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modelo da gramática latina, a que a variedade de litação, mas como formas, entre outras, de inser-
prestígio, para construir seu prestígio, se "con- ção das atividades lingüísticas de sujeitos histo-
formava"). Nega-se ao fazer do presente seu ca- ricamente situados e datados como o lugar da
ráter de história; cristaliza-se no passado (de as- ação e como o objeto da ação do ensino de lín-
cendência ilustre) o trabalho lingüístico produ- gua materna .
tivo, reduzindo-se o trabalho do aqui e agora à
retomada deste trabalho do passado. Paradoxal-
mente, em nome da história, nega-s e a historici- 3.2.1. A produção de textos
dade do fato presente, do acontecimento produ-
tivo, do acidente. Considero a produção de textos (orais e es-
critos) como ponto de partida (e ponto de chega-
Somados e stes dois aspectos aos processos da) de todo o processo de ensino/aprendizagem
de passagem dos produtos do trabalho científi- da língua. E isto não apenas por inspiração ideo-
co a conteúdos de ensino, passagem que se faz por lógica de devolução do direito à palavra às clas-
uma seleção, organização e seriação, com exclu- ses desprivilegiadas, para deJas ouvirmos a his-
são da historicidade dos próprios conceitos pro- tória, contida e não contada,~da grande maioria
1
duzidos na reflexão científica, temos pronto opa- que hojé ocupa os bancos ...escolares. Sobretudo,
no de fundo para que o ensino de língua mater- é porque no texto que a língua- objeto de estu-
na não se inspire na prática de linguagem de alu- dos - se revela em sua totalidade quer enquan-
nos e professores: é preciso que o ensino se dê to conjunto de formas e de seu reaparecimento,
"em terra firme", sem lugar para o movimento, quer enquanto discurso que remete a uma· rela-
para as utopias, para a construção. Em nome do ção intersubjetiva constituída no próprio proces-
afastamento necessário do "espontaneísmo" na so de enunciação marcada pela ten1poralidade e
educação (como se este fosse possível numa es- suas dimensões.
cola que é também forma de concret~zação da so- A escolha de um tal centro, de imediato, nos
ciedade mais ampla e de suas formas de ver o coloca no interior de uma discussão relativa ao
mundo), solidificam-se como verda:de conceitos sujeito e seu trabalho de produção de discursos,
que estão na verdade de um tempo. concretizados nos textos. A aposta pode parecer
Esta inspiração básica que comanda o proces- ingênua para aqueles que enquadram todo o dis-
so de ensino (o deslocamento do movimento e da curso no interior de uma determinada formação
historicidade) transforma o emprego da língua em discursiva, dentro da qual nada de novo se diria
aprendizagem do emprego de form;;ts lingüísticas. e apenas se repetiria o já dito . Como vimos em
a
As alternativas que proponho, partir daqui, 1.3., não se aposta nesta perspectiva, mas tam-
não devem ser entendidas como formas de faci- bém não se acredita no sujeito como fonte ex -

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nihilo de seus discursos e seus sentidos. Na pro- Aprofundemos um pouco esta distinçãos.
dução de discursos, o sujeito articula, aqui e ago- Mesmo numa conversação banal, não se ocupa
ra, mn ponto de vista sobre o mundo que, vincu- um turno de fala gratuitamente, ainda que no tur-
lado a uma certa formação discursiva, dela não no a razão para falar seja a continuidade da con-
é decorrência mecânica, seu trabalho sendo rnais versação: manter a continuidade já não é gratui-
do que mera reprodução: se fosse apenas isso, os to, ainda que seja a gratuidade de conversar o
discursos seriam sempre idênticos, independen- próprio objetivo da conversação em curso. Por
temente de quem e para quem resultam. Minha Inais ingênuo que possa parecer, para produzir
aposta não significa que o sujeito, para se cons- um texto (em qualquer modalidade) é preciso que:
tituir corno tal, deva criar o novo. A novidade, que a) se tenha o que dizer;
pode estar no reaparecimento de velhas formas b) se tenha uma razão para dizer o que se tem
e de velhos conteúdos, é precisamente o fato de a dizer;
o sujeito compron1.eter-se com sua palavra e de c) se tenha para quem dizer o que se tem a
sua articulação individual com a form.ação dis- dizer;
cursiva de que faz parte, mesmo quando dela não d) o locutor se constitua corno tal, enquanto
está consciente. sujeito que diz o que diz pat•a quem diz (ou, na
É este comprom.isso e esta articulação a no- imagem wittgensteiniamf, seja um jogador no
vidade de cada discurso, e do texto dele decor- jogo);
rente. Isto não se faz impunemente em dois sen- e) se escolham as estratégias para realizar (a),
tidos diferentes: de um lado relativamente aos su- (b), (c) e (d).
jeitos que estão sendo sempre interrogados pela
doutrina, no sentido de suas falas com ela se coa- A observação mais despretensiosa do ato de
dunarem; por outro lado as diferentes articula- escrever para a escola pode mostrar que, pelos tex-
ções são também responsáveis pela produção de tos produzidos, há muita escrita e pouco texto (ou
novos sentidos (ainda que para expressões velhas) discurso), precisamente porque se constroem nes-
que se somam aos sentidos anteriores; reafirman- tas atividades, para cada um dos aspectos apon-
do-os ou deslocando-os no momento presente. Mi- tados acima, respostas diferentes daquelas que se
nha aposta, então, está ligada a est"e movimen- constroem quando a fala (e o discurso) é parava-
to, às vezes imperceptível, que, reafirmando, des- ler. Consideremos o seguinte exemplo:
loca e que deslocando afirma 4 . É a partir des-
ta perspectiva que estabeleço, no interior das ati- Exemplo J6
vidades escolares, uma distinção entre produção
de textos e redação. Nesta, produzem-se textos (Solicita-se às crianças que inventem uma his-
para a escola; naquela produ zem-sé textos na es- tória a partir de gravura existente na cartilha. Es-
cola. ta é uma delas)

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O 1nacaco e vovô de aula destinada, enquanto espaço físico, a clas-
ses de alfabetização: numa porta, uma folha de
vovô é o rnacaco de boneca. papel onde está escrito PORTA; idem para as ja-
A boneca menina: nelas; idem para os quadros (numa delas encon-
-Vovô, menina a boneca. trei um espelho, com um papel ocupando parte
O macaco vovô a boneca. do espelho, escrito ESPELHO). Que tem o aluno
menina dá boneca a vovô. a dizer? o que sua experiência com escritas a es-
(de um aluno de 1.3 série, outubro/89, cola, de um modo geral, lhe rnostrou? Ilustrar a
periferia da cidade de São Paulo) gravura com o verbal. É o que faz no nosso exem-
plo. A razão única que ele pode encontrar para
Antes de mais nada, conw condição desenca- escrever alguma coisa (já que é preciso escrever
deadora da produção, pede-se aos alunos que es- ... a professora "pediu") é mostrar que sabe es-
crevan'l um texto a partir de un1a gravura. E aqui crever (o que é um contra-senso, afinal está na
se preenchem duas condições apontadas: o que classe para aprender a escrever). Assim, tanto a
se tem a dizer é uma história suscitada pela gra- razão para dizer quanto o q~e dizer se anulam .
vura, ou seja, não se trata de contar algo viven- Mas é preciso ir mais .•longe: a criança já ou-
ciado e que, por extraordinário na cotidianida- viu, a estas alturas seguramente, a leitura de tex-
de, merece, no julgamento do locutor, ser conta- tos; já fez "composições" antes e até, em certos
do para outrem momentos, tentou fazer textos verdadeiros. Daí
a organização que imprime à sua seqüência de
j á que falar a a lguém é reclamar-lhe a atenção, não se palavras: elas imitam formalmente um texto; es-
pode falar legitimamente a outrem senão daquilo que tão presentes sinais de pontuação; o travessão in-
se considera possa interessar-lhe. forma que a criança percebeu que em textos ele
(Ducrot, 1972: 17)
aparece; há verbos (é, dá) ausentes quando aspa-
lavras ilustram as gravuras de cartilhas .
Ora, na expectativa do professor, 9 que inte-
Qualquer trabalho pedagógico com o texto
ressaria seria precisamente a história que, inven-
tada a partir da gravura, valeria ser contada. No deste exemplo exige que se ponha sob suspeita:
entanto, o convívio da criança com a escrita em a) o próprio apelo ao recurso didático da gra-
cartilhas mostra-lhe gravuras e, sob elas, desig- vura;
nações: desenhos de um balão, embaixo escrito b) a própria demanda feita: uma história que
BALÃO; desenho de um bolo, embaixo escrito BO- se inventa a partir de uma gravura. ·
LO .. . A cartilha, de passo em passo, vai mostran- Estes dois aspectos estão ligados ao que po-
do a escrita como ilustração da gra\rura. Verifi- deríamos chamar de "conteúdo a dizer" e "razões
car isso não é tão difícil: basta entrar numa sala ou motivações para dizer". A não ser que se aceite

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a esc ri ta na escola como redação que prepara o a) ter o que di ze r: a seqüência de afirmações
aluno para depoi s (um depois que provavelmen- do aluno articula sua visão da escola e experiên-
te não acontecerá) escrever. É possível contornar cias nela vividas:
esta artificialidade? É possível recuperar, no in- 1. a escola é bonita e limpa
terior da própria escola, um espaço de interação, 2. não pode trazer chiclete para a escola
onde o sujeito se (des)vela, com uma produção de 3. não pode trazer ovo para o lanche na escola
textos efetivamente ass umidos pelos seus auto- 4. na hora do lanche, há muitas cmsas no
res? Criar condições para tanto parece ser uma lanche
necessidade, já que 5. não pode repetir o lanche
6. tem muita gente que repete o lanche
Ê sobret udo o sujeito como paixão que se enuncia no
7. é preciso trazer o material para a escola
discurso; o que se enuncia é a curiosidade, a solicitu- senão a professora dá xingo.
de, o entusiasmo, o reconhecimento e também, segu-
ramente, a manipulação e a sedução. b) ter uma razão para dizer o que se tem a di-
(Parret, 1986: 7)
zer: é bem provável que a ra;z:ão primeira do alu-
no é executar uma tarefa qj-e lhe fo i solicitada·
Exemplo 27
mas esta tarefa não é assll';.'ll.ida como mero preen~
chimento de um espaço em branco precisamen-
A esco la te porque o que o aluno tem a dizer se sobrepõe
a secola é bonita e lipa e não pede traze- à razão artificial, criando outras razões que so-
chiclete e não pe de traze ovo naora do lache mente poderiam ser confirmadas pelo professor
tem mutascoza no lache e não pode repiti e caso lesse o texto como interlocutor do aluno. De
ten mutajeteque repétenoloche e trazemate- qualquer modo, faço aqui um exercício de leitu-
riau na secola e senão aprofesora da chigo. ra das motivações possíveis (e não as tomo como
(de um aluno de 1.a série, outubro/8.9, perife- reais, o exercício valendo apenas como indicação
ria da cidade de S~o Paulo) de leituras efetivas do professor, embora baseie
este exercício nas pistas que o texto me oferece):
Penso que aqui estamos, de fato, diante
de um texto, embora se constatem de imedia- 1. Por que terá dito que "a escola é bonita e
to as dificuldades de seu autor no manuseio limpa"? Por que ele assim a vê, comparando com
de estratégias para realizar seus intentos. a beleza e limpeza de outros ambientes que fre-
Analisemos um pouco mais demorada- qüenta (a própria casa, os banheiros públicos, a
mente este texto, tomando como n?teiro o que sua rua, etc .) ou por que quer obter a simpatia
apontávamos como condições para se produ- do leitor (a professora), que representa concre-
zir um texto: tamente para ele a escola?

