvimento nacional nas referidas
tuição brasileira, atualmente em vigor, superou áreas"'.
as expectativas. Foram encaminhadas cinco Todas as sugestões foram submetidas às
sugestões de constituintes, referentes à políti- respectivas subcomissões, conforme o ~­
ca de informação e politica científica e tecnoló- tivo mérito. No primeiro relatório da Subcomis-
gica e tributação do livro. são da Educação, Cultura e Espone, o artigo 21
estabelecia que
O constituinte Senador Nivaldo Machado
apresentou duas sugestões (n."" 286 e 288): "é obrigação do Estado OI:ganizar,
manter e apoiar o funcionamento de bi-
uÉ dever do Estado desenvolver e bliotecas, arquivos, museus, centros de
incentivar sistemas de bibliotecas, arqui- arte e de estudos e casas de cultura, inte-
vos e museus, como instituições perma- grados ou abertos aos sistemas de ensi-
nentes de integração da coletividade no e às comunidades".'
com os bens culturais"'.
Emjunho de 1987, ao serem compatibili:lJl-
e dos os relatórios das subcomissões pela Co-
"A escola e a biblioteca, como insti- missão da Familia, da Educação, Cultura e Es·
tuições responsáveis pela ação continua porte, da Ciência e Tecnologia e da Comunica-
e integrada de ensino e cultura, visando ção, sugere o texto final no seu artigo 17 que
ao aprimoramento da democracia e à llUttr "compete ao poder público, respal-
educação, terão a proteção do Estado"'. dado por Conselhos representativos da
Endossada pela assinatura de J 1 constitu- sociedade civil, promover e apoiar o de-
intes, a sugestão n.o 3680 foi apresen~ pelo senvolvimento e a proteção do patrimô-
constituinte Senador Mauro Benevtdes, nos nio cultural brasileiro, através de inven-
seguíntes tennos: tário sistemático, registro, vigílfncia, t0m-
"Dentre as instituições fundamentais bamento, desapropriação, aquisição e de
para implementar a educação, o Estado outras formas de acautelamento e pre-
reconhece a Escola e a Biblioteca como
S BRASil.. Assembléia Nacional Constituinte.
segmentos responsáveis pela ação con-
tinuada e integrada de ensino e cultura, Comissão da Farnilia, da Educação, Cultura e Espor-
te, da Ciência e Tecnologia e da Comunicação. Sub-
devendo promover as suas atuações sis- comissão da Educação, Cultura c Esporte. Antepro-
tematizadas no aperfeiçoamento do pro- jeto constitucional, Brasilía: 1987, I3p.

11• .".'. fi. 'nfor"fiio I."'.'at'".


servação, assim como de sua valoriza- AEC, a Associação Nacional de Pós~Gradua­
ção e difusão. ção e Pesquisa em Educação - ANPED, a As-
Parágrafo único. A União, os Esta- sociação Nacional dos Profissionais de Admi-
dos, o Distrito Federal e os Municipios nistração da EducaçãO - ANPAE, a Associa-
destinarão anualmente recursos orçamen- ção Nacional dos Docentes do Ensino Superior
tários para a proteção e difusão do patri- - ANDES a União Brasileira dos Estudantes
mônio cultural assegurado prioritaria- Secundari;tas - UBES, a União Nacional dos
mente: Estudantes - UNE, entre outras. As propostas
e reivindicações dos educadores foram conden-
sadas em um documento elaborado por um gru-
11 - criação, manutenção e apoio ao po de trabalho instituído pela Portaria n.o 728
funcionamento de bibliotecas, arquivos, de 7 de outubro de 1986 e reestruturado pela
museus, espaços cênicos, cinematográ- Portaria R.o 28 de 15 de janeiro de 1987 do Mi-
ficos, audiográficos, videográficos e nistério da Educação, intitulado "Subsidios à
musicais, e outros espaços a que a cole- Assembléia Nacional Constituinte" .9 Embora as
tividade atribua significado". 6 reivindicações relativas ao assunto biblioteca
O artigo 19 do mesmo documento estabele- sejam da responsabilidade do~ bibliotecários,
ce que os demais profissionais envolVidos,com.a edu-
"assegurada a liberdade de criação, cação deveriam compreender e avaltar a Impor-
expressão, produção, circulação e difu- tância da biblioteca no âmbito da educação e
são da arte, da ciência e da cultura. cultura. Mesmo assim, o termo biblioteca não é
considerado em nenhuma parte do documento.
Parágrafo único. Não haverá censura
de qualquer espécie sobre livros, jornais, Esta situação se repete nos textos escolhi-
revistas e outros periódicos, filmes, ví- dos para formar o capitulo referente à questão
deos, peças teatrais e outras formas de da educação, da cultura e da infonnação no
expressão e espetáculo cultural". 7 documento Constituinte e Constituição, orga-
nizado e compilado pela professora Maria Rosa
O substitutivoS, apresentado pelo relator da de Abreu e editado pela Universidade de B.rasí-
Comissão da Família, da Educação, Cultura e lia, que não aborda nenhum aspecto relativo ã
Esporte, da Ciência e Tecnologia e da Comuni- biblioteca, lO
cação, o constituinte Deputado Artur da Távo- O anteprojeto constitucional apresentado
la, à Comissão de Sistematização, foi amplamente pela Comissão dos Nocl.veis à Assem~lé~a Con~­
polêmico. Entretanto, os temas que susc~taram tituinte, por sua vez, nenhuma referencla faz as
as discussões sobre as questões relatlvas à bibliotecas.
Educação e Cultura estavam afetos às verbas Foi uma surpresa descobrir no folheto edi-
públicas destinadas às escolas. Com relação ao~ tado pela Universidade de Brasilia - Decanato
artigos concernentes à bi~lioteca, o texto foi de Extensão, as propostas à Constituinte dos
mantido inalterado ao descrito. O texto da Cons- Grupos de Estudo do Curso Constituição e
tituição brasileira de 1988 não mencionou o ter- Constituinte. O documento, entre as propostas
mo biblioteca comO interessava aos bibliotecá- referentes à Educação, pleiteava "ampliar ofer-
rios. As atenções continuaram voltadas para a tas de bibliotecas públicas com horário de aten-
escola. Diversas manifestações foram dirigidas dimento integral aos sábados, domingos e feri-
aos constituintes pelas entidades representati- ados",11
vas da sociedade na área de Educação, como a
As omissões constatadas demonstram que
Associação de Educação Católica do Brasil -
é preciso conscientizar as autoridades compe-
6 BRASIL. Assembléia Nacional Constituinle<.
9 BRASIL. Ministério da Educação. Grupo de
Comissão da Família, da Educayão, Cultura e Espor-
te da Ciência e Tecnologia e da Comunicação. Ante- Trabalho. Subsidios à Assembléia Nacional Consti-
p:.ojeto constitucional. Brasília: Senado Federal, ju- tuinte, propostas e reiví(ldicaç3es dos educadores.
Brasília: 1987. 49p.
nho de 1987, 47p.
7Op. cit., 6. I0Op. cit., 2.
I BRASIL. Assembléia Nacional Constituint~. 11 UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA. Decanato
Comissão da Família, da Educação, Cullura e Espor- de Extensão. Grupos do Estudo do Curso Constitui-
te, da Ciência e Tecnologia e da Comunicação. Subs- ção e Constituinte. Constituição e Constituinte. Bra-
titutivo, Brasília: Senado Federal, junho de 1987, 8p. sília: UnB, 1987, p. 2

arulll••• 32 n. 126 ..../Iun. 1995 2Z7


tentes de que a biblioteca deve merecer o apoio de bibliotecas, amigos, homens de negócios,
govemamentaI para desempenhar satisfatoria- professores, educadores, editores etc.
mente o seu papel no desenvolvimento da s0- Desperte as pessoas para a impordncia da
ciedade brasileira. biblioteca durante todo o ano. Envie jornais e
A Constituiçlo brasileira de 1988 não in- artigos de interesse especial. NIo espere a cri-
cluiu o tenno biblioteca como era esperado. se para fazer contatol
Esse fato 040 pode desestimular os bibliotecá- Expert ~ é, e pode fazer a diferençal
rios. O trabalho de acompanham;ento do pro- Mostre aos que esIJo no poder que t:Xistem
cesso legislativo de\re continuar. E importante pessoas que se preocupam com as bibliotecas.
seguir os passos desse processo no que diz
respeito às leis complementares direta ou indi- Focalizeos fatosl Prepare uma simples noti-
retamente relacionadas com a biblioteca, a in- cia para dar aos legisladores. Use os aconteci-
forma.çlo e o bibliotecário. É preciso participa- mentos oomo base para as cartas.
çIol Todos devem estar atentos. Garantir a calma, evitar 8fBUIIlCIJtDS. pr0cu-
Nos Estados Unidos, a American Library rar ouvíre sorrir sempre são pontos fundamen-
A$SOCia/ion tem uma divisão especializada em tais para a conversa ideal.
lobby. Aqui no Brasil, esse assunto é polêmico. Habilidade politica requer o conhecimento
Muitos são favoráveis, outros são terminante- de como a politica é feita na sua área e quais
mente contrários. É preciso lembrar que a"cau- são as pessoas-chave.
sa biblioteca" é uma questão social. Até mes-
mo o constituinte Deputado Roberto D' Ávila, InfonnaçIo é nosso objeto de trabalho, porw
veemente contestador do lobby, ao ser aborda- tanto, informe-sel Conumique-sel Exponha seu
do pelas representantes da FEBAB sobre as caso clara, concisa e consistentementel
reivindicaçaes a favor da biblioteca, durante o Jargão biblioteconomês deve ser evitadol
processo de elaboraçto da Carta Magna, rea- Dê a sua opínílo com tianqueza e tome-se cla-
giu favoravelmente ao lobby da FEBAB, lem- ro para quem você defende uma idéia.
brando que nIo existem interesses ecoRÔnuCOS
envolvidos nas solicitaçtles apresentadas com Legisladores são pessoas importantesl
referência às bibliotecas. Conte para eles como a sua proposta afetará a
biblioteca e os votos na sua colDlUlidadc. Es-
5. ConsíderaçlJesjina;s creva cartas. amistosamente, que levem os le-
Cada bibliotecário, ou cidadão interessado gisladores a conhecer seu objetivo. Evite as
em contribuir para que a biblioteca conquiste cartas fonnaisl
um espaço relevante na educação do povo bra- Membros que você representa devem estar
sileiro, pode encontrar um caminho de apresen- informados do que está acontecendo cde como
tar suas sugestões aos legisladores. eles podem ajudar.
Preocupada em estimular a participaçlo po-
lftica dos bibliotecários no que se refere ao for- Necessidades e prioridades da biblioteca
talecimento da imagem da bibliotee:a e dos pró- têrnque ser conhecidasITrabalhe-asl
prios bibliotecários brasileiros junto aos legis- Objetivo tem que ser definidol Saiba o que
Jadores. a Observadora Legislativa da FEBAB, você quer e como você o visari. para fazer aoJIl-
Sueli Angélica do Amaral traduziu e adaptou O tecer.
ABC do Jobby, divulgado pela Amerícan Lí- Pergw1tas sIo necessairiasl ThDha ccrtcm de
brary Associa/ion. Trata-se de um documento tê-las. Antecipe as questões e esteja prqmadol
cujos principios nI() são dificeis de serem 0010-
cados em prática. Suas lições são simples: Questão fundamental: sua c~bilidadc
dependerá de quão bem organizado vd este-
Agradeça aos legisladores, pessoalmenteou ja. A união e a participaçlo dos bibliotecários
por carta, mostrando aeles que você os aprecia definirão a representatividade da classe.
Bibliotecas e bibliotecários precisaln ser Rapidez na açãol Conheça. bem. a sua pro-
valorizados! Diwlgue os serviços e produtos posta e esteja pronto para responder sobre ela.
que as bibliotecas oferecem para aqueles que rapidamente, em todas as ocasiões.
você está tentando impressionar. Sucesso dependerá de quão razoável seja o
Coalizões sloválidas! Envolva outras pes- seu pedido. \\x:ê tem que estar preparado para
!i03S que partilhem seus interesses: usuários
assumir compromissos com relaçIo a sua pro-
posta. modo global no planejamento governamental e
Tempo é dinheiro! Desenvolva um plano na política de nosso país. Os bib1iotec.ári~s bra-
com horário para o que você quer atingir e siga-o. sileiros devem atuar de modo a contnbUlr para
Use a forma correta de endereçamento. Um tomar esse procedimento em realidade. Pode
pequeno detalhe: verifique se os nomes, os tí- não ser uma conquista de sucesso imediato,
tulos e os endereços estão corretos. mas é preciso perseverar e agir ~om competên-
cia, preocupando-se com a qualidade da oferta
Visitas fazem parte do negócio! Visite os le- dos serviços e produtos de informação, ade-
gisladores! Marque encontros! Faça com que quando a oferta às necessidades dos usuá~os
eles encontrem o rosto, antes da voz ou da carta. no contexto brasileiro. Há vários temas relacIO-
Xadrez e lobby: É preciso raciocínio, inteli- nados com a informação e a atuação dos biblio-
gência, paciência e habilidade! tecários que precisam ser reestudados consi-
derando a abordagem no texto constitucional
zelo é fundamental! Seja zeloso no seu es- brasileiro vigente e seu reflexo fiO contexto do
forço de manter bibliotecas visíve~s e suas ne- setor de informação brasileiro. E hora de os bi-
cessidades e prioridades reconhectdas. Nunca bliotecários unirem-se aos demais profissionais
abandone a "causa biblioteca"! da informação e se organizarem para defender,
É hora de os bibliotecáriosbrasíleiros atua- entre outros, os interesses da biblioteca. Afi-
rem politicamente para defenderem não somen- nal, a preocupação com a imagem da biblioteca
te os interesses da categoria profissional, mas na sociedade brasileira, refletindo seu verda-
principalmente a instituição biblioteca, conce- deiro espaço, competência e reconhecimento é
bida em seu amplo aspecto de atuação e exten- responsabilidade dos bibliotecários, ou não?
são. As unidades de informação brasileiras pre-
cisam ser consideradas criteriosamente e de

ar..n,• •. 32 ft. 128 """./Iun. 1895


o princípio da responsabilidade objetiva
do Estado e a teoria do risco
administrativo

HFIFNO fAVElRA TÔRRE:S

SUMÁRIO

I. Introdução. 2. Aspectos sobre a personalida-


dejurídica do Estado. 3. Situeionalidade da respon-
sabilidade do Estado. 4. Evolução doutrinária. 4. I.
Fase da irresponsabilidade. 4.2. Fase da responsa-
bilidade civilista. 4.3. Fase da 'faute du service".
4.4. Fase da responsabilidade objetiva do Estado. 5.
A responsabilidade do Estado no Direito Constituci-
onal brasileiro. 6. Sobre a responsabilidade objeti-
va do Estado. 6. I. A responsabilidade estatal como
principio de direito público. 6.2. Relevância consti-
tucional da responsabilidade do Estado. 6.3. A natu-
reza da responsabilidade extracontratllal do Esta-
do. 6.4. Motivos ensejadores da responsabilidade
do Estado. 6.4. I. Antecedente - ofato administrati-
vo. 6.4.2. Conseqüente - o dano indenizável. 6.4.3.
A tos omissivos. 6. 4. A teoria do risco. 6. 5. As exclu-
dentes de responsabilização objetiva do Estado.
6.5.1. Culpa do lesado. 6.5.2. Culpa de terceiros.
6.5.3. Força maior. 6.5.4. Estrito cumprimento do
deverlegalface a um estado de necessidade. 7. Do
direito de regresso.

1. Introdução
O tema da responsabilidade objetiva do Es-
tado l , nada obstantejá haver uma larga quanti-
dade de escritos sobre o mesmo, continua sen-
do um tema atual e em evolução, principalmen-
te no sentido de vencer os preconceitos civilís-
ticos que o envolvem. Após uma breve consi-
deração histórica, faz-se aqui uma referência à
relevância constitucional do princípio, com aten-
ção para os fundamentos e as razões que infor-

Heleno Iaveira Tôrres é Mestre em Direito Pú- I ALCÂNTARA, M." E. Mendes. Responsabi-

blico (UFPE). Aperfeiçoado em Direito Tributário lidade do Estado por atos legislativos e jurisdicio-
Intemacionai pela I Universidade de Roma "La Sa- nais. SP: RI, 1988; ALESSI, Renato. La responsa-
pienza ". Foi pesquisador na fi Universidade de bilità della pubblica amministrazione, 3." ed., Mila-
Roma "Tor Vergara" no perlodo acadêmico 93194. no: GiufTrc.':, 1955; _ _ L 'illeeiro e la respomabilità
o

231
mam o seu conteúdo. Cuida-se ainda da referi- emerge a obrigaçilo de indenizar.
da temática enquanto instituto vinculado estri- Divergindo desta opiniao, Maria Sylvia Z.
tamente ao regime de direito público. dando- Di Pietro faz notar que a responsabilidade é do
lhe a conotação da teoria do risco administrati- Estado, que é pessoa juridica, e que por isso
vo, ou seja. reconhecendo a existência das de- seria errado falar em responsabilidade da Ad·
nominadas excludentes de responsabi/izaçl1o ministração Pública, já que esta não tem pers0-
objetiva. elementos que descaracterizam o nexo nalidade juridica, não é titular de direitos na or-
causal entre o antecedente (fato administrati- dem civil. Como assevera, a "capacidade" é
vo) e o conseqüente (dano>. elidindo assim a do Estado e das pessoasjurldicas públicos ou
responsabilização estatal. Por fim, são expos- privadas que o representam no exerclcio de
tos alguns aspectos relevantes sobre o dever- parcela de atribuiçlJes estatais 3.
poder de regresso da Administração em rela- Essas duas opiniões, ambiguas na essên-
çao ao agente causador do dano. cia, servem para ilustrar o quadro de incertezas
2. Aspectos sobre a personalidadejurldica quanto ao tema.
do Estado
De há muito que adoutrina se interroga s0-
Para um maior rigor de tratamento, mister bre a existência e a forma de manifestação da
que inicialmente, mesmo com brevidade, faça- personalidade jurídica do Estado. Hoje, firma-
mos uma apreciação quanto à relação entre a se o entendimento positivo de existência de uma
personalidadejuridica do Estado e o tema, com personalidade, considerando-o oomo sujeito de
o fito de demarcar o verdadeiro sujeito passivo direitos e obrigações, porque desde a formaçlo
da responsabilização aos danos causados a do Estado de Direito (para nós, demarcado na
administrados: o Estado ou a Administração Revolução Francesa), ao mesmo tempo que sua
Pública. atuação confere direitos e imp(le obrigações aos
Helly Lopes Meirelles prefere a designação individuos, o faz também para si próprio, como
"responsabilidade civil da Administração Pú- forma de garantia para a Comunidade sob sua
blica" ao invés da denominação tradicional, a égide de poder. Tal relação comutativa só é p0s-
"responsabilidade civil do Estado", porque, sível, inconteste, entre pessoas, sujeitos sub-
segundo o citado mestre, em regra, a responsa- metidos a umaordemjmidica, titulares de direi·
bilidade ocorre com fundamento nos atos ema- tos e obrigações.
nados pela Administração. atos administrativos
stricto sensu, e não dos atos polfticos, que, em O Estado é, assim, pessoajurídica. tanto para
principio, não geram responsabilizaçllo, uma vez a ordem interna como para a ordem intemaciOoo
que é da atividade administrativa dos orgl1os
públicos. e nilo dos orgilos de governo, que GARCIA DE ENTERlA, Eduardo; FERNANDEZ,
Tomás-RamÓII. Curso de dinilo admirri3/ralh>o, SP:
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nal, sujeito capaz de direitos e obrigações pre- encontra, a qualquer titulo, passivel de arcar
disposto a atuar em qualquer relação jurídica com as conseqüências de fatos danosos. Tra-
como parte legitima. tando~se de responsabilização do Estado, a

