You are on page 1of 42

PSICOLOGIA COMUNITÁRIA E INSTITUCIONAL

AULA 4
REFORMA PSIQUIÁTRICA

1
REFORMA PSIQUIÁTRICA

Por “Reforma Psiquiátrica” se entende um conjunto de


manifestações políticas, sociais culturais e técnicas de contestação
às práticas manicomiais, que começaram a ocorrer de modo mais
sistemático, na década de 60, em diversos países.
É nesse período que começa a haver não só uma confluência de
várias correntes contestatórias da psiquiatria e da instituição
psiquiátrica, que já vinham se forjando desde o final da Segunda
Guerra Mundial, como a divulgação de suas idéias para a
sociedade mais ampla.

2
A Reforma Psiquiátrica nos diferentes países
• Inglaterra: as experiências das Comunidades Terapêuticas realizadas nos
EUA e na Inglaterra e que mais tarde, neste país, com Ronald Laing e David
Cooper, deram origem à antipsiquiatria.
• França:A psiquiatria de Setor e a Psicoterapia Institucional, na França, esta
última surgida a partir de uma experiência de “revolução psiquiátrica”,
ainda durante a guerra, em Saint-Alban, (na França), da qual originou-se a
Clínica de la Borde, fundada por Jean Oury e posteriormente codirigida por
Félix Guattari.
• Itália: O trabalho iniciado por Franco Basaglia, no Hospital de Gorizia, na
Itália, no início de 1961, que resultou no movimento de
desinstitucionalização.
• Brasil: A Reforma Psiquiátrica no Brasil - a Luta Antimanicomial.
3
Os primórdios da Reforma na Inglaterra

A Comunidade Terapêutica é uma invenção tipicamente inglesa e remonta a


uma longa tradição em matéria de tentativas de renovação institucional
psiquiátrica, iniciada, na Inglaterra, por Tuke, Conolly e o tratamento moral
dos doentes mentais.
Conolly, em 1839, aboliu completamente os métodos de contenção para os
doentes e pode ser considerado o primeiro elo da corrente que se
desenvolveu desde a primeira metade do século XIX até chegar às
comunidades terapêuticas de Maxwell Jones surgidas na década de 60.
Além da tradição reformista, de origem religiosa (Tuke era quacre)
contribuíram para o surgimento dos métodos sociais de tratamento dos
doentes mentais, fatores relacionados à Segunda Guerra Mundial.
4
A importância da Segunda Guerra
• A Guerra gerou um grande número de casos para atender o que levou
médicos e enfermeiros a buscar formas de atender um contingente maior
de pacientes com pequeno número de profissionais. Além disso, arrancou
os psicoterapeutas dos hospitais psiquiátricos e dos laboratórios e os
lançou diretamente nos hospitais de campanha e nas unidades de
combate, fazendo-os perceber a enorme influência dos fatores sociais
sobre os pensamentos e sentimentos dos indivíduos.
• Durante a Guerra e logo após o seu término, verificou-se na Inglaterra uma
mudança decisiva nas estruturas político culturais da sociedade inglesa
devido ao fato de a comunidade ter assumido responsabilidades sociais
antes ignoradas. Assim, em 1944, foi votada uma lei que representava uma
virada radical na atitude da sociedade em relação ao doente mental, pois
pela primeira vez este era inserido em um programa de reabilitação
exterior ao hospital, e, portanto, fora de uma situação de exclusão social.

5
A Comunidade Terapêutica
• A noção de Comunidade Terapêutica surge em 1946, num artigo que relata
as atividades de Bion e Rickmann no Hospital de Northfield com soldados
afetados por neuroses, de maneira comunitária, com grupos de discussão e
com a participação dos pacientes na direção do setor.
• Maxwell Jones foi o mais representativo dos psiquiatras que se ocuparam
das comunidades terapêuticas e sua maneira de abordar o problema
institucional foi bem recebida e imitada por muitos psiquiatras ocidentais.
• Maxwell Jones desmascarava o poder real e fantasmático exercido pelo
psiquiatra sobre os doentes, o que na prática assumia a forma de
discussões em grupo dos problemas que iam surgindo na vida comunitária.

