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DEPOIS DA FESTA MOVIMENTOS NEGROS € "POL"CaS oe IDENTIDADE" NO BasiL* Olivia Maria Gomes de Cunhe “Mudar € mudar culturalmente” Eduardo de Oliveira e Oliveira, 1974 “Buy this or read this, because it is authentically black” No presente texto, desejo refletir acerca da experiéncia de um grupo que, embora nao se enquadre strictu sensu no rétulo de entidade do movimento negro, dele se concebe tributario quanto a seus objetivos e estratégias de atuacdo — o Grupo Cultural Afro Reggae (GCAR). Seus fundadores iniciaram 0 processo de socializagdo nos circuitos de lazer e militancia, tanto dos grupos que compdem o movimento negro no Rio de Janeiro quanto em organizagdes ndo-governamentais que, em alguns casos, propunham politicas e programas semelhantes.” A aniilise, todavia, tem objetivos mais pragmiaticos: confrontar vozes que, em meados dos anos 90, se detém no debate sobre a “politica racial” e suas implicagdes diante de um novo quadro politico- institucional no pais com aquelas que precon Zavam, ae No seu periodo formativo e sob o regime autorit rio, a sue ie da cultura ou da “cultura negra” como estratégia de snobilizay es politizagdo e conscientizagao da populagao. Ainda que em noe pain s envolvidos nestis expe- context istintos, muitos gru os envo: . et tos d grup’ interpretag tiéncias tiveram como interlocutores persondgens € WET telectual Sobre a temitica racial no Brasil oriundos do “umpo a os € académico. O exemplo do GCAR nos permite icecionados desafios que envolvem os discursos € as praticas js. Ainda que para a erradicacao da discriminagao racial no pals. ancia” @ a tacademia” lo poss, tre a “militancy ea “academia” r Po am ser na idlogo eo thins Sire as fronteinas fefinidas, sobre o didlogo € ow insito de categoriag rigidamente Cefn og ambas que desejo refletir, presentes 10s discUrsos & POLITICA E CULTURA: ALGUMAS QUESTOES EF SENTIDOS iver teve, também, que aprender com essa cumadas populares, inclusive para se desenvolver. Continuar a aprender, fazer intercimbio. Somos reprodutores de uma cultura que eles produzem (...) Inclusive ha uma idéia vigente — e foi dito inadvertidamente — “vocés levam essa musica, cultura popular ao proletariado". Esse € um conceito que esté sendo usado por fodo mundo que tenta fazer um trabalho de levar alguma coisa, Conheco o pessoal ¢ nao é essa a pretensio, na medida em que se fizesse isso estaria negando o trabalho. Eles nao vao levar cultura, vao se identificar com a cultura existente (...)° © grupo para sobrev A epigrafe acima foi retirada de uma entrevista dada por um integrante do Grupo Vissungo a um jornal de esquerda, cuja tOnica era o carater popular de suas formas de comunica¢ao com o ptblico. Os misicos do Grupo Vissungo faziam pesquisas sobre as raizes bantu da musica regional de Minas Gerais e do interior do Rio de Janeiro. Os registros musicais coletados eram transformados em material de uma pedagogia étnica. Revelado seu valor hist6rico e etnogrdfico, eram adaptados a estilos musicais contemporineos e, entremeados com estorias € exibicao de instrumentos de origem africana, eram apresentados em shows realizados em espagos artisticos e bairros de periferia. A €poca, essa estratégia constitufa-se em um dos possiveis investimentos realizados pelos movimentos negros no sentido de aproximarem-se das populacgdes mais pobres residentes em periferias e favelas, em sua maioria, negra e mestiga.* Ta Propostas tinham como objetivo reconfigurar experiéncias ee € recreativas populares tradicionais dentro de um como ae eee Cnc &tnico e politico. Ativicades rico € promissor ao ase, Vissungo se revelaram um camin ™® diversificado, Seman stem Pablicos de perfil socioeconomicg da obra de a ee de artes plasticas, aproximagiio € resgil mbistas tradicionais de escolas de samba, bem 334 I_RIXAW EEC: como uma espécie de “conversio” ao ut na Africa e no candomblé, mistura organizagdes negras norte-americ hiverso cultural inspirado ANSE 48 Noticias sobre as anas, aos debe a dos movimentos revolucion zendo es © as discussdes " iiti0s © pOs-coloniais africanos, im uM Conjunto de priticas ue Caracterizavam S propostas dos movimentos ne pitais brasileira (Tanchard, 1991, Turner, 1985 Gonzalez 1982, 1985). Esse olhar para as “raizes culturais breaker: de matrizes africanas s¢ fez presente, sobretudo, nos ambientes de formagio e sociabilidade de uma pequena camada de nan, brancos, em grande parte universitarios, que emergiu no cen: politico-cultural contemporineo ao que “renascimento”’ do movimento negro, acer pe a presenga ea & 8F08 em algumas ‘rio muitos chamaram de Esse processo foi contemporineo a emergéncia dos movi- mentos sociais no Brasil, num contexto de lenta distensdo do regime politico autoritério. InGmeros Srupos surgem e organizam-se a partir de agendas distintas ao final dos anos 70 — mulheres, entidades sindicais, homossexuais, ecolégicas, grupos de bairros —, evocando um remapeamento das formas de organi- za¢4o e transformando em questées politicas os mais diversos aspectos da vida cotidiana (Winant, 1993). Entre os grupos negros urbanos organizados, parcela de estudantes universi- tarios, jornalistas, artistas, profissionais liberais Passam a inte- grar-se em variadas formas de discussio acerca do modelo de telag6es raciais vigente no Brasil. Tais debates, em muitos casos, tiveram como pano de fundo a critica 4 violéncia que caracterizava as instituigdes de repressdo policial do Estado. A luta contra o regime militar ganhava eco nas pressées pela defesa dos direitos humanos e pela liberdade de expressio, na qual os militantes negros detectavam um espaco de critica do carater autoritério das instituigdes de seguranga que, em tiltima anidlise, penalizavam com maior freqiiéncia individuos duplamente excluidos: pela pobreza e pela cor da pele. Se, naquele momento da critica, a auséncia de garantias individuais postuladas pelos grupos de defesa dos direitos humanos tinha uma énfase muito maior na sua dimensio politica (Caldeira, 1991, a primeira tentativa de unificagdo de iniciativas dispersa de mobilizagio contra o racismo — 0 Movimento Negro Unificado contra a Discriminagio Racial (MNUDCR) — hasce justamente refletindo sobre as formas de violéncia que mais atingiam a populagio negra.$ 335, nto de tal movimento de negros ocorreu investimentos 4 ssociativos de carater itivo ja estavam em curso de Jos politico-organizativos explici- Frm ape © cat AO COMI dy Sober te ° fe sua tentativa de unificagio numa oars “rincipal era discutir 0 racismo como en sot Cees movimentos mantiveram-se estru- cee ees da anfase na sociabilidade e resistram a pote zagio do discurso. O Vissungo, enquanto um “grupo cultural”, de certa forma procurou aliar dois projetos nem sempre bem vistos por diferenciados setores do movimento: fazer da cultura, e principalmente da “cultura negra”, um instrumento de conscien- tizagdo da populagao negra, pobre € marginalizada. Todavia, se olharmos para alguns textos produzidos por militantes negros nesse periodo, podemos perceber 0 quanto 0 debate que se relacionava a discussio das estratégias de organizagao do proprio movimento envolveu o debate da nogao de “cultura”. A seguir, deter-me-ei brevemente na andlise de trés distintas visdes produzidas por intelectuais e militantes do movimento negro nos anos 70, nas quais pretendo identificar de que maneira a discussdo sobre o tema da cultura era pensada. Contudo, 0 surgine num momento em que inves” nie cultural e rect eminenteme! tad A propésito de uma diferenciagdo entre uma énfase mais “recreativa” e que se fechava 4 politizagdo do discurso e uma outra, para a qual a “cultura” era vista como um instrumento de aproximacao da militancia e dos intelectuais com a popu- lacdo, a entao militante do MNU Lélia GonzAlez institufa uma poderosa classificag4o que previamente qualificava os termos das praticas propostas. Ao descrever os embates que antecederam a criagdo da organizacao, chamava aten¢do para os aspectos que caracterizavam ambas as modalidades de associativismo. O primeiro, denominado “entidades negras recreativas” ou entidades culturais de massa’, tinha como exemplo