Nesta linha, apresenta-se como sendo mais mesma deve ser apreendida como sendo uma
consentânea com a realidade a proposição apre- obrigaçãojurídica que detém o mesmo de man-
sentada por Di Pietro, uma vez que a Adminis- ter ilesos os bens e direitos dos administrados,
tração, esta sim, não possui personalidade jurí- restabelecendo, dentro do possível, o status
dica independente em relação ao Estado a que quo ante alterado por atos originários de sua
serve. A responsabilização cabe ao Estado, que conduta.
é o sujeito de direito constituído pela ordem Hoje, o princípio da responsabilidade do
jurídica, pois este pode ser responsabilizado não Estado identifica o próprio Estado de direito
apenas por atos administrativos, mas, nas três democrático e social, que se justifica pela im-
funções em que se especializa o poder do Esta- pessoalidade isonômica na relação com os ad-
do, também por atos legislativos e judiciais. ministrados e pelos próprios objetivos firma-
dos, de atuação conjunta e garantia dos direi-
Nesta linha de raciocínio, o Estado não fica tos constituidos, sob uma perspectiva demo-
imune à responsabilidade por atos praticados crática e responsável.
no seu interesse, porque, em termos de nemi- A responsabilidade, quer pública, quer pri ~
nem laedere, a ninguém é lícito causar danos vada, pode ser contratual ou extraCQntratua\. A.
aodireito alheio, e atualmente anortlUltiva cons- responsabilidade contratual deriva da infra-
titucional submete todos os sujeitos, públicos ção de cláusulas aceitas por ambas as partes.
ou privados, ao seu enquadramento jurídico, Descumprida uma ou algumas das cláusulas
de tal sorte que qualquer dano pode acarretar contratuais. faz.-se despontar a responsabilida-
para o autor a obrigação de reparação·. de do infrator. A responsabilidade extracon·
De notar, portanto, que tal correlação de di- tratual, delitual ou aquiliana, não deriva de
reitos e obrigações só é possivel por haver uma qualquer relação contratual, mas da lesão a um
submissão do Estado à ordem constituída, se- direito subjetivo ou prática de ato ilícito a um
gundo a qual os cidadãos lesados podem opor terceiro, com a infração ao princípio neminem
contra o mesmo suas pretensões indenizatóri- laedere, na medida em que quem desempenha
as, face a danos porventura causados por ele uma atividade deve suportar-lhe os riscos e
no desenvolvimento de suas ações'. perigos, as vantagens e desvantagens, sem
3. SitucionaJidade da responsabilidade do causar danos a ninguém.
Estado Não estamos interessados aqui na respon-
Haja vista a vultuosa quantidade de ativi- sabilidade contratual, mas tão-somente na res-
dades desenvolvidas pelo Estado, no exercício ponsabilidade extracontratual do Estado, por
dos seus serviços, são constantes as possibili- danos causados através de ações unilaterais,
dades de exposição de administrados a riscos, lícitas ou ilícitas.
que freqüentemente passam ao plano da realida- 4. Evolução doutrinária
de, com a ocorrência de danos. Surge, com isso, a A responsabilidade patrimonial do Estado
condição inicial para a responsabilização. é uma conquista do moderno Estado de direito,
O termo responsabilizaçifo deve ser enten- na medida em que se tomou um mecanismo a
dido como a posição inercial do sujeito que se serviço da legalidade e da igualdade dos admi.-
nistrados perante o mesmo. Mas atente-se que
• Neste sentido, diz Amaro Cavalcanti (p. XI): não foi uma conseqüência inexorável pelo sim-
"O Direito é a regra de conduta e proceder tanto dos ples fato de exsurgência da instituição "Esta-
individuos como do Estado, conseqüentemente, as- do". O que deve ser tido como fundamental é a
sim como sucede com os indivíduos, assim também submissão do Estado à ordem juridica por ele
deve o Estado, em princípio, responder pelos pró- mesmo instituída. Outrosssim, os cânones da
prios atos." vigente configuração do princípio em tela é fru-
'Como bem assinala Mello (1992, p. 325): "Se to de uma lenta evolução, plena de dogmas e
nllo há sujeitos fora do direito, não há sujeitos irres- preconceitos que entravaram o seu desenvol-
ponsáveis; se o Estado é um sujeito de direitos, o vimento, principalmente em função das con~
Estado é responsável. Ser responsável implica res- ções civilistas e do seu caráter absolutista.
ponder por seus atos, ou seja, no caso de haver causa-
do dano a alguém, impõe~lhe o dever de repará-lo", A finalidade desta breve digressão históri-
.r..o•• •. 32 n. 1 . "./JUII. ., lHI5
ca sobre a evolução do instituto não terá como inexistência de qualquer proteção juridica aos
fito estabelecer novos parâmetros de compre- administrados. Os danos causados por agen-
endo ou relatar os detalhes, por épocas e paí- tes públicos eram reparados por estes, indiví-
ses, em modo pormenorizado. quanto ao mes- dualmente, caso tivessem agido por dolo ou
mo. Nossos propósitos são mais modestos, a culpa.
começar do ponto de partida. 4.2. Fase da responsabilidade civilista
O topos inicial será o surgi mento do Estado Das discussões sobre a dícotomia dos atos
de direito moderno (Revolução francesa), dife- de império e dos atos de gestão, na França, uma
rentemente do que faz Augustin Gordillo, se- das principais conseqüências foi a alteraçAo da
guido por M" Emilia M. Alcântara6 , que consi- teoria da irresponsabilidade do Estado, admiti-
dera a percepção de cinco etapas: época primi- do-se a responsabilização da Administração
tiva (desde a origem da humanidade até Roma); para os danos provenientes de atos de gestlo,
época teológica (alta Idade Média na Europa); no caso de culpa ou dolo do agente público. A
época estatista (séc. XVIII); época de indeci- irresponsabilidade permanecia, oontudo, exclu-
silo e época intermediária. Parece-nos que a sivamente para os atos de império.
postura mais coerente encontra-se na estipula- Esta teoria, que ainda se mostrava eminen-
ção do Min. Carlos Mario da Silva \tiJoso1, que temente civiliSfa, de responsabilidade aquilia~
estabelece quaU'o fases distintas a partir da for- na pela verificação da existência de culpa do
mação do Estado. São elas: fase da irresponsa- agente na condução das atividades públicas,
bilidade absoluta, da responsabilidade civilis- não correspondia aos anseios dos cidadlos
ta, da teoria da culpa administrativa ou da/aule porque a estes pouco interessava ter sido o
du service e a fase atual da responsabilidade dano causado por ato de jus geslionis ou alO
objetiva. de jus imperU. Dada a dificuldade de caracteri~
4.1. Fase da irresponsabilidade zação do que seriam os ditos "atos de gestão",
Mesmo nos domínios do advento do Esta- a responsabilidade por culpa foi lentamente
do de direito, com a formação dos regimes cons- perdendo vigor, mas não se pode negar o salto
titucionais, a exclusão da responsabilidade pre- de qualídade na proteção dos direitos dos ad-
valeceu ainda durante quase todo o século XIX. ministrados deixado por ela.
Os motivos eram os mais díspares possiveis 4.3. Fase da "Jaute du serv;ce "
para justificar a insubmissão do Estado ao de- Como desenvolvimento necessário da te0-
ver de ressarcimentoS, em claras seqüelas ab- ria da culpa civilista, em observância aos direi-
solutistas. Nisto consistiam as fórmuJas sinte- tos e às garantias dos administrados, que pas-
tizantes: le roi ne peut malfaire, dos franceses so a passo se fertilizavam ainda mais no desen-
a the King can do no wrong, dos ingleses. volvimento das idéias liberalistas, instalou-se a
A prevalência deste pensamento, todavia, fase da publicização da culpa administrativa ou
variou de pais a pais. Nos Estados Unidos, até da/aute du service fra~ - criaçãojurispru-
1946, ainda vigia este princípio, tendo desapa- dencial do Consei! D 'Elal.
recido com o advento do Federal Trol Claims Esta teoria trazia no seu bojo pontos de cru-
A cf; e na Inglaterra, até 1947, através do Crown cial significaçao publicistica. Passa a respon-
Proccedjngs Act. Mas isto não implicava na sabilidade do Estado a ser independente da fal-
ta do agente, sendo originária da Administra-
6 ALcÂNTARA (1988, p. 147). ção, pelo mau funcionamento do respectivo
serviço que provocou o dano. A responsabíli-
7 VELLOSO (1987, p. 237).
dade passa a ser imputada, então, pelo mau fun-
I "Le ragioni della esclusioni non sono le steS5e
cionamento do serviço público ou a sua inexis-
in tutti gli autari: ora si paria deI carattere etico e
tência, cuja decorrência deve ser concretamen~
giuridico dello Stato, che escluderebbe che essa p0s-
sa in qualunque modo commettere stti illiciti, ora te examinada a partir da natureza do serviço, o
della funzione, propria dei medesimo di creare il di- lugar e as circunstâncias de sua realização.
rino, che sarebbe incompatibile con qualunque atti- Assim, costuma-se resumir sua configura-
vità contraria ai diritto e alia legalità; ora dei carattere ção como aquela falta que ocorre quando o ser-
publicistico deUa per90nalità de/lo Stato, cite impe- viço púbJico não funciona, devendo funcionar,
direbbe il suo usogeltamento a un principio di dirit-
to privato, quale quello della responsabilità per dano funciona mal ou funciona atrasad09 .
ni", ZANOBINl (1947, p. 261). Neste sentido, tam-
bém: DIAS (1944, p. 154). 9 Assim, MELLO (1992, p. 329).
A culpa passa a ter então uma detennina- to do ato estatal. Outrossim, imprescindível se-
ção publicística; mesmo que sob certo sincre- ria. tão~somente, a verificação do nexo de cau-
tismo, para efeito de responsabilização do Es- salidade entre o dano e a conduta do ente pú-
tado. Em verdade, há um deslocamento de pos- blico. Em resumo, qualquer dano deveria ser in-
tura, passando da verificação da culpa de al- denizado sem qualquer questionamento sobre o
guém que age em nome do Estado para a res- caráter culposo da conduta do agente lesante.
ponsabilização do Estado, por culpa propria- Estes pensamentos oonfluiam para a teoria
mente sua. Deixa de existir, então, uma indivi- do risco, ou seja, para uma teoria segundo a
dualização da culpa, passando-se para a verifi- qual todo o dano deve ser reparado por quem
caç30 da culpa do seniço estatal. se arriscar, com ou sem a intenção de tirar pro-
O que qualifica esta responsabilidade é o veito, a exercer por si, ou por via de outrem,
de ser uma necessária transição para a culpa uma atividade qualquer, da qual possa resultar
objetiva do Estado, porque o funcionário não é O dano.
um private man, nem suas faltas podem ser pri- Partindo da cristalização dessas concep-
vatizadas. Os atos destes são atos da própria ções, a responsabilidade do Estado assume um
entidade pública e, por contingência, é esta a caráter de instituto exclusivamente de Direito
autora dos danos infligidos a terceiros. Público lD, sob os preceitos do risco integral,
4.4. Fase da responsabilidade objetiva do formando a responsabilidade objetiva do Esta-
Estado do, bastando O mero nexo causal entre o dano e
Após o dominio das teorias privatisticas, a conduta estataL. Como proclama Velloso,
finalmente a responsabilidade do Estado é pos- "segundo essa teoria, o dano sofrido
ta e equacionada em tennos de Direito Público. pelo individuo deve ser visualizado como
Como marco para esta separação, aponta-se o conseqüência do funcionamento do ser-
famoso caso Blanco (1873), no qual os julga- viço, não importando se esse funciona-
dores, rejeitando as prescrições do Código Ci- mento foi bom ou mau. Importa, sim, a
vil de Napoleão, utilizaram--se dos postulados relação de causalidade entre o dano e o
publicísticos, como únicos, necessários e sufi~ ato público". lJ
cientes para a resolução dos casos em que o
Estado figura como causador de danos aos ad- Pela teoria do risco objetivo figura o enten-
ministrados. dimento de que ao lesado não interessa conhe-
cer o responsável pelo dano, ete almeja o res-
Em verdade, esta decisão refletia a tendên- sarcimento, desde que restabelecido o nexo
cia que se descortinava na doutrina administra- causal entre ele e o Estado. O dano exige repa-
tivista (000 Mayer, Duguit), com o aparecimen- ração porque produz desequilíbrio no patrimô-
to das novas idéias sobre o dano anormal e o nio do prejudicado 12 •
risco, como fundamentações para as pretensões
ressarcitórias dos entes públicos, o que ense- Para compensar a desigualdade individual
jou como natural evolução as construções dog- sofrida pelo lesado, todos os demais compo-
máticas sobre a responsabilidade objetiva do 10 Com muita propriedade, Zanobini, ao afinnar:
Estado. "(...) la responsabilità delta Stato assume il suo pro-
Duguit fazia ver na idéia de segu~ança soci- prio carattere di istituto di diritto pubblico, bll.sll,to
al a razão para proclamar a rejeição da faute du fondamentalmente sopra principi generali comuni ad
service, defendendo um dever indenizatório ogni branca deI diritto, ma rego lato nei particolari da
total do Estado sempre que os serviços públi- proprie norme, decisivamente distinte da quelle di
diritto privato. Secondo una parte di questa piil re-
cos causem (mesmo funcionando bem) danos cente doutrina, la responsabilità dello Stato sarebllC
aos administrados. Tal segurança social traz unica e retta, in ogni caso, dai detti principi di diritto
ínsita a crença na formação de uma caixa cole- pubblíco". (1947, p. 262).
tiva, a ser usada em proveito daqueles que so- II (1987, pp_ 237-8).
frem um prejuízo. 12 "A teoria do risco administrativo faz surgir a
Via-se, assim, motivos de justiça e de eqüi- obrigação de indenizar o dano, do só ato lesivo e
dade na pretensão de ressarcimento, por serem injusto causado à vítima pela Administração (...).
sacrifkios desigualmente impostos a um ou Aqui não se cogita da culpa da Administração ou de
vários cidadãos em proveito de toda a coletivi- seus agentes, bastando que a vitima demonstre o fato
dade, pouco importando o caráter Licito ou ilíci- danoso e injusto ocasionado por ação ou omissão do
poder público". MEIRELLES (1988, p. 548).
nentes da comunidade devem concorrer para a compativel com o preceito constitucional, teria
reparação do dano, através do erário público. O sido vetado por inconstitucionalidade. Nde fixa-
risco e a solidariedade social são, pois, as ba- se, somente, a presunção de culpa Jure et de
ses desta teoria, as quais, pela objetividade e jure das pessoas administrativas. quando o
repartição dos ônus e encargos, conduzem a dano provier de fatos ilegais de seus represen-
uma justiça distributiva, posto que a Adminis- tantes 14 •
tração age em prol do interesse público. A Constituição Federal de 1934, em seu art.
5. A responsahilidade do Estado no direi- 171, preceituava, a1émdadetiniçllodcumacul-
to constitucional brasileiro pa lato sensu para a responsabilizaçAo estatal,
O Estado brasileiro independente, consti- a responsabilidade solidária do agente público
tucionalmente organizado, não conheceu a te- com a Fazenda, devendo ambos serem deman-
oria da irresponsabilidade do Estado. É princi- dados juntos.
pio constante de todos os textos constitucio- "Os funcionários públicos sIo res-
nais brasileiros, o da responsabilidade do Esta- ponsáveis solidariamente com a Fazen-
do, com as variações ofertadas pela própria da Nacional, Estadual ou Municipal, por
evolução dantes descritas. quaisquer prejuizos decorrentes de ne-
gligência, omissão ou abuso no exerci-
A Constítuiçilo imperial de 1824, em seu 8ft cio dos seus cargos.
179, item 29, estabelecia o princípio da respon-
sabilidade subjetiva, exclusive o imperador, que § 1°. Na ação proposta contra a Fa-
era irresponsável, confonne dispunha o art. 99 zenda Pública, e fundada em lesIo prati-
da mesma: "a pessoa do Imperador é inviolável cada por funcionário, este será sempre
e sagrada: ele não está sujeito a responsabili- citado como litisconsorte.
dade alguma", numa cima reminiscência do bro. § 2°. Executada a ação contra a Fa-
cardo inglês the King can do no wrong. zenda, esta promoverá execuçlo contra
"Os empregados públicos são estri- o funcionário culpado."
tamente responsáveis pelos abusos e Com este dispositivo, não conseguiu Ocons-
omissôes praticados no exercício de suas tituinte alcançar o seu intento de beneficiar o
funções, e por não fazerem efetivamente erário público, na medida em que acobrança ao
responsáveis os seus subalternos". funcionário, pela Administração, da sua cota
Aprimeira Constituição da República (l891), dodébilo, só poderia ser realizada de acordo com
no seu art. 82, repetiu, com pequenas altera- as normas atinentes à solidariedade passiva.
ções, o preceito imperial, rnantendo-se na mes- Este dispositivo foi mantido na Carta Cons-
ma linha da culpa subjetiva do agente público. titucional outorgada em 1937, 11Oart. ISS. perma-
Segundo alguns autores, havia uma solidarie- necendo, assim, a responsabilidade solidária
dade do Estado em relação à culpa subjetiva
dos agentes, mas é uma tese pouco confiável, A grande inovação legislativa, no que con-
pois não é esta a interpretação que se infere da cerne à responsabilidade do Estado, veio no
expressão "(...) são estritamente responsáveis", bojo da ConstituiçAo Federal de 1946, que, em
empregada para os agentes públicos. seu art. 194, acolheu a teoria do risco adminis-
trativo e expurgou a figura da solidariedade.
"Os funcionários públicos são estrita- Com esta. foram inaugurados no sistema posi-
mente responsáveis pelos abusos e omis- tivo pátrio os institutos da responsabilidade
sões em que incorrerem no exercício de objetiva e a ação de regresso contra o funcio-
seus cargos, assim como pela indulgência nário que tenha agido com culpa.
ou negligência em não responsabilizarem
o. As pessoas juridicas de direito pú-
efetivamente os seus subalternos".
blico interno são civilmente responsáveis
Como se lê, o teor indica claramente um ca-
ráter subjetivista da responsabilidade, com pro- tantcs que nessa qualidade causarem danas a tercei-
pensões para a teoria da culpa, como era a prá- ros, procedendo de modo contrtrio ao direito ou fal-
tando ao dever prCllCrito por lei, salvo o direito re-
tica. Todavia, o Código Civil de 1916, no seu gTeSllivo contra os causadores do dano".
art. 15, passa a configurar a responsabilidade
civil como sendo do Estado l ) e, caso fosse in- •• Mas isso não é assim tio pacifico. "NIo é fiei!
aproximar este artigo a nenhuma das teorio.s do direi 6

13"As pessoas jurldicas de direito público são to público, que deixamOll assinaladas. mo faz a1us1o
civilmente responsáveis por atos dOll seus represen- à culpa. Nilo se inclina para a doutrina do risco intc-

R."'.t. fi• •nror....._ I."'.'at',,.


pelos danos que os seus funcionários A publicização é a realidade mais palpável da
nessa qualidade, causarem a terceiros. ' nova era do jurídico. na qual o privado passa a
Parágrafo único - Caber-Ihe-á ação ter um comprometimento maior com o coletivo
regressiva contra os funcionários cau- e o Estado, em contrapartida, se mostra, além
sadores do dano, quando tiver havido de um dominador, um protetor dos direitos indi-
culpa destes." viduais e um partícipe leal na busca do bem
Semelhantes disposições foram fixadas na oomum.
Constituição Federal de 1967, no seu art. 105, É notória sua relação com o princípio da
parágrafo único: igualdade, na medida em que é conferido ao
"As pessoas jurídicas de direito pú- particular o direito de ser tratado igualmente
blico respondem pelos danos que os seus sob iguais circunstâncias e de exigir do poder
funcionários, nessa qualidade, causarem público que as desigualdades motivadas pelo
a terceiros. Caberá ação regressiva con- interesse público sejam compensadas median-
tra o funcionário responsável, nos casos te reintegração patrimonial.
de culpa ou dolo." Sob esta ótica, o princípio da responsabili-
A Emenda Constitucionaln.o I, de 1969, em dade do Estado toma nuanças de inerência ao
seu art. 101, basicamente, repetiu o texto prece- próprio conceito de Administração Pública, tor-
dente. nando-a uma Administração responsável, dili-
gente e criteriosa, porque isso faz a ressonância
Quanto à Constituição Federal de 1988, mai- do grau de comprometimento do Estado com re-
ores considerações pormenorizadas serão apre- lação aos administrados, de proteção efetiva aos
sentadas em páginas ulteriores, às quais reme- direitos destes: no sentido de não permitir que
temos o leitor. qualquer lesão sofrida em decorrência de suas
6. Sobre a responsabilidade objetiva do atividades na gestão da res publica seja imuniZJl-
Estado da de uma imediata e condizente reparação.
6.1. A responsabilidade estatal como prin-
cipio de direito público Assim, a responsabilidade do Estado é um
princípio de direito público do qual emanam
Como princípio de direito público, da res- normas que embasam e orientam as atividades
ponsabilidade do Estado exsurgem regras em administrativas, em respeito aos administrados.
consonância com o regime que lhe é próprio e 6.2. Relevância constitucional da respon-
só supletivamente faz-se preciso tuna recorrên- sabilidade do Estado
cia às regras de direito civil.
O princípio da responsabilidade do Estado
É da praxe doutrinária, um excessivo apego aparece como a ultima ratio do adminístrado
aos ditames privatisticos para resolver proble- para obter do Estado de direito a reparação de
mas de direito público. Esta prática vem per- lesões sofridas proveníentes da atuação deste.
dendo espaço, mas não de todo. É comum ver- Como diz Canotilho.
se civilistas que se arvoram da pretensão de
dizer sobre a responsabilidade civil (sic) do "a responsabilidade por ilicitos não tem,
Estado, cometendo, já do titulo adotado, seu desse modo, a função estática de uma
veio de incoerência. reparaçãopatrimoniaI: constitui uma au-
O principio da responsabilidade estatal en- têntica garantia com o mesmo valor e
contra-se adstrito ao que representa mais de natureza idêntica ao de outras constitu-
perto o Estado de direito social contemporã- cionalmente consagradas" 16.
neo, com os lastros do condicionamento da Em tal dimensão, ele aparece positivamente
perspectiva democrática U e interativa, Estado e plasmado nos modernos textos constitucionais
socíedade, na busca dos interesses coletivos. corno um princípio apto a nortear a ação do Es-
gral, porque condiciona a indenização a ter sido o
tado, que já não se limita simplesmente a prover
dano cauudo pot procedimento conlTório 00 diTei- wna proteção fonnaI aos cidadãos, na busca de
lo, ou comlalta a dever prescrito por Id', como diz uma significação material de tutela vioculantetan-
Masagio (p. 302). 10 para a Administração como para o legislador.
ISComo assinala Rocha (1991, p. 83), ''Na base
de um sistema jurídico democrático conjuglUll-lle os como pilares de sustentação e matizamento ideológi-
principios da garantia da liberdade individual, da le- co da nonnativização positiva".
galidade, da responsabilidade e da igualdade juridica 16cANOmHO (1974, p. 132).
...",••. 32 n. 1a ...Jj.... 1N5
Isto faz implicar à noção de Constituição Este dispositivo tem a felicidade de ampliar
algo mais que um documento formaI, uma força o âmbito das pessoas que podem vir a fonnar
viva e vigorosa de princípios e regras compro- sujeito passivo da responsabilizaçAo objetiva,
missadas com o direito dos administrados, de alargando-se às pessoas de direito púb!ico e ~
tal modo efetiva e vinculante, a dispor que as de direito privado prestadoras de semços pu-
atividades das funções administrativas, legis- blicos.
lativas ejudiciais, axiologicarnente guiadas por 6.3.A natureza da responsabilidade extra-
suas formulações, sejam desenvolvidas sem contratual do Estado
prejuízos aos particulares, individualmente.
Imperioso demarcar a natureza da reponsa-
A norma do art. 37, § 6.° da Constituição bilidade extracontratual estatal, se é compensa-
Federal de 1988, segundo a qual "as pessoas tória, reparntória ou sancionatória. De imedia-
juridicas de direito público e as pessoas.iur,idi- to faz-se necessário tirar a limpo qualquer c0-
cas de direito privado prestadoras de servIçoS gitação quanto a uma possível natureza sanci-
públicos responderão pelos danos que seus onatória aos atos estatais que induzem a res-
agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, ponsabilização, porque esta tem função ape-
assegurado o direito de regresso contra o res- nas de restauração do direito violado, de re-
ponsável nos casos de dolo ou cul~," nã~ se composição dos prejuízos acarretados pela ação
dispõe como uma n0Tll1;3 programátlca ~u S,II~­ do Estado. Não se cogita de uma puniçilo ao
bólica l1, antes, concretlza-se em um pnnclplo Estado, mas de proteção ao direito do P3;fticu-
de eficácia plena, materialmentevinculante para lar afetado, mediante o devido restabelecamen-
o Estado e todos aqueles que dele recebem ser· to do status quo ante do patrimônio lesado ou
viços outorgados ou delegados, para se.rem de refazimento do mesmopor meio de wna com-
cumpridos em seu nome e por sua conta e nsco. pensação pecuniária.
Trata-se mesmo de um direito subjetivo do ad-
ministrado, a legitimação para ser indenizado Os atos estatais de cuja prática ou omissIo
toda vez que o Estado cause danos ao seu pa- induzem a responsabilidade podem ser Ucitas
trimônio através de atividade estatal ou por ou ilícitos e, a partir da composição de cada um.
quem faça suas vezes. pode ser condicionada a responsabilizaçAo do
Estado. Assim, para o dano decorrente de ato
O Estado submete-se, então, através da Fa- estatallleito. a recomposiçilo patrimonial deve
zenda Pública, a compor o dano causado a ter- ser feita mediante compensaçilo, haja vista a
ceiros por agentes públicos, no desempenho necessidade de reequiUbrio da situaçAo jurldi-
de suas funções ou a 'pretexto de exercê-las. E ca do particular. Aqui o dever de reparar é uma
não poderia ser diverso. Os ag~te~18 do Esta- decorrência do princípio da legalidade, numa
do no cumprimento de suas atribwções, rece- forma de restaurar a legalidade dantes violada
be~ a parcela de poder necessária para bem e por uma ação comissiva ou omissiva; en~­
fielmente cumprir a vontade do Estado. Somen- to que o cometimento ilIcito requer o ressarct-
te os agentes públicos, incubidos do desempe- mento de natureza reparatória, porque neste
nho de função estatal, portanto, que atuem nes- aparece uma derivação de retratação estatal sol?
ta condição, possuem o condão de pôr o Esta- a forma de espécie pecuniária. Busca-se 8QUl
do numa circustãncia indenizatória l9 •
do Estado de indenizar administrados por motivo
Para uma diferença entre ambas, ver: NEVES
17 de sacriflcios, impostos pela ordem juridica, de cer-
(1994, pp. 102-4), tos interesses privados, como a desapropriaçlo e
outras limitações públicas à propriedade ou cco~
U Agente público aqui entendido em sua forma
mÍC8ll. Faz-se necessário uma violaçio, direta ou 10-
lato sensu, ou seja, compreendendo toda;s as pessoas diretamente (caso dos atos ilicitos), ao bem ou dírei-
fisicas que participam das funções estatais, em modo
to alheio. O sacriflcio, o debilitamento de um bem,
pennanente, temporário ou acidental" seja por a!os atividade ou direito, legalmente autorizado, ~ tem
juridicos, seja por a~ ~ ordem,técrnca.e maten~, capacidade para estabelecer uma responsa~IIIZllÇ.1o
aplicados seja na adm~mstraçi~ ~Ireta, lleJa ~ admt- do Estado, face aos principias da preva1mcla ~ m-
nistração indireta, scJll nas ahvtdades polítiCas do teresse público sobre o privado, da S~~macl~ da
Estado. Sio estes, portanto, os sujeitos capazes de Administraçlo c da legalidade. Ademais, Im.penoso
provocarem um comprometimento ressarcitório do
salientar que toda limitaçio pública ~ CO!lSlgo, em
Estado, quando atuarem na qualidade de agentes pú- regra, prévia e justa indenizaçlo em dmhelro. Sobre
blicos. esta relação, ver a excelente monografia: ROCHA
19 Isto nio se confunde com a obrigaçAo, a cargo (1991, pp. 85-6).
mais que uma restauração da legalidade, a res- das pessoas jurídicas que lhe representem, e
tauração da igualdade entre os administrados, que determina, direta ou indiretamente, a ocor-
de distribuição dos ônus e encargos sofridos rência danosa. Assim, a causa, para se consti-
pela atuação do Estado. tuir,juridicamente, na razão de ser do dano, deve
6.4. Motivos ensejadores da responsabili- ser idônea e suficiente à produção do resultado
dade do Estado havido como antijurídico, além de representar
Quais os cometimentos estatais que pode- uma inerência a um cometimento estataL
riam autorizar a reparação em tela? Dá-se a responsabilização por atos licitos,
Para configurar a responsabi Iízação e a ine- nas hipóteses de legíti mo exercício do poder do
xorável reparação, imperioso que estejam pre- Estado que acarreta indiretamente, como simples
sentes três elementos basilares: o antecedente, consequência, uma lesão a direito privad02 l .
o conseqüente e o nexo causal entre estes, em- Mas paralelo a estes, existem inúmeros da-
basado pela teoria do risco administrativo. O nos causados pela Administração por falha de
antecedente seria o ato unilateral da Adminis- máquina, como aponta Cretella Ir., sem que os
tração - causae; o conseqüente, por sua vez, o mais modernos métodos da técnica descubram
dano, o prejuízo sofrido pelo administrado; e o a origem da imperfeição e sem que se prove a
nexo causal entre ambos, o caracterizador da existência da força maior. Falhas de computa-
relação causa-efeito, demonstrativo da inerên- dores, queda de aviões militares, enfim, falhas
cia do efeito à causa, que sem o mesmo, o dano de máquina, sem culpa ou dolo dos agentes
não teria ocorrido ou não teria ocorrido como públicos.
ocorreu. 6.4.2. Conseqüente - o dano indenizável
6.4.1. Antecedente - o fato administrativo É de ressaltar que não é qualquer dano que,
A lesão ao bem jurídico do administrado posto em correlação com a ação estatal, dá mar-
deve ter sempre a origem em um fato adminis- gem à indenização. Para que sobreexista sua
trativo, um ato administrativo licito ou ilicito, idoneidade de vincular-se à atuação do Estado,
comissivo ou omissivo, praticado por um agen- para fins de reparação, mister que se apresen-
te público no desempenho de suas funções. tem duas características:
A partir da Constituição Federal de 1946, - que o dano corresponda à lesão a um di-
como se viu, é positivada a responsabilidade reito da vítima;
objetiva. - que seja certo e possível.
A objetividade significa a exclusão da no- Inconteste, somente quem teve um direito
ção de culpa da responsabilização pela ação ou lesado pode questionar uma pretensão de in-
omissão, sendo a teoria do risco fundada na denização, direito este reconhecido e garantido
relação de causalidade entre o evento e o dano. pela ordem jurídica. E não basta a mera lesão
Com isso, a teoria do risco tende a bastar-se econômica, a depender do caso!!. O fato de
nos limites dos seus pressupostos, indepen-
dentemente de q"Ualquer elemento psíquico ou l\Neste sentido, MELLO (1992, p. 322).
volitivo. 22 Definitivamente, não é qualquer perturbação
A exemplo, o dano causado em decorrência que se abata sobre o indivíduo, emanada do Estado,
do defeito apresentado em semáforo que, con- que seja suficiente para gerar um dano ao particular,
comitantemente, faz sinal de livre tráfego para que deve ser motivo para indenização. Como escreve
duas vias em cruzamento. Cabe aqui a respon- Garcia de Enterill: "el conceplo de lesión patrimonial
sabilização objetiva, independentemente da se convierte de este modo en eI basamento mismo dei
comprovação de culpa do funcionário respon- sistema (... ). Conviene eomenzar por distinguir el
sável pela manutenção do mesmo. concepto jurídico de lesión dei concepto vulgar de
peIjuieio. En este último sentido, puramente econó-
No plano da responsabilidade objetiva do mico o material, petjuicio se entiende un detrimento
Estado, o dano sofrido tem como causa o fato patrimonial qualquiera. Para que exista lesión resar-
proveniente do desempenho de atividade ine- eible se requiere, sin embargo, que esc detrimento
rente às suas funÇÔes2D. Causa, aqui, é a ação, patrimonial sea antijuridico, no ya porque la condue-
ta de su aetor sea contraria ai derecho (antijuridíeidad
cornissiva ou omissiva, lícita ou ilícita, dolosa subjetiva), sino, más simplemente, porque el sujeto
ou culposa, jurídica ou material do Estado ou que lo sufre no lenga el deber jurídico de soportalo
20Ver: CABALI (1982, p. 115); CAVALCANTI (antijuridicidad objetiva)." Com fulcro nesta noção
(1964, p. 394). de dano antíjurídico e econômico, o autor em tela