6
Reforma Psiquiátrica e Comunidades
Terapêuticas
Além disso, diversos estudos de microssociologia do hospital
psiquiátrico, dentre os quais se destaca o trabalho de Erving
Goffman (Asilums) mostrando os efeitos das estruturas
organizativas da instituição sobre a vida e morbidade dos
pacientes, contribuíram de maneira decisiva para uma
reforma psiquiátrica no sentido de uma terapia comunitária.
Nos EUA, apareceram numerosas comunidades terapêuticas,
algumas como clínicas particulares, outras ligadas a estruturas
psiquiátricas universitárias, a hospitais gerais e ainda como
estruturas intermediárias da Community Psychiatry.

7
Principais características da Comunidade
Terapêutica
Não se pode afirmar que houve um modelo único de comunidade
terapêutica, mas de modo geral, é possível identificar algumas
características comuns:
• Liberdade de comunicação
• Análise de tudo o que se passa na comunidade em termos de
dinâmica individual e interpessoal
• Tendência à destruição da relação vertical de autoridade
• Possibilidade de aproveitamento de ocasiões para reeducação social
• Realização de reuniões de toda a comunidade e reuniões mais
restritas onde se desenvolvem os processos mencionados acima.

8
REFORMA PSIQUIÁTRICA NA INGLATERRRA:
Antipsiquiatria
• O movimento chamado Antipsiquiatria surgiu na Inglaterra, na década de
1960, tendo como expoentes os psiquiatras Ronald Laing e David Cooper.
• Os princípios centrais em que se assenta esta corrente podem ser
encontrados na obra de Cooper, “Psiquiatria e antipsiquiatria”, publicada
originalmente em 1967.
• Nesta obra, Cooper propõe uma nova forma de tratar pacientes
esquizofrênicos, que ele descreve como uma ideologia terapêutica de
“orientação familiar”. Para esta empreitada, valeu-se de muitas das idéias
da comunidade terapêutica, mas aliou a isso uma revisão radical da
definição de esquizofrenia, baseada nas formulações de Sartre e Bateson e
nos estudos sobre família realizados por Laing.
9
Questionando o uso do conceito de doença na
psiquiatria
A Antipsiquiatria tem início, portanto, com uma crítica ao cerne da doutrina psiquiátrica,
que questiona o uso do conceito de doença na psiquiatria:
“...esta maneira de pensar a doença [centrada na noção de passividade, do ser alterado por
um processo patológico, biológico e/ou psicológico e/ ou social] se encontra firmemente
radicada na tradição médica, na qual o trabalho dos psiquiatras, por razões históricas,
ficou emaranhado. Conquanto, porém, a idéia de doença funcione razoável e
proveitosamente na Medicina em geral e em suas outras especialidades, sua
transplantação indiscriminada a um campo onde os problemas se apresentam em
termos de relacionamentos entre pessoas, produziu confusão e contradições
formidáveis em todo nível da teoria e da metateoria, embora este último nível seja
raramente atingido e nunca sustentado na literatura psiquiátrica clínica, pela simples razão
de que não se pode fazer um estudo teórico, dentro de um quadro de referência contínuo,
sobre uma teoria que é autocontraditória nos seus elementos mais básicos. A crítica mais
avançada e radical da teoria psiquiátrica, em termos de seu falso modelo conceitual,
deve propor uma análise da Psiquiatria e da Psicanálise em suas origens históricas”.
(grifo meu) p. 46

10
O elo entre a alienação e a violência
Cooper redefine a esquizofrenia em termos do elo entre alienação e a
violência que se passa nas famílias: ele parte da definição ontológica de
alienação, tal como proposta por Sartre, para quem haveria dois tipos de
alienação: a secundária e a primária. A secundária é a que se refere à
exploração do homem e de seus produtos sociais. A que nos interessa aqui é
a alienação primária, que é uma forma necessária de toda ação e experiência
humana, e que consiste nas categorias de alteração mediante a qual “meus
atos para mim” se convertem em “atos para o outro” e de objetivação,
mediante a qual meus atos se tornam efetivamente impressos na realidade
física e social do mundo.
Segundo Cooper, certos homens sofrem uma invasão tão contínua de seu
espaço subjetivo pelos outros, a ponto de sua existência se reduzir a mero
objeto das necessidades de outros membros do grupo e essa pessoa se
tornar totalmente alienada, sem espaço próprio.

