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Instituto de Letras - IL
D e p a r t a m e n t o d e Te o r i a L i t e r á r i a E L i t e r a t u r a s - T E L
D A N I E L A M I R A N D A D A S I LVA O L I V E I R A
O B I L DU N GS R O M A N FE MI NI N O D E J O R G E A M A DO :
T E R E ZA B ATI S TA C A N S A DA DE G UE R R A
O R I E N TA D O R : D R . E D VA L D O B E R G A M O
BRASÍLIA – DF
2012
D A N I E L A M I R A N D A D A S I LVA O L I V E I R A
O B I L DU N GS R O M A N FE MI NI N O D E J O R G E A M A DO :
T E R E ZA B ATI S TA C A N S A DA DE G UE R R A
Monografia apresentada ao
D e p a r t a m e n t o d e Te o r i a L i t e r á r i a e
Literaturas do Instituto de Letras da
Universidade de Brasília como
requisito para obtenção do título de
Licenciado em Letras – Língua
Portuguesa e Respectiva Literatura.
O r i e n t a d o r : D r. E d v a l d o B e r g a m o .
BRASÍLIA – DF
2012
Universidade de Brasília - UNB
Instituto de Letras - IL
D e p a r t a m e n t o d e Te o r i a L i t e r á r i a E L i t e r a t u r a s - T E L
O L I V E I R A , D a n i e l a M i r a n d a d a S i l v a . O B i l d u n g s ro m a n f e m i n i n o d e
J o rg e Amado: Te re z a Batista cansada de guerra. Monografia de
Graduação. Brasília: TEL/IL/UNB, 2012.
A p ro v a d a p o r : P r o f e s s o r D r. E d v a l d o B e r g a m o
BRASÍLIA – DF
2012
RESUMO
P a l a v r a s - c h a v e : r e p r e s e n t a ç ã o f e m i n i n a , J o r g e A m a d o , Te r e z a ,
ro m a n c e d e f o r m a ç ã o , B i l d u n g s ro m a n , s o c i e d a d e .
ABSTRACT
K E Y- W O R D S : r e p r e s e n t a t i o n o f w o m e n , J o r g e A m a d o , Te r e z a ,
ro m a n c e d e f o r m a ç ã o , B i l d u n g s ro m a n , s o c i e t y.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO.............................................................................7
2 A S E G U N D A FA S E D A L I T E R AT U R A D E J O R G E A M A D O . . . . . . . . . . 1 5
4 O C O M P O RTA M E N T O FEMININO R E P R E S E N TA D O NA
L I T E R AT U R A . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 2 3
5 A A F R O D E S C E N D E N T E N A L I T E R AT U R A B R A S I L E I R A . . . . . . . . . . . 2 4
6 D O N A F L O R E A VA L O R I Z A Ç Ã O D A M I S C I G E N A Ç Ã O . . . . . . . . . . . . . 2 8
8 A T R A D I Ç Ã O D O B I L D U N G S R O M A N N A L I T E R AT U R A . . . . . . . . . . . . 3 6
CONSIDERAÇÕES FINAIS.........................................................50
REFERÊNCIAS BILIOGRÁFICAS...............................................51
7
INTRODUÇÃO
n a c i o n a i s e i n t e r n a c i o n a i s p o r s u a s o b r a s . A h i s t ó r i a d e Te r e z a f o i
a d a p t a d a p a r a a t e l e v i s ã o p o r Vi c e n t e S e s s o , e a m i n i s s é r i e e x i b i d a p e l a
r e d e G l o b o e m 1 9 9 2 , Te r e z a f o i i n t e r p r e t a d a p e l a a t r i z P a t r í c i a F r a n ç a .
Em agosto de 2012 será comemorado o centenário de Jorge Amado.
E s t e t r a b a l h o s e j u s t i f i c a p e l o e s f o r ç o r e a l i z a d o p a r a a n a l i s a r,
e compreender as transformações sofridas pelas personagens femininas
r e p r e s e n t a d a s n a o b r a d o e s c r i t o r J o rg e A m a d o . E s p e c i f i c a m e n t e t r a t a
do ro m a n c e de formação de Te re z a Batista cansada de guerra,
e x e m p l i f i c a n d o e m o s t r a n d o p o r q u e e s t e é u m ro m a n c e d e a p re n d i z a g e m
feminino vitorioso.
9
P e l a p r i m e i r a v e z e m s u a o b r a , n o l i v r o Te r r a s d o S e m F i m ,
Jorge Amado simpatiza, no sentido psicológico, não moral, com os
grandes coronéis, ou seja, os espoliadores do povo. Assim, o livro se
torna mais humano e universal, pois vive o ponto de vista do espoliado
e d o e s p o l i a d o r. “ E m a r t e , a c o m p r e e n s ã o , – n o s s e n t i d o s , l ó g i c o e
psicológico – é sempre mais ativa e mais efetiva do que a parcialidade”.
(CANDIDO, 1945, p. 59).
Num passado recente a literatura escrita, assim como outras
formas de arte consideradas cultas, era privilégio da classe dominante
no Brasil. Por volta dos anos 30 os romancistas começaram a se
preocupar com a questão social do país e a introduzir os problemas
sociais em suas obras. Os melhores romances de caráter social são aqueles
que tratam da negação do sistema que nega o homem, reduzindo seus
horizontes, convertendo-o em objeto. No ro m a n c e s o c i a l o e l e m e n t o
11
e n u n c i a d o s i m p l e s , b e m p o p u l a r, d e s a t a v i a d o , i n d i c a n d o u m n o v o r u m o
p a r a a n a r r a t i v a , c r i a n d o o r o m a n c e p o p u l a r. A l é m d e s e r p o p u l a r, e s t e
romance estará impregnado de intenção ideológica, proletária, ou seja,
será um romance de ideias. Aliás, muitos criticaram os aspectos
panfletários da obra do escritor baiano.
