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Universidade de Brasília - UNB

Instituto de Letras - IL
D e p a r t a m e n t o d e Te o r i a L i t e r á r i a E L i t e r a t u r a s - T E L

D A N I E L A M I R A N D A D A S I LVA O L I V E I R A

O B I L DU N GS R O M A N FE MI NI N O D E J O R G E A M A DO :
T E R E ZA B ATI S TA C A N S A DA DE G UE R R A

O R I E N TA D O R : D R . E D VA L D O B E R G A M O

BRASÍLIA – DF
2012
D A N I E L A M I R A N D A D A S I LVA O L I V E I R A

O B I L DU N GS R O M A N FE MI NI N O D E J O R G E A M A DO :
T E R E ZA B ATI S TA C A N S A DA DE G UE R R A

Monografia apresentada ao
D e p a r t a m e n t o d e Te o r i a L i t e r á r i a e
Literaturas do Instituto de Letras da
Universidade de Brasília como
requisito para obtenção do título de
Licenciado em Letras – Língua
Portuguesa e Respectiva Literatura.

O r i e n t a d o r : D r. E d v a l d o B e r g a m o .

BRASÍLIA – DF
2012
Universidade de Brasília - UNB
Instituto de Letras - IL
D e p a r t a m e n t o d e Te o r i a L i t e r á r i a E L i t e r a t u r a s - T E L

O L I V E I R A , D a n i e l a M i r a n d a d a S i l v a . O B i l d u n g s ro m a n f e m i n i n o d e
J o rg e Amado: Te re z a Batista cansada de guerra. Monografia de
Graduação. Brasília: TEL/IL/UNB, 2012.

Monografia apresentada ao Departamento de Te o r i a Literária e


Literaturas do Instituto de Letras da Universidade de Brasília como
requisito para obtenção do título de Licenciatura em Letras – Língua
Portuguesa e Respectiva Literatura.

A p ro v a d a p o r : P r o f e s s o r D r. E d v a l d o B e r g a m o

BRASÍLIA – DF
2012
RESUMO

Esta monografia tem por objetivo estudar a representação


f e m i n i n a n a o b r a d o a u t o r b a i a n o J o rg e A m a d o , m o s t r a n d o o p a p e l d a
mulher na sociedade. Foi feito um brevíssimo resumo da trajetória
literária de Jorge Amado, na tentativa de dar um panorama geral da obra
do a u t o r. A n a l i s a m o s de maneira mais geral a relação mulher e
s o c i e d a d e c o m a s p e r s o n a g e n s L í v i a , d e M a r M o r t o ; E s t e r, d e Te r r a s d o
s e m - f i m ; G a b r i e l a , d e G a b r i e l a , c r a v o e c a n e l a ; D o n a F l o r, d e D o n a
F l o r e s e u s d o i s m a r i d o s ; e Ti e t a , d e Ti e t a d o a g re s t e . M a s o f o c o d e s t a
d i s s e r t a ç ã o s e r á a p e r s o n a g e m Te r e z a , d e Te re z a B a t i s t a c a n s a d a d e
guerra. Analisamos este romance de acordo com a tradição do
B i l d u n g s ro m a n , r e l a c i o n a n d o a s c a r a c t e r í s t i c a s p r e s e n t e s n o ro m a n c e d e
formação masculino e demonstrando que elas também estão presentes
n o ro m a n c e d e a p re n d i z a g e m f e m i n i n o Te re z a B a t i s t a . D i s c u t i r e m o s a
relação da mulher com a sociedade a qual pertence, mostrando as
dificuldades encontradas pelo gênero feminino em sua busca pela
felicidade.

P a l a v r a s - c h a v e : r e p r e s e n t a ç ã o f e m i n i n a , J o r g e A m a d o , Te r e z a ,
ro m a n c e d e f o r m a ç ã o , B i l d u n g s ro m a n , s o c i e d a d e .
ABSTRACT

This monograph aims to study the representation of women in


the work of the author Jorge Amado (born in Bahia, Brazil), showing
t h e r o l e o f w o m e n i n s o c i e t y. I t w a s m a d e a b r i e f s u m m a r y o f J o r g e
Amado's literary journey in an attempt to give an overview of the work
o f t h e a u t h o r. I t w a s a n a l y z e d m o r e g e n e r a l l y t h e w o m a n ’s r e l a t i o n s h i p
i n s o c i e t y a n d t h e c h a r a c t e r s l i k e : L í v i a , d e M a r M o r t o ; E s t e r, d e
Te r r a s d o s e m - f i m ; G a b r i e l a , d e G a b r i e l a , c r a v o e c a n e l a ; D o n a F l o r, d e
D o n a F l o r e s e u s d o i s m a r i d o s ; e Ti e t a , d e Ti e t a d o a g re s t e . B u t t h e
f o c u s o f t h i s d i s s e r t a t i o n i s t h e c h a r a c t e r Te r e z a , Te re z a B a t i s t a
c a n s a d a d e g u e r r a . We a n a l y z e d t h i s n o v e l a c c o r d i n g t o t h e t r a d i t i o n o f
t h e B i l d u n g s ro m a n , r e l a t i n g t h e f e a t u r e s p r e s e n t i n t h e m a l e ’s ro m a n c e
de formação and demonstrating that they are also present in the
ro m a n c e d e a p re n d i z a g e m f e m a l e o f Te re z a B a t i s t a . We w i l l d i s c u s s t h e
relationship of women with the society which they belongs, showing the
difficulties encountered b y females in their quest for happiness.

K E Y- W O R D S : r e p r e s e n t a t i o n o f w o m e n , J o r g e A m a d o , Te r e z a ,
ro m a n c e d e f o r m a ç ã o , B i l d u n g s ro m a n , s o c i e t y.
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO.............................................................................7

1 JORGE AMADO E O ROMANCE DE 3O......................................9

2 A S E G U N D A FA S E D A L I T E R AT U R A D E J O R G E A M A D O . . . . . . . . . . 1 5

3 A CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE NACIONAL NA OBRA DE


JORGE AMADO.........................................................................18

4 O C O M P O RTA M E N T O FEMININO R E P R E S E N TA D O NA
L I T E R AT U R A . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 2 3

5 A A F R O D E S C E N D E N T E N A L I T E R AT U R A B R A S I L E I R A . . . . . . . . . . . 2 4

6 D O N A F L O R E A VA L O R I Z A Ç Ã O D A M I S C I G E N A Ç Ã O . . . . . . . . . . . . . 2 8

7 A R E P R E S E N TA Ç Ã O FEMININA NA OBRA DE JORGE


AMADO.....................................................................................30

8 A T R A D I Ç Ã O D O B I L D U N G S R O M A N N A L I T E R AT U R A . . . . . . . . . . . . 3 6

8.1 O BILDUNGSROMAN FEMININO DE TEREZA B AT I S TA


CANSADA DE GUERRA.............................................................37

CONSIDERAÇÕES FINAIS.........................................................50

REFERÊNCIAS BILIOGRÁFICAS...............................................51
7

INTRODUÇÃO

Foram muitas as contribuições do escritor baiano Jorge Amado


para a literatura brasileira, ou m e l h o r, p a r a a c u l t u r a b r a s i l e i r a .
A c l a m a d o p e l o p o v o e c r i t i c a d o n o m e i o a c a d ê m i c o , J o rg e A m a d o é u m
d o s e s c r i t o r e s b r a s i l e i r o s m a i s p u b l i c a d o s n o e x t e r i o r, s e u s l i v r o s f o r a m
traduzidos para 49 idiomas. Ao mesmo tempo em que se tornava um
autor de sucesso no país, J orge Amado era consagrado pelo povo, pois
seus personagens eram tipos bem populares. O autor tinha facilidade
para trabalhar mesclando o erudito e o popular em seus livros.
Jorge Amado de Faria nasceu no dia 10 de agosto de 1912, em
Ferradas, distrito de Itabuna, no sul da Bahia. Aos dezenove anos,
publicou seu primeiro romance, O país do Carnaval (1931), queimado
anos depois em praça pública por ter sido considerado material
subversivo pelo Estado Novo. Participou do movimento dos anos 30
conhecido como “romance do Nordeste”, ao lado de escritores como
Graciliano Ramos, Raquel de Queirós e José Lins do Rego, dando voz
aos ex cluídos e marginalizados.
Sempre representando a força feminina em suas obras,
principalmente a partir da segunda fase de sua literatura, Jorge Amado
p u b l i c a e m 1 9 7 2 , Te re z a B a t i s t a c a n s a d a d e g u e r r a , p e l a L i v r a r i a
Martins Editora. A protagonista, uma heroína afrodescendente, se uniria
a o r o l d a s o u t r a s f i g u r a s f e m i n i n a s c r i a d a s p e l o a u t o r. Te r e z a B a t i s t a
representa a revolta feminina, a mulher que recusa as imposições da
sociedade machista, que não aceita ser objeto e que luta por sua
independência e liberdade. A personagem ganhou fama internacional e a
s e d e d o C l u b e F e m i n i s t a I t a l i a n o , e m M i l ã o , é c h a m a d a C a s a d e Te r e z a
B a t i s t a , d e s d e 1 9 7 7 . Q u a n d o o r o m a n c e f o i l a n ç a d o , J o rg e A m a d o j á e r a
muito p o p u l a r, talvez mais famoso que o próprio presidente da
República da época.
Os livros de Jorge Amado foram adaptados para o cinema,
teatro e televisão, além disso, o autor foi tema de escolas de samba no
R i o d e J a n e i r o e d o c a r n a v a l d e S a l v a d o r. R e c e b e u v á r i o s p r ê m i o s
8

n a c i o n a i s e i n t e r n a c i o n a i s p o r s u a s o b r a s . A h i s t ó r i a d e Te r e z a f o i
a d a p t a d a p a r a a t e l e v i s ã o p o r Vi c e n t e S e s s o , e a m i n i s s é r i e e x i b i d a p e l a
r e d e G l o b o e m 1 9 9 2 , Te r e z a f o i i n t e r p r e t a d a p e l a a t r i z P a t r í c i a F r a n ç a .
Em agosto de 2012 será comemorado o centenário de Jorge Amado.
E s t e t r a b a l h o s e j u s t i f i c a p e l o e s f o r ç o r e a l i z a d o p a r a a n a l i s a r,
e compreender as transformações sofridas pelas personagens femininas
r e p r e s e n t a d a s n a o b r a d o e s c r i t o r J o rg e A m a d o . E s p e c i f i c a m e n t e t r a t a
do ro m a n c e de formação de Te re z a Batista cansada de guerra,
e x e m p l i f i c a n d o e m o s t r a n d o p o r q u e e s t e é u m ro m a n c e d e a p re n d i z a g e m
feminino vitorioso.
9

1 JORGE AMADO E O ROMANCE DE 3O

O “romance do Nordeste”, como ficou conhecido, transformou


o regionalismo quando substituiu a visão paternalista e exótica de antes
por uma posição crítica e agressiva, assumindo algumas vezes a visão
do espoliado, e fazendo uso de um vocabulário e de situações mais
realistas. A partir dos anos 30, houve um movimento de renovação na
literatura brasileira, principalmente no romance que começava a ser
ampliado e consolidado. Escritores como Graciliano Ramos, Raquel de
Queirós, José Lins do Rego e J o rg e A m a d o fizeram parte deste
movimento. As ideias políticas advindas do marxismo e de outras
correntes acabaram influenciando estes autores que viam na escrita um
meio para transformar a sociedade brasileira. Eles estavam construindo
u m a n o v a m a n e i r a d e e s c r e v e r, o q u e s ó f o i p o s s í v e l g r a ç a s à l i b e r d a d e
artística e literária conquistada pelos modernistas da década de 20.
Alguns autores desse período utilizavam soluções antiacadêmicas e
modos populares em suas obras, como forma de demonstrar sua posição
politicamente radical. Estavam conscientes da sua contribuição
ideológica, mas não tinham muita consciência daquilo que traziam como
renovação formal para a literatura brasileira. A partir dos anos 30, os
escritores vão procurar sentir o povo brasileiro, dando sentido humano
ao programa estético da semana de arte moderna. Nos escritores da
geração de 30 ganha ímpeto o movimento de “desliterarização”, com a
“quebra dos tabus de vocabulário e sintaxe, o gosto pelos termos
considerados baixos e a desarticulação estrutural da narrativa”.
(CANDIDO, 1989, p. 205)
Candido (1945, p. 48) afirma que, “A força do romance
moderno foi ter entrevisto na massa, não assunto, mas realidade
criadora”. O escritor baiano Jorge Amado se apresentou de maneira
m u i t o c a r a c t e r í s t i c a n o t r a b a l h o d e r e v e l a ç ã o d o p o v o c o m o c r i a d o r,
pois soube penetrar na poesia do povo e trazer o trabalhador rural e o
urbano, o negro e o branco, para a sua arte. Jorge Amado deu
existência estética e literária aos negros da Bahia e do Brasil,
10

transformou-os em personagens poéticos e não mais bestializados como


eram retratados no período naturalista. Foi o maior romancista do amor
porque falou não só do amor dos ricos e dos brancos, mas também do
a m o r d o s p o b r e s e d o s n e g r o s , e d o a m o r e n t r e b r a n c o s e n e g r o s . Tr a t a
os personagens poeticamente, e é isso que supre o que lhe falta em
penetração psicológica. Seus personagens não vivem num mundo
i n t e r i o r, m u i t o p e l o c o n t r á r i o , m a s n e m p o r i s s o d e i x a m d e s e r v i v o s e
realistas. Seus críticos esquecem que a análise psicológica não é o
único modo de conhecimento do ser humano.
A fórmula estética do autor baiano seria a fusão harmônica de
d o c u m e n t o e p o e s i a , c o m n a o b r a Te r r a s d o S e m F i m . O r o m a n c e d e
Jorge Amado deix a de ser somente romance proletário e passa a ter um
significado mais amplo quando se torna histórico:

Através do documento, o autor percebera a espoliação de uma classe; através da


poesia, sentira o seu valor e o seu significado; através da história, que reúne
espoliados e espoliadores numa relação de perspectiva, alargou a todos os homens a
sua simpatia artística. O que resulta, porventura, num enfraquecimento doutrinário,
se considerarmos o caráter de luta da obra do autor, mas que importa em
enriquecimento da sua arte e da sua compreensão humana. (CANDIDO, 1945, p. 58)

P e l a p r i m e i r a v e z e m s u a o b r a , n o l i v r o Te r r a s d o S e m F i m ,
Jorge Amado simpatiza, no sentido psicológico, não moral, com os
grandes coronéis, ou seja, os espoliadores do povo. Assim, o livro se
torna mais humano e universal, pois vive o ponto de vista do espoliado
e d o e s p o l i a d o r. “ E m a r t e , a c o m p r e e n s ã o , – n o s s e n t i d o s , l ó g i c o e
psicológico – é sempre mais ativa e mais efetiva do que a parcialidade”.
(CANDIDO, 1945, p. 59).
Num passado recente a literatura escrita, assim como outras
formas de arte consideradas cultas, era privilégio da classe dominante
no Brasil. Por volta dos anos 30 os romancistas começaram a se
preocupar com a questão social do país e a introduzir os problemas
sociais em suas obras. Os melhores romances de caráter social são aqueles
que tratam da negação do sistema que nega o homem, reduzindo seus
horizontes, convertendo-o em objeto. No ro m a n c e s o c i a l o e l e m e n t o
11

coletivo ocupa o primeiro plano, sua técnica preferida é o contraponto;


j á n o ro m a n c e p o l í t i c o p r e d o m i n a o e l e m e n t o i n d i v i d u a l . A t e r c e i r a
c a t e g o r i a , o ro m a n c e p ro l e t á r i o , r e f l e t e o p o n t o d e v i s t a d o t r a b a l h a d o r
nas relações sociais. O grupo de escritores designados como
“romancistas do Nordeste” foram os responsáveis por inserir na
literatura a figura do latifúndio e da propriedade da terra como
determinante da desigualdade social brasileira. Escritores como Rachel
de Queiroz, Jorge Amado, Graciliano Ramos, e outros, firmaram a
popularidade do romance do Nordeste.