11
O duplo vínculo
O elo entre a alienação e a violência familiar foi estabelecido a partir dos
resultados de pesquisas sistemáticas das famílias de pacientes
esquizofrênicos, iniciada em 1949.
Essas pesquisas mostravam que a natureza do relacionamento entre os pais
do paciente esquizofrênico era flagrantemente insatisfatório, de acordo com
vários critérios. A mãe geralmente era uma pessoa manipulativa e
superprotetora e o pai uma figura débil e ausente.
Em 1956, um novo desenvolvimento decisivo no entendimento da interação
familial foi trazido por Gregory Bateson e colaboradores, que trabalhavam
em Palo Alto, na Califórnia e escreveram o ensaio “Toward a Theory of
Schizophrenia”. Neste ensaio, os autores elaboram a idéia da manobra do
“duplo vínculo”, nas famílias de esquizofrênicos, como um fator que contribui
para a gênese da esquizofrenia num membro eleito.

12
O que é duplo vínculo

• “1. Pode ocorrer quando o indivíduo está envolvido num relacionamento


intenso, isto é, um relacionamento em que sente ser vitalmente
importante que discrimine exatamente que espécie de mensagem está
sendo comunicada, de modo que possa responder com adequação.
• 2. E o indíviduo é colocado numa situação em que a pessoa no
relacionamento expressa duas ordens de mensagens, sendo que uma nega
a outra.
• 3. E o indivíduo é incapaz de comentar as mensagens que estão sendo
expressas, a fim de corrigir sua discriminação de qual ordem de mensagem
deve ser respondida, isto é, ele é incapaz de fazer uma declaração
metacomunicativa”. (COOPER, 1967, p. 62)
13
A Vila 21
• Para Cooper, a única saída para as pessoas submetidas a essa situação seria
morrer completamente e renascer completamente numa identidade nova e
adequada, por meio de um processo de desintegração e reintegração em outras
bases. A Psiquiatria deveria fornecer a chave da invenção pessoal para os que
estão sendo desintegrados, mas, segundo Cooper, não era isso o que ocorria. Sua
experiência de trabalho nas enfermarias psiquiátricas convencionais havia lhe
mostrado que estas eram lugares onde grassavam a alienação, o estranhamento e
a violência sutil, onde os pacientes se defrontavam com o reforço maciço do
processo de invalidação iniciado antes de sua admissão.
• Foi a partir dessas considerações que, a partir de 1962, Cooper se encarregou de
pôr em funcionamento uma enfermaria num grande hospital (2000 leitos) a
noroeste de Londres, a vila 21, onde implantou um programa de atenção calcado
nos moldes da comunidade terapêutica e nos princípios que havia desenvolvido.
Em 1965, Cooper fundou a Comunidade de Kingsley Hall, com a colaboração de
Ronald Laing e outros.

14
O imaginário da liberação
Segundo Castel (1987, p. 25) “A contestação antipsiquiátrica foi um
ponto de fixação privilegiado de um imaginário político da liberação,
vivida na época sob a forma de uma sensibilidade exacerbada à
repressão. A psiquiatria representou uma figura paradigmática do
exercício do poder, arcaica em sua estrutura, rígida em sua aplicação,
coercitiva em sua mira. Ela como que cristalizou as formas mais difusas
de revolta contra a autoridade vivida na família e outras instituições. A
Psiquiatria funcionou como modelo, porque a relação de imposição
que ela coloca em operação implica, pelo menos nas suas formas
tradicionais de exercício, uma desnivelização absoluta entre aquele que
age e aquele que padece”.
15
Reforma Psiquiátrica na França – “O setor”

A política de setor consistiu em uma reorganização do conjunto da


Psiquiatria, que foi oficializada por uma circular ministerial em 1960.
Ela previa a divisão do país em unidades territoriais correspondendo a
uma população de 70.000 habitantes aproximadamente, que era
coberta por uma ampla gama de instituições diversas, do hospital
psiquiátrico a estruturas mais maleáveis. Supõe estruturas horizontais,
cujo funcionamento democrático (tanto no seio da equipe como na
relação com os usuários) se opõe às estruturas médicas ou piramidais
de uma hierarquia médica e centralizada. A primeira e mais importante
experiência de implantação sistemática do setor se deu no 13ème
arrondissement.
16
Reforma Psiquiátrica na França:
as origens da Psicoterapia Institucional
• Segundo Jean Oury, as idéias que antecederam e contribuíram nas
formulações da Psicoterapia Institucional remontam ao florescimento
das teorias sobre a utilização terapêutica do hospital psiquiátrico
iniciadas por Pinel e Tuke.
• Outras influências importantes podem ser creditadas à doutrina da
terapêutica ativa de Herman Simon, à Sociometria de Moreno, a
teoria de campo de Kurt Lewin e aos desenvolvimentos nas
intervenções em grupos, realizados por Bion e Rickmann.