Os romances de Jorge Amado apresentam como tema os
problemas cruciais da vida brasileira, problematizam a sociedade de
maneira geral, e principalmente o povo que vive as margens desta
sociedade. Nos principais textos do romancista estarão presentes as
principais polaridades da vida: primeiro, o choque entre a natureza e a
cultura; em seguida, a situação assimétrica entre o homem e a mulher
na sociedade; depois, o contraste entre o campo e a cidade, ou o
confronto entre a terra e o mar; as diferenças entre a criança e o adulto.
Jorge Amado retira extraordinários efeitos das contradições pejadas de
historicidade, são situações dialéticas apoiadas nas ideias marxistas,
que o romancista afirmou que desconhecia na época de sua militância
política.
[...] Contrapostas dualidades como fome versus abundância, rico versus pobre,
patrão versus empregado, trabalho versus capital, a imaginação criadora opera
criticamente no meio dessas polarizações, quer denunciando situações concretas,
quer descortinando as utopias, em direção das quais se acreditava que as civilizações
marchavam. (LUCAS, 1997, p. 108)
2 A S E G U N D A FA S E D A L I T E R AT U R A D E J O R G E A M A D O
[...] Esse modelo narrativo combina o realismo social típico dos anos 30 com os
elementos da herança romanesca incrustada no imaginário popular, destacando-se
entre eles o tom melodramático de muitas passagens e a estruturação narrativa
tomada de empréstimo ao roman feuilleton. Tais recursos, popularizados ainda mais
pelo novo entretenimento de massa (cinema) àquela altura já bastante difundido
entre nós, servem à postura de “escrever para o povo” exigida pelo engajamento
partidário, ao mesmo tempo que abrem para o autor a perspectiva de trazer para a
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[...] Hoje, Gabriela é dessas personagens que tem alcance extra-literário, figurando
no próprio imaginário popular como símbolo de impetuosidade e erotismo. No
entanto, sua construção está lastreada em várias figurações anteriores de um
feminino que tinha sempre destacada sua força – Linda, em Suor; Lívia, em Mar
morto; Mariana, em Os subterrâneos da liberdade – ou denunciado a condição de
objeto sexual – Maria do Espírito Santo, em Suor; as três irmãs prostituídas, em
Terras do sem fim; Marta, em Seara vermelha. (DUARTE, 1997, p. 94)
Em termos literários, a originalidade desta fase de Jorge Amado é que, ao sério, ele
responde com o carnavalesco; ao normativo e ao partidário ele contrapõe o pessoal,
o singular e o milagroso, ao materialismo formalista e retórico, ele ataca com a
informalidade e com a religiosidade; à vida definida como fórmula econômica, ele
apresenta o mundo como uma complicada teia de relações pessoais que sustenta a
esperança nas boas amizades e se celebra a relação pela relação. (DAMATTA, 1997,
p. 128-129)
trama. Segundo DaMatta (1997, p. 129) “[...] Jorge Amado lida com
teias de relações e são esses elos indestrutíveis que conduzem a
história. [...]”. No romance relacional, o espaço individual é
substituído pela dinâmica das relações pessoais, os sujeitos são elos
sociais e não indivíduos. A fase carnavalizadora da obra do autor
baiano representa o ponto de vista da relação, demonstrando que
existem diversos sistemas nos quais a escolha moral pode ser não
e s c o l h e r, o u e s c o l h e r f i c a r c o m o s d o i s . A q u i a a m b i g ü i d a d e é v i s t a
como valor cultural e de maneira positiva. Assim, nesta fase, os heróis
d e J o r g e A m a d o , a s s i m c o m o o a u t o r, t e m d u a s v i d a s d i f e r e n t e s , d o i s
nomes e duas existências contrárias, como é o caso de Quincas Berro
D á g u a , e d e D o n a F l o r. N u m a p r i m e i r a e x i s t ê n c i a e l e s s ã o p r i s i o n e i r o s
de uma rigidez ideológica, mas quando rompem com essas correntes
morrem socialmente para em seguida ressuscitarem para uma outra vida,
renovados e aceitando os valores culturais mais intrínsecos de seu
povo. Enquanto na primeira vida a personagem obedece a todas as
regras, na segunda existência passa a ser o contrário do que era antes,
em todos os sentidos. “[...] surgem heróis duplos, pessoas e não
i n d i v í d u o s c o m p r o j e t o s e d e s e j o s c o n t r a d i t ó r i o s . [ . . . ] ” ( D A M AT TA ,
1997, p. 133).
Ao descobrir o carnaval e seus valores, Jorge Amado encontra
o abandono à vida como solidariedade, no qual os elos sociais formam o
centro dinâmico. “Esse carnaval que é o espírito de um outro Brasil.
Carnaval que institui a ambigüidade como um dado positivo.[...]”
( D A M AT TA , 1 9 9 7 , p . 1 3 3 ) . D o n a F l o r é a p o n t e e n t r e d o i s m o d o s d e
v i d a : o e s t i l o b u rg u ê s d o D r. Te o d o r o , e o e s t i l o c a r n a v a l i z a d o d e
Va d i n h o . É o p o n t o d e e n c o n t r o e n t r e e s t i l o s d e v i d a e i d e o l o g i a s . P a r a
DaMatta (1997, p. 132) “[...] ela é a encarnação ficcional da ideologia
p os iti va da m est i çagem que t am b ém m arca a ob ra de Gil b erto Fre yre
[...]”, que acabou influenciando muito nesta nova fase da obra de Jorge
Amado. Dona Flor representa a ambiguidade e o hibridismo como
valores positivos da nossa sociedade, representa uma possibilidade de
união dos elementos que compõe a nação brasileira, simbolizando que o
22
assim Jorge Amado ajudou a construir a imagem que temos hoje do que
é ser brasileiro.
