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DESABAFO: UMA MATERIALIZAÇÃO SONORA EM OPOSIÇÃO AO

MACHISMO
GT - CAMINHOS SONORO-FEMINISTAS/LGBTTQI+ DECOLONIAIS E
INTERSECCIONAIS DE ABYA YALA

Sidcléa Marques Cavalcanti de Moraes (Universidade Federal de Pernambuco)


Sidclea.cavalcanti@ufpe.br

Resumo: Com base na análise da música Desabafo (1982) da compositora Mary Maciel Ribeiro - Cecéu, e na
interpretação da cantora Marinês, investigaremos sobre quais formas a canção se manifesta acerca do processo do
patriarcado na sociedade, fazendo um paralelo com a inserção da mulher no forró. O objetivo é mostrar o que há
na estética da obra, sobretudo na sua maneira de exposição, apresentado como reflexo do posicionamento das
artistas acerca do machismo e preconceito sofrido por elas dentro do gênero musical.

Palavras-chave: Mulher. Forró. Patriarcado. Machismo.

Abstract: Based on the analysis of the music Desabafo (1982) by composer Mary Maciel Ribeiro - Cecéu, and
on the interpretation of the singer Marinês, we will investigate the ways in which the song manifests itself in the
process of patriarchy in society, making a parallel with the insertion of women in the lining. The objective is to
show what is in the aesthetics of the work, especially in its manner of exhibition, presented as a reflection of the
position of the artists regarding the machismo and prejudice suffered by them within the musical genre.

Keywords: Woman. Forró. Patriarchy. Chauvinism.

Introdução

Muito se fala sobre o patriarcado e machismo impulsionados dentro do gênero musical


forró. Fala-se sobre suas letras, sobre comportamento dos forrozeiros, maneira de vestir e
pensar, e sobre os signos trazidos dentro da música nordestina, mas pouco se fala sobre a
atuação da mulher como cantoras, instrumentistas, produtoras e Djs dentro do segmento, como
acontece seu processo de inserção dentro do mercado, e quais os impedimentos enfrentados
por elas para prosseguir com a carreira.
Quando a mulher consegue se firmar dentro de um espaço que, de acordo com a
sociedade, não faz parte da sua natureza, quais são as ferramentas de posicionamento utilizadas
por ela a fim de obter notoriedade e força dentro de um lugar que antes não era comum a ela?
E dentro do forró como se dá esse processo de conscientização contra a dominação masculina?
A participação feminina no forró é historicamente preenchida por diversas cantoras que,
por serem mulheres e terem desejo de fazer forró, sofreram e sofrem preconceito. A sociedade
patriarcal alegava que forró não era coisa de mulher, que para tal, precisa-se de força e fôlego,
“algo que não esperava-se da mulher”. Desde Marinês que foi a primeira mulher a comandar

