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QUANDO O CONTEXTO HISTÓRICO INVADE UM FILME: O TEMPO

PRESENTE NO BRASIL ATRAVESSA MARIGHELLA

Ygor Pires Monteiro


Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ)

Enquanto este artigo é escrito (setembro de 2021), há a possibilidade de os brasileiros que


forem aos cinemas no país no dia 04 de novembro de 2021 de assistir ao filme Marighella.
Pode parecer perigoso iniciar este trabalho com uma estratégia narrativa que possa torná-lo
datado tão imediatamente, mas o próprio objeto examinado aqui pode convidar a uma
exposição explícita de cada temporalidade em jogo nas análises realizadas. O estudo da
trajetória do filme sobre os últimos anos de vida de Carlos Marighella enquanto liderava a
Ação Libertadora Nacional (ALN) se relaciona com a história do tempo presente, pois se
articula com disputas e controvérsias políticas que marcam a história recente do Brasil.
Nesse sentido, colocar a exibição de Marighella a partir de 04 de novembro de 2021 como
uma suposição faz parte de um percurso complexo, contraditório e instável seguido pela
produção desde suas origens. No momento da escrita do artigo, a previsão de estreia pode ser
a culminância de um processo que contou com a participação em festivais internacionais,
adiamentos gerados pela pandemia do coronavírus, problemas de comercialização com a
Ancine e vazamento não autorizado de uma cópia na internet (MONTEIRO, 2021). E
enquanto Mário Magalhães escrevia a biografia “Marighella - O guerrilheiro que incendiou o
mundo” (MAGALHÃES, 2012) (base para o filme) e Wagner Moura comandava as
filmagens, ainda não era possível dimensionar como seria a recepção social da obra.
A cada nova notícia, reportagens sobre os adiamentos e declarações de membros da
equipe, a reverberação do filme nas mídias digitais se intensificava. Nas versões eletrônicas
de jornais de grande circulação, em sites de cinema ou no YouTube, as seções de comentários
destinadas às interações dos usuários se movimentavam com discussões sobre o passado
encenado pela narrativa cinematográfica. Seria possível abordar as versões que a luta armada,
a ditadura civil-militar e Carlos Marighella assumiram nesses comentários (MONTEIRO,
2021), já que o ambiente virtual pode ser uma fonte interessante para o exame de como os
conhecimentos históricos são apropriados ou distorcidos fora da academia. Porém, há outros
temas tão instigantes quanto que se sobressaem neste conjunto de fontes.
Da mesma forma que as memórias sobre o passado ditatorial brasileiro são invocadas para
comentar as notícias e os materiais de divulgação de Marighella, acontecimentos
contemporâneos interferem no modo como se dá sua recepção. Há muitas referências a
governos brasileiros recentes, aos problemas sociais e políticos registrados nos últimos anos e
à polarização ideológica em curso há algum tempo. O tempo presente está tão marcado nas
leituras produzidas que poderíamos pensar se não estamos observando algo como os “usos do
presente” alcançando e atravessando um filme de temática histórica. Em outros termos, a
conjuntura atual poderia ser instrumentalizada por diversos interesses para fazê-la caber em
interpretações do passado que não necessariamente dialogam.
Levando em consideração a variedade de temas e abordagens, este artigo tem como recorte
as interferências que o tempo presente do Brasil realiza na recepção do filme. Ao invés de
extrapolar os limites desse trabalho buscando contemplar todas as questões que emergem dos
debates em torno de Marighella, o objetivo será examinar as leituras que enaltecem ou
atacam a obra à luz de elementos contemporâneos da conjuntura recente do país
(especialmente sob o governo Bolsonaro). Para isso, tomarei como fontes a entrevista em
formato de vídeo concedida pelo diretor Wagner Moura ao Brasil de Fato em 2019 e os
comentários na seção específica desse vídeo no Youtube1.
A título de organização, o artigo se divide em três seções. A primeira se concentrará no
conteúdo das declarações de Wagner Moura analisando o processo de produção do filme e
suas repercussões sociais. A segunda irá se deter sobre breves considerações sobre a
linguagem específica das mídias digitais, em especial a de um vídeo no YouTube, e sobre os
comentários feitos pelos usuários após assistirem à entrevista. E a terceira será uma conclusão
que amarra as seções anteriores com reflexões da história do tempo presente.