4 O C O M P O RTA M E N T O FEMININO R E P R E S E N TA D O NA
L I T E R AT U R A
necessário fazer uma adaptação, devido aos diferentes tipos étnicos que
formaram o país e que resultou numa população miscigenada, mas os
e s c r i t o r e s p r e f e r i a m p e r s o n a g e n s b r a n c a s . N e m m e s m o A m o re n i n h a d e
Macedo permaneceu morena durante toda a narrativa, o que demonstra o
preconceito existente em nosso país naqueles dias e que perdura até
hoje. A mulher demônio, marginalizada pela sociedade, por representar
a tentação para o homem, vai ter algumas das mais inesquecíveis
representações na literatura brasileira. “Novamente é Alencar que irá
inscrever o tipo de mulher demônio na cena literária brasileira com o
r o m a n c e L u c í o l a . [ . . . ] ” ( A LV E S , 2 0 0 2 , p . 9 1 )
5 A A F R O D E S C E N D E N T E N A L I T E R AT U R A B R A S I L E I R A
N a l i t e r a t u r a , o í c o n e e r ó t i c o d a a f r o d e s c e n d e n t e s u rg e e m
várias obras do romance brasileiro do século XIX. Encontramos a visão
europeizada que divide as mulheres em “anjos louros” e “morenas
a r d e n t e s ” n o b r a s i l e i r í s s i m o J o s é d e A l e n c a r. “ [ . . . ] O t e x t o d e A l e n c a r
incorpora imagens oriundas do imaginário europeu – difundidas mundo
afora sobretudo pela narrativa romântica de extração folhetinesca
[ . . . ] ” ( D U A RT E , 2 0 0 9 , p . 8 ) . A l u í s i o A z e v e d o , n o l i v r o O c o r t i ç o
(1890), traz a mulata Rita Bahiana que apresenta uma sensualidade
desenfreada, sedutora e destrutiva, é uma personagem ambígua. Por sua
c a u s a , J e r ô n i m o a b a n d o n a a m u l h e r, q u e v i r a a l c o ó l a t r a , e a f i l h a , q u e
p a s s a a s e p r o s t i t u i r, a l é m d e m a t a r F i r m o , e x - a m a n t e d e R i t a . A p e s a r
de toda a atividade sexual, a mulata Rita Bahiana não tem filhos, nunca
engravidou. No século XX, as coisas não mudam muito quanto à
representação da personagem mulata na literatura brasileira. O autor
baiano Jorge Amado cria personagens mulatas sensuais, com a diferença
de que aqui elas não são mais vistas unicamente como objetos do desejo
m a s c u l i n o , s ã o t a m b é m s u j e i t o s d e s e j a n t e s . D o n a F l o r, G a b r i e l a , Te r e z a
Batista, Ti e t a do Agreste etc. To d a s são mulheres em busca de
realização amorosa ou independência, mas que representam o
estereótipo da personagem mulata na literatura brasileira. Nos livros de
J o r g e A m a d o , c o m e x c e ç ã o d e Te r e z a B a t i s t a q u e e n g r a v i d a e f a z u m
aborto, por mais que sejam ativas sexualmente, as mulatas não
engravidam. Isto contradiz a ligação simbólica da mulher com a terra,
ambas responsáveis por gerarem a vida. A “cor de canela” de Gabriela
está associada à cor da terra, mas esta representação de fertilidade não
se estende ao útero da personagem, que diferentemente da terra não é
fértil.
[...] Se, em Alencar, Iracema tem como símbolo secreto o anagrama de “América” e,
antes de sua morrer, entrega ao colonizador “o primeiro cearense”; e se, em Aluísio
Azevedo, Rita Bahiana é “fruto” ela própria dos “sertões americanos”; Gabriela
surge no romance “coberta de pó” e, com seu trabalho e mãos de cozinheira, irá
contribuir para a prosperidade do patrão e posterior aquisição de uma roça de cacau.
[...] (DUARTE, 2009, p. 10)
27
P a r a Q u e i r o z J u n i o r ( 1 9 7 5 , p . 11 8 ) “ [ . . . ] j a m a i s f o i a s s e g u r a d o
à mulata o lugar de principal personagem nas estórias em que intervém
[ . . . ] ” . M a s n ã o p o d e m o s e s q u e c e r o l i v r o d e J o r g e A m a d o , Te re z a
Batista cansada de guerra (1972), em que a personagem que dá nome ao
título tem a história de sua vida narrada desde a infância até a idade
a d u l t a . N e s t a o b r a d o r o m a n c i s t a b a i a n o , a m u l a t a Te r e z a B a t i s t a é a
personagem principal, embora ainda carregue vários marcas do
estereótipo da mulata.
6 D O N A F L O R E A VA L O R I Z A Ç Ã O D A M I S C I G E N A Ç Ã O
[...] Seu erotismo [de Dona Flor] se desenvolve a partir da evidência de que não se
engravidará. Poderia fazer um tratamento para que pudesse procriar, mas não se
entusiasma. Se tivesse filhos, o risco seria reproduzir o padrão social e descartar o
erotismo. Para Jorge Amado, esse erotismo só prospera pelas margens do sistema
social. Nesse sentido, chega mesmo a idealizar os prostíbulos, que ele eleva à
condição de “castelos”. O reino da liberdade, sonhado pelo autor, estaria nessa
marginalidade. (JUNIOR, 2002, p. 278).
p r e c o n c e i t o s c o n t r a a m u l h e r. D o n a F l o r r o m p e c o m o s p a p é i s i m p o s t o s
p e l a s o c i e d a d e à m u l h e r, m a s i s t o é f e i t o d e m a n e i r a c l a n d e s t i n a . E l a é
professora de culinária, como conveniente às mulheres da época, que
deveriam seguir profissões determinadas pela sociedade dos anos 40.
Dona Flor trouxe para dentro de casa o erotismo, enquanto Gabriela
preferiu colocar o erotismo num espaço entre o lar e o prostíbulo.
Assim como Gabriela, Dona Flor não teve filhos, fugindo assim do
modelo de esposa idealizado pela sociedade. Isto parece informar “[...]
uma certa incompatibilidade social de coexistência entre os papéis
s o c i a i s d e m ã e e d e a m a n t e , [ . . . ] ” . ( J U N I O R , 2 0 0 2 , p . 2 8 1 ) . Te o d o r o e
Va d i n h o s ã o p a r t e s p s i c o l ó g i c a s d o c a r á t e r d e D o n a F l o r. Te o d o r o e r a o
B r a s i l E s t a d o - n a c i o n a l e Va d i n h o r e p r e s e n t a v a o c a r n a v a l . N o f i n a l ,
Dona Flor reúne estes opostos, de acordo com sua cultura mestiça,
fazendo com que o dever e o prazer tenham uma existência em comum e
pacífica. A mestiçagem é idealização de caráter ideológico de Jorge
A m a d o , e e s t á p r e s e n t e e m v á r i a s o b r a s d o a u t o r, p r i n c i p a l m e n t e e m
Dona Flor e seus dois maridos. O realismo mágico dos anos 60 permitiu
a o e s c r i t o r J o r g e A m a d o u n i r a s f a c e s o p o s t a s d e D o n a F l o r, s e m
conflitos, numa identidade híbrida.