as escolas de samba cariocas: Fem as massas, a nosso ver, sempre trole por parte das “autoridades” (...) dida em que, ao transarem o cultural, uma pritica politica, preparadora para 0 negros de cardter ideolégico. (1982: 22) Possibilitam 0 exercicio de advento dos movimentos 336 Gon: jez, a principal caracteristica dessas formas de associativismo seria a de oscilarem entre a cooptagio — prinel. palmente ao se aproximarem do Estado através das subvencoes realizacao de festas ¢ desfiles — ¢ restringirem-se culturalistas” © “assimilacionistas” (1982: 25) Contrapondo-se a estas e tendo como. Paradigma o proprio MNU, o outro tipo de grupo — adjetivados como “politicos” — se caracterizaria pela clareza de seus objetivos em toro da assuncao de uma “identidade negra” e da luta contra o racismo. £ inte- ressante notar como estas diferenciagdes si numa dupla tentative 0 estabelecidas - Em primeiro lugar, a de legitimar a postura daqueles que priorizavam um discurso preponderantemente politico frente ao “culturalismo” que, por seu turno, representaria um “enfraquecimento” da luta anti-racista e sua suposta “ilegiti- midade”, Mais adiante, podemos perceber que ambas as nogoes — tanto a de “politica” quanto a de “cultura” —, vistas isolada- mente, sao ineficazes para o projeto de transformacao defendido por Gonzalez. Ou seja, a idéia de que nem a festa e a celebragao conscientizam a populagao negra, no sentido de transformar uma realidade social € racialmente desigual, nem os apelos politicos tradicionais existentes nos partidos e organizagoes de esquerda vinham sendo capazes de mobiliz4-la. Assim, podemos entrever um mesmo sentido, subjacente a essas duas concepg¢6es. No associativismo de cardter “recreativo”, visto pela perspectiva de seus opositores, a cultura tanto € olhada como conjunto de elementos externos ao grupo que a “utiliza”, como € concebida como pratica destituida de sentido e expresso de valores tradicionais: mantenedores da ideologia que oculta as contradigdes raciais e sociais vigentes no pais, através da teificacao do “mito da democracia racial”. A idéia de politica, também segundo os mesmos interlocutores, enquanto pritica de reflexdoe transformagdo, figura como uma espécie de agente Potencializador de sentidos. A idéia de transformacdo recon- figura esta relagao: se entre os primeiros 0 relevo dado aos aspectos culturais sinaliza “acomodagio”, e “enfraquecimento”, Para os segundos é 0 elemento que deflagra processos de trans- formagao pessoal € social. O didlogo se produz em fungio de um projeto politico e ideolégico especifico. E importante ressaltar que as criticas do que se concebia como “culturalismo”, ao lado do que se imaginava caracterizar a cultura politica das relagdes entre as classes dominantes e 337 as classes populares — a cooptagio —, niio penetraram exclusivamente nos dominios da militéncia negra. Ao contrario, fizeram parte de uma espécie de ethos politico que percorria varios movimentos sociais e grupos de esquerda no mesmo periodo. A “politizagio”, por exemplo, que se dava num momento de distensio do regime militar, era vista como obje- tivo principal num momento de reorganizagao popular, diante da dispersio provocada pela censura e pelo terror, Nessa pers- pectiva, significava depurar do que se imaginava constituirem as relagdes entre elite politica e as populagdes socialmente marginalizadas, dos vinculos calcados no personalismo politico, no clientelismo e na troca de favores, que entdo marcavam o cenirio politico nacional. Nada mais evidente nesse sentido do que “reorganizar” e “conscientizar” as massas para a conquista do poder e da democracia. Ainda que, como bem aponta Winant (1993: 183), essas agdes tenham privilegiado tanto questées “humanisticas” quanto politicas, idéias como organizagdoe mobi- liza¢do consistiram nos embrides de outros discursos em torno da ldgica de intervencao de agentes e militantes entre as classes populares, e que, como veremos, nas décadas seguintes, irao Provocar um conjunto de revises e criticas internas, diante da reprodugio da visao dualista e autoritdria que muitas vezes tesultou deste contato (Duarte et al. 1993). Nessa Otica, tais entidades, “assimilacionistas”, reificavam vinculos politicos calcados no personalismo, ao desejarem a integragao “numa perspectiva capitalista” e nao a transformagao. Assim, para Gonzélez, o “culturalismo” se mostrava eivado das contradigdes que marcavam uma visio benevolente e clientelista do Brasil € de uma populacao racial e economicamente homogénea. Para grande parte dos militantes e intelectuais negros do periodo, a tarefa entio conscientizadora tinha implicagoes singulares. Em parte estava marcada Por uma postura reativa, frente a banalizacio e mercantilizagio da “cultura” por parte das elites e do Estado. Ao adjetivar. de cultura conquistava um certo valor num determinado mercado de bens simbdlicos, na medida em que a pressupunham “pura” (porque nao cooptada) e de “resisténcia” (ao traduzir de mi singular um projeto de transformagio politico-social), A cons cientizagdo, sob este Ponto de vista, consistia tanto em uma espécie de conversio a um ethos de sociabilidade militante € teligiosa como em uma reconfiguragio (no que diz respeito 2 nomenclatura) de termos raciais, “se como “negra”, tal visio 338 Mas outras questdes importantes, discutidas no esforgo de compreensio da necesséria vinculagao entre cultura e politica para a mobilizacio ¢ organizagao da popukagao negra no pats, ja se faziam presentes no periodo. Vejamos. Para Gonzalez, a diferenga entre manciras distintas de formular o debate © racismo €, 20 mesmo tempo, a necessidade de se mentar uma politica de unificagao desses esforcos no sentido de transforma-los num movimento nacional, forte e solidario, deveriam ter como principio a constatagdo de que tal “luta” era construida sobre a diversidade. Esboca-se, j4 naquele momento, as primeiras referéncias 4 nogao de diferenca, mas como artificio de demarcagio de atributos histéricos, culturais e étnicos distintos. Nesse momento, a idéia de “diferenga” tem um status ontoldgico, ao ser explicada como um conjunto diversificado de elementos cultural ¢ historicamente determi- nados pela origem e pelas vicissitudes da presenca negra nas Américas. E se ha um lugar que lhe € privilegiado, € no plano da cultura. A idéia de diversidade cultural, tal como explicitada por Gonzalez, seria entao percebida e exemplificada tanto nos quilombos’ como nas irmandades religiosas e escolas de samba. Diferencae diversidade seriam atributos que configurariam outras possiveis formas de organizagio e associativismo entre a populagao negra, incorporadas sob a polimorfa nogio de “cultura negra”. Tratar-se-ia, nesse sentido, da idealizacio de um referencial coletivo capaz de abarcar, abrigar, dar sentido € reconfigurar as marcas dispersas (mas também observadas Nos seus aspectos coletivos e nunca individuais) da presenga negra na sociedade brasileira. sobre imple- Também como um prinefpio de “resisténcia contra a opressio”, a idéia de “cultura negra” se fez presente no debate sobre os varios aspectos da luta contra a discriminagio racial. Na maioria das vezes era veiculada como algo a ser “resgatado”, “valorizado” e “divulgado” através de estratégias que se distinguiam de uma mera “comercializagaio”. Ao contrario, a valorizagio de determinados aspectos culturais adjetivados como “negros” constituir-se-ia numa estratégia de politizagdo. Nesse contexto, artificios distintos de territorializagao direcionavam os olhares, as prdticas e os textos para a Africa, encontrada tanto nesses Vestigios insulares das culturas negras no Brasil como nos movimentos pés-coloniais e nacionalistas em curso em alguns Paises africanos. A idéia de “resist@ncia” aproximava-se entao 339 da de “afastamento"*e negagio da ideologia racial, refletida “no mito da democracia racial", Num primeiro momento, essa redefi- nigio de sentido deslocou os olbares de um retrato em que a apologia A misturae a miscigenagdo era a tonica. Ao refazer essa espécie de mapa da identidade, no qual nao s6 a Africa mas também uma cultura negra e africana passam a ser localizadas numa outra