• , . .ma a. 32 n. 128 abrJlun. 1MS


fechamento de uma repartição pública da qual motivo ensejador do dano. Desta forma. dá-se
um dono de bar fazia a sua principal freguesia. relevância de ação à conduta omissora e esta-
não se mostra plenamente habilitado para ser- belece-se o vinculo necessárioe suficiente para
vir como pretensão de responsabilização face à a devida recomposição do patrimônio lesado.
pessoa estatal à qual penencia a repartição. 6.4.4.A teoria do risco
A apuração objetiva da responsabilização A teoria do risco compona duas possibili.
deve partir de um dano cometido pelo compor- dades: O risco integral e o risco administrativo.
tamento do Estado que possua como bemjuri- O risco integral é a teoria de mais simples
dico atingido um direito assegurado pela or- construção, uma vez que se esgota na simples
dem juridica estatal. relação causal entre o dano e o motivo. Esta
Quase que por derivação deste pressupos- teoria é geralmente denominada de brutal, por
to, o direito deve ser certo e possivel. Tanto não admitir temperamentos, indagações sobre
pode ser atual como futuro; o imponante é que a existência de culpa etc.
seja certo, determinável e real, com poSSIbilida- A do risco administrativo é mesmo um
de de valoração econômica e individualização abrandamento da sua potencialidade objetiva,
em relação a uma pessoa ou grupo de pessoas. concretizada em uma adaptaçlo da teoria do
6.4.3. Atos omissivos risco às e:<igências do direito administrativo.
No que concerne aos atos de omissão do Esta postura implica no entendimento racional
poder público, a Constituição deu tanta impor- de que a Administraçao não tem o dever de
tância que inseriu um dispositivo próprio, a in- indenizar sempre o dano suponado pelo parti.
constitucionalidade por omissão, e uma garan- cular, devendo-se observar a existência ou do
tia in~dual exclusiva. o mandado de injun- de possiveis excludentes da responsabilização.
ção. E porque a figura do Estado de direito faz A culpa da vitima e os demais fatores circun·
pressupor a presença de um Estado responsá- dantes do fato devem ser apreciados em con-
vel e dotado, antes do poder, do dever de reali- creto e valorados conforme a importância para
zar o que lhe impõe a lei. NaturaJmente, só com a descaracterização, ou não, da pretensIo res-
base em um texto legal se pode aferir a omissão san::itória
da Administração. Neste aspecto, faz-se impres- No risco administrativo a vitima continua
cin<tivel uma análise teleológica entre o texto dispensada de prova de culpa da Administra·
normativo reclamado e a realidade fática pela ção, mas sem implicar numa iIXlenizaçao ilimita-
qual se discute a omissão. da (sempre e em qualquer caso), podendo o
A relação entre a causa omissiva e o efeito poder público demonstrar, por sua vez, a culpa
danoso deve ser vinculante e suficiente para a total ou parcial da vítima pelo evento cJanoso2l,
caracterização da pretensão indenizatória, pos- ou mesmo a presença de qualquer uma das de·
to isso dentro de padrões conjunturais sufici- mais excludentes da pretensão de ressan:imento.
entes para possibilitar a ação do Estado. Estes O risco administrativo tem sido acompa-
padrões conjunturais são imprescindiveis na nhado pela doutrina dominante e pelajurisprn-
medida em que não se pode firmar um nexo cau- dência prevalecente como sendo a forma de
sal objetivo entre as condutas omissivas do manifestação que melhor expressa o significa-
Estado e o resultado danoso. O que há, em ver- do do principio constituci~nal da responsabili-
dade, é um nexo relacional entre este resulta- dade objetiva do Estado. E a que, sem dúvidas.
do e a conduta estatal previamente estabele- enquadra melhor a perspectiva democrática e
cida por lei, da qual omitiu-se o Estado. As- republicana de gestJo dos bens, atividades e
sim, o Estado responde não por ter sido o cau- interesses públicos. Não seria razoável um alar-
sador do dano, in concreto, mas porque não gamento desmedido da responsabilidade obje-
realizou a conduta à qual estava obrigado - tiva do Estado, devendo a mesma ser balizada
por critérios de proporcionalidade da panicipa-
finca sua concluslo no sentido de que, qualquer que ção da culpa da vitima e, ou, eventos exteriores
seja a causa da imputaçlo, desde que seja um dano que, por si mesmos, sejam aptos a excluir do
antijuridico que reúna os caracteres de efetividade, Estado o nexo causal.
possibilidade de valoraçlo economicamente apreciá-
vel e individualizaçio em relação a uma pessoa ou Justifica este posicionamento a necessária
grupo de pessoas, a Administração obriga-se à rcs- equivalência de ônus e encargos entre os admi-
ponsabilizaçlo. GARCIA DE ENTERíA; FER-
NANDEZ (1991, p. 100). 13 MEIRELLES (1988, p. 549).
nistrados, mediante uma espécie de justiça dis- Estes elementos possuem o condão de in-
tributiva, pela qual devem ser repartidos pro- terferirem no nexo causal, descaracterizando-o
porcionalmente entre todos os prejuízos cau- ou reduzindo seus comprometimentos face à
sados a um específico individuo em função da conduta estatal.
coletividade. Em contrario sensu, portanto,jus- A instrução probatória da relação de causa-
titica-se que a mesma coletividade não possa lidade deve ter como pre-estabelecido que, para
arcar com a reparação de danos causados por a caracterização da responsabilidade do Esta-
culpa do próprio lesado. Seria uma verdadeira do, são relevantes todos os antecedentes do
contraditio in terminis com os preceitos acima resultado danoso, de tal modo que nenhum ele-
referidos. mento implicado na sua produção seja excluído
Por tais motivos, pairam no inaceitável as de apreciação.
proposições que inferem do principio constitu- Para tanto, pode-se, com toda idoneidade,
cional vigente uma postura de estrita respon- utilizar O método penaUstico do procedimento
sabilidade do Estado - risco integral- pela qual hipotético de eliminação de Thyrén, pelo qual
todo e qualquer dano causado aos administra- epossível relacionar uma causa a uma conse-
dos deve ser indenizado incontinenti. Labora qüência, quando, toda vez que se suprime men-
em erro quem pensa nestes termos. talmente um elemento, pode vir a resultar na
Apreciando cum granis salis o dispositivo inexistência da conseqüência danosa, tal como
constitucional, a irrestrita responsabilídade ocorreu. Assim, a conduta estatal deve ser con-
objetiva está correlacionada com a causa que ditio sine quo non para configurar a sua res-
dá origem ao dano, no sentido de uma univer- ponsabilização.
salidade de motivos, seja o ato lícito ou ilícito, Entre as hipóteses que podem determinar
material ou juridico, comissivo ou omissivo, fa- tal exclusão de responsabilização, encontram-
lha de máquina, erro judicial etc. Mas o que se: a culpa da vítima, culpa de terceiro, força
importa para a canlCterização da reparação é maior e o estrito cumprimento do dever legal
justamente o nexo de causalidade efetivo entre face a um estado de necessidade.
uma das hipóteses dessa universalidade e o 6.5.1. Culpa do lesado
dano ocorrente. A teoria do risco administrati- O fato do Estado não questionar sobre a
vo põe-se precisamente no ponto de causalida- existência de dolo ou culpa nas suas ações para
de, de forma equivalente, proporcional e res- fins indenizatórios, nos termos de responsabi-
ponsável, para a ponderação sobre a existên- lidade objetiva, não implica na eliminação do
cia, ou não, da efetiva conexão: ou melhor, na dever funcional que a Administração possui,
observação quanto à presença, ou não, de ex- em decorrência do múnus público que lhe é ine-
cludentes de responsabilidade. rente, de realizar um procedimento para aputar
Assim, somos pela interpretação que vê, no o fato gerador do dano. Tampouco, na desne-
bojo do art. 37, § 6.", a teoria do risco adminis-
cessidade de verificação de existência de dolo
trativo, por ser a que se coaduna efetivamente ou culpa do administrado.
com os demais princípios consagrados na Cons- Comprovado que o administrado concorreu
tituição2~, porque, a principio, e somente a prin-
para o falo por dolo ou culpa, exime-se a res-
cípio, todo e qualquer dano é reparável, salvo ponsabilização da Fazenda Públíca23 , total ou
possíveis excludentes de responsabilidade. parcialmente, a depender da participação da
6.5. As excludentes de responsabi/ização conduta estatal no evento.
objetiva do Estado O que se faz importante observar é a relação
Como ventilado, em determinados cometi- causal, pela qual se analísa a conduta estatal
mentos danosos ao patrimônio particular, com como suficiente e necessária para provocar o
a presença, direta ou indiretamente, do Estado, dano tal como ocorreu, mesmo que parcialmen-
segundo a teoria do risco administrativo, cer- te. O que vai definir a proporção participativa e
tos elementos circunstanciais são suficiente- o grau de vinculação do Estado com o evento
mente capazes de excluírem, total ou parcial- 2.1 Daí dizer com propriedade eahali (1982, p.
mente, a responsabilidade do Estado. Formam 40): "o dano nil.o se qualifica juridicamente como
eles o que denominamos de excludentes de res- injusto, e como tal nio legitima a responsabilidade
ponsabi/ização objetiva. objetiva do Estada, se encontra a sua causa exclusiva
no procedimento doloso ou gravemente culposo do
24 Assim, VELLOSO (1987. p. 242). próprio ofendido".

.....11••• 32 n. 128 . . ../1.... 1N5 241


danoso é o próprio caso concreto, que varia tos de grave pertUlbaçãO que, por suas mani-
deveras, principalmente quanto ao momento da festações e conjuntura, faz imprescindivel a
conduta estatal, se é o fundamento e encontra- ação do Estado para restabelecer o status quo
se na gênese do fato ou se contribuiu apenas ante. Para estes casos, a ação do Estado só
para o agravamento do dano. pode ser imputada para fins de responsabiliza-
Mas se tenha presente que a definição dos ção quando implicar em atos i1icitos~, excesso
niveis de participação da vítima nem sempre é ou desvio de poder exercidos pelas autorida·
muito clara, de modos que, na prática., têm-se des. A predominância do interesse geral sobre
admitido a mesma como excludente apenas nos as conveniências e meros interesses pessoais.
casos de completa eliminação da concorrência nestes casos, excluem o dever de indenizar 0b-
de conduta estatal. Nos casos em que existam jetivo do Estado.
dúvidas sobre tal inexistência, resolve-se pela Realmente, na execução das ações para re-
responsabilização exclusiva do Estado. primir a grave perturbação, enoontmr-se-ão pre-
6.5.2. Culpa de terceiros sentes todos os elementos necessários para a
Para os casos em que não concorrem a con- caracterização da responsabilização, mas o in-
duta da vitima nem a do Estado, mas de um teresse coletivo elide a pretensão ressarcitória
terceiro alheio, para que o resultado tenha se do particular, como nos casos de defesa do Es-
configurado em um dano, não há que se falar tado e das instituições democráticas, neutrali-
em responsabilização do Estado, desde que tal zando o nexo causal.
ação do terceiro não seja de possivel neutrali- 7. Do direito de regresso
zação por parte do Estado dentro de certos cui- De acordo com a teoria do risco, inerente ao
dados e previsibilidades. principio da responsabilidade objetiva do Esta-
Assim, como a conduta do Estado é excluí- do, a reparação da vítima tem como pressupos-
da do nexo reJacional, por ação de um terceiro lo apenasmente o nexo causa] entre o evento
estranho à relação posta entre o administrado danoso e a conduta estatal. 'krificada are1açlo
lesado e o Estado, excluida está, também, qual- de causalidade, sem a presença de possíveis
quer pretensão indenizatória contra o Estado. excludentes de responsabilização, a indeniza-
A exemplo, um preso que, ao terminar seu ção à vitima deve ser realizada incontinenti.
tempo de carceragem, no momento da saída da Todavia, resetva-se ao Estado o dever-poder
penitenciária, mesmo com os cuidados de vigi- de regresso da Fazenda Pública contra o agen-
lância da guarda carcerária, é atingido por tiros te27 que deu causa direta ao cometimento dano-
de fuzil, dotado de mira telescópica, desfecha- so para que omesmo, compruvada sua participa-
dos por um familiar da sua vitima de assassina- ção dolosa ou culposa, recomponha o erário no
to, posicionado a longa distância. quanfum dispendido pela referida i~.
6.5.3. Força maior
~ Art. 141, CF: "Cessado o estado de defesa ou
Força maior é o acontecimento exterior, in- O estado de sitio, cessario também seus efeitos, sem
dependente da vontade humana, dotado de ní- prejuizo da responsabilidade pelos iJlcitos cometi-
tido caráter de imprevisibilidade, inevitabilida- dos por 9CWi executores cu agenms."
de e irresistibilidade. O fato é estranho à con-
17 A rcspoflsabilizaçlo civil perante a Fazenda
duta do Estado, porisso nâo se confisura qual- nlo afasta as possíveis sanções penais c adminim·
quer relação entre o evento oriundo da força tivas, que poderio cumular-se entre si. É o caso, por
maior e a conduta estatal, cabendo a exclusão, exemplo, dos danos decorrentes de improbidade ad-
salvo se poderia contriblÚr para prever, evitar e minismttiva, aplicaçio irregular de dinheiros públj..
resistir ao mesmo com eficácia. <:os, lesA0 aos cofres públicos e dilapidaçlo do patri.
Não se diga o mesmo, contudo, para o caso mônio nacional ou corrupçAo, que, além do l'CSSIJCi·
fortuito. Deste não se isenta o Estado de res- mento ao erário, concorrem &li penalidades adminis-
ponsabilização, porque o mesmo provém sem- trativas de dcmisslo ou dcstituiçAo de cargo em co-
misslo, além das cominaÇÕCll penais atinentes aos
pre de um mau funcionamento, de uma causa crimes contra a AdmínistJaçlo Pública.
interna, inerente ao seu próprio serviço. IncllÚ-
~Como diz com propriedade Rocha (1991, p.
se, assim, no risco do serviço.
118): "refoge qualquer dúvida que nIo deve a socie-
6..5.4. Estrito cumprimento do dever legal dade ser onerada pelo pagamento de indenizaçio de-
face a um estado de necessidade vida e aperfeiçoada pela pessoa estatal, quando o
O estado de necessidade ocorre em momen- dano decorreu do comportamento culposo-doloso
ou por culpa 'micto lICRSU do seu autor"'.
A justificação adotada para a efetivação extremadas não satisfazem a resolução desta
deste dever-poder encontra-se nas mesmas ra~ celeuma. Mister apreciar cada caso isolado e
zôes éticas ejurídicas que informam a justifica- questionar pelo cabimento ou não do regresso
ção da indeni7.ação aos particulares lesados por em forma de denunciação da lide.
atos estatais. Se é justo que o administrado não Atentando para os pressupostos materiais
deve arcar com o custo de uma possível lesão supracitados. é de ver-se que a ação regressiva
proveniente de atos imputáveis a uma pessoa comporta uma relaçãojurídica exclusiva entre a
estatal, mais justo ainda é entender que à soci- pessoa estatal responsabilizada e o respectivo
edade não cabe suportar despesas oriundas de agente publico, mas isso não possui o condão
condutas irresponsáveis dos respectivos agen- de retirar totalmente a possibilidade de uma for-
tes públicos. mação de denunciação da lide na ação de inde-
Exerce o Estado o direito de regresso atra- nização, particulannente quando as condições
vés do meio processual denominado ação re- e a natureza do dano apontam, de imediato, sem
~recer grandes indagações, a culpa do agente.
gressiva, que nada mais é que o direito subjeti-
vo público do Estado de exigir do agente culpa- E bem natural que, mesmo neste caso. a indeni-
do o valor correspondente ao que foi gasto com zação à vítima far-se-á pelo Estado, mantendo-
a indenização. Os pressupostos materiais des- se o agente responsável perante a pessoa jurí-
te direito são: dica a que serve, unicamente.
Segundo VeJloso30, O STF sempre entendeu
. prévia condenação da pessoa estatal (pú- que a ação fundada em responsabilidade objeti-
blica ou privada) à indenização de terceiros por va do Estado. por ato ou omissão do agente, não
ato lesivo do agente; comporta obrigatória denunciação a este, na for-
. prévia comprovação, em processo regular, ma do art. 70, III, CPC, para apuração de culpa,
do comportamento doloso ou culposo do desnecessária à satisfação do prejudicado.
agente. Nos casos de agentes federais, para a liqui-
Este direito de regresso, em verdade, trans- dação realizada na via executória concorrem
muda-se em um dever-poder para o Estado, dado todos os bens do funcionário culpado. Sendo
o seu regime de múnus público, de zelo da coisa estes insuficientes, as indenizações serão des-
pública, e de completa indisponibilidade, pela contadas em parcelas mensais não excedentes
Administração, dos interesses públicos. O po- à décima parte da remuneração ou provent03 1•
der de exercício do direito de regresso está, em Como ação civil que é, destinada à repara-
verdade, subordinado ao dever de fazê·lo no ção patrimonial, transmite-se aos herdeiros e
interesse da comunidade, dado que não cabe sucessores do servidor culpado, até o valor da
ao administrador qualquerjuízo de discriciona- herança recebida, como pode ser instaurada
riedade sobre a oportunidade ou conveniência mesmo após a cessação do exercício no cargQ
do regresso contra o agente culpado nem tam- ou na função, por disponibilidade, aposenta-
pouco dispor do erário público ao seu talante. doria, exoneração ou demissão.
Trata-se, em síntese, de medida assecuratória
da permanência dopatrimônio público, em aten·
dimento aos princípios da continuidade do ser-
viço público, da moralidade e da legalidade ad-
miJústrativa.
A natureza jurídica da ação regressiva é a
de uma ação civil, de rito ordinário, nos termos
do Código de Processo Civil.
Um aspecto que encontra muitas divergên-
cias é quanto ao cabimento ou não da denunci-
ação da lide, prevista no 3rt. 70, III, CPC, já na
própria ação indenizatória, a funcionar como o
direito de regresso29. Pensamos que posições
l'lSegundo MeireUes (1988, p. 556), "o funcioná-
rio não pode :lCr obrigado a integrar a ação que a vítima lO(1987, p. 245).
intenta contra a Administração, mas pode, voluntaria- JJRegime Juridico dos Servidores Públícos Ci-
mente, intervir corno 8ll8istente da Administração". vís da União, arts. 46, 121-126, 136.

ara.ilhl •. 32 n. 1 . ""'./Jun. 1f1f15


A legitimação do Parlamento para a
função fiscal

IRIS Eum TElX[lRA NEVES DE PINHO TAVARES

Se, como disse Bodin, "o Estado é o reto


governo das famílias e daquilo que lhes é co-
mum" e se, como quis Maquiavel, a virtil do
governante está em usar artificios para tornar
seu povo o mais fetiz })QSsivel, a existêi\d.a do
Estado tem porjustificativa, para os adeptos da
teoria dos fins, o alcance das metas a que ele se
propõe: isto é, a existência do Estado sejustifi-
ca pelos seus fins.
Os Estados, no exercício de sua atividade
política e administrativa (que algumas corren~
tes separam), propõem~se metas, cujo teor foi
analisado por diversos estudiosos, através dos
séculos, inclusive tendo sido objeto de estudo
de Aristóteles.
Toda atividade do Estado é onerosa. Os
governos, com o passar dos tempos, não des-
cobriram outra maneira mais eficiente de captar
recursos para fazer face às despesas do que a
cobrança de tributos. Bodin, considerando o
Estado a sede da potência soberana, atribui-
lhe, como prerrogativa absoluta, declarar a paz
e a guerra, dirigir a administração, julgar em úl-
tima instância e conceder a graça, cunhar moe-
das e arrecadar impostos. Nenhum governante,
nem mesmo os doutrinadores brilhantes que,
não governando, pretenderam dizer como fazê-
lo, conjeturou, sequer, a possibilidade de al~
guém governar sem cobrar impostos. A boa
administração daquilo que é comum ao povo
com objetivo de tomá-lo mais feliz - finalidade
precípua do Estado, conforme Alessandro G~
ppa11i ~ não pode presdndir do concurso da pró~
pria sociedade.
Moisés cobrou tributos (Lev. 27, 20-23);
César cobrou tributos (Lucas, 22, 20-22). A Ida-
Iris Eliete Teixeira Neves de Pinho Tavares é Pro- de Média, cujo sistema confundia o direito civil
fessora Adjunta da UFMG.

