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FATIMA TERESA BRAGA BRANQUINHO DA “QUIMICA” DA ERVA NOS SABERES POPULAR E CIENTIFICO Tese de Doutorado apresentada ao Departamento de Sociologia do Instituto de Filosofia e Ciéncias Humanas da Universidade Estadual de Campinas sob a orientagéo do Prof. Dr. Octavio lanni. Este exemplar corresponde & redagao final da tese defendida e aprovada pela Comissao Julgadora em 17/06/1999 BANCA A Prof. Dr. Octavio lanni Jl VO Profa. Dra. Carmen Sylvia de Alvarenga Junqueira. <<) Profa. Dra. Elide Rugal Bastos & Ged 7 by Profa. Dra. Mariza Corréa Prof. Dr. José Flavio Pessoa de Bai dunho/99 uwoane_... AC (uP CHANAOA: ce eT yo ee bases g a A pR06, Se FF Zo — afl o fal esto By Moo, a, eae #0 cM-00126223~6 FICHA CATALOGRAFICA ELABORADA PELA BIBLIOTECA DO IFCH - UNICAMP B38 d Branquinho, Fatima Teresa Braga Da “quimiea” da erva nos saberes popular ¢ cieutifico / Fitima Teresa Braga Branquinho. - - Campinas, SP: [s. n.), 1999, Orientador: Octivio Tani. Tese (doutorado ) - Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Filosofia e Ciéneias Humanas. 1, Plantas medicinais. 2. Medicina popular. 3. Ciéncias iais. 4. Cultura popular. I. Lanni, Octavio, 1926-. TL. Universidade Estadual de Campinas. Instituto de Filosofia e Ciéneias Humanas, ITL-Titulo. Agradecimentos A realizado deste trabalho s6 foi possivel gragas 4 colaboragdo de muitas pessoas. Aigumas delas nao serao jamais comtemptadas pelas melhores palavras que eu tente encontrar, pois nao ha. Na verdade, daqui por diante, ao pensar nelas ‘ou ao olhar para elas, vou lembrar de sua preciosa e inestimavel contripuigdo, materializada de diferentes formas. Todos esses colaboradores abriram mao, de aigum modo, do tempo que tinham para realizacdo de suas préprias tarefas, dedicando-o a mim na construcao de condigdes materiais, espirituais, cientificas e técnicas que me permitiram chegar até aqui. Por isso, resta-me apenas a oped de parafrasear meus entrevistados, que me encantaram com sua sabedoria: “Nao tem de qué nao minha filha, agradece 6 a Deus, porque 6 s6 por causo Dele que nés tamos aqui.’. Eu agradeco. ‘Aos meus pais, & mae querica, @ mana e aos meus filhos. RESUMO A investigag&o sobre a cultura das ervas entre moradores de um centro urbano como 0 Rio de Janeiro, em feiras-livres de diferentes bairros, no Mercadao de Madureira e numa favela da periferia revelou um dos modos como a sociedade se relaciona com @ natureza. As praticas de cura com ervas estudadas - produto e resumo de intercambios, relagdes culturais e valores - tm no conceito de “quimica” da erva sua expresséo mais precisa na descrigéo dos entrevistados. A “quimica’ da erva implica 0 respeito acritérios de classificagdo ¢ seu papel de mediagdo entre a sociedade, a natureza e @ sobrenatureza. E na “quimica” que se fundamenta todo o “poder” atribuido a elas pelos entrevistados. A adogao dos conceitos de “natureza-cultura’ e de “rede sociotécnica” de Latour, fundamentais 4 sua produgdo teérica, permitiram o estabelecimento de uma relagao entre os saberes popular e cientifico sabre as ervas, ligando num mesmo fio, categorias proprias aos dois saberes: “axé", “quimica’ da erva, “principio-ativo” e “trangénicos”. ABSTRACT The inquiry about herbs culture among people living in a urban center like Rio de Janeiro, in free markets of different neighbourhoods, at “Madureira’s big market” and in a slum in the suburban area revealed one of the ways society relates to nature. The herbs cure practices studied - product and a resume of interchange, cultural relantionships and values - find in the concept of herb “chemistry” its mosi accurate expression in the interviewees’ description. Herb “chemistry” implies classification rules respect and its mediation role between society, nature and the supernature. All “power” inputed to the herbs by the interviewees has its basis in “chemistry”. . Adopting Latour’s concepts of “nature-culture” and “socialtechnic net’, fundamental to his theorethical production, allowed the creation of a relationship between popular and scientific knowledge conceming herbs joining together peculiar categories to both knowiedges: “axé”, herb “chemistry", ‘active principle’ and “trangenics”. ‘SUMARIO INTRODUGAO CAPITULO! AS CULTURAS DA CIDADE oo... CAPITULO II A CULTURA DAS ERVAS ... CAPITULO III A ORIGEM DA SABEDORIA DAS ERVAS CAPITULO IV MODOS DE PREPARO ... CAPITULO V MALES E CURAS.... CAPITULO VI POPULAR E CIENTIFICA ........ CAPITULO VII VISAO DE MUNDO... CONSIDERACOES FINAIG......... ANEXO 1 - Listado sobre Males Curas ..... ANEXO Il - Projeto de Lei n? 306 de 1995 - Capitulo IV - Da protegao do conhecimente .... REFERENCIAS BIBLIOGRAFICAS ... o7 24 45 113 INTRODUGAO ‘Ao tempo em que trabalhava em um projeto de extens&o universitaria de educacéo em ciéncia em bairros da periferia da cidade do Rio de Janeiro, coordenando um grupo multidisciplinar de alunos da graduagdo, interessada em democratizar 0 acesso ao conhecimento cientifico relacionado a questées ambientais e de sauide, fui surpreendide pelo fracasso do projeto. Esse fracasso nao estava relacionado a diminuigaéo do numero de pessoas que participavam, a maioria criangas e adolescentes, nem ao interesse que demonstravam durante os encontros. Ao contrario, refazer experimentos simples, mesmo fora de um laboratorio, encenar contextes historicos de descobertas cientificas ou realizar visitas ao horto, ao zoo, ao laboratério da universidade ou A estacdo de tratamento de agua e esgoto Permitianos perceber o prazer com que aprendiam aquilo que designavamos “conceites cientificos baésicos para melhoria da qualidade de vida e exercicio da cidadania no século Xt". No entanto, minha formag&o em Biologia era insuficiente para explicar por que, apesar do aparente sucesso de cada atividade do projeto, este no significava uma aproximacao entre nds - 0 grupo da universidade e os participantes do projeto nos bairros. O abismo parecia aumentar a cada vez que “entrévamos em cena’. O “protétipo das Luzes’ entre os “selvagens” beirava o espanto provocado pela magia: Fracasso, Aquilo que se pretendia encurtar, ampliava-se. Nossas experiéncias cientificas eram ‘lindas’, mas os conceitos cientificos, vazios. Ndo eram incorporados no vocabulério dos participantes, no passavam a integrar suas explicagSes sobre o funcionamento da natureza, ndo habilitavam-lhes para alterar habitos e tratos com a satide. ‘Tampouco, nés compreendiamos sua forma de ver a natureza e cuidar da satide. Afinal, em que se baseavam para preparar um defumador com folhas de oliveira, aos primeiros sinais de tempestade? Por que tomar um ché de erva de Santa Maria para eliminar vermes? Por que preparar um banho de erva de So Jodo para tornar-se invisivel aos olhos de um inimigo? Violéncia, pobreza e garantia da sobrevivéncia pareciam-me falsas explicagdes para um fats problema ou para um problema social real, contudo mal formulado como objeto de estudo, j& que “invisivel” para mim em sua manifestagao. Poderia tratar-se, entéo, de partilharem uma outra légica e, por isso, ndo havia didlogo entre nés e eles. Na busca para encontrar pontos de coincidéncia que possibilitassem articular 08 dois modos de conhecer e explicar a natureza, a satide e o ambiente, assim como viabilizar 0 didlogo almejado, decidi investigar com 0 grupo de alunos durante o terceiro ano do projeto, os conceitos cientificos que estariam sendo utilizados por eles em seu dia-adia, mas dos quais ndo tivessem consciéncia de que eram “cientificos’. N&o houve dificuldade em listé-los. Bastou exercitar 0 etnocentrismo caracteristico da ciéncia dentro da qual se deu a minha formagao. Contudo, isso também ndo resolveu o problema da falta de didlogo e aumentou o abismo. 8 De acordo com Latour’, continuavamos diferentes porque mobilizavamos a natureza por meio da ciéncia e eles ndo, Eles a mobilizam sim, mas de outras formas, pois possuem outro entendimento sobre a natureza e por mais que hes oferecéssemos nossos instrumentos heuristicos, eles os recusavam. Percebemos em certas situages que desconfiavam do que diziamos, da ciéncia, dos médicos e dos remédios, Constatamos que possuem uma “ciéncia’ prépria, curandeiros e modos de curar. Possuem uma vido do corpo - anatomia e fisiotogia - e da natureza, que Ihes & prépria e que nao era possive! de ser abordada conceitualmente pela Biologia. Mas, que estranho grupo... Compasto por pessoas que convivem conosco no espaco metropotitano do Rio, integram as estatisticas sobre nivel de escolaridade, desemprego, economia informal e ntimero de mortos no camaval, Frequentam escolas publicas, assistem ao joa! falado ¢ as novelas, votam e, no entanto, so estranhos e parecem pertencer a uma “outra tribo"?, A implementagdo do projeto de extens4o nos anos de 1992, 93 e 94 teve como contexto a ECO-92 e suas consequéncias. Diariamente, a midia passou a veicular noticias que interligavam a ciéncia, a tecnologia, a politica, a economia, o desenvolvimento sustentavel, a ecosfera, a biopirataria, as florestas, os povos indigenas e comunidades locais tradicionais. Nessa ocasio, o Brasil foi divulgado como o pais detentor da maior biodiversidade do planeta. Esse fato, além de povoar nossos encontros no Ambito do projeto, despertou alguns segmentos da sociedade * LATOUR, B. Rio de Janeiro. Ed. 34, 1994. pp. 110. * VELHO, G. © VIVEIROS DE CASTRO, E. *O Concelto de Cultura nas Sociedades complexas: uma perspectiva antropolégica’. IN: Artefato (1), Ru, 1978. 