“Estou pronto para a porrada”: O diretor Wagner Moura pensa sobre Marighella

Desde o princípio, a frase que dá nome ao vídeo é aquilo que mais se destaca. Esta
declaração pode ter surgido dos encaminhamentos dados pelo entrevistador, mas Wagner
Moura em muitas ocasiões colocava no centro da entrevista as controvérsias atuais de um
país polarizado e envolvido por guerras de memória sobre a ditadura civil-militar (PEREIRA,
2015). Antes de chegar nessa dimensão, ele comenta o porquê de tomar a decisão de fazer um
filme sobre Carlos Marighella, ao afirmar que este personagem histórico é uma referência de
resistência política na Bahia (estado de origem do artista) e ele mesmo tem um interesse
pessoal por revoltas populares (citando, por exemplo, a Revolta dos Malês).

1
Nas demais passagens do texto, todas as referências à entrevista ou aos comentários dizem respeito ao vídeo
“Estou pronto para a porrada, afirma Wagner Moura, diretor de “Marighella”, disponível no canal Brasil de
Fato no YouTube em https://www.youtube.com/watch?v=kL83sOBChaM Acesso: 29 set. 2021
É interessante também ouvir Wagner Moura explicar as razões para ter decidido fazer um
filme ficcional ao invés de um documentário que se inspirasse em todo o trabalho de Mário
Magalhães, afinal o biógrafo vai da infância do biografado às reverberações de sua morte
(MAGALHÃES, 2012) e o diretor se concentra nos últimos anos de vida do personagem.
Para o artista, os filmes ficcionais tem um alcance de público maior e pode ser visto por mais
pessoas, inclusive aquelas pelas quais Marighella lutava. Wagner Moura, inclusive, associa
esta percepção ao combinado feito com o professor, ativista e político Guilherme Boulos,
vinculado ao PSOL, de exibir o filme em um acampamento do Movimento dos Sem Teto em
São Bernardo, São Paulo.
O ponto levantado pelo entrevistado não deixa de ser curioso para revelar certa visão sobre
a recepção cinematográfica. Considerando o espaço que os cinemas reservam para
documentários e a própria postura que determinadores espectadores podem ter em relação a
esse tipo de produção (uma perspectiva que ainda precisa ser mais analisada a respeito de os
documentários serem considerados exposição didática da realidade em personagens e
impactos sensoriais), a ficção cinematográfica pode ser aquela que mais desperta reações na
audiência. Trata-se, então, de uma discussão que se relaciona com a complexa relação entre
cinema e espectadores, orientada pela narrativa cinematográfica, pela espectatorialidade em si
e pelo contexto histórico em voga (ODIN, 1998).
Ainda nos momentos iniciais do trabalho, Wagner Moura aborda uma questão sensível que
afeta o cinema brasileiro: o financiamento com dinheiro público, principalmente quando são
obras que tragam alguma dimensão política. Desse modo, ele menciona as dificuldades para
captar recursos para produzir o projeto e precisa confirmar que não foi utilizada a Lei
Rouanet (mecanismo de incentivo fiscal a quem investe em obras culturais), mas o Fundo
Setorial do Audiovisual (ferramenta de financiamento do cinema nacional) e investimentos
da Globo Filmes. Além disso, também é motivo de controvérsia a questão de o filme ter
sofrido ou não boicotes de empresas produtoras ou distribuidoras. Wagner Moura afirma que
sim, produtoras boicotaram a realização do projeto e várias empresas reagiam negativamente
aos convites para trabalhar ao lado da equipe e da produtora O2 Filmes. Porém, nenhuma
dessas declarações é detalhadamente desenvolvida.
Segundo ele, os obstáculos têm ligação com o contexto político vigente no Brasil.
Novamente então, há um entrelaçamento entre a trajetória do filme e questões próprias da
nossa contemporaneidade. São elas: o recrudescimento da polarização política, o crescimento
do conservadorismo e dos discursos da direita; os ataques a Wagner Moura por ser um artista
identificado com a esquerda (é chamado de “petralha fazendo filme sobre um terrorista”); o