O romance nordestino, inspirado no subdesenvolvimento e na miséria da região,


associa muito bem a herança da cultura brasileira, latifundiária e patriarcal, ao
espírito cumulativo do capitalismo incipiente, gerador de pobreza e desemprego.
Talvez o conjunto de romances do Nordeste constitua o documento mais enfático da
disparidade social do país, pois a situação geográfica e histórica da região, de uma
pobreza heróica e dependente, pode gerar mais vivamente o sentimento de protesto.
Ali foi denunciada a atuação simultânea das forças telúricas e das instituições
humanas para o esmagamento do homem e para tornar mais pronunciado o desnível
entre as classes. (LUCAS, 1997, p. 102)

Jorge Amado estreou na literatura em 1931, com O país do


carnaval. Para Lucas (1997, p. 102) ali estava, ainda em seu início, “a
dúvida acerca dos valores consagrados e o gosto pela discussão das
idéias”. O primeiro impulso de Jorge Amado estaria no campo da ética,
fruto da indignação moral. O veículo dessa manifestação seria a
e s t é t i c a . To d a a m o t i v a ç ã o l i t e r á r i a d e J o r g e A m a d o e n c a m i n h o u - s e p a r a
a t a c a r a é t i c a d o c a p i t a l , p o i s e l e a d o t o u a é t i c a d o t r a b a l h a d o r. F e z d e
O p a í s d o c a r n a v a l u m ro m a n c e p ro l e t á r i o , e m b o r a n ã o p o s s a m o s
reduzi-lo somente a isto. O seu compromisso estético seria o mínimo de
literatura, e o compromisso ético apontava para o máximo de
honestidade. Jorge Amado utilizava os princípios do realismo socialista
em sua literatura, realismo este que começou a aparecer nas publicações
no início dos anos 30. O objetivo do realismo socialista era reproduzir
a vida em seu desenvolvimento revolucionário, representar a realidade,
e ajudar a ver sua perspectiva histórica, como expressão do ideal.
12

Cacau, de 1933, é um romance de ostensivo engajamento


ideológico. Os escritores em conjunto com os pensadores
desempenhavam também a liderança intelectual neste período. De
acordo com Lucas (1997, p. 104), “A despeito de seu engajamento, a
obra de Jorge Amado é polifônica, reúne várias proposições ideológicas
e reivindicações sociais”. Faz parte de um projeto de identidade
nacional que começou com os árcades mineiros, passou pelo
romantismo, inspirou o realismo e teve súbita interrupção no
modernismo. Cacau trazia ao romance do Nordeste a vida dos
trabalhadores da zona cacaueira do sul da Bahia. Este livro apresenta as
relações de trabalho aviltantes da zona rural, que é uma das temáticas
recorrentes da obra de Jorge Amado. Assim, Jorge Amado ingressa na
crítica social, que daí em diante estará muito presente em seus
romances. Cacau (1933) traz a primeira experiência de Jorge Amado
com o tema rural; e Suor (1934) tem uma temática urbana, no último
capítulo temos uma greve, acompanhada da presença da polícia. Assim,
a cidade passa a fazer parte da ficção do autor baiano. Jubiabá (1935)
representa o amadurecimento do romancista, mostra um negro como
h e r ó i p o p u l a r. M a i s d o q u e i s s o , t r a z u m d a d o i n é d i t o n a f i c ç ã o d o p a í s :
a superioridade do negro. O romance qualifica a virtudes do povo
brasileiro, representa o otimismo em relação à gente brasileira. A partir
d e J u b i a b á J o r g e A m a d o “ c l a r i f i c a a s u a d i a l é t i c a d o s o p r i m i d o s . To d a
a sua obra guarda a mesma predisposição: a de incluir os excluídos
s o c i a i s ” . ( L U C A S , 1 9 9 7 , p . 111 - 11 3 )
A s h i s t ó r i a s d e J o rg e A m a d o s ã o e n g e n h o s a s , m a s n a r r a d a s d e
maneira simples, o que as torna mais acessível ao grande público. O
autor baiano consegue conciliar sua narração com os propósitos de
denúncia da condição social do trabalhador brasileiro. Os jogos
onomásticos praticados em seus romances são curiosos, os nomes de
seus personagens muitas vezes estão ligados a características próprias,
c o m o o p e r s o n a g e m Va d i n h o , d o l i v r o D o n a F l o r e s e u s d o i s m a r i d o s ,
q u e g o s t a v a d e v a d i a r. A p r o s a , q u e é p o n t u a d a d e o r a l i d a d e , c o n s t i t u i
um desafio à tradição artística herdada no século passado, de feição
portuguesa. J orge Amado, contrariando a tradição acadêmica, utiliza um
13

e n u n c i a d o s i m p l e s , b e m p o p u l a r, d e s a t a v i a d o , i n d i c a n d o u m n o v o r u m o
p a r a a n a r r a t i v a , c r i a n d o o r o m a n c e p o p u l a r. A l é m d e s e r p o p u l a r, e s t e
romance estará impregnado de intenção ideológica, proletária, ou seja,
será um romance de ideias. Aliás, muitos criticaram os aspectos
panfletários da obra do escritor baiano.
Os romances de Jorge Amado apresentam como tema os
problemas cruciais da vida brasileira, problematizam a sociedade de
maneira geral, e principalmente o povo que vive as margens desta
sociedade. Nos principais textos do romancista estarão presentes as
principais polaridades da vida: primeiro, o choque entre a natureza e a
cultura; em seguida, a situação assimétrica entre o homem e a mulher
na sociedade; depois, o contraste entre o campo e a cidade, ou o
confronto entre a terra e o mar; as diferenças entre a criança e o adulto.
Jorge Amado retira extraordinários efeitos das contradições pejadas de
historicidade, são situações dialéticas apoiadas nas ideias marxistas,
que o romancista afirmou que desconhecia na época de sua militância
política.

[...] Contrapostas dualidades como fome versus abundância, rico versus pobre,
patrão versus empregado, trabalho versus capital, a imaginação criadora opera
criticamente no meio dessas polarizações, quer denunciando situações concretas,
quer descortinando as utopias, em direção das quais se acreditava que as civilizações
marchavam. (LUCAS, 1997, p. 108)

Jorge Amado trabalha com a contraposição histórica do branco


perante o negro e oferece a miscigenação como resposta positiva para o
B r a s i l . A f o r ç a d o p r o g r e s s o , a a s t ú c i a d o a m o r, a a l e g r i a d e v i v e r, a
ruptura das regras e o sincretismo religioso diminuem as diferenças
entre negros e brancos em nosso país. De acordo com Lucas (1997, p.
11 0 ) “ a m a i o r c o n t r i b u i ç ã o d e J o r g e A m a d o a o d e b a t e s o b r e a s r e l a ç õ e s
raciais do Brasil consiste no registro que perpetrou da cultura mestiça,
com agregação positiva ao nosso processo histórico”, deixando
ex plícita a contribuição africana na formação do povo brasileiro. Jorge
Amado retoma o projeto de identidade nacional, que começou com os
primeiros escritores brasileiros, e o faz incorporando em seus romances
14

personagens negros, mestiços, prostitutas, bêbados, e marginalizados


pela sociedade de forma geral.
Desde que escreveu Cacau, em 1933, Jorge Amado se
considera um militante de esquerda, mas alguns livros seus são mais
marcados pelo alistamento doutrinário. O autor baiano “procurou
projetar o destino humano numa escala histórica que fosse superior à
m e r a a d a p t a ç ã o à r e a l i d a d e ” . ( L U C A S , 1 9 9 7 , p . 11 3 ) . S u a s p e r s o n a g e n s
são transcendentes, preocupam-se com o futuro e o examinam de uma
f o r m a v i s i o n á r i a . A B C d e C a s t ro A l v e s ( 1 9 4 1 ) e O c a v a l e i ro d a
esperança (1942) são duas publicações de nítido engajamento político,
e representam a marca mais profunda do realismo socialista na obra de
J o r g e A m a d o . S e a r a v e r m e l h a ( 1 9 4 6 ) e O s s u b t e r r â n e o s d a l i b e rd a d e
(1954) são as duas obras que exprimem o compromisso do romancista
com as teses do realismo socialista citado anteriormente. Nos três
v o l u m e s d e O s s u b t e r r â n e o s d a l i b e rd a d e ( v. 1 : O s Á s p e ro s Te m p o s ; v.
2 : A g o n i a d a N o i t e ; v. 3 : A L u z n o T ú n e l ) t e m o s u m t e s t e m u n h o v i v o
das práticas policiais e repressivas do Estado Novo, além de ser uma
obra muito bem narrada. Esta obra foi escrita quando o romancista
e s t a v a e x i l a d o n a Tc h e c o s l o v á q u i a . A p ó s o c a n c e l a m e n t o d o r e g i s t r o d o
Partido Comunista, em 1948, o mandato de Jorge Amado foi cassado e
seus livros foram considerados “material subversivo”. Por isso, ele e a
família passam a viver em Paris, mas por motivos políticos o governo
f r a n c ê s e x p u l s a J o r g e A m a d o e s u a f a m í l i a , e m 1 9 5 0 . O e s c r i t o r, a
m u l h e r e f i l h o p a s s a m a r e s i d i r e m D o b r i s , Tc h e c o s l o v á q u i a , o n d e e l e
e s c r e v e o r o m a n c e t r i p a r t i d o O s s u b t e r r â n e o s d a l i b e rd a d e , e m 1 9 5 1 .
S e g u n d o L u c a s ( 1 9 9 7 , p . 11 7 ) “ o r o m a n c e d e J o r g e A m a d o
forcejou o compromisso estético e político, deixou em todos os
segmentos da obra a marca do engajamento partidário”. Alguns temas
d i s p e r s o s n a t r i l o g i a d e O s s u b t e r r â n e o s d a l i b e rd a d e s ã o m u i t o a t u a i s ,
por exemplo: o latifúndio, a invasão das terras dos índios, a violência
policial, a passividade da classe dominante diante das ambições
i n t e r n a c i o n a i s e t c . O s t r ê s r o m a n c e s d e O s s u b t e r r â n e o s d a l i b e rd a d e s e
e n q u a d r a r i a m n o q u e s e d e n o m i n a v a ro m a n à c l e f – p e r s o n a l i d a d e s
notórias da política, das artes e da literatura aparecem caricaturadas,
15

disfarçadas. Alguns nomes foram divinizados pela clarividência do


r e a l i s m o s o c i a l i s t a e p e l o a l i s t a m e n t o p o l í t i c o d a o b r a . To d a a p a r t e
panfletária da obra sobrevive como documento, se tornou perecível.
Jorge Amado cumpriu a tarefa de politizar a imaginação criadora,
através de sua ficção comprometida.

2 A S E G U N D A FA S E D A L I T E R AT U R A D E J O R G E A M A D O

A crítica aponta como o marco de mudança de rumo na


temática de Jorge Amado o romance Gabriela, cravo e canela (1958). O
autor baiano inicia uma segunda fase de sua literatura, em que impera o
h u m o r, o e x o t i s m o , a s e n s u a l i d a d e , a f o r t e p r e s e n ç a f e m i n i n a . A p ó s
Gabriela, a força de atração se desloca da justiça social para a
liberdade. “E o fermento da nova cosmovisão se transpõe do
romantismo sentimental e visionário para a exploração do riso e do
sonho como atributos desrepressores do ser humano.” (LUCAS, 1997, p.
111 ) . N a p r i m e i r a f a s e , o s h e r ó i s d e J o r g e A m a d o e r a m s é r i o s , m a r c a d o s
por uma ideologia, e apontavam para a justiça. Já os da segunda fase de
s u a p r o d u ç ã o s ã o a l e g r e s e d i v e r t i d o s , e s c o l h e n d o p o r m e t a a l i b e rd a d e .
O romancista procura desarmar o automatismo da sociedade e seus
valores imponderáveis através da estética do riso.
Segundo Duarte (1997), a partir de Jubiabá, a ficção amadiana
adota o modelo que definimos, com base nas concepções de Northrop
F r y e , c o m o ro m a n c e ro m a n e s c o , s u p e r a n d o a i n d e f i n i ç ã o d o s l i v r o s
anteriores.

[...] Esse modelo narrativo combina o realismo social típico dos anos 30 com os
elementos da herança romanesca incrustada no imaginário popular, destacando-se
entre eles o tom melodramático de muitas passagens e a estruturação narrativa
tomada de empréstimo ao roman feuilleton. Tais recursos, popularizados ainda mais
pelo novo entretenimento de massa (cinema) àquela altura já bastante difundido
entre nós, servem à postura de “escrever para o povo” exigida pelo engajamento
partidário, ao mesmo tempo que abrem para o autor a perspectiva de trazer para a
16

literatura os aficionados do cinema. Assim, os dramas dos espoliados e as falas da


margem surgem pontuados pelo clima de ação e heroísmo tão ao gosto de um
público que se politizava e exigia direitos sociais, da mesma forma que se divertia
com Carlitos e se comovia com coups de theâtre protagonizados por Antônio
Balduíno ou pelos Capitães da areia. O clima romanesco a tudo perpassa, trazendo
de volta a linearidade épica, o Bildungsroman, a variedade e o excesso folhetinesco.
[...] A narrativa é marcada pelos encontros casuais e pelas mudanças bruscas do
destino. São caminhos sempre entrecortados por outras vias/vidas que por eles
perpassam, segundo o modelo da multiplicidade folhetinesca, adaptada eficazmente
ao propósito do romance da coletividade, imbuído em ser a mimese da história
social do período. É esse modelo popular/popularizado que preside a ascensão na
cena narrativa das vozes vindas de baixo. [...] (DUARTE, 1997, p. 90-92)

Jorge Amado, quando Deputado-constituinte em 1946, foi autor


de várias emendas, inclusive de uma que estabelecia a liberdade de
culto religioso no Brasil e livrava os rituais afro-brasileiros das
perseguições policiais, emenda esta aprovada pela Assembléia
Constituinte. Entretanto, só a partir dos anos 60 seus livros passaram a
tratar com mais ênfase da questão racial e a defender o respeito à
diferença étnica e às práticas culturais afro-brasileiras. O discurso
marcado de etnocentrismo, que salientava o vigor físico de Honório, em
O país do carnaval, ou Balduíno, em Jubiabá, passa a representar a luta
dos negros baianos para terem reconhecido seu direito a uma religião de
m a t r i z a f r i c a n a , e m O s p a s t o re s d a n o i t e , e a s e r e m r e s p e i t a d o s c o m o
p e r t e n c e n t e s a u m a o u t r a c u l t u r a , e m Te n d a d o s m i l a g re s . O r o m a n c e d e
Pedro Archanjo adota a perspectiva “politicamente correta” frente ao
o u t ro é t n i c o , d i f e r e n t e d o q u e o c o r r e u e m J u b i a b á , o n d e a c e n t r a l i d a d e
d a p e r s p e c t i v a d e c l a s s e o b s c u r e c e u o o u t ro s o c i a l . E n q u a n t o e m
Jubiabá (1935) esta centralidade não fazia diferenças entre brancos,
n e g r o s o u m e s t i ç o s , “ e m Te n d a d o s m i l a g re s [ 1 9 6 9 ] o c o r r e , e m p a r a l e l o
ao discurso de elevação da raça negra, um elogio à miscigenação e ao
c a d i n h o c u l t u r a l b r a s i l e i r o [ . . . ] ” . ( D U A RT E , 1 9 9 7 , p . 9 4 ) .
Em 1958, em Petrópolis, Jorge Amado escreve Gabriela, cravo
e canela. Publicado em agosto, o livro vende 20 mil exemplares em
apenas duas semanas e até dezembro venderia mais de 50 mil. No ano
seguinte, Gabriela coleciona prêmios, como Machado de Assis, do
17

Instituto Nacional do Livro; Jabuti, da Câmara Brasileira do Livro; e


Luiza Cláudio de Souza, do Pen Club. Foram vendidos mais de 100 mil
exemplares, numa época em que a taxa de analfabetismo era muito alta
n o B r a s i l , o q u e d e m o n s t r a a p o p u l a r i d a d e d o e s c r i t o r. A o p u b l i c a r
Gabriela, cravo e canela (1958), Jorge Amado deixa para trás sua
condição de “escritor comunista”, sua obra passa a ter uma segunda
fase. A mulher passa a ser o centro da narrativa e se transforma em mito
sexual, pela primeira vez na obra do romancista baiano. Antes de
G a b r i e l a a m u l h e r e r a r e p r e s e n t a d a n a o b r a d o e s c r i t o r, m a s n u n c a
chegou a ser a personagem principal, inclusive tendo o nome como
título do livro.