10 para a necessidade de defesa desse patriménio genético por meio da elaboragdo de leis que dispusessem sobre 0 acesso aos recursos genéticos do pais e sobre a concessdo de patentes - protegao a propriedade industrial. HA dois pontos de articulagéo entre as duas legislagdes. O primeiro diz respeito ao fato de que a lei que concede patentes - Lei da Propriedade Industrial - tem artigos que fazem interface com a Area biolégica, sobretude no que diz respeito 0 patenteamento de processos e produtos biotecnolégicos e farmacéuticos. O segundo corresponde aos direitos de propriedade intelectual, da qual a propriedade industrial 6 parte. De acordo com 0 projeto de fei ainda em tramitagao, esses direitos no devem ser reconhecidos, caso sejam relativos a recursos genéticos ou biolégicos que utilizem o conhecimento coletivo de sociedades indigenas e de comunidades locais extrativistas. Na pratica, a referida articulagdo corresponde, por exemplo, a saida do pais de uma planta medicinal ou seus produtos derivados e do conhecimento a eles associado, em geral proporcionado por sociedades indigenas e comunidades locais. £m outras palavras, tais leis serviriam como instrumento basico para normatizar agdes, como a saida de plantas medicinais, cujos efeitos foram consagrades pela sabedoria popular e que sao base para medicamentos que geram lucro para indUstrias farmacéuticas multinacionais. Além disso, se aprovada, essa legislagdio deveria estender 0 acesso e 0 uso adequado dessas plantas e de outros recursos genéticos a uma reparticao justa e equitativa dos resultados derivados do uso de tecnologias genéticas e do " onhecimento associado proporcionados por sociedades indigenas e comunidades locais extrativistas. Ora, a realidade havia acabado de conectar antigos e novos atores de uma forma peculiar: comunidades locais, povos indigenas, cientistas, industriais farmacéuticos, biotecnélogos e politicos unidos & natureza pelo fio da biopirataria. Juntos aparecem constituindo uma rede trangada por conhecimento milenar, tecnologia genética, poder e propriedade. Os participantes do referido projeto de extensao nao integravam uma ‘outra ribo", mas apresentavam um modo de lidar com @ natureza que assemelhava-se mais aquela do que & nossa, Algo de magico, uma carta alquimia esta presente nos Momentos em que escolhem as ervas e preparam chas, pogdes e banhos para se curarem de seus males. Por isso, resistiam ao nosso modo de lidar com a natureza, duvidavam, encantavam-se, estranhavam. Entretanto, eu percebia que algo ressoava entre os dois corpos de sonhecimento, o de s © © nosso, O Saber popular € o cientifico. Naturezas e cutturas, tradigo e modemidade, ervas medicinais, fitoterdpicos e transgéncios, pajés © biotecndlogos, mées-de-santo, cientistas © médicos misturavam-se formando, como nos diz Latour’ - uma rede - que, para mim, era incompreensivel e tao viva como um organismo. A Biologia, que antes parecia-me t4o infinita quanto precisa, era estreita, miope e incapaz de traduzir 0 que ocorria no Ambito do projeto para sua linguagem, para a minha linguagem. > Op.cit. pp. 9 2 Apropriar-me dos instrumentos da Antropologia e da Sociologia pareceu-me a Unica possibilidade para aprimorar minha compreensdo sobre se haveria realmente @ como se expressaria a relagdo entre sabedoria popular e saber cientifico, sobretudo no que dizia respeito aos tratos com a satide por meio das ervas. Apresentava-se para mim como uma provocacdo 0 fato dos participantes do Projeto de extensdo e seus familiares dominarem com tanta seguranca um corpo de conhecimentos sobre medicina popular e cultura das ervas numa metrépole como o Rio e na virada para o sécuio XI Foi, entdo, ja aluna do doutorado, que decidi expandir as observagdes sobre a cultura das ervas, feitas nos bairros da periferia na ocasiao da realizagéo do Projeto de extensao, as feiras-livres de diferentes bairros do Rio e ao Mercadao de Madureira, importantes pontos de venda de ervas curativas da cidade, entre outras mercadorias. Meu “laboratério” naquele momento era a cidade e o que perseguia, seguinda o rastro das idéias de Latour, era o entendimento sobre as relagdes entre naturezas e culturas, na tradi¢gio e na modemidade, através das ervas. Sei que algumas nogSes poderiam ser aprofundadas, mas as que usei e que passo a descrever, deram conta do problema estudado. Algumas leituras foram fundamentais para que eu distinguisse o fazer do laboratério no qual obtive minha formacao, de um fazer realizado em um outro “laboratério”, onde os objetos aparecem menos claramente delineados, neutros ou Purificads, isto 6, onde supGem-se haver intervengao humana nos processos e estruturas estudados. 13 Dentre estas leituras encontram-se os estudos sobre @ cultura popular relacionados @ religiosidade, mados de vida e trabalho, tratos com a satide, que evidenciam formas de interagéio com @ natureza € sobrenatureza, desenvolvides por Candido (1964), Loyola (1984), Peirano (1985), Duarte (1986), Ortiz (1988), Silva (1988), Maués (1990) e Pessoa de Barros (1993). Aiguns desses estudos mostram-me claramente que grupos culturais, cujos componentes esto unidos por uma viséo de mundo‘, constroem classificagées proprias sobre diferentes elementos da natureza e sobrenatureza, como vegetais, animais, fenémenos naturais, espiritos, relacionando-os a habits alimentares, religiosos, de satide © contribuiram para o entendimento de representagdes sobre “corpo”, “pessoa”, “mudanca’, “satide/doenga’. Compreendi, definitivamente, que nao havia uma Unica definigéo da oposi¢ao natureza/cultura, dada por uma natureza e uma cultura universais. Mais do que isso, compreendi que o limite entre o social e o natural apresenta nuances que esto em acardo com o género de vida dos grupos culturais existentes e so a base para suas classificacdes e representagdes naturais e sociais. Desse modo, assim como as demais classificagbes, a classificapao do conhecimento em ‘popular’ e “cientifico" tem por base os limites que construimos entre 0 social eo natural. A anlise da cultura das ervas entre moradores da periferia do Rio © frequentadores das feiras-livres @ Mercado de Madureira 6 pertinente ao tipo de questo que se prope aqui desenvolver, a da relagao da visdo de mundo do grupo “Na definigdo de Goortz visio de Mundo - 0 quadro que fazem do que sao as coisas na sua simples ‘atualidade, suas idéias mais abrangentes sobre a ordem”. GEERTZ, C. Zahar Editores, Rio de Janeiro, 1978. pp. 104, 14 cultural que a pratica em seu cotidiano, na qual se baseia a sabedoria popular sobre as ervas, com a viséo de mundo relacionada ao saber cientifico que caracteriza a modemidade, designada por Latour® como a “grande narrativa ocidental’. Trata-se, Portanto, de identificar os limites entre natureza e cultura na tradigéo © na modernidade. material etnogréfico acerca do qual se desenvolve a presente andlise é totalmente oriundo de condig6es urbanas dada a especificidade da articulacao de cédigos culturais alternativos com essa Grande Tradig&o, cujo focus principal 6 a metrépole. A andlise da cultura das ervas no limite urbano revelou a metrpole como um local de marcante ambiguidade. ‘Ao iniciar as entrevistas explicava que gostaria de compreender 0 uso das ervas nas préticas de cura de diferentes males o que permitiu, durante as conversas, ter avesso & concepedo dos entrevistados sobre a natureza. Ao apresentarem as qualidades das ervas plantadas, vendidas e compradas, moradores, erveiros e usuarios viabilizavam a elaboragéo de uma cole¢o de conceites constituintes da sabedoria popular. Tive acesso a produgao de etnocientistas, ligados & tradigao da Antropologia Cognitiva, dedicados ao estudo das classificagdes naturais como os trabalhos de Frake (1961) sobre a classificagao de tipos de diagnésticos para doengas, e de Berlin (1976 e 1978) sobre classificagdes naturais, contudo, decidi no adotar essa postura teérica. * Op.it. pp. 110. 