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2. Por que ele terá escolhido repetir as ordens ocorre mais fortemente nesta passagem. (note-se
"não pode trazer chiclete", " não pode trazer ovo", que o aluno não desconhece, por exemplo, que se
"não pode repetir o lanche" e "trazer o material escreve tem (e não ten); que lanche é uma pala-
senão a professora dá xingo"? São quatro regras vra independente) n1.as estes "saberes" não se pre-
disciplinares da escola (a estas alturas o aluno já sentificam em
terá aprendido muitas outras regras ... ). Exempla- ten mutajeteque repétenoloche
res, estas regras podem ter sido as que mais lhe Por quê? Provavelmente, na oralidade, isto teria
charnaram a atenção, talvez até porque ouviu pes- sido dito com outra entonação e, talvez, mais rá-
soalmente xingamentos por não cumpri-las ou pido e em outro tom em relação ao restante. Aqui,
porque presenciou tais xingamentos. Mas o que a junção de palavras pode estar refletindo a ten-
mais me chama a atenção é o fato de que um alu- são do sujeito que, denunciando, anuncia-se e
no, falando da escola, pratica sete atos de fala, enuncia-se.
mais de metade dos quais são a demonstração pa-
ra o leitor de que "incorporou" as regras da ins- O exercício de reflexão sobre as 1notivações
tituição escolar. Que fique claro: não estou de- de fala pode ser totalmente dei:lassificado, já que
fendendo uma anomia, a inexistência de.normas. suas conclusões podem serverossímeis n1.as não
Estou salientando apenas a imagem de escola que verdadeiras. Não é a verdade da minha reflexão
concretamente vai-se constituindo para os sujei- puntual em relação ao exemplo que importa; im-
tos escolarizados. porta a lição a tirar da comparação dos dois tex-
3 . Por que ele terá dito "na hora do lanche, tos. Num deles, apenas uma experiência escolar,
tem muitas coisas no lanche"? Esta informação com conseqüências para o aluno; noutro, uma ex-
faz sentido no texto: ela pode ser uma razão pa- periência escolar com conseqüências para o su-
ra a existência das duas regras anteriormente ex- jeito do texto (ao menos do ponto de vista da pro-
pressas, mas também pode ser o resultado de dução, embora possa não sê-lo do ponto de vista
uma comparação com outros lanches. pu ainda de sua burocratizada leitura).
uma razão para o não cun1primento da·regra ex-
pressa no ato de fala (5). c) se tenha para quem dizer: quem melhor do
4 . Por que terá dito "tem muita gente quere- que uma professora para "tomar as providên-
pete o lanche"? Trata-se evidentemente de uma cias", no caso da denúncia em (6)? O grande pro-
denúncia, e talvez esta seja de fato a razão maior blema é que o leitor de redações é sempre a
de todo o texto: apontar que existem regras que função -professor e não o sujeito-professor.
não se cumprem. Observando melhor aspectos d) se constitua como locutor que se compro-
formais do texto, se notará que a criança "emen- mete com o que diz: se levado a sério, o aluno te-
da" palavras, mas é significativo notar que isto rá que comprovar o que diz. No caso, das razões

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para achar bonita e limpa a escola; mostrar que zidos para a escola. Preocupa-me muito mais, nes-
se comporta segundo as regras que incorporou tes, a ausência de pontos de vista, a ausência de
(e quando não o faz, sabe que não o faz); compro- sujeitos que, utilizando-se da modalidade escri-
var que tem gente que repete o lanche, etc. As per- ta, se (des)velem, até para que as discussões de
guntas para que com.prove podem não ocorrer, cunho mais ideológico possam ser levantadas.
mas sua não ocorrência não isenta o locutor. Antes de sintetizarmos uma proposta de al-
e) escolha das estratégias: se a leitura que fiz ternativas para uma produção de textos na esco-
do texto deste aluno tiver algurn sentido adequa- la, tomemos mais dois exemplos, agora de diálo-
do o autor foi muito feliz: tentou a sedução pelo gos entre professor e alunos 8 .
el~gio; mostrou que incorporou regras de com-
portam.entos; somente depois de falar da "rique-
za" do lanche é que aparece a denúncia, a que se Exemplo 39
lhe segue imediatamente uma outra regra e aqui,
do ponto de vista da sedução, um deslize: a pro-
fessora dá xingo. A professora poderá não gos- T 1 P - Psiu, descrição â.e pessoa. Eu vou
tar de saber disso. Ou se se quiser, erJ?. face da dar um quadró pra vocês e vocês vão
presença desta "senão a professora dá xingo", completar esse quadro . Eu vou dar
pode-se ver aí outra denúncia . Também se pode uma descrição de um pai. (Depois)
ver que o não cumprimento de regras de compor- cada um vai descrever a sua mãe,
tan"lento ten1 conseqüências. O aluno terá convi- preste atenção gente.
vido com não xingamentos, descumprido alguma (... )
regra? Impossível responder, mas, felizmente, é Aqui nós vamos ver o tipo físico de-
provável que sim. Outra leitura possível é a do le ... aqui nós vamos ver outros as-
elogio à professora, porque ela "dá xingo" em pectos dele ... Bom, no tipo físico es-
quem não cumpe regras: pode então rec,e ber a de- se pai aqui é alto, gordo, loiro, cabe-
núncia da "repetição no lanche" e levá-Ja a sério. los e olhos castanhos ... depois, ele
tem o nariz grande, boca pequena ...
Note-se que uma análise mais ideológica des- braços e pernas compridas.
te texto possivelmente caminharia no sentido de (... )
chamar a atenção para a grande presença de re- Agora outro aspecto: ele gosta de se
gras e para a presença de dedo-durismo. Talvez vestir bem, anda com os ombros caí-
esta seja uma discussão que a professora possa dos (.. .) fala alto, gesticula com as
conduzir na sala de aula . Mas, para mim, não é mãos .. .
esta a questão em jogo, ao pensar textos produ- ( ... )

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- - - - - -- - -- - - -- - -- - - - - -- -- - '
Born, além disso, podemos ainda fa- T 13 A- Árvore.
lar sobre as preferências do pai. En- T14 A - Folhas.
tão poderíamos falar o quê? Seu pai, T 1s P - Chega. Agora outra coisa ... não que-
por exemplo, que ele gosta de fazer? ro mais frutas ... verdes como?
T2 A- De dormir! T1 6 A - Esmeralda.
T3 P - Então coloca: ele gosta de dormir, é Tl7 P - Muito bem!
a descrição, então não vai inventar
nada. O recorte feito aqui, de dezessete turnos de
Con10 aqui nós estamos descreven- fala, é retirado de uma aula iniciada com o obje-
do de um modo geral eu não peguei tivo de introduzir um "gênero": a descrição. Há
um pai definido né, o pai da Ana uma longa exposição, no primeiro turno, da pro-
Cláudia ou do Claudinei, eu peguei fessora. Neste turno, aliando "prática" e "teoria",
um pai assin1 pra vocês terem un1a a professora vai produzindo a descrição de um
idéia de como é feita a descrição ... pai "geral", para mostrar que numa descrição de
Vocês passam um traço embaixo e pessoa se deve levar em cont<{ aspectos físicos e
escrevem MÃE ou MINHA ]\1ÃE ... E aspectos psicológicos. Interes'sante é que no T 3 ,
aqui vocês vão descrever o tipo físi- a mesma professora dá à descrição uma caracte-
co da mamãe e outros aspectos da rística que destrói (ou destruiria) o texto que vi-
mamãe, assim gerais ... Outra coisa: nha produzindo como "modelo"para os alunos,
quando vocês forem descrever, pres- ao dizer que uma das características da descri-
tem atenção, lembrem-se daquele ção é o veto à invenção!
exercício que nós fizemos Do final do T3 ao T7 há, com extraordinária
Olhos pretos como? exemplaridade, a condução à eternização de me-
táforas e comparações. Não se trata, pois, de "en-
T4 A- Carvão. sinar" descrições; trata-se também de excluir
T 5 P - Quem sabe? Fala! Ricardo' ... como? comparações possíveis em benefício de clichês es-
T6 A- Pichi. tabelecidos. Provavelmente não é por falta de bri-
T 7 P - Piche. Não é pichi. Piche! Olhos pre- lho ao carvão que se exclui a possibilidade de
tos como? "olhos pretos como carvão"; frutas, ainda que seu
Ts A- Jabuticaba. verde brilhe, também não pode. Não se pode di-
T9 P - Certo! Olhos verdes como? zer: "olhos verdes como limão". Afinal, olhos ver-
T 10 A - Grama. des são raros, e só esmeraldas lhes caem bem.
T 11 A- Limão. Esta seqüência, na verdade, mostra muito
T12 A- Pêra.
mais do que estes dois elementos quase "super-