[...] Hoje, Gabriela é dessas personagens que tem alcance extra-literário, figurando
no próprio imaginário popular como símbolo de impetuosidade e erotismo. No
entanto, sua construção está lastreada em várias figurações anteriores de um
feminino que tinha sempre destacada sua força – Linda, em Suor; Lívia, em Mar
morto; Mariana, em Os subterrâneos da liberdade – ou denunciado a condição de
objeto sexual – Maria do Espírito Santo, em Suor; as três irmãs prostituídas, em
Terras do sem fim; Marta, em Seara vermelha. (DUARTE, 1997, p. 94)

A presença da mulher ganha uma outra dimensão, após


Gabriela. Nos anos 30 e 40 o romance vai representar os trabalhadores
e suas lutas sociais, a partir da década de 50 a mulher passa a ocupar o
centro da narrativa. Com as transformações econômicas e sociais, a
mulher vem para o espaço público com uma intensidade nunca vista
antes. Inúmeros foram os poemas, contos, romances, filmes ou músicas
que trataram do tema feminino, exemplo disso é a música “Garota de
Ipanema”, que se constrói como texto masculino que exalta a mulher
como um simples objeto. Em Gabriela, cravo e canela, a mulher é
objeto erótico sim, mas é também sujeito desejante capaz de “trocar o
casamento pelo prazer e a segurança do lar por um momento de gozo”.
( D U A RT E , 1 9 9 7 , p . 9 6 ) . A p e r s o n a g e m c o n d i z m a i s c o m a n o v a m u l h e r
que estava surgindo, embora trabalhadora, não se deixa reduzir a mera
força de trabalho, é mais inteira que a musa carioca de “Garota de
Ipanema”, pois Gabriela não é somente objeto, ela também tem seus
18

desejos e vontades. O romance representa as diversas etapas da


trajetória feminina em busca da realização pessoal e da superação do
m a c h i s m o p r e s e n t e n a s o c i e d a d e b r a s i l e i r a . Te m o s n a s p e r s o n a g e n s
Ofenísia, Sinhazinha, Glória, Malvina e Gabriela a representação de
diferentes momentos desse processo histórico vivido pela mulher em
n o s s o p a í s . O f e n í s i a m o r r e d e a m o r, S i n h a z i n h a é a s s a s s i n a d a p e l o
marido, Glória consegue se ver livre do Coronel, Malvina foge em
busca de independência e Gabriela trai o marido, mas é perdoada e se
livra da morte por adultério que acabou vitimando Sinhazinha, e que era
t ã o c o m u m n a é p o c a . N a s d é c a d a s s e g u i n t e s , D o n a F l o r, Te r e z a B a t i s t a ,
e Ti e t a r e p r e s e n t a r ã o e s s a s f i g u r a s f e m i n i n a s l i b e r a d a s s e x u a l m e n t e ,
impetuosas, donas do próprio destino, sujeitos desejantes. Sem
r e n u n c i a r a o m o d e l o d o ro m a n c e ro m a n e s c o , J o r g e A m a d o a m p l i a o
tratamento literário das relações de poder a partir de Gabriela, cravo e
canela. “[...] Abre-se mais o leque de vozes da margem: da perspectiva
d e c l a s s e p a r a a s d e g ê n e ro e e t n i a , [ . . . ] ” . ( D U A RT E , 1 9 9 7 , p . 9 7 )

3 A CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE NACIONAL NA OBRA DE


JORGE AMADO

DaMatta (1997, p. 120) afirma que, de uma perspectiva


sociológica, a obra de Jorge Amado faz uma “ [...] conjunção com a
sociedade brasileira lida através de suas principais instituições,
costumes, valores [...]”. Em sua obra, além da perturbadora “questão
social” do país sempre representada, temos ainda uma visão
interpretativa do Brasil. Jorge Amado fala do Brasil de modo aberto e
direto, sem esconder nossos defeitos, mas sempre com uma ponta de
otimismo quanto ao povo brasileiro:
[...]Sua obra descreve e mediuniza o Brasil, exprime-o por meio de muitas vozes,
enredos, personagens, planos, situações e assuntos, deixando ver em sua tessitura
densa ou ingênua, larga ou curta, inovadora ou estereotipada, um panorama amplo e
claro dos valores brasileiros, instituições e dilemas. [...] (DAMATTA, 1997, p. 121)
19

A representação do carnaval é de extrema importância na obra


de Jorge Amado, pois deflagra reflexões sobre a sociedade brasileira.
Te m d o i s m o m e n t o s i m p o r t a n t e s e m q u e o c a r n a v a l a p a r e c e n a o b r a d o
romancista baiano. Primeiro em O país de carnaval (1931), quando
Paulo Rigger diz que só se sentiu brasileiro duas vezes: quando bateu
em Julie, e quando brincou o carnaval. O segundo momento aparece em
Gabriela, cravo e canela (1958), mas só chega ao ponto máximo no
romance Dona Flor e seus dois maridos (1966), onde “Jorge Amado faz
com que a ambigüidade, o triângulo amoroso e o ponto de vista
feminino se transformem em valores” e deixem de ser o pólo negativo
d a s o c i e d a d e . ( D A M AT TA , 1 9 9 7 , p . 1 2 1 ) . N o l i v r o O p a í s d o c a r n a v a l ,
o carnaval surge como uma celebração com a qual a personagem
principal tem relações negativas. Já em Dona Flor e seus dois maridos,
ganham forma e tem primazia os elementos básicos de um mundo
carnavalizado e, mais importante, a relação como um sujeito da
narrativa, com todas as suas ambigüidades e dilemas. Em O país do
carnaval, a celebração representa uma metáfora da infelicidade de um
P a u l o R i g g e r, q u e d e s c o b r e u m B r a s i l d i v i d i d o , p o i s d e u m l a d o h á o
Brasil Estado-nacional, do outro a sociedade brasileira e o seu
carnaval. Existem dois modos de enxergar o Brasil, o que produz uma
personagem com duas vidas, como acontece em Gabriela, cravo e
c a n e l a ( 1 9 5 9 ) , A M o r t e e a M o r t e d e Q u i n c a s B e r ro D á g u a ( 1 9 5 9 ) , e m
outros livros de Jorge Amado e especialmente em Dona Flor e seus dois
maridos (1966).
Em O país do carnaval, Jorge Amado sugere que o Brasil, que
é o país do carnaval, seja englobado pelo Brasil-Estado nacional e
passe a ser um país disciplinado. De acordo com DaMatta (1997, p.
125) “[...] essa visão tipifica a primeira fase da obra de J orge Amado,
marcada pelo dualismo clássico que contrapõe o carnaval a uma
realidade econômica e social que é preciso denunciar [...]”. Nesta
perspectiva inicial, os heróis percorrem as trilhas determinadas por sua
posição de classe, pois suas consciências são sociais e o alvo do autor
não é o indivíduo, mas as instituições do capitalismo. A primeira fase é
20

caracterizada pela linearidade das grandes narrativas, pois no final as


personagens encontram o Partido Comunista, um modo de dar aos heróis
uma consciência política correta. Na fase carnavalizadora, o autor
substitui os heróis exemplares de seus romances anteriores por
m a l a n d r o s , p r o s t i t u t a s , b ê b a d o s e m a rg i n a i s , c u j a c r e n ç a s ã o a s r e l a ç õ e s
de amizade e a sabedoria com que encaram os espoliadores do povo e as
durezas do cotidiano. Agora, temos uma disputa muito mais complexa e
real, entre as classes “baixas” e “altas”, propondo novas sínteses entre
essas comunidades.
Jorge Amado rompe com o Partido Comunista em 1956, o uso
da carnavalização como estilo e do romance relacional como modelo
corresponde a este período. A partir desta ruptura o romancista baiano
vai apresentar uma realidade social que não pode ser lida
exclusivamente de um prisma materialista; parece haver ainda a
sugestão de que a literatura só pode ser instrumento de transformação
social quando procurar entender o universo relacional reprimido pelas
instituições oficiais. O único modo de transformar o Brasil seria unir o
Brasil Estado-nacional com a cultura popular brasileira, percebendo
nossas especificidades e aceitando nossa miscigenação como um fator
positivo que poderia contribuir para o progresso do país.

Em termos literários, a originalidade desta fase de Jorge Amado é que, ao sério, ele
responde com o carnavalesco; ao normativo e ao partidário ele contrapõe o pessoal,
o singular e o milagroso, ao materialismo formalista e retórico, ele ataca com a
informalidade e com a religiosidade; à vida definida como fórmula econômica, ele
apresenta o mundo como uma complicada teia de relações pessoais que sustenta a
esperança nas boas amizades e se celebra a relação pela relação. (DAMATTA, 1997,
p. 128-129)

Na primeira fase Jorge Amado navega contra o carnaval, e na


s e g u n d a c o m e l e . O r o m a n c i s t a b a i a n o d e s c o b r e o c a r n a v a l c o m o v a l o r,
como possibilidade de leitura da realidade do nosso país e como modo
de afirmação positiva do povo brasileiro. Isso corresponde à invenção
d o ro m a n c e re l a c i o n a l , o u s e j a , d a n a r r a t i v a q u e r e c o n h e c e n d o a
importância dos elos pessoais, passa a utilizá-los como sujeitos da
21

trama. Segundo DaMatta (1997, p. 129) “[...] Jorge Amado lida com
teias de relações e são esses elos indestrutíveis que conduzem a
história. [...]”. No romance relacional, o espaço individual é
substituído pela dinâmica das relações pessoais, os sujeitos são elos
sociais e não indivíduos. A fase carnavalizadora da obra do autor
baiano representa o ponto de vista da relação, demonstrando que
existem diversos sistemas nos quais a escolha moral pode ser não
e s c o l h e r, o u e s c o l h e r f i c a r c o m o s d o i s . A q u i a a m b i g ü i d a d e é v i s t a
como valor cultural e de maneira positiva. Assim, nesta fase, os heróis
d e J o r g e A m a d o , a s s i m c o m o o a u t o r, t e m d u a s v i d a s d i f e r e n t e s , d o i s
nomes e duas existências contrárias, como é o caso de Quincas Berro
D á g u a , e d e D o n a F l o r. N u m a p r i m e i r a e x i s t ê n c i a e l e s s ã o p r i s i o n e i r o s
de uma rigidez ideológica, mas quando rompem com essas correntes
morrem socialmente para em seguida ressuscitarem para uma outra vida,
renovados e aceitando os valores culturais mais intrínsecos de seu
povo. Enquanto na primeira vida a personagem obedece a todas as
regras, na segunda existência passa a ser o contrário do que era antes,
em todos os sentidos. “[...] surgem heróis duplos, pessoas e não
i n d i v í d u o s c o m p r o j e t o s e d e s e j o s c o n t r a d i t ó r i o s . [ . . . ] ” ( D A M AT TA ,
1997, p. 133).
Ao descobrir o carnaval e seus valores, Jorge Amado encontra
o abandono à vida como solidariedade, no qual os elos sociais formam o
centro dinâmico. “Esse carnaval que é o espírito de um outro Brasil.
Carnaval que institui a ambigüidade como um dado positivo.[...]”
( D A M AT TA , 1 9 9 7 , p . 1 3 3 ) . D o n a F l o r é a p o n t e e n t r e d o i s m o d o s d e
v i d a : o e s t i l o b u rg u ê s d o D r. Te o d o r o , e o e s t i l o c a r n a v a l i z a d o d e
Va d i n h o . É o p o n t o d e e n c o n t r o e n t r e e s t i l o s d e v i d a e i d e o l o g i a s . P a r a
DaMatta (1997, p. 132) “[...] ela é a encarnação ficcional da ideologia
p os iti va da m est i çagem que t am b ém m arca a ob ra de Gil b erto Fre yre
[...]”, que acabou influenciando muito nesta nova fase da obra de Jorge
Amado. Dona Flor representa a ambiguidade e o hibridismo como
valores positivos da nossa sociedade, representa uma possibilidade de
união dos elementos que compõe a nação brasileira, simbolizando que o
22

Brasil só será um país desenvolvido quando puder unir Estado-nacional


e sociedade.
Desde seu primeiro livro, O país do carnaval, J orge Amado
sempre utilizou temas nacionais em seus livros. Buscando valorizar as
tradições populares, utilizou como matéria-prima o samba, o carnaval, o
candomblé, a capoeira, a literatura de cordel e a malandragem, além de
representar a identidade nacional baseada na mestiçagem. A baianidade
e a brasilidade, representadas e algumas vezes idealizadas pelo escritor
baiano, sintetiza elementos das realidades sociais e históricas, altera e
chega a criar outros aspectos da sociedade, que passam a existir para os
brasileiros. Ficção e realidade se misturam em suas narrativas, Jorge
Amado transforma pessoas reais em personagens.

No discurso literário e extraliterário de Jorge Amado, a mestiçagem biológica e


cultural – sobretudo entre portugueses e africanos – funcionava como uma espécie
de eixo em torno do qual foram se agregando outras características do Brasil, entre
as quais o otimismo e a garra do povo, mesmo em meio à miséria e sofrimento; a
predominância da amizade e da solidariedade nas relações cotidianas e a presença do
“jeitinho” brasileiro como estratégia de sociabilidade; a valorização da festa e a
exaltação dos cinco sentidos; e a riqueza e a originalidade de nossa cultura popular,
que faz que ela sirva de inspiração para as criações eruditas. [...] (GOLDSTEIN,
2008, p. 63)

A representação da identidade nacional como modelo de


sociabilidade dileto é apenas um recorte parcial da sociedade e da
história do Brasil. Nem falsa, nem verdadeira, e sim relativa e
dependente do contexto. Jorge Amado generalizou e romantizou alguns
elementos, e acrescentou criatividade e utopia. Para Goldstein, (2008,
p. 70) “[...] Seu Brasil mestiço, alegre, festeiro e sensual é um conjunto
de elementos pinçados dentro de um repertório histórico e cultural
[...]”, recortes que escondem conflitos, heterogeneidade e
transformações, e revelam mitos, tabus e desejos da maior parte da
população do Brasil. Para alguns autores, a língua e a literatura são os
principais meios de consolidar a identidade nacional num país, sendo
23

assim Jorge Amado ajudou a construir a imagem que temos hoje do que
é ser brasileiro.