15 Preferi inspirar minha feitura do periodo em que fiz as entrevistas, na Antropologia Estrutural, principalmente, nas nogdes construidas por Lévi-Strauss, pois colaborarem para revelar © cardter “holista’ da sabedoria popular, explicitada No que esse autor designou como “pensamento selvagem’. Além disso, a resposta & “exigéncia de ordem” buscada nas relagdes entre natureza e cultura de que fala, inerente a todo pensamento, aproxima os dois saberes popular e cientffico, cuja articulagao pretendeu-se investigar. Contudo, foi nas idéias de Latour®, apresentadas no ensaio intitulado Jamais fomos modemos, publicado em 1994, que encontrei o suporte tedrico fundamental Para compreenséo da relagao entre popular e cientifico da forma como ela parecia apresentar-se a mim. A construgo que Latour fez da categoria de “rede sociotéenica” possibilitou 0 entendimento sobre a ligag&o entre as ervas, os fitoterapicos e as vacinas produzidas a partir de plantas modificadas geneticamente - transgénicas - e cujo conhecimento associado 6 proporcionado pelas populagdes que usam ervas tradicionalmente para se curar. A relagdo entre o popular e cientifico, segundo Latour, tem nas ‘redes” uma dimenséo que complementa a idéia de Lévi-Strauss - sem dtvida uma idéia que ainda merece investigagao - de que o pensamento magico 6 “mais uma sombra que antecipa seu corpo’, to completo, acabado e coerente quanto o pensamento cientifico. ° Bruno Latour tratou de aprofundar em seus estudos nogies, como a de “simetria", que permitissem ‘tratamento equidistante ontre as oiéncias produzidas pelas diferentes sociedades. Os escrites mais representatives para meu estudo foram A Vida de Laboratésio, publicado pela primeira vez em 1986 e Jamais Fomos Modemos, cuja 1* edigao data de 1994. 16 Caberia, entéo, perguniar: se 0 pensamento magico néo é um momento ou uma etapa da evolugao técnica e cientifica e se a literatura etnografica descreve seus objetos como “naturezas-culturas”, come e por que se deu a separagao, de que tanto a ciéncia se orgulha, entre naturezas e culturas - caracteristica dos objetos do pensamento cientifico? Para Latour, essa separagao ndo ocorreu. Ao tentar aperfeigad-la por meio do trabalho cientifico, ‘purificando” ao maximo os abjetos, os mademos possibilitaram o surgimento de “quase-objetos’, “quase-sujeitos’ cada vez mais complexos, entrelagando um nimero cada vez maior de humanos e ndo-humanos, acentuando 0 processo de construgo de abjetos que s&o natureza e cultura, simultaneamente, formando as “redes sociotécnicas’. A semelhanca dos pré-modemos, os mademos criam *hibridos* de natureza e cultura ou “coletives", o que nos permite comparar e relacionar em outros termos, saberes aparentemente antag6nicos - popular @ cientifico - por meio das préticas de cura com ervas em uma metrépole. No estudo realizado para consecuco da tese no pretend evidenciar elementos da sabedoria popular, com relagao 4 satide e o ambiente, presentes no saber cientifico ou vice-versa. Tratei sim de, com base em Latour, mostrar como ervas, axé, principio ativo, fitoterépicos e transgénicos sfio elementos de uma rede na qual tradigéo e modemidade sobrepSem-se, confundindo-se com o cotidiano. Para Latour, o presente n&io supera o passado. O presente é ele mesmo um “hibrido” de tempos. 7 Os ditos pré-modemos ou selvagens classifica certas plantas pelo sabor advindo @ presenga de enxofre. Nao foram ao laboratério para construir essa classificagao. Trata-se de um critério sensivel, parte da ciéncia do concreto descrita por Lévi-Strauss’. Nés, modernos, através da Botanica, as classificamos em familias diferentes, grupos que diferem dos deles, com base em critérios cientificos. Nao ha duvida de que ambos classificam e de que nao 0 fazem simplesmente porque os objetos clasificados thes so uteis, mas porque respondem a “exigéncia de ordem ( que estd na base de qualquer pensamento” ‘Segundo Lévi-Strauss®, o cérebro humano entende a natureza porque guarda com ela homologia. Sobre isso ele diz: “Quando o espirito se apodera de dados empiricos previamente tratados pelos érgéos dos sentidos, continua a trabathar estruturalmente, por assim dizer, um material que recebe ja estruturado. E nao o poderia fazer se o espirito, o corpo a que pertence o espirito e as coisas que 0 corpo @ o espirito apercebem, nao fossem parte integrante de uma s6 @ mesma realidade” ‘As considerages de Lévi-Strauss sobre a ciéncia do concrete e a comparagao que estabelece entre aquela © a ciéncia modema sao uma decorréncia dessa premissa. Sua posig&o 6 criticada por Latour e outros antropdlogos que a consideram etnocéntrica. Mas, por que nao consideré-la? Se para Geertz’, 0 cérebro humano & um artefato cultural e, se para Latour, a natureza é hibrida - natureza ¢ cultura - a posi¢éo defendida por Lévi-Strauss guarda com ambas formulagdes a mesma J LEVLSTRAUSS. © Pensamento Selvagem, Rio de Janeiro, Cia. Ed, Nacional. 1976. pp. ° Cf, LEVI STRAUSS “Estuturalamo © Ecologia" IN: © Olhar Distancade, Faker 70” Lisboa, 1986. 170. Pct pp. 58. “sso significa que a clue, em vex de ser acescentada, por assim dizer, a um ‘animal acabado, fol um ingrediente, e um ingrediente essencial, na produgao desse mesmo animal.”. 18 Proposta de continuidade entre natureza e cultura, apesar de situada num plano diverso: 0 da cognigao. As mais recentes hipéteses da Biologia admitem que o funcionamento da ecosfera é similar ao do organismo. A Terra, por essa hipétese, designada como Hipétese de Gaia, 6 considerada como um organismo vivo que busca permanentemente seu equilibrio por meio de mecanismos de homeostase. Responde, portanto, & intervengao humana como se o homem fosse um tecido seu, tefazendo-se, tal e qual um organismo vivo refaz um tecido danificado, ou isola durante anos um tumor que pode nJo ser jamais descoberto, nem mesmo pelos efeitos que provoca, se estes forem controlados. A vida é o fim eo meio. No haveria nessa idéia a mesma proposta de um todo indivisivel “natureza- cultura’ - presente na Antropologia de Lévi-Strauss, Geertz @ Latour, mesmo que em diferentes niveis? N&o se pode identificar nesses dois universos de conhecimento cientifico, a Biologia e a Antropologia, a mesma tendéncia totalizagdo presente no pensamento pré-modemo, embora os caminhos para chegar a consideré-la tenham sido absolutamente diversos? Nao pretendo com a comparacio dessas duas idéias, biologizar a Antropologia, ou fugiria a meus préprios objetivos. Contudo, considero valida a relacéo que as duas totalizages possuem com a proposta de Latour, segundo a qual a existéncia e continuidade dos “coletivos" depende do reconhecimento de que 08 objetos construfdos pelos modems s&o t&o “humanos-néo humanos” quanto os objetos dos pré-modernos: objeto - discurso - natureza - sociedade, uma ‘rede soviotécnica’. E deste ponto de vista que pretendi mostrar a ressondncia entre os saberes Popular e cientifico por meio das curas cam ervas praticadas no Rio de Janeiro, visiveis tanto nos bairros da periferia quanto nas feiras livres @ no Mercado de Madureira, frequentados por pessoas que possuem niveis diferentes de formagao e de poder aquisitivo. Esse trabalho pressupde, portanto, que a cultura das ervas, ordenada e enraizada em principios préprios, partihada por moradores da cidade ou de sua periferia que frequentam as feiras-livres e o Mercadéo de Madureira, independente do nivel de formagao au de poder aquisitivo. Assim 6 que, no capitulo | apresento o “laboratério” onde desenvolvi a pesquisa - a cidade - aproveitando-me da metéfora para mostrar que a cidade pode ser considerada um modelo reduzido no qual o proceso de “transculturagao” é examinado como se estivesse na mira de um microscépio, isto é, em pequeno, mas nem por isso menos complexo. 0 processo de “transculturagéo", mostra-se, conforme se verd no capitulo VI, um meio propicio para o entendimento de que o projeto de separacao entre natureza e cultura, implementado pela Ciéneia Modema, ndo pode ser conquistado, pelo menos da forma como foi concebido por seus fundadores e tratado pelos epistemdlogos. ‘No capitulo II, apresento os principais elementos que compéem o sistema cultural das ervas no como um subsistema, ou subcultura de uma outra cultura que difere da primeira por mobilizar a natureza por meio da ciéncia, e, portanto, & proprietaria de uma natureza universal. Busco, descrever o suporte analitico 20 construido por Latour, para situar-me no ponto médio de onde é possivel comparar as duas culturas - das ervas e cientifica - como “naturezas-culturas” e, assim, delimitar 0 terreno de um estudo empirico sobre a rede sociotécnica que vai da erva a0 trangénico, passando pelo principio ativo. Os capitulos til, IV e V so 0 resultado do esforgo da pesquisa etnografica propriamente dita. Nesses capitulos aparecem as categorias utilizadas pelos entrevistados, com © objetivo de delinear, a partir da classificago elaborada por eles, sobre as ervas e ‘seus USOS, OS principios norteadores da vis4o de mundo que Ihes é propria. No capitulo VI, indiquei as articulagdes existentes entre os saberes popular & Cientifico na “rede sociotécnica” que vai das ervas aos trangénicos, para no capitulo Vil proceder & comparaco entre os dois