fim da verdade como a conhecemos por causa da difusão de fake news (exemplificada pelas
mentiras disseminadas nas eleições presidenciais de 2018 contra o candidato Fernando
Haddad do PT); e a mediocridade moral e intelectual de um período que incluiu projetos
como o Escola sem Partido, reforma curricular do Ensino Médio do Ensino Básico e figuras
como Jair Messias Bolsonaro e Ernesto Araújo.
Um desses pontos é ampliado ao longo da entrevista: a perseguição que ocorre atualmente
sobre os artistas e a cultura. Na visão de Wagner Moura, os artistas costumam ter um
pensamento progressista (algo que podemos questionar dado o artista e o contexto em
questão) e propor reflexões que podem incomodar, principalmente um governo que tem um
discurso característico do fascismo de ataque aos artistas, taxando-os como aproveitadores e
criminosos. Nesse tópico, o diretor vai além e argumenta que a destruição da cultura significa
também a destruição da cultura LGBT, quilombola e indígena. Consequentemente, estamos
diante de mais uma dimensão do tempo presente que penetra o filme sem que sua narrativa,
necessariamente, explore esses elementos.
Outro aspecto que se sobressai como algo incontornável para a recepção de Marighella é a
imagem pública que Wagner Moura tem, em especial sua interpretação de Capitão
Nascimento do Batalhão de Operações Policiais Especiais (BOPE) em Tropa de Elite. Ele
discorda das percepções que afirmam que este filme teria um perfil autoritário de apoio à
violência daquele personagem, porém reconhece que toda obra de arte é polissêmica e
espectadores diferentes podem assimilar os filmes de modos diversos. É uma perspectiva que
nos ajuda a lembrar que os espectadores não são meras categorias passivas que reagem aos
estímulos pretendidos pela narrativa cinematográfica (ODIN, 1998:). Além disso, Wagner
Moura aproveita a discussão em torno de Tropa de Elite para abordar as questões da
violência urbana e da segurança pública, relacionando o senador Flávio Bolsonaro e as
milícias no Rio de Janeiro.
Nesse panorama, faz sentido trazer novamente à tona a frase que divulga a entrevista,
dessa vez tendo mais ferramentas para compreendê-la. “Eu estou pronto para a porrada” é
uma declaração que sintetiza a previsão de Wagner Moura de que os ataques serão uma
realidade até a estreia do filme e sua preparação para suportar o que pode vir. O artista chega
a citar vagamente que houve ameaças de invasões ao set de filmagem, mas não entra em
tantos detalhes. Como a obra ainda não teve um lançamento oficial no Brasil, estas reações
negativas se manifestam muito mais nas mídias digitais, um ambiente que o próprio Wagner
Moura diz não vivenciar já que não possui redes sociais e assim não apreender as
reverberações do projeto.
Como uma conclusão para as ideias apresentadas, Wagner Moura entende seu filme como
uma disputa de narrativa: por um lado, afirma que Marighella é o primeiro projeto de
oposição frontal ao governo Bolsonaro, à direita e ao neoliberalismo que será lançado; por
outro, e também de forma complementar, afirma que é um projeto que se opõe aos
negacionismos disseminados sobre a ditadura civil-militar, como a negação de seu caráter
violento. Estes últimos aspectos revelam de modo explícito como a entrevista evoca muito
mais o tempo presente do que as representações do passado ditatorial criadas pela narrativa
cinematográfica, deixando a sensação de que, em muitas ocasiões, o filme é esquecido.
Porém, as declarações de Wagner Moura não são as únicas que sugerem como o tempo
presente atravessa e invade a obra. Os comentários feitos pelos usuários na seção específica
para interações no vídeo do YouTube igualmente seguem essa tendência, por vezes para criar
expectativas positivas para a produção, por vezes para atacar um filme que ainda nem foi
visto. Logo, a análise estaria incompleta se não fossem contemplados os comentários.

"Vai ser um filme potente” ou “Triste mesmo é fazer de terroristas heróis”?