4 O C O M P O RTA M E N T O FEMININO R E P R E S E N TA D O NA
L I T E R AT U R A

A representação feminina sempre esteve presente na literatura.


Apesar das proibições da Igreja Católica, que considerava que a leitura
de romances iria influenciar negativamente o comportamento feminino,
foi através da literatura que a sociedade introduziu sua mensagem e
suas normas à mulher burguesa. Foi através dos romances, que as
mulheres liam às escondidas dos maridos e pais, que foi construído o
seu comportamento. Na literatura brasileira, podemos observar a
construção da mulher e da virgem destinada ao casamento por meio das
p e r s o n a g e n s d o s l i v r o s d e J o a q u i m M a n u e l M a c e d o , c o m A M o re n i n h a
( 1 8 4 4 ) , J o s é d e A l e n c a r, c o m D i v a ( 1 8 6 4 ) e S e n h o r a ( 1 8 7 5 ) , e B e r n a r d o
Guimarães com A Escrava Isaura (1875).
Alves (2002, p. 87) afirma que, “A construção de um modelo
para a mulher se deve às próprias práticas e organização da sociedade
burguesa capitalista. [...]”. Na época da ascensão da burguesia, os
escritores, que em sua maior parte eram homens, procuraram construir
u m m o d e l o d e m u l h e r. N o e n t a n t o , a c a b a r a m c o n s t r u i n d o t r ê s t i p o s d e
comportamento feminino: a mulher anjo, a mulher sedução, e a mulher
demônio, que era excluída pela sociedade porque representava a mulher
tentação. Inicialmente, esta ex clusão se referia apenas à prostituta, mas
no final do século XIX passa a se referir também as mulheres
intelectuais e todas aquelas que não se comportavam de acordo com o
padrão exigido pela sociedade burguesa. Estes padrões de ideal
feminino foram elaborados nos países europeus etnocêntricos, por isso
a mulher anjo corresponde à mulher loura, e a mulher sedução é
configurada como a mulher branca de cabelos escuros, em nosso país, a
mulher sedução corresponderá à mulher morena. No Brasil, foi
24

necessário fazer uma adaptação, devido aos diferentes tipos étnicos que
formaram o país e que resultou numa população miscigenada, mas os
e s c r i t o r e s p r e f e r i a m p e r s o n a g e n s b r a n c a s . N e m m e s m o A m o re n i n h a d e
Macedo permaneceu morena durante toda a narrativa, o que demonstra o
preconceito existente em nosso país naqueles dias e que perdura até
hoje. A mulher demônio, marginalizada pela sociedade, por representar
a tentação para o homem, vai ter algumas das mais inesquecíveis
representações na literatura brasileira. “Novamente é Alencar que irá
inscrever o tipo de mulher demônio na cena literária brasileira com o
r o m a n c e L u c í o l a . [ . . . ] ” ( A LV E S , 2 0 0 2 , p . 9 1 )

5 A A F R O D E S C E N D E N T E N A L I T E R AT U R A B R A S I L E I R A

A mulher afrodescendente é representada na literatura


brasileira desde seu início. Começando com Gregório de Matos,
passando pelo Romantismo, Naturalismo, e chegando a J orge Amado e
outros escritores da atualidade. A personagem feminina e negra vem
sendo representada de maneira estereotipada, numa configuração que
reúne sensualidade e sexualidade sem repressões, fora dos padrões
adotados para as mulheres brancas pela sociedade. Um “ditado” muito
antigo demonstra bem as diferentes posições da mulher na sociedade
brasileira do período colonial, levando em conta principalmente a cor
d a p e l e : “ B r a n c a p a r a c a s a r, p r e t a p a r a t r a b a l h a r e a m u l a t a p a r a
fornicar”. Infelizmente este conjunto de idéias e juízos generalizados e
tidos como naturais pela sociedade patriarcal foi repassado à ficção e à
poesia da maior parte dos escritores brasileiros da época e de períodos
posteriores. A representação literária da mulata será marcada pela
condição de corpo disponível para o prazer sem limites e sem
compromissos. Para Duarte (2009, p. 6) a mulata era representada na
literatura brasileira como um “[...] animal erótico por excelência,
desprovida de razão ou sensibilidade mais acuradas, confinada ao
império dos sentidos e às artimanhas e trejeitos da sedução. [...]”. A
25

mulata construída pela literatura brasileira, na maior parte dos livros,


não tem família, são sozinhas no mundo, sem ninguém para protegê-las
e apóia-las. Além disso, “[...] tem sua configuração marcada pelo signo
da mulier fornicaria da tradição européia, ser noturno e carnal, avatar
da meretriz. [...]” ( D U A RT E , 2009, p. 6). Apesar de ser feita
especialmente para o prazer carnal, o corpo da mulata apresenta a
infertilidade como defeito biológico. Provavelmente este defeito tenha
se originado do preconceito racial existente na sociedade brasileira, que
se negava a aceitar a ideia da afrodescendência. Se as mulatas fossem
férteis, obrigatoriamente teríamos os frutos destas relações que seriam
representantes da miscigenação das raças.
A mulata, resultado de relações interétnicas e extra-conjugais,
e na maioria das vezes de relações forçadas, como em A Escrava Isaura,
está presente no imaginário da sociedade patriarcal para contrastar com
a negra. Nesta perspectiva, vemos surgir a presença da mucama, termo
que significa “amásia escrava”, em sua origem quimbundo. Mucama é a
designação dada à escrava que fazia os serviços domésticos ou serviam
pessoas da família, geralmente as sinhás, filhas dos senhores de
escravos. Algumas vezes também era a ama-de-leite e quase sempre
escrava sexual dos seus patrões e filhos. As mucamas se tornavam
escravas de estimação, como se fossem animais dos quais os donos
p o d e r i a m d i s p o r a o s e u b e l - p r a z e r. N a l i t e r a t u r a b r a s i l e i r a t e m o s a
mucama Lucinda, do livro As Vítimas-Algozes de Joaquim Manoel de
Macedo, que é dada de presente a Cândida, filha de um negociante e
agricultor do Rio de Janeiro. “[...] Mas a verdade histórica da
miscigenação reforça a etimologia da palavra, bem como o ditado
“ p o p u l a r ” q u e c o n f i n a a m u l a t a a o s e r r a l h o d o s e n h o r. [ . . . ] ” ( D U A RT E ,
2 0 0 9 , p . 11 ) . M u l a t a e m u l a t o d e r i v a m d e m u l o e m u l a , f r u t o d o
cruzamento de cavalo e jumenta, ou égua e jumento, animais estéreis
por natureza. Ao preconceito já existente na sociedade brasileira da
época foi somado o discurso cientificista do século XIX, principalmente
de Joseph Arthur de Gobineau, que proclamava a esterilidade também
entre os relacionamentos entre raças, e dizia que a miscigenação levaria
a civilização à corrupção e à imoralidade.
26

N a l i t e r a t u r a , o í c o n e e r ó t i c o d a a f r o d e s c e n d e n t e s u rg e e m
várias obras do romance brasileiro do século XIX. Encontramos a visão
europeizada que divide as mulheres em “anjos louros” e “morenas
a r d e n t e s ” n o b r a s i l e i r í s s i m o J o s é d e A l e n c a r. “ [ . . . ] O t e x t o d e A l e n c a r
incorpora imagens oriundas do imaginário europeu – difundidas mundo
afora sobretudo pela narrativa romântica de extração folhetinesca
[ . . . ] ” ( D U A RT E , 2 0 0 9 , p . 8 ) . A l u í s i o A z e v e d o , n o l i v r o O c o r t i ç o
(1890), traz a mulata Rita Bahiana que apresenta uma sensualidade
desenfreada, sedutora e destrutiva, é uma personagem ambígua. Por sua
c a u s a , J e r ô n i m o a b a n d o n a a m u l h e r, q u e v i r a a l c o ó l a t r a , e a f i l h a , q u e
p a s s a a s e p r o s t i t u i r, a l é m d e m a t a r F i r m o , e x - a m a n t e d e R i t a . A p e s a r
de toda a atividade sexual, a mulata Rita Bahiana não tem filhos, nunca
engravidou. No século XX, as coisas não mudam muito quanto à
representação da personagem mulata na literatura brasileira. O autor
baiano Jorge Amado cria personagens mulatas sensuais, com a diferença
de que aqui elas não são mais vistas unicamente como objetos do desejo
m a s c u l i n o , s ã o t a m b é m s u j e i t o s d e s e j a n t e s . D o n a F l o r, G a b r i e l a , Te r e z a
Batista, Ti e t a do Agreste etc. To d a s são mulheres em busca de
realização amorosa ou independência, mas que representam o
estereótipo da personagem mulata na literatura brasileira. Nos livros de
J o r g e A m a d o , c o m e x c e ç ã o d e Te r e z a B a t i s t a q u e e n g r a v i d a e f a z u m
aborto, por mais que sejam ativas sexualmente, as mulatas não
engravidam. Isto contradiz a ligação simbólica da mulher com a terra,
ambas responsáveis por gerarem a vida. A “cor de canela” de Gabriela
está associada à cor da terra, mas esta representação de fertilidade não
se estende ao útero da personagem, que diferentemente da terra não é
fértil.

[...] Se, em Alencar, Iracema tem como símbolo secreto o anagrama de “América” e,
antes de sua morrer, entrega ao colonizador “o primeiro cearense”; e se, em Aluísio
Azevedo, Rita Bahiana é “fruto” ela própria dos “sertões americanos”; Gabriela
surge no romance “coberta de pó” e, com seu trabalho e mãos de cozinheira, irá
contribuir para a prosperidade do patrão e posterior aquisição de uma roça de cacau.
[...] (DUARTE, 2009, p. 10)
27

Queiroz Junior (1975, p. 41) afirma que, “[...] Jorge Amado


fez de Gabriela a mulata-remate na galeria das outras que vinham sendo
reveladas, desde Gregório de Matos [...]”. Mas Gabriela é mais
irresistível que todas as outras personagens afrodescendentes anteriores
a ela. Como vive num contexto urbano, Gabriela pode exercitar mais
vezes sua atração, tem mais recursos para os seus encantos, mais
admiradores. Não é escrava, por isso transita livremente perante a
sociedade e suas instituições, mas também não tem família. Sobram
p r o p o s t a s a G a b r i e l a , q u e p o r s e r l i v r e p o d e e s c o l h e r a q u e q u i s e r.
Gabriela supera as outras mulatas, e tem ainda as especiarias exóticas
c o m o q u a l i f i c a ç ã o : o c h e i r o d o c r a v o , p a r a o s e u o d o r, e a c o r d a
c a n e l a , p a r a s u a c o r. “ [ . . . ] O q u e J o s é d e A l e n c a r f e z d a n a t i v a , J o r g e
Amado operou com a mulata [...]” (QUEIROZ JUNIOR, 1975, p. 42).
Retirante da seca nordestina e sem recursos financeiros, Gabriela
aparece na história coberta do pó da estrada, fazendo uma analogia com
o ser humano a surgir do pó quando de sua criação por Deus, num
estado puro e inocente. Gabriela se apresenta pelos belos atributos
físicos, que vão sendo retomados insistentemente e detalhadamente
durante todo o livro, demonstrando o quanto ela é irresistível. Para
representar a cor da boca de Gabriela, J orge Amado utiliza a pitanga,
fruta também considerada exótica. Gabriela tem um sorriso fácil e
bonito, canta e dança muito bem, como as outras mulatas representadas
na literatura brasileira. Além de tudo isso, é uma excelente cozinheira e
uma amante melhor ainda. Nacib acaba se apaixonando por Gabriela,
por todas as suas qualidades e porque ela demonstra que valoriza o
dinheiro, o que muito interessa ao árabe. Gabriela é ainda uma pessoa
solidária, para quem as amizades são muito importantes. Mas, assim
como as outras mulatas, ela é irresponsável, sem pudores, uma mulher
fora dos padrões morais existentes na sociedade a qual pertence.

[...] Escravas [Isaura, de A Escrava Isaura], compondo um esquema de família


[Vidinha, de Memórias de um Sargento de Milícias] ou inteiramente sós [Gabriela,
de Gabriela, cravo e canela], as mulatas da literatura estão todas enredadas numa
trama da cobiça masculina, expostas à voluptuosidade mais intensa e declarada, a
28

qual, ao atuar, só muito excepcionalmente (como ocorreu com Gabriela e se


prenuncia para Isaura e Jini) dá ensejo à normalidade de uma união matrimonial. E,
quando a despeito de tudo, o casamento ocorre, a desconfiança gerada pela falta de
moral da mulata (defeito ressaltado pela pena dos escritores) termina prejudicando a
vida conjugal e reconduz a heroína à união livre, mesmo dentro dos efetivos laços
matrimoniais – como ocorre com Nacib, a viver com Gabriela como se não fossem
casados, a despeito de haverem contraído núpcias legalmente. E esse achado, de
sabor indissimulavelmente pirandeliano a que recorre Jorge Amado, vale não apenas
pela originalidade que porventura atinja a solução proposta, enquanto fabulação. Por
detrás dela, encontra-se, ainda uma vez, a projeção de um conceito de mulata que a
torna inadequada à normalidade de um casamento tranqüilo e durável. (QUEIROZ
JUNIOR, 1975, p. 85)

P a r a Q u e i r o z J u n i o r ( 1 9 7 5 , p . 11 8 ) “ [ . . . ] j a m a i s f o i a s s e g u r a d o
à mulata o lugar de principal personagem nas estórias em que intervém
[ . . . ] ” . M a s n ã o p o d e m o s e s q u e c e r o l i v r o d e J o r g e A m a d o , Te re z a
Batista cansada de guerra (1972), em que a personagem que dá nome ao
título tem a história de sua vida narrada desde a infância até a idade
a d u l t a . N e s t a o b r a d o r o m a n c i s t a b a i a n o , a m u l a t a Te r e z a B a t i s t a é a
personagem principal, embora ainda carregue vários marcas do
estereótipo da mulata.