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Para o autor, estas representações produzem
ficiai s" relativos à descrição e à ün.posição de cli-
um "pré-construto cultural" que orienta a ativi-
chês: o objetivo que efetivamente se institui é a
fixidez: só se descreve de um jeito; só se compa- dade descritiva, segundo dois eixos: um eixo so-
ra conw antes já se comparoulO_ ciológico, responsável pela prática, pelo ideoló-
Na perspectiva com que estamos olhando a gico e pelas matrizes culturais, e um eixo cogni-
produção de textos, as "instruções" escolares so- tivo, responsável pelas abstrações, generalizações
bre a descrição acabam esquecendo que as ativi- e simbolizações. Da prática (ou da experiência)
dades discursivas de descrição de um objeto são o sujeito enunciador busca os exemplos ou acon-
reguladas tecimentos conhecidos ou supostamente conhe-
cidos por seus interlocutores que lhe permitem
a) pela finalidade da descrição; incluir o objeto de descrição num domínio refe-
b) pela natureza do objeto da descrição; rencial específico. Do ideológico ele busca as no-
c) pelos interlocutores a que a descrição se I ções ou categorias co1n que interpretamos o mun-
destina; do e que lhe permitem qualificar o objeto de des-
d) pelas representações que faz o locutor do crição. Das matrizes culturais o enunciador re-
objeto que descreve. tira formas de inscrever o objeto de descrição nos
modos de pensar e agir de seus interlocutores.
Este esquecimento se produz, fundamental- Com a abstração projeta o objeto que descreve
mente, porque na escola os textos não são o pro- em certo modelo de realidade. Com a generali-
duto de um trabalho discursivo, mas exercícios zação desloca argumentos ou exemplos puntuais,
de descrição apenas para "mostrar que aprendeu válidos para situações particulares, apresentan-
a descrever". do sua descrição do objeto como válida em qual-
Miéville (1988), em seu estudo sobre a descri- quer circunstância. Com a simbolizacão reatua-
ção e a representação, defende o ponto de vista 0 '

liza sua descrição na memória coletiva, progres-


de que a descrição de um objeto resulta da ins- sivamente estruturada pela sociedade em suare-
crição deste objeto, através de operaçõ;e s discur-
lação com os objetos.
sivas, como pertencente a determinada classe de
As próprias caracterizações didáticas da des-
objetos: ·
crição podem oferecer um bom exemplo do fun -
O sujeito enunciador que elabora progressivamente o
cionamento destes dois eixos . Verifiquemos isto
objeto de descrição age de maneira a apresentá-la co- em nosso exemplo (3), extraindo dele as duas "ins-
mo expressão de uma construção objetiva. Mas a per- truções de como se descreve":
cepção da objetividade do objeto é indissociável daquela
do sujeito. Esta a razão por que me pan;}t:e necessário a) a descrição de uma pessoa deve conter as-
saber mais sobre as representações daquele que elabora pectos físicos e psicológicos: a regra, desconhecen-
uma descrição . do as finalidades da descrição, torna geral o que
(Miéville, 1988: 163)

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vale para descrições específicas e puntuais. Com vos não fogem às representações construídas no
isso generaliza-se o que é exemplar, particular, que ele denominou eixos sociológico e cognitivo.
exemplificadas por outras descrições, inscreven- Quando tratarmos da "análise lingüística", retor-
do a descrição de pessoas numa certa interpre- naremos a Miéville para refletirmos sobre os pro-
tacão do homem e cumprindo, assim, a matriz cessos operacionais de construção lingüística de
cultural da completude necessária em toda a des- textos.
crição; Por fim, de nosso exemplo (3), mna das lições
b) na d escrição, não há lugar para a invenção: a tirar é relativa ao processo escolar de eterni-
a descrição, correspondendo à realidade, exclui zação do clichê, quer em termos da configuração
as representações que o sujeito faz do objeto que do te xto (as regras sobre a descrição), quer em
descreve? De fato, cada característica que pro- termos internos, na exigência do uso das n1e srnas
gressivam.ente vai constituindo o objeto descri- expressões metafóricas "consagradas".
to se inspira nestas representações. "Nosso pai
geral" é alto (em relação a quê?), gosta de vestir Exemplo 4
bem (informação que, classificando o pai dentro !
de um certo conjunto de pessoas, seu:' pertenci- (A professora solicita aos àlunos a leitura si-
menta a esse grupo, resulta de "conhecimentos lenciosa de um texto já lido. Tal como conceitua-
supostamente compartilhados" que permitem da no diálogo, na parte que antecede ao recorte
distinguir vestir bem/não vestir bem, conhecimen- feito aqui, a leitura silenciosa é "só com os olhos"
tos que, por comparação, se inscrevem na memó- e a professora avisa que não quer ouvir nenhum
ria de uma certa época de uma certa sociedade). barulho).
Esta regra apaga todo o processo que permite ao
que descreve aproximar-se das representações co- T1 P - Eu vou dar 10 minutos ... 5 minutos
letivas sobre os objetos de descrição, ao mesmo para vocês lerem a leitura.
tempo que o constrange à utilização c,le configu-
racões-clichês de descricões. · T2 A- Eu já terminei, dona !
T3 P - Todos terminaram?
> Apesar de todo o esf;rço didático em distin-
T4 A- Eu já ...
guir descrição de narração, os textos reais pare-
Ts A- Terminamos
cem não se conformar: e1n narrações há descri-
Tó A- Eu não ...
ções e em descrições apela-se para a narração de
T7 P - Vocês recordaram bem a leitura?
fatos que caracterizam (e portanto descrevem). Ts A- Recordamos!
Abandonando a distinção, podemos1 generalizar
T9 P - Nós já estudamos o vocabulário não
as considerações de Miéville para outros textos, é? Bem, agora vou fazer as pergun-
já que também os textos narrativos e dissertati- tas ... Vocês fizeram nos cadernos?
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T1o A- Fizenws! - = seqüências implicadas pelo
T1 1 P - Então abram os cadernos ... Vamos turno anterior
ver! A primeira pergunta é esta. On- ORD = orderil
de se passa essa história? AFIR = afirmação (informação)
A- Na Aldeia dos índios Maoé. PERG =pergunta
T1 3 P - Qual o personagem principal desse R = resposta
caso? AVIS =aviso
A- O guaraná, olhinhos de gente? AV NEG = avaliação negativa
P - O principal personagem ... O que é AV POS = avaliação positiva
pesonagem hein?
1. ORD (Eu vou dar 10 minutos .. . 5 minutos
A- Pessoa!
P - Não é pessoa ... personagem pode ser para vocês lerem a leitura) trata-se de uma ordem
uma pessoa, un1 animal , até um ob- produzida por um ato de fala indireto·
jeto .. . mas aqui nesse caso quem é? 2 . R (Eu não ... ), resposta do tercei;-o aluno
T6, não é levada em conta na continuidade d~
A - O índio, o garotinho.
diálogo; (
P - Exatamente ... Bem você não vai cor-
. . . !
ngn- agora ... va1 corng1r na sua ca- 3. PERG (Nós já estudamos o vocabulário não
sa ... você entende novamente e faz é?): neste mesmo turno temos uma seqüência de
atos, de fala e a pergunta que o inicia, na verda-
... aqui eu não quero .
de, e quase retórica, já que não espera resposta.
Na verdade, esta pergunta pode funcionar efeti-
vamente como uma afirmacão·
Neste recorte, temos nove turnos ocupados
4 . R (O guaraná, olhinh~s de gente?) é uma
pela professora e dez turnos ocupados pelos alu-
resposta ou candidata a resposta à pergunta d o
nos. Excluídos os turnos 1, 2 e 19, os demais se
turno anterior, embora em forma de pergunta.
constroem numa seqüência de pergunta/respos- I . Novamente, temos um ato de fala indireto .
ta. Este diálogo poderia ser assim representado:
. 5. ~~D (Bem você não vai corrigir agora ...
vm corng1r na sua casa ... você entende novamen-
(4 ') ORDEM' AÇÃO 11 AFIR (INF) -+ PERG -
te e faz ... aqui eu não quero): trata-se de uma se-
(R1, R z, R32) - PERG- R- (PERG 3, AVISO,
qüência de ordens (a ordem "três" se desdobra
PERG) - R - (ORD, ORD, PERG) - R - em duas) que é dirigida diretamente ao aluno do
PERG- R 4 - (AV NEG, PERG)- R- (AV
T14, mas que, t~stemunhada pelo auditório como
NEG, R, PERG)- R- (A V POS, ORD, ORD, ~·. \
um todo, passa a valer para todos).
ORD, ORD, ORDs). L
r· . L~vando em conta que nos processos intera-
onde Ii cwnais, ao nos constituirn1os como locutores a
I
152 - [ 153

I
cada turno de conversação, estamos investindo qüências que chamam a atenção. O aluno propõe
nos atos lingüísticos que praticamos, no sentido um enunciado candidato à resposta . Segue-se
de que a imagem que se tem de si própdo é uma uma avali ação negativa, com uma atividade me-
identidade que a interação constrói e, ao mesmo talingüística da professora. Enunciado e enuncia-
ternpo, ar.neaça, que dizer do diálogo do nosso ção são aqui interessantes: à proposta do aluno,
exernplo (4)? a professora, não aceitando, repete um sintagma
Antes de mais nada, o diálogo se dá a propó- de sua pergunta anterior (o principal persona-
sito de um texto lido, com perguntas previamen- gem ... ). Quer dizer, não é necessário o professor
te f orn1u ld
a as para resposta em casa , no ca-
11 ""

dizer "errado" ao a luno: o simples fato de reto-


derno", pelos alunos. Pode-se estabelecer, então, mar o sintagma avalia negativamente a "candi-
que o propósito desta "conversação didática" é
datura" proposta. Imediatan1ente a pergunta que
a aferição das respostas dadas, cotejando-se com
se segue, neste turno, "suspende" o tópico da con-
as "respostas que deveriam ser dadas". Assim, po-
versação (a aferição) para construir novo tópico:
demos dividir este diálogo em três partes:
o conceito de persorzagenz: os \Urnos 15 a 17 são
dedicados a este novo tópico ..t-E. segue-se, nova-
a) a preparação ao "diálogo de aferi_ção": T1 a
ll1o .
i
\ mente, uma candidatura ~ resposta (1ll6), não
' aceita pela professora, mas agora não porque a
b) a aferição propriamente dita: T11 a T1 9 (na 1 ~
parte) candidatura é em s i inadequada, mas por sua in-
c) as conseqüências da aferição: T1 9
completude. Note-se que no Tl7 a professora ini-
cia sua avaliação negando validade à resposta da-
Evidentemente, até pela participação em pro- da; mas imediatamente, no mesmo turno, diz
cessos semelhantes em ocasiões anteriores, alu- "personagen1 pode ser uma pessoa, um animal,
nos e professora sabem, desde a preparação, o até um objeto". Deve-se compreender então que
propósito da conversação que se dar~. A primei- o enunciado anterior (não é pessoa) não pode ser
ra parte, neste sentido, contém uma ordem e um compreendido como negação incidindo sobre
conjunto de trocas de informações pertinentes pa- "pessoa", mas sobre a exclusividade de ser só
ra que se dê o propósito efetivo. A notar, nesta pessoa.
parte, é a absoluta falta de conseqüências do tur- Independentemente de considerações de ou-
no 6: o aluno, na troca de informações que se es- tra ordem, importa aqui o movimento: a contri-
tá processando, diz "Eu não (terminei)", mas sua buição do aluno é desqualificada "ab initio", mes-
fala não é considerada pela professora: segue-se mo que contenha parte da resposta desejada. Que
a dança, mesmo que um dançarino esteja fora da revela isto? Se lembrarmos o exemplo (3), onde
pista. Na segunda parte, é o turno 14 e suas conse- todas as candidaturas à "comparação" dos olhos