• , . .111••• 32 n. 12rS -"J}un. II1WJ


de propriedade com o direito público, viveu um político. o faz com base, sobretudo, nas consi-
periodo em que a tributação ultrapassava a pro- derações sobre a propriedade. No capitulo V
priedade material do vassalo. O sistema feudal, do Segundo Tratado sohre o Govemo, discor-
com sua dupla caraeterlstica de organização re sobre a propriedade e demonstra a apropria-
hierárquica do poder e seu conceito especial de ção, pelo indivíduo, dos bens da terra:
soberania trouxe dois novos elementos referen- "Deus. que deu o mundo aos homens
tes à relação senhor/servo. Trazendo implícito em comum, também lhes deu a razao pam
no conceito de soberania o de propriedade, que o utilizassem para maior proveito da
confundindo ou fundindo num só termo o se- vida eda própria CQ1lveniência e, embora
nhor, o proprietário e o soberano, fez com que a terra e as criaturas inferiores sejam c0-
os vassalos pagassem ao soberano um tributo muns a todos os homens, cada homem
que ultrapassava seus bens materiais, atingia tem a propriedade em sua própria pes-
sua própria pessoa e que era considerado, sem soa~ a esta, ninguém tem direito senão
questionamentos, como a ele devido. ele mesmo. O trabalho de .seu corpo e a
Na relação senhor/servo, segundo o esque- obra de suas mãos, pode--se dizer, 510
ma político de então, situou-se a forma típica de propriamente dele... Desde que esse tra-
captação de recursos destinados ao governan- balho é propriedade exclusiva do traba-
te e aqui, muitas vezes, não apenas no interes- lhador, nenhwn outro homem pode ter
se da coletividade, mas no interesse expresso direito ao que se juntou... Embora a água
ou implicito do governante. que corre na fonte seja de todos, quem
poderia duvidar que na bilha está somen-
Estabelecido, na Inglaterra feudal, o poder te o que pertence a quem a reeolheuT
hegemônico de um rei, surgiram as teorias ~ (p.20).
besianas que colaboraram para fundamentar, no
mundo ocidental, o poder absoluto dos reis, o Dai em diante, a propriedade individual pas-
qual lhes poderia atnbuir até o direito ilimitado sou a .ser objeto do interesse especifico dos
às propriedades de seus súditos. liberais que, parn resguardá-la, passaram a opor-
se às pretensões reais de, sobre ela, lançarem
Cobrar tributos foi, em certa época, prerro- suas vistas cobiçosas.
gativa real. Instado que fosse o rei por necessi-
dades verdadeiras de seu povo ou mesmo por O rei, rojo poder politicojá sofria restrições,
seus caprichos pessoais, em que se incluíam embora poucas. começou a cercar-se de cuida-
guerras e conquistaS, o povo .se via sobrecarre- dos para que a obtenção dos recursos materi-
gado com novos impostos. O soberano provia ais de que necessítava para governar nfo .se
as necessidades do Estado através dos bens tomasse causa de maiores conflitos.
de .seus súditos, aí incluídas suas vidas. Mas, mesmo antes que os doutrinadores li-
"U periado assolutistico si trova a berais expressassem eJIl palavras, sugerindo um
dover risolvere i piu gravi probleDli conteúdo jurídico pata a formação dos Esta-
deU'organízt.azioneedel1'amnistmzionidi dos, os cuidados que os indivíduos já demons-
travam com .seus direitos de propriedade, os
grandi Stati, di cui, pertanto, I' aspetto 6.-
nansiario, anche in considerazioni deUe reis, ainda na Inglaterra feudal, percebendo as
guerre frattesi, piu dispendiosi, diveniprimeiras limitações de seu poder, utili7JU'8tn-se
cosi prerninente" (MORSElLI, Emanue- de um ardil que lhes permitisse apropriarem-se
le, La dottrina deI tributo, Padova, Ce~das propriedades dos súditos, sob forma de tri-
dam, 1967, p. 24). buto, mas com o consentimento deles. Coos-
O advento dojusnaturalismoe as idéias que tnúram a história do Parlamento, que é a hist6-
desenvolveram os filósofos adeptos da incipi- ria fiscal do Parlamento.
ente corrente filosófica liberal, cujos resultados O Professor Orlando de Carvalho nos dá a
se fazem sentir até o mundo de hoje, apontaram visão de como o Par1aJllento britânico - origem
para urna nova concepção do homem e, com de todos os ParlamentoS do mundo moderno -
ela, um novo sentido ao direito de propriedade.desenvolveu a técnica de cobrar tributos, com
o consentimento dos súditos. uma vez que seus
Locke (Segundo tratado sobre o governo, pares, como elementos do povo. autorizavam o
lJ'ad. Jacy Monteiro, lliRASA, Sp, Col. Clássi- rei a tãzê·lo (O mecanismo do Governo Britdni-
cos da democracia. sld), fazendo emergir o ho- co, Os AmigosdoLiVI'O.BH, 1943).
mem do estado de natureza para, através do As origens primeiras do Parlamento britâni-
pacto, construir a sociedade civil ou o corpo
co não tiveram características de representa- ção de Estados que tivessem: a) os direitos in-
ção. Na Inglaterra saxônica, o rei fazia as leis dividuais declarados; b) a separação de pode-
com a assistência de uma assembléia de ho- re~ que garantisse o equilíbrio entre as forças,
mens prudentes, um conselho, que mais tarde evttando o excesso de concentração de poder
se transformou noMagnum Consilium. O Gran- em mãos únicas; c) a estrutura constitucional
de Co~selho, com o tempo, ampliou-se pela que garantisse a divisão de poderes capaz de,
necessuiade de se adaptarem as novas situa- em última análise, garantir os direitos.
ções às exigências que se faziam prementes. O O pano de fundo do constitucionalismo li-
rei, precisando de dinheiro, sentiu-se obrigado beral é a liberdade do indivíduo. E, corno queria
a convocar os pequenos proprietários para, sem Locke, liberdade que diz respeito ao indivíduo
perturbar-lhes autocraticamente a propriedade,
como um todo, incluindo-se aí os seus direitos
fazerem parte do conselho e aprovarem as no- referentes à propriedade.
vas taxas. Como esses proprietários eram no-
meados e distinguidos pelo rei, sentiam-se eno- . E, como cobrar tributos é uma forma de apro-
brecidos com a convocação e votavam as ta- pnação, pelo Estado, do patrimônio do indiví-
xas, sem discussão. duo, a única maneira de se executar essa tarefa
~o século XIII, Si~on de Monfort, para ga-
é a utilização do sistema proposto por Rous-
rantir arrecadação mator, convocou um número seau: fazer com que a vontade expressa pelo
de pessoas muito mais eclético: além de barões Estado sob a forma de lei seja a vontade do
bispos e cavaleiros, foram convocados repre: soberano: o povo. TrallSformar o Parlamento
sentantes das cidades amigas. "Em 1295, Eduar- na Casa de representarttes do povo; represen-
do I convocou para o Grande Conselho os ba- tantes que transformarão em lei a vontade des-
rões, os bispos, dois cavaleiros de cada conda- se ~o .de participar da gestão de si Pl'Óprio,
do, dois burgueses de cada cidade, dois habi- contnbumdo com os tril:mtos que forem devidos.
tantes de cada burgo, o prior de cada catedral, Nos Estados constitucionais que se forma-
os arquidiáconos de cada diocese e os represen- ram a partir do modelo de Constituição dos Es-
tantes do clero das catedrais e das paróquias." tados Unidos da América de 1776, a competên-
Por esta época, o Parlamento não legislava: cia de cobrar tributos se faz expressamente por
apenas aprovava medidas, grande parte das determinação constitucional.
quais referentes à tributação. Somente nos fins De fato, Hamilton (Sobre a Consti ruição dos
do século xv. com a separação das Câmaras, o Estados Unidos, Hamilton, Madison e lay, trad.
Jacy Monteiro, IBRASA, SP,1964), analisando
Parlamento, que até então se limitava a opinar
quando consultado, e somente quando consul- a faculdade de lançar impostos da Nação e dos
tado, investiu-se da autoridade legislativa, ela- Estados, admite que o Estado, à medida que
borando a lei que o rei sancionava, reservando- tem objetivos entregues: a seus cuidados e en-
se, entretanto, a faculdade do veto, dando iní- cargos cuja responsabílidade lhe cabe, deve
cio, assim, ao processo legislativo. também conter em si todos os poderes neces-
sários à consecução desses objetivos e encar-
O novo sentido de representação de que se gos. Como a renda constitui o mecanismo es-
revesti~ já o Parlame~to inglês, nos séculos que
sencial através do qual o Estado tem de conse-
se seguIram, tomou lDcremento com as idéias guir os meios de satisfazer às necessidades, a
continentais de soberania popular e da nação, faculdade de obtê-la tem que estar necessaria-
no século XVIII. Roosseau, atribuindo ao indi- mente contida na faculdade de satisfazer estas
víduo, e só a ele, a capacidade de pactuar e exigências.
percebendo a impossibilidade da presença de
todo o povo no processo legiferante, admite a Como, no caso de Hamilton, a preocupação
representação - cuja base, discutida e discutí- específica era a de justificar, fundamentar e em-
vel, é o fundamento dos sistemas políticos do basar doutrinariamente o recém-eriado regime
mundo moderno. federativo, afirma ele que "como teoria e prática
conspiram para provar que a faculdade de con-
E no mundo constitucional que se seguiu
seguir renda é ineficaz quando exercida sobre
inspirado nos ideais de liberdade e de igualda: os Estados na respectiva capacidade coletiva,
des que foram a mola das revoluções americana o Governo Federal deve, por necessidade ficar
e francesa do século XVIII, o contexto do cons- investido de poderes irrestritos de taxaçâo pe-
titucionalismo clássico estabeleceu como ga- los processos correntes" (p. 67). Assim, a últi-
rantia dos direitos dos individuos a organiza-
.r.. III••• 32n. , ......J}un. 1995 247
ma cláusula da oitava seção do Primeiro Artigo presentantes do povo brasileiro o poder de tri-
da Constituição americana autoriza o Legislati- butar. A Constituição vigente, face à forma pe-
vo nacional "a fazer todas as leis que se toma- culiar federativa de Estado. atribui a várias pes-
rem necessárias ou forem convenientes para o soas poHticas o exercício do poder de tributar.
exercicio dos poderes investidos por esta Cons- No Brasil é repartida a competência tributária
tituição no governo dos Estados Unidos ou entre a União, os Estados, o Distrito Federal e
qualquer departamento ou fimcionário destes". os Municípios. pelos seus respectivos órgãos
No Brasil, cuja história constitucional se legiferantes."Todos recebem diretamente da
iniciou no periodo histórico do constituciona- Constituição, expressão da vontade geral. as
lismo clássico, as constituições confiaram ao suas respectivas parcelas de competência e, as
Poder Legislativo a função específica de fazer exercendo. obtêm as receitas necessárias à con-
as leis e, conseqüentemente, a de tributar em secução dos fins institucionais em função dos
nome do povo. quais existem (discriminação de rendas tributá·
rias). O poder de tributar. originariamente uno
Em 1824, a Constituição Imperial atriblÚa o por vontade do povo (estado democrático de
Poder Legislativo à Assembléia Nacional, que direito), é dividido entre as pessoas políticas
se compunha de Senadores e Deputados, com que formam a federação (COELHO, Sacha Cal-
a sanção do Imperador. mon - Comentários à Constituiçao de 1988 -
A Constituição Repub]jcana de 1891 encar- Sistema Tnbutário, p. 2 ).
regou desta função o Congresso Nacional, bi-
cameral, também num processo complexo que Evidencia-se a importância do aspecto da
exigia a sanção do Presidente da Repúb]jca. presença do representante do povo para a au-
A Constituição de 1934 apresenta uma ca- torização de cobrança de tributos. face à pró-
racteristica especial que Pontes de Miranda ( pria relevância que a doutrina liberal - a qual
PONTES DE MIRANDA. Comentários à Cons- fundamenta o constitucionalismo, seja ele o li-
tituiçao da República dos Estados Unidos do beralismo clássico ou atenuado e mesclado a
Brasi/,Ed. Guanabara, Rio, 1936-37, p. 516)cha- novas doutrinas, da forma pela qual o mundo o
ma de defeituosa: sua estrutura inclui o Senado tem visto evoluir - atribui à propriedade. Se-
no Cap. V do Título I ~ Da Coordenação dos gundo a forma pela qual Châtelet (cHÂTELET,
Poderes - fora, portanto, do Poder Legislativo, François et allii ~ História das Idéias Po/iticas.
que é objeto do Cap.lI do mesmo Título: o Se- Jorge zahar. RJ. 1990, p. 106) analisa a posição
nado toma posição ambígua de colaborador do de Benjamin Constan!, "o objetivo dos moder-
Poder Legislativo (art. 22). A sanção presiden- nos é a segurança nas funções privadas; e eles
cial se faz necessária (art. 43). chamam de liberdades as garantias concedidas
Em 1937, atribui.-se o exercício do Poder Le- pelas instituições a estas funções". O indivi·
gislativo ao Parlamento Nacional, que se com- duo busca, no sistema constitucional, contra o
põe da Câmara dos Deputados e do Conselho excesso de poder do Estado, a garantia de sua
Federal, com a colaboração do Conselho de propriedade. Daí, ser o corpo de representan-
Economia Nacional. O processo legislativo in- tes o competente para autorizar a intromissão
clui a sanção presidencial. Observe-se que o do Estado no âmbito sagrado da propriedade
Presidente da República tem a prerrogativa de particular.
disS91ver a Câmara dos Deputados (art. 75). . A competência e legitimação para o exercí-
E ao Congresso Nacional, bicarneral, que a CIO desta função é do Orgão Legislativo que,
Constituição de 1946 confia a tarefa legislativa, de acordo com a teoria rousseauniana , é aque·
com a sanção do Presidente da República. O le que tem precedência sobre os demais pode-
mesmo caminho tomam as Constituições de 1967 res pela sua condição de porta-voz da "vonta·
e a Emenda Constitucional n. o 1, de 69. e a Cons- de geral". O produto de sua elaboração será a
tituição de 1988. lei. Nesse caso, lei verdadeira, lei em sentido
Ponto comum a todas estas leis maiores é a material, norma geral e abstrata confonne a te0-
eleição livre e direta dos componentes do Par- ria francesa preponderante no século XIX, ou
lamento do Brasil, nas diversas épocas. O cons- ainda, segundo a teoria alemã (Laband), uma
titucionalismo brasileiro preservou o sistema regra de direito material, pois diz respeito à con-
representativo, que mantém intacto o sentido dição jurídica do cidadão. no que se refere ao
da "vontade geral" ao atribuir ao grupo de re-
seu patrimônio.

1I.,,'.f. d_ 'ntorma,iia L_.'.'."".


Liderança: uma nova visão

lÃNlA MARA BoTElHO

sUMÁRIo
l. Introdução. l. Transformações e constatações.
3. Estrldosexislenles. 4. A flOva liderança integral. 5.
Conclusão.