7 A R E P R E S E N TA Ç Ã O F E M I N I N A N A O B R A D E J O R G E A M A D O
E m Te r r a s d o s e m - f i m ( 1 9 4 3 ) , t e m o s a d e s c r i ç ã o d o p e r í o d o d e
formação da zona cacaueira, com a sede pelo ouro do cacau, a luta pela
posse da terra, o estabelecimento das plantações e a construção das
pequenas cidades nos arredores de Ilhéus, sul da Bahia, no início do
século XX. Retrata o universo dos coronéis, dos lavradores, dos
c a p a t a z e s , d a s s e n h o r a s d e f a m í l i a e d a s p r o s t i t u t a s . E s t e r, e s p o s a d o
coronel Horácio, surge na narrativa como vítima da sociedade machista
da época. Numa cena do livro, Ester é comparada ao fruto do cacaueiro
pelo marido. “A identificação entre a mulher e a natureza é um traço
c a r a c t e r í s t i c o d o a u t o r. [ . . . ] ” . ( B E L L I N E , 2 0 0 8 , p . 2 9 ) . E e s t á p r e s e n t e
e m v á r i a s o b r a s d o e s c r i t o r, c o m o e m G a b r i e l a , c r a v o e c a n e l a e Te re z a
Batista cansada de guerra. Na interiorização da personagem, o autor
b a i a n o r e v e l a o s s e n t i m e n t o s d e E s t e r, s u a n ã o a d a p t a ç ã o a o a m b i e n t e
da fazenda. Para demonstrar o desajuste da refinada Ester ao meio rude
em que habita, o autor utiliza as metonímias do piano e das roupas.
Este é um procedimento freqüente em Jorge Amado. “[...] um objeto
várias vezes mencionado indica uma característica do ser a que se
refere. [...]”. (BELLINE, 2008, p. 30). Ester tinha medo da fazenda e de
tudo o que fazia parte deste mundo estranho para ela, pensava nas rãs
devoradas pelas cobras, o que compõe a metáfora para a sua submissão
ao marido, até mesmo durante o ato sexual. Sua vontade só prevalece
q u a n d o t r a i o m a r i d o , p o r a m o r, c o m o j o v e m a d v o g a d o Vi r g í l i o . E l a
adoece e morre de febre, meses depois Horário descobre a traição e
m a n d a m a t a r Vi r g í l i o . “ [ . . . ] O c o n f l i t o d e E s t e r, e n t r e o ó d i o a o m a r i d o
g r o s s e i r o e a p a i x ã o p o r Vi r g í l i o , r e s o l v e - s e a p e n a s n o p l a n o d o s o n h o e
da morte. [...]”. (BELLINE, 2008, p. 30)
Gabriela, cravo e canela: crônica de uma cidade do interior
(1958) se passa em Ilhéus, em 1925. Narra a história de amor entre o
árabe Nacib e a sertaneja Gabriela. Além dos costumes, o livro descreve
alterações profundas na vida social e política da Bahia, com a ascensão
do exportador carioca Mundinho Falcão e o declínio de Ramiro Bastos e
outros coronéis da região. É Gabriela quem representa as
transformações desta sociedade, a renovação cultural, política e
econômica. A história começa com um rico fazendeiro assassinando sua
33
esposa e o amante para lavar com sangue sua honra, e termina um ano
depois com um fato inédito na cidade: a condenação do assassino por
seu crime. O livro mostra ainda as transformações da condição feminina
em suas várias etapas. A personagem Malvina, da mesma classe social
d e E s t e r ( Te r r a s d o s e m - f i m ) , n ã o s e s u b m e t e a o c a s a m e n t o , c o m o
desejava sua família, transgredindo os códigos patriarcais da época.
Malvina decide a própria vida, fugindo para São Paulo resolve o
conflito entre as regras impostas socialmente e sua ânsia de liberdade.
A personagem central da trama, a mulata Gabriela, é uma
pobre retirante da seca nordestina, que também deseja a liberdade para
decidir seu próprio destino. Gabriela, como a maior parte das mulatas
representadas na literatura, é bonita, limpa, trabalhadora, alegre,
e s p o n t â n e a , g o s t a d e c a n t a r e d a n ç a r, e é a e x c e l e n t e c o z i n h e i r a d e
N a c i b , d o n o d o B a r Ve s ú v i o . B o n i t a e s e n s u a l a c a b a c o n q u i s t a n d o o
patrão e outros homens da cidade, que lhe oferecem dinheiro e luxos,
mas Gabriela não aceita as propostas porque estava satisfeita com a
vida que tinha. Apesar de estar feliz com as coisas que possuía,
Gabriela não gostava de usar sapatos, pois apertavam os seus pés. “A
metonímia dos sapatos indica a ânsia de liberdade e o desapego do
status que Nacib tenta impor-lhe, casando-se com ela. [...]” (BELLINE,
2008, p. 31). Gabriela gostava de dormir com os homens sem receber
nada em troca, simplesmente pelo prazer sexual. Ela não se adapta ao
casamento, pois continua com os mesmos hábitos que tinha antes,
contrariando a sociedade de Ilhéus. Ao descobrir a traição, Nacib dá
uma surra na esposa e anula o casamento, realizado com papéis falsos,
pois Gabriela não tinha nenhum documento. Ela se sente culpada por ter
casado com Nacib e não por ter traído o esposo.