154 155

.1
pretos não são aceitas enquanto não se chega ao que tange ao conteúdo ou tópico do diálogo; b)
clichê desejado, podemos aproximar as orienta- há o reconhecimento desta diferença e a vonta-
ções que se dão em diálogos deste tipo: só cabem de de superá-la, isto é, entra-se no processo dis-
respostas cristali zadas, prontas, acabadas. As con- cursivo com a pretensão de superar as diferen-
tribuições dos alunos, nos do is diálogos de nos- ças; c) estas condições organizam as ações lingüís-
sos exemplos, não só são desclassificadas quan- ticas praticadas no diálogo .
do possíveis respostas, mas também o são quan- Mas os dois discursos se distinguem: o dis-
do contêm parte da resposta desejada. O i:urno curso de sala de aula, que se pretende um discur-
17 não se inicia com uma avaliação positiva da so ensino-aprendizagem, na verdade distribui de
professora, com novas perguntas que permitam forma totalmente diferenciada os papéis dos par-
novas candidaturas até se chegar a uma respos- ticipantes e as funções dos atos praticados. To-
ta mais completa. Inicia-se pela avaliação nega- memos a pergunta para nossa reflexão. Quando
tiva, ainda que a colaboração prestada tenha que alguém quer aprender algo, e imagina que seu in-
ser retomada posteriorm.ente. Isto tem suas con- terlocutor lhe possa ser útil, dirige-lhe pergun-
seqüências: a participação em diálogos como es - tas cujas respostas poderão Slliprir "a falta de co-
tes, na medida em que vivenciados pelos alunos, nhecinl.ento desejado". Ne §_te ~entido, a iniciati-
vai-lhes ensinando : só se responde quahdo se tem va da ação é de quem aprende, e não de quem en-
a resposta que a professora quer. Não quero corn sina. No discurso de sala de aula, é o inverso o
isso dizer que outros tipos de d iálogos não ocor- que ocorre: pergunta quem sabe já a resposta (é
ram, e mesmo que contribuições de alunos não o que podemos verificar em nossos dois exemplos
são nunca consideradas. Dizer isso seria uma ab- e em muitos outros), ou quem o interlocutor (alu-
soluta inverdade. Mas se alguma contribuição se no) imagina que já sabe a resposta. Sua ação lin-
pode obter das análises mais estritamente lingüís- güística de responder é, então, marcada por es-
ticas sobre diálogos de sala de aula, uma delas sa situação: suas respostas serão "candidatas" à
sem dúvida é que no diálogo de saJa de aula resposta certa, cabendo a quem perguntou (o pro-
invertem-se papéis e funções dos ato:s lingüísti- fessor) o poder de avaliar a resposta dada. As pos-
cos praticados. Aprofundemos um pouco esta sibilidades, portanto, de "quebrar a cara" são
questão . muito maiores nos diálogos de sala de aula do que
Ehlich (1986), em estudo sobre o diálogo es- em outras circunstâncias, em que a resposta ade-
colar, contrapõe dois tipos de discursos: o discur- quada resulta de uma construção entre os parti-
so ensino-aprendizagem e o discurso de sala de cipantes11.
aula . Em ambos há pontos em com;um: a) entre l Obviamente, nem sempre o aluno entra no
os participantes, há uma distribuição desigual de I processo dialógico escolar com a pretensão de su-
conhecimentos e, portanto, uma assimetria no i perar a diferença de conhecimentos: sabe-se per-
I
156 I
I
157
I
. I
I
I
I .
feitamente bem o quanto os "objetos" de estudos respostas que estão no horizonte (para quem a s
escolares lhes são indiferentes. I sto provoca a ne- " sabe") como respostas histor icamente dadas aos
cessidade contínua de "motivar" o aluno a "que- problemas em estudo .
rer aprender" o que a escola acha que aprendi - Nossos exemplos (3) e (4) parecem confirmar
do deve ser. Daí, a p ergunta didática nem sem- qu e
pre ser de " m era aferição", m as ser usada pelo
profess or con1o forma de levar o a luno a se inte- O professor di rige os turnos de fala . Em toda relação
educativa, as t roca s tendem a se cons titui r em três in-
ressar pelo conteúdo que quer transmitir. E aqui terven ções, o al uno se en contra "ensanduichado" en-
se r et om a toda a construção social d a identida- tre uma a bertu ra e um fechamento do professor. Este
de de "ser professo r": aquele que tran smite um sistema é geral no di álogo pedagógico. O professor abre
sab er; some-se a isto que es te "sabe r" é tomado a troca por u ma pergunta que, utilizando-se a ten11i-
n ol ogi a do grupo de Genebra, constitui um ato diretor
pelo profess or como "verdades" e não como hi- com função iniciativa. Este impõe ao in te rpela do três
póteses d e explicações e teremo s a fixidez com \. obrigações discurs ivas: re agir ve rb a lm ente (um ges to
que os di á logo s de sala d e aula se d ão , com mu- ou urna rec us a são improváveis), d ar uma res po sta (um
comentário ou uma pergunta são raros), dar uma boa
danças significa ti vas na di s tribuição dos papéis resposta. A resposta do aluno ~n s titui um ato subor-
entre os interl ocuto res em comparação à práti- dinado com fun ção reativa .que pretend e sat isfaze r a s
ca não escolar, com conseqüências nos valores três obr igações precedentes. Um a nova intervenção do
professor constitui um ato s ubord inado com função
a tribuídos ao s atos de fala praticado s . Ass im, a reativa que encerra a troca se o aluno satisfez as trê s
análise de diálogos efetivos de sala de aula pode obrigações; h á uma retomada se uma das obrigações
mostrar como hipóteses científicas são traduzi - não for satisfeita. A retomada pode ser um a r efutação
das em conteúdos escolares, fixando respostas e, (não, é falso) ou um a concessão (sim, ma s ... ) seguidas
d e uma nova pergunta acompanhada de reformulações
porta nto, centrando-se numa distinção entre cer- ou de p recisões . O ciclo se repete até a sati sfação total
to/errado que vai se formando como produto fi- e o fechamento pelo professor. Este tem sempre a pri -
rzal do p rocesso de escolarização . É neste senti- meira e a últi ma palavra e este poder lhe vem da sua
posição na in sti tuição escola r que determina sua posi-
do que o ensino se constrói como rec;onhecimen- ção na interação.
to e reprodução. . (Legrand-Gelber, 1988: 87)
A as simetria se transforma em autoridade,
porque hipertrofiada, as contribuições dos alu- Se quisermos um ensino de conh ecimen to e
nos sendo constantemente desclassificadas. Mes- produção, como a produção de textos participa-
mo que algumas vezes ton1adas em conta, elas o ria na constru ção de tal ensino? Antes d e qual-
são para serem "corrigidas" e não para serem ex- quer resposta, fixemos um ponto: no q u e se se-
pandidas, o que somente é possíve) quando não gue não se pretende "abolir" a assimetria própria
se parte para o proces so com respostas previa- do discurso ensino-aprendizagem, mas relativizar
mente fabricadas 12 , como verdades, mas como as posições que têm sido aprofundadas pela es-

15 8 159
para o professor. Fora isto, e teríamos a descon-
cola, recuperando a ambos (professor e alunos)
sideração pela palavra, o que significa, na verda-
COlTlO sujeitos que se debruçan1 sobre um objeto
de, uma não devolução da palavra ao outro. Ou-
a conhecer e que compartilham, no discurso de
vidos moucos, a não escuta é na verdade uma não
sala de aula, contribuições exploratórias na cons-
devolução da palavra; é negação ao direito de pro-
trução do conhecimento. As contribuições do pro-
ferir. A não escuta do professor ou seu mutismo
fessor, tão contribuições quanto as dos alunos,
empurrariam a ambos, alunos e professor, à rno-
serão, dependendo do tópico, maiores ou meno-
nologia. Tomado este princípio como ponto de
res . Não lhe cabe "esconder" ou "sonegar'' infor-
partida: o aluno co1T10 locutor efetivo, podería-
mações de que disponha, sob pena de continuar
mos traçar, com base nos itens acima, o seguin-
a se anular como sujeito. Sua atitude, no entan-
te esquema:
to, em relação ao conhedmento, é que muda: as
respostas que conhece, por sua formação (que não ~-- ASSUMIR-SE COMO LOCUTOR I
é apenas escolar, mas que está sempre se dando + (d) t
na vida que se leva), são respostas e não verda- implica implica
des a serem" incorporadas" pelos alunos e por ele
próprio. i

Retomemos considerações anteribres, que


nos forneceram um certo quadro de condições ne-
l
TER O QUE DIZER
(a)
ESCOLHER ESTRATEGIAS
PARA DIZER
(e)
cessárias à produção de um texto:
a) se tenha o que dizer;
b) se tenha u ma razão para dizer o que se tem
a dizer;
J
supõe
l
supõe

dizer;
c) se tenha para quem dizer o que se tem a
j
RAZÕES PARA DIZER
1
INTERLOCUTORES
d) o locutor se constitui como tal, 1enquanto (b) . A QUEM SE DIZ
ex1ge (c)
sujeito que diz o que diz para quem diz :(o que im-
plica responsabilizar-se, no processo, por suas
falas);
e) se escolhem as estratégias para realizar (a),
L RELAÇÃO rLELOCUTIVA _ _j
A lei tu r a do quadro , com flechas em dois sen-
(b), (c) e (d).
A devolução da palavra ao aluno faz deste o tidos, quer representar que ninguém se assume co-
condutor de seu processo de apr,endizagem, mo locutor a não ser numa relação interlocutiva,
assumindo-se como tal. Isto não quet dizer a de- onde se constitui como tal: assumir-se como locu-
cretação de um "nada a fazer ou a declarar" tor implica estar numa relação interlocutiva.