I. Introdução
Liderança é um processo de persuadir ou
exemplo pelo qual um indivíduo ou grupo influ·
cnda pessoas e as conduz para concretizar ob-
jetivos, ajudados pelo líder e por seus seguido-
res. Em qualquer tipo de grupo estabelecido,
indivíduos diferentes preenchem papéis dife-
renciados, e um dos papéis é o de líder. Líderes
não podem ser pensados fora de um contexto
histórico, de sua função e do sistema em que
estão inseridos. As partes integrantes do siste-
ma contêm as forças necessárias para o traba-
lho do líder. Os ambientes onde os líderes atu-
am são infinitos, e existem diferentes tipos de
líderes e de estilos de liderança. Em alguns ca-
sos o ponto forte da liderança é a eloqüência,
em outros a capacidade de avaliar, a coragem,
entre outros. Alguns são excelentes líderes em
tennos mora is e outros levaram muitas vezes a
humanidade a terriveis situações, É necessário
não confundir liderança com status. Mesmo em
grandes corporações e agências do governo,
as posições de executivos no topo da hierar-
quia podem significar simplesmente o número
um da burocracia. Podemos, evidentemente,
encontrar líderes nestas posições. Mas é im-
portante lembrar que os chefes são obedecidos
Tânia Mara Botelho é professora e pesquisado-
ra!lO Departamento de Ciência da lnforn1llÇão e D0- e os líderes são respeitados.
cumentação da Universidade de Brasília, Doutora em É necessário, ainda, não confundir lideran·
Ciência da Infonnaç.ão pela Loughborough Universi- ça com poder. Lideres usam a energia de poder
ty e pós-doutoranda pela Syracuse University na para concretização de sua ação. Entretanto,
área de liderança. Atualmente é Vice-Diretora da Fa-
muitas pessoas que têm poder não possuem
culdade de Estudos Sociais Aplicados da UnB. Tra-
bslha na linha de pesquisa de informação e sociedade nenhuma qualidade de liderança. Seu poder
e ampliação da consciência individual e coletiva. deriva simplesmente do acúmulo de dinheiro,
ou da capacidade de infligir punição aos ou· res como agentes de mudança, um desafio para
~ros: da.capacidade de controlar uma máquina esta nova visão da realidade, que desenvolve-
mstttuclOnal ou por ter acesso rácil à imprensa. remos este artigo.
Um ditador, por exemplo, tem poder, mas não é 2. TransformaçlJes e constatações
lider. ~, finalmente. não confundir liderança com
auton~.de. Autoridade é simplesmente o po-
A transformação por que passa nossa soci-
der legl~mado. ~iderança requer muito esforço edade hoje fem levado a discussões sobre a
e energta. E mwta confusão tem sido feita entre problemática de desenvolver recursos huma-
liderança e autoridade. Liderança não é uma sim- nos. Assim é que os temas têm variado muito
ples tarefa para ser realizada. O lider desempe- em tomo da efetividade e do fazer o individuo
nha funções, entre outras, de visão de metas a produzir mais. Este progresso tem também o seu
longo prazo, afirmação de valores mais eleva- avesso. Gostariamos de estar vivendo numa
dos, motivação, gerenciamento, servir de sim- época de plena prosperidade e nos vemos mer-
bolo e exemplo, representar ideais renovar a gulhados num caos de conflitos entre nações,
soci~de. Liderança é uma conqui~, e a úni- entre raças, entre administraçao e trabalhad~
ca COlsa que verdadeiramente se conquista é a res, e até entre pessoas e dentro de nós mes-
nós mes~. De acordo com Kouzes e Posner(l), mos.
o desenvolvimento da liderança é em última aná- Os aspectos de eficiência de uma organiza-
lise, o8utodesenvoJvimenw e, fi~lmente, a 1ide- ção são importantes. porém a solução de nos-
rança tem como maior desafio o desafio pessoal. sos problemas decisivos ruJo está no mundo
Bennis(2) diz que no final, tomar-se um líder é das coisas e sim no mundo das pessoas. Inte-
sinônimo de tomar-se você mesmo. ressamo-nos por buscar uma filosofia que per-
mita uma abordagem teórica, a partir da qual
São dois elementos essenciais para a lide- possamos realmente entender a unidade da açAo
rança: consciência e verdade. Consciência é e ~ um conjunto de individuos para conse-
entendido como a capacidade de discernir den- gutr-se cooperação e a compreendo inter-rela-
tro de determinado contexto e visão de realida- cional.
de. E verdade é entendido como uma função do
nivel de consciência. Na transiçãoem que vivemos com um com-
plexo projeto de mudança, lidamos com passa-
. C do e futuro, ao mesmo tempo. E, mexendo nas
A SSlm, v = f(c)onde - = consciência raizes destas estruturas, há muito risco envol-
V
vido e o perigo de se jogar fora aspectos que
Estes elementos essenciais quando usam a ener· são n~ssá.rios. Enxugar a máquina governa-
gia de poder necessitam de um ingrediente fun- mental Slgnifica. também, construir um organis-
damental que é o Amor. mo saudável. Com adequada intuição e meio-
OONSCIÊNOA ~1idade, alcança-se novo discernimento geren-
M cial(3). A ~rdade é q~ não existe um pais sOO-
O desenvolVIdo, mas sim subgerenciado e sem
VERDADE lideranças. A administração pública brasileira
necessita de um programa inovador de desen~
Nestes termos, a liderança que estamos fa- volvimento do seu potencial humano, especiaI~
lan~o é ~ nova abordagem que chamamos mente em nivel gerencial e de lideranças, de onde
de liderança íntegral eque define liderança como emanam as decisões que influenciam e trans-
uma função necessária nas relações societais formam as relações societais.
de fo~ a facilitar oprocesso de alavancage~
da SOCIedade para um novo sistema de inteli- Estamos cada vez mais vivenciando uma
gência social. Assim, liderança pode ser vista forma acelerada de mudança que exige de nós
uma postura também nova. A administração
V = f(c)n participativa pode ser um instrumento de quali-
como L A onde L = liderança, V = dade nesta mudança. Necessitamos de uma
verdade e A =amor. mudança mais global que inclua todos OS as-
A liderança nada significa se não existem pectos sem reduzir o ser humano em nenhum
valores e os únicos valores com os quais é pos- momento. A mudança atinge também os siste-
sfvel contar são aqueles de que se tem profun- JI!3S sociais co~o um processo global de apren-
da consciência e que foram absorvidos através dizagem da soetedade. No Brasil, vivenciamos
da experiência. É dentro deste contexto de 1íde~ ainda um processo de "sindrome de servidão"
e de "sucata do conheçimento", onde a criação do muito usada e pouco praticada. A enormida-
e a qualidade de ousar ficam prejudicadas, pois de dos desafios de nossos tempos e a veloci-
as pessoas são desconsideradas no processo dade de mudanças pareçem não estar acompa-
de criar novos rumos. Como então transformar nhadas por grandes idéias e pessoas capazes
o inconsciente coletivo das organizações para de implementá-las. Estamos num momento da
que possamos ter este novo despertar, não "de história em que se faz necessário uma visão mais
um mago", mas de um gigante adormecido? O consciente e global por parte de grande núme-
melhor é corneçartl!OS pela criatividade que pro- ro de líderes. do campo e da fábrica, ao escritó-
picia a qualidade. E necessário criar uma nova rio de um presidente.
renascença humana, onde as relações sociais, O folclore e a observação reflexiva têm cria-
empresariais de trabalho e interpessoaJ sejam do conceitos e preconceitos sobre lideres, for-
baseadas em qualidade. Assim, desaparecem, mando idéias, mesmo caricaturas, sobre lide-
ou pelo menos, atenuam-se, as relações organi- rança. Décadas de análise e estudos acadêmi-
zacionais sadomasoquistas que prejudicam a cos sobre liderança (5,6,7 e 8) deram~nos defini-
todos nós. ções. Houve época em que se pensou que as
A conquista deste novo estado de coisas é habilidades de liderança fossem uma questão
um desafio de lideranças. Um desafio que en- de nascença e esta poderia ser chamada a "teo·
gendra a qualidade, alavancando um novo sis- ria do grande homem". Quando esta aborda-
tema de inteligência social. O sistema de inteli- gem não era mais válida, vcio a idéia do" gran-
gência social é aqui entendido como "a capaci- de estouro", em que a situação e os seguidores
dade organizacional instalada no país, as agên- se combinaram para fazer um líder. Como tam-
cias públicas e privadas de financiamento, de bém a teoria do grande homem foi outra abor-
pesquisa e indústrias" (4). A inteligência social dagem inadequada. Nos dias atuais, temos nova
aproveita esta capacidade instalada no sentido oportunidade de avaliar nossos líderes e pon-
de novas inter-relações e de uso de sistemas derar sobre a força e a arte do líder, assim como
estratégicos de informação: sistemas inteligen- sobre a essência do poder e a base sobre a qual
tes, sistemas de apoio à decisão, sistemas exe- está fundamentalmente ligada a liderança. En~
cutivos e para o planejamento. Neste sentido tretanto, a essência do poder como energia bá-
devem ser usados os métodos de inteligência com sica para o exercício da liderança tem sido ne-
os de sistemas de recuperação de informação. gligenciada nas formulações dos tempos mo-
dernos. O poder é uma das forças mais conhe-
Diante das constatações mencionadas sur- cidas do universo e existe em toda interação
gem apreensões maiores, que são: a insensibili- humana. Poder é a "energia básica para iniciar e
dade institucional, a falta de discernimento para sustentar a ação do líder, traduzindo a intenção
implementar as soluções necessárias, verdadei- para a realidade, a qualidade sem a qual os líde-
ra comunicação para evitar conflitos e sistemas res não podem lidar"(7). O uso desta energia
de inteligência voltados para o social. Um ser social tem sido inclusive desvirtuado ao longo
humano numa organização não se dissocia do da história. Entretanto, preci.samos alltend.er a
que ele é, porém os métodos existentes de tra- perceber esta energia de poder e usá-la como
balho e de relações societais são extremamente realmente é, transformando sua expressão em
fragmentários, tomando as pessoas também algo construtivo. A verdadeira liderança sabe
fragmentadas. usar este poder para transformar. Desse modo,
O uso de sistemas de inteligência nas orga- a liderança efetiva o movimento das células or-
nizações e na sociedade ajudam na mudança ganizacionais de um estado caótico presente
estrutural da sociedade e na mudança de uma para um estado saudável futuro, criando visões
economia industrial para uma economia pós- de oportunidade potenciais para as organiza-
industrial, intensiva em conhecimento. E o fun- ções, instalando comprometimento nos empre-
damental para esta economia pós-industrial, gados e na sociedade. A mudança pode, nesse
intensiva em conhecimento, são a criatividade sentido, renovar cultura e estratégia que mobi-
e a qualidade. Como então desenvolver na so- lizem e enfoquem energia e recursos(8).
ciedade o eIxo da criatividade que envolve filO- Uma análise de muitos autores revela que a
damentaJmente a sensibilidade? maioria escreve sobre administração, admitin-
3. Estudos existentes do lideranças como "um processo de exercer
Liderança é uma palavra que está hoje sen- influência sobre indivíduos ou grupo, nos es-
forços para a realização de um objetivo em de-
8r-.l',. •. 32 n. 12f1"J]un. 1985 251
terminada situação"(5). Os interesses sobre li- primeiro lugar, por incentivos econômicos. Já O
deranças nos parecem refletir as escolas de pen- homem auto-realizador procura sentido e reali-
samento na teoria das organizações - a admi- zação em seu trabalho, pois várias outras ne-
nistração científica e a escola das relações hu- cessidades estão relativamente bem satisfeitas;
manas. Também foram concentrados esforços fundamentalmente automotivado, é capaz de ser
em estudar liderança como qualidades potenci- maduro em seu trabalho. Na realidade o homem
ais, tendo um papel de causação histórica. é mais complexo do que o racional-econômico
Motivos, valores, propósitos criam num ambi- o social e o auto-realizador(lO). Na verdade, ~
ente o processo de mobilização de pessoas, homem é um ser viável, capaz de aprender no-
dentro de um contexto de liderança transado- vos motivos, está motivado a partir de muitos
nal. Entretanto, líderes podem refonnar, reno- diferentes tipos de necessidades, e pode res-
var, alterar, motivar motivos, valores epropósi- ponder a numerosos e diferentes tipos e estilos
tos de outras pessoas seguidoras ou não, atra- de liderança.
vés do ensino do papel de liderança, dentro do O que faz a liderança ecomo ela ocorre numa
contexto de liderança transformacional. democracia? Liderança é o que realmente faz o
Estamos agora propondo uma nova visão mundo girar. A liderança é capaz de inspirar e
da liderança, uma visão mais global e expandi- mobilizar massas de pessoas - é uma transação
da que se desenvolve face às necessidades da pública com a história. Aforça e o poder de um
nova era universal que estamos atravessando. Iider representam agrande alavanca que impul-
As visões sociais são importantes em vários siona centenas de milhares de pessoas a segui-
aspectos; diferem em concepções básicas da rem um caminho, a sentir nas palavras do Iider
natureza da pessoa humana. As habilidades e seu pensamento traduzido. São os lideres res-
as limitações das pessoas são vistas em termos ponsáveis pelos crimes mais horriveis e as lou-
radicalmente diferentes por aqueles cujas teori- curas mais extravagantes que desgraçaram a
as filosóficas, política ou sociais estão conti- humanidade. Mas a eles também é creditada a
das em visões diferentes. As visões repousam condução da humanidade para a liberdade indi-
fundamentalmente em algum senso da natureza vidual, justiça social e tolerância. A humanida-
humana, embora a maturidade seja a possibili- de tem feito muito através de seus inventores e
dade constitutiva de todo ser humano fisiolo- gênios, líderes em sua idéias que criam fatores
gicamente normal. Esta nova visão de que fala- únicos de progresso humano. A linguagem dos
mos baseia-se na consciência do estado de re- líderes determina o tom da politica. Entretanto,
alidade de inter-relação na consciência de to- à maneira de Prometeu no Olimpo, os lideres
dos os fenômenos fisicos, sociais e culturais. provam a realidade da escolha continuando a
Transcende as atuais fronteiras disciplinares e lutar contra os deuses. Eles justificam o seu
conceituais existentes. Entretanto, a formula- papel, à medida em que buscam e bõertam e dão
ção das linhas mestras de tal estrutura já está poderes aos seus liderados. O grande lider anu-
sendo formulada por muitos indivíduos, comu- la-se a si mesmo, como dizia Thomas Jefferson.
nidades e organizações que estão desenvolven- No atual contexto, nllo se trata de adaptar o
do novas formas de pensamento e que se esta- conteúdo às comunidades e nações, mas de
belecem de acordo com novos princípios(9). explorar a necessidade de integraçao do meio
Isso significará a formulação gradual de uma ambiente com as necessidades pessoais. Atra-
rede de conceitos e modelos interligados e, ao vés de um engajamento lúcido e consciente, a
mesmo tempo, o desenvolvimento de organiza- melhoria da qualidade de vida pode ser busca-
ções sociais e lideranças correspondentes. Ne- da como um processo de recriação educacional
nhuma teoria ou modelo será mais fundamental do pessoal integral(8).
do que o outro, e todos eles terão que ser com- 4. A nova liderança integral
pativeis. Sempre que se faia em iniciar um ciclo Os lideres, como agentes de mudança, 510
de mudança, a primeira tarefa é verificar o nivel essenciais para a mudança societal, estenden-
de conscientização das pessoas daquela socie- do seus valores em metas mais amplas a um
dade ou grupo. Com o homem social estão su- número de pessoas e organizações. Constata-
posições de que o homem é basicamente moti- mos que é necessário uma abordagem mais glo-
vado por necessidades sociais. Ao homem ra- bal e integral para atender as demandas sociais.
cional-econômico são colocadas as suposições Na liderança integral objetivamos uma série de
de que o homem é visto como motivado, em questionamentos que são justamente para se
chegar à efetividade e unidade da açlo poHtica
252
R."'.'. d. 'n''''....'." 1 ••'.''''''.
coletiva. No plano existencial, a unidade da ação positivas se exercida com a energia de poder na
política propagada a nível de organização liga- consciência e verdade do amor universal, e
se ao conceito de entropia. A entropia deseja- mudanças negativas, se a energia de poder é
da é a negativa, isto é, aquela que permite que a exercida para si mesmo, em proveito pessoal.
organização esteja em estado de ordem e equi- Os principais aspectos da abordagem teóri-
líbrio, que é facilitada quando o líder está inte- ca por nós utilizada são: I) o de se considerar o
grado, provocando a ordem e integração nas indivíduo na sua totalidade de ser pessoal, re-
moléculas e células organizacionais. Se o líder lacional e societal; 2) o conceito de ressonân-
não está integrado, a liderança organizacional cia; 3) a integração entre lógica da razão e lógi-
gerada é de entropia positiva, criando o caos e ca da intuição, como a capacidade de pensar
a desordem na organização. em nível de razão e de intuição, nos níveis lógi-
No plano funcional, devemos responder a cose simbólicopes&>al relacionale metal. (4,8).
perguntas que dizem respeito à unidade con- Daí, inferimos que algumas das qualidades
ceituai da pessoa humana no saber como, quan- da liderança são: a unidade do ser com o querer
do e onde. Temos aqui o mundo objetivo da e o saber; a integridade do conhecimento com a
ação social, onde o do lider atua e, o mundo sensibilidade; a transmissão de conteúdos com
intersubjetivo, como atua. São dois hemisféri- significado; a verdadeira simplicidade.
os de atuação, o da razão e o da intuição. Neste Neste modelo por nós desenvolvido, visa-
modelo, inspirado no Estudo das Lógicas, de mos ainda os processos físicos do indivíduo
Sampaio( 11), entram ainda os aspectos da inte- integrado a nível de seus hemisférios cerebrais.
gridade entre o nível funcional e o nível exis- Os processos relacionais e societais em resso-
tencial. A capacidade de integridade organiza- nância da informação conceitual são implemen-
cionalleva ao aspecto de desenvolvimento, fa- tados através da criatividade e da qualidade da
cilitando a adaptação e a segurança da organi- ação.
zação àquela realidade dada~ àquele contexto As habilidades a serem desenvolvidas na
que está sendo vivenciado. E necessàrio, ain- organização, dentro deste modelo: senso de
da, considerannos dois eixos, o da qualidade determinação -ligado à capacidade de lucidez
das relações humanas e o da efetividade. O eixo e discernir conscientemente; senso de criativi-
das relações humanas tem funcionado com pro- dade - ligado à capacidade de autoconhecimen·
porcionalidade inversa, em oposição, e que to; senso de oportunidade -ligado à capacida-
queremos que funcione mais hannoniosamen- de de oportuniZ3f o diálogo e de comunicar con-
te. À medida que aumentamos a qualidade de teúdos com significado; senso de organização
vida no trabalho podemos transfonnar a curva - ligado à capacidade de estruturar conteúdos
tradicional, de inversa proporcionalidade, em metodicamente.
uma curva de evolução crescente, em que se A capacidade de utilizar recursos estratégi-
consideram os dois planos: o funcional e o exis- cos é vista como recursos que existem à díspo-
tencial. À medida em que o próprio indivíduo siçãodo Iider, embora haja um trabalho pessoal
na organização inicia um processo de auto-in- a ser feito antes de conseguir implementar seus
tegração, como célula organizacional, este pro- próprios recursos.
cesso começa a criar o que chamamos de resso-
nância social. A ressonância social origina-se No desenvolvimento relacional, o líder de-
do tenno ressonância conceitual, por nós de- senvolve a capacidade dialética, de transfor-
mação e cooperação nos diversos níveis, pes-
senvolvido como a capacidade de propagação
soal, relacional e societal (figura 1).
de ondas quânticas de pensamento dentro da
5. Conclusão
organização. *
As mudanças que hoje atravessamos reque-
As duas principais hipóteses de trabalho rem uma nova lógica e uma nova visão que pres-
na liderança integral são: a liderança move a supõem lideranças capazes de implementar o
organização de um estado de intenção para um processo de mudança, dentro de uma perspec-
estado de realidade; a liderança traz mudanças tiva de inteligência social. A primeira visão é
que esperamos que o processo díalético nas
• O conceito de ressonância é emprestado da organizações, que teve curto-circuito, comece
teoria dos campos morfogenélicos de Rupert Shel·
brake no qual é comprovada uma ressonância de for· agora a conectar-se com a realidade imanente,
mas conceituais e habilidades que se propagam numa apontando para a liberdade do ser. A segunda
mesma espécie (12). visão é o argumento da hegemonia, segundo o

8,. .111• •• 32 n. 126 __./Jun. 1N5


MODELO DE LIDERANÇA INTEGRAL (Botelho. 1990)

qual se buscam condições conjunturais de in~ Bibliografia


tegração e incorporação sociais. Assim, ense- KOUZES, J.M. & B.Z. The leadership
jamos urna dialética de recuperação, um diálo- challenge: how 10 gel e:tlraordituuy thinp done
go com a história, um processo ernancipador, in organizariom. Jossey.Bass, 1987.
que deverá culminar na liberdade da auto-iden- 2 BENNIS, W. On becominga leader. Adison-Wcs-
tificação com a história e a comunidade(4). ley,1989.
A fim de que possamos passar esta década 3 Sn,VA, A.C. T. da. Holismo 'PeI"SUS mecanicismo.
pela transformação necessária, a gestão públi- Rumos, v.4, n.84,jul./ago. 1990.
ca terá de aceitar a praticabilidade de alianças 4 BOTELHO, Tinia. Social in~/ligence systems; a
eficazes com lideres que questionam antigas Jeadership challenge 10 bridge lhe developmml
práticas e propõem soluções novas, e também, gap. In: Intemational Confercncc on "Social
considerar tão essencial o vínculo entre a admi- Intelligcncc systems". Dubrovnik, Yugoslavia,
nistração estratégica e as opef3ÇÕes(13). S0- 28 May-2 June 1990.
mente quando uma organização pode expres- 5 BURNS, J.M. Leadership. Ncw York, HaJper &;
Row, 1978. 530p.
sar os valores essenciais das pessoas que as
dirigem é que a organização começa a possuir 6 ARGYRlS, C. Liderança, aprendim~ e inova-
significado real. A era quaternária é uma era de ção. 810 Paulo, Pedag6gica UnivcrsitAria, 1977.
serviço e a gestão pública deve se pautar pelo 254p.
serviço desinteressado ao público, visando à 7 BENNIS W. & NANUS, B. Líderes; estratégia
infonnação e à consciência da sociedade den- para asswmir a verdadeira liderança. SJo
Paulo, Herbra, 1988. 197p.
tro de um novo sistema de inteligência social(4).

"e.".f. fie .IIIor....'_o L.......'".


8 BOTELHO, Tânia. A nova liderança; pressupos- 11 SAMPAIO, L.S. Informática e cultura. Rio de
tos teóricos e conceitos. In: 3. ó Congresso Naci- Janeiro, Embratel, 1984.
onal de Organizações e Métodos: A excelência
12 WEBER, R. Diálogos com cientistas e sábias; a
das instituições. Belo Horizonte, outubro 1990.
busca da Imidade. São Paulo. Cultrix, 1986.
9 KREMA: R. Inrrodução à visão holíslica. São
Paulo, Summus, 1989. 13 ZALEZNIK, A. Os líderes centram seus interes-
ses nas pessoas. Diálogos, v.1 7 , n.l, 1984.
10 NANUS, B. Doing the right thing. The bureau-
cra/. v.15, n.3, 1986.

. . . " ,••• 32 ft. 128 . . .JJ.... 1895


Agamemnon Magalhães
o estadista do social, o administrador, o pensamento
político

JARBAS MARANHÃO

Todos sabem que o político Agamemnon


l\.1agalhãcs foi, ao mesmo tempo. um homem de
pensamento e ação. doublé de intelectual e es-
tadista.
Aliás. o verdadeiro político há de ser um
homem de estudos, um humanista. Precisa iIus~
trar-se para entender melhor os problemas e
saber encaminhar as soluções que realmente
beneficiem à sociedade.
Cultura e política se vinculam estreitamente
e Aristóteles já situava esta última como "a ci·
êocia superior a todas, cujo bem reside najuslir

ça, ou, em outras palavras, no interesse geral".


Certa vez escrevi: política. ciência e arte,
abrangente do tempo histórico, porque, no es·
tudo dos acontecimentos, instituições e idéias,
leva em consideração, como observa Paulo
Bonavides, como foram ou deveriam ter sido
no passado, como são ou devem ser no presen·
te e como serão ou deverão ser no futuro; o
fato político correspondendo, no conceito de
Paulino Jacques, ao fato social lato sensu, O
qual compreende o fato histórico. o fato sociOr
lógico, o fato econômico e o fato ético, este
último subdividindo-se em fato moral e fato ju·
rídico.
A verdadeira política t, sem dúvida, uma
atividade nobre, pois o seu objetivo é realizar o
bem comum.
Dai a imperiosa necessidade para o homem
público de conhecer a complexidade da vida
social. De penetrar a índole do povo e suas as-
pirações. De pesquisar as causas dos proble~
Jarbas Maranhão foi Secretário de Estado, De- mas e seus efeitos sociais.
putado Constituinte em 1946, Senador, Presidente Assim agiu Agamemnon Magalhães, com a
do Tribuna: de Contas de Pernambuco, Professor de emoção de servir a Pernambuco e ao país.
Direito Constitucional. É integrante da Academia
Pernambucana de Letras. É certo que a política se baseia num univer-
",..tll••. 32 n. 128 .awJlUlt. 1895 257
so de realidades objetivas, mas igualmente num to de Educação, observou que na famosa refor-
ideal, numa filosofia, numa concepção de vida. ma Carneiro Leão prevaleceu o aspecto técni-
Sabia que o Estado é a encarnação do Po- co-adminístrativo, enquanto na do governo
der, mas Poder como um meio de alcançar obje- Agamemnon Magalhães Predominou o senti-
tivos humanos e sociais; e que é indispensável do interior, visando mais à criança, ao estudan-
a influência ética nas instituições políticas. te, à pessoa humana do que ao método, se bem
Quando Ministro da Justiça, em 1945 -car- que este não fosse posto de lado nas especula-
go que e.1Cerceu para promover as leis de extin- Çôes que se faziam.
ção do Estado Novo e de redemocratização do E acrescentava:
país - criou os Partidos de âmbito nacional e "Essas lembranças muito me serviram
fez editar o Código Eleitoral de 1945. na vida de professor universitário. Pois
Foi um Uder inconteste em Pernambuco e me puseram em contacto com um ensino
exerceu igualmente liderança nos quadros na- que, embora em outro nível, era direto,
cionais do antigo e extinto Partido Social De- prático, objetivo~ e Punha a personalida-
Il'lOCnÍtico. de humana, a sua fonnação em primeiro
Deputado Federal e Ministro do Trabalho, plano".
foi por demais valiosa e expressiva sua contri- Construiu grupos escolares modernos na
buição à legislação brasileira, nos campos do capital e no interior; criou uma entidade, com
direito do trabalho e da previdência social. cursos especializados para o aperfeiçoamento
A respeito, muito significativa é a palavra do magistério; desenvolvC1.l o ensino técnico-
do Presidente Getúlio "V&gas: profissional, levantando e guarnecendo edifi-
"A sua inteligência lúcida e ágil, o cio para esse fim; incrementou os desportos e o
seu conhecimento aprofundado dos pro- escotismo.
blemas jurídicos e das questões traba- No campo da cultura mereceram cuidados o
lhistas, a par da operosidade infatigável, Museu, o Arquivo Público, o Teatro Santa Isa-
dedicação aos negócios públicos e a le- bel, havendo planejado no governo constituci~
aldade ao meu governo tornaram a sua .nal uma nova biblioteca ptua o Estado. que a
atuação altamente proveitosa, dando ao Ihorte prematura o impediu de construir.
país a legislação social de que dispõe, Na interventoria, Agamemnon fundou a
.ao justamenteconsiderada legitima con- Coopetativa Editora e de Cultura Intelectual, que
quista das aspirações e necessidades publicou obras de raro valor histórico, como o
nacionais", 'h1eroso Lucideno e outros volumes sd>re a
&mp~a~eroDo~~ciodogovem~ guerra de IibertaçJo contra o domJnio holan-
administrou com a maior honestidade e zelo dês, a História do Direito Brasileiro, de Martins
pelas finanças públicas, Acompanhava diaria- Júnior, a História da Faculdade de Medicina, de
mente o flu.'l:o das receitas e das despesas, para Otávio de Freitas.
poupar e investir no desenvolvimento econô- lá no governo constitucional enviou men-
mico e social. sagem à Assembléia Legislativa. aprovada pe-
Preocupava-o tanto os aspectos da justiça los deputados, para a publicaçlo dos impor-
social como os da prodl.lção econômica. tantes A...N"AIS PERNAMBUCANOS do grande
historiador Pereira da Costa, com o que prestou
A sua administraçã<) teve o sentido da uni- relevante serviço à cultura do Estado e do pais.
versalidade.
O mesmo trabalho dev~tou à Saúde Públi-
Dedicou-se muito 3()S problemas da educa- t:a, através de seu Departamento apropriado;
ção, da cultura e da saúde pública. fundou o Instituto de Assistência Hospitalar,
Lembre-se aqui o seu interesse pelos Semi- <;om uma rede de hospitais devidamente equi-
nários Pedagógicos, PC:;lo cooperativismo es- pados para atender às poJm1açOes das moas
colar, a pré-orientaçAo profissionaJ, a pr0fissio- <ta mata, do agreste e do sertão.
nalização do ensino méc:lio. Criou o Departamento de Assistência às
Imprimia-se basicamente uma orientação Cooperativas para orientar e estimular as ativi-
que, no futuro, haveria de ser aproveitada pelo dades produtivas.
aluno no beneficio da SOciedade.
Foi destacada a sua aUJaç40 no campo da
Nilo Pereira, que foi diretor do Departamen- ação social. Construiu préc1ios para os Centros
Educativos Operários, prestigiou os órgãos de po das Princesas, ele demonstra esta sua iden-
classe, sindicatos, federações e incentivou as tificação:
convenções coletivas de trabalho. Avultou a "Aqui está, povo, o governador que
obra fonnidável contra a moradia insalubre e escolhestes, o governador que é do povo
pela habitação higiênica. e só do povo... Sei os encargos que me
Também foram notáveis os seus serviÇOs esperam, sei os problemas que se acu-
no setor rodoviário, rasgando estradas pelo in- mulam, mas com o povo não temo as res-
terior e pavimentando as da zona da mata, pla- ponsabilidades nem os perigos... O meu
no este de que foi executor o então jovem enge~ governo será o governo dos humildes,
nheiro Armando Monteiro Filho, Secretário de dos que precisam de segurança e justi-
V13ção e Obras Públicas e depois Deputado ça... Não se promete a um povo como o
Federal e Ministro da Agricultura. de Pernambuco para faltar. Serei vosso
Outro passo importante foi o do ato n. o 1.666, governador, mas vou precisar mais do
de 4 de maio de 1951, visando à regularização que nunca do povo e dos seus represen-
dos rios Moxot6, Pajeú e Brígida, para a cons- tantes na Assembléia. Ou reformamos os
trução de barragens sucessivas e aproveitamen- serviços públicos para atender aos re-
to de seus vales. clamos do Estado ou esta Casa não seria
Foi um inovador, um pioneiro. de um governador do povo, mas de um
homem insensível, de um cético, de um
Tinha a antevisão do estadista. indiferente, quando o homem que vos fala
Além do Instituto de Assistência Hospita- tem crença no povo e tem crença em si
lar, do Departamento de Assistência às Coope- mesmo".
rativas, do incentivo ao Departamento das mu- Essa linguagem usada no regime democrá-
nicipalidades, criou a Comissão de Desenvol- tico tem o mesmo sentimento e alcance da que
vimento Econômico de Pernambuco (hoje CO~ ele usara na Interventoria, pois a emoção de ser
DEPE), o Instituto Tecnológico (o ITEP), o Ins- útil aos menos favorecidos foi uma constante
tituto de Previdência dos Servidores do Estado em sua vida pública.
(o IPSEP), a Caixa de Crédito Mobiliário, em- É verdade que em plena Constituinte de
brião do Banco do Estado de Pernambuco, sem 1946, numa sessão em que os debates foram
esquecer, entre outras iniciativas, a famosa Liga dos mais agitados e ásperos, ele declarou, alto
Social Contra o Mocambo, destinada à cons- e bom som, com toda sinceridade, haver sido
trução de casas populares. teorizante e praticante do chamado Estado
Antecipou-se, desse modo, à criação de ór- Novo.
gãos semelhantes no plano federal e de outros
estados-membros. Mas é preciso não esquecer que, antes do
regime de 10 de novembro de 1937, ele já fora
O saudoso jornalista Mário Melo observou: deputado estadual na denominada república
"administrador tão grande como o Con- velha, regida pela Constituição de 1891; e que,
de da Boa Vista, ou maior que este ... O depois da revolução nacional e democrática de
historiador futuro terá, assim, de dar-lhe 1930, para a qual conspirou, foi constituinte fe·
o merecido relevo, na galeria dos maio- deral em 1933, e deputado, Ministro do Traba-
res benfeitores do Estado". lho e Ministro interino da Justiça, tudo no perío-
Pernambuco foi a profunda emoção de seu do da Constituição de 1934, havendo exercido
espírito e correspondeu ao seu entusiasmo e os mandatos no Legislativo e os cargos no Exe-
devotamento assegurando-lhe vitórias em to- cutivo com respeito e entusiasmo das normas
das as eleições que disputou. constitucionais.
Não é preciso dizer que a maioria dos votos No período de 1946 a 1950, constituinte e
originava-se das camadas mais humildes, das deputado à legislatura ordinária, ninguém mais
classes mais modestas do povo. identificado com a nova situação, ninguém mais
Sem cortejar as massas, sem populismo, sem a vontade no ambiente político da Câmara dos
demagogia foi incontestavelmente um líder p0- Deputados, que ele designava de Clube da in-
pular. teligência.
Agamemnon Magalhães amava o diálogo,
No seu discurso de improviso, após assu- a discussão das idéias, o debate de temas políti-
mir o cargo de Governador, no Palácio do Cam- cos ejurídicos, o que lhe dava enorme satisfação.