Ao recriminar-se não por ter traído o marido, mas por ter se casado, Gabriela reitera
os valores positivos do sentimento acima de qualquer tipo de interesse material –
uma constante na obra de Jorge Amado que se confirma no final da narrativa, na
união feliz com Nacib, de quem volta a ser cozinheira e amante. (BELLINE, 2008,
p. 31-32)
34
A oposição entre aparência e realidade, em que as coisas não são o que aparentam
ser, freqüente no autor, retrata o bordel, espaço degradado, como mais honesto que a
cidadezinha, exteriormente decente. [...] (BELLINE, 2008, p. 35)
A c o m u n i d a d e d e S a n t a n a d o A g r e s t e s ó a c e i t a Ti e t a e n q u a n t o
ela finge que não é prostituta, finge ser algo que realmente não é.
Quando descobrem a verdade, o povo da cidade a rejeita, e ela volta
para São Paulo, levando Imaculada, uma jovem que lhe faz lembrar dela
p r ó p r i a . Ti e t a f e z e s s a v i a g e m a S a n t a n a d o A g r e s t e e m b u s c a d e s u a
identidade. “[...] no final, na iniciação de Imaculada, verifica-se um
retorno consciente à vida de prostituta. [...]” (BELLINE, 2008, p. 35)
P o r s u a i m p e t u o s i d a d e , p o r s e u e s p í r i t o q u e s t i o n a d o r, p o r s e r
uma mulher que transgrediu e superou os códigos injustos da sociedade
machista, e por ter passado de objeto para sujeito de seu próprio
36
d e s t i n o , Ti e t a e n t r o u p a r a a g a l e r i a d a s g r a n d e s p e r s o n a g e n s f e m i n i n a s
d e J o r g e A m a d o , a o l a d o d e L í v i a , G a b r i e l a , D o n a F l o r e Te r e z a B a t i s t a .
8 A T R A D I Ç Ã O D O B I L D U N G S R O M A N N A L I T E R AT U R A
O B i l d u n g s ro m a n t e m a i n d a c o m o c a r a c t e r í s t i c a a f u n ç ã o d e
contribuir para a formação do indivíduo que o lê, fazendo com que a
história da personagem possa ser uma espécie de espelho onde a pessoa
p o s s a r e f l e t i r, a p r e n d e n d o c o m o s e r r o s c o m e t i d o s p e l o p r o t a g o n i s t a d a
narrativa. Através do processo de conscientização da personagem
principal, o leitor ou leitora acabaria também sendo conscientizado.
O u t r a c a r a c t e r í s t i c a d o B i l d u n g s ro m a n é q u e n o r m a l m e n t e o r o m a n c e
trata de uma personagem masculina e não de uma personagem feminina,
o que já foi muito criticado pelo movimento feminista. A situação da
mulher na sociedade impossibilitava sua representação como um
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8 . 1 O B i l d u n g s r o m a n f e m i n i n o d e Te r e z a B a t i s t a C a n s a d a d e G u e r r a
E m Te re z a B a t i s t a c a n s a d a d e g u e r r a ( 1 9 7 2 ) , t e m o s u m a o b r a
r e p r e s e n t a t i v a d o B i l d u n g s ro m a n f e m i n i n o . A p e s a r d e t e r s i d o e s c r i t o
p o r u m h o m e m , o a u t o r b a i a n o J o rg e A m a d o , o r o m a n c e a p r e s e n t a
características encontradas também no ro m a n c e de a p re n d i z a g e m
masculino, como:
[...] Certa vez uma delas se mijou de medo quando ele a alcançou e sujeitou; se
mijou toda, molhando as pernas e o colchão, coisa mais doida, Justiniano ainda se
arrepia de prazer ao lembrar-se. [...]. Sendo um esportista, o capitão preferia
naturalmente aquelas que ofereciam certa resistência inicial. [...] (AMADO, 1972, p.
66)
E a s s i m f o i c o m Te r e z a : o c a p i t ã o J u s t o , d e p o i s d e c a ç á - l a p o r
quase uma hora no quintal da casa da tia, jogou-a no caminhão, onde se
l i a n o e s t r i b o : d e g r a u d o d e s t i n o . A o c h e g a r à c a s a d o c a p i t ã o , Te r e z a é
trancada num quarto com um colchão de casal, um urinol, um retrato da
A n u n c i a ç ã o d a Vi rg e m e a t a c a d e c o u r o c r u , u t i l i z a d a p a r a b a t e r n a s
39
[...] Pensou em muitas coisas enquanto ele dormia. Recordou o vira-lata, Ceição,
Jacira, os moleques, os brinquedos de cangaço e guerra, a tia com desconhecidos na
cama, tio Rosalvo com os olhos de bêbado, a perseguição no terreiro, o tio a entregá-
la, tia Felipa de anel no dedo, a viagem no caminhão, o cubículo na casa da roça, as
fugas, a palmatória, a taca, o cinto, o ferro de engomar. [...]. Melhor morrer do que
retornar ao leito do capitão, à gosma do capitão. [...] (AMADO, 1972, p. 146)
D a n i e l , c o m s u a l á b i a , c o n s e g u e c o n v e n c e r Te r e z a d e q u e a
morte não é a melhor opção e que eles poderão continuar a se encontrar
quando o capitão viajar novamente. Só depois da noite que passou com
D a n i e l , Te r e z a c o n s e g u e e n t e n d e r o s m o t i v o s p e l o s q u a i s , e n q u a n t o o
tio Rosalvo bebia cachaça na vendinha, sua tia Felipa dormia com
o u t r o s h o m e n s d e s c o n h e c i d o s s e m s e r o b r i g a d a , s e m p r e c i s a r a p a n h a r,
por vontade própria. Aproveitando-se de uma viagem do capitão Justo a
B a h i a p a r a a f e s t a d e D o i s d e J u l h o , D a n i e l e Te r e z a p a s s a m o i t o n o i t e s
juntos na casa do capitão. Durante estes dias, a mudança iniciada na