As duas frases acima foram escritas por usuários que assistiram à entrevista e comentaram
no vídeo, respectivamente sob o nome Fazendo Refletir e Haroldo de Jesus. Confrontando
uma com a outra, temos exemplos de como a recepção do relato de Wagner Moura e do filme
Marighella neste vídeo do Brasil de Fato está polarizada. Embora seja tentador mergulhar
imediatamente nesses comentários para verificar a polarização político-ideológica, é
necessário considerar outros aspectos importantes que pertencem a uma linguagem particular
do universo digital. Como sustenta Anita Lucchesi, os diferentes tipos de conteúdo
encontrados na internet podem ser tratados como um texto virtual que se estrutura em
diferentes andares e níveis (LUCCHESI, 2013: 10).
Mais especificamente são códigos e recursos digitais que, se examinados, também podem
demonstrar a polarização que os comentários escritos apresentam. Até o momento de escrita
do artigo, o vídeo contava com 329.317 visualizações, 20 mil “curtidas” (uma forma de
aprovar o que se viu) e 15 mil “descurtidas” (uma forma de desaprovar o que se viu), além de
8245 comentários. Tais números permitem perceber como se tratam de temas que
movimentam intensas discussões, sendo alimentadas por diferentes posicionamentos
positivos, negativos ou mais fluidos entre essas categorias.
O grande número de comentários gera também cuidados metodológicos para um trabalho
com tantas fontes. Ao invés de buscar uma amostragem quantitativa que dê conta de quase 10
mil comentários, faço um recorte qualitativo através de algumas questões recorrentes que
dialogam com a perspectiva da história do tempo presente do Brasil atingindo a recepção de
Marighella. Três grandes pontos podem emergir dentre os comentários de alguma forma
positivos com a expectativa do lançamento do filme: elogios a Wagner Moura como artista,
críticas a quem desconhece a história do Brasil e crenças de que o lançamento do filme chega
em um momento fundamental.
Além da primeira frase que abre essa seção, existem outros exemplos que ilustram as
reações positivas e encorajadoras para o artista, como “artista gigante, vai ficar na história
nacional”, “grande ator Wagner Moura! Sucesso”, “Wagner Moura é rei, orgulho do Brasil”,
entre outros. Quanto à importância de conhecer a história do país, há o comentário de um
usuário chamado Raul que afirma como a luta política de Marighella era contra o
autoritarismo e a violência da ditadura, sendo ignorantes alienados aqueles que desconhecem
os sentidos dessa luta. Além disso, a usuária Elisabete Cabral afirma ser necessário um filme
como esse, sobretudo no momento em que vivemos (a julgar que o comentário foi feito em
2019, ela deve se referir ao governo Bolsonaro).
Em um lado radicalmente oposto, há quem ataque Wagner Moura e Marighella. Tal
postura pode ser resumida em pelo menos três grandes questões: o discurso do diretor não faz
qualquer sentido coerente, o comportamento do artista ao longo da entrevista é entendido por
alguns como sinal de que havia consumido drogas e a esquerda, bem como a ex-presidente
Dilma Rousseff, precisam ser desqualificadas.
São ataques encontrados em muitos comentários. A título de exemplo: “lamentável esse
cara ter chegado ao nível que chegou! Digno de pena”, “estamos em 2020, em plena
pandemia. Esse cara viaja na maionese. Estamos vendo os argumentos dele derreterem”,
“mínimo, não dava para esperar passar o efeito? Fungadas, arregalar de olhos, inquietude,
gagueira, esfregado de nariz”, “esses artistas que defendem a esquerda vão passar férias nos
Estados Unidos, era pra ir pra Cuba e Venezuela” e “eu me espantava muito com os discursos
da Dilma... me acostumei com ela e isso me ajudou a aceitar os erros do Bolsonaro (que são
menores).”
Se avançarmos mais fundo nos comentários dessa natureza, podemos notar a intensidade
dos discursos de ódio e do incentivo à violência tanto para a compreensão do passado quanto
para o posicionamento nos dilemas do presente. É assim que alguns comentários tentam
justificar a violência praticada pela ditadura civil-militar contra a oposição e defender outras
práticas autoritárias contra as esquerdas atualmente. Nesse sentido, não seria incongruente
refletir como a política contemporânea não se resume apenas ao racionalismo, pois cada vez
mais se abre e se molda para emoções negativas e agressivas (GALLEGO, 2018).
Quando analisamos a área de comentários, também precisamos ficar atentos a como a
linguagem específica das mídias digitais interferem nas discussões possibilitadas naquele
espaço. Conforme Anita Lucchesi argumenta, o ambiente virtual não se caracteriza pela
linearidade, afinal o conteúdo ali produzido possui inúmeras conexões e encadeamentos que
contam com a participação ativa do público (LUCCHESI, 2013: 13). Sendo assim, é
importante averiguar que os comentários também podem receber “curtidas” ou “descurtidas”,
que conferem uma dimensão adicional à polarização já percebida em outros recursos (por um
lado, “artista gigante, vai ficar na história nacional” teve 22 curtidas, por outro, “Wagner