6 D O N A F L O R E A VA L O R I Z A Ç Ã O D A M I S C I G E N A Ç Ã O

Durante o século XIX e início do XX predominava no Brasil


padrões de beleza femininos europeus, tempos depois substituídos pelo
modelo americano. Estes eram os padrões socialmente dominantes, mas
era possível encontrar nas manifestações culturais brasileiras mulheres
representadas com características étnicas mais brasileiras, como as
moreninhas dos romances românticos e as personagens realistas e
naturalistas que romperam com esses modelos de mulher idealizadas
p e l o s e s c r i t o r e s e u r o p e u s . D o n a F l o r, p e r s o n a g e m d e J o rg e A m a d o , é u m
exemplo de valorização do híbrido, no cinema, na televisão e na
l i t e r a t u r a . G a b r i e l a e Te r e s a B a t i s t a s ã o o u t r o s e x e m p l o s d e m u l h e r e s
29

morenas representadas na literatura brasileira, que também


c o n q u i s t a r a m a t e l e v i s ã o e o c i n e m a . To d a s e l a s a p r e s e n t a m f o r m a
roliça, torneada sem gorduras, mestiças, cabelos negros lisos, olhos de
“requebro” e lábios grossos. Este perfil estético é construído de um
ponto de vista masculino. “Em Jorge Amado, a mulata vai aparecer
sobretudo como objeto de desfrute – perspectiva em parte rompida nos
anos 60 [...]”(JUNIOR, 2002, p. 278).
Gabriela, apesar de chegar a ser esposa legalmente constituída
r e t o r n a a o s e u e s t a d o a n t i g o a o s e s e p a r a r. N ã o é m a i s e s p o s a d e N a c i b ,
embora continuem vivendo juntos. Já Dona Flor é esposa legalmente
constituída, mas assim como Gabriela não tem filho.

[...] Seu erotismo [de Dona Flor] se desenvolve a partir da evidência de que não se
engravidará. Poderia fazer um tratamento para que pudesse procriar, mas não se
entusiasma. Se tivesse filhos, o risco seria reproduzir o padrão social e descartar o
erotismo. Para Jorge Amado, esse erotismo só prospera pelas margens do sistema
social. Nesse sentido, chega mesmo a idealizar os prostíbulos, que ele eleva à
condição de “castelos”. O reino da liberdade, sonhado pelo autor, estaria nessa
marginalidade. (JUNIOR, 2002, p. 278).

O erotismo libertário presente em Gabriela, é interiorizado em


D o n a F l o r. E n q u a n t o G a b r i e l a , a t r a v é s d o c h e i r o , d e s u a c o m i d a , e d e
seu corpo, agradava aos homens. Dona Flor passa de prato de consumo
para a condição de sujeito de seu próprio destino. O erotismo de Dona
Flor mostrará uma atitude marginal pela coexistência sobrenatural de
dois maridos na mesma cama, mas tudo acontecia escondido da
s o c i e d a d e e d o m a r i d o q u e e s t a v a v i v o . Tu d o a c o n t e c e n a c a m a d o c a s a l
e não no prostíbulo, por isso Dona Flor não é marginalizada pela
sociedade. “[...] Pode-se dizer que o romance Dona Flor e seus dois
maridos se insere nas reivindicações feministas dessa década [de 60] de
contestação da sociedade burguesa [...]”.(JUNIOR, 2002, p. 280). O
r o m a n c e e n f a t i z a o c o m p o r t a m e n t o a t i v o e n ã o s u b m i s s o d e D o n a F l o r,
p o i s Va d i n h o p a s s a a e x i s t i r e m f u n ç ã o d o s d e s e j o s d a m u l h e r, p o r é m
sem perder sua personalidade. Embora Dona Flor pareça ser um livro
que apóia o movimento feminista, a trama ainda está cheia de
30

p r e c o n c e i t o s c o n t r a a m u l h e r. D o n a F l o r r o m p e c o m o s p a p é i s i m p o s t o s
p e l a s o c i e d a d e à m u l h e r, m a s i s t o é f e i t o d e m a n e i r a c l a n d e s t i n a . E l a é
professora de culinária, como conveniente às mulheres da época, que
deveriam seguir profissões determinadas pela sociedade dos anos 40.
Dona Flor trouxe para dentro de casa o erotismo, enquanto Gabriela
preferiu colocar o erotismo num espaço entre o lar e o prostíbulo.
Assim como Gabriela, Dona Flor não teve filhos, fugindo assim do
modelo de esposa idealizado pela sociedade. Isto parece informar “[...]
uma certa incompatibilidade social de coexistência entre os papéis
s o c i a i s d e m ã e e d e a m a n t e , [ . . . ] ” . ( J U N I O R , 2 0 0 2 , p . 2 8 1 ) . Te o d o r o e
Va d i n h o s ã o p a r t e s p s i c o l ó g i c a s d o c a r á t e r d e D o n a F l o r. Te o d o r o e r a o
B r a s i l E s t a d o - n a c i o n a l e Va d i n h o r e p r e s e n t a v a o c a r n a v a l . N o f i n a l ,
Dona Flor reúne estes opostos, de acordo com sua cultura mestiça,
fazendo com que o dever e o prazer tenham uma existência em comum e
pacífica. A mestiçagem é idealização de caráter ideológico de Jorge
A m a d o , e e s t á p r e s e n t e e m v á r i a s o b r a s d o a u t o r, p r i n c i p a l m e n t e e m
Dona Flor e seus dois maridos. O realismo mágico dos anos 60 permitiu
a o e s c r i t o r J o r g e A m a d o u n i r a s f a c e s o p o s t a s d e D o n a F l o r, s e m
conflitos, numa identidade híbrida.

7 A R E P R E S E N TA Ç Ã O F E M I N I N A N A O B R A D E J O R G E A M A D O

A mulher sempre esteve presente na obra amadiana. Nos livros


de Jorge Amado encontramos a representação de mulheres de todos os
tipos, raças, classes sociais etc. Mulheres que vão contra as imposições
sociais, que mudam o seu próprio destino e que de algum modo alteram
a sociedade na qual atuam.
[...]Antes mesmo que o feminismo da década de 1960 desse voz e visibilidade às
mulheres na vida social, política e cultural do Brasil, a ficção de Jorge Amado já
apresentava personagens femininas que transgrediam e superavam códigos injustos.
Trata-se da passagem da mulher de objeto manipulado pelo homem a sujeito de seu
próprio destino – amoroso ou profissional. (BELLINE, 2008, p. 27).
31

Em um dos primeiro romances do autor baiano, Mar morto


(1936), a personagem Lívia representa a importância concedida à
mulher pelo romancista. Escrito quando o autor tinha apenas 24 anos,
Mar morto conta as histórias da beira do cais da Bahia. Os homens, que
trabalham como saveiristas, parecem prisioneiros de um destino traçado
h á m u i t o t e m p o : a m o r t e n o m a r, d e i x a n d o a f a m í l i a e m s i t u a ç ã o
complicada. Mas as coisas estão começando a mudar nesta sociedade
ainda parada no tempo. O contraste entre o tempo do mito e o da
história é o que move a obra Mar morto. Aqui, realidade e mito formam
dois planos. O primeiro plano mostra a vida dos saveiristas no cais de
S a l v a d o r, e o s e g u n d o a s u b m i s s ã o a o d e s t i n o , r e p r e s e n t a n d o p e l a d e u s a
Iemanjá. Na narrativa, o marido morto no mar deixava à viúva duas
possibilidades de sobrevivência: o trabalho pesado ou a prostituição. A
professora Dulce acredita que só um milagre modificaria o destino da
mulher nesta sociedade. Lívia é uma personagem feminina que
transgride as normas sociais, que toma suas próprias decisões. Ao fugir
p a r a c a s a r- s e c o m G u m a , c o n t r a r i a n d o a f a m í l i a , a j o v e m L í v i a d e c i d e
seu próprio destino. Ela é da cidade alta, que se opõe à Cidade Baixa e
ao cais. Por isso, Lívia não se adapta ao meio em que passa a viver com
Guma, vê o mar como seu inimigo e tem raiva de Iemanjá. Com a morte
de Guma, Lívia assume o papel do marido, do homem na sociedade.
Francisco, tio de Guma, chega a confundir Lívia com Janaína ou
Iemanjá, pois ela passa a dirigir o barco do marido, rompendo assim
com o destino das viúvas, e transformando em realidade o milagre que a
professora Dulce tanto desejava.

Há, no texto, dois olhares: o de Francisco é o do mar e representa o mito. O que


dona Dulce é o da terra, que vê no gesto de Lívia o milagre esperado, a subversão da
ordem social até então dominante e, portanto, a esperança de transformação dessa
situação injusta. Na atitude de Lívia confluem os dois planos – o real e o mítico –,
resolvendo-se o conflito entre a terra e o mar pela integração ao segundo, numa nova
ordem, determinada por sua vontade. (BELLINE, 2008, p. 28)
32

E m Te r r a s d o s e m - f i m ( 1 9 4 3 ) , t e m o s a d e s c r i ç ã o d o p e r í o d o d e
formação da zona cacaueira, com a sede pelo ouro do cacau, a luta pela
posse da terra, o estabelecimento das plantações e a construção das
pequenas cidades nos arredores de Ilhéus, sul da Bahia, no início do
século XX. Retrata o universo dos coronéis, dos lavradores, dos
c a p a t a z e s , d a s s e n h o r a s d e f a m í l i a e d a s p r o s t i t u t a s . E s t e r, e s p o s a d o
coronel Horácio, surge na narrativa como vítima da sociedade machista
da época. Numa cena do livro, Ester é comparada ao fruto do cacaueiro
pelo marido. “A identificação entre a mulher e a natureza é um traço
c a r a c t e r í s t i c o d o a u t o r. [ . . . ] ” . ( B E L L I N E , 2 0 0 8 , p . 2 9 ) . E e s t á p r e s e n t e
e m v á r i a s o b r a s d o e s c r i t o r, c o m o e m G a b r i e l a , c r a v o e c a n e l a e Te re z a
Batista cansada de guerra. Na interiorização da personagem, o autor
b a i a n o r e v e l a o s s e n t i m e n t o s d e E s t e r, s u a n ã o a d a p t a ç ã o a o a m b i e n t e
da fazenda. Para demonstrar o desajuste da refinada Ester ao meio rude
em que habita, o autor utiliza as metonímias do piano e das roupas.
Este é um procedimento freqüente em Jorge Amado. “[...] um objeto
várias vezes mencionado indica uma característica do ser a que se
refere. [...]”. (BELLINE, 2008, p. 30). Ester tinha medo da fazenda e de
tudo o que fazia parte deste mundo estranho para ela, pensava nas rãs
devoradas pelas cobras, o que compõe a metáfora para a sua submissão
ao marido, até mesmo durante o ato sexual. Sua vontade só prevalece
q u a n d o t r a i o m a r i d o , p o r a m o r, c o m o j o v e m a d v o g a d o Vi r g í l i o . E l a
adoece e morre de febre, meses depois Horário descobre a traição e
m a n d a m a t a r Vi r g í l i o . “ [ . . . ] O c o n f l i t o d e E s t e r, e n t r e o ó d i o a o m a r i d o
g r o s s e i r o e a p a i x ã o p o r Vi r g í l i o , r e s o l v e - s e a p e n a s n o p l a n o d o s o n h o e
da morte. [...]”. (BELLINE, 2008, p. 30)
Gabriela, cravo e canela: crônica de uma cidade do interior
(1958) se passa em Ilhéus, em 1925. Narra a história de amor entre o
árabe Nacib e a sertaneja Gabriela. Além dos costumes, o livro descreve
alterações profundas na vida social e política da Bahia, com a ascensão
do exportador carioca Mundinho Falcão e o declínio de Ramiro Bastos e
outros coronéis da região. É Gabriela quem representa as
transformações desta sociedade, a renovação cultural, política e
econômica. A história começa com um rico fazendeiro assassinando sua
33

esposa e o amante para lavar com sangue sua honra, e termina um ano
depois com um fato inédito na cidade: a condenação do assassino por
seu crime. O livro mostra ainda as transformações da condição feminina
em suas várias etapas. A personagem Malvina, da mesma classe social
d e E s t e r ( Te r r a s d o s e m - f i m ) , n ã o s e s u b m e t e a o c a s a m e n t o , c o m o
desejava sua família, transgredindo os códigos patriarcais da época.
Malvina decide a própria vida, fugindo para São Paulo resolve o
conflito entre as regras impostas socialmente e sua ânsia de liberdade.
A personagem central da trama, a mulata Gabriela, é uma
pobre retirante da seca nordestina, que também deseja a liberdade para
decidir seu próprio destino. Gabriela, como a maior parte das mulatas
representadas na literatura, é bonita, limpa, trabalhadora, alegre,
e s p o n t â n e a , g o s t a d e c a n t a r e d a n ç a r, e é a e x c e l e n t e c o z i n h e i r a d e
N a c i b , d o n o d o B a r Ve s ú v i o . B o n i t a e s e n s u a l a c a b a c o n q u i s t a n d o o
patrão e outros homens da cidade, que lhe oferecem dinheiro e luxos,
mas Gabriela não aceita as propostas porque estava satisfeita com a
vida que tinha. Apesar de estar feliz com as coisas que possuía,
Gabriela não gostava de usar sapatos, pois apertavam os seus pés. “A
metonímia dos sapatos indica a ânsia de liberdade e o desapego do
status que Nacib tenta impor-lhe, casando-se com ela. [...]” (BELLINE,
2008, p. 31). Gabriela gostava de dormir com os homens sem receber
nada em troca, simplesmente pelo prazer sexual. Ela não se adapta ao
casamento, pois continua com os mesmos hábitos que tinha antes,
contrariando a sociedade de Ilhéus. Ao descobrir a traição, Nacib dá
uma surra na esposa e anula o casamento, realizado com papéis falsos,
pois Gabriela não tinha nenhum documento. Ela se sente culpada por ter
casado com Nacib e não por ter traído o esposo.