p r i m e i r a n o i t e d e a m o r s e c o m p l e t a , Te r e z a j á n ã o é m a i s a m e s m a
41
[...] Violada há cerca de dois anos e meio, possuída pelo capitão quase todos os dias,
fechada no medo, conservara-se inocente, pura e crédula. De repente despertada
mulher, nessas rápidas noites de veloz transcurso abriu-se em poço de infinito
prazer, floresceu em beleza. Antes era formosa menina, graça adolescente e simples,
agora o óleo do prazer banhara-lhe o rosto e corpo, o gosto e a alegria do amor
acenderam-lhe nos olhos aquele fogo do qual o doutor Emiliano Guedes percebera o
fulgor meses atrás. [...]. Assim renasceu quem morrera na palmatória, no cinturão,
na taca, no ferro de engomar. O gosto do fel e as marcas de dor e de medo foram se
apagando todas elas, uma a uma; tendo recuperado cada partícula de seu ser, na hora
necessária, sem sombra de medo, se ergueu inteira aquela falada Tereza Batista,
formosa, de mel e valentia. (AMADO, 1972, p. 155-156)
A p e s a r d e t e r p r o m e t i d o l e v a r Te r e z a p a r a a c a p i t a l , D a n i e l
n ã o p r e t e n d e d e s a f i a r J u s t i n i a n o , n u n c a p e n s o u e m s a l v a r Te r e z a d a s
garras de seu algoz, queria apenas se divertir por algumas noites. Mas o
c a p i t ã o a c a b a s e n d o a v i s a d o p o r u m b i l h e t e a n ô n i m o , e p e g a Te r e z a e
D a n i e l n o f l a g r a . E n q u a n t o e l e b a t e e m D a n i e l , Te r e z a p e g a u m a f a c a e
e s f a q u e i a o c a p i t ã o J u s t o . A t r a n s f o r m a ç ã o e f e t i v a d a e m Te r e z a , n e s t e s
p o u c o s d i a s d e d i c a d o s a o p r a z e r e a o a m o r, f a z c o m q u e o c a p i t ã o n ã o a
r e c o n h e ç a m a i s , m e s m o s a b e n d o q u e s e t r a t a d e Te r e z a . “ [ . . . ] D e i x o u - a
a m e n i n a e a e n c o n t r o u m u l h e r, d e i x o u - a e s c r a v a n o m e d o e o m e d o
acabou. [...]” (AMADO, 1972, p. 159).
A primeira relação sexual de Te r e z a com o capitão é
repressora, sua iniciação sexual com Daniel é libertadora. Daniel não
c h e g a a s e r u m m e n t o r p a r a Te r e z a , m a s é m u i t o i m p o r t a n t e p a r a s u a
aprendizagem porque desperta nela o desejo de encontrar a felicidade,
de ter uma vida diferente e livre. “[...] O conflito gerado pela
necessidade de escolher entre um destino conformado e uma vida
i n d e p e n d e n t e c a r a c t e r i z a e m g e r a l o B i l d u n g s ro m a n f e m i n i n o . [ . . . ] ” .
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( P I N T O , 1 9 9 0 , p . 5 3 ) . O m e d o q u e Te r e z a s e n t i a d o c a p i t ã o J u s t o
acabou alienando-a, coisificando-a. Ao se r e e n c o n t r a r, através da
descoberta sexual e amorosa que teve com Daniel, percebe que não será
mais possível permanecer com o capitão, preferindo até mesmo a morte.
Com a morte do capitão Justiniano Duarte da Rosa, Daniel foge e
Te r e z a é p r e s a c o m o a s s a s s i n a d e s e u a l g o z . D a n , q u e l h e p r o m e t i a a
l i b e r d a d e , n o f i n a l a c u s a Te r e z a e m s e u d e p o i m e n t o p o r t u d o o q u e
a c o n t e c e u . N a c a d e i a , Te r e z a p a s s a p o r m o m e n t o s m u i t o r u i n s , m a s a
decepção que teve com Dan foi tão grande que chegou a pensar que ele
talvez fosse pior que o capitão Justo, pois todo o tempo que permaneceu
com ela agiu de maneira hipócrita. Até este momento de sua jovem
v i d a , a s p e s s o a s q u e p a s s a r a m p e l a v i d a d e Te r e z a , p r i n c i p a l m e n t e o s
h o m e n s , s ó a f i z e r a m s o f r e r, s e u B i l d u n g t e m s i d o u m a c o n t í n u a
frustração de todos os seus sonhos.
Te r e z a B a t i s t a s e r á l i b e r t a d a g r a ç a s à i n t e r v e n ç ã o d o d o u t o r
Emiliano Guedes, um usineiro rico, banqueiro e doutor formado, que se
encantou por ela desde que a viu na casa do capitão. Era bonito, magro,
alto, olhos claros, com cabelos e bigode grisalhos. Ele envia, sem que
Te r e z a s a i b a , o e x c e l e n t e a d v o g a d o L u l u S a n t o s p a r a a j u d a r n a s u a
liberação, já que por ser menor de idade sua prisão era ilegal. Lulu
S a n t o s t i r a Te r e z a d a c a d e i a e i n t e r n a - a n u m c o n v e n t o , m a s e l a f o g e e
vai se prostituir na pensão de Gabi. Por tudo o que ocorreu em sua vida,
Te r e z a n ã o c o n s e g u e m a i s c o n f i a r e m n i n g u é m , m a s q u a n d o E m i l i a n o
vai buscá-la no prostíbulo, ela aceita partir com ele. O doutor lhe
o f e r e c e u m a n o v a v i d a e a p e s a r d a s d e s c o n f i a n ç a s i n i c i a i s , Te r e z a s e r á
m u i t o f e l i z c o m e l e , v o l t a n d o a t é a c o n f i a r n a s p e s s o a s . Te r á c o m e l e
uma relação de amor verdadeiro, a primeira em sua vida. É muito
c o m u m n o B i l d u n g s ro m a n f e m i n i n o q u e o m e n t o r s e j a u m h o m e m . O
doutor Emiliano será um mentor no processo de formação intelectual da
protagonista, ensina-lhe muitas coisas, inclusive a julgar sem
preconceitos.