17
Reforma Psiquiátrica na França:
Tosquelles em Saint- Alban: o marco fundamental
da Psicoterapia Institucional
• Mas o marco fundamental do surgimento dessa corrente pode ser
localizado na revolução psiquiátrica iniciada pelo médico catalão François
Tosquelles, no hospital de Saint-Alban na França, no período que precedeu
a Liberação.
• Nessa época, os psiquiatras e enfermeiros que tinham estado nos campos
de prisioneiros e de concentração passaram a questionar as instituições
concentracionárias, defendendo uma nova visão para o hospital
psiquiátrico. Além disso, tendo se tornado também um refúgio para os
resistentes, o hospital de Saint-Alban acabou reunindo intelectuais
surrealistas, médicos influenciados pelo freudismo e militantes marxistas.
Deste encontro nasceu uma nova atitude em relação ao hospital
psiquiátrico e um novo modo de encarar a doença mental.
• A consigna principal era a de que antes de tratar o doente era preciso
tratar a instituição.
18
O surgimento da clínica de La Borde
• Para Tosquelles, o hospital psiquiátrico deve ser um lugar de
passagem que se constitua ao mesmo tempo num espaço protegido
do exterior, dado que a fobia à loucura é uma condição natural do
gênero humano, e numa escola de liberdade – o que não é possível
na vida cotidiana.
• A experiência de Saint-Alban terminou em 1952 e culminou com seu
batismo por Daumezon e Koechlin de Psicoterapia Institucional. Em
1953 Jean Oury, que havia chegado a Saint-Alban em 1947, fundou a
Clínica de La Borde nas proximidades da cidade de Cour Cheverny, no
vale do Loire, que mais tarde passou a ser co-dirigida por Félix
Guattari.

19
As vertentes teóricas da Psicoterapia Institucional

Ao fundamentar a Psicoterapia Institucional, Oury explora um campo


teórico complexo que leva em conta não apenas o sujeito desde seu
isolamento clínico, mas o sujeito imerso na textura social e nas
instituições que o governam. Assim, para o tratamento de psicóticos
na instituição, Oury considera fundamental o conceito de alienação
que aborda de uma dupla vertente teóricas:

Na linha teórica de Freud e Lacan – alienação pessoal, que ocorre


pela entrada do sujeito na ordem da linguagem e da problemática do
desejo ao desejo do outro.
Na linha teórica de Marx – alienação social, que ocorre pela entrada
do sujeito na ordem social.
20
O Coletivo
O tratamento de psicóticos na instituição requer a um só tempo:
desalienação da instituição e desalienação dos que tratam.
Para isso é proposta uma grade de atendimentos, que possibilita
trabalhar a transferência específica do psicótico, que, por conta da
dissociação de sua personalidade, se faz sobre uma multiplicidade de
pontos, de pessoas e atividades.
Assim o objetivo da Psicoterapia Institucional é criar um Coletivo onde
tudo seja empregado para que o psicótico possa redelimitar seu corpo,
pela mediação de objetos transicionais.

21
A Psiquiatria Democrática Italiana

“...a transformação que se desenvolveu na Itália, que tem em Trieste


seu ponto mais avançado, é um processo social complexo; processo
que tende a mobilizar os sujeitos sociais como atores de mudança. É
uma ação concreta, cotidiana, de trabalhar com o manicômio real, o
manicômio imaginário, o sentido paradigmático desta instituição e no
interior desta ação produzir novas instituições”. (Nicácio, F. Da
instituição negada à instituição inventada. In: São Paulo: Hucitec. s/d.
Saude loucura 1, p. 92)