cartografia (Slater, 1996), outros aspectos relativos a tensio entre perspectivas diferenciadas de acdo se evidenciaram Voltando ao texto de Gonzilez, € preciso atentar para a conjuntura politica na qual se inscreve € 0 sentido atribuido a algumas nogoes que sao privilegiadas nas andlises que faz sobre os movimentos negros. Gonzalez divergia de propostas entendidas como préximas a um esvaziamento de conteudo politico, porque valorizava a possibilidade de mobilizar as “massas negras”. Este ponto, de fato, traz 4 tona as conexées politicas e ideolégicas que nao s6 embasavam 0 texto destes intelectuais, como estabeleceram as ilagdes necessdrias para que esse discurso fosse visto como relevante por grande parte da esquerda (Gilroy, 1993). Pelo menos € nesses termos que Gonzalez entio explicava o descompasso entre as duas vertentes, a “culturalista” e a “politica”: Vale notar que as entidades culturais que, de um modo ou de outro, se distanciaram do MNU (por discordarem de sua proposta ou por falta de clareza politica) foram obrigadas a se posicionarem de maneira mais incisiva, justamente porque o MNU conquistou espacos politicos que exigiam esses avancos por parte delas. Hoje nao da para sustentar mais posicdes culturalistas, intelectualistas, coisas que tais, e divorciadas da realidade vivida pelas massas negras. (1982: 64) O “fim do mito” como um pré-requisito para o avango da mobilizagio negra e para a assunco, por toda a sociedade brasileira, da existéncia do racismo no Brasil, foi e continua sendo um outro importante ponto de discus: tanto militantes como intelectuais. No campo intelectual, a critica 4 idéia de paraiso racial tem sido pautada por um outro importante debate que insere o fator classe, ora como recorte preponderante, ora como determinante para o fato de as posigdes sociais serem andlogas as categorias raciais. Nao vou me deter nessa discussio, j4 bastante mapeada, mas assinalar que envolve 340 que, ainda que a literatura sobre relagdes r. a pesquisa da UNESCO? na década de os termos com Os quais. “status” © “classe” ante: Ais, produzida apés 1950, tenha enriquecido > pensava as distingdes de “raga”, jormente, a grande maioria desses trabalhos acabou por enfatizar o plano das desigualdades socioecondmicas, em detrimento dos modos através dos quais quest&es relativas a “cor” e a “raca” eram percebidas e vivenciadas no plano das relagdes sociais (Winant, 1993), Por parte dos intelectuais/militantes negros, essas andlises foram precedidas pela descrigio da propria sociedade brasileira, em termos da sua formagao histérica e cultural, vista como racialmente polarizada. Assim, a “realidade”, que se imaginava oculta pelo “mito da democracia racial", emergia tanto das andlises quantitativas das desigualdades sociais/raciais do pais, quanto de uma leitura acurada de textos analiticos e memorialisticos do referencial que fundamentava o proprio debate: o sistema racial americano (Fry, 1996). A justificativa muitas vezes implicita no discurso dos movi- mentos negros, ao reafirmarem a unidade, ante o perigo de fragmentacao sugerida por situagdes individuais, se pautava no desejo de denunciar (para além de todas as vicissitudes de sua légica pretensamente democratica) as profundas desigual- dades raciais em vigéncia no pais, e a eficdcia da ideologia definida e descrita pelo socidlogo Gilberto Freyre como o “mito da democracia racial”, como um artificio de mascara- mento destas mesmas rela¢gdes. Se confrontada aos discursos sobre as formas de intervencio e a énfase na nogio de “cultura negra” como estratégia de mobilizagdo, o desejo de caracteri- zagao do “mito” enquanto ideologia oficial tem implicagdes complexas. Peter Fry, por exemplo, questiona a forma hierarqui- zada pela qual nogdes de mito e realidade sio utilizadas em grande parte da literatura sobre o tema. Mais ainda, nos chama ateng4o para um perigoso reducionismo que resulta das inter- Pretagdes sobre a “democracia racial” (1996). Curiosamente, Parte desse diagndstico nao esteve propriamente ausente do debate militante. O militante/historiador Joel Rufino chamou atengdo para a necessidade de separar a andlise da idéia de democracia racial, enquanto um ideal e “aspiragio” geral da sociedade brasileira, da constatagio de sua inexist@ncia num plano mais concreto das relagdes raciais: 341 Sera sem divida esse contraditar 0 mito da democracia racial 0 principal dbice ao crescimento dos movimentos negros. Vem, em seguida, a incapacidade — mais pritica, na verdade, que — de articular os conceitos de raga e classe; deduzir © uma estratégia mobilizadora da populacao ia e subproletiria. Raga, cor, etnia e cultura sio usados indistintamente no discurso desses movimentos, o que parece enfraquecer sua fungio de pedais do conhecimento e da agao. (Santos, 1988) tedrica desta articula negra prolet E nesse contexto de critica ao “mito da democracia racial” como modelo explicativo da dindmica das desigualdades no Brasil que o referencial norte-americano, tanto do ponto de vista do sistema racial vigente quanto dos movimentos pelos direitos civis organizados para questiond-lo, passa a ser 0 para- digma de grande parte das andlises sobre o tema. A estratégia encontrada por muitos foi a de retratar a sociedade brasileira em preto e branco, de modo a evitar as vicissitudes dos discursos calcados em termos baseados nas cores, fenétipos, textura de cabelos e relagdes de afinidade que marcavam o discurso racial no pais. O intelectual/militante Eduardo de Oliveira e Oliveira 4974), por exemplo, defendia uma visio polarizada das relagdes raciais e, conseqiientemente, das estratégias de enfrentamento da discriminagao racial. Tal compreensio era justificada na necessidade de defender a idéia de uma polarizagdo que nio mascarasse o fato de que o racismo incidia de forma mais ou menos tenaz, mas igualmente, sobre negros, mestigos, mulatos € pardos. Assim, imaginava serem as relacoes raciais relagdes de coer¢ao.” Propunha, ao contrario da reificacdio e pulverizacio dessas categorias classificatorias, que se tomasse a questio da polaridade como légica de classificacdo social — que denomi- nava o “lugar social da mistura”, Assim, 0 termo negro, como. categoria social, abarcaria todas as vicissitudes do emprego de diferenciadas formas de classificagdo racial. A nogio de cultura, por sua vez, na visio do autor, apareceria como impor- tante elemento de construgdo de uma realidade etnicizada (a “visio do negro") e montada sobre uma historia, Entre os “negros”, a cultura seria entdio um poderoso recurso frente a estratégias de cooptagao e descaracteris das mtiltiplas nuances class Agdo, ao distinguir icatérias baseadas no fendtipo os elementos que os tornavam diferentes socialmente, Note-se que, uma vez que a cultura negra tenha esse papel delimitador, 342 nio € por outro motivo que, a partir dela interven¢do vao se disseminar. Nao so entre a “massa” populagio pobre e negra mas, Principalmente aa aS que se julgavam livres das pressdes de uma : nica”: os intelectuais. as praticas de © aqueles “cultura hegemo- Eem um outro texto que o autor de. envolve a idéia do que chama de “compromisso intelectual” (1977). Oliveira chama os intelectuais dedicados a temitica e, entre eles, sobretudo os intelectuais negros a uma tarefa “descolonizadora”. Ao traba- Iharem com uma concepeio de cultura “nao etnocéntrica”, teriam como tarefa “descolonizar” as mentes e as Praticas de seus pares; uma vez que os intelectuais negros estariam “encur- ralados na sua condi¢ao primeira e primeva, Sujeito/objeto do seu trabalho, nao tém outra op¢io, Nao [estio] lidando com um assunto (€ preciso que eles saibam), mas com uma causa"(1977: 27). Para Oliveira, a tensio que permeava tais esforcos, a um s6 tempo intelectuais e politicos, possibilitaria um redirecio- namento teérico e analitico na condugio de pesquisas sobre © negro no Brasil e da prépria mobilizagao politica. Tal qual Guerreiro Ramos na década de 1950, que defendia uma “socio- logia critica” da producao intelectual sobre a temtica racial," Oliveira chamava atengao para a duplicidade de papéis e a necessidade de formular paradigmas teéricos proprios de