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um trio pé de serra cantando e tocando triângulo, muitas outras conseguiram se destacar e
conquistar o seu lugar. Carmem Costa (primeira intérprete das músicas de Luiz Gonzaga),
Carmélia Alves (cantora da era do rádio, levou o baião para os grandes salões), Chiquinha
Gonzaga (irmã de Luiz Gonzaga, cantora e tocadora de oito baixos), Anastácia (compositora e
cantora, fez grandes parcerias com Dominguinhos), Clemilda (cantora e compositora, ficou
conhecida por cantar forró de duplo sentido), Almira Castilho (cantora, compositora e
dançarina, fez parceria com Jackson do Pandeiro), Helena (atuou como produtora de trios como
Trio Nordestino, foi casada com Luiz Gonzaga), Hermelinda do Trio Mossoró, Lucymar,
cantora e compositora paraibana) e Marinalva (irmã de Marinês, cantora e compositora), estão
entre as primeiras e todas conseguiram entrar no mercado das principais gravadoras de forró
da época.
Aqui busca-se fazer uma análise crítica da música Desabafo, a fim de encontrar em seus
elementos internos um diálogo que traga a fala feminina acerca das injustiças e
constrangimentos impostos pela sociedade machista dentro e fora do forró.
A escolha dessa música se deu através da sua divulgação dentro do coletivo feminista
“Marinês Unidas”. O grupo carioca reúne mulheres musicistas que, tendo Marinês como maior
referência dentro do segmento, trazem através do tributo à cantora, um discurso sobre a força
da mulher. O coletivo também promove oficinas de instrumentos como violão, sanfona,
teclado, escaleta e percussão, usando como base o repertório das canções de Marinês.
A música encontrada no lado B do disco de Marinês e Sua Gente, foi gravada em 1982
e hoje ganha grande destaque, principalmente no sul do país, entre as bandas contemporâneas
de forró e coletivos feministas do segmento da dança. Foi por meio da sua divulgação nas redes
sociais que surgiu a curiosidade de procurar a sua aceitação com questões sociais e como isso
se dá no processo estético da obra.
Em seu livro Sociedade e Literatura, o crítico literário Antonio Candido afirma que para
interpretação coesa de uma obra é necessário que seja feita a fundição do texto e contexto de
maneira íntegra e dialética. (CANDIDO,2006). O autor explica que os elementos externos, ou
seja, o contexto social, tem muita a dizer quando fragmentado dentro da obra, tornando-se
assim parte do próprio elemento interno.
O grande desafio é encontrar a fragmentação do contexto externo na música Desabafo,
e através de uma análise poética e musicológica que abrangerá além da melodia e harmonia,
também a interpretação da cantora Marinês, entender como esses elementos sociais estruturam
a canção.

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Para a construção deste estudo foi feita uma pesquisa bibliográfica em literaturas que
tratam de temas correlacionais, também fizemos entrevistas e escuta ativa do material
analisado.
Análise musical de Desabafo

A composição é assinada por Cecéu, compositora paraibana, autora de grandes sucessos


do forró, como Bate Coração e Forró do Xenhenhem. Boa parte da sua produção tem parceria
com seu companheiro Antônio Barros, também compositor consagrado dentro do mercado. A
música foi lançada no ano de 1982 pela gravadora Copacabana, e encontra-se na terceira faixa
no lado B do vinil, seu título também é encontrado como tema na capa do disco. Encontramos
como ficha técnica: produtor fonográfico - Som indústria S.A., direção artística - Luiz
Mocarzel, supervisão de produção - Talmo Scaranari - Lindú, coordenação artística - Decio
Fonsi, arranjos - Maestro Chiquinho, assistente de estúdio - Geraldinho, técnicos de gravação
- Deraldo e Zildemar Araújo, técnico de mixagem - Roberto Marques, técnico de montagem -
Tonheco, corte - Sílvia R. Nascimento, gravado nos estúdio - Havai R.J. e DO RÉ MI - S.P.,
layout e arte - Jurandir G. Silveira, foto - Michael Challat.
A instrumentação que, em ritmo de xote, subgênero do forró, e que tem em seu
andamento 80 ppm (pulso por minuto), é composta por sanfona, zabumba, bateria, contrabaixo,
guitarra e instrumentos de percussão como reco-reco, agogô e triângulo. Uma formação que
vai mais além do tradicional trio pé de serra.
Em seu livro Forró: a codificação de Luiz Gonzaga, Climério de Oliveira Santos afirma
que a maioria dos xotes são cantados com voz suave e seu tema refere-se ao cenário romântico,
uma dança para casal (SANTOS, 2013). Não é o caso da música aqui em questão, pois Marinês
coloca sua voz com grande potência, seu andamento não é lento e sua letra fala sobre ser livre
e do desapego a comportamentos impostos pela sociedade. Uma incompatibilidade com o estilo
do subgênero. Vejamos a letra: “Eu quero a minha vida como ela é/ Como o povo sabe/ Com
o chão no pé/ Como a água doce pra matar a sede/ Me deitar na rede/ Tomar um café/ Ser um
ser humano/ Sem tabu/ Sem preconceito/ Ser errado/ Ser direito/ Acreditar e não ter fé/ Cada
um sabe o sapato onde aperta/ Minha porta é aberta/ Qualquer um pode entrar/ Não ligo, faço,
aconteço/ No outro dia eu esqueço/ Pra de novo começar/ A minha vida sem chorar/ E quem
quiser por falar/ Falar, falar, falar, falar, falar, falar/ Que eu não vou mudar.”
De acordo com o fonograma de 1982 com duração de 3’e 7”, a forma musical segue o
modelo do quadro abaixo repetindo a mesma sequência por 3 vezes. (Ver figura 1)