Moura acreditava que o PT ganharia a eleição e seu filme navegaria em mar de almirante,
com apoio da mídia comprada. Só que não” teve 1,9 mil curtidas).
Por fim, ainda há as passagens em que os comentários de um usuário se prolongam em
debates com outros usuários. Por conta disso, não é tão incomum que o tema impulsionador
seja Marighella, mas o desenvolvimento da discussão desvie totalmente a questão central
para outras direções, geralmente contaminadas também pelo tempo presente do Brasil. Ainda
assim, seria enganoso supor que o tempo presente se sustenta de forma autônoma sem
vínculos ou diálogos com o passado, pois a ditadura civil-militar brasileira regularmente
retorna nas ideias propagadas pelos comentários (repressão contra a luta armada, natureza
política do regime militar, suposta ameaça comunista...). A contraposição dos comentários se
encontra com o percurso que as memórias a respeito da ditadura civil-militar vêm tendo
desde o processo de abertura política (NAPOLITANO, 2015: 22).
Muitos comentários nesse vídeo, inclusive, se apropriam ou difundem memórias
revisionistas da ditadura que vêm ganhando o espaço público no país. Tal processo ganha
contornos peculiares nas mídias digitais, onde estas construções encontram um locus
privilegiado para se disseminar com grande velocidade. Autores como Geraldo Homero do
Couto Neto estudam este negacionismo histórico produzido por uma nova direita, que
misturam conservadorismo político e moral, anticomunismo, liberalismo econômico e
moralismo familiar para retomar o período ditatorial como sinônimo de moral e bons
costumes, segurança e anticorrupção (NETO, 2019: 84).
Outros historiadores buscam contextualizar como estas memórias negacionistas se
entrelaçam com a história do tempo presente no Brasil. Mateus Henrique de Faria Pereira
investiga como a instalação da Comissão Nacional da Verdade no final de 2011 e seus
trabalhos até o final de 2014 podem ter contribuído para a construção de versões que
relativizam ou negam a violência e o autoritarismo da ditadura civil-militar, não se resumindo
apenas à perspectiva dos militares sobre o passado porque se manifesta em diferentes
dimensões da sociedade civil. (PEREIRA, 2015: 880). Tendo como marco histórico a
Comissão da Verdade, podemos pensar como as mídias digitais foram utilizadas para difundir
o que uma nova direita chama de “outra visão dos fatos”.
Considerando-se essas interferências do tempo presente na produção de memórias sobre a
ditadura civil-militar, podemos agrupar em três grandes questões os revisionismos históricos
verificados na seção de comentários da entrevista de Wagner Moura: discussões sobre as
diferentes versões da história, a caracterização dos inimigos ou terroristas e sobre um embate
entre socialismo e capitalismo. Na primeira questão, existem desdobramentos que tocam em
pontos complementares, como as diferenças entre verdade e fake news, as possibilidades de
conhecer o passado através do cinema e os usos do passado à luz do presente.
Como exemplos da primeira questão, há os seguintes comentários: “a história é contada de
várias formas, ele escolheu a forma que ele acredita, meus parabéns, sou seu fã; “escolheu a
verdade”; “a verdade, não é Man... Marighella fez muita Merda, porém é só um filme”;
“discordo um pouco um cara que falava que quem desertar abandonar a guerrilha vc deve
matar e vc apoia isso desculpa isso e mal caratismo”; “eu concordando ou não com ele, penso
que ele realmente tem o direito de defender o lado em que ele acredita. E o nosso dever é ler
e estudar todos os lados”; “Maravilhoso o Brasil conhecer o passado através do cinema”; e
“ótima fonte de informação um filme feito pelo vagner moura kkkkkk”.
Já para a segunda questão, há esses exemplos: “triste mesmo é fazer de terroristas heróis”;
“terrorista é um governo autoritário fascista e que matava e torturava pessoas que pensasse
diferente do governo; o próprio marighella se entitulava Terrorista, inclusive escreveu uma
cartilha de como praticar atentados covardes contra os militares; “Onde já se viu fazer um
filme homenagem de um terrorista?”; “conhece o passado verdadeiro que foi o que os
militares acabaram com esses vagabundos e evitaram que VOCÊ vivesse em um Cubão
hoje”.
E a última questão pode sintetizar essa memória revisionista que justifica a violência da
ditadura, enaltece os militares e desqualifica as esquerdas em geral. É recorrente a associação
que se faz entre a esquerda e a violência/autoritarismo, invocando Cuba e Venezuela como
exemplos sem grande embasamento dessa tese. Sendo assim, esse revisionismo atribui aos
militares um papel importante de salvar o Brasil do perigo comunista. Então, o comentário
específico desvaloriza a esquerda dentro de uma caricatura simplificadora: “Defender que
lado? Eu sou capitalista e pratico o capitalismo! Agora eu não vejo ele praticando o
socialismo e dividindo suas riquezas! Como todo socialista que eu conheço, ele prega o
capitalismo para o dinheiro dele e socialismo para o dinheiro dos outros! O dinheiro dele tá
no bolso e da população tá no filme! Socialismo???”