161
160
Assumindo-se, pois, a relação interlocutiva 13 cutar. Não fosse assim, não haveria trabalho, mas
como princípio básico a orientar todo o proces- tarefa a cumprir. Ora, como as famílias têm his-
so, a ação do professor poderá se dar, ele tarn- tórias diferentes (ainda que semelhantes), a "nar-
bénl locutor/interlocutor, tomando cada um dos ração" de tais histórias, do interior delas pró-
aspectos à direita ou à esquerda como "tópicos" prias, fornece razões para trazê-las para o grupo
do processo de ensino/aprendizagem. de colegas que, partícipes do trabalho, compar-
Pensemos, a partir daí, algumas práticas pos- tilham descobertas, diferenças e semelhanças. O
síveis, entre outras : trabalho produzido no projeto (em forma de "li-
1. Definição de interlocutores (c): tomando-se vrinhos", "manuscritos", etc .) tem, assim, desti-
em conta as diferentes instâncias de uso da lin - nação diferente das "redações que se fazem pa-
guagem e privilegiando-se, na escola, a instância ra a escola", já que seriam textos produzidos na
púbbca de uso da linguagem, pode-se definir urn escola, movidos pela vontade de descobrir um
projeto de produção de textos com destinação a passado que atinge a cada um dos alunos em par-
interlocutores reais ou possíveis. Exemplifique- ticular. O registro escrito desta história recupe-
mos : um projeto a ser desenvolvido poderia ser ra uma das funções da escri~a.
a recuperação da história da família ,do próprio 3. Ter o que dizer (a): não se trata mais, num
aluno; recuperá-la significaria, para: mim, não tal projeto, de devolver à escola o que a escola
simplesmente um "tema" para os textos, mas diz, mas sim de levar para a escola o que também
principalmente a definição da própria família co- a escola não sabe (ainda que possa dela ter uma
rno destinatária dos textos que se produzem no imagem) . A experiência do vivido passa a ser o
projeto. Um texto destina-se a outro, seu leitor objeto da reflexão; mas não se pode ficar no vivi-
provável, para o qual (os quais) está-se produzin- do sob pena de esta reflexão não se dar. O vivido
do o que se produz. Outras possibilidades podem é ponto de partida para a reflexão . Aqui a ação
ser: a confecção de livros de histórias; a organi- educativa é fundamental, não só pelas compara-
zação de jornais murais ou jornais escolares; a ções que professor e alunos podem ir estabele-
organização de "conferências", exposições e de- cendo entre as diferentes histórias, mas sobretu-
bates de temas; etc. Importa aqui é não reduzir do pelas ampliações de perspectivas que cada his-
tais propostas a meros "instrumentos didáticos", tória, individual, permite. Suponha-se, por exem-
mas construí-las, em conjunto, como projetos de plo, que vários alunos da classe, ao contarem a
trabalhos do grupo. t rajetória da família, coincidam no fato de que
2 . Razões para dizer (b): um projeto de traba- seus pais moraram em outro s lugares e que se
lho tal como assinalado somente1 se sustenta mudaram em função de oportunidades de traba-
quando os envolvidos neste trabalho encontran1 lho. Isto permitirá a discussão de migrações; do
motivação interna ao próprio trabalho a exe- rural par a o urbano; entre diferentes cidades, etc.

162 163
Compreender os processos migratórios, a partir Centrar o ensino na produção de textos é to-
da própria migração de sua farnília, será a an1- mar a palavra do aluno como indicador dos ca-
pliação necessária de conhecimentos que permi- minhos que necessariamente deverão ser trilha-
tirá ao aluno retornar ao fato vivido compreen- dos no aprofundamento quer da compreensão dos
dendo-o de forma distinta de um acontecimento próprios fatos sobre os quais se fala quer dos mo-
aleatório. É precisamente este movinzento que dos (estratégias) pelos quais se fala . Não preten-
importa: do vivido particular, somado a outros do com isso dizer que os textos produzidos, no
vividos particulares revelados por seus colegas, final deste encaminhamento, se tornem automa-
a reflexão e a construção de categorias para com- ticarnente "narrativas" exen1plares, "poemas"
preender o particular no geral em que se inserem. exemplares. Que todo o aluno, em conseqüência
É esta uma das finalidades das práticas de leitu- de um tal projeto, se torna ipso facto um escri-
ras de textos na escola, a que retornaremos no tor no sentido de produtor de uma nova ficção
próximo i tem. a mudar os rumos da história da literatura. Co-
4. A escolha de estratégias (e): a escolha não mo a Haquira Osakabe (1988), incomoda-metam-
se dá em abstrato . Elas são selecionadas ou cons- bém esta pedagogia da facilitq_ção. No populismo
truídas em função tanto do que se tem a dizer
pedagógico que caracteri~a â facilitação, qual-
quanto das razões para dizer a queh1 se diz.
quer texto do aluno é elevado à categoria de ex-
Considerando-se, por exemplo, as modalidades
celência, em prosa e verso (do elogio barateado).
oral e escrita, é preciso notar que as estratégias
Compreender a distância que separa o texto que
são diferentes. Daí os relatos orais em sala de au-
la, antes da própria escrita, oferecerem já opor- produzimos de outros textos produzidos por ou-
tunidades para discussões sobre estas diferenças tros só torna a diferença uma forma de silencia-
(não como um ponto a ser estudado para se sa- menta quando tais textos são vistos como mode-
ber as diferenças, mas como uma questão que se los a seguir, e não como resultados de trabalhos
coloca para o trabalho que se quer executar em penosos de construção que deveriam funcionar
face do projeto em que estão professores e alu- para todos nós como horizontes e não como mo-
nos engajados). Talvez seja neste tópico que mais delares . Repeti-los em nada os lisonjeia. Tê-los em
se dará a contribuição do professor que, não sen- I mente pode nos ajudar a julgar a relevância de
do destinatário final da obra conjunta que se pro- 'l nossos textos.
duz, faz -se interlocutor que, questionando, suge-
rindo, testando o texto do aluno como leitor,
constrói -se como "co-autor" que aponta caminhos I
__ J 3.2.2. A leitura de textos
possíveis para o aluno dizer o que quer dizer na I
forma que escolheu. Retornaremos 'a esta ques- I Na perspectiva assumida neste livro, grande
parte do trabalho com leitura é "integrado" à pro-
tão ao tratarmos da "análise lingüística".
1
l
164 1 165

I
lj
dução em dois sentidos: de um lado ela incide so- na produção do texto que se oferece à leitura, se
bre "o que se tem a dizer", pela compreensão res- marcou pelos leitores que, sempre, qualquer texto
ponsiva que possibilita, na contrapalavra do lei- demanda. Se assim não fosse , não seria interlo-
tor à palavra do texto que se lê; de outro lado, cução, encontro, mas passagem de palavras em
ela incide sobre "as estratégias do dizer" de vez paralelas, sem escuta, sem contrapalavras : reco-
que, em sendo um texto, supõe um locutor/autor nhecimento ou desconhecimento, sem compreen-
e este se constitui como tal da mesma forma apon- são.
tada por nós na produção de textos no item an- As mesmas razões que levam ao deslocamen-
to do autor como fonte única dos sentidos levam
terior.
O produto do trabalho de produção se ofe- eo ipso ao deslocamento do leitor como fonte úni-
ca dos sentidos de sua leitura 14 . O texto é, pois,
rece ao leitor, e nele se realiza a cada leitura, num
o lugar onde o encontro se dá. Sua materialida-
processo dialógico cuja trama toma as pontas dos
de se constrói nos encontros concretos de cada
fios do bordado tecido para tecer sempre o mes-
leitura e estas, por seu turno, são materialmen-
mo e outro bordado, pois as mãos que agora te- te marcadas pela concretude de um produto com
cem trazem e traçam outra história. Não são "espaços em branco" que se e4põe como acaba-
mãos amarradas - se o fossem, a leitura seria do, produzido, já que resuhado do trabalho do
reconhecimento de sentidos e não produção de autor escolhendo estratégias que se imprimem no
sentidos; não são mãos livres que produzem o seu dito. O leitor trabalha para reconstruir este dito
bordado apenas com os fios que trazem nas veias baseado também no que se disse e em suas pró-
de sua história- se o fossem, a leitura seria um prias contrapalavras. Na imagem de Proust
outro bordado que se sobrepõe ao bordado que (1905):
se lê, ocultando-o, apagando-o, substituindo-o.
São mãos carregadas de fios, que retomam e to- Sentimos muito bem que nossa sabedor·ia começa on-
mam os fios que no que se disse pelas estratégias de a do autor termina, e gostaríamos que ele nos desse
respostas, quando tudo o que ele pode fazer é dar-nos
de dizer se oferece para a tecedura do mesmo e
desejos. Esses desejos, ele não pode despertar em nós
outro bordado. , senão fazendo-nos contemplar a beleza suprema à qual
É o encontro destes fios que prodtiz a cadeia o último esforço de sua arte lhe permitiu chegar. Mas
de leituras construindo os sentidos de um texto. por uma lei singular e, aliás, providencial da ótica dos
espíritos (lei que talvez signifique que não podemos re-
E como cadeia, os elos de ligação são aqueles for- ceber a verdade de ninguém e que devemos criá-la nós
necidos pelos fios das estratégias escolhidas pe- mesmos), o que é o fim de sua sabedoria não nos apa-
la experiência de produção do outro (o autor) com rece senão como começo da nossa, de sorte que é no
momento em que eles nos disseram tudo o que podiam
que o leitor se encontra na relação interlocutiva
f nos dizer que fazem nascer em nós o sentimento de que
de leitura. A produção deste, leitor; é marcada ainda nada nos disseram.
pela experiência do outro, autor, tal como este, (Proust , 1905: 30-31)

166 167
A sublinhar nesta passagem, que pode seres- à necessida de do estabelecimento destas relações.
tendida também a textos não literários, dois as- Daí, sua legüimidade se estatuire não_se consti-
pectos: a) o esforço do autor na construção de sua tuir. Os alunos, leitores e portanto mterlocuto-
obra, que em nossos termos se concretiza como res, lêem para atender a legitimação social da lei-
trabalho; b) a construção da "sabedoria" do lei- tura externamente constituída fora do processo
tor (tan1bém trabalho) que opera a partir do tra- em que estão, eles, leitores/alunos, engajados.
balho do outro. Com que legitimidade são eles convocados para
Consideremos dois aspectos que, somados esta relação ?
aos aspectos já tratados, podem dar uma visão
mais explícita da proposta de ensino como pro- Evidentemente, todo representante da autoridade es-
dução de conhecimentos . capa a t a l lei. (É um privilégio ligado às profissões de
professor, de moralista, de autor, e, em geral, de inte-
lectual ter o direito de aborrecer: quem as exerce goza
da reputação de ter palavras que por si mesmas mere-
3.2.2.1. A perigosa entrada do texto para a sala cem ser ditas. Porque, entrando na d efii1ição do verda-
deiro, do belo e do bem - em nosso universo intelec-
de aula tual - elas justificam ipso facf!:o sua própria enuncia-
ção e são sempre "boas p~ra dizer").
A primeira pergunta a fazer aqui é para que (Ducrot, 1972: 1 7)
se lê o que se lê? Como ens~na DuCl~()t_ quenão se
pode falar a atgl1ém sem imaginar que o que se Ancorad-ª na au_toridade, a legitimidade se
fala pode lhe interessar, podemos nos perguntar impõe. Os procediii1e:Q.tos são,_aqui, os mesmos
como se estatui a legitim1dade das leÍturas que que, na passagem do produto do trabalho cientí-
se fazem em sala de aula. fico a conteúdos de ensino, reificam estes produ-
Se considerarmos as práticas normalmente tos. Tornãm h1póteses verdades absolutas. Tor-
propostas por livros didáticos, toda a lição ou uni- nam textos, que se elegem para as aulas, em lei-
dade destes lívros, organizados em upidades e, tura obrigatória, cujos temas valem por si e cu-
em geral, sem unidade , iniciam-se por um texto jas estratégias de construção são também válidas
em si. Reifi ça~1_-s e QS textos.E, contraditoriamen-
para leitura. Como tais leituras não respondem
te, '' repartíndo-Q~.'~__pela__ esc_oj_ariz?,ç_ã o, sâcrali-
a nenhum interesse mais imediato daqueles que
iam-no§ (e na ambigüidade do nos incluam-se to-
sobre os textos se debruçam, a relação interlo-
aos os seus sentidos: os textos, seus autores, seus
cutiva a ocorrer deverá se legitimar fora dela pró-
selecionadores e, por mais incrível que pareça,
pria. Ou seja, me~n:w .quan_çlq a leitur..a.._§_e inspira seus leitores, pois estes, no contato magicamen-
em conc~12ções mais interessantes spbre textos te imposto, "eruditos" se tornam porque leram
e sobre a leitura, as-reraçôes interlocutivas a se o que selecionado a ler se lhes "deu" a ler - es-
éinpreeenderem em sala de aula não respondem colariz?-dos _~stão).