saberes, tomados como “naturezas- culturas”. Foi, ent&o, que pude explicitar 0 que ha de comum entre as visées de mundo que subjazem essas duas formas de mobilizar da natureza, ja que no contexto tedrico desse trabalho, ambas s&o como parte de um tecido unico que liga tradig&o e modemidade. Deste ponto de vista, a cultura das ervas n@o pertence apenas ao saber popular, da mesma forma que a relagdo que mantém com a natureza néo é desprovida de algo que sé a ciéncia poderia dar. Ao contrério, ela apresenta um modo altemative de construgéio da realidade baseada em princfpios englobantes que também est&o presentes no saber cientifico, apesar deste empreender um grande esforgo de andlise - no sentido de chegar & esséncia ou menor determinagdio - para purificar seus objetos. a Vale enfatizar que grande parte das entrevistas e observagdes foram feitas no bairro da periferia do Rio chamado Vigario Geral, dada a interagao com os moradores a que se chegou, decorrente da implementagdio do projeto de extenséo citado no inicio, que antecedeu e fertilizou 0 projeto de tese do doutorado. Hoje ha uma interagéo ainda mais estreita com um grupo de pessoas em Vigario Geral devido a iniciativa de construir um centro de estudos e praticas, Tiomeado pelos préprios moradores como Centro de Valorizago do Ser. A idéia do centro partiu do desejo que alguns moradores tém de contribuir para a melhoria das condigSes de vida das pessoas do lugar, sem que para isso tenham que pedir e esperar pela boa vontade do poder ptiblico. Em sintese, desejam desfrutar do sentimento de sentirem que so titeis a si mesmos. Assim, foi comprado um terreno na rua Onze Unidos, dentro da favela de Vigario Geral, onde esté sendo construida pelos moradores a estrutura fisica do Centro, que n&o é grande, mas que podera atender a criangas, jovens, adultos e idosos, através de atividades diversificadas. As atividades vao ser realizadas com base na difusao do conhecimento que 0s moradores acumularam no desempenho de suas profissdes e tarefas cotidianas. Manicures, cozinheiras, mec&nicos, donas de casa, técnicos em consertos de aparelhos elétricos, pedreiros, eletricistas, datilégrafos, almoxarifes, etc. irao ensinar seus oficios. Com base neste conhecimento pratico, pretende-se relacionar o conhecimento que a ciéncia tem da natureza utilizado naquela situa¢ao 2 determinada, a fim de que seja atribuido um sentido a esse conhecimento, como mais uma linquagem. Indmeras atividades domésticas realizadas em Vigdrio, como fazer 0 pao ou bolo para consumo préprio ou para vender, utilizam algum conhecimento da natureza mobilizado pela ciéncia. Por exemplo, @ adic&o do fermento para que a massa cresga. Qual seria a razao deste procedimento, além de fazer a massa crescer? O fermento 6 um fungo, um tipo de mofo, que utiliza o aguicar da massa para se alimentar e produzir energia para viver. Neste processo, produz gés carbénico, que é elit inado e aprisionado na massa, que fica cheia de bolhas de gas © assim, “cresce”. Esse processo de respiragéio 6 comum a varios outros seres vivos pode ser explorado para explicar outros fenémenos que ocorrem no meio ambiente, como a mortandade de peixes em uma lagoa e as técnicas € procedimentos de despoluigao. Tem-se, assim, uma série infinita de possibilidades de articulagde de conceitos cientificos e ndo cientificos que ligam as mais antigas tradigses a tecnologias avangadas, humanos e n&o humanos, natureza e cultura, popular e cientifico, num tecido Unico, um conjunto de “hibridos”. Em sintese, 0 objetivo a ser conquistado, em parceria com a Universidade em ‘que trabalho - através do trabalho dos alunos da graduagdo - é recuperar a meméria de outros quase-objetos, além das ervas, partilhados pelas pessoas e que alimentam as redes sociotécnicas que se estendem, assim como as ervas, do quintal de casa a industria farmacéutica, passando pela biotecnologia, pelo Senado, pela 23 economia, pela magia e por que n&o, por Deus? Mas este seré s6 mais um projeto de extensdo. 24 1 - AS CULTURAS DA CIDADE A pretensdo de todo conceito é sintetizar um aspecto da realidade e traduzir de modo racicnal tensées peculiares a determinado espaco, tempo © condicéo humana. Contudo, 0 coneeito de “cidade” 6 também simbolo complexo, jé que revela tensdes sem solugdo entre o cédigo universalizante modemo e os diversos cédigos locais. A descrig&o de uma cidade que permite, em parte, a construgdo desse conceito, é inutil se se detém apenas nos sinais de sua geografia e arquitetura. Corre-se 0 risco de se falar de todas e de nenhuma: grandes edificios, presidio, paldcio do governo, casa da moeda, bordéis, praias, favelas, portos, escolas, universidades, mercados. A cidade néo é feita disso, mas das relagdes entre seus diferentes espacos e a meméria: dos que terminaram o ensino médio e ingressaram na universidade; dos que rezam por seus mortos depois das chacinas; dos que, diariamente, disputam cm? no trem para chegar ao emprego; dos sobreviventes de desabamentos @ enchentes; dos fotégrafos que trocaram a Olympus pela camera digital; dos funcionarios das empresas que usavam telex e, agora, a intemet; dos govemantes que tiveram 0 candrio de ago municipal ampliado para o mundial. Algumas cidades se caracterizam por terem fronteiras que desapareceram: 40 cidades cujas descrigdes se confundem; so problemas sécio-culturais e econémicos que se repetem; so acSes militares que ocorram em espagos reais, sobrepostas por ag5es eletrénicas, guerras ciberéticas que desafiam as regras tradicionais de distancia, tempo e velocidade. 25 A invasao de sistemas de informética de diversos paises, que pode suspender operagées financeiras, paralisar aeroportes, interromper telecomunicagSes e 0 formecimento de energia ou agua para milhdes de pessoas, deve ser medida na velocidade de impulsos elétricos ¢ no na velocidade de tanques ou jatos de guerra. Além disso, essa invasdo pode ser realizada por qualquer um dos usudrios da intemet aficionado por descobrir senhas e interessados em obter 0 respeito de sous pares através de uma espécie de sito de iniciagdo da era tecnolégica. A invasdo de sistemas de informatica pode ser realizada também por neopiratas, navegantes do século XX que exploram espagos virtuais. proceso iniciado com as grandes navegagées forjou as condicées para que © capitalismo, a ciéncia e, mais tarde, o iluminismo e a revolugdo industrial se configurassem como determinantes para a formagdo de uma sociedade mundial. A esse novo tipo de sociedade corresponde um modo pecufiar de ver 0 mundo. Como consequéncia, as cidades foram se tomando cada vez mais semethantes ndo s6 em relagéo @ sua racionalidade urbana, normas e regras de funcionamento, como também em relaco & sua arquitetura e aos problemas relativos &s condigées da existéncia humana e aos modos de soluciond-los. A idéia de que a construgSo da cidade est vinculada a uma concepeao de Mundo esta presente, por exemplo, no escrito “A Cidade iluminista’. Neste, Rouanet'” afirma a existéncia de principios diretores que constituem uma ‘tradugaio” para 0 universo do urbanismo da idéia iluminista. Portanto, pode-se afirmar que ha um modelo de cidade que corresponde @ um modelo de sociedade e de cultura * ROUANET, Sérgio Paulo. "A Cidade tluminista’. IN: Meméria, Cidade e Cultura. Rio de Janeiro, EDUERJAPHAN, 1998. mundial. As diferentes cidades e sociedades reais se afastam ou se aproximam desse modelo em diferentes graus, mas conservam as tensdes relativas ao processo de sua formagao e desenvolvimento. A descrigdo de uma cidade como o Rio de Janeiro deveria incluir todo 0 seu passado. Afinal, essa cidade foi a capital do Império e da Republica e, por isso, constituiu-se em um “laboratério” do processo civilizatério do pais. Mas, como em qualquer grande cidade, 0 passado ndo precisa ser contado. Ele é percebido quando algo é reconhecido pelo que simboliza: a bata perdida anuncia a violéncia; a televisdo, a negagdo do pensamento; as ruas de bancos, a especulacdo finanosira; 08 trens apinhados mostram a auséncia de uma politica de transporte; o menino de tua, 0 descaso das autoridades; @ universidade, a educagao para poucos; a expiosdo de fogos de artificio anuncia a chegada das drogas; 0 cheiro de incenso insinua a presenga dos Hare Krishna; os negros nas novelas, o racismo; 0 Corcovado reclama os viajantes. E neste caldeiréio de experiéncias que os viajantes redescobrem sua propria cidade, o que 6 seu diante do estranho-familiar, do presente-passado, da metrépole- provincia. Trens, avenidas @ passarelas sdo apenas 0 que s&0, mas percorrendo através deles o Rio de Janeiro, da zona sul 4 zona norte, é possivel formar uma imagem na mente que contém, ao mesmo tempo, o passado, o presente e © futuro da cidade: um dentro do outro, no mesmo momento. Assim, na barca dos anos cinquenta que atravessa a Bala de Guanabara, 0 executive responde ao celular, no