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Introdução Parte A Parte B Introdução
Repetição da Repetição da
melodia da melodia da
sanfona sanfona
Voz
acompanhada acompanhada
Voz 2 estrofes uma Melodia de
Melodia de sanfona por guitarra, por guitarra,
2 estrofes com 4 com 3 versos e sanfona + reco-
+ reco-reco contrabaixo, contrabaixo,
versos outra com 7 reco
bateria, bateria,
versos
zabumba, zabumba,
triângulo e triângulo e
agogô agogô
Figura 1: Esquema formal Desabafo1

Aqui, o que nos chama atenção é a quebra de distribuição dos versos na parte B da
canção, diferente do que vinha acontecendo na parte A, as estrofes contêm números distintos e
ímpares. Pode-se interpretar como um desequilíbrio, mas na verdade o que vemos é uma tensão
que nos alerta sobre algo que vinha acontecendo tradicionalmente como a parte A, e que foi
modificado porém, encaixado perfeitamente quando desencadeia na volta da introdução.
Veremos mais à frente que a melodia e a letra da parte B reforçará essa inquietude transmitida
através da disposição dos versos.
Sua melodia caminha dentro da escala de dó menor natural (primitivo) porém, recebe
em alguns momentos uma elevação no terceiro e no quarto grau da escala. Em entrevista, o
acordeonista Marcos Farias, filho de Marinês e Abdias e responsável pelo arranjo da música,
nos informou que a intenção naquele momento era trazer o modo lídio, escala que tem como
característica um intervalo de quarta aumentada, muito utilizada nas melodias do forró,
segundo ele, era conhecida como “quartal” (expressão utilizada pelos músicos da época). Mas
o que observamos na verdade é que essas alterações se apresentam na melodia como
ornamentos, pois entre elas encontramos um Láb, nota que não faz parte do Dó lídio. Nota-se
esse comportamento melódico logo na sua introdução. (Ver figura 2).

Figura 2: Introdução

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Esquema formal inspirado no material do livro Forró: a codificação de Luiz Gonzaga do autor Climério de
Oliveira Santos.

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As alterações encontradas no segundo compasso da introdução chamam atenção para o
que será apresentado mais à frente na parte B da música. Os arpejos que antes seguiam
formalmente, foram quebrados com as tensões causadas pelos intervalos de 2ª menor, através
da bordadura inferior Mib - Fá e Fá# - Sol. Vejamos a fragmentação desse motivo (pequeno
trecho melódico com identidade própria) na parte B e qual a impressão trazida com seu efeito.
(Ver figura 3)