Ao recriminar-se não por ter traído o marido, mas por ter se casado, Gabriela reitera
os valores positivos do sentimento acima de qualquer tipo de interesse material –
uma constante na obra de Jorge Amado que se confirma no final da narrativa, na
união feliz com Nacib, de quem volta a ser cozinheira e amante. (BELLINE, 2008,
p. 31-32)
34

Belline (2008, p. 32) afirma que, “Essa impossibilidade de ser


feliz no casamento formal é a chave de Dona Flor e seus dois maridos.
[ . . . ] ” . C o n t r a r i a n d o a v o n t a d e d a m ã e , F l o r, p r o f e s s o r a d e c u l i n á r i a
b a i a n a , c a s a - s e c o m o m a l a n d r o Va d i n h o . O c a s a m e n t o d u r a s e t e a n o s ,
a p e s a r d o s p r o b l e m a s c a u s a d o s p e l a v i d a d e s r e g r a d a d e Va d i n h o , a
u n i ã o t e v e v á r i o s m o m e n t o s f e l i z e s . D e p o i s d a m o r t e d e Va d i n h o , q u e
o c o r r e e m p l e n o c a r n a v a l , F l o r c a s a - s e c o m o d r. Te o d o r o , q u e é o
e x t r e m o o p o s t o d e Va d i n h o . E n t e d i a d a c o m a r o t i n a d o s e u c a s a m e n t o
c o m o s e g u n d o m a r i d o , F l o r s o n h a c o m Va d i n h o , a t é q u e e l e l h e
a p a r e c e , q u e r e n d o v o l t a r a v i v e r c o m e l a c o m o m a r i d o e m u l h e r. A
princípio ela fica em conflito, mas ela não resiste por muito tempo e
a c a b a f i c a n d o c o m o s d o i s m a r i d o s : d e d i a , o D r. Te o d o r o ; e à n o i t e ,
Va d i n h o o m a r i d o q u e s ó e l a v ê , e q u e a c o m p l e t a . O t r i â n g u l o a m o r o s o
resolve-se no plano do fantástico:

[...] Realismo mágico ou fantástico é um processo intertextual em que se narram


fatos que escapam às leis naturais, desprezando a lógica, eliminando a linha
divisória entre vivos e mortos, como em A morte e a morte de Quincas Berro
Dágua, Dona Flor e seus dois maridos, Tereza Batista cansada e guerra e O sumiço
da santa. [...] (BELLINE, 2008, p. 33)

Apesar do tom de comédia presente em Dona Flor e seus dois


maridos, alguns críticos interpretam a obra como uma representação do
hibridismo e da miscigenação presentes na formação cultural brasileira.
Dona Flor representaria a síntese de dois brasis: um Brasil
c a r n a v a l i z a d o , r e p r e s e n t a d o p o r Va d i n h o ; e o u t r o o f i c i a l e c i v i l i z a d o ,
r e p r e s e n t a d o p o r D r. Te o d o r o . “ [ . . . ] A s s i m , p a r a J o r g e A m a d o , n ã o h á
necessidade de escolher entre opostos, fica-se com os dois:
ambiguidade e hibridismo são valores. [ ...] ” (BELLINE, 2008, p. 33)
E m Ti e t a d o a g re s t e ( 1 9 7 7 ) , a p r o t a g o n i s t a A n t o n i e t a é e x p u l s a
de sua cidade natal aos dezesseis anos. Sua irmã Perpétua denuncia ao
p a i a s a v e n t u r a s s e x u a i s d e Ti e t a n a s d u n a s d e M a n g u e S e c o . D e p o i s d e
u m a s u r r a d e c a j a d o , Ti e t a é c o l o c a d a p a r a f o r a d e c a s a p e l o p a i . A
liberdade sexual de jovem escandaliza a família e a cidade de Santana
35

do Agreste, assim ela transgride as normas locais e acaba sendo


e x p u l s a . P a r a s o b r e v i v e r Ti e t a s e p r o s t i t u i a t é c h e g a r a S ã o P a u l o , o n d e
se torna uma cafetina de sucesso. Sua família não sabe de seu
paradeiro, e apesar de ter sido expulsa ela ajuda financeiramente o pai
e a i r m ã . D e p o i s d e 2 6 a n o s , Ti e t a v o l t a r i c a e p o d e r o s a à p e q u e n a
c i d a d e d e S a n t a n a d o A g r e s t e . O r e t o r n o d e Ti e t a c a u s a u m g r a n d e
a l v o r o ç o n a c i d a d e z i n h a . Ti e t a v o l t a a p o v o a r a s f a n t a s i a s d o s h o m e n s e
vive uma relação incestuosa com seu sobrinho, o seminarista Ricardo.
C o m a a j u d a d e Ti e t a , a l u z g e r a d a p e l a h i d r e l é t r i c a c h e g a a S a n t a n a d o
Agreste, o que leva uma indústria altamente poluidora a querer se
i n s t a l a r n o l o c a l . P a r a d e f e n d e r a n a t u r e z a , Ti e t a e n v o l v e - s e n a l u t a
pela preservação do local, passa a ser heroína ao participar de uma
arriscada operação.
A trama desenvolve-se no tempo presente e no tempo passado.
N o p r e s e n t e , Ti e t a é c o n s i d e r a d a s a n t a p e l a s o c i e d a d e h i p ó c r i t a d e
S a n t a n a d o A g r e s t e ; e n o p a s s a d o , s e r e c o r d a s u a t r a j e t ó r i a . Ti e t a n ã o s e
adapta à comunidade local, nem quando jovem, nem mais velha: antes,
seu comportamento livre escandalizou a população; 26 anos depois, ela
se desilude com a hipocrisia da sociedade local.

A oposição entre aparência e realidade, em que as coisas não são o que aparentam
ser, freqüente no autor, retrata o bordel, espaço degradado, como mais honesto que a
cidadezinha, exteriormente decente. [...] (BELLINE, 2008, p. 35)

A c o m u n i d a d e d e S a n t a n a d o A g r e s t e s ó a c e i t a Ti e t a e n q u a n t o
ela finge que não é prostituta, finge ser algo que realmente não é.
Quando descobrem a verdade, o povo da cidade a rejeita, e ela volta
para São Paulo, levando Imaculada, uma jovem que lhe faz lembrar dela
p r ó p r i a . Ti e t a f e z e s s a v i a g e m a S a n t a n a d o A g r e s t e e m b u s c a d e s u a
identidade. “[...] no final, na iniciação de Imaculada, verifica-se um
retorno consciente à vida de prostituta. [...]” (BELLINE, 2008, p. 35)
P o r s u a i m p e t u o s i d a d e , p o r s e u e s p í r i t o q u e s t i o n a d o r, p o r s e r
uma mulher que transgrediu e superou os códigos injustos da sociedade
machista, e por ter passado de objeto para sujeito de seu próprio
36

d e s t i n o , Ti e t a e n t r o u p a r a a g a l e r i a d a s g r a n d e s p e r s o n a g e n s f e m i n i n a s
d e J o r g e A m a d o , a o l a d o d e L í v i a , G a b r i e l a , D o n a F l o r e Te r e z a B a t i s t a .

8 A T R A D I Ç Ã O D O B I L D U N G S R O M A N N A L I T E R AT U R A

Embora não tenha sido o primeiro a utilizar o termo, a tradição


d o B i l d u n g s ro m a n c o m e ç a c o m o e s c r i t o r a l e m ã o J o h a n n Wo l f g a n g v o n
G o e t h e e s e u Wi l h e l m M e i s t e r s L e h r j a h re ( O s A n o s d e A p re n d i z a d o d e
Wi l h e l m M e i s t e r ) . S u r g i u e n t r e 1 7 7 7 e 1 7 8 6 , m a s s ó f o i p u b l i c a d o c o m o
r o m a n c e v i n t e a n o s d e p o i s , e n t r e 1 7 9 4 e 1 7 9 6 . O B i l d u n g s ro m a n é u m
tipo de romance onde a personagem principal, geralmente homem, passa
por um processo de desenvolvimento em todos os aspectos, em que
a p r e n d e a s e r “ h o m e m ” . B i l d u n g s ro m a n s e r i a t r a d u z i d o p a r a o p o r t u g u ê s
c o m o ro m a n c e d e a p re n d i z a g e m , ro m a n c e d e f o r m a ç ã o , o u ro m a n c e d e
desenvolvimento.

[...] O “Bildungsroman” é caracterizado como tal a partir, não da sua estrutura


formal, mas sim dos elementos temáticos da obra. [...]. Assim, o “Bildungsroman”
apresenta as conseqüências dos eventos externos sobre o herói, registrando as
transformações emocionais, psicológicas e de caráter que ele sofre. Há uma ênfase,
portanto, no desenvolvimento interior do protagonista como resultado de sua
interação com o mundo exterior: [...] (PINTO, 1990, p. 10)

O B i l d u n g s ro m a n t e m a i n d a c o m o c a r a c t e r í s t i c a a f u n ç ã o d e
contribuir para a formação do indivíduo que o lê, fazendo com que a
história da personagem possa ser uma espécie de espelho onde a pessoa
p o s s a r e f l e t i r, a p r e n d e n d o c o m o s e r r o s c o m e t i d o s p e l o p r o t a g o n i s t a d a
narrativa. Através do processo de conscientização da personagem
principal, o leitor ou leitora acabaria também sendo conscientizado.
O u t r a c a r a c t e r í s t i c a d o B i l d u n g s ro m a n é q u e n o r m a l m e n t e o r o m a n c e
trata de uma personagem masculina e não de uma personagem feminina,
o que já foi muito criticado pelo movimento feminista. A situação da
mulher na sociedade impossibilitava sua representação como um
37

indivíduo desenvolvido ou adulto, capaz de decidir por si próprio. Mas


muitos escritores e escritoras vêm quebrando este paradigma, e já
p o d e m o s f a l a r e m B i l d u n g s ro m a n d e t r a d i ç ã o f e m i n i n a , e m q u e s e
privilegia o feminino que sempre foi subjugado ou silenciado pela
sociedade machista. Embora utilizando um gênero tradicionalmente
masculino, onde o herói se integra à sociedade, no ro m a n c e de
a p re n d i z a g e m f e m i n i n o t e m o s o f r a c a s s o d a p r o t a g o n i s t a o u a n ã o
integração à sociedade a qual pertence, pois a integração pessoal só é
possível assim. Estar dentro da sociedade significava para a mulher
abandonar suas vontades e passar a agir de acordo com as normas e
p a d r õ e s v i g e n t e s , o u s e j a , c o l o c a r - s e s e m p r e e m s e g u n d o l u g a r, e m
posição subalterna diante dos homens. É claro que há algumas
diferenças do B i l d u n g s ro m a n masculino para o feminino,
principalmente devido à diversidade de gênero e suas especificidades.
Enquanto o filho entra em conflito com o pai, a filha se opõe a mãe; a
personagem feminina está em busca de uma identidade, e o protagonista
masculino procurando uma filosofia de vida, uma vocação.

8 . 1 O B i l d u n g s r o m a n f e m i n i n o d e Te r e z a B a t i s t a C a n s a d a d e G u e r r a

E m Te re z a B a t i s t a c a n s a d a d e g u e r r a ( 1 9 7 2 ) , t e m o s u m a o b r a
r e p r e s e n t a t i v a d o B i l d u n g s ro m a n f e m i n i n o . A p e s a r d e t e r s i d o e s c r i t o
p o r u m h o m e m , o a u t o r b a i a n o J o rg e A m a d o , o r o m a n c e a p r e s e n t a
características encontradas também no ro m a n c e de a p re n d i z a g e m
masculino, como:

[...] o choque entre personagem e meio de origem (limitado e provinciano);


isolamento da personagem; conflitos com os pais; apresentação ou menção do
período de educação formal; viagem para a cidade grande ou para um meio ambiente
onde a personagem entra em contato com uma realidade mais ampla que,
freqüentemente, vai lhe trazer desilusões; problemas amorosos; processo de auto-
educação; final indeterminado. [...] (PINTO, 1990, p. 147)
38

Muitos temas importantes para as mulheres são discutidos em


Te re z a , c o m o p o r e x e m p l o : o a b u s o s e x u a l i n f a n t i l , o e s t u p r o , a
escravidão sexual, a sexualidade feminina, a educação feminina, o
direito da mulher a ter um trabalho, o casamento, as relações homem-
mulher e adulto-criança, a prostituição, o aborto, a marginalização da
mulher pela sociedade etc. A história se passa nas margens do Rio Real,
entre a Bahia e Sergipe, e também em Salvador e outras cidades do
nordeste brasileiro. A protagonista d e Te re z a Batista cansada de
g u e r r a , Te r e z a B a t i s t a d a A n u n c i a ç ã o , p e r d e o s p a i s n u m a c i d e n t e d e
marineti, ficando órfã. Passa a morar com a irmã da mãe, sua tia Felipa
e o marido dela, o alcoólatra Rosalvo, no Sertão de Sergipe, próximo a
Bahia. Um pouco antes de completar treze anos e até mesmo antes de
m e n s t r u a r, é v e n d i d a p e l a t i a a o c a p i t ã o J u s t i n i a n o D u a r t e d a R o s a , o
capitão Justo, conhecido em toda a região por suas práticas nefastas.
Ti n h a e m t o r n o d e q u a r e n t a a n o s , e r a g o r d o e n ã o t i n h a h á b i t o s
higiênicos, além disso, não era capitão de verdade, utilizava essa
patente porque era rico, dono de terras, de bois e do maior armazém da
cidade. O capitão Justo tinha por hábito colecionar meninas bem jovens
e virgens, para cada virgem estuprada uma argola de ouro era colocada
num colar que ele carregava no pescoço. Agia sempre de maneira brutal,
levava as meninas à força, e num quartinho no quintal de sua casa
estuprava-as, quanto mais às meninas reagiam, mas ele se excitava:

[...] Certa vez uma delas se mijou de medo quando ele a alcançou e sujeitou; se
mijou toda, molhando as pernas e o colchão, coisa mais doida, Justiniano ainda se
arrepia de prazer ao lembrar-se. [...]. Sendo um esportista, o capitão preferia
naturalmente aquelas que ofereciam certa resistência inicial. [...] (AMADO, 1972, p.
66)

E a s s i m f o i c o m Te r e z a : o c a p i t ã o J u s t o , d e p o i s d e c a ç á - l a p o r
quase uma hora no quintal da casa da tia, jogou-a no caminhão, onde se
l i a n o e s t r i b o : d e g r a u d o d e s t i n o . A o c h e g a r à c a s a d o c a p i t ã o , Te r e z a é
trancada num quarto com um colchão de casal, um urinol, um retrato da
A n u n c i a ç ã o d a Vi rg e m e a t a c a d e c o u r o c r u , u t i l i z a d a p a r a b a t e r n a s
39

meninas que resistiam às más intenções do capitão. Durante mais ou


m e n o s d o i s m e s e s , o c a p i t ã o e s t u p r a Te r e z a d e p o i s q u e e l a d e s m a i a d e
t a n t o a p a n h a r. A p ó s s u a s e g u n d a t e n t a t i v a d e f u g a , o c a p i t ã o J u s t o
q u e i m a - l h e o s p é s c o m f e r r o d e e n g o m a r, f a z e n d o c o m q u e e l a c e d a
f i n a l m e n t e a o s c a p r i c h o s d e l e . Te r e z a B a t i s t a f i c o u c o m o c a p i t ã o J u s t o
por dois anos e três meses, trabalhando para ele na casa e no armazém,
onde fazia contas e anotações. Ela havia frequentado a escola, sabia
fazer contas e tinha uma letra bonita, sempre elogiada pela professora
d a e s c o l a M e r c e d e s L i m a . O u s e j a , Te r e z a t e v e u m a e d u c a ç ã o f o r m a l ,
mesmo que por pouco tempo. Apesar de continuar com suas práticas
h o r r e n d a s c o m o u t r a s m e n i n a s , o c a p i t ã o n ã o s e c a n s a v a d e Te r e z a , q u e
nunca sentiu prazer nenhum nas relações sexuais que mantinha com o
capitão Justo. “[...] Nesse período de sua vida, os assuntos de cama e
s e x o s i g n i f i c a r a m p a r a Te r e z a a p e n a s d o r, s a n g u e , s u j e i r a , a m a r g u r a ,
servidão.” (AMADO, 1972, p. 105). Pensava que sexo fosse somente
isso, não entendia porque sua tia Felipa ficava com os homens por
v o n t a d e p r ó p r i a . A q u i Te r e z a s e o p õ e à t i a , p o i s c o m o p e r d e u a m ã e
muito cedo, o mais próximo que tem de uma figura materna é
representado pela tia. “[...] O caráter da mãe e do pai e o
relacionamento de cada um com a filha são elementos determinantes no
processo de “Bildung” da personagem [...]”. (PINTO, 1990, p. 46).
P e r c e b e m o s t a m b é m q u e Te r e z a n ã o s e a d a p t a a o m e i o e m q u e v i v e , p o i s
é profundamente infeliz. O autor faz com que os leitores reflitam sobre
o abuso sexual infantil, denunciado o agressor e a própria sociedade
que fecha os olhos para esta situação injusta.
A chegada de Daniel, filho do juiz de Cajazeiras do Norte,
estudante de direito, um rapaz bonito, jovem e muito experiente com
mulheres será um elemento determinante no Bildung da protagonista.
A s s i m q u e c o n h e c e u Te r e z a , D a n i e l f i c o u l o u c o d e p a i x ã o e d e c i d i u
conquistá-la. Apesar de temer a ira do capitão Justo, Daniel passou a
freqüentar o armazém fingindo-se amigo d e l e . Te r e z a e seu Dan
aproveitam uma saída do capitão para se encontrarem. O encontro dos
dois acontece em baixo da chuva, a água representa a possibilidade de
m u d a n ç a , d e r e n o v a ç ã o d a p r o t a g o n i s t a . N e s t e m o m e n t o , Te r e z a p e n s a
40

na sua infância tão recente e rompida de maneira brutal, lembrando que


só foi tão feliz ao pegar uma boneca. Daniel consegue atravessar a
b a r r e i r a e n t r e o m e d o e o ó d i o e Te r e z a s e e n t r e g a a e l e . A o s q u i n z e
a n o s , Te r e z a t e m u m a i n i c i a ç ã o s e x u a l e m q u e e l a s e n t e p r a z e r, n o
mesmo colchão onde foi estuprada pelo capitão. Esta noite marca uma
n o v a e t a p a : “ Te r e z a c o m e ç o u s e n d o u m a , t e r m i n o u s e n d o o u t r a n a q u e l a
rápida noite de minutos corridos em ânsia e desmaio, noite longa de
cem anos de revelações e alvíssaras. [...]” (AMADO, 1972, p. 144). Ao
t e r s u a s e x u a l i d a d e d e s p e r t a d a p o r D a n , Te r e z a e n c o n t r a u m n o v o
modelo de comportamento masculino que a faz rejeitar ainda mais o
c a p i t ã o e o a m b i e n t e e m q u e v i v e . A t r a n s f o r m a ç ã o d e Te r e z a é t ã o
profunda que se reflete no corpo, tornando-a virgem novamente, tudo se
torna novidade. A descoberta da sensualidade e do corpo faz parte do
p r o c e s s o d e c o n s t r u ç ã o d o E U d a p r o t a g o n i s t a . D e p o i s d a n o i t e d e a m o r,
D a n i e l a d o r m e c e e Te r e z a r e l e m b r a s u a v i d a a t é a q u e l e m o m e n t o e
decide se matar enforcada, pois não suportaria voltar a ter relações
sexuais com o capitão:

[...] Pensou em muitas coisas enquanto ele dormia. Recordou o vira-lata, Ceição,
Jacira, os moleques, os brinquedos de cangaço e guerra, a tia com desconhecidos na
cama, tio Rosalvo com os olhos de bêbado, a perseguição no terreiro, o tio a entregá-
la, tia Felipa de anel no dedo, a viagem no caminhão, o cubículo na casa da roça, as
fugas, a palmatória, a taca, o cinto, o ferro de engomar. [...]. Melhor morrer do que
retornar ao leito do capitão, à gosma do capitão. [...] (AMADO, 1972, p. 146)

D a n i e l , c o m s u a l á b i a , c o n s e g u e c o n v e n c e r Te r e z a d e q u e a
morte não é a melhor opção e que eles poderão continuar a se encontrar
quando o capitão viajar novamente. Só depois da noite que passou com
D a n i e l , Te r e z a c o n s e g u e e n t e n d e r o s m o t i v o s p e l o s q u a i s , e n q u a n t o o
tio Rosalvo bebia cachaça na vendinha, sua tia Felipa dormia com
o u t r o s h o m e n s d e s c o n h e c i d o s s e m s e r o b r i g a d a , s e m p r e c i s a r a p a n h a r,
por vontade própria. Aproveitando-se de uma viagem do capitão Justo a
B a h i a p a r a a f e s t a d e D o i s d e J u l h o , D a n i e l e Te r e z a p a s s a m o i t o n o i t e s
juntos na casa do capitão. Durante estes dias, a mudança iniciada na
p r i m e i r a n o i t e d e a m o r s e c o m p l e t a , Te r e z a j á n ã o é m a i s a m e s m a
41

menina amedrontada, agora ela deseja a realização pessoal e sexual,


mas para isso precisará se arriscar fugindo do capitão e se aventurando
no desconhecido, na cidade grande com seu anjo Dan. Ela quer fugir de
uma vida sem perspectiva para um outro ambiente, onde possa ser
t r a t a d a c o m o u m s e r h u m a n o , o n d e p o s s a s e d e s e n v o l v e r.

[...] Violada há cerca de dois anos e meio, possuída pelo capitão quase todos os dias,
fechada no medo, conservara-se inocente, pura e crédula. De repente despertada
mulher, nessas rápidas noites de veloz transcurso abriu-se em poço de infinito
prazer, floresceu em beleza. Antes era formosa menina, graça adolescente e simples,
agora o óleo do prazer banhara-lhe o rosto e corpo, o gosto e a alegria do amor
acenderam-lhe nos olhos aquele fogo do qual o doutor Emiliano Guedes percebera o
fulgor meses atrás. [...]. Assim renasceu quem morrera na palmatória, no cinturão,
na taca, no ferro de engomar. O gosto do fel e as marcas de dor e de medo foram se
apagando todas elas, uma a uma; tendo recuperado cada partícula de seu ser, na hora
necessária, sem sombra de medo, se ergueu inteira aquela falada Tereza Batista,
formosa, de mel e valentia. (AMADO, 1972, p. 155-156)

A p e s a r d e t e r p r o m e t i d o l e v a r Te r e z a p a r a a c a p i t a l , D a n i e l
n ã o p r e t e n d e d e s a f i a r J u s t i n i a n o , n u n c a p e n s o u e m s a l v a r Te r e z a d a s
garras de seu algoz, queria apenas se divertir por algumas noites. Mas o
c a p i t ã o a c a b a s e n d o a v i s a d o p o r u m b i l h e t e a n ô n i m o , e p e g a Te r e z a e
D a n i e l n o f l a g r a . E n q u a n t o e l e b a t e e m D a n i e l , Te r e z a p e g a u m a f a c a e
e s f a q u e i a o c a p i t ã o J u s t o . A t r a n s f o r m a ç ã o e f e t i v a d a e m Te r e z a , n e s t e s
p o u c o s d i a s d e d i c a d o s a o p r a z e r e a o a m o r, f a z c o m q u e o c a p i t ã o n ã o a
r e c o n h e ç a m a i s , m e s m o s a b e n d o q u e s e t r a t a d e Te r e z a . “ [ . . . ] D e i x o u - a
a m e n i n a e a e n c o n t r o u m u l h e r, d e i x o u - a e s c r a v a n o m e d o e o m e d o
acabou. [...]” (AMADO, 1972, p. 159).
A primeira relação sexual de Te r e z a com o capitão é
repressora, sua iniciação sexual com Daniel é libertadora. Daniel não
c h e g a a s e r u m m e n t o r p a r a Te r e z a , m a s é m u i t o i m p o r t a n t e p a r a s u a
aprendizagem porque desperta nela o desejo de encontrar a felicidade,
de ter uma vida diferente e livre. “[...] O conflito gerado pela
necessidade de escolher entre um destino conformado e uma vida
i n d e p e n d e n t e c a r a c t e r i z a e m g e r a l o B i l d u n g s ro m a n f e m i n i n o . [ . . . ] ” .
42

( P I N T O , 1 9 9 0 , p . 5 3 ) . O m e d o q u e Te r e z a s e n t i a d o c a p i t ã o J u s t o
acabou alienando-a, coisificando-a. Ao se r e e n c o n t r a r, através da
descoberta sexual e amorosa que teve com Daniel, percebe que não será
mais possível permanecer com o capitão, preferindo até mesmo a morte.
Com a morte do capitão Justiniano Duarte da Rosa, Daniel foge e
Te r e z a é p r e s a c o m o a s s a s s i n a d e s e u a l g o z . D a n , q u e l h e p r o m e t i a a
l i b e r d a d e , n o f i n a l a c u s a Te r e z a e m s e u d e p o i m e n t o p o r t u d o o q u e
a c o n t e c e u . N a c a d e i a , Te r e z a p a s s a p o r m o m e n t o s m u i t o r u i n s , m a s a
decepção que teve com Dan foi tão grande que chegou a pensar que ele
talvez fosse pior que o capitão Justo, pois todo o tempo que permaneceu
com ela agiu de maneira hipócrita. Até este momento de sua jovem
v i d a , a s p e s s o a s q u e p a s s a r a m p e l a v i d a d e Te r e z a , p r i n c i p a l m e n t e o s
h o m e n s , s ó a f i z e r a m s o f r e r, s e u B i l d u n g t e m s i d o u m a c o n t í n u a
frustração de todos os seus sonhos.
Te r e z a B a t i s t a s e r á l i b e r t a d a g r a ç a s à i n t e r v e n ç ã o d o d o u t o r
Emiliano Guedes, um usineiro rico, banqueiro e doutor formado, que se
encantou por ela desde que a viu na casa do capitão. Era bonito, magro,
alto, olhos claros, com cabelos e bigode grisalhos. Ele envia, sem que
Te r e z a s a i b a , o e x c e l e n t e a d v o g a d o L u l u S a n t o s p a r a a j u d a r n a s u a
liberação, já que por ser menor de idade sua prisão era ilegal. Lulu
S a n t o s t i r a Te r e z a d a c a d e i a e i n t e r n a - a n u m c o n v e n t o , m a s e l a f o g e e
vai se prostituir na pensão de Gabi. Por tudo o que ocorreu em sua vida,
Te r e z a n ã o c o n s e g u e m a i s c o n f i a r e m n i n g u é m , m a s q u a n d o E m i l i a n o
vai buscá-la no prostíbulo, ela aceita partir com ele. O doutor lhe
o f e r e c e u m a n o v a v i d a e a p e s a r d a s d e s c o n f i a n ç a s i n i c i a i s , Te r e z a s e r á
m u i t o f e l i z c o m e l e , v o l t a n d o a t é a c o n f i a r n a s p e s s o a s . Te r á c o m e l e
uma relação de amor verdadeiro, a primeira em sua vida. É muito
c o m u m n o B i l d u n g s ro m a n f e m i n i n o q u e o m e n t o r s e j a u m h o m e m . O
doutor Emiliano será um mentor no processo de formação intelectual da
protagonista, ensina-lhe muitas coisas, inclusive a julgar sem
preconceitos.

Havia em Estância um sobradão colonial, maltratado pelo tempo e pelo descaso,


todo pintado de azul, e o doutor, na calma da tarde, chamava a atenção de Tereza
43

para aquela maravilha de arquitetura, apontando detalhes da construção, ensinando


sem parecer fazê-lo, levando-a a enxergar o que sozinha não saberia reconhecer e
estimar. [...] (AMADO, 1972, p. 170)

Te r e z a é a m á s i a d e E m i l i a n o , a r e l a ç ã o d e l e s é i l e g í t i m a , p o r
isso a protagonista fica numa posição marginal perante a sociedade. É
uma relação que se dá dentro dos padrões patriarcais, onde a mulher é
o p r i m i d a p e l o h o m e m . Ta n t o é a s s i m q u e q u a n d o Te r e z a e n g r a v i d a d o
d o u t o r, e l e p e d e q u e e l a f a ç a u m a b o r t o . M e s m o d e s e j a n d o m u i t o t e r u m
f i l h o , e l a a c a b a f a z e n d o a v o n t a d e d o d o u t o r.

[...] Decida, Tereza, entre mim e o menino. Nada lhe faltará, garanto, só não terá a
mim. Tereza não vacilou. Pondo os braços em torno do pescoço do doutor deu-lhe os
lábios a beijar: a ele devia mais do que a vida, devia o gosto de viver. – Para mim o
senhor passa antes de tudo. (AMADO, 1972, p. 233).

A maternidade representaria também a entrada da protagonista


no mundo “adulto”, ela não seria mais uma menina, se tornaria uma
m u l h e r. D e p o i s d e s e i s a n o s d e u n i ã o i l í c i t a c o m Te r e z a , a o s s e s s e n t a e
quatro anos, o doutor Emiliano Guedes morre durante o ato sexual,
d e i x a n d o Te r e z a n o v a m e n t e e n t r e g u e à p r ó p r i a s o r t e . P a r a s o b r e v i v e r,
ela tenta manter-se como dançarina nos cabarés de Aracaju, mas o
d i n h e i r o q u e g a n h a n ã o d á p a r a n a d a e e l a é o b r i g a d a a s e p r o s t i t u i r.
“[...] tolice querer viver do trabalho de artista, valendo tão somente o
título e as palmas para cobrar mais caro o michê. [...]” (AMADO, 1972,
p . 1 7 2 ) . D u r a n t e o t e m p o e m q u e v i v e u a o l a d o d o d o u t o r, Te r e z a
Batista morava em uma casa grande, tinha empregados e ganhava vários
presentes caros. Com a morte dele, a protagonista passa a viver na
região de meretrício, sua vida agora se opõe à antiga, vivida na
companhia do coronel Emiliano Guedes em uma casa muito confortável.
M a s p a r a Te r e z a a p r o s t i t u i ç ã o e r a a p e n a s u m m e i o d e s o b r e v i v e r, e l a s ó
se entregava completamente durante o ato sexual quando esta relação
e n v o l v i a a m o r.
44

Sendo incapaz de luxúria pura e simples, para entregar-se com ânsia, para abrir-se
em gozo, necessitava de afeto profundo, de amor, só assim, nela se acende o desejo
em labaredas e em febre, não havendo então mulher como Tereza. (AMADO, 1972,
p. 171)

E m s u a e s t r é i a n o c a b a r é P a r i s A l e g r e , e m A r a c a j u , Te r e z a
conhece Januário Gereba no meio de uma briga. Ela defendia uma
mulher que apanhava de um homem, ele a salva da ir presa pela polícia.
Janu é mestre de saveiro na Bahia, um homem forte, negro, grande e
q u e l h e d á u m a s e n s a ç ã o d e s e g u r a n ç a e d e d e f i n i t i v a s c e r t e z a s . Te r e z a
n ã o c o n h e c i a o m a r e J a n u á r i o e r a u m h o m e m d o m a r, q u e i m a d o p e l o s o l
e p e l o v e n t o d o m a r, c o m c h e i r o e g o s t o d e m a r e s i a . E l e f a l a v a p a r a
Te r e z a s o b r e a B a h i a , a c i d a d e n a s c i d a n o m a r, o c a i s d o p o r t o e t c .
Apesar de todas as diferenças, Janu lembrava o doutor Emiliano Guedes
e m s u a i n t e i r e z a d e h o m e m . O s a v e i r i s t a e Te r e z a s e a p a i x o n a m à
primeira vista, mas Januário é casado e não pode se separar da mulher
porque ela está doente. Mas eles não resistem à paixão que sentem um
pelo outro e acabam fazendo amor na praia, numa cena marcada de
lirismo romântico, em que a protagonista renasce nas ondas do mar:

Era o mar infinito, ora verde, ora azul, verdeazul, ora claro, ora escuro, claroescuro,
de anil e celeste, de óleo e de orvalho e, como se não bastasse com o mar, Januário
Gereba encomendara lua de ouro e prata, lanterna fincada no alto dos céus sobre os
corpos embolados na ânsia do amor; eram dois ao chegar, são um só, nas areias da
praia encobertos por uma onda mais alta. [...] Tua boca de sal, teu peito de quilha,
em teu mastro vela enfunada, na coberta das ondas nasci outra vez, virgem marinha,
noiva e viúva de saveirista, grinalda e espumas, véu de saudade, ai, meu amor
marinheiro. (AMADO, 1972, p. 38-39)