shopping tipico de primeiro mundo, situado na ar Baixada Fluminense, a empregada doméstica compra um jeans Elle et Lui, no centro financeiro da cidade, o ambulante vende ervas medicinais e simpatias; na favela de Vigario Geral, os traficantes empunham metraihaderas de ultima geracao; nos caixas eletronicos de auto-atendimento dos bancos, idosos retiram com cartées magnéticos suas aposentadorias; na linha vermelha que leva ao aeroporto do Galego, avista-se 0 Cristo Redentor abengoando casas miseraveis, Em linha reta, da zona sul & zona norte, o viajante pode perceber o degradé das formas de vestir e calgar; do perfume que esta no ar; da nitidez da paisagem que paulatinamente se esconde no véu de fumaca das fabricas; da bel e autoconfianga das pessoas; do cédigo intemo dos discursos secretos; dos desejos, medos e perguntas. As diferencas e contrastes sao tantos, que se poderia pensar num degradé da lingua, no qual as palavras vao pouco a pouco, referindo-se a coisas diversas, E exatamente nessas diferengas que se escondem as tensées entre o cédigo universalizante modemo - a grande tradigéo do Ocidente - e diversos cédigos culturais locais. Essas tenses se repetem nas diferentes regides e espagos da cidade. & como se cada parte da cidade estivesse dentro da cutra , como se toda a cidade estivesse dentro de outra e assim sucessivamente. Como num jogo de espethos, as tensdes aparecem refletidas, ponto por ponto, mas nem sempre iguais e, as vezes, até mesmo, invertidas. Portanto, a cidade pode ser tomada como um sistema, no qual cada parte possui os mesmos problemas do todo, nos diferentes aspectos j4 mencionados: 2B violencia, desemprego, crengas, preconceitos, constituig&o familiar, transporte, moradia, acesso & educagao, problemas relatives a satide, etc. Assim, @ pesquisa e andlise realizada a partir de qualquer um desses espagos, regides ou partes da cidade do Rio de Janeiro revelaré aspectos culturais, ambientais, sociais dentre outros, nao s6 dessa metr6pole, como também de outras. © bairro de Vigario Geral apresenta-se como uma dessas regides, a partir da qual é possivel pensar o Rio de Janeiro, os problemas de sua realidade social. Limite entre os municipios de Rio de Janeiro e Caxias, a favela de Vigario Geral possui uma populag2o que se tiga ao restante do bairro e da cidade por uma nica passarela, situada sobre os trilhos da RFFSA. Através de um buraco aberto no muro que separa os trilhos da rede ferrovidria das casas da favela de Vigario Geral, as mulheres e as criangas passam para o lado dos trilhos e plantam, nas suas margens, ervas medicinais. uso das ervas como remédio para males do corpo e da alma é uma pratica bastante difundida na cidade do Rio de Janeiro, j4 que elas sao amplamente comercializadas nas feiras livres de diferentes bairras do Rio e no Mercadéo de Madureira, importante centro comercial da zona norte. Essa pratica serve como exemplo de algumas das grandes tensdes entre o cédigo universalizante modemo e culturas locais, j4 que revela contrastes, limites didlogo entre a Medicina Popular ¢ a Cientifica. Portanto, o estude da cultura das ervas em Vigério Geral, nas feiras livres 6 no Mercado apresenta-se como uma Possibilidade de caracterizac&o das culturas, das questées ambientais e relativas & satide, tipicas de uma metrépole como o do Rio de Janeiro. 2 Baseados em tradigdes diferentes, os dois tipos de conhecimento, a medicina cientifica e a popular, refletem modos especificos de relag&o com a natureza e de entendimento da satide. Além disso, 0 didlogo entre ambos, reveta falsas e antigas oposiges, que merecem ser revistas, entre a fé e a raz&o, o mito e o método, a imaginagao e a légica. Caracterizados por sistemas de idéias, concepgdes e praticas que aparentemente se op6em, esses dois modos de conhecer e lidar com a satide guardam entre si profunda conex&o. Contudo, no se trata de afirmar que as evidéncias obtidas com a pesquisa realizada durante esse trabalho desfazem os limites © as diferengas entre ambos. Desde 0 comego, tanto a pesquisa bibliogréfice quanto a de campo, descortinavam uma realidade ao mesmo tempo opaca e infinita, na qual conceitos distintos como, por exemplo, “popular” e “cientifico” pareceram menos claros, ¢ interligados de modo especial, quando examinados sob a ética dos cuidados com a satide. Alguns dos parametros mais usados para se tentar explicar relagdes entre salide e medicagSo, satide e natureza, sociedades urbanas 6 natureza, como por exemplo, classe social, credo, origem ou insergo nos modes de produgdo e trabalho foram insuficientes para deslindar essas relagGes no limite urbano. Certamente a complexidade sécio-cultural e o crescente processo de expanséo de um lugar como © Rio, colaboraram muito para a dificuldade no entendimento dessas relagées, 30 E nesse sentido que os conceitos de transculturagdo, globalizagdo @ urbanidade, hibridos e redes sociotécnicas serao importantes para esse trabalho. Afinal, como explicar o fato de pessoas da classe popular dominarem certo conhecimento sobre o funcionamento e anatomia do corpo, que lhes garante parte de sua sobrevivéncia? Como essas pessoas interrelacionam natureza com o funcionamento do corpo humano e a cura de varias doencas? E, ainda, por que o uso das ervas nao se restringe aqueles que nao podem ter acesso a medicina Cientifica, sendo adotado por pessoas de todas as classes sociais e, mais do que isso, sendo fonte de pesquisa para a industria farmacéutica? Diante dessas questées, parece simples responder porque, especialistas em todo o mundo se dedicam a uma 4rea do conhecimento denominada etnofarmacologia: o estudo da cultura das ervas. Essa area do conhecimento a qual se dedicam bidlogos, médicos e cientistas sociais, corresponde ao estudo sobre 0 uso das ervas: uso que guarda uma ldgica prépria tanto na indicag&o da erva e seu preparo quanto na finalidade e posoiogia. Quinada ou em infuséio, como cha ou banho, unglento ou logdo, as ervas sé0 usadas como afrodisiacos, profildticos, medicamentos, venenos ou antidotes. Sao usadas para o corpo, mas muitas vezes sao usadas para problemas da alma. Em ambos os casos, 0 uso pode relacionar-se as fases da lua, aos dias da semana, a um determinado santo, ao sexo ou a idade da pessoa. S&o varios os atributos que as ervas recebem e os critérios que os classificam. Enfim, a esse universo cognitive corresponde um intrincado conjunto de relagdes sociais e naturais de erveiros, benzedeiras, pais-de-santo, homens e 3 mulheres, mes e filhos, populares, médicos, etnofarmacélogos, descendentes de Populacées indigena e negra com a saiide, com o corpo € a alma e com a natureza. Sao diferentes culturas que, 20 mesmo tempo, resistem, delimitam-se, complementam-se @ interagem numa rede que liga medicina popular e cientifica, sociedade @ natureza, numa “cidade grande”. Uma visita a0 Mercadao de Madureira pode revelar parte do cendrio urbano onde ocorrem as misturas e confrontos entre essas diferentes culturas. Faz calor e 0 movimento é intenso. HA muitas mercadorias em oferta de diferentes cores, cheiros e usos: artesanato, especiarias, flores, imagens de santos, cames, doves, affodisiacos, vestes, rendas, ervas. Vendem-se beleza e maidade, az e poder, virtude e fortuna. Percorrem os corredores quentes e estreitos pessoas de todas as idades e localidades, origens e racas, ricas e pobres e prenhes de diferentes intengGes. A maior delas e certamente comum a todas as pessoas é viver melhor. Buscam um balsamo, uma cura, um prazer, a satisfagao de uma necessidade. A Terra gira em tomo de seu eixo e esse lugar pode ser em Jerusalém ou Veneza, Joanesburgo ou Viena, Salvador ou Hong-Kong, Nova York ou Quito, Managua ou Caruaru, Isso ndo importa nada. Nao apenas no importa o lugar, como também néo importa a época. A Terra gira em tomo do sol e tanto faz se é para frente ou para trés, se 0 ponto de vista adotado for o da mistura, do paradoxo, da bricolagem que tepresentam as culturas. 32 Como uma linha pontilhada que se toma cheia num desenho de crianga, desde a Grécia, ou antes, idéias e sistemas se encontram através dos vigjantes que fazem deles préprios e dos outros, estrangeiros. Estranhar, combinar e refazer 6 a légica que aproxima a natureza da cultura. Durante 4,5 bilhGes de anos, desde que a Terra existe, mares € ventos chocam-se e trocam informagdes, produzindo o texto da vida em co-autoria. E claro que, no periodo das grandes navegagdes a producdo se intensifica bastante, quando os homens passam a atuar como enzimas, catalizadores de reagdes © recrudesce o encontro entre Oriente ¢ Ocidente. Na bagagem do colonizador que retorna a casa estéio as provas de seu feito: Papagaio, indio, pedras, plantas, lingua e o desejo ainda maior de conhecer, explorar, dominar e apropriar-se do outro. Na bagagem do indio, ha novos elementos para o canto, para as rezas, para explorar o espaco. Ambos recriam condigées, realidade, modos de vida, artefatos e técnicas, como lanni diz: “Essa histéria envolvendo praticamente todos os povos, tnbos, nacées, culturas e civilizagdes, pode ser vista como a histéria de um imenso e longo experimento cuftural, ou mais propriamente civilizat6rio. Um experimento compreendendo todas as esferas da vida social e do imaginario, envolvendo as formas de vida e trabalho, as linguas e as religides, as ciéncias e as artes, a filosofia e os estos de pensamento.”" Desse modo 6 possivel afirmar que tribo, pélis, feudo ou cidade guardam entre si, apesar da diversidade, uma semeihanca do ponto de vista da cultura: so IANNI, Octévio. Globalizacto ¢ Transculturacio, IFCH/UNICAMP, Campinas, 1997, Primeira versao n° 69. pp. 9. 