Te r e z a é a m á s i a d e E m i l i a n o , a r e l a ç ã o d e l e s é i l e g í t i m a , p o r
isso a protagonista fica numa posição marginal perante a sociedade. É
uma relação que se dá dentro dos padrões patriarcais, onde a mulher é
o p r i m i d a p e l o h o m e m . Ta n t o é a s s i m q u e q u a n d o Te r e z a e n g r a v i d a d o
d o u t o r, e l e p e d e q u e e l a f a ç a u m a b o r t o . M e s m o d e s e j a n d o m u i t o t e r u m
f i l h o , e l a a c a b a f a z e n d o a v o n t a d e d o d o u t o r.
[...] Decida, Tereza, entre mim e o menino. Nada lhe faltará, garanto, só não terá a
mim. Tereza não vacilou. Pondo os braços em torno do pescoço do doutor deu-lhe os
lábios a beijar: a ele devia mais do que a vida, devia o gosto de viver. – Para mim o
senhor passa antes de tudo. (AMADO, 1972, p. 233).
Sendo incapaz de luxúria pura e simples, para entregar-se com ânsia, para abrir-se
em gozo, necessitava de afeto profundo, de amor, só assim, nela se acende o desejo
em labaredas e em febre, não havendo então mulher como Tereza. (AMADO, 1972,
p. 171)
E m s u a e s t r é i a n o c a b a r é P a r i s A l e g r e , e m A r a c a j u , Te r e z a
conhece Januário Gereba no meio de uma briga. Ela defendia uma
mulher que apanhava de um homem, ele a salva da ir presa pela polícia.
Janu é mestre de saveiro na Bahia, um homem forte, negro, grande e
q u e l h e d á u m a s e n s a ç ã o d e s e g u r a n ç a e d e d e f i n i t i v a s c e r t e z a s . Te r e z a
n ã o c o n h e c i a o m a r e J a n u á r i o e r a u m h o m e m d o m a r, q u e i m a d o p e l o s o l
e p e l o v e n t o d o m a r, c o m c h e i r o e g o s t o d e m a r e s i a . E l e f a l a v a p a r a
Te r e z a s o b r e a B a h i a , a c i d a d e n a s c i d a n o m a r, o c a i s d o p o r t o e t c .
Apesar de todas as diferenças, Janu lembrava o doutor Emiliano Guedes
e m s u a i n t e i r e z a d e h o m e m . O s a v e i r i s t a e Te r e z a s e a p a i x o n a m à
primeira vista, mas Januário é casado e não pode se separar da mulher
porque ela está doente. Mas eles não resistem à paixão que sentem um
pelo outro e acabam fazendo amor na praia, numa cena marcada de
lirismo romântico, em que a protagonista renasce nas ondas do mar:
Era o mar infinito, ora verde, ora azul, verdeazul, ora claro, ora escuro, claroescuro,
de anil e celeste, de óleo e de orvalho e, como se não bastasse com o mar, Januário
Gereba encomendara lua de ouro e prata, lanterna fincada no alto dos céus sobre os
corpos embolados na ânsia do amor; eram dois ao chegar, são um só, nas areias da
praia encobertos por uma onda mais alta. [...] Tua boca de sal, teu peito de quilha,
em teu mastro vela enfunada, na coberta das ondas nasci outra vez, virgem marinha,
noiva e viúva de saveirista, grinalda e espumas, véu de saudade, ai, meu amor
marinheiro. (AMADO, 1972, p. 38-39)
J a n u t a m b é m s e r á u m a e s p é c i e d e m e n t o r p a r a Te r e z a , p o i s
ensiná-lhe a capoeira, o samba, as danças de carnaval e a gafieira.
J a n u á r i o s e r á o g r a n d e a m o r d a v i d a d e Te r e z a B a t i s t a , e m s u a
despedida nas areias da praia: “[...] ela se acolhe ao peito do homem
para quem nasceu e tarde encontrou [...]” (AMADO, 1972, p. 52).
J a n u á r i o p a r t e p a r a a B a h i a , p r o m e t e n d o a Te r e z a r e t o r n a r p a r a e l a
assim que possível. Para fugir de propostas indesejadas de homens
45
r i c o s , d e a m e a ç a s e p e r s e g u i ç õ e s , Te r e z a v a i p a r a u m a p e q u e n a c i d a d e
do interior chamada Buquim, com o médico Oto Espinheira. Logo se
arrepende de ter acompanhado o médico, pensa que seria melhor ser
mulher-dama que suportar o doutorzinho, além disso, seu coração só
batia mesmo por Janu. Um surto de bexiga assola a cidade, com a fuga
d a e n f e r m e i r a e d o m é d i c o O t o E s p i n h e i r a , Te r e z a e a s p r o s t i t u t a s d e
Muricapeba vacinam o povo e ajudam os doentes, acabando com a
epidemia da bexiga. Este capítulo é narrado à maneira de um romance
d e c o r d e l , n o c a p í t u l o “ A B C d a p e l e j a e n t r e Te r e z a B a t i s t a e a b e x i g a
n e g r a ” . D e p o i s d i s s o , Te r e z a t r a b a l h a c o m o p r o s t i t u t a p e l o s e r t ã o a t é
c h e g a r a S a l v a d o r, e m b u s c a d e s e u g r a n d e a m o r. Vi v e d a p r o s t i t u i ç ã o ,
porque não quer ser mantida por homens ricos, para ela era melhor ser
prostituta que amásia, embora não sentisse prazer com os clientes. Já
e m S a l v a d o r, n o b o r d e l F l o r d e L o t u s , c o n h e c e o v i ú v o A l m é r i o d a s
Neves, dono de uma padaria em Brotas, com um filho de dois anos e
meio, que lhe propõe casamento. Na esperança do retorno do marinheiro
J a n u á r i o , Te r e z a r e c u s a o p e d i d o . F i c a s a b e n d o d a m o r t e d a m u l h e r d e
Janu e que ele partira para Aracaju para encontrá-la. Mas como lhe
informaram que ela havia morrido na epidemia da bexiga, ele partiu
n o v a m e n t e n u m c a rg u e i r o g r a n d e e d e s d e e n t ã o n i n g u é m t i n h a m n o t í c i a s
d e l e . E n q u a n t o e s p e r a a v o l t a d e s e u a m a d o , Te r e z a f i c a s a b e n d o p e l a s