Figura 3: Fragmento musical da parte B

A distribuição do motivo aparece em forma cromática ascendente nos causando uma


sensação de ápice na música. O trecho melódico culmina-se com o VII grau da escala que,
aparecendo na harmonia como terça do acorde de G7, dominante da tonalidade, repousará mais
adiante com o I grau. A mensagem trazida no trecho ganha mais força com letra e a voz de
Marinês.
O movimento crescente da escala nos faz refletir sobre um fluxo que vai contra a uma
forte corrente galgando a pequenos passos através dos semitons, em direção ao seu principal
objetivo, chegar ao ponto em que todos entendam seu desabafo.
Trazendo a contribuição do etnomusicólogo Climério de Oliveira Santos onde, em seu
trabalho sobre um tipo de forró que vai além da bipolarização entre o pé de serra e o eletrônico,
onde aplica o conceito de fluxo como uma disposição que se movimenta permanentemente,
transformando as realidades existentes e atua em um constante questionamento (SANTOS,
2014).
Se entendermos o patriarcado e o machismo como realidades existentes, podemos
interpretar que as falas de mulheres conscientes do seu verdadeiro papel na sociedade, estão
refletidas através do fluxo melódico apresentado na parte B. Nesse mesmo âmbito melodia,
letra e harmonia trabalham como um todo que gera força motriz para chegar ao lugar desejado

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que, de acordo com o contexto em que estamos relacionando, seria uma compreensão social
livre de comportamentos sexistas.
Sobre o arranjo harmônico, pensamos que passou por uma crise de modernização. De
acordo com o Maestro Marcos Farias, a música recebeu uma harmonia diferente da que ele
tinha proposto na gravação. O mesmo nos informou que trouxe uma condução mais jazzística
nos acordes porém, o produtor responsável pelo disco não aceitou, alegando que tal harmonia
não era compatível com o mercado da época. Marcos, que tinha acabado de concluir seu curso
de maestro pela Faculdade da Berklee College Of Music, queria trazer algo mais moderno para
o momento, fazendo assim com que o material melódico fosse mais valorizado com a harmonia.
Façamos a comparação de um mesmo trecho entre a harmonia arranjada por Marcos
Farias e a executada pelos músicos na gravação de 1982. (Ver respectivamente nas figuras 4 e
5).

Figura 4: Fragmento da parte harmonizada por Marcos Farias.

De acordo com a harmonização alla Marcos, percebemos que o maestro explora outras
possibilidades além das tríades adicionando nos acordes, notas com intervalos compostos
(neste caso, acrescentando as 9ªs), como observamos no compasso 11 com o acorde G7(b9) e
no compasso 14 com D7(#9).
Uma outra característica encontrada foi uso do acorde dominante secundário D7(9#)
como preparação para o acorde dominante G + entre os compassos 14 e 15.

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Figura 5: Fragmento da parte harmonizada na gravação.

Na harmonia da gravação notamos nos compassos 14 e 15 a progressão ii-V com os


acordes Dm7(b5) e G7, uma característica básica do Jazz, que pode resolver ou não no I grau.
Mas o que nos chamou mais a atenção foi a forma rítmica como os acordes são tocados entre
os compassos 17 e 18. Uma marcação que intensifica mais ainda a informação explícita na letra
do trecho - acreditar e não ter fé2, uma insistência no argumento.
A conclusão que temos ao analisarmos essas duas harmonizações, é que a modernização
em Desabafo era inevitável. Mesmo com o boicote do arranjo destinado para gravação, a
maneira como os acordes foram conduzidos apresentam-se de forma moderna tão quanto a
desejada pelo maestro Marcos Farias.
O que chamamos de crise da modernização nessa música, é a força de querer trazer o
novo dentro de sua estrutura, e que mesmo havendo forças contrárias na formação do seu
produto, trouxe uma atualização com requinte de modernidade dentro do xote. Vemos que tal
modernização refletida através da melodia e harmonia, apresenta como um discurso de não
seguir o fluxo do tradicionalismo, não só na música, no forró, mas na sociedade.

Sobre Marinês

Para entendermos a atuação de Marinês como cantora, especificamente cantando


Desabafo, e por que seu legado tem influenciado tantas artistas do forró, é importante que
conheçamos um pouco da sua trajetória de vida.