168 169
Não se trata, pois, de textos buscados por su- experiência (real ou imaginária) para dela fala-
jeitos que, querendo aprender, vão a eles cheios rem: buscam e inspiram-se nela para extrair daí
de perguntas próprias. E mais urna vez o que po- o que dizer. E ao dizê-lo, desvelam as catE~gorias
deria ser urna oportunidade de discurso ensi- (ou sistema de referências) em que interpretam
no/aprendizagem, um diálogo em sentido enfáti- estas experiências, su._éts vidas. É destas interpre-
co de fala conjunta, de um com o outro em bus- tações que se podem tirar tópicos que, discuti-
ca de respostas 15 , produz-se o discurso de sala dos na sala de aula, demandam a busca de outras
,__ de aula que, corno a pergunta didática, faz-g:OJex- informações, de outros modos com que outros vi-
to um meio de estimular operações mentais e não ram e vêem experiências semelhantes. É neste
um meio de, operando mentalmente, produzir-co- sentido que a leitura incide sobre "o que se tem
nhecimentos. NãQ há perguntas prévias para se a dizer" porque lendo a palavra do outro, posso
ler. Há perguntas.que se fazem porgu~ se leu. E descobrir nela outras formas de pensar que, con-
é muito freqüente os alunos lerem primeiro as trapostas às minhas, poderão me levar à constru-
perguntas que se seguem ao texto de lei tu r a do ção de novas formas, e assim sucessivarnente 16.
livro didático para encontrarem alguma razão pa- Não se creia que estou a d~fender um "prag-
ra o esforço que farão. Mais freqüentemente ain- matismo" como inspiração~ da leitura a se fazer
da, corno tais perguntas podem não exigir qual- em sala de aula. Estou defendendo, isto sim, que
quer esforço, de posse delas, o aluno passeia pe- não p_artiçipamos gratuitawente e imotivamen-
lo texto e sua superfície em busca das respostas te de relações interlocutivas, e que são os tipos
que satisfarão não a si, mas à aferição de leitura àerefações interlocutivas em que nos engajamos
que livro didático e professor podem vir a fazer. qqe melhor podem inspirar a ação pedagogica a
Para fugir a isso, o "remédio pedagógico" se empreender. Assim, atitudes produtivas nalei-
tem sido criar motivações que, por sua exterio- tura e que fazem da leitura urna produção de sen-
ridade, nada mais fazem do que ancorar pelos la- tidos pela mobilização dos "fios" dos textos e de
dos urna legitimidade que não se põe s,ob suspei- nossos próprios "fios" podem ser recuperadas de
ta, lTlas que rui sobre seus pés de barro. nossa história de leituras externas à escolai7.
Corno construir outra legitimidade que não a) Posso ir ao texto em busca de uma respos-
se assente na autoridade? É, aglli, segundo aJ2~rs­ ta à pergunta que tenho.-Trata-se aqui de pergun-
pectiva que venho defendendo, que a leitura se tar ao texto. -Ê--o que se pode chamar de leitura-
integra ao processo de produção. No item ânte- busca-de-informações. Ora, não se buscam infor-
rior, já vimos como e sta pode ser deslocada, em mações para nada. Somente quando queremos au-
seus ternas, por um projeto de produção de tex- mentar nossa adesão e a de outros a teses que de- ··
tos assun1idos por seus autores. Ora; estes, para fendemos ou quando suspeitamos de teses que ou-
produzirem, prec-isam voltar-se para sua própria tros defendem ou que nós mesmos defendemos,

170 171
é que buscamos maiores informações que nos mi(s)tificações ou são suscitadoras de novas per-
permitam essa adesão/abandono da tese. É Óque- guntas. É claro que, para a manutenção da ordem
rer saber mais a razão que nos leva a buscar em (e do progresso de uns), pela massificação e pela
outros suas posições, suas propostas. Mas este alienação, as respostas encontradas se apresen-
querer saber mais não se dá sem complemento: tam como soluções definitivas: a elas não cabe
sen1pre que remos saber mais sobre a lgun1a coi- produzir novas perguntas, mas imobilizar nelas
sa para, compreendendo-a de diferentes modos, a historicidade dos sujeitos e de seu s sistemas de
destas novas compreensões fazer uso, ainda que referências. No entanto, como se dá que alguns
este uso não esteja imediatamente definido nem escapam às insídias da alienação e massific~ção?
seja pontualmente limitado. E por que os que escapam desejam, semp re , que
b) Posso ir ao texto para escutá-lo, ou seja, outros os acompanhem? .
Há ..respostas para todas
não para retirar dele uma resposta pontua l a uma estas p erguntas? A única que no momento me
pergunta que lhe é prévia, mas para retirar dele · posso oferecer (oferecendo-a aos leitores) tem a
tudo o que ele possa me fornecer_(e eu, no mo- ver com a utopia; que assume que
mento desta leitura, possa detectar). É o que se
pode chamar leitura-estudo-do-texto: Esforço o destino do homem é cumprir-se na sua singularida-
maior, esta leitura confronta palavras: a do au- de e (... ) lhe c ompete, na medida de seu próprio desti-
tor com a do leitor. Como a palavra do autor, so- no, uma função continuamente impertinente de
constituir-se a cada momento num s e r pertinente.( ... )
zinha, não produz sentido, minha escuta exige-me Menos do que uma decorrência "natural", a reivindi-
uma atitude produtiva. Que razões podem levar cação desta rupt ura [entre um discurso explicativo j á
a um estudo de um texto? Novamente, aqui, o que- formulado e a formu lação de explicações "impertinen-
temente pertinentes" na tensão de se constitu ir sujei-
rer saber mais é imprescii1dível: o_leit9i.J1.ã.o dis- to] funda um princípio de sobrevivência: a vida formu-
posto ao confronto, ao risco de constituir :.s e nas lada em sobressaltos. Esse é o "espaço" em que se cons-
interlocuções de que participa, e este risco aponta titui o s uj eito do djsc.!irso,incompletuci.~.P9i definição.
(Osakabe, 1988: 57 a -59)
para a possibilidade de re-fazermos continuamen-
te no-ssos 'sistemas de referências, de cori~l)reen­
c) Posso ir ao 'te:x,to nem para perguntar-lhe
s.ão do mundo..(ou de leitura do mund0, nas 12-ala-
nem para escutá-lo, mas para usá-lo na produção
vras de Paulo Frei.re, 1982), poderá passear os de outras obras, inclusive outros textos. Prets;x-
ofFios sobre o texto sem escutá-lo. tos legítimos, em qualquer circunstância. Penso
Pela segunda vez este "querer saber mais" aqui, por exemplo, no diretor de teatro que, mon-
aparece. Como justificá-lo? Como surge no ho- tando uma peça, sua obra não se mede pela fide-
mem esta vontade de saber? O que rros faz "per- lidade ao texto que a susténta, mas pelo novo tex-
guntadores"? Ou o que apaga em nos as pergun- to (montagem) que o faz reaparecer. A leitu ra-
tas? As respostas, sabe-se, ou se cristalizam como pretexto não me parece em si um mal (aliás,

172 173
haverá alguma leitura sem pretexto?), sob pena t_ra na produção. O que se diz ou as formas do di-
de um endeusamento do dito e, por ricochete, a zer podem levar a leituras de textos que, amplian-
decretação de sua morte na imobilidade de ser do nossos horizontes de análise (pela incorpora-
o que é, sem predicativos. Evidentemente, há pre- ção crítica de categorias de compreensão do mun-
textos que, não por serem pretextos, se ilegiti- do que não conhecíamos), ampliam o que temos
mam. Talvez o melhor exemplo disto seja a utili- a dizer; a forma como outros disseram o que dis-
zação do texto que, na escola, se faz para a dis- seram (já vimos que na relação interlocutiva tais
cussão da sintaxe de seus enunciados. A ilegiti - elementos não se separam em si, embora possa-
midade não me parece surgir do estudo sintáti- Inos tematizar ora u1n aspecto, ora outro, con1o
co em si, mas da cristalização de tais análises que comprovam as atividades epilingüísticas e meta-
se não apresentam como possíveis mas como ver- lingüísticas) amplia nossas possibilidades de
dades a que só cabe aderir, sem qualquer pergun- dizer.
ta. Qualquer texto, oral ou escrito, nos of~rece Antes de nos dedicarmos ao segundo aspec-
ocasião para tentar descobrir os mecanismos sin- to desta perigosa entrada do texto na sala de au-
táticos da língua; e esta não é portanto a ·ques- la, tomemos um exemplo qut concretize e resu-
tão. O problema está em que não é a descoberta ma as idéias expostas.
de tais mecanismos que funciona de fato como
pretexto . É a mera incorporação de explicações Exemplo 51 8
sintáticas já prontas que ilegitimam esta atitude
de uso do texto. ... Eu queria que n1eus alunos escreves-
d) Posso, por fim, ir ao texto sem pe:r:_guntas sem bastante, então, disse a eles para colo-
previamente formuladas, sem querer escrutiná- carem no papel tudo o que havia acontecido
lo por minha escuta, sem pretender usá-lo: des- durante o dia. Eles fazem tanta coisa, não é?
pojado, mas carregado de história. Éo que pode ... Você pensou em partir da experiência
ser chamado de l~_itura-fr_uiçãQ. Não ~ a imedia- da criança?
tez a linha condutora desta relação com os ou- ... Pois é, mas não gostei dos resultados.
tros, mas a gratuidade do estar com os outros, Vejam, por exemplo, esse aluno, Luís. Vocês
e com eles se constituir, que orienta este tipo de acham que eu poderia dar nota numa coisa
diálogo. dessas?
Os quatro "Ji.po_s" de relações aqui aponta-
dos não esgotam as possibilidades, nem é meu ob- Meu dia
jetivo tentar esgotá-las. Exemplificam, apenas, al-
ternativas de "entrada" do texto no movimento Eu acordei e fui escovar os dentes e de-
contínuo de ensino/aprendizagem que se cen- pois fui toma café . Aí eu fui arrumar a mi-