prostitutas que a polícia quer mudar todos os prostíbulos da cidade para
a Ladeira do Bacalhau, na Cidade Baixa. No capítulo “A festa do
c a s a m e n t o d e Te r e z a B a t i s t a o u A g r e v e d o b a l a i o f e c h a d o n a B a h i a o u
Te r e z a B a t i s t a d e s c a r r e g a a m o r t e n o m a r ” , o a u t o r r e s s u s c i t a o p o e t a
baiano Castro Alves para sair em defesa das prostitutas, que não tinham
o direito nem de decidir onde viveriam:
Quando uma puta se despe e se deita para receber homem e conceder-lhe o supremo
prazer da vida em troca de paga escassa, sabe o ilustre combatente da justiça social
quantos estão comendo dessa paga. Do proprietário da casa ao sub-locador, da
caftina ao delegado, do gigolô ao tira, o governo e o lenocídio. Puta não tem que a
defenda, ninguém por ela se levanta, os jornais não abrem colunas para descrever a
miséria dos prostíbulos, assunto proibido. [...] Sou o poeta Castro Alves, morto há
cem anos, do túmulo me levanto, na Praça de meu nome e monumento, na Bahia,
46
assumo a tribuna de onde clamei pelos escravos, no Teatro São João que o fogo
consumiu, para conclamar as putas a dizer basta. (AMADO, 1972, p. 293-294)
[...] Tereza vê-se refletida no aço do espelho pelo direito e pelo avesso. [...]. Recorda
acontecimento e pessoas, fatos distantes, gente desaparecida. O doutor, o capitão,
Lulu Santos, o menino arrancado de seu ventre, assassinado antes de ser. Os tempos
de cadeia, os tempos de bordel, a época de Estância, lugares por onde andou, o ruim
e o bom, a taca de couro e a rosa. Quantos anos completara há poucos meses no
xadrez, presa e surrada pela polícia de costumes da Bahia? Vinte e seis? Não pode
ser. Quem sabe, cento e vinte e seis, mil e vinte e seis ou ainda mais? Na hora da
morte não se conta idade. (AMADO, 1972, p. 366)
numa terra seca, que sofre com a escassez de chuvas, sua viagem final
pelo mar se contrapõe ao lugar de onde veio. Há uma oposição entre o
s e r t ã o e o m a r. E l a é d o i n t e r i o r, q u e s e o p õ e a S a l v a d o r, c a p i t a l d a
B a h i a , c o m s e u c a i s d o p o r t o e s e u m a r. M a s Te r e z a s e a d a p t a a o m e i o
em que passa a viver com Janu, o mar é para ela um lugar de renovação,
aliás, a água está presente em todos os momentos importantes da vida
d e Te r e z a , r e n o v a n d o - a e i n d i c a n d o m u d a n ç a s i m p o r t a n t e s e m s u a
trajetória pessoal. Acompanhando a história de vida da protagonista:
“[...] o leitor toma conhecimento do seu desenvolvimento emocional e
intelectual e do processo de formação de sua personalidade. [...]”.
(PINTO, 1990, p. 62).
M e s m o n o s m o m e n t o s d e m a i o r a d v e r s i d a d e , Te r e z a d e c i d e s e u
próprio destino, rejeitando padrões sociais. Apesar de existirem vários
B i l d u n g s ro m a n fracassados, exclusivamente com protagonistas
f e m i n i n a s , n o ro m a n c e d e a p re n d i z a g e m d e Te re z a B a t i s t a c a n s a d a d e
guerra, a personagem rompe com as limitações sociais e consegue a
independência e a afirmação pessoal, assumindo uma posição
marginalizada na sociedade, mas livre, capaz de fazer suas próprias
escolhas. O final, apesar de indeterminado, aponta para a possibilidade
de realização de seus desejos numa história que está fora do livro, que
s e r á d e s e n v o l v i d a n a m e n t e d o s l e i t o r e s . N a v i a g e m f i n a l , Te r e z a
descarrega a morte do capitão e do doutor Emiliano Guedes no mar da
B a h i a . M a i s u m a v e z , J a n u s e r á o m e n t o r d e Te r e z a , a j u d a n d o - a a s e
livrar dos seus mortos, ensinando-a a guardar consigo só as coisas boas
e a deixar o mar levar tudo de ruim que aconteceu em sua vida. Por ser
u m h o m e m d o m a r, f o n t e d e r e n o v a ç ã o d a p r o t a g o n i s t a , e l e s e r á
r e s p o n s á v e l p e l o r e n a s c i m e n t o d e Te r e z a . R e s s u s c i t a d a p a r a a v i d a ,
Te r e z a p e n s a n o f i l h o q u e a b o r t o u e p e d e a J a n u q u e l h e d ê o u t r o ,
simbolizando assim o renascimento e o início de uma nova vida em
direção à felicidade e à auto-realização plenas. A viagem pelo mar “[...]
indica a possibilidade de vitória, de conquista e afirmação do EU pela
protagonista, e a imagem da morte surge associada à promessa de
renascimento [...]” (PINTO, 1990, p. 87).
48
conforma com injustiças, que não desiste nem mesmo diante das
maiores adversidades.
50
CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS BILIOGRÁFICAS
A LV E S , I v i a . “ I m a g e n s d a m u l h e r n a l i t e r a t u r a n a m o d e r n i d a d e e
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H o r i z o n t e : P ó s - g r a d u a ç ã o e m L e t r a s E s t u d o s L i t e r á r i o s : U F M G, 2 0 0 2 .
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P I N T O , C r i s t i n a F e r r e i r a . O B i l d u n g s ro m a n F e m i n i n o : Q u a t ro E x e m p l o s
B r a s i l e i ro s . E d i t o r a : P e r s p e c t i v a , 1 9 9 0 .
Q U E I R O Z J U N I O R , Te ó f i l o d e . P re c o n c e i t o d e c o r e a m u l a t a n a
literatura brasileira. São Paulo: Editora Ática, 1975.