33 como um “laboratério” onde se verifica a presenga do germém do que hoje é designado como “cidade globa’’. Cidade entendida como produto e resurno de sociedades que se constituiram através de multiplos encontros, pacificos ou no, mas sempre caracterizados pela tenso provocada pelo estranhamento dos modos de ver o mundo, sentir e viver o cotidiano. Se nada 6 0 que parece ser, se a hist6ria parece assumir contomos que superam a ago humana, apesar desta ag&o poder modificar a histéria, se nesse sentido 6 possivel aceitar a concepgao de Adorno de que a Terra 6 uma nave que @jetot: 0 piloto, e ainda, se 0 grande relato @ 0 pequeno, isoladamente, nfo garantem a0 socidloge a inteligéncia tio cobigada da realidade, entéo, o desafio nao seria tentar compreender didlogos e conversas presentes no cotidiano da cidade para depois caminhar para um entendimento mais amplo da sociedade? Nao seria possivel através da andlise de pequenos problemas que ocorrem aqui ou 14 desvendar significagées mais diversas que constituem a realidade? Em sintese, o desafio nao seria deslindar de situagdes especificas as universalidades que constituem aqueia realidade? No 6 exagero afirmar que, o problema da intelligentsia da realidade foi equacionado por Benjamim"? e Simmet™, por exemplo, ao considerarem a cidade como sintese da sociedade modema. BENJAMIM, W. IN: Sociologia, org.: Kothe, Flavio, $pord.: Femandes, Florestan. Ed. Atica, S30 Paufo, 1985, pp. 44-122, SIMMEL, G. “O Estrangeiro". IN: Sociologia, org. DE MORAES F., Evaristo. Coord: FERNANDES, Florestan, Ed. Atica. Sdo Paulo, 1985. 34 Em outras palavras, as principais experiéncias da modemidade fundadas nas relagdes sociais capitalistas foram explicadas por eles através do “flaneur’ e do “estrangeiro”. Essas construgdes tipico-ideias s4o constituidas por elementos que caracterizam a grande cidade ou metrépole: o alargamento das ruas e todas as obras de urbaniza¢ao, a multidao de caminhantes solitérios, a distancia dos "modes de produgao” da vida, o “dinheiro”, a ‘racionalizagao", o “desencantamento do mundo’, a “técnica”, 0 “desenvolvimento” e 0 “progresso’. Ao mesmo tempo, monumentos arquiteténicos ou imagindrios impedem o total ‘desenraizamento” ¢ 0 completo sentimento de “desterritorializagao"™ vivenciado nas grandes cidades. Se nao fosse assim, uma metrépole como o Rio de Janeiro nao conseguiria manter de modo organico, sistémico, a praia de Copacabana @ Vigario Geral, 0 Mercadao de Madureira e o Barra Shopping, o Cristo Redentor ¢ 0 que restou da Baia de Guanabara. Todos esses monumentos séo como elementos de um sistema que se mantém em funcionamento através de dois processos. Um - 0 processo de transculturago - 6 0 que permite obter energia, fomento, insumos e liberar produtos: baseado nas relagSes que mantém com os outros sistemas - cidade ou com o sistema-mundo, suas interfaces de troca, a capacidade de selecionar o que entra e 0 que sai, e heteronomia. O outro processo - o de resisténcia das cutturas locais - diz respeito a manutengo de seu equilibrio interno, integridade, autonomia, valores € Sobre 0 conceito de destentitorializagao cf. ORTIZ, R. Mundializacdo e Cultura, Ed. Brasiliense, ‘SHio Paulo, 1994, sobretudo 0 capitulo IV: Una Cultura intemacional Poputar e IANNI, O. Teorias da Globalizacso. Rio de Janeiro, Civilizagio Brasileira, 1995, sobretudo o capitulo IX: Modemidade- Mundo. 35 Cédiges proprios: baseado nas relagSes entre os elementos que constituem esse mesmo sistema. Esses dois processos que concorrem, um para as trocas intersistémicas e outro para manutengao do equilibrio intemo do sistema revelam-se na vida cotidiana da cidade, em uma crescente expanséo de seus limites e num aumento da complexidade do mundo sécio-cultural, ambos estreitamente relacionados - intensificando tensdes e disparidades. ‘Accrescente expanso do Rio - cidade sujeita a intenso fiuxo de imigrantes ou instituigses multinacionais, assim como de regras e normatizagbes alheias ao sistema-cidade, como, por exemplo, as ISO 9.000, ISO 14,000 e todas as normatizag5es que se referem aos programas de qualidade e geréncia institucional, concementes a globalizapao - interfere ou altera sua capacidade de selecionar. Em outras palavras, os valores préprios &s culturas locais so permanentemente desafiados por aqueles com que se arma a nossa ideologia dominante, a cultura ocidental. Assim, a crescente expansao da cidade se traduz, no cotidiano das pessoas. pela exarcebagaéo do “individualismo”*, peta competicao interinstitucional, pelo trafico de influéncia, de drogas, pelo desespero nas bolsas de valores, pela exploragao desmedida da natureza, pela “guetificagao" de setores da populagao. © Num estudo sobre o ‘nervoso" como cédigo que permite aceder a um nivel analitico para a compreensiio das caracteristicas fundamentals da cuttura popular, assim como de sua relaggo com a ‘cultura dominante, Duarte sublinha em diferentes passagens, 0 ideério “individualista” caracteristico dessa cultura frente ao modo relacional e situacional de determinaggo das identidades proprio a cultura popular. Cf. DUARTE, L. F. Da Vida Nervosa nas Classes Trabalhadoras Urbanas, Jome Zahar Editor. Rio de Janeiro, 1986. 36 © aumento infinito de elementos novos no cenério social e cultural desafia a capacidade de suportar um aumento igualmente infinito do grau de complexidade do mundo sécio-cultural da cidade. Essa complexidade ameaga a integridade, o equiliprio interno, a autonomia do sistema-cidade. Neste caso, as tensdes se traduzem no cotidiano pela violéncia urbana, fisica ou psicoldgica, pelas questées Taciais e de género, pela falta de limites e respeito nas relagdes interpessoais, interinstitucionais, intra-sistémica. Contudo, a naturalizagéio dessas praticas-assumidas socialmente como normais, porque regulam o funcionamento do sistema-cidade, como mercado, sede da livre-iniciativa, da competigdo “sadia” da qual sobreviverao “os mais aptos” - pode determinar a deterioraco do proprio sistema. Do ponto de vista da Biologia, pode-se dizer que a exemplo do que ocorre num organism vivo, 0 desequilibrio entre seus sistemas, nervoso, digestivo, endécrino, etc., inviabiliza esse mesmo organismo. A intemalizacdo de regras e normas exégenas impostas pela globalizacao, entendida aqui como proceso civilizatorio, que garante a sobrevida do sistema que as incorpora, por outro lado pode ser a causa da sua propria morte. E por isso que o coneeito de ‘desterritorializag&o" capta to bem 0 panorama urbano no qual se misturam 0 arcaico e 0 novo, © grupo homogéneo e o marginal, a multido e o navegador da internet, 0 gueto e o shopping, os cristdos e o salvador profissional. H4 0 acirramento de um sentimento estranho sobre o lugar onde se esté. E como estar em lugar nenhum, pois desaparecem as referéncias relativas a Prépria histdria da vida e, a0 mesmo tempo, estar em qualquer outro, jA que as marcas da “urbanidade” séo as mesmas em todos os lugares. So os ambulantes. 