",__11• •• 32 ft. 12f1 "'./Iun. 1895


Pode-se dizer que circulavam em tomo dele pedimos conselhos a ninguém. Pusemos
ou com ele conviviam. no intercâmbio intelec- a nossa casa em ordem, sem olhar como
tual. os mais expressivos valores políticos dos ia a dos outros. O golpe de 10 de novem-
vários partidos de então e de tendências ideo- bro foi a afirmação de nossa continuida-
16gicas diferentes. de histórica, da coincidência da autori-
Pode ter sido uma readaptação. ou o enten- dade com a ordem e do poder com a na-
dimento - o que parece mais certo - de que o ção" (6.4.38).
Estado Novo fora uma fase de transição neces- Preocupava-o, isto sim, que o poder econô-
sária à revivescência da democracia. para que mico suplantasse o poder do Estado.
ela voltasse com um novo vigor, outra força,
renovada e ampliada em sua substância. Citava François Drujon:
"O que é democrático sobre o plano
Não se pretende aqui justificar aquele regi- político. não o é sobre o plano econômi-
me. mas. até certo ponto, fora uma conseqüên- co".
cia do choque de culturas ou de ideologias, que
empolgaram o mundo. Nada de "poderes paralelos ao do Estado,
A revolução russa de 1917, o estalinismo, o mais extensos e mais fortes. as tiranias dos bUs-
fascismo, o nazismo. todos com um formidável teso dos sindicatos financeiros, dos cartéis, re-
poder de organização, ameaçando as democra- gulando a vida econômica dos paises. Não só a
cias, acusadas de ineficientes ou incapazes de vida econômica como a politica".
resolver os problemas das massas. Em artigo de 26.5.38 dessa maneira se ex-
As idéias totalitárias se difundiam por to- pressou:
dos os países pondo em xeque as virtudes do "O que se dá no Brasil. como nos
regime democrático e a ordem interna dos Esta- demais países do continente. é uma ati-
dos. tude do poder diante das crises.
No Brasil mesmo o integralismo surgira e
crescera velozmente e contrapondo-se a ele a A crise atual não é poUtica. A crise é
Aliança Nacional Libertadora, constituída de econômica. A crise é social. A inquieta-
liberais e esquerdistas. ção é a sua configuração espiritual.
A luta das ideologias é exasperante. O poder do Estado ou se fortalece em
Surgiu o movimento comunista de 1935 e, meio às solicitações das forças, que o
algum tempo depois, o golpe do integralismo impelem para direções as mais contradi-
na madrugada de 11 de maio de 1938. tórias, ou não exercerá as funções de ár-
bitro dos conflitos.
As lideranças militares - após o primeiro
daqueles eventos - passaram a pressionar o Será assaltado por uma das tendên-
governo e este o Congresso por emendas cons- cias em luta, que dominará o poder e a
titucionais e leis de exceção. vida social, em todas as suas manifesta-
ções. Aí, sim, o Estado será integral e
Foi instituído. no Texto Supremo de 1934. o
"estado de guerra" e criado o Tribunal de Se- totalitário.
gurança Nacional. Foi o que se deu na Rússia, como na
Itália e na Alemanha. Para evitar o dom!-
O Congresso cedia às pressões e os parti- nio de uma das tendências - a da extrema
dos poHticos se mostravam divorciados da rea- esquerda ou da extrema direita - é que o
lidade brasileira e sem a compreensão que se Brasil tomou a atitude de 10 de novem-
impunha das transformações sociais. bro. Atitude do Poder do Estado diante
Esse quadro de agitação e crises, aumenta- da crise. É preciso, pois, esclarecer e não
do com a campanha da sucessão presidencial, confundir, porque a confusão é a pior
talvez explique, mais do que qualquer outro forma das crises".
motivo. a adesão de Agamemnon Magalhães Por isso, declarara antes:
ao referido Estado Novo.
"não tivéssemos adotado um regime for-
Deve ter lhe parecido imprescindível um te. não estivesse o governo autorizado,
período de ordem e mais tranqüilidade para o pela Carta Constitucional, a exercer to-
país. dos os poderes e tomar todas as medi-
Assim é que escreveu: das de segurança e defesa da nacionali-
"Nilo copiamos, MO imitamos. nem dade e. a esta hora. o país seria o teatro
da anarquia mais triste e mais humilhan- retórica, e com senso profundamente re-
te. Seria hoje umil feira aberta à cobiça alista, a idéia democrática no Brasil".
estrangeira. Andamos certos, o afi rmo de Por essas palavras pode se deduzir que ele
consciência e à luz dos fatos". (21.5.38) procurou mostrar as razões doutrinárias e his-
Tudo isso indica que ele via a democracia tóricas que levaram à instituição do Estado
em crise diante dos problemas novos que devia Novo.
resolver, ainda mais ameaçada pelas tendênci- Observe-se que não se referiu a um regime
as totalitárias de direita e esquerda e que seria político e sim ao golpe de 10 de novembro. O
necessário a instituição de um regime em que o natural nos golpes é que sejam transitórios até
poder pollÜco se tornasse mais forte a fim de o estabelecimento de nova ordem poHtica eju-
evitar que o Estado fosse dominado por uma rídica.
dessas tendências. Sem nenhuma dúvida, as democracias vive-
Não assinalara ele, desde 1933, que "os fa- ram tempos de grandes dificuldades e perigos.
tos têm mais força do que as convicções? Mo-
dificam as culturas e formam novos institutos e Na ordem interna, as crises de natureza eco-
novos direitos?" nômica e social, a superprodução, o desempre-
Em 14 de fevereiro de 1945 ele publicou, na go, a falta de moradias, a luta das massas papo-
Folha da Manhã, wn artigo intitulado "A Idéia lares pelos novOS direitos sociais, por mínimas
Democrática". condições de uma vida digna.
Na ordem externa, a marcha terrível dos na-
Nesse artigo pode-se verificar que, para ele, cionalismos imperialistas, que provocaram a 2. a
o regime que haveria de se extinguir, contribuí- Guerra Mundial, o eixo nazi-nipo-fascista, pre-
ra para "defender a nacionalidade de graves tendendo dominar o mundo e conformá-lo de
perigos".
acordo com as suas idéias totalitárias e ambi-
Agamemnon escreveu ainda reforçando seu ções de maiores espaços.
pensamento:
Assegurada a ordem interna contra a anar-
"Os regimes totalitários chegaram a quia ideológica - basta lembrar o movimento
dominar muitos espíritos e nações cul- de 1935 e o golpe integraJista de 1938-pensa·
tas, como a Alemanha, porque resolve- va ele, o Brasil poderia entrar, como entrou, na
ram problemas diante dos quais as de- guerra ao lado da democracia norte-americana.
mocracias ficaram indecisas e até inca-
pazes para resolvê-los. A verdade é que Dignamente, Agamemnon Magalhães não
a única democracia que lutou e reagiu abjurou do regime sobre o qual doutrinara e
adotando experiências, como a do New que se encaminhava para o encerramento.
Deal, foi a norte-americana. Faça-setam- Justificou-<l, ou procurou fazê-lo, como a
bémjustiça ao Brasil que procurou, den- imposição de um momento hist6rico, aquele em
tro dos quadros de sua formação históri- que as democracias não só haveriam de enfren·
ca, realizar experiências salutares. Pelo tal as dificuldades advindas da "rebelião das
menos, queiram ou não queiram os opo- massas", como foram postas numa medonha
sitores do golpe de 10 de novembro, con- encruzilhada pelo avanço e pressão das ídéias
seguimos estabelecer a ordem no país, totalitárias.
quando os motivos de agitação, uns ide- E com aForça Expedicionária Brasileira, di-
ológicos e outros de caráter subalterno, zemos nós, deu valioso concurso à causa do
iam nos levando para o desconhecido... ideal democrático.
Foi incontestavelmente o golpe de 10 de
novembro que noS permitiu entrar na O resto é problema de psicologia ou inter-
guerra ao lado da grande democracia pretação de um homem público, que cada um
norte~americana, sem mais questões in- queira ou possa fazer: realismo político ou sim-
ternas a resolver. Muita gente há que, plesmente a sinceridade de uma convicção
por incompreensão, amargura ou mà-fe, oriunda da observância dos acontecimentos
julga ainda com injustiça o regime que históricos e do cultivo das idéias.
instalamos precisamente para evitar o De qualquer fonna uma manifestação de in·
domínio das tendências da extrema es- teligência.
querda, como da extrema direita. O que Aliás, ele já havia escrito em sua tese para a
vai ficar na história é que salvamos sem Faculdade de Direito, em 1933:

8r-.I'.... 32 n. f28 IIbrJJun. fN!! 281


"O problema mais instante da demo- pressão de fatos politiros ou de condições exis-
cracia no mundo contemporâneo é o po- tentes, pois o Impériojá realizara nossa unida-
der das massas. E aqui, encontramos o de e as instituições parlamentares estavam, na
fato econômico em relação com a ordem prática. operando a evolução politica brasileira
política. exigindo soluções urgentes... parn a democracia, não devendo a República,
Desde que a democracia conquiste as portanto, ter interrompioo a tradição parlamen1aT.
massas pela assistência ao trabalho e por E avança na questão:
um sistema jurídico de proteção contra "Se a democracia é o governo no qual
as desigualdades e as injustiças sociais, participam todos os cidadãos, pela repre-
terá vencido todas as ideologias que lhe sentação e pelo voto, os parlamentos são
são contrárias". os órgãos mais em contado com o povo,
O que não se pode afinnar é que ele era uma exercendo as suas funções sob a influ-
inteligência inerte. urna mente oca, um politico ência direta da opinião eleitoral. Assim,
vazio. E sim. que era um homem de idéias e que O regime em que os gabinetes são fonna-
doutrinou incessantemente em artigos, discur- dos de acordo com as maiorias parlamen-
sos. conferências e principalmente no seu vali- tares, realizam a melhortécnicademocrá-
oso livro"O Estado e a Realidade Contemporâ- tica. Nem a autoridade executiva fica re-
nea», no qual afirmou não ser partidário doEs- duzida a um autômato, instrumento des-
tado totalitário, mas que o Estado, como força tinado meramente a fazer cumprir as leis,
de equilíbrio, em sua oontinuidade histórica. tem nem os parlamentos perdem a sua expres-
de intervir para coordenar todos os fatos que, são real. São eles corporações que atu-
em qualquer esfera social, operem modificação am na administração, traduzindo as cor-
sensível, nas relações de ordem coletiva. rentes de opinião, num ambiente de re-
Por outro lado, sempre foi parlamentarista. novação e verdade politicas. Separar in-
o que contraria a tendência autoritária que lhe teiramente as duas funções é colocá-las
apontavam os adversários e até alguns amigos em conflito, pois as fronteiras legais que
e colaboradores que talvez confundissem o tem- as delimitam. são freqüentemente modi-
peramento enérgico, a tenacidade de espirito e ficadas pelos fatos".
a liderança decisiva com autoritarismo. Em seguida faz a critica direta do presiden-
Em seu último mandato parlamentar, de 1946 cialismo ao assinalar que este é um regime de
a 1950, assinou as emendas parlamentaristas hipertrofia de poderes e que esta hipertrofia se
apresentadas pelo saudoso deputado Raul Pi- dá com o poder mais forte, que é o Executivo.
lia e se empenhou muito em sua defesa. E acrescenta:
Vale a pena resumir seu ponto de vista a "Criou-se, desse modo, na América
respeito, manifestado em 1933, na sua tese para do Sul urna espécie de nústica da autori-
a Faculdade de Direito. Escreveu ele: dade presidencial, como disse AnulO
"Sob o regímen monárquico as insti- Labriola, escrevendo sobre a ditadura de
tuições parlamentares desenvolveram-se,
Irigoyen".
operando-se as grandes refonnas liberais, Insiste que, no Brasil, a favor do parlamen-
como a da Abolição, sem revoluções ou tarismo, além de outras razões, há a decepçlo
choques, que pertuJbassem a vida cons- da experiência presidencialista.
titucional do pais... Nesse regimen. afir- E arremata: Os governos de gabinetes não
maram-se os nossos maiores estadistas se formam nem se mantêm sem o concurso das
pela cultura e projeção nacional, elevao- maiorias parlamentares. Só há. ao nosso ver,
do-se o Brasil. no Continente, como uma um método ou solução democrática. É o regime
das suas mais influentes democracias..." parIaJoontar.
Mostra como, da necessidade de uma força A mesma orientação manteve na Constitu-
governamental ou de um poder executivo uno e inte de 1946. Assim é que escreveu em artigo de
forte. os americanos do norte constmiram o pre- 30 de abril daquele ano:
sidencialismo; que, no Brasi.J.. a primeira consti- "O comparecimento dos Ministros à
tuição republicana instituiu este sistema de Câmara, voluntariamente ou mediante
governo, sob a influência da criação puramente convocação das Comissôes e maiorias
doutrinária dos Estados Unidos, e não sob a parlamentares, foi principio vitorioso na
discussão do projeto constitucional. balho. em pleno regime de 1934. pelo deputado
A Constituição de 1934 já havia con- gaúcho Adalberto Correia. de ser comunista,
sagrado tão salutar precedente. Bati-me. quando foi. apenas, no Brasil, um dos precur-
então. pelo comparecimento dos Minis- sores da defesa e implantação dos direitos so-
tros à Câmara, como um passo para a ciais em nossas Constituições e leis.
adoção do regime parlamentar. Foi, então. à Câmara e proferiu discurso de-
O que observo, agora, entre os Cons- fendendo as suas idéias - discurso que foi pu-
titui ntes de 1946, é uma desconfiança do blicado com o título "O Ministro do Trabalho
presidencialismo, cada vez mais acentu- fala à Nação".
ada. Se é certo que a maioria não deseja Da mesma forma. as suas atitudes contra as
marchar para o parlamentarismo, a ver· injustiças sociais, praticadas ou admitidas por
dade é que os freios possíveis ao Poder uma democracia atenta apenas aos direitos ci-
Executivo, estão sendo aceitos por gran- vis e políticos e indiferente ou de braços cruza-
de maioria, no seio da Comissão Consti- dos ante à profunda crise social e as legítimas
tucional reivindicações dos trabalhadores - crise que
As tendências para a deformação do sacudiu o século XIX e boa parte de nosso sé-
presidencialismo ou para a quebra da sua culo e que haveria de repercutir, também, como
rigidez são indisfarçáveis... Freios ao re- repercutiu, em nosso país, - as suas atitudes e
gime presidencialista será, pois, a carac- a sua palavra pela transformação de uma demo-
terística da nova Constituição. Resta, cracia puramente tiberalista numa democracia
apenas, saber se esses freios não serão de inconteste fundo social, levaram alguns ad-
motivo de conflitos entre o Poder Execu- versários e representantes da reação a acusá-lo
tivo e o Parlamento, concorrendo destar- contraditoriamente de esquerdista radical ou
te, para o insucesso irremediável de um fascista.
regime cuja experiência foi de crises su- Nem uma coisa nem outra ele o foi. Era, sim,
cessivas - sítio permanente, pronuncia- tanto contra o despotismo estatal como contra
mentos militares, revolução e golpes de o despotismo individualista ou de grupos mais
Estado". fortes empenhados em domi nar o Estado, arre-
,*rifica-se, desse modo, como foi firme e batando-lhe a direção dos negócios públicos
constante sua posição a favor do parlamenta- para beneficios particularistas.
rismo. Era contra o Estado abstencionista ou indi-
Não deixa de chamar a atenção que um ho- ferente, Estado que, como escreveu, tende a se
mem público, increpado, como ele o foi tantas desagregar pela ausência de finalidade social.
vezes, de autoritário, haja preferido e defendi- O Estado demo-liberal, deixando a sociedade
do o regime parlamentar, quando é sabido e cer- entregue à livre expansão do individualismo
to que no presidencialismo o Poder Executivo político e econômico, alheio às desigualdades
toma-se mais poderoso e forte. e injustiças sociais, originou o antagonismo de
O respeitável e saudoso parlamentar Raul classes e o problema das massas, causa imedi-
Pilla, que tinha a mistica do Parlamentarismo, ata da crise política, em que se debatem os po-
assinalou que vos de todos os continentes.
Observou noutra parte de sua tese a situa-
"se existiam muitos motivos para que to- ção do Estado debatendo-se entre tendências
dos os partidos do Brasil, na Câmara dos e fatos contraditórios e que
Deputados, homenageassem a memória
de Agamemnon Magalhães, a sua agre- "o socialismo e a democracia, o naciona-
miação - o Partido Libertador - possuía lismo e o intemacionalismo, a ditadura
um motivo especial: ele era um quase de classe e a ditadura de partido, o fato
correligionário, tão afins eram, com os econômico, sob múltiplos aspectos, sa-
nossos, os seus ideais". codem o Estado em todas as direções".
Nos períodos de democracia de que partici- Pergunta se devemos aguardar a experiên-
pou, antes e depois do Estado Novo, jamais cia dos outros povos, o aparecimento de novas
procedeu de modo contrário às normas demo- instituições e responde de maneira favorável
cráticas. ao regime democrático, aperfeiçoado politica-
Foi acusado sim, quando Ministro do Tra- mente com o parlamentarismo e socialmente