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Link para ouvir: https://www.youtube.com/watch?v=Pc1vC9qLOz8

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Nascida em São Vicente Ferrer, cidade pernambucana que faz divisa com a Paraíba e
se localiza a 85 quilômetros de Recife, Inês Caetano de Oliveira ( nome de batismo ), mudou-
se ainda criança para Campina Grande-PB.
Desde pequena aprendeu a cantar ouvindo os programas de rádio transmitidos através
dos altos falantes que ficavam próximos a sua casa. Começou cantando músicas românticas,
Carinhoso de Pixinguinha era uma das suas preferidas. Também já conhecia as músicas de Luiz
Gonzaga e o tinha como um dos seus ídolos.
Como gostava muito de cantar, decidiu participar dos programas de calouros oferecidos
pelas rádios, e foi em um desses concursos que nasceu o nome Marinês. Na ocasião, sabendo
que seu pai não permitiria a sua participação, adicionou Maria como seu primeiro nome para
não ser reconhecida, pois sabia que seu pai também ouvia o mesmo programa. Quando foi
anunciada pelo locutor, do nome Maria Inês, saiu a corruptela Marinês, e ela gostou tanto que
usou como nome artístico em toda sua carreira. Ganhou o concurso em primeiro lugar. O
prêmio era o valor de 100 mil-réis e a carteira assinada no elenco da emissora. Assim começou
sua carreira como cantora, fazendo parte do cast de cantores da rádio.
Foi nos corredores da rádio que conheceu o sanfoneiro Abdias, até o momento ela não
trabalhava cantando forró. Foi só após o casamento com o músico que passou a cantar músicas
de Luiz Gonzaga. Juntos montaram o trio pé de serra o “Patrulha de choque do Rei do Baião”.
Tocavam nas cidades, abrindo a programação dos shows que Gonzaga fazia.
Conheceram o Rei do Baião por convite do prefeito da cidade de Propriá/SE. Na ocasião
participaram de uma inauguração de um busto em homenagem a Luiz Gonzaga. Uma data
inesquecível para Marinês, pois após esse momento sua vida mudaria. Logo Gonzaga convidou
o trio para fazer carreira no Rio de Janeiro.
Marinês e Abdias foram para o Rio e começaram a acompanhar Seu Luiz, ela fazendo
vocal e ele reforçando na sanfona. Sua primeira gravação foi uma participação na música Mané
Zabé (1956). No ano seguinte gravou seu primeiro disco. Com o nome Marinês e Sua Gente,
batizado por Chacrinha, fez sucesso com as músicas de João do Vale, Pisa na Fulô e Peba na
Pimenta. Fez participação no filme “Rico Ri à Toa” ( 1957). Por sua forma de dançar, cantar e
tocar triângulo foi coroada a rainha do xaxado. Seu impacto no forró foi tão grande que a
chamavam de “ A Luiz Gonzaga de saias”, isso comprova mais uma característica machista da
sociedade e do forró, como se dentro do segmento não pudesse ser apenas a Marinês, primeira
mulher a comandar um trio pé de serra.
Gravou em média 34 discos de carreira, 11 compactos e 4 coletâneas. Entre os sucessos
mais conhecidos na sua carreira estão: Bate Coração, Só gosto de tudo grande, Estopim da

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bomba, Pisa na fulô, Peba na Pimenta, Siriri, Sirirá, Desabafo, Mutirão de Pedreira, Do lado
de lá, Aquarela Nordestina, Amanhecendo, Balanceiro da Usina, Forró das Cumadres, Carne
de Sol e Rainha do Xaxado.