7 que pulutam os sinais e as lojas vazias, so as enchentes e os engarrafamentos, os Mac Donald’s e a fome, a violéncia no trénsito e o spa para meditago, a militancia ¢ os adolescentes nillistas, a praia e 0 “arrastéo’. Assim, 0 conceito de desterritorializagdo atrai como ima 0 conceito de desenraizamento, como se a historia de cada um perdesse a possibilidade do pretérito, Um dos registros desse sentimento pode ser encontrado na literatura. Lima Barreto”, em Vida e Morte de M. J. Gonzaga de Sé, criou uma personagem que o narrador defendia como o ‘passeador’, uma espécie de “flaneur’ dos trépicos, que se defronta com a dor de no encontrar de pé uma construgdo que era viva em sua meméria, Assim, 0 pretérito subjaz na consciéncia como um sonho que nao tem chance de se tomar realidade, tamanha a velocidade com que o cenério se transforma, Na areia da praia, hé a ‘danga” das cadeiras para escapar da sombra itinerante dos grandes edificios. No mar, a vegetag&o, que no sabe dangar, fica & sombra das manchas de éleo e acaba por sucumbir. © cheiro, a cor, as diferentes formas de vida transmutaram em novas, sem registro na memoria @ na histéria, como emblemas da “urbanidade”. ‘Ao referir-se ao fenémeno urbano contemporéneo e, em particular, & transitoriedade das cidades, Lévi-Strauss”, em Tristes Tépicos, afirma que “as cidades da América no tém tempo de se tornar antiga’. A praga dos romances, miisicas e pinturas foi substitufda pelo shoppping, mas sem a arte do encontro, da troca, da prosa, da vida. Afinal, deixou de ser piblico, € 0 1, BARRETO, L. Vida e Morte de M. J. Gonzana de Sa, Ed. Atica, Sao Paulo, 1997. LEVI-STRAUSS. Tristes Tépicos, EdipSes 70, Lisboa, 1986, 38 que tem dono, tem geréncia, normas e prego, como nes diz Giulio Argan’®. “Como espaco da vida comunitaria, o espago urbano 6, sem diivida, um bem publico, cuja privatizagao 6 t40 repugnante, no plano moral, quanto a privatizago do ar que respiramos. Todavia, o espago urbano em geral é privado e objeto de especulaco.” Todo espace urbano tende a tornar-se, por um lado, homogéneo, uniforme e por outro, diverso, plural. Toma-se unidade funcional da urbanidade - expresso da tensdo entre racionalidade urbana, herdeira da “Grande Tradigéo Ocidental” e os diferentes modos de vida e trabalho préprio aos diversos grupos culturais que dividem o espago da cidade - parte que contém o tode, como num holograma. Em sintese, a exemplo do que ocorre nos ecossistemas, a tendéncia a entropia, desorganizagéio e ao caos se contrapde ao processo de manutengado da vida do ecossistema como um todo, que atua num sentido inverso, Ha uma busca no sentido de se alcangar a expresséo mais simples da vida, para reiniciar o ciclo. E isso ocorre mesmo nos subecossistemas, partes que repetem o todo, como a agua da chuva retida numa bromélia, uma lagoa ou um deserto. Assim, no 6 exagero afirmar que, Vigério Geral, o Posto 6 ou o Mercad&o de Madureira $40 subsistemas sociais urbanos nos quais ha sinais de resisténcia dos Cédigas e valores locais, proprios aos grupos culturais, a despeito € no contexto das condigdes materiais de existéncia e das representagSes contidas na meméria e no esquecimento. Uma das pistas que merece ser seguida para a compreensao dessa idéia 6 a maneira pela qual a saude é entendida e cuidada. Esse entendimento e cuidados ® ARGAN, Giulio, Histéria da Arte Como Histéria da Cidade, Martins Fontes, Rio de Janeiro, 1095, 3* ed. 39 implica a existéncia de uma cultura - a cultura das ervas. Implica, ainda, o confronto e a mistura de dois tipos de conhecimento: a medicina popular e a cientifica Através da existéncia e manuteneao de praticas de cura tradicionais com efvas, quase marginais e prenhes de religiosidade, medicina popular e cientifica tomam-se desafio permanente uma para a outra, independente da regio da cidade tomada para realizar a pesquisa, seja ela Vigario Geral, o Mercado de Madureira ou as feiras-livres de diferentes bairros. A primeira pista etnogréfica, seguida tempos depois, foi identificada em Vigario Geral, na ocasiao da realizag&o do projeto citado na introdugao, quando debatiamos com os participantes do projeto em Vigario, algumas questées sobre saneamento basico e problemas de sade decorrentes da ingestéo de dgua contaminada, como por exemplo, a desinteria. Foi quando um dos participantes descreveu como sua avé fazia para curdéos, citando 0 cha da folha de goiabeira e descrevendo uma reza “ porque nem sempre s6 0 cha resolve. Vai depender, porque © problema pode ser do corpo, mas pode ser espiritual também”. Quando insisti, dizendo que a diarréia pode matar e que seria adequado procurar auxilio de um médico, ele respondeu que “realmente pode matar porque o médico néo entende as ervas e n&o aceita @ reza”. © ponto de discordancia sobre o modo de explicar a doenga e a cura era também um ponto de articulacdo entre as duas culturas: popular e cientifica. Nao “entender as ervas” e ‘ndo aceitar @ reza” eram sinais da existéncia de um campo seméntico prenhe de significagéo, mas totalmente ininteligivel e inacessivel para mim, aquela ocasiao. 40 ‘Ao ingressar no doutorado, identifiquei na avo daquele participante do projeto de extensdo, em Vigario, uma preciosa fonte do repertério local sobre as ervas. Pedi que me mostrasse suas plantas, 0 que foi fundamental para poder comecar a identificar alguns conceitos préprios a sabedoria popular sobre as ervas e conversar com moradores de outros bairros, nas feiras-livres e com os erveiros do Mercadao de Madureira. Embora nao tenha limitado minhas conversas ao espago fisico de Vigério Geral, considero importante contar algumas das observag6es que colecionei sobre este lugar. A regiao onde Vigario Geral esta situada era, ha muitos anos, uma 4rea rural dividida em sitios e fazendas. A partir de 1886, com a chegada da Estrada de Ferro Leopoldina & regido, ferrovidrios comegaram a construir seus barracos de madeira No terreno pantanoso, junto 4 Baia de Guanabara, que comecou, entéo, a ser ocupado. Com a intensificagéio do éxedo rural, na década de 40, muitos nordestinos, fluminenses do norte do Estado do Rio e mineiros deslocaram-se para 0 local, aumentando enormemente a populago. Nesta ocasiéo, denominaram o bairro de “Parque Proletario de Vigario Geral’, como aparece num letreiro a entrada da favela, até hoje, identificando claramente sua composigao social. Os terrenos situados as margens da Baia de Guanabara foram doados aos pobres pela familia BulhOes, que empresta seu nome a uma das principais ruas: Rua Bulhées Marcial. Hoje, com mais de 6.000 habitantes, a favela est dividida em localidades denominadas: inferninho, Brasilia, Campinho, S40 Jorge, Vila Nova, Valéo, Malvina e Larguinho que guardam diferengas sécio-econémicas entre seus a moradores: Quanto mais proximo do brago do mar a localidade esta situada, mais miseravel é sua populacdo. Dotada de uma vida comunitéria intensa, marcada pelas fortes relacbes de vizinhanga e solidariedade, Vigdrio é reduto de tradigdes populares como festas juninas e folia de reis. Alguns moradores antigos lembram-se do tempo em que havia projecdo de filmes nas ruas. Em meados da década de 80, torna-se palco de disputas entre quadrilhas de narcotraficantes, 0 que provoca mudangas no cotidiano dos moradores, diminuindo as manifestag6es piblicas da cultura local. Desprovida de qualquer aten¢&o dos governos municipais e estaduais que se sucederam ano apés ano, Vigério permanece, desde aquela época, sem pavimentag’o, saneamento bdsico, creches, pragas, vias de acess, posto de saUde. Possui iluminacdo precdria, coleta de lixo irregular e éreas de lazer resumidas a campos de futebol. O governo municipal iniciou o Programa Favela- Bairro, coordenado pela Secretaria Municipal de Habitagéio, que nao teve continuidade, até o momento. Situada @ margem direita do rio Sao Joao de Meriti, a reserva natural de Vigério - um Manguezal - sofreu o impacto ambiental provocado pelos processos de envenenamento pelos quais passou 0 rio, estando, portanto, em franco declinio. Consequentemente, a economia informal sustentada na pesca desapareceu. Os manguezais sao normalmente habitados por uma rica fauna estuarina, ois 0 tipo de raiz caracteristica dessa vegetagao possibilita protegao para a desova. Animais provenientes de outros ecossistemas vém buscar no manguezal 42 alimentago, refiigio e repraduedo, 0 que justifica sua designago como “bergo da vida. Contudo, como os manguezais tém grande capacidade de regenerago ecogenética, dada a facilidade com que suas espécies aceitam as operagdes de transplante, a economia informal sustentada na pesca ali outrora existente, poderia voltar a existir, caso fossem tomadas medidas ambientais. A flora caracterstica do manguezal, embora pouco diversificada, 6 manancial de espécies usadas em tratamento de satide por parte dos moradores. Marginalizada pelo poder public, a populaggo que vive em Vigario assistiu a0 crescimento da violéncia e resistiu ao processo de “guetificacao” através de duas estratégias. A primeira, foi a aceitacdo da ajuda dos traficantes de drogas, que garantiam a iluminagao das casas, distribuiam cestas basicas e bens, drenaram Tuas, promoveram festas, ofereceram empregos no movimento das drogas, e, até certo ponto, deram seguranga para as familias. Essa estratégia é a que estabelece a interface de troca do sistema-Vigario com outros sistemas: o sistema-cidade, estado, pais @ 0 sistema-mundo, garantindo a circulago de insumos e produtos, pessoas politicas. Trata-se de um exemplo conereto de capacidade de selecionar o que entra 0 que sai e a heteronomia, citadas anteriormente, A segunda foi a cuttura local, a existéncia de formas de sociabilidade que derivam das origens e tradigdes dos habitantes de Vigério Geral, da religiosidade e da sabedoria que os moradores detém sobre as relagdes entre o homem e a natureza. Trata-se de um conjunto de cédigos, valores e entendimento sobre si mesmo, sobre familia, sobre trabalho, etc. que tem, na cultura das ervas, uma de suas formas de