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Cada macaco no seu galho Leonardo Aliaga Betti! Nossa cultura é repleta de ditos e frases que refletem, com inegavel sabedoria, experiéncias ¢ conhecimentos que explicam intimeros fendémenos sociais. Por exemplo: quando afirmamos que a corda sempre arrebenta do lado mais fraco, estamos reproduzindo a constatagao de que classes sociais menos abastadas acabam sempre sofrendo mais que as endinheiradas. E interessante notar que, por meio de interpretacdcs mais ou menos pomposas, esse conhecimento dito “vulgar” é simplesmente confirmado empiricamente. Veja-se: afirmar que “pretos ¢ pobres vio mais para a cadcia que engravatados” é¢ meio menos “polido” de dizer que, “estatisticamente, as camadas sociais menos favorecidas economicamente enfrentam maiores dificuldades de questionar judicialmente a aplicagao da lei penal”. Nos dois casos, porém, tudo significa a mesma coisa: a corda sempre arrebenta do lado mais fraco. Nos, do Direito, adoramos aquela segunda forma, a de “glamourizacaio” dos ditos populares. Exemplificativamente: dizer que é possivel conceder tutela proviséria quando ha “probabilidade do dircito” é¢ reconhecer que onde ha fumaga, ha fogo; afirmar que o procedimento é uma sequéncia ordenada de atos processuais é dizer que ndo se deve por a carroga na frente dos bois. E assim por diante. No ultimo dia 23 de maio, me veio a memoria um desses ditos populares: ao ler a decisao proferida pelo STF na Reclamagao 59.795, logo lembrei da expressao cada macaco no seu galho. No popular: nao se meta no assunto dos outros. Ou, no “juridiqués” polido: competéncia é a delimitagao da jurisdigao. E bom que se diga, ja de inicio, que competente, no “juridiqués”, ¢ presumidamente o juiz que tem bem delimitados os temas sobre os quais deve julgar, presumindo-sc, por consequéncia natural, que entende melhor de certo assunto. Dai concluir pelo provavel acerto de suas decisées, * Juiz do trabalho, titular da 3* Vara do Trabalho de Mogi das Cruzes’SP. Professor na Universidade de Mogi das Cruzes (UMC) ena Escola Paulista de Direito (EPD). Scanned with CamScanner principalmente porque esse juiz vai se aprofundando, pela pratica, nos temas que lhe siio submetidos. Eu, por exemplo: sou juiz do trabalho. O pouco que sei de direito do trabalho me permite julgar algumas causas trabalhistas. E s6. Nao me venha com um processo criminal ou elcitoral que logo direi: sou incompetente para julgar esse tipo de causa. Irci além: direi que sou absolutamente incompetente, reconhecendo, numa linguagem franca, minha incapacidade total, ignorancia mesmo, de resolver esses tipos de litigio. Algo que, no “juridiqués”, seria da seguinte forma: minha parcela de jurisdigao é delimitada pelos estritos limites do art. 114 da Constituigao. Mas ha por ai juizes mais competentes. Ou nao. Quando o art. 101 da Constituicao estabelece que “compete a0 Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituigao”, logo me vem a cabeca: quanta sabedoria deve ter esse ser “Supremo”. Afinal, na Constituigdo se fala de tudo: de dircito do trabalho, de direito penal, de direito elcitoral, tributario, previdenciirio, ambiental. Ser um juiz do Supremo, portanto, significa ser muito competente, 0 que logo me leva a reconhecer 0 quio sabio é o Constituinte ao prever que, para ser dessa estirpe, ¢ preciso ter “notvel saber juridico”. De fato. Falar com “autoridade” sobre tantos assuntos é mesmo para notdveis. Veja-se que até a identificagdo muda: nem de juizes estamos a falar mais, mas de “ministros”, 0 que reforga aquele constante processo de “glamourizagio” a que o Dircito insiste em banhar seus institutos. Mas niéio é exatamente disso que sc trata. E a Reclamacio 59,795 me trouxe a essa reflexao. Pelo que ali se observa, a Cabify (conhecida plataforma de transporte de passagciros) resolveu por em pritica o dito quem ndo chora, nado mama. Segundo a plataforma, o Tribunal Regional