investigacao. Embora nao nesses termos, Oliveira nos sugere que a condi¢ao de “eterno nativo” possibilitaria tanto uma forma de intervengao direta quanto a apropriacdo e autoridade diante do debate, sobre o qual deveria realizar uma espécie de meta- discurso sobre as préprias condigdes da produgao intelectual. Nesse texto, Oliveira esboga os principais pontos no que diz respeito a necessidade de se pensar uma “ciéncia para e nao tanto sobre 0 negro”, uma vez que sua “condigdo étnica” determinaria um modo especifico de insergdo no campo intelectual. Para 0 autor, ainda que adscrita a pressupostos explicitamente racistas, tal condigio deveria ser reapropriada num sentido inverso; transformar-se num /ugar de onde se produzitia a critica a uma “sociologia principal burguesa liberal” (1977: 26). Para o nosso texto, duas questOes emergem desse debate de forma mais proeminente. Se por um lado a ambigtlid ude das categorias classificatérias deveria resumir-se a uma SO categoria politica — capaz de articular a diferenga de Bae recortes como classe e género sob o referencial étnico —, de 343, outro, no plano das conexoes hist6ricas, culturais, nacionais e transnacionais, a idéia de mistura seria reapropriada de forma inclusivista. Ou seja, paralelas a essa depurag’io de termos clas- sificatorios que enfraqueceriam um processo inexoravel de “conscientizagao” dos negros brasileiros, referencias politicas e culturais internacionais eram tomadas como paradigmas da luta anti-racista no pais. Entretanto, o que Gonzalez qualificava de “diferenga” e “diversidade” — as formas hist6rica e social- mente distintas de pensar a questo étnica — deveria subsumir a visio dualista. A categoria “negro” referenciaria nao s6 uma releitura da posigio anterior de subordinagio social, mas um Jugar para onde convergiriam todas as vicissitudes no emprego de termos classificat6rios de tipo racial. Referindo-se a essa estratégia retérica como “inclusivismo cultural”, Gilroy (1993b) nos mostrou 0 quanto a visio dualista e a conseqiiente construgio de um discurso étnico-nacionalista, no contexto inglés, evitou a referéncia aos modelos “hibridos” e “creolizados”. Panikkar,’* num momento distinto, no qual tratou das possibilidades de um didlogo “intra-religioso” entre hinduismo e catolicismo, refere-se ao fato de que diante do perigo da perda de identidade, da extensio e dos limites da troca, o discurso da analogia foi substituido pelo da equiva- léncia. Esses processos podem ser interessantes para pensarmos tanto a evitacao das dimensoes de contato cultural consideradas “impuras” e “poluidas” (Douglas, 1977; Gilroy, 1993b: 2) — ou seja, tudo aquilo que remete 4 mistura e é base para a reafirmacio do discurso elogioso ao “mito da democracia racial” — quanto, num segundo momento, o movimento descrito por Panikkar. Ou seja, a incorporacao do que est préximo, porém diverso, como estratégia de afirmacao politica.? Como veremos a seguir, no exemplo dos blocos afro-baianos, uma dupla dimensio desse arti- ficio de substituigao da analogia pela equivaléncia foi tentada. Mas esses dois exemplos ilustram outros recursos presentes nos textos de Gonzalez e Oliveira. Em primeiro lugar, no que diz respeito a utilizagao da nogao de cultura e sua adjetivagio, de forma a permitir um encompassamento de tudo aquilo que é visto como “residual” € sujeito a apropriagio pelo discurso de cunho nacionalista. Se a alusiio e o destaque a “cultura popular” nos textos de esquerda e grupos de educagio popular na década de 1970 estavam presentes no discurso dos segmentos populares envolvidos na luta por conquistas sociais, a “cultura negra” 344 seria “resgatada” pelos movimentos Negros no seu irreversivel processo de “conscientizagaio” das mas ela pré-existiria na sua utiliz: ‘as. Tal qual a primeira, r agao Como instrumento. politico, ainda que “ofuscada” pela “mercantilizagao” e pelo impacto da midia, O “popular” ganha uma nova roupagem que torna algumas expressdes culturais em elementos étnicos, portanto “negros”. Desse modo, a tarefa de “mobilizagdo"™ se imbrica com outra, cujo cardter 6 imprescindivel; tal como Midas, trans- forma-se em “negro” e nado em ouro tudo que reluz. Oliveira e Oliveira prop6e esse recurso como um método, um artificio de leitura do complexo sistema racial brasileiro, no qual é preciso definir lugares, estabelecer Posi¢ées, identificar tanto as vozes quanto 0 que se mostra politicamente relevante no sentido de fortalecer a luta contra o racismo. Por outro lado, ao fazé-lo, chama & reflexdo nao as “massas”, mas os intele tuais negros, os quais estariam envolvidos na propria trama que pretendiam destrinchar. A “tarefa conscientizadora’”, a eles conferida, seria precedida por um momento de tuptura e escolha entre a primazia do subjetivo e o imperativo do coletivo. A historiadora e militante Maria Beatriz do Nascimento, no seu “Culturalismo e Contra-Cultura”® publicado em 1976, teferiu-se a parte dessas quest6es, tecendo consideragées sobre os problemas advindos de um enfoque “culturalista” sobre a questio racial. Nascimento diferenciava o “culturalismo”, que se constituiu numa tendéncia fortemente representada entre os estudos dedicados a populagao brasileira desde a década de 1930, de um enfoque culturalizante, que entio parecia ganhar forga dentro de determinados segmentos do movimento negro j4 nos anos 70.8 O perigo era de o segundo reforgar os Pressupostos amplamente etnocéntricos do primeiro. Estes estudos, que em sua grande parte valorizavam os aspectos tradicionais, “puros” e nio maculados por processos como a Miscigenacao e a industrializagao (Dantas, 1988), da chamada cultura afro-brasileira, acabaram por determinar uma forma bastante peculiar de compreensio da propria diversidade étnica no Brasil, E essa démarche que vai embiasar 0 aparecimento das Primeiras politicas na area cultural por parte do Estado brasi- leiro, reconhecendo a populagao “afro-brasileira” como parte integrante da nacionalidade. Inspirou mesmo teses construidas sobre idéias baseadas na valorizagio € na institucionalizagao do cardter plural da nacionalidade. 345 A idéia de nado, entendida por intclectuais como por exemplo Oliveira Viana ¢ Gilberto Freyre, como uma espécie 1, étnico ¢ histérico é 6 pilar fundamental de continuum espact desse discurso, Ambos imaginavam que o Brasil, diante das cons- ” que por aqui transitaram direta ou tantes “correntes humar indiretamente, consistiria num verdadeiro melting pot tropical, crigido sob o sangue de brancos, indios € negros. Eo cardter inopicalda formagio da nacionalidade, ao mesmo tempo miltipla e tinica, daria sentido a tudo aquilo que nao pudesse ser definido por coneeitos. A “tropicalidade” como analogia da indefinigao, da elegia a festa, do dionisiaco ao invés do apolineo, aparece fortemente na obra de Freyre: A luz do sol tropical, ofuscam-se conceitos, pelas manifestagdes mais absurdas, de instabilidade politica, de flutuagdes de opinides, de reagdes inesperadas e de inesperados triunfos (...) tropicais no sentido de irrequieta instabilidade, de sofreguidao, de suas peculiaridades, de suas fraquezas, de sua generosidade, de sua paixio, de sua énfase barroca.!” A esse respeito, Chaui (1984) faz um interessante comentario: Infelizmente, textos deste calibre, reencontrados também nos Integralistas ou em Glauber Rocha, nio levam a ironia de Caetano Veloso — “Carmem Miranda, da, da” — mas a uma psicologia social e a uma sociologia politica que articulam racismo e classes sociais, ao mesmo tempo que invocam a necessidade imperiosa do Estado Nacional autoritério como tnica solugio para o tropicalismo, Ha mesmo similaridades entre essa visio geopolitica da nacionalidade, proposta por intelectuais ligados ao Estado Novo, € a idealizagao da “integragdo nacional” empreendida pelos militares pés-64. Ao contrario de outros Brasil coube ao proprio Estado 0 reconhecimento da dliversi- dade como marca da nacionalidade, O “mito das tres ragas” subjaz as mais diversas formas de expre Principalmente aquelas de cardter oficial. N scimento também rejeita esta interpretagdo, uma vez que foi cla que permitiu um perspicaz apaziguamento do contlito, ao tomar