A influência de Marinês através de Desabafo

O encontro de Marinês com Desabafo surgiu quando montava o repertório para


gravação do seu novo disco em 1982. Na ocasião, sempre entrava em contato com seus
compositores parceiros para que fizessem músicas que falassem sobre alguma experiência
particular da cantora. Na época Antônio Barros e Cecéu faziam parte dos compositores mais
procurados para composições de forró.
A Rainha do Xaxado foi uma mulher sempre à frente do seu tempo e por isso recebia
críticas da sociedade, algo que lhe incomodava bastante, mas ela não deixava de dar sua
resposta através da música. Foi assim com Desabafo, cansada de ouvir sobre sua vida por meio
das mídias da época, encomendou uma canção que descrevesse exatamente sobre seu jeito de
ser, uma mulher independente, que gostava de ter o comando das suas ações. Mas não foi assim
desde o começo, na década de 70, Marinês separou-se de Abdias e passou a viver da forma
como sempre quis, sem a dominação patriarcal do marido. A vida com o companheiro era muito
injusta . No livro O fole roncou! Uma história do Forró encontramos relatos de agressão física
e relação de exploração no trabalho.

Quase uma menina, Marinês apanhou calada. Também suportou em silêncio por muito
tempo o fato de não receber nem parte dos cachês, sempre controlados pelo marido.
Para comprar qualquer coisa, a cantora tinha que pedir a Abdias. Certa vez, ela falou
que precisava de outro batom. Ouviu como resposta: – Não tá bom esse, não? Pra que
você quer dois batons se tem uma boca só? (MARCELO, RODRIGUES, 2012).

A separação aconteceu quando a cantora começou a se impor mediante privações e


traições do marido.
O rompimento com Abdias foi um divisor de águas na vida de Marinês. A mudança é
perceptível até nas capas dos discos. Sua imagem, que antes era relacionada com roupas do
cangaço, símbolo masculinizado, passou a mostrar elementos do universo da própria mulher.
Façamos uma comparação entre dois discos distintos da carreira da cantora (ver figuras 7 e 8).

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Figura 7: Capa de disco (1962) Figura 8: Capa de disco (1982)

Duas imagens bem contrastantes, a primeira mostra uma identidade de uma mulher que
demonstra força através dos signos nos quais ela está inserida, ou seja, forró, a macheza de
Lampião e o Nordeste; a segunda mostra-se tranquila, livre das armas e com vestes brancas
trazendo um clima de paz. Obviamente que essa transição não aconteceu de repente, pois sua
primeira imagem já estava estabelecida dentro do mercado.
Marinês sofreu, além do preconceito por ser mulher e fazer arte, discriminação por está
cantando o gênero musical nordestino, seus colegas das rádios diziam “quem não sabe fazer
nada, canta forró”.
Ao cantar Desabafo, parece que retira todo peso das costas levados durante anos de
carreira. A forma como ela ataca cada nota, intensificando cada acento tônico, não deixando a
desejar na dicção, é singular. No trecho “Não ligo, faço, aconteço, no outro dia eu esqueço
pra de novo começar…”, sua voz que, colocada na região de peito, se aproxima muito da voz
falada, sendo uma característica marcante na interpretação. Outra característica é a força
igualmente empregada tanto para os graves como para os agudos.
Sobre a compreensão empírica do ouvinte, Luiz Tatit nos explica que:

Toda inflexão da voz para região aguda, acrescida de um prolongamento das


adorações, desperta atenção pelo próprio esforço fisiológico da emissão. Esta atenção
física corresponde, quase sempre, a uma tensão emotiva e o ouvinte já está habituado
ao ouvir a voz do cantor em alta frequência relatando casos amorosos, onde há alguma
perda ou separação que gera um grau de tensão compatível (TATIT, 1997, p. 101).
Interessante comentarmos que a energia colocada por Marinês na música, traz a
sensação que a obra foi composta por ela. Não sendo apenas uma questão que faz parte da
persona do artista que, na perspectiva do público, ao interpretar uma obra, torna-se autor de