Considerações do tempo presente para a recepção de Marighella nas mídias digitais

Quando pensamos em filmes de temática histórica, o cinema olha para o passado através
das percepções que os realizadores têm do presente. Por isso, não é um equívoco pensar que
Marighella representa o passado ditatorial brasileiro e participa dos debates do Brasil dos
anos 2010. Porém, o primeiro projeto de Wagner Moura como diretor pode estar passando
por um processo extremado de invasão e atravessamento pelo tempo presente, nem sempre de
formas tão orgânicas à trama do filme. Sendo assim, não podemos desmerecer as reflexões
que a história do tempo presente tem a nos oferecer.
No cerne dos desafios de lidar com esse tipo de abordagem está a questão da
temporalidade. Como demarcar cronologicamente os marcos da história do tempo presente se
autores divergem se devem ser as grandes rupturas, o período atual de vivência do
pesquisador ou outra baliza temporal específica? (FERREIRA, 2018: 86). No entanto, não se
trata de um desafio que se deva evitar, já que o filme Marighella parece pedir análises que
complexifiquem as temporalidades, afinal é uma obra que fala sobre o passado, foi filmado
em 2019 e não estreou no tempo previsto em 2019, 2020 e 2021, se transforma a cada novo
acontecimento relacionado a ele e é debatido por espectadores que ainda nem o viram.
Uma das possibilidades de demarcação cronológica levantada diz respeito a ideia de um
recorte temporal em que sujeitos ou testemunhos do passado têm uma presença ativa e podem
contestar os historiadores (DELGADO; FERREIRA, 2013: 22). Nesse sentido, é interessante
pensar que o tempo presente produz eventos que levam os historiadores a rever as
significações do passado sob a luz dos resultados do hoje (HOBSBAWM, 1998). No caso do
filme Marighella, a polarização política do Brasil atual, o contexto do governo Bolsonaro, o
revisionismo histórico da ditadura civil-militar e a reformulação do anticomunismo afetam as
maneiras como o fim da década de 1960 e o início da década de 1970 são interpretados.
Além do balizamento cronológico, a história do tempo presente tem como particularidade
a questão do conhecimento que se transforma ao longo do tempo. Valorizando o evento, a
contingência e a aceleração da história, a história do tempo presente faz referência a um
passado atualizado ou em atualização permanente (DELGADO; FERREIRA, 2013: 25).
Como então não associar à trajetória de Marighella a cada um desses fatores? Considerando-
se que a exibição do filme é um evento, os adiamentos do lançamento são a dimensão da
incerteza no devir histórico e as diversas problemáticas relacionadas à comercialização e à
distribuição atualizadas constantemente remetem a uma história acelerada, pode ser possível
imaginar que os sentidos da luta armada e da ditadura civil-militar se transformam
permanente a partir das operações mobilizadas por Marighella.
Nem sempre, entretanto, os sentidos construídos obedecem a um rigor metodológico,
científico e histórico que elabora conhecimentos socialmente relevantes. Daí, vem a diferença
entre o dever de memória e o trabalho de memória, calcada no risco de conceber a memória
como uma entidade sacralizada digna de ser a única via de acesso ao passado e na
importância de uma crítica epistemológica que utiliza os testemunhos confrontando-os com
suas contradições e potencialidades (FERREIRA, 2018: 95). Sem esta diferenciação,
podemos cair na armadilha de não examinar criticamente as narrativas que hipervalorizam as
lutas de Marighella ou desqualificam totalmente este personagem histórico.
A produção de memórias ainda pode encontrar desafios adicionais quando trazem também
em seu interior a dimensão dos eventos traumáticos, sendo o Brasil um país marcado pela
repressão violenta da ditadura civil-militar, pelas graves violações aos direitos humanos
perpetradas pelo Estado e pela impunidade dos crimes não julgados nem punidos (FICO,
2012). Estão em jogo, disputando na arena pública, diferentes sujeitos históricos, distintas
narrativas sobre o período autoritário, variados projetos políticos para o futuro, modalidades