uma representagdo pretensamente integradora no plano cultural como pressuposto para a inexisténcia das contextos, no des culturais, e 346 desigualdades no plano das relagdes sociais. E assim que, ja naquele momento, advertia para o “perigo” da exaltagao do “puro” e do “tradicional”, fendmenos diretamente relacionados as “culturas arcaicas” (sic) (1976: 5). Questionava como esses rétulos se prestavam menos a um reconhecimento e mais a um isolamento. Diante de constatagio, classificava aquelas que seriam as “culturas tradicionais" e a “cultura de dominagio”, na visio etnocéntrica e culturalista, e advertia para o perigo de a manipulagio do conceito enfraquecer sua possibilidade de transformar-se em “cultura de resisténc! Neste quadro € que acho pertinente uma adverténcia aos grupos negros que se formam atualmente. £ 0 momento de nos perguntarmos que limites nossa propria cultura, que é mani- pulada pelo sistema dominante, nos oferece? Temos de ter também frente a ela uma atitude critica. Na verdade algumas das nossas manifestagdes, como a religiio, incorporaram representacoes da cultura dominante, ao contrario do que aconteceu com o “Kibanguismo” no Congo, 0 “Peyotismo” dos indios americanos, que produziu um terceiro componente, com o qual o grupo dominado inaugurou 0 seu processo de transformacio. Nosso candomblé ¢ umbanda acomodaram-se ao processo de inte- gragio. Nao criaram verdades, ndo trouxeram uma revelagio de salvagio do grupo. Ao contririo, no caso do candomblé, as ctipulas sacerdotais lutam para manter elementos arcaicos e as transfor- magdes que aqui se efetuaram foram inoperantes. (1976: 5) E preciso reiterar que nem todas as visdes acerca do papel e do significado da categoria “cultura negra” como estratégia de mobilizagao politica eram pensadas da mesma forma. A visio de Nascimento nao se explicita num mondlogo, nem muito menos Testrito aos espacos de sociabilidade e discussio politica privile- giados pela militancia negra naquele periodo. E preciso que Se tenha em conta que conceitos como o de “hegemonia”, “cultura hegeménica” e “cultura de resisténcia” ganham espagos NOS Circuitos intelectuais/militantes j4 no final da década como Categorias explicativas das formas de dominagio, a um s6 tempo. Politicas e culturais, A proximidade do movimento com partidos € tendéncias politicas de esquerda € intensa. Nos debates dos Circulos intelectuais, e especificamente entre os militantes negros, € contraposto a um outro conceito, operado de forma diversa pela grande maioria, e que resultaria, nos mesmos termos, na construgiio de praticas “contra-hegeménicas” 347 (Schelling, Rowe, 1994). E dessa forma que a nogao de “cultura negra” se irrompe nesses circulos, como contraponto racializado da idéia de cultura popular, numa proposta de adjetivagio que, em muitos casos, acabava por reificar as priticas vistas como “puras”, opondo-se Aquelas vistas como “comerciais” ¢ manipu- ladas. Um dos sentidos desse debate pode ser compreendido. num artificio de protegdo, de remanejamento de fronteiras e de formulagao de uma linguagem prépria e distante do elogio a mistura. Quem eram os inimigos e os verdadeiros responsaveis pela discriminagao vivida cotidianamente pelos nao-brancos era, (e €) de fato, uma pergunta de dificil resposta no Brasil. Uma das formas recorrentes de contornar essa capital pergunta foi uma constante tentativa de definir agdes e pontuar praticas de intervengio a partir de determinadas teorias e categorias explicativas tomadas de empréstimo do debate académico. £ importante perceber 0 quanto esse didlogo, ainda que tenso, entre ambientes intelectuais/académicos e militancia é intenso e como determinados debates e questdes foram apropriados e reconstruidos no discurso dos movimentos. Em meados dos anos 80, essa busca por formular modelos de mobilizacao a partir de praticas politico-culturais parece dar continuidade a um certo impasse. Na medida em que se insistia na busca do que Joel Rufino dos Santos chamou de “significante negro”: Os limites do movimento negro atual sio, pois, de um lado, 0 fim da anterior visio de Brasil (ai ele comeca sua aceleracio); de outro, 0 comego de uma nova concepgio de Brasil (ai ele esgota suas possibilidades de crescimento). Aceita esta hipstese, podemos concluit que o movimento negro, na sua atual etapa, € filho da crise brasileira, mais particularmente do mito da demo- cracia racial. E, portanto, que sua passagem a etapa seguinte — quando de novo voltaré a crescer — depende da superagio da crise brasileira, 0 que também, logicamente, exigird a rede- finigdo do movimento. (1985: 307) Essa redefinicgio, curiosamente, se dava sobre os mesmos pressupostos vivenciados no perfodo anterior. Ou seja, a difi- culdade de decifrar o enigma, também para Rufino, estava na inabilidade do movimento em conceber a diferenga por dentro da aparente igualdade. Ou seja, a de perceber a pluralidade de envolvimentos e projetos subjetivos frente a priticas cons- truidas sob a logica das “politicas de identidade’. 348 Accrise ou a impoténcia da qual falava Rufino também pode ser exemplificada na proliferagio de grupos ¢ organizagoes que irto priorizar atividades culturais, apostando no carater didatico dessas experidncias e na formulagio de novos modelos de identidade. Num esforgo de compree abrangia ¢ qual era o perfil da milit anos 80, Dam que a util nso acerca do que Ancia negra no final dos “eno, Santos e Giacomini (1 988) nos mostraram Jo de termos como cultura e cultura negra ja determinam um viés muito mais recorrente no conjunto dessas instituigdes. Se por um lado essa alteragao pode ser debitada ao discurso da “crise” ou a um impasse pelo qual atravessa grande parte dos movimentos sociais, ela resultou num movi- mento de reconfiguragio da propria linguagem utilizada pelos grupos negros. zi Essa reconfigura¢do permitiu movimentos importantes no sentido de viabilizar projetos politicos e de construgao de identidade — tanto coletiva quanto individual — extrema- mente significativos e permitiu a organizagaio Politica de dife- rentes grupos. Além do mais, consistiu num momento inicial de montagem de um discurso em torno das fronteiras e limites do uso da nogao de identidade e, mais especificamente, da nocao de “identidade negra” entre os movimentos negros no Brasil. Mas, como Hall (1993) e Cailhoun (1994) de forma dessemelhante apontaram, tais “politicas de identidade”, se por um lado rearticularam pequenas diferencas sob rotulos politicamente vidveis no sentido de propor acées antidiscri- minat6rias, nado conseguiram dar conta de uma espécie de tensao interna que lhes € constitutiva e que se refere a relagdo entre os planos subjetivos e coletivos que envolvem tais projetos € formas de participagio. Para concluir a primeira parte do texto farei uma breve referéncia A experiéncia dos blocos afto-baianos €m torno destas questdes. BLOCOS AFRO: “CULTURA” E “COMUNIDADE” Uma parte importante desse processo se deu na cidade de Salvador, onde, precedendo o préprio surgimento de uni nticleo do Movimento Negro Unificado (MNU) na cidade, é fundado um bloco carnavalesco — cujo estilo afro the conferia desde j4 uma marca a ser perseguida por varios outros — o Ilé Aiyé."