22
Um Processo Social Complexo

Paulo Amarante reporta-se à proposta utilizada por Franco Rotelli, de pensar


a Reforma Psiquiátrica como um “processo social complexo”.
Compreendendo “um processo como algo que está em permanente
movimento, que não tem um fim predeterminado, nem um objetivo último
ou ótimo. Aponta para a constante inovação de atores, conceitos e princípios
que marcam a evolução da história. Um processo social nos assinala que
existem atores sociais envolvidos e, enquanto tal, que existem interesses e
formulações em conflitos, em negociações. E, enfim, um processo social
complexo se configura na e pela articulação de várias dimensões que são
simultâneas e inter-relacionadas, que envolvem movimentos, atores,
conflitos e uma tal transcendência do objeto de conhecimento que nenhum
método cognitivo ou teoria podem captar e compreender em sua
complexidade e totalidade.” (AMARANTE, 2003,49, citado por ANAYA, 2003,
p. 68)

23
As dimensões do processo social complexo
Logo, o autor parte da concepção de “Processo Social Complexo” enquanto
processo dinâmico e de construção permanente, trabalhado pelos italianos,
propondo quatro dimensões simultâneas e que se intercomunicam para
pensar a Reforma Psiquiátrica no Brasil:
1)Campo epistemológico ou teórico-conceitual: refere-se à problematização
e à revisão das questões teórico-conceituais que se situam no campo da
produção dos saberes, produzidas pela ciência moderna e pela psiquiatria,
desde o mito da neutralidade científica, a ciência como produtora de
verdade e o papel do técnico como operador do saber prático, até conceitos
produzidos pelo referencial epistêmico da psiquiatria, tal como alienação,
degeneração, doença mental, isolamento terapêutico, cura, etc.

24
Dimensões...
2) Campo técnico-assistencial: define-se pelo modelo de assistência
prestado em termos de serviços e tratamento destinados ao “assistido”
a partir da construção de um conceito. No caso do conceito de
alienação mental, onde a loucura é considerada incapacidade da razão
e do juízo, possibilita-se a criação de um modelo assistencial – o
manicômio – calcado na custódia, na disciplina, na tutela, na vigilância
e no tratamento moral. Ao questionar as bases históricas e conceituais
desse modelo psiquiátrico, é possível transformá-lo e propor outros
lugares e relações com a loucura. A partir daí pode-se construir e
inventar novos serviços ou serviços substitutivos do manicomial,
estratégias e dispositivos, transformando as relações de poder entre
técnicos, usuários e familiares.
25
Dimensões...
3)Campo jurídico-político: as noções de periculosidade, de
irresponsabilidade e incapacidade, construída pela psiquiatria, são
rediscutidas e redefinidas para pensar as relações sociais e civis do
louco, que, a partir desses aspectos fundamentais é colocado sob a
tutela do manicômio e se vê privado do direito de ser reconhecido
como cidadão e de exercer sua cidadania. Tendo como parâmetro a
noção de cidadania trabalhada na experiência italiana, prevê, além da
ampliação dos direitos civis, jurídicos e políticos dessas pessoas, o
direito à pluralidade e à diferença. O direito ao cuidado sem exclusão e
à possibilidade do exercício de suas subjetividades.

26
Dimensões...
4) Campo sociocultural: seria para Amarante (2001) a dimensão mais
estratégica da Reforma Psiquiátrica, pois visa à transformação do lugar
da loucura no imaginário social. Lugar que não a associe a erro, a
incapacidade, a impossibilidade de trocas sociais e simbólicas. Diz
respeito ao conjunto de estratégias e intervenções que têm como
objetivo subverter os mitos produzidos no imaginário social, como
periculosidade, incapacidade e desvio, possibilitando a construção de
culturas e práticas sociais de solidariedade, inclusão e cidadania.

27
A Reforma Psiquiátrica na Itália: Gorizia
• O percurso inicia-se com o trabalho da equipe de Basaglia no Hospital Psiquiátrico
de Gorizia. O confronto com a realidade do manicômio evidencia a distância
entre “aquilo que diz ser” e “aquilo que é”: realidade absurda de miséria e
violência, deste e de todos os outros manicômios. É essa distância que será o
terreno para a ação transformadora.
• Tudo nesse hospital conflui para que o sujeito internado seja reduzido à condição
de objeto: o espaço físico, o tipo de comunicação, a organização do tempo, a
vigilância e controle constantes, e, principalmente, a relação que se estabelece
com ele.
• O sujeito internado torna-se assim um não-cidadão, incapaz e perigoso, sem voz
e sem direitos.
• A equipe trabalha principalmente com três questões: a ligação de dependência
entre psiquiatria, leis da justiça e ordem pública; a classe social das pessoas
internadas e a não-neutralidade da ciência.