174 175
nha cama. E depois fui jogar bolinha e depois jogar bolinha e o que é jogar bola? quais as re-
fui joga bola. E depois eu fui anda de bicicle- gras destes jogos? poderia se fazer isso sozinho?
ta e depois eu fui au moça ai eu fui asisdi te- como me saí nestes jogos? ganhei? perdi? será
levisão. E depois eu tomei banho e fui faze que saberia dizer as regras do jogo de bolinha,
a tarefa e depois vim prá escola. ensinando-as para outro?
(texto de aluno da 4.a série) f) e depois eu fui almoçar: quem fez o almo-
ço? a mãe? a empregada? o pai? eu estava com
Antes de mais nada, afastemos a preocupa- fome? comi o quê? que necessidades fazem sur-
ção em dar uma nota. A pobreza aparente do co- gir a fome, que nos leva em busca do alimento?
tidiano contado numa estrutura do tipo "um fa- con1o ficam então os que não comem tantas ve-
to puxa o outro" (cf. Franchi, E ., 1984) abre-se em zes por dia?
possibilidades que permitiriam reflexões múlti- g) e fui assistir televisão: vi o quê? por que
plas sobre este fazer cotidiano. Apontemos algu- as pessoas assistem televisão? alguma propagan-
mas: da da pasta de dentes que usei quando acordei?
a) eu acordei: por que dormimos? que sonhos como era esta propaganda? ettme reencontrei ne-
e pesadelos a noite nos trouxe? ao aco~dar, que la? por que sim? por que .•nã~?
imaginamos do dia a construir? h) e depois eu tomei banho: por que se toma
b) fui escovar os dentes: que pasta você usou? banho? em todos os lugares e em todas as famí-
qual o gosto? desde quando escovamos os den- lias se toma banho antes de ir para a escola?
tes e para que os escovamos? o gosto ruim nabo- i) e fui fazer a tarefa: por que a escola dá ta-
ca, por que se forma? refa a fazer? pode-se a prender sem fazer tarefa?
c) depois fui tomar café: o que na.via no meu se eu não tivesse feito a tarefa, o que acontece-
café? repete-se sempre o mesmo em meus cafés ria? a gente, num dia cheio que se fez de brinca-
da manhã? há quem tome café todo o santo dia, deiras, pode esquecer de fazer a tarefa? quando
e há os que não tomam: por quê? esquecemos porque ficamos brincando, alguém
d) aí eu fui arrumar a minha cama : sempre aceita esta justificativa?
sou eu mesmo que arrumo minha camá? e os ou- j) e depois vim para a escola: fazer o quê?
tros também fazem isso? por que os lençóis de para que é que a gente vem para a escola? on-
que saímos precisam ser alinhados para apagar de aprendemos mais o que nos interessa: brin-
nossa presença? todo mundo tem cama para, cando de manhã ou aqui na escola? as pessoas
usando-a, poder arrumar depois? que eu encontro aqui são também aquelas com
e) e depois fui jogar bolinha e depois fui jo- quem brinco de manhã? quais? e quais não são?
gar bola. E depois fui andar de bicicleta: uma ma- onde moram? que fizeram durante a manhã os
nhã que se fez brincadeiras: com quem? o que é outros?

176 177
Este conjunto de perguntas , a que se pode- tórica da cultura, dos sistemas d e referências .
riam acrescentar outras, levam à construção de Querer em nome de uma suposta neutralidade
um diálogo. Devolver a palavra ao outro implica abandonar qualquer ação pedagógica que opere
querer escutá=io . A escuta, por seu turno, não é com estes sistemas de referências é querer, na
uma atitude passiva: a compreensão do outro en- verdade, artificializar o uso da linguagem para
volve, como diz Bakhtin, uma atitude responsi- ater-se a aspectos que não envolvem a linguagem
va, uma contrapalavra. O diálogo que se pode dar como um todo, mas apenas uma de suas partes .
a partü- da curiosidade das questões formuladas Ao aprender a língua, aprende-se ao mesmo
produz um texto co-enunciado. Afinal, pediu-se tempo outras coisas através dela: constrói-se uma
ao aluno para contar o seu dia, para dar-lhe uma imagem da realidade exterior e da própria reali-
nota ou para saber como foi este dia? ~~de interior. Este é um processo social, pois co-
Em que sentido todas estas perguntas têm a mo vimos, é no sistema de referê ncia que as ex-
ver com leitura? As respostas que surgem de per- pressões se tornam significativas. Ignorá-las no
guntas como as formuladas vão nos mostrando ensino, ou deixar de ampliá-las no ensino, é re-
que, sobre muitas coisas, o que sabemos é muito ~uzir não só o ensino a um fq:rmalismo inócu~.
pouco 19. E é este pouco que pode se tornar um E também reduzir a linguq,gem, destruindo sua
querer saber mais. E é este querer saber mais que característica fundamental: ser simbólica.
impulsiona a busca de respostas dadas por ou- Se o texto escrito pelo aluno era para ser li-
tros, em textos que vamos buscar, que vamos ler. do, e se a leitura é mais do que simples "infor-
Este o movimento que se defende. E com isso se maçãO'' -que se extrai do texto, mas efetivamente
pretende inverter a flecha da forma de entrada eli_volve o leitor, não vejo como um professor, lei-
do texto de leitura na sala de aula: ·ele não res- tor dos textos de seus alunos, possa ignorar tan-
ponde ao previamente fixado, mas é conseqüên- tas perguntas que as informações dadas pelo tex-
cia de um movimento que articula produção, lei- to fa~ern SJJ-rgi_r~ 0 . E note-se, perguntas formula-
tura, retorno à produção (aos fatos do çotidiano das com base no que disse o aluno não têm res-
no nosso exemplo) revista a partir das novas ca- posta previamente conhecida pelo professor. As
tegorias que o diálogo, entre professor, alunos e perguntas já não são perguntas didáticas, mas
textos, fornece. perguntas _eh;ti.Vél.S que fazem do diálogo da sala
E is-to seria ensinar língua 2ortuguesa? É in- de aula uma troca e a construção do texto oral
gêm.io pensar que_ J.llTia__tªl -peÇspectiva apenas êo-e:J!.unciado. As respostas dos alunos já não são
abriria espaço para uma aç~o ideologizante. Se candidatas a respostas que o professor cotejaria
a linguagem não é morta, não podemos escapar com uma resposta previamente formulada. A par-
do fato de que ela se ref~re ao mundo; que é por ticipação do professor neste diálogo já não é de
ela e nela que se pode detectar a construção his- aferição mas de interlocução.

178 179
Por esta via, talvez a entrada dos textos pa- tos que escreveram imaginando-os modelos a se-
ra a leitura em sala de aula tenha outras razões rem seguidos. Existentes, estando no mundo, eles
de ser: as razões efetivas pelas quais fora da es- nos fornecem, é claro, o resultado de um traba-
cola buscamos textos. E mais, o convívio com eles lho de construção sobre o qual nos debruçamos,
não se constitui como um convívio que os crista- com os quais convivemos e dos quais nos apro-
liza em modelos. Na mesma medida deste conví- priamos. Mas 1~_ão ~_por serem "modelares" que
vio, vamos extraindo o que já se disse sobre o te- se tornam modelos inspiradores: inspiram por-
ma e formas de dizer, com isso aumentando nos- que convi,!endo com eles vamos aprendendo, no
sas condições de escolha de estratégias de dizer. e com o trabalho dos outros, formas de trabalhar-
Isto nos leva ao segundo aspecto. mos também. Daí porque a leitura permite a ex-
ploração das configurações textuais, e não só as
perguntas que incidem sobre o que o texto diz po-
3.2.2.2. O texto e as estratégias do dizer dem levar-nos a buscar outros textos. Também
refletir sobre o modo con1o outros organizam o
Osakabe (1982) apÇ>l1ta para o fato de que o que tinham a dizer pode ser a razão de leituras.
processo de escolarização hipe1~trofia duas carac- A at~11çãq ªestas config[1__r_q ç_õ h textuais 11ão quer
terísticas da escrita: a sua fixidez(11ecessária para dizer que, de imediato, os textos lidos devam for-
permitir a interlocução à distância) e a tendên- necer ao professor o parâmetro a partir do qual
lerá os textos de seus alun()~; ao ·contrário, a aten-
cia monológica (resultante das condições de pro-
çao que se lhes dedica vai constituindo para ca-
dução em que o interlocutor não se faz presente,
da leitor em particular e para o grupo de leito-
face a face, como na oralidade, mas como ima-
res, horizontes de possibilidades dos quais vamos
gem do próprio_autor). Na esteira do mesmo ra-
extraindo, como o faz a criança na aquisiÇão da
ciocínio, pode-se dizer que o conjunto de textos oralidade, urn"" cc:m]unto he t eróclito de "regras",
que se oferecem à leitura de aprendizes da lín- de "regulaiidaq~s '' que, ão longo do processohis-
gua escrita não só funcionam como modelos im- tÓrico destes convívios, vai nos constituindo co-
plícitos de discursos a serem proferidos no que n.;ü sujeitos competentes no uso da linguagem em
tange aos conteúdos "válidos" que se dão como suas instâncias públicas. Competência que _pão
tais, mas também enquanto "modelos" a seguir é ' 'fixada para sempre", màs é _o que é em cada
enquanto forma de configurar textos. A prática momento histórico do sujeifo tal como a avalia
escolar é, a_qui, profundamente destruidora dos uma sociedade em seu momento histórico 21 . E
próprios textos que se l~em. Fernando Sabino, que também não é fixa para cada sujeito, e nem
Carlos Drummond de Andrade, Rubem, Braga, pa- válida para todas as ocasiões .
ra citar apenas alguns dos autores hóje presen- A aposta que se faz aqui é que a ação peda-
tes nos livros didáticos, não escreveram os tex- gógiç-ª.,~~ao chamar a atenção do leitor para os