8,..a,• •. 32 n. 128 lIbr./lun. IBM


com o empenho da justiça social. se classificar o presidencialismo. Que
Diz ele: caracteriza os regim~ autoritários? O
"Somos de parecer que nos cumpre Poder Executivo forte. E esta precisamen-
aperfeiçoar os processos democráticos te a marca do presidencialismo... E o Con-
no sentido da solidariedade social, ado- gresso? perguntam uns. O parlamento,
tando um sistema, como o parlamentar, no presidencialismo, é wn tigre empalha-
dentro do qual todas as reformas se p0- do... Precisamos, pois, ser sinceros. Se
derão obter, progressivamente, de acor- aceitamos a democracia, devemos ser
do com os movimentos de opinião e a coerentes com os seus principios. O
ação dos fatos". povo é que deve governar e o povo é o
O que nos parece é que ele foi um homem de parlamento".
OOltro-esquel'da, um social-democrata, queacei- Não é estranha essa linguagem muo homem
tou o mencionado Estado Novo como um perto- incriminado de defensor do autoritarismo? Os
do de transição indispensável a que o regime adversários insistiram muito nessa tecla e até
superasse o cOOque das doutrinas totalitárias e alguns simpatizantes. também, no ingênuo en-
o clima de crise politica que predominava em tendimento de que semelhante procedimento o
nossos partidos regionais, divididos e subdivi- valorizaria
didos em grupos, clubes. facções, divorciados Pessoas destacadas são passiveis de inven-
da realidade brasileira e da imperiosa necessi- ções a seu respeito. Os lideres estimulam a cri~
dade de transformações nos campos político. ação de histórias ou lendas que, algun:aas ve-
econômico e social. zes, falseiam sua verdadeira imagem. É o ho-
Não seria bastante uma democracia mera- mem lendário cuja personalidade e conduta 510
mente formal, mas um regime que promovesse deformadas pelo maravilhoso da imaginação.
uma ordem baseada najustiça social, nos direi- Alguns chegam a pensar que sugerindo
tos econômicos do homem, na solidariedade, defeitos e erros estão enunciando virtudes e
na igualdade de oportunidades; e no estímulo à acertos.
modernização da economia, rom ênfase nos in-
teresses nacionais. Tudo faz crer que oautoritarismo era do regi-
me. O saudoso deputado Samuel Duarte frisou:
Não esquecer que, sem xenofobismo, ele foi
um ardoroso partidário do nacionalismo brasi- "o que havia nele de autoritário vinha de
1eiro. uma vocação inata para comandar. Pri-
mava por dar ao podera categoria de uma
Desde a Constituição Mexicana de 1917, missão desinteressada, na hierarquia dos
passando pela Declaração Russa de 1918, pelo serviços da comunidade".
Texto Weimariano de 1919 e pela Carta Espa- Ninguém gosta de sofrer imposição ou de
nhola de 1931 são definidos os direitos econô- ser tratado com rudeza. Se tal comportamento
micos e sociais do homem, associando-se a or- fosse nele uma constante, não teria angariado
dem econômica aos princípios da justiça social. tantos amigos, tantas dedicações.
Em todos esses textos e vários outros 0b- Não há como se confundir autoritarismo com
serva-se uma tônica: a do estudo e disciplina autoridade, energia. vontade de aço, numa per-
do fato econômico, orientado no sentido do bem sonalidade vibrante e tenaz no proselitismo de
comum e conduzindo à instituição de um Esta- suas idéias e na realização de seus planos de
do Social de Direito. governo ou administração.
Estudioso das filosofias políticas e do direi- Convivi rom ele por mais de dez aoos, prati-
to público, Agamemnon Magalhães, com os camente todos os dias, no palácio do governo,
seus conhecimentos. experiência e senso práti- na Constituinte de 1946 ena legislatura ordinâ-
co, haveria de inclinar-se, como se inclinou, por ria que se seguiu, nas reuniões do Partido nos
um regime de predominante teor social, inspira- planos nacional e estadual, nos cooúcios p0-
do nas motivações da época e num ideário na- pulares, e nas visitas que fazia às suas residên-
cionalista. cias e pude sentir, perceber, flagrar, várias ve·
Voltando ao presidencialismo, ele escreveu zes, momentos de ~J;l,~p>ilidade e emoção, que
a 26 de maio de 1946: ele procurava sern~'diSfarçar ou esconder.
Foi um homem de luta, seguindo o dom de
"Entre os regimes autoritários, pode- devotar-se ao bem coletivo.
o professor e crítico literário Olívio Monte· sários o atacaram em sua honradez pessoal e de
negro, em artigo para o Diário de Pernambuco, homem público e houve quem de.clarasse que
de 31 de agosto de 1952, registrou: ele precisava morrer para ser entendido.
"A sua vocação de homem de luta. Realmente com a sua morte as paixões ama-
ou mais, a Silll vocação de chefe, ele a inaram em tomo dele. Veio uma compreensão
revelava sobretudo no dooúnio admirá~ melhor do alcance de sua obra, de sua política
vel que não raro conseguia sobre si mes· social, de seu pensamento, do ideário e da mis-
mo, não deixaodo que a sua emotividade são do homem em seu tempo.
o traísse aos olhos mesmo dos mais ínti- Projetou-se muito pelos relevantes serviços
mos, e no perigo de muitas das suas lu~ no plano nacional. Foi útil ao país; mas Pernam-
tas políticas, pela aparência tranqüila em buco foi a sua paixão, O seu ideal. Ele mesmo o
que tão bem disfarçava as suas emoções, afinnou: - "Pernambuco é a minha visão obsti-
era como se os seus nervoS entrassem nada".
em férias". O povo o consagrou no reconhecimento de
Tinha a atração das crises. Era o seu clima. que o progresso de Pernambuco e do Nordeste
E até panx;e que, algumas vezes., as forjava para teve nele um pioneiro.
dar vazão ã sua índole de lutador. Lutou pela melhoria da condição humana.
LutaOOt, 00 Poder Executivo COll\{) 00 Pat\a~ O homem e sua recuperação eram o grande
mento, contra as investidas ao erário público, motivo da ação política. E a civilização, uma
aos bons critérios de uma sadia administração decorrência de seu desenvolvimento por inteiro.
e na defesa dos verdadeiros interesses da nacio- Nunca perdeu o sentido desta essencialidade.
nalidade. Uns viram nele o líder carismático; outros,
Por isso muitos dísseram que, para ele, go- um doutrinário do pensamento social; outros
vernare legislar era também resistir. ainda, o político arguto, perspicaz, de espírito
Resistir e lutar estando no governo ou na vivo, sutil.
oposição, na defesa de suas concepções ou de Foi, em muitos campos, um precursor, um
sua obra política e administrativa. homem público, com as suas anta:ipaçôes e os
seus sonhos.
Jamais lhe faltou bravura cívica.
Em seu último mandato governou com acen-
Na campanha de 1947, do correligionário e tuado espírito de compreensão e desejo de con-
insigne brasileiro Barbosa Lima Sobrinho, para graçamento.
o governo de Pernambuco, a favor de cuja can~
didatura ele se empenhou profundamente, fo- Mesmo enfrentando oposição, oriunda das
ram notáveis o seu esforço e destemor. rivalidades partidárias e de grupos, logrou que
Na história dessa campanha ressalta a série fossem aprovados os projetos que encaminhou
de artigos que escreveu, animando a resistên- à Assembléia Legislativa, não só pela força e
cia e a pugnacidade dos correligionários do unidade de sua bancada, mas porque não po-
antigo e extinto PSD, que além de confrontar-se deria ser diferente. Se as iniciativas visavam a
com valorosos adversários e a dissidência de beneficiar o Estado, os deputados, represen-
uma de suas alas, teve de enfrentar o facciosis- tantes do povo, não teriam outra conduta.
mo do então Interventor Federal, General Der~ Quis, no governo constitucional, renovar e
meval Peixoto. ampliar a obra administrativa que re.aIizara como
Num desses enérgicos artigos o Dr. Aga~ Interventor.
memnon usou de uma expressão que comoveu Desde os primeiros dias desejou e procu-
os brios pernambucanos e ficou na memória do rou fonnular um plano inovador que, pelos seus
povo: resultados econômicos e sociais, fosse a tôni-
"Alto lá, General! Pernambuco não se ca de sua nova administração, como o das mo-
governa de botas e esporas". radias populares. pelo seu alcance social e hu-
Já vimos que ele foi um político cujo pensa- mano, se salientara e marcara o seu primeiro
mento centrava-se no social, sempre firme na governo.
defesa do povo e de uma honestidade a toda Haveria de abrir novas rodovias pelo interi-
prova. ar e eis que, no seu espírito, surgiu a idéia do
Combativo e combatido, jamais seus adver- programa de pavimentação das estradas da moa

8rulll••. 32 n. 126IJbrJ]un. 1f19$


da mata - uma inspiração do que realmente se peu-se também um poderoso impulso que
impmha. acudia à consciência de quantos, ciosos
Neste período, governou Pernambuco ape- dos nossos padrões polftícos e históri-
nas por um ano e oito meses, dejaneiro de 1951 cos. entreviram na sua caneira impressio-
à fatídica madmgada de 24 de agosto de 1952, nante de homem público uma consagra-
quando "a indesejada das gentes" arrebatou-o Çe'lo de Pernambuco no cenário nacional
do convivia dos parentes, dos amigos e do povo, moderno.
levando~ para a região dos esplendores. Pernambuco tem esta má sorte, dever
Dois ou três dias antes do desenlace, vindo se desfazer ante os seus olhos, na brutal
a Pernambuco, em função do mandato de depu- instantaneidade dessa perda, a mais es-
tado federal, ouvi dele, muito satisfeito, que fi- timulante esperança dos seus dias. Res-
zera exame das taxas orgânicas e estavam kldas ta, somente, a sua escoJa. NIo a escola
nonnais e ainda que o médico lhe dissera, brin- propriamente dos que a entendem só
cando, que ele tinha uma pressão de menino. como uma continuação de sua corrente
Eis que de repente, já me encontrando no partidária. Mas a escola do arrojo admi-
Rio de Janeiro, o telefone toca às seis horas da nistrativo, da audácia dos horizontes, do
manhã. Era Barreto Guirnanles, que foi logo di- trabalho realizador, da segurança dos
zendo: Jarbas, Or. Agamemnon morreu. seus passos, da sua honestidade, em
Passamos logo, os da bancada federal, a nos suma, que lhe conferiram o respeito e a
comunicar uns com OS outros, e juntos viemos admiraÇe'lo nacionais".
quase todos num avião cedido pelo Ministro Um dos líderes nacionais do Partido Social
da Aeronáutica. Democrático - grêmio majoritário- tinha o seu
Foi uma viagem que se tomou mais longa. nome cogitado, com as melhores chances. para
Enquanto isto ele continuava no salão nobre a sucessão presidencial; e, ainda, pela sua cor-
do Palácio do Governo - Palácio do Campo das reta e eficaz atuação no Congresso, contava
Princesas - na imobilidade do fim. E o povo com a simpatia devários lideres das outras agre-
num interminável desfileaolhar, pela última vez, rniaçôes.
o seu lider então inanimado. Sua perda foi, assim, das mais sentidas e
Como escreveu Paulo Gennano de Maga- lamentadas. Uma grande frustração nos meios
lhães, seu filho: "O coração traiu-o. Nunca dera poHticos do pais e sobretudo em Pernambuco.
sinais de fraqueza 'kio a dor violenta e o cora- A memória de Agamemnon Magalhfes foi
ção pára. O golpe fora traiçoeiro e fulminante". exaltada no Congresso Nacional pelas mais ca-
Não cabe descrever aqui o impressionante tegorizadas personalidades.
cenário de desolação que envolveu Pernambu-
co inteiro. A sociedade por todas as suas clas- Foi dito, entre outras manifestações de apn:-
ses uniu-se num profundo sentimento de pe- ço e admiração, que o seu desaparecimento tor-
sar. Ele havia quebrado antigas resistências. Os nara o jogo politico menos emocionante; que
humildes deram expansão à sua dor. O povo ao redor dele seria impossivel instalar-se a indi-
chorou a sua morte. Foi um malogro geral. ferença e que o Brasil haveria de sustentar-se
no seu exemplo e na sua memória.
Desejo que deste meu trabalho constem
palavras insuspeitas do saudoso intelectuaJ e Memória - acrescentamos nós - que inte-
homem público Gilberto Osório de Andrade, gra o patrimônio histórico de Pernambuco e do
porque elas são por demais ilustrativas daque- pais.
lemomento. Samuel Duarte, ex-presidente da Câmara dos
"Pernambuco frustrado" foi o tituJo de seu Deputados, dessa maneira opinou:
artigo publicado na Folha da ManhiJ, edição "Quando observo como ele superou
de 31 de agosto de 1952. as paixões do seu tempo e como entre as
Vejamos o que ele escreveu: vozes de seu partido foi uma voz altiva,
"Por isso, com a sua morte, sentimo- de bom timbre pernambucano, percebo
nos frustrados. Interrompeu-se não a como cresceu nele o principio vivo da
vida de wn homem, tão-somente, embora liderança.
singularmente cara aos seus parentes, Num cenário de exibiQÕCS medtocres,
seus amigos e seus liderados. Interrom- Agamemnon marcou um perfil para a
posteridade. Num palco de fortunas im- rio de Santo Amaro, no Recife, com as seguin-
provisadas pela corrupção, guardou a li- tes palavras, que jamais esqueci:
nha de uma dignidade sem artifício. Na "Doutor Agamemnon, era assim que
arena, onde a política costuma premiar a o chamávamos, assim continuaremos a
insignificância, ficou insensível à lisonja chamá-lo, dando às palavras o mesmo
para dirigir ou servir com independência. tom de amizade e de respeito com que
Porque era, no discernimento de Emer- sempre as animáv3Inos" .
son, um caráter" . E não é preciso acrescentar que guardamos
A morte traiçoeira só aparentemente inter· sempre o mesmo sentimento e a mesma fideli-
rompeu seus planos de governo, porque, como dade a ele, que nos iniciou na vida pública.
escreveu o saudoso e caro amigo Nilo Pereira,
seu líder na Assembléia Legislativa: Agamemnon Magalhães foi uma forte vo-
"O tempo não contava para ele como cação política, dotado do sentimento de morali-
fator maior de desenvolvimento... o que dade pública, inspiração ética, essencial à arte
contava era a idéia. O que ele não pôde do bom governo.
fazer, deixou para que outros fizessem; e Com a intuição dos fatos, discemia os acon-
todos tiveram que fazer, porque ele não tecimentos, o que lhe propiciou uma natural li-
deixou um legado pessoal: sua herança derança.
era uma consciência do futuro de Per- Fora apropriado para comandar e construir,
nambuco". para inovar e, nas horas adversas, manter a con-
O líder da oposição udenista, deputado Dio- fiança nos resultados, no sucesso.
cleciano Pereira de Lima, proferiu emocionada
oração, ressaltando a inteligência, o espírito ele- Figura singular e de psicologia complexa.
vado, o civismo de Agamemnon Magalhães: Vigoroso na polêmica, mas com a mercê da
"Desse homem de luta - e homem de reconciliação.
luta foi ele antes de mais nada - desse Forte e humano. Forte com os poderosos,
sertanejo de têmpera rígida com quem emotivo com os humildes. Nas audiências pú-
sempre me defrontei, como disse, em blicas, revelava o seu sentimento no carinho
campo adverso, que poderei dizer neste com que recebia os pobres.
momento? Apenas que venceu pelo ta- Seu espírito voltava-se, de preferência, para
lento, pela inteligência, fortaleza de âni- os problemas sociais e essa poderosa inclina-
mo, pelas virtudes cívicas e o interesse ção orientou fundamentalmente a sua conduta
do bem comum". e o seu trabalho na vida pública. O seu trabalho
Por sua vez, o saudoso e fraternal amigo e a sua doutrinação.
Amaury Pedrosa, então vice-líder do PSD na O fato político é só um aspecto a conside-
Assembléia Legislativa e depois deputado fe- rar, enquanto a complexidade do social há de
deral, proclamou, com muita precisão, em seu ser da compreensão e da responsabilidade do
discurso, que ele "tombara como vivera e gos- estadista.
tava de viver: governando". Político de dedicação total à causa coletiva,
Quanto a mim, iniciei o meu improviso fa- honrou as tradições de altivez, moralidade e ci-
lando em nome da bancada federal do Partido vismo dos homens públicos de Pernambuco.
Social Democrático, em seu enterro, no cemité-

267
Da Jurisprudência como ciência
compreensiva
A dialética do compreender mediante o interpretar

sUMÁRIo

J. A compreensão e a "pré-compreensão ". 2-


Interprelação e aplicação das nonnas como proces-
so dialJlico. 3. Ciência Jurídica e Método de Análise
de Ungllagem.

Na medida em que as concepções do direito


com um sistema fechado e acabado tornaram-
se insuficientes para explicar a complexidade
da realidade contemporânea. na qual os pode-
res são heterogêneos e disseminados na trama
societária. e onde a linguagem nem sempre é de
fácil apreensão ou possuindo a mesma eficácia
ou validez. os problemas da jurisprudência da
hermenêutica tornaram-se essenclai.s para (l
desenvolvimento do pensamento jurídico. Por
isso mesmo. nos limites deste artigo. ele será
visto nas dimensões do ato de compreender e
da análise da linguagem como método por ex-
celência da jurisprudência.
Fazendo-se uma rápida digressão histórica,
de fato a ênfase do formalismo à análise das
Miraey Barbosa de Sou~a Guslin é Professora expressões dos anunciados normativos justifi-
da Faculdade de Direito da Universidade Federal de ca-se pela própria situação de uma sociedade
Minas Gerais. Mestre em Ciência Po\itica. Dou\o- re\ativamente estável. e que os problemas jurí-
randa em Filosofia do Direito. dicos. na sua maior parte. eram de meras com-
plexidades e quase sempre de natureza privada.
O conteúdo dos conflitos pertencia. em grande
Vimos a público admitir nossa inteira responsa- extensão. à esfera individual. não envolvendo
bilidade par erro cometido na Revista n. o 125 no confrontos grupais (que ocorriam de forma es-
tocante li pafia do nome e demais dados pe.'1Soais porádica) ou de classe.
da nossa eminente colahoradora !diracy Barbosa
de SOIl.m Gustin. a quem apresentamo.~sinceras des- No século passado. até seu final. a interpre-
culpas pelo eqrlivoco e cujo trabalho com muita sa- tação da lei persistiu como uma questão emi-
tisfação aqui reproduzimos. nentemente técnica e que se limitava a detenni-
Cabe. todavia. ressaltar que o texto da ohm em nar o sentido textual da lei. Tomaram-se de uso
questão. comlante da página 15/ apágina 158 da- freqüente as conhecidas técnicas de interpre-
quela revista e republicado neste número, está em
integralfidelidade com o seu original.
tação gramatical - buscando o sentido voca-

. . .lIIa a. 32 n. 126 abrJlun. 19SJ5


bular da lei (de interpretação lógica). procuran- texto legal. compreendendo-o: a segunda con-
do o sentido proposicional (de interpretação siste em indagar em que limite esta compreen-
sistemática). perquerindo o sentido proposici- são não se toma. ela mesma. num acréscimo.
onal (de interpretação sistemática). pcrqllcrin- Essas questões têm grande valor tendo em vis-
do o sentido global- e OIdimentos de interpre- ta que os judiciários de sociedades menos de-
taç{lo histórica -. objetivando a identificação senvol\'idas. como a nossa. encontram-se. por
das origens dos textos normativos. razões diversas. limitados em sua capacidade
As crescentes exigências de intervenção adaptativa ao novo contexto.
estatal nos domínios econômicos e sociais - Essa polêmica fez surgir alguns pressupos-
surgimento do "Estado Monopólio" e do "Es- tos fund.:1mentais do processo hennenêutiW.
tado Providência'" - noo apenas produziram ai· Dentre eles. sugeriu-se que:
temçõcs diversas no sentido da Icgislnção. 1. todo ato interpretativo tem. necessaria-
como induziram a novos desdobramentos nos mente. de p.1rtir da própria legislação vigente.
procedi mentos hermenêut icos. A própria idéia Esse principio. afinal, revela a natureza dogmáti-
de normas programáticas. abrindo pma uma ca do ponto de partida da hermenêuticajuridica;
concepção do direito como sistema aberto às 2. o intérprete é livre. Este principio se refe-
transformaçôcs em ra7<10 dos problemas emer- re aos aspectos subjetivos da interpretação,
gentes l • requerendo por parte do intérprete enquanto o primeiro se refere aos aspectos 0b-
maior argúcia quanto ao sentido proposita<L1- jetivos. Dentre os dois. porém. parece haveruma
mente vago na letra da lei; mostra essa exigên- esfera contraditória e de quase negação mútua;
cia mnior sobre os métodos interpretativos. E.xi- 3. a interpretação tem caráter deontológico
ge-se. assim. reformulação no p.1pel tradicio- e normativo. Considerando a tensão apresen-
nalmente exegético do Judiciário e. de outro. tada no item anterior. entre a existência de um
viabilizem-se tentativas ampliarl..1s de compre- critério objetivo e o arbítrio do intérprete. s0-
ensão do pensamento do legislador expresso mos levados à conclusão magistralmente apre-
pela norma. sentada por Ferraz Jr. :
Os problenL1s das atividadesjuridica. juris- "(...) não apenas estamos obrigados a
dicional e legislativa deixam de se limitar à con- interpretar (não há nonnas sem sentido,
figuração sistemática da ordem normativa. para nem sentido sem interpretação), como
a qual eram suficientes as técnicas de interpre- também deve haver uma interpretação e
tação tradiciona is. passa 000 a ser o da detem- um sentido que prepondere, e ponham
naç.'\o de sentido dos enunciados normativos. um fim (prático) à cadeia das múltiplas
Surge. então. a contenda em tomo da legitimi- possibi I idades interpretativas"4.
dade ou não dessa ultrapass.1gem por parte do Este fim prático a que se refere o autor tem
intérprete do âmbito d.:1. simples compreensão em vista o problema da decidibilidade, ou seja,
da norma. Daí. conseqüentemente. o surgimen- a Ciência do Direito deixa de se preocupar com
to de metodologias mais adequadas e que se a determinação daquilo que materialmente sem-
estruturavam nas novas indicações de outras pre foi direito - com finalidade de descrever
disciplinas do campo das ciências humanas e aquilo que pode ser direito (relação causal)-,
sociais. dirigid.:1s ~ aplicação de rigorosa análi- passando a se ocupar com aquilo que deve ser
se de discurso baseada nas contemporâneas direito (relação de imputação). Esse passar teve
formulações da análise de linguagem. em vista o ato de se ocupar com a oportunidade
A contenda referida no parágrafo anterior de certas decisões, tomando-se, assim, uma
pode ser expressa pelas divergências doutriná- questão de decidibilidade, ou melhor, de busca
rias que se deram em tomo de duas questões das condições de possibilidade de urna deci-
principais2 : a primeira consiste em s.1bcr até que são hipotética para um conflito hipotético (hi-
ponto um ato interpretativo é capaz de captar o pótese de decisãolhipótese de conflito).
I Sobre isso. ver: REAtE. Miguel. EShldos de
filosofia e ctêm:ia do Direito. Silo Paulo: Saraiva. 1978 3 FERRAZ JR., Tércio Sampaio. A ciência do
(especialmente a seção: "Para lima hennenêutica ju- direito. Silo Paulo: Atlas, 1978.
rídica estrutura!''). 4 Consultar: FERRAZ JR.. Tércio S., op. cito
2Sobre isso. ver: ENGISClI. Karl. bltrodllfão PERELMAN. Chaim; OLBRECHTS-TYTECA,
ao pensamento jurídico. Lisboa: Fundação Calouste Lucie. Trl/ité de I'argllmentation. Bruxelles: Ed. de
Gulbenkian. s.d. (xerox parcial da obra). l'Universite. 1988.

270
Tudo o que foi dito leva-nos a entender que. esfera que POS5<1 ser considerada problemática
com crescente comple:xidnde do mnndo contem- em sua compreens.io do sentido e da ordem do
ponineo e o e:xçepcional desenvolvimento ci- discurso. Isto se dá dessa forma, justamente
entífico. o problema por excelência do direito e pela própria nature7.a desse processo: irreflexi-
da filosofia do direito tomou-se metodológico va. Essa apreensão refere-se ao nível mais sim-
(como agi r" como interpretar? como comprecn- ples das relações. ou seja, aquela se dá através
der?) e das decisõcs metodológicas. de hábito e do condicionamento. Inserem-se
Este tmbalho pretende. justamente. discor- nessa esfera as COnVeT&1ções de uso comum
rer sobre p:1rte desse problema. do dia-a-dia e as comunicações mais simples.
Nessa órbit.1 da comunicação. os chamados "ru-
Os primeiros tratadistas. no início da Idade ídos" só se dão em casos excepcionais e que
Média.já discutiam amplamente sobre a natu- não valídmiam uma regra geral.
reza da jurispnJdência~. A discussão dava-se Na apreens.io imediata de sentido. não se
em tomo d:1s ind,1gaçõcs se jurispmdência se- coloca a possibilidade de interpretações dife-
ria ciência ou arte. Era ela considcrnda como renciadas do conteúdo. Ela se dá quase que
ciência por seu aspecto teórico e. como arte. exclusivamente através da percepção sensori-
por sua função prUlica. Algo bastante seme- al. por isso é irrctlexiva.
lhante à discuss.1:o moderna sobre sc se deve Quando. ao contrário, a situação de comu-
distinguir uma ciência do direito de uma técnica nicação em foco é passível de apreensões dife-
jurídica. Para os jlIsnaturalistas. a partir do sé- renciadas e heterogêneas. toma-se necessário
culo XV1I1. tratava-se de fimdnr uma jurispru- um processo reflexivo sobre o conteúdo do dis-
dência que tivesse fundamento científico, ou curso e a interpretação de seu sentido. Nem
melhor. que se adequasse o método à concep- sempre é somente a complexidade maior do tex-
ção racionalista do saber que o cartcsianismo to ou <1.1 comunicação que dirige a situação para
difundia. a instauração de um processo interpretativo.
No século em curso. inicia-se uma grande Alguns complicadores, como a inadequação da
discuss.1:o metodológica de duas grandes es- fala ao objeto, o uso da simbologia imprópria e
colas jurídicas: a normativista. que encontrou a imprecisão de termos. dentre outros. podem
sua expressão maiore mais coerente na doutri- ser mais perniciosos para a comunicação do que
na de Kelsen. e a sociológica. que encontrou sua complexi<1.1dc de conteúdo.
seuexpocnte na corrente realista americana. Para Larcnz, "interpretar é uma ath·idade de
Mais contemporancamente. entram no de- mediação pela qual o intérprete compreende o
bate os seguidores da filosofia da linguagem e sentido de um texto que se lhe apresenta como
da análise do discurso. dando à discussão no- problemático"'. Como entender mais precisa-
vos mmos e outras direções. Isto porque, ten- mente essa definiç<'10?
do em vist:1 o fato de que :1 jurisprudência trata Qt.mndo o autor se refere a urna "atividade
do sentido normativo a que :1S expressões lin- de mediação". podemos entender essa afirma A