expresso. a Acultura sobre as ervas vem servindo de suporte para os cuidades relativos a sate. Essa estratégia tem contribuido para a manutenc&o do equilibrio interno e integridacde de Vigério Geral, exemplificande 0 que foi dito sobre a autonomia do sistema. : ‘A exemplo do que ccorre com o sistema-cidade, aqui também, a crescente expanso e a complexidade sécio-cultural pdem em risco tanto a autonomia quanto a heteronomia do sistema-Vigérico. Em alguns momentos da minha histéria em Vigario Geral nao foi possivel passar pela passarela e entrar na favela, devido & grande tens&o entre © poder local, personificado pelas pessoas que integram o trafico e o poder do estado, através das policias civil ¢ militar. Combates e embates se sucederam como expressao do fortalecimento deste tipo de comércio em todo o mundo. Portanto, aquito que de certo modo mantém a populagdo de Vigario, acaba por colocar em risco sua sobrevivéncia. Do mesmo modo, a cultura local, pouco a pouco, recebeu e recebe elementos Novos, scbretudo com a expanséo dos movimentos scciais, intemacionais ¢ nacionais como o dos Médicos sem Fronteira, Cruz Vermelha e Afroreagge, por ‘exempio. A organizacéo da Casa da Paz que nasceu em resposta ao assassinato de vinte e um trabalhadores que moravam em Vigario, além de projeté-la para além de ‘seus limites motivou @ entrada dessas e de outras organizagdes néo governamentais (ONGs). ‘A populace de Vigério recebeu as ONGs com um sentimento misto de esperanga e medo, confianga e rejeic&o, entrega e suspeita. 44 Personagens locais assumiram lideranca e projeco internacional: Um artista passou a expor seus trabalhos na Espanha, um sociélogo salu do anonimato e tomou-se 0 gestor de projetos sociais, uma orf da chacina ganhou um emprego em uma ONG na Sulga. Aqueles que permaneceram em Vigério Geral, sentiram-se cada vez mais frageis, sujeitos a invas6es de toda ordem e, ao mesmo tempo, cada vez mais indignados e decidides a aumentar sua capacidade de organizagéo S40 normalistas, empregadas domésticas, trabathadores da construgo civil, professores, manicuras, comerciantes, donas de casa, maes-de-santo, enfermeiros, ambulantes, flanelinhas, digitadores, balconistas e motoristas. Séo também desempregados, analfabetos, viciados, traficantes, assaltantes e pivetes que circulam na cidade e retornam a Vigario, diariamente. Os elementos da cultura focal referentes a cultura das ervas no escapam as tensées pertinentes a este panorama urbano. Se por um lado hd moradores que cederam as facilidades concedidas pela medicina exercida pelos “Médicos sem Fronteiras’, por outro hé os que rejeitam esse conhecimento. E uma forma de resisténcia que guarda profunda desconfianga desse conhecimento © das pessoas que © possuem. Mesmo aqueles que acaitam a medicina cientifica recorrem, em 100% dos casos, aos chés, rezas e simpatias, simultaneamente. Essa 6 uma parte da cidade, da cultura da metropole ¢ da cultura das ervas. Como parte do sistema-cidade, Vigario Geral contém os mesmos problemas que os demais bairros possuem, tanto em relag3o ao desemprego, a violéncia, quanto 4 satide e as questdes ambientais. - ACULTURA DAS ERVAS Para entrar em Vigario Geral pela primeira vez foi preciso ser apresentada a alguns moradores por um ex-aluno da universidade, Ele esperou por mim em Madureira para que pegassemos o énibus para esse distante bairro do Rio. Vigério presenciou uma chacina de 21 trabalhadores em 1994 e, até os dias de hoje, vive numa guerrilha surda entre policiais e traficantes, que acaba atingindo @ populacéo local. Quem mora nessa regido participa da guerrilha sem tomar partido. Ndo ouvem, ndo véem, no falam: esse é parte do conjunto de nommas e regras™® presente em seu cotidiano. Para se entrar em Vigario Geral é preciso atravessar uma passarela sobre os trithos da Rede Ferrovidria Federal. E a Unica passagem para quem esté a pé. E possivel entrar de carro, por Parada de Lucas, 0 bairro anterior, para quem vai na diregdo de Caxias, um municipio contiguo 20 Rio. Essa entrada 6 ainda menos segura, dada a animosidade entre os grupos que comercializam drogas. E possivel, ainda, chegar de barco, pois 0 outro limite do bairro 6 a Baia de Guanabara, na qual desagua 0 rio Meriti que separa Vigario do municipio de Caxias. Tendo seu espaco geogrdfico demarcado dessa forma peculiar e exigindo “passaporte” para entrar, Vigério Geral é um lugar” que pode ser considerado como possuidor de uma certa identidade cultural. "Qs agentes sociais obedecem a regra quando 0 interesse em obedecer a ela supfanta o interesse em desobedecer a ela”. WEBER, Max IN: BORDIEU, Pierre. “A Codificagao", Coisas Ditas. Sao Paulo, Ed. Brasifiense, 1980. * As definigées de espago e lugar adotadas por mim seguem a perspectiva trabathada por YLFU ‘Tuan que indica a experiéncia humana e a diversidade cuttural como determinantes para a sensagao de um e de outro, da qual decorrerd sia abstragdo como “universals™. Cf. TUAN, YL-FU. Espago ¢ jugar. $20 Paulo, DIFEL, 1983. 48 Quando vao trabalhar, visitar parentes, estudar ou realizar qualquer atividade em outro ponte da cidade, é frequente o uso da expresso “vou /4 fora”, por parte de seus moradores. Por mais de uma vez, percebi em nossas conversas, a referéncia a0 sentimento de pertencer a um ‘lugar’ separado dos outros, que aparecia em afirmativas como: “pode vir domingo, vou estar aqui dentro”. Em Vigério existem padarias, botequins, igrejas de diferentes credos, escola, farmécias, mercadinhos, saiées de beleza, espago cultural e de lazer, associaggo de moradores e atendimento médico, tal como acorre em outros bairros do Rio, em sua maioria dotados da mesma precariedade. Portanto, a existéncia da nogdo de “dentro-fora” assim como de outras, tém sua génese numa realidade subjetiva construida no processo de formagao da identidade do grupo de moradores de Vigério nas situagdes sociais do seu dia-a-dia™, Tendo como base o conhecimento construido sobre sua realidade, intermediade pela nogao de “dentro-fora’, por exemplo, definem-se muitas agSes, valores, condutas, atividades, escolhas, posicionamentos, decis6es, enfim, muitas praticas e simbolos presentes na vida cotidiana dessa comunidade. Em outras Palavras, ha situagdes e processos sociais tipicos de quem vive em Vigério, como Mm outros bairras do Rio, que fazem com que certo tipo de conhecimento chegue a ‘ser considerado por seus moradores como a propria realidade”. * Sobre a realidade ser construida socialmente, adotei a seguinte perspectiva da sociologia do conhecimento: ‘que permanece sociologicamente essencial 6 o reconhecimento de que todos os universos simbélicos e todas as legitimagdes s%o produtos humanos, cuja existéncia tem por base a vida dos individuos concretos e n&o possui status empirico @ parte dessas vidas”. BERGER e LUCKMANN. A Constructo Social da Realidade, lis, Vozes, 1985, pp. 172. =" na medida em que todo “connecimento humano desenvolve-se, transmile-se e mantém-se em situa ‘Socials, a Sociologia do conhecimento deve procurar compreender © processo pelo qual isto Se realize, de tal maneira que uma “realidade" admitida come certa solidiica.se para 0 homem da Tua", Idem, pp. 14. (grifo meu) a7 Um dos conjuntos de procssos ou situagdes sociais vividos pelos moradores entrevistados na cidade em feiras-livres, no Mercaddo de Madureira ou em Vigario esta relacionado a manutengdo da satde. E frequente © comum para os entrevistados a utilizagdo de uma série de praticas de cura baseadas em um tipo de conhecimento herdado de geragdes anteriores e que passam a fazer parte da realidade das criangas, jovens, adultos e anciaos da cidade. Sao chas, xaropes, temperos, pocdes, banhos, infusées, unguentos, defumadores de ervas preparadas e utilizadas - em alguns casos, principalmente em Vigario, desde o plantio - segundo regras e critérios especiais. Trata-se de um corpo de conhecimento legitimado sociaimente, ao qual corresponde uma viséo de mundo - um dos elementos da identidade de um grupo cultural - integrando 0 conjunto de culturas da cidade do Rio de Janeiro. E um ‘conhecimento que colabora para tecer significados que constituem parte do universo simbélico compartilnado pelos moradores entrevistados na cidade e que os transforma num grupo cultural. Contudo, alguns problemas de saude exigem mais do que 0 corpo de conhecimento sobre as ervas 20 qual todos os entrevistados tém acesso. Segundo ies, algumas vezes, para efetivar a cura, ‘tem que levé pré rezd'’, isto 6, participar de rituais conduzidos por benzedeiras ou pais-de-santo que possuem legitimidade social. Isso significa dizer que esse corpo de conhecimento exige, para algumas situagSes, certo tipo de especializago que define papéis, sempre executados, no caso de Vigério, por mulheres sexagendrias cuja conduta religiosa 6 reconhecida pelos demais moradores.

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