do Trabalho (TRT) de Minas Gerais estaria desrespcitando a autoridade do Supremo: em determinado processo, juizes daqucle Tribunal (glamourizados no “juridiqués” como “desembargadores”) teriam tido a “audacia” de reconhecer vinculo de emprego entre um motorista ¢ a plataforma em questio. Com isso, teriam desrespeitado a autoridade do Supremo que, cm casos anteriores, Scanned with CamScanner (ae entendera por bem afirmar que, para além da CLT, existem outros contratos Possiveis, que nao o de emprego. Penso que nem eu, mais bobo (¢ menos competente), precisaria de um “notavel saber juridico” para afirmar o ébvio, ou seja, que é possivel contratar alguém de forma eventual, de mancira auténoma, por contrato de prestagio de servigos, ou algo que o valha. Afinal, isso é claro como dizer que existe o dia e a noite, que cles sio diferentes ¢ que, por conta dessa diferenga, devem ser encarados de modo diferente. Ou, no juridiqués pomposo: é possivel prever legalmente a existéncia de diferentes formas de contratagdo de trabalhadores, cada qual regulada de maneira prépria. O problema, porém, é outro. O fato de haver previ: legal de diversas manciras de contratagao de trabalhadores nio implica dizer que a forma possa se sobrepor ao contetido. Em outros termos: se um julgador for chamado a examinar a natureza desse ajuste, a ele niio basta examinar o enquadramento legal que a lei e os contratantes déo formalmente; é preciso avaliar se, na situagio de fato, 0 vinculo que se estabeleceu entre os envolvidos corresponde 4 forma escolhida por cles, pois essa é a pretensiio juridica cxaminada. Fora do juridiqués: nao basta que cu coloque em um contrato que estou vendendo carne de Iebre a um incauto comprador; é preciso que se trate, de fato, de carne de lebre, nao de gato, por exemplo. E se, de fato, 0 que estiver sendo vendido for gato por lebre, o comprador podera dirigir-se a um Juiz competente para desfazer 0 negécio, ou, no minimo, para trocar o gato pela lebre. Trata-se, por sinal, de regra batida no dircito comum, que, no “juridiqués trabalhista”, é traduzido pelo principio da primazia da realidade sobre a forma. E por isso que niio adianta contratar alguém de forma subordinada, onerosa, néio-eventual ¢ pessoal ¢ firmar um contrato como se esse trabalhador fosse um auténomo. Nao vai dar certo, pois um (competente) juiz deveri declarar o que realmente aconteccu entre esses contratantes, mesmo que seja para dizer que 0 contrato revelou o que de fato aconteccu. Voltando 4 nossa Reclamagio, ¢ examinando 0 problema do galho que me cabe, parece ndo haver qualquer divida de que o Tribunal de Minas agiu na mais estrita legalidade. Afinal, ao reconhecer que a rclacio entre Cabify e motorista nao correspondeu ao que se estampou em contrato, o TRT Scanned with CamScanner Ge simplesmente exerceu a competéncia que lhe confere a lei para examinar a relagdo de fato que se estabeleccu entre os dois. Mas, ¢ a “suprema” competéncia conferida pelo Constituinte ao Supremo? Sinto dizer (especialmente ao proprio Supremo), mas ela nao é to grande assim, mesmo que cle veja a macacada aqui embaixo 14 do mais alto galho do nosso Sudiciario. E é preciso que isso fique claro, antes tarde que nunca, pois talvez nem mesmo o Supremo, do alto de scu notavel saber juridico, tenha se apercebido disso. O Supremo é absolutamente incompetente para afirmar, em determinada situagao, que certo trabalhador é ou ndo empregado. E uma razio simples: nao é a Constituigiio quem estabelece quais siio os requisitos configuradores de uma relagdo de emprego (dai nao ser 0 caso de competéncia de seu “guardiiio”), mas a CLT. E a competéncia \egalmente estabelecida para a afirmagiio a esse respeito é do juiz do trabalho (¢ suas “variagdes” intituladas “desembargadores” e “ministros”). Alias, no chorord da Cabify, até o Supremo (pasme, Exceléncia!) reconhece, na pessoa do Ministro Relator, Alexandre de Moraes, sua incompeténcia. Tanto