güísticas correspondem. n:1d:1 mais lógico do ção sob a ótica de orientações diferenciadas.
que conceder novo status metodológico aos pro- Na tradição kantiana. por exemplo. o ato de sa-
cessos an:1lít icos e interpretativos da linguagem. 6 ber ou as condições de experiência em relação
Considerando o ato de compreender. segun- ao seu objeto deveriam ser idênticas ou indis-
do Larenz. as expressões li ngüísticas podem ser cerníveis. Isto significando que não haveria
entendidas através de um processo de apreen- mediação ou transposição entre uma coisa e
são imediata do sentido (modo irretlexivo) ou outra. visto que condições de experiências e
mediante um processo sistemático de interpre- objeto de experiência são sempre idênticos.
tação (modo reflexivo). Desnecessário dizer que Muraris mlltandis, o ato de saber ou de conhe-
no processo de apreensão imediata inexiste uma cer não se faria através da interpretação, se con-
siderada esta como uma atividade de mediaçãos.
5 BRIMO. Albert. /,es grnnds COllrnnts de la Se considerarmos, ao contrário, o ato de
pllilosophie d!l droit el de I 'bato Paris: Ed. A Pedone, saber na concepção formulada por Nietzsche,
1978. BOnBlO. Norberto. Teoria del/a sdenza glll- teremos que entre o conhecimento e o mundo a
ridica. Torino: G. Giappichclli Editore, 1950.
6 Ver: LARENZ. Karl. Aletodorogia da Ciênda
7 LARENZ, Karl. Op. cil.. pp. 239-40.
do Direito. Lisboa: Fundayão Calollste Gulbenkian, BKANT. Emanuel. Crítica da razão prátim. São
1983. Paulo: Brasil. Editora SA. 2.' ed.. s.d.
. ,. .111••• 32 n. 126I1br./Jun. 1995 271
conhecer há tanta diferença qnanto entre o co- forços do espirito cientifico, uma razão à
nhccimentoe a natureza humana. Ter.-se·ia, por· imagem do mundo, a atividade espiritual
tanto, "uma natureza humana, um mundo (ou da ciência moderna dedica-se a construir
objeto do saber), e algo entre os dois que se um mundo à imagem da razão"'O,
chama conhecimento. não havendo entre eles Ora. estli claro que as afirmações de Bache-
nenhuma afinidade, semelhança ou mesmo elos lard confirmam a assertiva de Larenz, ou seja,
de naturc7.a"9. Assim. a ativid.1de de conhecer de que a atividade de observação cientifica, e a
não estaria inscrita na natureza humana e nem própria ciência. fundamenta-se na problemati-
seria idêntica a ela. podendo. assim, ser consi- zação do objeto de estudo. O simples não exis-
derada como uma mediação, ou seja. uma "vio- te na atividade de conhecimento cientifico; exis-
laç.'1o" (termo usado por Nietzsche) da essên- te o "simplificado" e o "reduzido", Não existem
cia do objeto. Entende-se. portanto. que nesse fenômenos ou naturezas simples, nem idéias
sentido último de "violação", a atividade de in- simples, pois, ao final em suas essências, são
terpretar deveria rcali7.ar um "desmaranhar" sempre conjuntos de relações ou unidades de
completo do fenômeno em conhecimento. um sistema complexo de pensamentos e experi-
Para o próprio Larenz. em que consistiria ências.
essa atividade de mediação? Tentemos enten- No campo da jurisprudência, a problemati-
der sua expl icação dentro de seqüências su- zação é possível, justamente porque os textos
cessivas: jurídicos são redigidos em linguagem corrente
ou, então, numa linguagem especializada que
.", O intérprete toma--sc consciente de que
há diferentes significados do termo ou do texto
apresentam razoável margem de variabilidade
em questão; de significação. Hart se refere a isto como "tex-
tura aberta" do direito. O que se dá no momen-
2". tendo em vista o significado "correto", to final da seqüência de mediação (a opção do
interroga-se sobre o conte:\.10 te:\.1ua1 e sobre o intérprete) é uma tomada de consciência sobre
seu próprio conhecimento do objeto do texto; estruturas d.1 comunicação em linguagem cor-
3", examina a situllção que deu origem ao rente e urna indicaçao crítica que deverá produ-
tC:\.10: zir o correto e a inteligibilidade. Isto se dá atra-
vés da indicação da ruptura do sentido ou da
4", opta por uma entre muitas possíveis in· reconstituição da unidade perdida.
terpretaçõcs com b.1se em considerações devi-
damente fundamentadas, \bltando à definição de "interpretação" dada
por Larcnz, falta-lhe, talvez, algo que se refira à
Como se vê, dá·se um processo de proble- experiência anterior do intérprete com o texto,
mati7.ação do texto. O autor, em vista dessa pro- ou com a linguagem especial do texto, Poís, re-
blemati7.ação. atribui à jurisprudência o status petindo Gadarner, compreender o sentido de um
de ciência, Seria esta afirmação verdadeira? Ve- texto RIo é uma tarefa simplcs e direta, toma-se
jamos o que diz Bachelard sobre ciência e 0b- necessária a instauração de "um processo de
servação científica: tradução e fusão de horizontes, urna incorpora-
"A observação científica é sempre ção do estranho no que é próprio" 11.
uma observação polêmica: ela confirma Considerando o que até aqui se disse, em
ou infirma uma tese anterior. um esque- princípio todos os textos jurídicos são suscep.-
ma prévio, um plano de observação; ela tíveis de interpretação e não os chamamos
mostra, demonstrando: ela hierarquiza as "obscuros" ou "pouco claros", As sentenças
aparências; ela transcende o imediato: ela judiciais, da mesma forma, também carecem de
reconstrói o real após ter reconstruído interpretação, não só as leis e contratos, Aju-
seus esquemas (.. ,) A ciência suscita um risprudência, nesse sentido, não pode ser vista
mundo, não mais por um impulso mági- como mera repetição ou reprodução de deci-
co, imanente à realidade. mas antes por sões. Justamente por ser uma atividade cienÚfi-
um impulso racional. irn.:1nente ao espíri- ca e de se inserir no campo das ciências criti-
to. Após tcr formado, nos primeiros es-
, NlETZSCHE, F. Gaia Ciência. Apud FOU· 'OBACHELARD, Gaston. O"ovo espírito cien-
CAULT. Michel. A W'rdode e as fomuu jurídicas, tífico. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1968 (grifo
Cadernos da PUC/RJ, Série Letras e Artes. Rio de do autor).
Janeiro: Pontificia Univer.lidade CatólicalDivisão de 11 GADAMER, Hans-Georg, Verdade e método.
Edições, 1979. p. 13. (Xerox. s.n.r.).

272
caso a jurisprudência se dedica. nesse campo. a Há que se ressaltar. contudo. que essa es-
ordenar as decisões e inseri-Ias em novas co- trutura ci rcular da compreensão não é, pura e
nexõcs jurídicas de sentido. si mplcsmente. um retomo ao ponto de partida,
As circunstâncias hermeneuticamente rele- um reinício circular (volta ao entendimento das
vantes são assim definidas. na opinião de La- palavras. termos ou signos em si). mas a abor-
renz. conforme o objetivo da interpretação que dagem do texto em novo estádio de compreen-
se reali7.a. Pode-se ter em vista. por exemplo. a sào. Ou melhor. um processo de olhar para fren-
opinião do autor. ou do comunicador. Nesse te e para trás. de "circular ao redor". até que a
caso. interessará o "motivo" da declaração. a suposição inicial. ou que surge durante o pro-
"situação em que se encontrava o comunica- cesso de intepretação. se converta em certeza.
dor (ou locutor. ou autor). os seus modos" ha- Nesse sentido. Larcnz demonstra que o pro-
bituais de expressão. etc. Pede-se. por outro cesso de compreender tem seu curso não ape-
lado. ter em vista a própria coisa e~1>Osta (texto, nas em uma direção linear, como uma cadeia
lei. conceito. etc.) c. daí. a sistemática de com- lógica de conclusões com sentidos diretos,
precns:lo será outra e terá outros interesses. Engish. citado por Larenz. refere-se a um "ir e
Qunndo se disse que os textos jurídicos são vir de perspectiva", inclusive na aplicação da
sempre susceptíveis de interpretação. não há norma a uma determinada situação fática.
nisso nenhum sentido depreciativo da lingua- Algumas situações podem ser tomadas
gemjuridica. de sua dare7~1 ou propriedade, Ao como regulares. No início do processo de com-
contrário. O processo de interpretação é um preender dá-se. infal ivelmente. o que se chama
processo. seqüencialmente. uma intensificação de "conjectura de sentido". por vezes ainda
do poder crítico e de reorganização conceitual vaga. Entende-se por esse termo aquele está-
de uma linguagem ou do substrato cientifico e dio da compreensão em que o intérprete se mune
filosófico dessa linguagem. de uma si mplcs insighrs. Ela decorre de um lon-
I. A compreensão e a "pré-compreensão" go processo de aprendizagem conjecturaI do
Conforme Betti. a interpretação de um texto intérprete. ou de con hccimento ou experiências
trata da "totalidade do discurso no seu valor adquiridas ao longo de sua formação: uma rela·
semântico"12. ou seja. refere-se não só ao senti· ção direta com juízos ainda imprecisos ou su-
do de cada uma das palavras. mas. inclusive. à posições ainda incompletas.
seqüência de palavras e frases que expressam Gademer. em seu livro férdade e Método.
um contínuo de idéias. Dá-se. pois. o que se refere-se a essa "pré-eompreensão", como um
pode identificar como um "círculo hermenêuti- "pré-juízo", Não no sentido popular de dano
co". isto é. o significado das palavras só pode ou de falso juízo. mas de juízos antecedentes,
ser inferido da conexão de sent ido do te~10. Este. que dizem respeito à relação do próprio intér-
por sua vez. forma seu sentido. em última ins- prete com o mundo que se assemelha ao fato e
tância. do signific:ldo d:ls palavras que o for- com a experiência correlata anterior, Isto signi-
mam ou da combinação de pnlavras. fechando- fica quc o texto só "fala" àquele intérprete que
se. assim. o "círculo", P:lr:l se atribuir si gni fica- já compreende tão amplamente a sua lingua-
doé necessário. primeiro. que sccompreendam gem e a coisa de que ele fala. de modo que lhe
as partes (entes. signos ou sujeitos) engendra- seja franqueado o acesso à compreensão da·
dos na linguagem: segundo. é preciso agrupar quilo que o texto di?: nllma primeira fase atra-
e distinguir os usos ocasionais e errátivos: em vés da "pré-eompreensão" ou do "pré-juízo".
tereeiro plano. necessita-se identificar ns situa- Para esse pensador da hermenêutica e da filo-
ções significativas e simbólicas em geral. Che- sofia da linguagem. a ligação entre o texto e o
gando-se. assim. seqüencialmente e sistemntica- intérprete se faz através da linguagem. dos sig.
mente. ao significado da totalidade do discurso. 1J nos. c de uma cadeia de tradição em que ambos
se inserem.
12 BETTl. Emílio. Teoria gt'l1erale delfa illter- "Cadeia de tradição" em um processo juris-
pretazione..!fplld.1 ARENZ. K.. op. cit.. r 242 (nota prudencial é aquela em que as normas vigentes
51). e as formas reconhecidas do pensamento jurí-
n Ver sobre o assunto: OGDEN. C. K.~ RI- dico decorrem do trabalho precedente de mui-
CHARDS. J A. EI sif!!lifimdo deI significado. una tas gemçõcs de juristas. Como se vê. tudo deve
inl'e,~/igacion acerca de la inflllencia deI lengllaje
sohre el pensamieniO y de la ciencia simhólica Aue-
c
ser examinado dentro de uma seqüência histó-
nos Aires: Fd. Paidos. 1954. rica sistematicamente tmbalhada e dentro de uma

&-.111••• 32 n. 126 IIbr./Jun. 1995 273


totalidade conceitual. A ciência se faz dentro visto que é a resolução das contradições em
de uma noção de espaÇ<rtempo lato e ininter- que a realidade finita (realidade fática), que como
rupto. Mesmo numa vis.:10 de desenvolvimento tal é objeto do intelecto. permanece enredada.
por rupturas o processo seqüencial não pode Nesse sentido. a dialética como síntese dos
ser descartado. opostos consistiria:
Segundo Esser. a "pré-compreensão" pos- l.~ na colocação de um conceito "abstrato
sibilita ao juiz não somente uma única conjec- e limitado" (no presente caso, a colocação da
tura de sentido em face do entendimento da oonna);
norma e de1 solução a encontrar, mas a constru- 2.~ no suprimir-se desse conceito como algo
ção para si próprio de uma "convicção dejuste- de "finito" e na passagem para o contrário dele
7.8" com base nas suas pré-compreensõcs al- (ou o que a ele se opõe ou difere em parte: o
cançadas graças à sua experiência profissional fato complexo ou a situação fática);
e sua capacidade critica e de análise verticaliza- 3.°) na síntese das duas determinações pre-
da do sentido intencionado pelo ordenamento cedentes. síntese que conserva "o que há de
jurídico. afirmativo na sua solução e na sua passagem"
Há. ainda. um sentido negativo de "pré-juí- (em nosso caso, o momento da aplicação da
zo" ou de "pré-comprcensão". ou seja. a parci- norma interpretada).
alidade de aprecnsc'lo do fato daquele que ajui- Assim. no conceito hegeliano, a dialética é
za e valora com pré-julgamentos que emanam não só a lei do pensamento, mas a lei da realida-
de seu meio social. de sua formação e que de- de e os seus resultados não silo puros concei-
terminam um ato de julgar vicioso. que não se tos ou conceitos abstratos. mas "pensamentos
atém à questão em si mesma e em suas relações concretos", ou seja, realidades verdadeiras e
e nexos. Transforma-se, assim. em uma esfera próprias. realidades necessárias, determinações
de incorporação de preconceitos, no sentido ou categorias eternas. Em toda parte existiria,
negativo, transfommndo-se em urna barreira ao pois, tríades de teses, anUteses e sínteses.
conhecimento. Esse é o espaço de risco da ati- Para Larenz, as normas juridicas silo inter-
vidade interpretativa e que pode ser minimi7.8- pretadas por serem "aplicadas" a casos con-
do pelo rigor da aplicação do método selecio- cretos. Isso se dá, contudo, a partir de um exaus-
nado para a busca do sentido e do significado tivo processo dialético interpretativo. Somente
desse sentido. duas situações não justificariam um processo
2. Interpretaçao e aplicação das normas interpretativo:
como proce.'lso dialético a) quando a norma aplicável estiverjá em si
É preciso. antes. entender o que é dialética. tão determinada que o seu verdadeiro conteú-
Esse termo. conforme Nicola Abbagnano ' \ de- do esteja fora de questão;
riva o seu nome de diálogo mas não foi aplica- b) quando a situação fática a julgar também
do na filosofia com esse sentido unívoco. Na já esteja determinada em todos os seus elemen-
história da filosofia, é possível distinguir qua- tos e seja assim suscetível de se ajustar fiel~
tro significados fundamentais desse termo: mente ao modelo dado na norma.
1.°) a dialética como método da divisão (dou- Via de regra, no entanto, essas duas situa-
trina platônica); ções nunca ocorreram dada a complexidade
2. ~ a dialética como lógica do provável (dou- constante das situações fáticas e, por isso, a
trina aristotélica); impossibilidade de a norma abarcar todas as
suas nuances e elementos. E, ainda, o conteú·
3.~adialéticacomo lógica (doutrina estóica);
do da norma nunca está suficientemente claro e
4.°) a dialética como síntese dos opostos preciso. correndo-se o risco de se tratar o desi-
(doutrina hegeliana). gual como "igual" e assim resolver injustamente.
O texto de Larenz parece remeter à doutrina Nesse sentido, no decui-so contínuo da apli-
hegeliana. na qual a dialética formulada pelo cação judicial. torna-se necessário um proces-
idealismo romântico alemão (primeiro por Fi- so constante de interpretação ou de comple-
chte. na Doutrina da Ciência. em seguida por mentação das normas por parte dos Tribunais
Hegel) é a "própria nature7.a do pensamento", (especialmente as mais altas instâncias). Ins-
taura-se, então. uma linha histórica da aplica-
I~ ABRAGNANO, Nicola. Dicionário de Filo- ção da norma: uma interpretação tem o "efeito
sofia. São Paulo: Ed. Mestre Jou, 1982.
274
de servir como exemplo a outras decisões. às tir da alteração do conceito de razão e, portan-
quais acrescem logo novas interpretações e to. também do de verdade, em aberto confronto
complementações (. .. ). No começo. está o texto com o racionalismo clássico. Para este. a ra7110
da lei - só aparentemente claro e fácil de aplicar é a esfera suprema da verdade e é única em
- e no final (... ) uma teia de interpretações. res- todos os homens. porque não é uma de suas
trições e complementações. que regula a sua obras. eln lhe é atribuída. Como é algo absolu-
.aplicação' no caso si ngular e que tra nsmudou to. pois não depende de condições mutáveis
amplamente o seu conteúdo". E a isto se chama do homem na hislória. t'lmbém a verdade alcan-
simplesmente como um processo de "aplicação çada pela ra7.<10 é um dndo absoluto.
das normas" ~ 15 O racionalismo clássico lida, pois. com a
Para Gadamer. o jurista em sua tarefa práti- esfera do absoluto, pois funda suas concep-
co-normativa f.1Z com que em cada caso o pas- ções sobre uma razão que é preestabelecida
sado seja visto na sua continuidade com o pre- externamente ao homem. Somente ao homem
sente. que participa dessa "razão" é dado "conhecer"
Larcnz t1Z. no entanto. um reparo a essa afir- a verdade absoluta que transcende à sua situa-
mação de Gadamer. Para ele. "o problema fim- çâo empírica. Esta concepção absoluta da ra-
damental para quem aplica a norma não é a dis- zão e da verd.'lde implica. ainda. uma concep-
tância temporal. mas a distância entre a neces- ção absoluta da lógica. isto é. o complexo das
sária gencrn\\dade da norma e a singularidade regrns com base nas quais a Ta7.ãO atinge a ver-
de cada caso concreto". Pode-se concluir. por- dade. Lógica que deverá ser, também. um único
tanto, que a idéia de "medida igual", elemento conjunto de regras.
de base da "justiça", é pura ilusão. O progresso do saber científico fez ruir toda
3. Ciência Juridíca e Método de Análise essa concepção do absoluto. Descobriu-se que
de Linguagem aquelas verdades tomadas como inquestioná-
C()m~em()!'i esta seção final deste artigo -
veis. não o eram. e puderam ser substituídas
talvez seu ponto mais importante. porque polê- por outras proposiçõcs sem que o trabalho ci-
mico - por uma ind.1gação aparentemente sim- entífico perdesse a sua fecundidade. Procede-
plória e despretensiosa: "qual o significado que se, assim. à substituição do velho conceito de
se tem querido emprestar à palavra 'ciência 'T apoditicidade dos postulados, pelo novo con-
ceito da convencional idade das primeiras pro-
Façamos uma breve digressão no tempo, posições,
Nos últimos decênios, fomos espectadores
de uma profunda transformação da concepção A concepção absoluta foi substituída por
geral de ciência. O que se entende por ciência urna concepção instrumental da Ta7ll"0. E da con-
no mundo contemporâneo da Física Quântica, Cepç.10 absoluta da lógica passou-se a uma
da Biotccnologia. da Engenharia Genética. da concepção de lógica plural. A razão transfor-
Antropologia I1uminativa, dentre outros tantos mou-se. pois. em um conjunto de procedimen-
progressos científico-tecnológicos? tos intelectuais desenvolvidos e aperfeiçoados
'M) ~Tht) n';l 'r1)~\t>n~ 6t1 'r1omem. tssa razão é
A concepç..1o moderna da ciência. que se constituída. permanentemente construída e
foi formando gradual mente a partir de uma cons- aperfeiçoada. Inicia-se. assim. um movimento
ciência cada vez maior que os cientistas con- em direção a um racionalismo critico que. se-
quistaram do próprio trabalho de pesquisa, e gundo Bobbio. "não hipostasia os procedimen-
que foi inquestionavelmente estimulada pelas tos racionais. mas que habitualmente os consi-
grandes descobertas e transformações do sé- dera em função da pesquisa que os origina e à
culo. encontrou na corrente do positivismo ló- qual servem" 16.
gicoe do racionalismo critico a fonnulação mais Por outro lado. há o risco de se ver afinnado
plausível e adequada. pelo menos. até o pre-
que a convcncionalidade das verdades primei-
sente momento. Concorreram. porém, para es- ras é uma arbitrariedade intelectual. Mas a prá-
ses resultados várias outras correntes que, tica cientitica dos últimos decênios tem mostra-
como as anteriores. resultaram da crisc do raci- do que esse risco é frágil.
onahsmo absoluto.
Sobre essas teses fundamentais - instru-
Não há dúvida de que o ponto culminante mentalidade da razão. convencionalidade das
da concepção científica atual se estruture a par·
16 BüBmO. N. Teoria def/a scienza... Op. dI., p.
15LARENZ. Kar1. Op. dt., p. 250. 211 .

. . ."••. 32n. 126""'../Jun. 1995 275


proposições iniciais e pluralidade da lógica - Bibliografia
se estruturam as premissas da concepção cien-
tífica contemporânea. Foi justamente pela au- ABBAGNANO. Nicola. Dicionário de Filoso-
sência dessas teses anteriormente que o racio- fia. São Paulo: McstreJou Ed., 1982.
nalismo cLíssico não poderia considerar ajuris- BACHELARD. Gastoo. O novo esplrito cienti-
prudência como ciência. por sua com'cnciona- fico. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro,
lidade. Mudou a ciência e toma-se a jurispru- 1%8.
dência um veio de cientificidade. BOBBIO. Norberto. Teoria del/a scienza giuri-
Na moderna metodologia cientifica. pode- dica. Torino: G. Giappiche1IiEditore.1950.
se dizer que o fulcro do trab.11ho científico é
deslocado da veT<L1de para o rigor. Diz Bobbio BRTMO, Albert. Le...grands courants de la phi-
que a própria verdade é redefinida em termos losophie du droit et de I'état. Paris: Ed.
de rigor. As proposições metodológicas rigo- Pcdone. 1978.
rosas são aquelas que respeitam a racionalida- FERRAZ IR.. Tércio Sampaio. A Ciência do
de e a lógica interna da própria pesquisa e de Direito. São Paulo: Atlas, 1978.
cada uma delas. A cientificidade de uma pes- --o Direito, retórica e comunicaçifo. Sfto
quisa ruJo consiste na verdade. mas no rigor do Paulo: Saraiva, 1974.
discurso na satisfatória definição de todos os
termos c de cada um deles, e na coerência de FOUCAULT. Michel.A verdade e asformasju-
cada enunciado com todos os outros do sistema. r/dicas. Cadernos da PUCIRJ, Série Le-
Daí por que a metodologia do mundo con- trase Artes -6n4, Rio de Janeiro: Ponti-
temporâneo insista t.1nto sobre a relação entre ficia Universidade Cat6Hca/Divisão de
ciência e linguagem: a ciência não é apreensão Intercâmbio e Edições, 1979.
da verdade.. mas éo uso e análise da linguagem GADEMER. Hans-Georg. lérdade e Método
científica. A facilidade de comunicação dos re- (xerox.. s.n.1.).
sultados das pesquisns das ciências, pelo rigor KANT. Em.1J1uel. Critica da rmiJo prática. SIlo
de sua linguagem. levou a uma mudança da Paulo: Brasil Editora. 1959.
consciência científica: de subjetiva passou a LARENZ. Karl. Afetodologia da Ciência do
ser intersubjetiva. Direito. Lisboa: Fundação Calouste Gul-
Assim. toda ciência atual implica, em sua bcnkian. 1983.
atividade. umn constante análise de linguagem.
A pesquisa jurídica, também e muito especial- OGDEN, C. K.; RICHAROS, 1. A. EI significa-
mente. deverá se dedicar ao dcsenvolvimento do dei significado; una investigación
dessa mesma análise de linguagem. Isto por- acerca de la influencia dellenguaje sa-
que a pesquiSo:1 jurídica tem por objeto as pro- bre el pensamiento y de la ciencia sim-
posições normativas. que naeL1 mais são que bólica. Buenos Aires: Ed Paidos, 1954.
enunciados, ou seja. expressões de uma lingua- PERELMAN, Chaim; OLBRECHfS-TYTECA.,
gem determinada. Portanto. em virtude de seu Lucíe. Traité de I 'argumentation. Bm.'<e1-
próprio objeto. a linguagem especifica do legis- les: Ed. de I'Université, 1988.
lador. a pesquisa jurídica. não pode prescindir REALE. Miguel. Filosofia do Direito. São Pau-
da análise meticulosa e sistemática da lingua- lo: Saraiva. 1972.
gem. Esse é o seu método por excelência. --o E'Itudos de Filosofia e Ciência do Direi~
to. São Paulo: Saraiva, 1978.

"e.".t. d••"fDr....._ 1 . .'.''''''.

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