diversas de relação entre passado, presente e futuro e contextos históricos muito particulares,
o que cria um percurso complexo e multifacetado ao longo da história do país de construção e
difusão de memórias sobre o regime ditatorial (NAPOLITANO, 2015).
Como os processos de constituição de memórias são atravessadas pelo tempo presente que
guia reconstruções do passado, alguns acontecimentos contemporâneos promovem debates
sobre o período da ditadura civil-militar ou criam usos políticos daquela época. Devido à
extensão dos temas que se abrem e aos limites deste artigo, posso apenas mencionar
discussões que podem se desenvolver futuramente pensando como certos acontecimentos
contribuem para a (re)criação de memórias e versões sobre o período autoritário.
Precisamos investigar mais a fundo às diferentes reverberações históricas, historiográficas,
políticas e epistemológicas da Lei do Acesso à Informação de 2011 (capaz de publicizar
certos documentos antes sigilosos sobre a repressão ditatorial), os trabalhos da Comissão
Nacional da Verdade entre 2011 e 2014 (especialmente os impactos sociais de sua sanção e
do relatório final), as Jornas de Junho de 2013 (manifestações populares em diversas cidades
brasileiras que também contaram com declarações autoritárias a favor de intervenção militar),
o golpe parlamentar contra a presidente Dilma Rousseff em 2016 e a eleição presidencial de
Jair Messias Bolsonaro de 2018 acompanhado por seu governo até 2022 (ambos evocativos
de nomenclaturas que remetem à ditadura, como golpe e AI-5).
Desde a eleição de Jair Messias Bolsonaro para a presidência da República, outras
manifestações públicas de apoiadores do presidente gritavam e apresentavam cartazes com
dizeres antidemocráticos. Estão ali presentes discursos de ódio contra a esquerda e o Partido
dos Trabalhadores, reivindicações por intervenção militar, discursos de combate ao
comunismo (embora não seja definido que comunismo seria esse) e exigências de fechamento
de instituições democráticas como o Supremo Tribunal Federal. Não por coincidência, é
nesse cenário que os comentários de muitos usuários no canal do YouTube do Brasil de Fato
para a entrevista de Wagner Moura criam versões revisionistas e/ou negacionistas:
embranquecimento de Marighella, caracterização simplista dos guerrilheiros como terroristas,
negação da violência e do autoritarismo da ditadura civil-militar, imagem salvacionista das
Forças Armadas e alegações de um perigo comunista na década de 1960.
E como a história do tempo presente se desenvolve mergulhada em seu próprio contexto
social, político, econômico e tecnológico, não há como o historiador se desviar do próprio
trabalho que realiza nem desconsiderar as diferentes fontes e objetos que passam a integrar
seu oficio na contemporaneidade. Por conta disso, nós historiadores precisamos cada vez
mais refletirmos sobre nosso papel social de intervenção nos debates públicos e de combate
dos negacionismos históricos, não vendo com maus olhos a subjetividade que nos pertence e
nos faz examinar as questões sensíveis de nosso tempo. Como vivenciamos o período sobre o
qual pensamos e analisamos, nossas experiências e vivências contam ao observar e interagir
com os acontecimentos contemporâneos. Da mesma maneira, nós historiadores precisamos
cada vez mais refletirmos sobre o papel das mídias digitais nas operações de construção de
memórias e de usos do passado. Como vivenciamos em nossos cotidianos novas e variáveis
ferramentas de um mundo virtual, estes elementos também precisam ser examinados sem
preconceitos como fontes e objetos históricos que falam sobre o presente e o passado.

Referências bibliográficas:

DELGADO, Lucília de Almeida Neves; FERREIRA, Marieta de Moraes. “História do tempo


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FICO, Carlos. “História do Tempo Presente, eventos traumáticos e documentos sensíveis: o


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HOBSBAWM, Eric. “O presente como História”. In: Sobre a história. São Paulo:
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