28
A Reforma Psiquiátrica na Itália:Trieste
Esta forma de agir e de trabalhar com a resistência e de criar uma nova
possibilidade concreta gera crises, contradições e alianças, de modo
que não é possível fazer um enquadramento preciso definido porque
mudam as estruturas, os sujeitos e suas culturas.
Não se trata, portanto, de tomar o trabalho de Trieste como um mito,
até porque, o trabalho de desinstitucionalização proposto por Basaglia
implica também a desmistificação de uma série de formulações tidas
como verdades em nossa sociedade: como a da periculosidade do
louco, a ideologia de que o manicômio trata e a da neutralidade da
ciência psiquiátrica.

29
A violência do sistema social
O aprofundamento da crítica revela o manicômio como lugar de
segregação e controle que se fundamenta nos processos de exclusão
social daqueles que não se encaixam na ordem da razão e da
produtividade. Não é por acaso que a maioria das pessoas internadas
provém do proletariado ou do lumpemproletariado, pois a ação que se
desenvolve no interior da instituição psiquiátrica nos remete à
violência do sistema social – em última instância, a lógica que a
Psiquiatria propõe é a mesma presente na vida cotidiana. Esta
evidência faz com que a proposta basagliana leve a um
questionamento profundo do papel dos técnicos, do caráter político de
sua atuação e à recusa do mandato social de legitimação dessa
situação.
30
A instituição negada
• O trabalho de desvelamento do manicômio desenvolvido pela equipe de
Gorizia (principalmente descrito em “A instituição negada”) consiste no
primeiro momento da ruptura no campo epistemológico, cultural e sócio-
político efetivado pela desinstitucionalização. Nessa época, a Itália e toda a
Europa se agitam com os movimentos de 1968, em que as lutas estudantis
e operárias questionam as formas de existência social, a qualidade de vida,
as relações de poder, a relação do Estado com as instituições, a ciência e o
papel delegado aos técnicos. Esses questionamentos representam um eco
na ação e reflexão que já vinha ocorrendo em Gorizia, que possibilitam que
essas discussões se abram para a sociedade civil.
• O desenvolvimento do processo de questionamento leva a equipe a
solicitar o fechamento do manicômio à administração local, pedido que é
recusado, o que leva então os profissionais a se demitirem, dando alta a
todos os internados.

31
A lei 180
• O processo que se desenrolou em Gorizia não tinha como finalidade ser
um novo modelo técnico, não se limitava à transformação do interior da
instituição, mas a partir dela colocar em discussão a própria finalidade da
existência do manicômio.
• O movimento de crítica ao manicômio na Itália concentrou seus esforços
no campo social, procurando aliados no sindicatos, nos partidos políticos e
nas organizações não-governamentais no sentido de aprovar uma
legislação que garantisse o fechamento dos hospitais psiquiátricos e sua
substituição por novos serviços de saúde mental que não reproduzissem a
antiga ideologia psiquiátrica de controle e segregação.
• Em maio de 1978 é editada a Lei 180 que abole a internação psiquiátrica,
proíbe a criação de novos hospitais psiquiátricos, abole o estatuto de
periculosidade social do doente mental e garante a este todos os direitos
civis e sociais.
32
A desinstitucionalização
A Lei 180 é um marco fundamental produzido pela desinstitucionalização.
Todo esse processo partia de uma hipótese: Basaglia colocava que o mal obscuro da
Psiquiatria está em ter separado um objeto fictício, a doença, da existência complexa e
concreta do paciente e do corpo social.
Sobre esta separação artificial se construiu um conjunto de aparatos legislativos, científicos,
administrativos, de relações de poder, todos referidos à doença. E é esta instituição a ser
negada, a ser desconstruída; o objeto da Psiquiatria torna-se então não mais a periculosidade
da doença, mas a existência-sofrimento dos pacientes e sua relação com o corpo social.
E nas palavras de Rotelli: “Estamos cada vez mais convencidos que o trabalho terapêutico seja
este trabalho de desinstitucionalização voltado a reconstruir as pessoas como atores sociais”.
A partir de 1971, Basaglia assume a direção do Hospital de Trieste (Hospital Psiquiátrico
Provincial) quando tem início sua desconstrução de dentro, sendo oficialmente abolido em
1980. A partir de 1976, começam a ser construídas novas estruturas externas como os Centros
de Saúde Mental, os plantões nos hospitais gerais e cooperativas de trabalho.