* 349 ™’* ‘A novidade produzida com 0 surgimento dos blocos no censrig politico e cultural de Salvador foi reproduzida em outras cidades e contextos, ultrapassando os limites de uma ago localizada O objetivo era conscientizar jovens negros e€ mestigos atravég do lazer — sobretudo 0 carnaval — ¢ fortalecer os lacos de uma agio politica e cultural voltada para a temitica afro-brasi- leira, Desde o surgimento do Ilé Aiy@ em 1974, anualmente, durante o carnaval, milhares de folides, em sua grande maioria negros e mesticos, passaram a desfilar, cantar e dangar pelas ruas da cidade, vestidos e portando aderegos alusivos a Africa,” ‘A orientagio e tratamento dos temas escolhidos eram direcio- nados tanto a “historia de resisténcia” dos negros brasileiros quanto aos processos de descolonizagao e libertacao de paises da Africa Negra. Nesse percurso, filiagdes foram estabelecidas, mitos recontados e aliangas fortalecidas. O Grupo Cultural Olodum, por exemplo, foi um dos blocos que mais inovaram em termos tematicos, indo das afinidades culturais entre Cuba e Brasil a um Egito de faraés negros. Mas houve outras incursdes importantes em termos tematicos, produzidas também como artificio caracterizador de uma imagem distinta para cada bloco. Enquanto o Ilé Aiyé reafirmava seus lagos com a Africa através da alusio da sua permanéncia nas culturas e religides negras no Brasil, o Bloco Afro Muzenza buscou na Jamaica e no imagindrio rastafari seus emblemas, cores e temas, elegendo a figura de Bob Marley como uma espécie de patrono do bloco. Assim, atraiu uma nova geracao de jovens negros da periferia da cidade, nao familiarizados com o discurso militante dos cir- culos universitarios, mas empenhados em usufruir do status que 0 bloco algava justamente pelo seu carater lidico e inovador (Cunha, 1991). No que diz respeito & permanéncia do debate entre os limites e usos da nogao de cultura como estratégia de mobilizagio politica, a tenso entre um enfoque “culturalista” frente ao privi- légio de uma agio estritamente politica ja era visivel na fase de estrutura¢ao dos primeiros grupos. A elegia da festa como um espago de conscientizagao e reafirmagio de identidade ganhava os espacos de discussio militante, transpunha as fronteiras regionais e se reatualizava nos varios foruns do movimento realizados nacionalmente.” Principalmente porque o estilo adotado pelos blocos afro causara forte impacto entre militantes de outras cidades, pela énfase de suas mensagens 350 ae e pela adesiio — ainda que na maioria das vezes contingente, nao-exclusiva e¢ limitada A esfera do carnaval — de um ntimero ‘ maior de integrantes nio-brancos, Até mesmo (e, talvez, principalmente) pela relativa maleabilidade dos lagos que uniam o “integrante”, o “simpatizante” e o “folidio” a esses grupos, em tudo diferia das formas mais tradicionais da militinc Sob o ponto de vista institucional, o bloco poderia estar em varios lugares, ampliar seu leque de didlogos e parcerias em todas as esferas. Numa primeira fase, seu carater indefinido, em termos de uma politica racial, denotava, para setores que se autodefiniam como militantes strictu senso, enfraquecimento politico, perigo da troca de sinais (o “culturalismo” ao invés da politica cultural e a virtualidade da cooptacao (Risério, 1981; Silva, 1988; Cunha, 1991). J no inicio dos anos 80, novos blocos e afoxés pipocam por entre os bairros periféricos da cidade, provando que o processo que AntOnio Risério chamou de “reafricanizacao” do carnaval baiano se expandia de forma popularizada. Parte desses grupos tinha outros projetos para além da festa carna- valesca. Alimentavam sonhos de projetos comunitrios, organi- zacao de debates e atividades culturais ao lado da tentativa de penetrar comercialmente nos espacos da midia regional. E que esse mesmo processo em diregao a “reafricanizacao” do carnaval provocou o revigoramento da industria fonografica baiana e a profusao de novos ritmos e estilos que a industria do disco posteriormente vendeu sob o rétulo de “axé music”, Inicialmente, a frente dos blocos, estavam jovens cuja proximidade e afinidade foram construidas através de relagdes de vizinhanga e turmas de amigos que saiam em afoxés e blocos de indio. Ao contrario, dentro dos grupos embriondrios que antecedem e servem de base para a primeira composicio do MNU na cidade, aglutina-se uma maioria de universitirios, artistas € profissionais liberais. £ assim que as divisdes, no que diz respeito a énfase em propostas culturais ou politicas, se dao ainda na fase de formacao do MNU em Salvador. Citando 0 depoimento de um militante e defensor da linha politica na Poca, Jonatas Silva — também militante do MNU — desta forma resume as duas principais visdes conflitante: Se 0 trabalho conjunto dos “culturalistas” € “politicos” ndo rendeu bons frutos para o Movimento Negro Unificado, a razao residiu nas incompreensdes havidas de ambas as partes. Textualmente 351 ele [o militante negro Luiz Alberto] afirma: “O setor artistico ndo compreendeu a articuligio que deve existir entre a cultura € a politica e vice-versa. Na verdade ninguém na época entendia Naquele momento se refletia um quadro de militincia ainda muito débil, que nao compreendia as reais dimensées de sua luta, Esta debilidade também se refletia, teoricamente, na medida em que os militantes tentavam fazer uma pratica apenas do que acontecia A volta deles, viam uma realidade muito aparente € nao aprofundavam quest6es como esta: a da inter-relagio da cultura com a politica. O papel da cultura dentro da luta politica nao era compreendido. E 0 papel da contestacio politica mais pura também nao era compreendido pelo setor artistico.” (1988: 286) Mas a questao transbordava as fronteiras do MNU e resultou, também, nas primeiras formagées das diretorias dos blocos, num acirramento da tensio. A critica quanto 4 falta de politizagao de certos blocos, o tradicionalismo” de suas diretorias, que muitos imaginavam dar continuidade a pratica de antigas insti- tuigdes negras como afoxés e terreiros de candomblé nas suas ligagdes com politicos conservadores, eram os focos de atengao dos militantes. Quanto aos carnavalescos, sentiam dificuldade em relacionar-se com propostas politicas excessivamente dis- tantes dos interesses das “comunidades” em que atuavam.” Questionando a unidade e propondo voltar-se para a “comu- nidade”, em troca de discussées demasiadamente politizadas, algumas diretorias de blocos evitaram a presenga de militantes. Quando todos, “politicos” e “culturalistas” referiam-se a “crise”, a uma “perda de identidade” e a “dispersio”, o Ilé Aiyé entao se pronunciava no V Encontro de Negros do Norte e Nordeste: somos os Gnicos culpados dessa dispersio. Nés que estamos envolvidos e conscientes da problemitica do Negro, 0 que temos feito para a grande maioria? Nos limitamos apenas 3s discussdes em gabinetes e saldes, para uma pequena margem de Negros privilegiados que tiveram acesso A escola (...) Estamos falando, gente, da maioria dos negros que estio nos bairros di sofrendo todo tipo de humilhagao e desrespeito pelos home! que dizem construir esse pais. E para estes negros que devemos canalizar as nossas atividades intelectuais, buscando respostas 40s nossos questionamentos € levar estas respostas a quem de direito. E nao ficarmos em mera discussio em alto nivel, que nao tem contribuido para o engrandecimento da nossa raga, visto que esta maioria esmagadora no tem formagio escolar part entender os trocadilhos das verborréias. Temos que encontrar uma linguagem mais acessivel para que sejamos entendidos.* (Grifo meu) 352 y Questes relacionad dificuldad linguagem acessivel ao piiblico permanece toque dos conflitos vivenciados por muita Salvador, neste momento, o exemplo dos blocos pairava come uma experiéneia paradigmitica, devido & forma pela qual essa linguagem era construfda e direcionada a “publicos” hetero- géneos. Ou seja, se por um lado a nogio de “comunidade” a ser utilizada para designar 0 conjunto de grupos, orga- nho mutualista e religioso, compostos por negros.e mestigos, dedicados a discussio da questao racial, ela também € usada como referéncia 3 Presenga territorializada do grupo num determinado bairro ou localidade da cidade. Enquanto na primeira acepgio € 0 sentido étnico que a distingue, no segundo é a representatividade popular que torna seu vinculo com 0 bloco imprescindivel. Assim, 2 quase exclusividade étnica, que marca a nogio de “comunidade negra”, se fragmenta, ganha novas significagdes espaciais ao tomar como adjetivo o nome desses bairros/locais, onde cada bloco pretende desenvolver distintos “projetos comunitirios”. Esses “projetos comunitdrios”, entretanto, podem ser compreen- didos, se nos reportarmos ao ambiente politico pré-1980, no qual grande parte dos lideres e fundadores desses grupos teve sua formacio politica, marcando de maneira definitiva a pritica de alguns dos mais importantes grupos. Em linhas gerais, podemos dizer que os blocos resultaram do embate entre 0 “cultu- ralismo” e a vertente mais politizada, protagonizada pelo MNU nos anos 70. Inicialmente, a tensdo foi apaziguada