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todo conjunto, letra, arranjo e harmonia, mas sim, como se realmente o produto, obra e
interpretação viessem do mesmo lugar.
Mas, a relação entre mulher e forró ainda não é muito harmoniosa. Ao mesmo tempo
que vemos em Marinês uma figura de potência feminina, no forró essa força esbarra com as
limitações impostas pela sociedade. Laila Rosa (2009) explica que ao mesmo tempo que a
música traz empoderamento para mulher, por muitas vezes ela também reproduz e reforça um
pensamento ou prática patriarcal e machista. Segundo a autora, “a música está presente tanto
como veículo de empoderamento como também de fortalecimento das assimetrias quando
pensamos na performance em que a mulher não é autorizada a tocar e tantos outros momentos
do sagrado como o sacrifício” (ROSA, 2009, p.31).
Embora a análise da autora esteja focada na música religiosa, no caso a jurema,
podemos trazer esse argumento para forró. Tomemos como exemplo a experiência de Marinês
que, mesmo trazendo uma imagem de empoderamento para mulheres, foi nomeada a Rainha
do Xaxado por um homem. Ou seja, da mesma forma que o forró empodera, a legitimação só
acontece através de uma figura masculina, a ponto de ser chamada de “Luiz Gonzaga de saias”.
No livro “Eu sou Anastácia: história de uma rainha!”', encontramos relatos em que
antigamente acreditava-se que o forró era um tipo de música para homens cantarem, pois,
necessitava de muito fôlego, algo que não se esperava de uma mulher (FERREIRA; DIAS,
2011, p.188).
Anastácia, coroada a rainha do forró, forte representante das composições do gênero,
tem seu nome por muitas vezes, ainda atrelado ao sanfoneiro Dominguinhos, quando não,
esquecido. Muitos, ao citarem a autoria da canção “Eu só quero um xodó”, colocam apenas o
nome do sanfoneiro.
Estes são alguns exemplos das assimetrias entre a mulher e o forró, o conceito trazido
por Laila Rosa é muito pertinente ao contexto, pois ao mesmo tempo em que esse tipo de
música empodera, pode excluir.

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Considerações finais

Marinês tem sido a maior referência dentro dos coletivos feministas de forró, não
somente porque foi pioneira dentro do segmento, mas por toda trajetória de empoderamento
trazida durante sua vida.
Em 1982, ano da gravação e lançamento da música, já existia grande movimentação
das mulheres que lutavam para a melhoria das condições e custo de vida, reivindicando direitos
trabalhistas como salário digno e a implementação de creches que atendessem os filhos de mães
trabalhadoras. Não encontramos informações de que a cantora tenha participado formalmente
de algum movimento de mulheres, mas é notório que todo legado deixado por ela, está se
refletindo nos dias de hoje. Desabafo transformou-se no hino deixando a mensagem de
independência para as mulheres atuantes ou não no forró.

Referências

CANDIDO, Antonio. “Crítica e Sociologia”. In: Literatura e Sociedade. 11ª ed. Rio de
Janeiro: Ouro sobre azul, 2010.

FERREIRA, Lucinete; DIAS, Lêda. Eu sou Anastácia!: histórias de uma rainha. Recife:
FacForm, 2011.

MARCELO, C.; RODRIGUES, R. O Fole Roncou! Uma história do forró. Rio de Janeiro:
Zahar, 2012.

MULHERIO, set/out de 1982, ano 2, n.7

ROSA, Laila Andresa Cavalcante. As Juremeiras da nação Xambá (Olinda, PE): músicas,
performances, representações de feminino e relações de gênero na jurema sagrada. Tese
(Doutorado em Música) – PPGM/UFBA, Salvador, 2009. Disponível em:
<https://repositorio.ufba.br/ri/handle/ri/9151>Acesso em: 05 out. 2021.

SANTOS, Climério de Oliveira. Forró: a codificação de Luiz Gonzaga. Recife: Cepe, 2013.

SANTOS, Climério de Oliveira. Forró desordeiro: para além da bipolarização ‘Pé de Serra
versus Eletrônico’. In: Anais do III Simpom, Rio de Janeiro, 2014.

TATIT, Luiz. Musicando a semiótica: ensaios. São Paulo: ambulante, 1997.

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