33
Reforma Psiquiátrica no Brasil – A Luta
Antimanicomial
• No Brasil, as discussões sobre a assistência à saúde se intensificaram na década
de 1970, ao mesmo tempo em que se a sociedade civil começou a se reorganizar
politicamente.
• Desde o final do século XIX, a maior parte das verbas da saúde mental era
destinada aos hospitais psiquiátricos públicos. Hospitais que se caracterizavam
pela exclusão, segregação social e violência, dos quais o Juqueri é um exemplo
típico.
• A partir de 1964, esse quadro se agrava com a celebração de convênios com a
iniciativa privada. O setor público passava a subvencionar uma assistência que
em nada diferia da anterior, com o agravante de transferir recursos do setor
público para o privado, transformando o louco em fonte de lucro. Entre 1965 e
1979 o número de hospitais psiquiátricos privados foi praticamente triplicado.
• Nos primeiros anos da década de 1970 houve algumas tentativas de mudança da
parte dos órgãos oficiais que não duraram muito.

34
Luís Cerqueira
• Em 1973, Luís Cerqueira assume a Coordenadoria de Saúde Mental da
Secretaria da Saúde e começa a implantar uma nova assistência, proibindo
as internações no Juquery, criando pronto-socorro para estadia de curta
duração, firmando convênios com as cadeiras de Psiquiatria das Faculdades
de Medicina e tentando conter as internações na rede privada.
• Crítico severo dos hospitais-asilo, enfrentou muitas resistências e em sua
curta gestão não conseguiu efetivar as medidas que se propunha. (Yasui, p.
49).
• No final dos anos 70, vários movimentos sociais lutavam pela construção
do Estado de Direito: o Movimento Nacional pela Anistia, as greves de
trabalhadores, a reorganização político partidária, o movimento contra a
carestia, as reivindicações por mudanças na saúde.

35
Movimentos sociais pela democratização da saúde
“O intenso movimento pela democratização da saúde – compreendendo as práticas
de saúde como práticas sociais - empreendeu a articulação tanto das temáticas
referentes às concepções teóricas e práticas dos serviços de saúde, como aquelas
relativas à saúde como direito e sua relação com a organização social. Foram
construídos o Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (CEBES) e o Movimento de
Renovação Médica com o objetivo de agenciar e potencializar o pensamento
crítico, as novas experiências em curso e os percursos de luta pela reforma
sanitária. No CEBES foram criadas Comissões de Saúde Mental em várias regiões e
em particular no Rio de Janeiro, São Paulo e Minhas Gerais, que difundiram a
crítica e o debate sobre as condições da assistência psiquiátrica. A articulação entre
essas Comissões e os diversos grupos organizados naquele período, possibilitou o
primeiro encontro de trabalhadores da área no Congresso Brasileiro de Psiquiatria
realizado em 1978, que constituiu um marco político, rompendo com o caráter
tecnicista dos eventos anteriores. O debate suscitado pelas denúncias das
condições da assistência psiquiátrica repercutiu em diversos âmbitos e transcendeu
o campo sanitário” (Nicácio, 2005, p. 197).

36
O MTSM
• Nesse período se multiplicaram as iniciativas de organização dos trabalhadores
em várias regiões do país e se formou o Movimento dos Trabalhadores em Saúde
Mental (MTSM), que se tornaria, nos anos posteriores, o principal ator dos
projetos de transformação da instituição psiquiátrica.
• “As diversas iniciativas do MTSM daquele período foram particularmente
animadas pela afirmação dos direitos humanos universais, pelas contribuições
das análises críticas na área da saúde, pelas experiências de reforma psiquiátrica
realizadas nos EUA e em países europeus e, sobretudo, pela prática cotidiana nas
instituições desencadeando o processo posteriormente denominado de reforma
psiquiátrica”. ( Nicácio, 2005, p. 198)
• Em 1978, ocorre no Rio de Janeiro o I Simpósio Internacional de Psicanálise,
Grupos e Instituições, que reuniu diversos autores do pensamento crítico como
Basaglia, Guattari, Castel, Foucault e Goffman, o que potencializou o debate
sobre as diferentes perspectivas de compreensão da loucura e suas relações com
os saberes, as instituições e os processos sociais.