através de uma solugao conciliadora. Conscientes do poder de mercado. de tudo que ali era produzido sob o rétulo “afro”, o Olodum e © Araketu sio os primeiros grupos a sinalizar uma gradativa ampliagao de suas frentes de atuacdo, movimento impensavel na década de 1970; comercializam suas misicas, gravam discos € investem numa imagem de midia, sem se descuidar de territoria- lizar-se localmente. Esse segundo movimento dota a experiéncia dos blocos afro de um carter inovador. Os blocos investem nas suas redes de adesiio locais, a partir das quais estimulam tanto a participacao voluntéria quanto a profis lonalizacao. Essas localidades, em grande parte bairros de periferia e favelas Preteridos e desassistidos pelas politicas puiblicas municipais, ganham visibilidade nas letras das mtisicas, no material grifico, virando emblema dos grupos. Essa pritica de reterritorializagao em utilizar uma ‘am como pedra de 8 Organizacées, Em 353 aliagio dos propésitos e objetivos dos blocos e, por conseguinte, dos préprios movimentos negros batanos. A idéia de um “compromisso politico” local por vezes se sobrepunha a definigao estrita de uma organizagio voltada para o combate ao racismo, Como bem analisa David Slater (1997) em texto nessa coletnea, os limites entre esses planos de referéncia geogrifica sao sempre relativos e evidenciados em momentos distintos. A referéncia ao Pelourinho, bairro onde nasceu e onde mantém suas atividades recreativas e educa- cionais, € por certo um referencial local importante e que distingue 0 grupo Olodum de outros esforgos idénticos impulsionados por outras entidades do género. Por outro lado, ao internacionalizar-se, a Bahia e, mais especificamente, Salvador passam a ter um lugar de destaque nesse mapa. Assim, essas alteragées e estratégias diferenciadas de territorializagao implicarao redefinigdes quanto a aliangas e afinidades politicas. Esse didlogo entre um plano de participagao local e um refe- rencial politico mais amplo resulta numa primeira experiéncia de intervencao local, na qual a questdo da discrimina¢ao racial foi confrontada com outros problemas relacionados 4 vida cotidiana dos bairros/favelas dos grandes centros urbanos brasileiros: violéncia policial, miséria, desemprego, margina- lizac4o, inexisténcia de servicos ptblicos, falta de escola etc. Ao mesmo tempo, segundo a légica estritamente politica e para a qual tal carater associativo tornava certos grupos susceptiveis a vinculos excessivamente paternalistas, clientelistas e sujeitos a pratica do favor e do empreguismo, esse movimento também fragilizava a forca da “mobilizagao”. Todavia, sob o ponto de vista da organizagao interna desses grupos, ndo tardaram as disseng6es. Suas diretorias foram, pouco a pouco, sendo desti- tuidas do braco mais politizado da militincia. A redefini¢io dos espacos de atuag4o, a proeminéncia das redes de solida- riedade e adesao locais frente a um projeto de organizagio e fortalecimento da luta antidiscriminatéria em nivel nacional Por certo foram questdes decisivas a recompor os limites € expor as fragilidades dos grupos militantes envolvidos.* Por outro lado, a entrada de algumas entidades na midia provocou outros tipos de conflito nem sempre politicos e nem sempre visiveis. As divergéncias entre aqueles que inicialmente podiam ser realinhados tanto sob o rétulo de carnavalescos como de implicou uma reavi 354 militantes se dissolvem em debates mais segmentados. Entre eles, podemos citar quest6es relativas a influéncia dos partidos politicos, dos sindicatos e das centrais sindicais, 0 papel das eleigdes eas candidaturas negras, a unificag: ‘do dos movimentos negros baianos, 0 nascimento de Pequenos grupos de mulheres e homossexuais negros ¢ as relagdes ¢ instituigdes politicas e culturais do Estado. grupos com as Numa segunda fase, os blocos ja naio podem mais ser vistos como entidades estritamente culturais. Eles ganham novos contornos, tanto com relagao a formagio de suas diretorias, quanto ao seu envolvimento, mais direto, com atividades extracarnavalescas de carter politico e, mais recentemente, empresariais. E nesse sentido que alguns deixam de ser bloco afro e passam a denominar-se grupo cultural. Da mesma forma, no que se refere 4s mudang¢as, setores eminentemente politicos nao estarao imunes a esse processo. A proliferacao de grupos e entidades que se dedicam & discussio e a luta anti-racismo e a politizagao dos blocos desloca do MNU o papel de entidade referéncia e pdlo unificador. Ele Passa a somar-se a outras associacoes, grupos, niicleos, blocos, afoxés e movimentos comunitarios na luta contra a discriminagao racial. Mesmo nao perdendo a sua importancia por ter sido um dos primeiros espacos de aglutinacao e formacao de liderangas ainda sob o regime militar, a tentativa de unificagao ocorre além de suas fronteiras. A experiéncia dos blocos afro-baianos passa a ser referéncia para grupos similares em outros espacos e cidades. O que no passado se mostrava conflituoso nao foi “resolvido”, mas apaziguado. A “ambigilidade” passa a incorporar o discurso do que entendiam como modernidade, a possibilidade de tudo assimilar e transformar, e da tentativa de romper com isolacio- nismo tal qual preconizara parcela dos militantes dos anos 70. A incorporagio de géneros musicais internacionais — como 0 reggae, por exemplo — ao estilo ritmico ¢ musical dos blocos Pode ser interpretada como uma metifora desse discurso. O Teggae se prestou a figurar como “sinal diacritico” de deter- minadas fronteiras estéticas construidas pelos blocos. A “cul- tura negra”, j4 ndo mais formulada como experiéncia passivel de resgate, mas de invengio. O exemplo mais explicito dessa visio € protagonizado pelo Grupo Cultural Olodum que, ves desse movimento, estreitava seus lagos externos com varios Segmentos sociais, frentes e tematicas. O Olodum é um dos 355 primeiros grupos culturais do género a transformar-se numa organizagio niio-governamental em Salvador, que tem entre seus objetivos impulsionar Jutas locais e regionais em busca de visi- itidade e melhores condigdes de vida para seus moradores, além de desenvolver seus programas recreativos, empresariais e educativos.®® A introdugdo do reggae nos espacos, letras e eventos programados pelos blocos afro inicialmente incorporou a visio mais acabada do que seria “modernidade”. Nesse sentido foi contraposto a tudo aquilo que se encastelava nos limites da “tradigio”, No caso, a “tradigao” se apresenta nao s6 como resultado da manutengio de determinadas referéncias religiosas e culturais, mas como recusa a mudanga. O reggae tematizava expressdes musicais, estilos de vida urbanos e idéias politicas adotadas pela juventude negra internacionalmente. Todavia, a “modernidade’” nao indicava auséncia de “contetidos politicos”. Os representantes do Olodum, por exemplo, j4 no final dos anos 80 (Cunha, 1991), definiam tanto a sua mdsica quanto seu projeto cultural como “pés-moderno”. Essa “pds-moder- nidade”, no entanto, se constituia tanto numa negacao ao imperativo da “tradig&io” entre os blocos afro-baianos como numa disputa por espagos, frentes, aliancas e projegao. Poderia ser traduzida como uma tentativa de incorporagao da diversidade sem limites estéticos, assim como, possivelmente, a utilizagao de tal termo se reduzisse 4 conclusao de que, em termos de misturas musicais, o Olodum tudo podia. Mas a forma, embora ilimitada, deveria dialogar com determinados contetidos. Portanto, as escolhas estavam inicialmente vinculadas a um repertério que misturava a utopia e a histéria, os tambores € 0 sintetizador, Esse movimento pendular entre forma e contetido foi constitutivo da propria trajetéria de consolidagao do reggae como um género musical em Salvador. Mas a experiéncia dos blocos fez escola e transbordou as fronteiras regionais. Passar da mobilizagio a um outro tipo de interveng’o, no qual o piblico j4 nao era exclusivamente composto de mestigos e negros, significou ampliar os espagos de atuagao e reconduzir o didlogo sobre o que se fala quando se pensa em “cultura” e “diferenga”, A nossa unidade, a compreensio do futuro proximo, a responsa- bilidade politica, a auto-estima, o orgulho