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aspectos configuracionais, será uma ação media- os alunos levará a um te xto tota lmente distinto
do ra entre o leitor e o texto. Mediação que não daquele que foi sua matriz.
deve impor as estratégias do texto que se lê co- --- Note-se, no exemplo suposto, que o importan-
mo o único caminho a ser seguido pelo que apren- te não é ensinar metonímia, ou tomar outro tex-
de; mas mediação que, ,alertando para tais aspec- to como parâmetro, ex igindo que o aluno o siga
tos, vai permitindo ao que aprende a sua própria ou que use metonímias, metáforas, comparações
transformação pessoal pelo fato de dispor, cada e o que mais der para reescrever seu texto. Im-
vez que lê, de outras possibilidades de escolha de porta isto sim esta prática com a linguagem que
estratégias de dizer o que tem a dizer. poderá, depois, tornar-se objeto de reflexão. Se-
Antes de tomarmos un1 exemplo real, cons- gue-se aqui o que ocorre na aquisição da ora-
truo um , tomando como ponto de partida o tex- lidade:
to de nosso exemplo (5) e possíveis respostas às
questões que suscitou. é através da linguagem enquanto AÇÃO SOBRE O OU-
TRO (ou procedimento comunicativo) e enquanto AÇh.O
SOBRE O MUNDO (procedi~nto cognitivo) que a
criança constrói a linguagel}1 euquanto OBJETO sobre
Exemplo 6 o qual vai poder operar.
(De Lemos, 1982: 120)
Suponha-se que o aluno, ao informar o tipo
de pasta de dentes que usou nesta manhã, diz Integrando, como se está tentando fazer aqui,
que a marca é Kolynos. De posse desta infor- produção de textos e leitura .de textos, na busca
mação, como poderíamos incluí-la no texto? de perspectivas de um ensino que não seja de re-
Listo aqui algumas possibilidades: conhecimento, mas de conhecimento; que não se-
6a) Eu acordei e a Kolynos, no banhei- ja de reprodução mas de produção, vemos que no
ro, me dizia: agora é escovar os dentes, e de- que tange à escolha de estratégias de dizer, mais
pois fui tomar café ... do que definir como se diz (lembre-se o diálogo
6b) Eu acordei e, Kolynos na· escova, o sobre a descrição de nosso exemp lo 3) importa
rito de escovar os dentes... · inferir, na prática da linguagem, o que );iist<::>rica-
6c) Eu acordei e como sempre faço, usei mente esta prática foi consú~uindo.
mii1ha Kolynos no hábito de todas as manhãs, O acesso ao mundo da escrita é também um
e depois fui tomar café .. . acesso a estas estratégias que resultam de rela-
ções interlocutivas do passado, de seus objetivos
(razões para dizer) e das imagens de interlocuto-
Não é nada difícil ao.leito:r conti:rn,1.aL O re- res com que aqueles que escreveram pretenderam
sultado deste trabalho com o texto do aluno e com um certo tipo de relação. As estratégias que se

182 183
escolhem revelam, em verdade, est?t história por- é dito, mas no acontecimento de seu retorno" e
que delas são resultado. Estou usando aqui a de- . também o retorno, no interior de um tipo de con-
norninação "configuração textual" e .não "estru- figuração, de configurações outras, produz um
~ura" por duas razões: a) o conjunto de configu- certo "estranhamento" que faz do que se diz uma
rações (ou gêneros) não é fixo, com regras a se- novidade 23 . Para exemplificar, considere-se o se-
rem obrigatoriamente seguidas. Assim, a confi- guinte poema:
guração de uma narrativa não se obtém pela sim-
ples obediência a regras, mas pela inclusão do
que se narra, h.ic et nunc, na configuração de ou- Exemplo 724
tras narrativas; b) estas configurações não são im-
permeáveis entr e ~ i, de modo que um texto em Receita de Herói
que se queira defender um ponto de vista, ou em
que se defende um ponto de vista (texto argumen- Reinaldo Ferreira
tativo), não possa ser cruzado por configurações
outras que não a "estrutura" de uma argumen- Tome-se um homem fei1tP de nada
tação. Que a fábula sirva de exemplo; Como nós em tamanho r{a tural
Pondo-nos, por hipótese, do outro lado do fio, Embeba-se-lhe a carne
aquele da produção, o locutor/autor ao escolher Lentan1ente
uma certa c~nngurÇ1.Ção para o seu texto, "deses- De uma certeza aguda, irracional
colhe" outras e, em certa medida, comprOmete- Intensa como o ódio ou como a fome.
se com as estratégias escolhidas. Estas são tam- Depois perto do fim
bém .chaves com que o lê . Já chamamos a. aten- Agite-se um pendão
ção para expressões cristalizad as como "Era uma E toque-se um clarim
vez ... " O leitor imediatamente situa-se num cer- Serve-se morto .
to campo de interpretaÇão do que ~e ~egl:!~-:- for-
necida esta pista do "era un1a vez ... " : convívios O título (receita) e o uso de expressões como
prévios fazem esperar uma história situada num "tome-_se"-, "embeba-se", "agite-se", "serve-se" são
espaço de ficção ou, mesmo que história real, con- retirados d~ um contexto configuracional que
tada como se não o fossen. aponta -para a receita culinária. Posto, no entan-
Se, de um lado, estas "configurações" obri- to, que temos um poema, sua novidade está nes-
gam certas "responsabilidadés", de outro lado o ta em~rgência de uma outra configuração dentro
movimento entre elas produz o inus1tado, o no- da configuração que não lhe é própria. Uma lei-
vo. Este não resulta apenas do que se diz. Como tura deste poema que não reconheça nele él_pre-
}'oucault (1971) aponta, "o novo não está no que sença- de outro ntipo"
.
de textos é uma leitura que

184 185
1'

não _a ciona as estratégias escolhidas pelo autor a cara do Paulinho o teu time não é de nada
e, por isso mesmo, é uma leitura da superfície do está empatando logo com o lanterninha e gi-
texto. rava as chaves do carro no dedo e o Paulinho
Ainda mais um exemplo. disse o jogo ainda não acabou e ele contou pro
Paulinho que estava comendo a secretária e
o Paulinho despeitado só deu um sorriso ama-
E xe mplo 8 25 relo e depois o Paulinho disse que descobriu
que o Carlinhos rouba no jogo de buraco e
Porque é domingo que não joga mais com aquele cara e insistiu
para que entrasse e ele agradeceu já ia andan-
R. Machado do e abanou de dentro do carro e voltou pra
casa antes botou gasolina no posto e disse pra
Levantou tarde com vagar e simulacro de mulher que tinha ido nas casas do Ari e do
sorriso examinou os dentes no espelho do ba- Paulinho e ela perguntou se ele queria café
nheiro e tirando o carro para a frente da ca- e ele disse que não e perg}?.-ntou a ela se já ti-
sa lavou-o tendo para isso vestidc;> o short e nha começado o programà de televisão e en-
tomou um chuveiro e fez barba e pôs sapato quanto sentava na poltrona e via comeu um
sem meia camisa esporte fora das calças e be- pedaço de pudim e a mulher quebrou um co-
beu caipirinha discutindo futebol no bar da po na cozinha e ele gritou o que que quebrou
esquina e comprou uma garrafa de vinho três aí dentro e deu um arroto e quando o progra-
guaranás e comeu demais no almoço e fo- ma já estava quase no fim a mulher disse que
lheou o grosso jornal pensando é só desgra- queria sair ele levantou e foi trocar de roupa
ça no mundo e bocejou diversas vezes e co- e foi ao cinema com a mulher e o filme era
chilou e acabou indo deitar no quarto e acor- com a Sophia Loren e era colorido e eles gos-
dou às quatro horas com preguiç~ pensando taram e quando voltaram para casa viram
vou visitar o Ari ele não vai estar mas vou as- ainda um pouco mais de televisão e começa-
sim mesmo e pegou as chaves do carro e dis- ram os dois a bocejar e ele escoyou os dentes
se à mulher vou dar uma volta e rodou no e fechou a casa e deu corda no' despertador
volks por ruas discretas cheias de sol o rádio e foram dormir já um pouco tarde, porque é
ligado no futebol e bateu na casa do Ari não domingo.
tinha ninguém pensou então vou até o Pauli-
nho e foi mesmo e por sorte o Paulinho esta- Qualquer explicitação, por marcadores, da
va em casa de chinelo casaco de pijama veio ordem cronológica do texto produziria uma se-
até o portão e ele não quis entrar e gozou com qüência mais banal. No entanto, estamos ante

186 187
uma narrativa cujos acontecimentos o leitor vai pistas do texto o fizeram acionar outros conhe-
reestabelecendo à medida que lê: misturam-se à cimentos para que de produzisse o se.r{tidõ-C:iile
cronologia de fatos pensamentos do personagem. produziu; é na recuperação desta caminhada que
Não é a cronologia o fio que conduz o que se nar- cabe ao professor mostrar que alguns dos meca-·
ra. Compare-se, agora, o texto de nosso exemplo nismos acionados pelo aluno podem ser irrelevan-
(5) com a estratégia de Rubem Machado, e tere- tes para o texto que se lê, e portanto a sua "ina-
mos aí uma leitura que poderá incidir não só no dequada leitura" é conseqüência deste processo
que se diz em textos escolares, mas tarnbém nas e não porque não se coaduna com a leitura dese-
estratégias de dizer a cotidianidade . jada pelo professor.
Resumamos, em tópicos, os pontos de vista
aqui defendidos:
3.2 .3. A análise lingüística
a) o movimento entre produção e leitura é pa-
ra nós um movimento gue vem da produção pa- Cri;:,tdas as condições para a_t1vjdades intera-
ra a leitura e desta retorna à pr()dução (ao inver- ti_:'ª.S ~fe_t]y_as em sala de ~lilat quer pela produ-
so do que costumam ser as práticas escolares tais çao de texto?., g_uer pela le11yra'"de text9~, é no in-
como aque las propostas pelos livros didáticos); :t:._erior d~stas_ e a partir destas que a análise lin-
b) a entrada de um texto para a leitura em g_üjst_iç;:;t_se. dá.
sala de aula responde a necessi dades e provoca Como se sabe, muito antes de a criança vir
necessidade§; estas necessidades tanto podem ter para a escola, ela opera sobre a linguagem, re-
surgido em função do que temos chamado "ter flete sobre os meios de expressão usados em suas
o que dizer" quanto em função das "estratégias diferentes interações, em função dos interlocu-
de d izer" ; tores com que interage, em função de seus obje-
c) a leitura, sendo também produção de sen- tivos nesta ação, etc. Lembremo-nos, por exem-
tidos, opera como condição básica com o próprio plo, das freqüentes mudanças entonacionais nas
texfo que se oferece áleitura, à intet=foéução; nes- falas infantis: elas respondem também a estare-
te sentido são as pistas oferecidas peló texto que flexão (como vimos em 1.3.).
levam a acionar o que lhe -~ e_~terno (por exem- Con1_ ~ ~x:pressão "análise lingüística" preten-
plo, outros textos lidos anteriormente). Do pon- d~!:'~ferir precisamente este conjunto de ativida-
to de vista pedagógico, não se trata de ter no ho- des que-tornam uma-das caraCterísticas da lingua-
rizonte a leitura do professor ou a leitura histo- gem como seu objeto: o fato de ela poder -r eme-
ricamente privilegiada como parâmetro da ação; ter a ·sr própria, ou seja, com a linguagem não só
importa, dian~e cie uma leitu:ra _çlg_ ªlgn_Q 1_ :r:_~cupe­ falamos sobre o mundo ou sobre nossa relação
rar sua caminhada interpretativa> ou seja, que com as coisas, mas também falamos sobre como

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