que, numa aparente divagagao (no popular, “‘chute”), afirma, na decisfio da Reclamacio, que “realmente, a relagio estabelecida entre o motorista de aplicativo ¢ a plataforma reclamante mais se assemelha com a situagao prevista na Lei 11.442/2007, do transportador auténomo”. Para bom entendedor, meia palavra basta. Quando o Supremo diz que uma relagdo parece ser, niio esta fazendo mais que dar um palpite. O problema é que, embora possa dar esse chute, continua absolutamente incompetente para jogar nesse campo, pois o esporte que pratica é outro. Mas, em plagas tropicais, sempre hi como piorar. Na Reclamagio em questio, 0 Supremo nio sé “chutou” que © processo a ela subjacente lida com rela niio empregaticia (o que, convenhamos, para a tecnicidade de uma decisio “suprema” e de “notavel saber juridico”, é no minimo indesejavel): também se arvorou na tarefa de afirmar que o litigio entre Cabify ¢ motorista é da competéncia da Justiga Comum Estadual. E fez isso sem ter competéncia para apreciar esse tema, cis que a Constituigaio (aquela mesma cujo guardiio é 0 préprio Supremo) é clara Scanned with CamScanner no sentido de que compete ao Superior Tribunal de Justiga apreciar conflitos de competéncia entre juizes vinculados a tribunais diversos. Veja-se que a tiltima observagio sequer seria necesséria, pois nenhum juiz no caso concreto se declarou incompetente. E 0 objeto da Reclamagiio jamais pareceu ser (ao menos pelo relato ncla mesma estampado) tema ligado a competéncia, embora se tenha concluido por “determinar a remessa dos autos 4 Justica Comum”. Em sintese: numa reclamacgio em que nfo se discutia competéncia, 0 Supremo, no alto de sua incompeténcia, ¢ com base no secu palpite de que o caso concreto lida com relacdo nao empregaticia, invadiu, em uma canetada, competéncia legalmente estabelecida para outro ramo da jurisdigao, decidindo, por conta prépria, enviar 0 processo para quem ele palpita ser o juizo competente. Alias, visto 0 problema por outro prisma, como o inteligente leitor ja percebeu, arvorou-se o Supremo, nessa inquietante decisao, a ignorar a basica li¢do processual de que a fixagao da competéncia se da pela natureza da causa de pedir ¢ pelo pedido: assim, se o pedido é de reconhecimento de vinculo de emprego, a competéncia sempre sera da Justica do Trabalho, ainda que seja para declarar que ndo ha vinculo de emprego. Se o pedido, ao contrario, parte da premissa de que o vinculo tem natureza comercial, a competéncia nao sera da Justiga do Trabatho, ainda que seja para declarar que nio existiu esse vinculo comercial. Mas, o buraco é mais embaixo. A prevalecer esse tipo de decisio, a Justiga do Trabalho simplesmente nao terd mais competéncia para dizer que algo é ou ndo relagdo de emprego. Basta que alguém seja formalmente contratado como auténomo, parcciro, eventual. Ou, num proposital exagero: basta que, em defesa, o reclamado diga que o trabalhador écomo se fosse da familia, para que o Supremo se sinta competente para dizer que o caso é da Vara de Familia, eliminando, vez por todas, a competéncia da Justiga do Trabalho. De certa forma, essa “lagica suprema” parece até justificdvel: afinal, dos dez atuais Ministros, nove nao provém da area trabalhista. E a tinica egressa da area trabalhista esta prestes a se aposentar. Para piorar, comenta-se, 4 boca nem tdo pequena assim, que o proximo a ser nomeado talvez nunca tenha entrado em um Forum Trabalhista... Scanned with CamScanner (we, Nesse contexto, para qué Justiga do Trabalho, nao é mesmo? Aquem cla serve? A pobres ¢ pretos? Entdo, nao precisa ser ramo auténomo c especializado. Afinal, como sabemos, a corda sempre arrebenta do lado mais Sraco... Enfim. Na terra do quem pode mais, chora menos, manda quem pode, obedece quem tem Juizo. O problema é que, de uns tempos para ca, o Judicidrio virou uma verdadeira casa da mée Joana. E tenho dito. Scanned with CamScanner

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