37
CONFERÊNCIAS
• Basaglia retornou ao Brasil no ano seguinte, quando foram realizadas as
“Conferências de 1979”, ocasião em que suas idéias puderam ser conhecidas,
aprofundadas e difundidas.
• Em meados de 80, alguns grupos do MTSM imprimiram novos rumos ao debate,
questionando o modelo preventivista-comunitário, que evidenciavam que o
manicômio permanecia como centro do circuito assistencial.
• Nesse período foram realizadas diversas iniciativas, destacando-se a realização do
Tribunal Franco Basaglia, realizado em 1984, e promovido pela Rede de
Alternativas à Psiquiatria, que, desde o Simpósio de 1978 era um dos polos de
agenciamento do MTSM.
• Em 1985 ocorreu o I Congresso Nacional de Trabalhadores de Saúde Mental em
1987, o II Congresso Nacional de Trabalhadores de Saúde Mental, no qual as
discussões foram amadurecidas e a insígnia “Por uma sociedade sem
manicômios” afirmou-se como possibilidade de utopia de transformação da
realidade.
38
O MOVIMENTO NACIONAL DA LUTA
ANTIMANICOMIAL
• O Movimento afirmou a necessidade de dar prioridade à superação
da lógica manicomial indicando o horizonte de um processo prático-
crítico de transformação das instituições psiquiátricas e de
questionamento do papel dos técnicos como delegados da ordem
social e legitimadores da violência institucionalizada.
• O MTSM passou a organizar-se como movimento social: o Movimento
Nacional de Luta Antimanicomial e nos eventos que se seguiram
potencializou a presença e a articulação de usuários e familiares.

39
A CONSTITUIÇÃO DE 1988 E A CRIAÇÃO DO SUS
A partir do final do anos 80, foram produzidas inovações nas dimensões
institucional, política, jurídica e cultural: a produção de diversas experiências
locais e a implementação da Política Nacional de Saúde Mental no contexto
do Sistema Único de Saúde (SUS) criado pela Constituição de 1988.
(Dentre essas experiências mencionamos a Intervenção no Hospital
Anchieta em Santos, de onde resultou a criação dos NAPS (Núcleo de
Atenção Psicossocial) de inspiração triestina e a criação do CAPS (Centro de
Atenção Psicossocial) Luís da Rocha Cerqueira, em 1987, que manteve
diálogos com La Borde e com o Centro de Saúde Mental de Setúbal, em
Portugal).

40
Referências Bibliográficas

• AMARANTE, P. A clínica e a Reforma Psiquiátrica. In: Arhivos de saúde


mental e atenção psicossocial. Rio de Janeiro: Nau Editora, 2003.
• ANAYA, F. Reflexão sobre o conceito de serviço substitutivo em saúde
mental: a contribuição do CERSAM de Belo Horizonte, Minas Gerais.
Dissertação de mestrado apresentada à Escola Nacional de Saúde Pública
da Fiocruz. 2003.
• BASAGLIA, Franco. A instituição negada. 3.ed. Rio de Janeiro: Graal, 2001.
• CASTEL.R. A gestão dos riscos: da antipsiquiatria à pós-psicanálise. Rio de
Janeiro: Francisco Alves, 1987.
• COOPER, D. Psiquiatria e antipsiquiatria. São Paulo: Perspectiva, 1967.

41
Referências Bibliográficas
• NICÁCIO, M. F. Da instituição negada à instituição inventada. In:
LANCETTI, A. Saúde loucura1 . São Paulo: Hucitec. s/d. p. 91- 108.
• NICÁCIO, M.F. ; AMARANTE, P. ; BARROS, D.D. Franco Basaglia em
terras brasileiras: caminhantes e itinerários. In: AMARANTE, P.
(Coord.) Archivos de saúde mental e atenção psicossocial. Rio de
Janeiro: Nau, 2005. p. 195-214.
• YASUI, S. Caps: aprendendo a perguntar. In: LANCETTI, A. (Org.) Saúde
loucura1 . São Paulo: Hucitec. s/d. p. 47- 59.
• SILVA, L.B.C. Doença mental, psicose, loucura: representações e
práticas da equipe multiprofissional de um hospital-dia. São Paulo:
Casa do Psicólogo, 2001.
42

You might also like