J a n u t a m b é m s e r á u m a e s p é c i e d e m e n t o r p a r a Te r e z a , p o i s
ensiná-lhe a capoeira, o samba, as danças de carnaval e a gafieira.
J a n u á r i o s e r á o g r a n d e a m o r d a v i d a d e Te r e z a B a t i s t a , e m s u a
despedida nas areias da praia: “[...] ela se acolhe ao peito do homem
para quem nasceu e tarde encontrou [...]” (AMADO, 1972, p. 52).
J a n u á r i o p a r t e p a r a a B a h i a , p r o m e t e n d o a Te r e z a r e t o r n a r p a r a e l a
assim que possível. Para fugir de propostas indesejadas de homens
45

r i c o s , d e a m e a ç a s e p e r s e g u i ç õ e s , Te r e z a v a i p a r a u m a p e q u e n a c i d a d e
do interior chamada Buquim, com o médico Oto Espinheira. Logo se
arrepende de ter acompanhado o médico, pensa que seria melhor ser
mulher-dama que suportar o doutorzinho, além disso, seu coração só
batia mesmo por Janu. Um surto de bexiga assola a cidade, com a fuga
d a e n f e r m e i r a e d o m é d i c o O t o E s p i n h e i r a , Te r e z a e a s p r o s t i t u t a s d e
Muricapeba vacinam o povo e ajudam os doentes, acabando com a
epidemia da bexiga. Este capítulo é narrado à maneira de um romance
d e c o r d e l , n o c a p í t u l o “ A B C d a p e l e j a e n t r e Te r e z a B a t i s t a e a b e x i g a
n e g r a ” . D e p o i s d i s s o , Te r e z a t r a b a l h a c o m o p r o s t i t u t a p e l o s e r t ã o a t é
c h e g a r a S a l v a d o r, e m b u s c a d e s e u g r a n d e a m o r. Vi v e d a p r o s t i t u i ç ã o ,
porque não quer ser mantida por homens ricos, para ela era melhor ser
prostituta que amásia, embora não sentisse prazer com os clientes. Já
e m S a l v a d o r, n o b o r d e l F l o r d e L o t u s , c o n h e c e o v i ú v o A l m é r i o d a s
Neves, dono de uma padaria em Brotas, com um filho de dois anos e
meio, que lhe propõe casamento. Na esperança do retorno do marinheiro
J a n u á r i o , Te r e z a r e c u s a o p e d i d o . F i c a s a b e n d o d a m o r t e d a m u l h e r d e
Janu e que ele partira para Aracaju para encontrá-la. Mas como lhe
informaram que ela havia morrido na epidemia da bexiga, ele partiu
n o v a m e n t e n u m c a rg u e i r o g r a n d e e d e s d e e n t ã o n i n g u é m t i n h a m n o t í c i a s
d e l e . E n q u a n t o e s p e r a a v o l t a d e s e u a m a d o , Te r e z a f i c a s a b e n d o p e l a s
prostitutas que a polícia quer mudar todos os prostíbulos da cidade para
a Ladeira do Bacalhau, na Cidade Baixa. No capítulo “A festa do
c a s a m e n t o d e Te r e z a B a t i s t a o u A g r e v e d o b a l a i o f e c h a d o n a B a h i a o u
Te r e z a B a t i s t a d e s c a r r e g a a m o r t e n o m a r ” , o a u t o r r e s s u s c i t a o p o e t a
baiano Castro Alves para sair em defesa das prostitutas, que não tinham
o direito nem de decidir onde viveriam:

Quando uma puta se despe e se deita para receber homem e conceder-lhe o supremo
prazer da vida em troca de paga escassa, sabe o ilustre combatente da justiça social
quantos estão comendo dessa paga. Do proprietário da casa ao sub-locador, da
caftina ao delegado, do gigolô ao tira, o governo e o lenocídio. Puta não tem que a
defenda, ninguém por ela se levanta, os jornais não abrem colunas para descrever a
miséria dos prostíbulos, assunto proibido. [...] Sou o poeta Castro Alves, morto há
cem anos, do túmulo me levanto, na Praça de meu nome e monumento, na Bahia,
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assumo a tribuna de onde clamei pelos escravos, no Teatro São João que o fogo
consumiu, para conclamar as putas a dizer basta. (AMADO, 1972, p. 293-294)

A mudança seria feita para beneficiar parentes do delegado e


para esconder dos turistas e das famílias a prostituição existente na
cidade. Este e outros episódios permitem a revelação ocasional da
r e a l i d a d e e x t e r i o r, l e v a n d o a p r o t a g o n i s t a e o s l e i t o r e s a r e f l e t i r s o b r e
questões como o preconceito existente na sociedade e sobre a
m a r g i n a l i z a ç ã o d e t o d a u m a c l a s s e d e m u l h e r e s . Te r e z a c o m a n d a a
“greve do balaio fechado” e as prostitutas conseguem permanecer em
s u a s c a s a s , a p ó s e n f r e n t a r e m a p o l í c i a . Te r e z a é p r e s a j u n t o c o m o u t r a s
prostitutas e depois de apanhar muito é solta, graças à intervenção do
a m i g o Va v á . A p ó s s e r e c u p e r a r d o e s p a n c a m e n t o , Te r e z a f i c a s a b e n d o
do naufrágio do cargueiro onde estava J anuário Gereba, e pensa ter ele
m o r r i d o c o m o s o u t r o s m a r i n h e i r o s . Te r e z a d e c i d e e n f i m a c e i t a r a
proposta de casamento de Almério das Neves. No dia do seu casamento,
Te r e z a e s t á t r i s t e , e m f r e n t e a o e s p e l h o r e f l e t e s o b r e s u a v i d a :

[...] Tereza vê-se refletida no aço do espelho pelo direito e pelo avesso. [...]. Recorda
acontecimento e pessoas, fatos distantes, gente desaparecida. O doutor, o capitão,
Lulu Santos, o menino arrancado de seu ventre, assassinado antes de ser. Os tempos
de cadeia, os tempos de bordel, a época de Estância, lugares por onde andou, o ruim
e o bom, a taca de couro e a rosa. Quantos anos completara há poucos meses no
xadrez, presa e surrada pela polícia de costumes da Bahia? Vinte e seis? Não pode
ser. Quem sabe, cento e vinte e seis, mil e vinte e seis ou ainda mais? Na hora da
morte não se conta idade. (AMADO, 1972, p. 366)

O casamento representa aqui uma forma de ter uma vida


e s t á v e l f i n a n c e i r a m e n t e f a l a n d o , m a s n ã o é d e s e j á v e l s e m a m o r. S e o
l i v r o a c a b a s s e c o m o c a s a m e n t o d e Te r e z a e A l m é r i o , Te re z a B a t i s t a
c a n s a d a d e g u e r r a s e r i a u m e x e m p l o d e B i l d u n g s ro m a n f r a c a s s a d o , p o i s
a protagonista está sem esperanças, morta por dentro. Porém, no
momento em que Te r e z a está terminando de se arrumar para o
c a s a m e n t o , J a n u á r i o c h e g a e Te r e z a v a i e m b o r a c o m e l e n u m s a v e i r o
p e l o m a r d a B a h i a . Te r e z a n a s c e u n o s e r t ã o e n t r e a B a h i a e S e r g i p e ,
47

numa terra seca, que sofre com a escassez de chuvas, sua viagem final
pelo mar se contrapõe ao lugar de onde veio. Há uma oposição entre o
s e r t ã o e o m a r. E l a é d o i n t e r i o r, q u e s e o p õ e a S a l v a d o r, c a p i t a l d a
B a h i a , c o m s e u c a i s d o p o r t o e s e u m a r. M a s Te r e z a s e a d a p t a a o m e i o
em que passa a viver com Janu, o mar é para ela um lugar de renovação,
aliás, a água está presente em todos os momentos importantes da vida
d e Te r e z a , r e n o v a n d o - a e i n d i c a n d o m u d a n ç a s i m p o r t a n t e s e m s u a
trajetória pessoal. Acompanhando a história de vida da protagonista:
“[...] o leitor toma conhecimento do seu desenvolvimento emocional e
intelectual e do processo de formação de sua personalidade. [...]”.
(PINTO, 1990, p. 62).
M e s m o n o s m o m e n t o s d e m a i o r a d v e r s i d a d e , Te r e z a d e c i d e s e u
próprio destino, rejeitando padrões sociais. Apesar de existirem vários
B i l d u n g s ro m a n fracassados, exclusivamente com protagonistas
f e m i n i n a s , n o ro m a n c e d e a p re n d i z a g e m d e Te re z a B a t i s t a c a n s a d a d e
guerra, a personagem rompe com as limitações sociais e consegue a
independência e a afirmação pessoal, assumindo uma posição
marginalizada na sociedade, mas livre, capaz de fazer suas próprias
escolhas. O final, apesar de indeterminado, aponta para a possibilidade
de realização de seus desejos numa história que está fora do livro, que
s e r á d e s e n v o l v i d a n a m e n t e d o s l e i t o r e s . N a v i a g e m f i n a l , Te r e z a
descarrega a morte do capitão e do doutor Emiliano Guedes no mar da
B a h i a . M a i s u m a v e z , J a n u s e r á o m e n t o r d e Te r e z a , a j u d a n d o - a a s e
livrar dos seus mortos, ensinando-a a guardar consigo só as coisas boas
e a deixar o mar levar tudo de ruim que aconteceu em sua vida. Por ser
u m h o m e m d o m a r, f o n t e d e r e n o v a ç ã o d a p r o t a g o n i s t a , e l e s e r á
r e s p o n s á v e l p e l o r e n a s c i m e n t o d e Te r e z a . R e s s u s c i t a d a p a r a a v i d a ,
Te r e z a p e n s a n o f i l h o q u e a b o r t o u e p e d e a J a n u q u e l h e d ê o u t r o ,
simbolizando assim o renascimento e o início de uma nova vida em
direção à felicidade e à auto-realização plenas. A viagem pelo mar “[...]
indica a possibilidade de vitória, de conquista e afirmação do EU pela
protagonista, e a imagem da morte surge associada à promessa de
renascimento [...]” (PINTO, 1990, p. 87).
48

Te re z a Batista cansada de guerra é um exemplo de


B i l d u n g s ro m a n v i t o r i o s o , p o i s a p r o t a g o n i s t a r e j e i t a :

[...] os padrões de comportamento e modos de relação determinados pela sociedade,


recusando uma “integração” no grupo social a favor da verdadeira integração do EU.
[...]. No entanto, eles [romances de aprendizagem] atuam também como possíveis
catalisadores de futuras transformações sociais, ainda que lentas, pois eles
estabelecem modelos de comportamento que o público leitor e a sociedade em geral
podem, pouco a pouco, aceitar e seguir. (PINTO, 1990, p. 150).

No final do seu aprendizado a protagonista encontra a verdade


de si e do Outro, aceitando a si própria com todas as suas contradições.
O livro aborda problemas enfrentados pela mulher durante o processo
de desenvolvimento emocional e psicológico, desde a infância até a
idade adulta. Neste caso, a protagonista enfrenta problemas mais
c o m p l e x o s e d i f í c e i s d e s u p e r a r. P r e c i s a l i d a r c o m o a b a n d o n o f a m i l i a r,
com o abuso sexual infantil, com o assassinato de seu algoz, com a
hipocrisia da sociedade local, é marginalizada, prostituída etc. A
discussão destes problemas permite abordar questões que dizem
respeito ao grupo social feminino. Jorge Amado, através de uma
linguagem clara e direta, busca contribuir com a transformação social.
Tr a z e n d o à t o n a a h i s t ó r i a d e s t a s m e n i n a s e s t u p r a d a s e p r o s t i t u í d a s p e l a
s o c i e d a d e q u e d e v e r i a p r o t e g ê - l a s . Te r e z a r e p r e s e n t a u m n o v o m o d e l o
de comportamento feminino, ainda mais fora dos padrões, por se tratar
d e u m a p e r s o n a g e m m a r g i n a l i z a d a p e l a s o c i e d a d e p o r s e r m u l h e r, p o b r e ,
nordestina, mulata etc. Sua história serve para mostrar aos leitores o
ponto de vista de pessoas que nascem na “classe baixa” da sociedade
nordestina e brasileira. Ao romper com as limitações impostas pela
sociedade, ela representa também o rompimento com o modelo narrativo
d e B i l d u n g s ro m a n f r a c a s s a d o . Te r e z a B a t i s t a é d a s m a i s f a s c i n a n t e s
heroínas de Jorge Amado, talvez a mais completa, pois reúne os
atributos de todas as anteriores. Uma protagonista mulata, que
e n g r a v i d a e e n c o n t r a o a m o r, q u e b r a n d o o e s t e r e ó t i p o d a m u l a t a n a
literatura brasileira. Uma mulher que luta pelos seus ideais, que não se
49

conforma com injustiças, que não desiste nem mesmo diante das
maiores adversidades.
50

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Jorge Amado, em sua obra, faz muitas referências à formação


histórica do Brasil, trazendo a mestiçagem cultural e biológica como
uma das maiores virtudes de nosso povo. A riqueza cultural brasileira
viria justamente desta herança. Na década de 30, através de sua
literatura popular e mestiça, recuperou características que
diferenciavam o Brasil de outros países, elementos como o futebol, a
capoeira, o candomblé, o samba etc. Assim exemplificou para o mundo
e para os próprios brasileiros o que caracterizava o Brasil como nação.
O autor misturou ficção e realidade em suas narrativas, suas
personagens são tiradas das ruas de Salvador e de fatos históricos. Esta
relação é tão complexa que não é possível saber se Jorge Amado
inventou imagens do povo brasileiro ou só representou em seus livros.
A primeira fase de sua obra é marcada pelo viés político partidário.
A figura feminina sempre esteve presente em seus livros, mas
esta configuração torna-se mais marcante a partir da segunda fase de
sua literatura. As personagens femininas representadas nas narrativas de
Jorge Amado são mostradas como mulheres fortes, corajosas, capazes de
modificar a sociedade, de provocar mudanças importantíssimas na
hierarquia social. A partir de Gabriela, cravo e canela, Jorge Amado
intensifica a figura feminina em sua obra, criando personagens que
podem ser facilmente encontradas fora dos livros. Jorge Amado era um
autor preocupado em aproximar realidade e ficção, por isso suas
histórias são baseadas em vivências reais, denunciando a situação da
mulher na sociedade nordestina machista. Em Gabriela, temos os
dramas e lutas não só de mulheres do povo, mas de mulheres de outras
classes sociais, o que mostra que o autor já não apresenta uma visão
maniqueísta do mundo, adota uma visão mais universal do ser humano.
Te re z a B a t i s t a c a n s a d a d e g u e r r a n a r r a a t r a j e t ó r i a d e u m a
heroína afrodescendente desde sua infância até a idade adulta,
mostrando o desenvolvimento intelectual e emocional da protagonista, o
q u e f a z d e s t e r o m a n c e u m ro m a n c e d e a p re n d i z a g e m f e m i n i n o . A p e s a r
de apresentar muitas características presentes na “mulata” configurada
51

pela literatura brasileira desde Gregório de Matos, a protagonista se


diferencia por vários fatores. Ao contrário de outras personagens
a f r o d e s c e n d e n t e s , Te r e z a é c a p a z d e g e r a r u m f i l h o , e o c a s a m e n t o a q u i
j á n ã o s e a p r e s e n t a c o m o a l g o i m p o s s í v e l d e a c o n t e c e r.
52

REFERÊNCIAS BILIOGRÁFICAS

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53

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