negro e o anti-racismo sero as nossas armas para enfrentar os desafios da vida, a 356 margens do deserto € as tentagdes dos caminhos mais f (..) As ligdes das novas ordens mundiais py ha novas formas de lutar no planeta, ficard no passado, nao encontrara ; viverd um amanha. A ele ‘iceis. Jo deixam dtividas: E quem i Portas do presente e nao ‘0 de Nelson Mandela na Africa do Sul encerra um ciclo mundial de luta contra o “apartheid ¢ social em que vivemos no Brasil ¢ na Bahia, onde uma maioria excluida da cidadania rasteja atras de migalhas de pao e agua € uma minoria desfruta a riqueza do pais (...) Lutar € preciso, sonhar é preciso. Agora € a nossa vez. Com garra e competéncia, junto com todos que sio contra 0 racismo, apés 299 anos da morte de Zumbi e nos 196 anos da Revolta dos Alfaiates, vamos erguer 0 braco forte da revolta e das bandeiras da liberdade. Vamos realizar mais um sonho dourado, seguir mais uma vez o eterno caminho do sol e ver o despertar de uma aurora feliz, o nascer de uma €poca em que todos seremos iguais nas diferencas. racial Embora a visio do Olodum nao indique consenso com telagdo 4s mudangas pelas quais passaram os movimentos negros no Brasil, € ilustrativa no sentido de pontuar as alte- rages num tipo de discurso em torno da polarizacao. Joao Jorge nos fala em auto-estima, anti-racismo, cidadania, nova ordem mundial, maioria excluidae igualdade na diferenca. Nesse texto, em que relata os quinze anos de existéncia do grupo, s6 ha uma referéncia a “comunidade afro-brasileira” — € nao aos negros —, enquanto base popular para a qual o 8rupo promove suas atividades. Quanto as investidas na midia, seus frutos sao “promogoes individuais” ao “estrelato social”, ao lado da “internaciona izagao do movimento negro”, Percebe-se um deslizamento do uso de certos termos adscritivos para outros, cuja base de referenciagio parece menos restrita. Essas alte- ragdes, em grande parte, foram viabilizadas pela énfase € Proeminéncia da nogio de “comunidade” como referéncia importante a redirecionar os significados da atuagio desses Brupos, A seguir, desejo descrever a experiéncia do Grupo Cultural Afro Reggae no Rio de Janeiro em torno dessas questoes, tentando explicitar que esses movimentos se deslocam de determinados lugares (Gray, 1993; Clifford, 1985; Hall, 1993b) © S40 possiveis em certos contextos. 357 O PALCO E A FAVELA: O GRUP RMI AFRO REGGAE Quando surgiu, em 1993, © Afro Reggae Noticias CARN) intitulava-se um “jornal diferente” diferenga residia, explicavam, no fato de quererem “consci aa Pessoas de uma forma especial. Com suingue e ritmo”.” Ao longo de trés anos, 0 ARNtem publicado matérias € reportagen sobre reggae, rap, hip hop, bloco afro, danga, apartheid, racismo no Brasil e no mundo, eventos e programacio em radios e tvs, entrevistas etc. Curiosamente, tal estilo nao fugia tanto aos padrées de alguns jornais similares publicados por grupos do movimento negro desde meados da década de 1980: informagoes literarias dosadas com matérias de fundo politico, entremeadas a charges e colunas dedicadas 4 musica. Assim, a proposta conscientiza- dora parecia resistir 4s mudangas de forma. De certa maneira, essa primazia da misica estava colocada desde 0 inicio, quando do aparecimento do jornal. A idéia de sua publicacao partiu de um grupo de jovens que organizava festas na regiao central da cidade do Rio de Janeiro, nas quais ritmos “afro”, entre eles o reggae e o funk, tinham um publico fiel. Foi a partir da primeira reuniao de avaliagao da “Primeira Reggae Dance” em 1992, que resolveram editar um “jornal cultural” capaz de divulgar nao s6 suas festas como outros eventos da “cultura afro-brasileira”. Por outro lado, esse modelo privilegiado pelo Grupo Cultural Afro Reggae implicou escolhas naio-excludentes nas quais podemos identificar um tratamento diferente dado a no¢ao de cultura, por exemplo. Raramente, nos editoriais ou matérias assinadas, encontramos referéncia 2 nogao de “cultura negra”. E foi no segundo ntimero de seu jornal que descobrimos um pequeno exemplo dessa mudanga de énfase. No seu editorial, aparecem referéncias nao 4 “cultura afro-brasileira” mas a “cultura popular brasileira”; Nesse carnaval ficou mais uma vez comprovado o maltrato que sofre a cultura popular brasileira, Uma cultura verdadeira popular sai sempre dos quintais, das reunides naturais das comunidades na sua forma mais criativa de se manifestar(...) até cair na mio dos poderosos da comunicagio que faturam muito em cima dos criadores e depois de espremerem todo 0 caldo jogam o bagago fora, como fizeram com a lambada, Estamos falando desse modismo chamado axé music: um rétulo curioso 358 em cujo caldeirto as grandes gravador Fitmos negros vindos da Bahia...) © como aa isso, tentaram inventar uma briga entre as eceote os blocos afro, esquecendo que o samba, por uma que: Eno minimo padrinho dessa forga afro-brasileira F que sozinho abriu caminho para essa nova Beiacaolam com isso nossos espacos de atuagio. Por muito tempo o sambs e outros baticuns foram “coisas sé Para negros”. Portanto nossa postura € botar o preto no branco, Estamos sim no rieiah de uma briga, mas no € essa. A briga nao € entre nds, nao € entre tribos e sim contra 0 exército de uma minoria dominadora que sempre quer eleger uma cultura como melhor que a outa” (Grifo meu) aS misturam todos os 40 bastasse las de samba e sto de Di 40, ampliando Mas a “diferenga” quanto aos seus objetivos de conscienti- zagio s6 se produziria de fato fora das paginas do jornal. O niicleo inicial, e sobre o qual todas as atribuicées eram divididas, era composto por jovens com formagio bastante diversificada, A €poca da pesquisa, a diretoria do grupo era formada por um técnico em quimica desempregado que vivia da venda de discos camisetas pintadas e impressas em silk-screen, um funcionario publico de nivel médio, um jovem que j4 experimentara trabalhos tempordrios como taxista e entregador de jornais, um mestrando em ciéncias sociais, um mestrando em educagao, uma jornalista e um dentista. Com exce¢do de um membro do grupo — que utilizava o termo mestigo para se autodefinir —, todos os demais usavam, invariavelmente, o termo “negro” ao referirem-se a si préprios. Essa forma de autoclassificagao era entendida como politica, uma vez que nao era construida estritamente a partir de critérios “raciais”, mas levava em consi- deracdo varidveis como formagao, experiéncias de vida, origem social, tragos fenotipicos, visio de mundo — elementos que imaginavam compor, de uma forma também maleavel, wma imagem. Todavia, se estas dimensoes foram capazes de dese- nhar um certo perfil que a maioria denominava como “negro”, nao foram suficientes para delimitar-Ihes um lugar — o “lugar Social” de que falava Oliveira e Oliveira (1977), no que se refere a atuacao do grupo. A definigéo do que entendiam por politico ra sempre enunciada como um ponto de vista de cardter subles tivo, Havia a percepgdo de que as referéncias, tanto culturais: quanto territoriais, que o grupo escolhia e Pe eek campos de atuacio tinham varias faces. Ou seja, 0 “lugar eet que segundo a interpretago de Oliveira e Oliveira era construico 359 sobre 0 binédmio raga/classe, na visio dos integrantes do Afro Reggae, se pulverizava em miltiplas possibilidades de recolocar os termos nos quais as contradigdes raciais ¢ sociais eram baseadas. Essa relativa autonomia ¢ a negagio de um certo “determinismo social” (Cailhoun, 1994), seja nas formas de perceberem a si préprios, a sociedade brasileira ¢ a tarefa que realizavam, seriam determinantes nas escolhas de parceiros, de vinculos institucionais € na recusa ao que Rubem César Fernandes (1989) chamou de “nome proprio coletivo". Slater (1997), explorando a distingAo que estabelece entre © “politico” e a “politica”, nos sugere que a emergéncia de novas questoes, enunciadas através de um discurso eminen- temente subjetivo, no implica a eliminagao das condigdes sociais nas quais seus significados foram construidos. De fato, na visio dos integrantes do GCAR, a relevancia das escolhas efetuadas pelo grupo, no sentido de como e onde deveriam atuar, estava intimamente relacionada tanto a suas est6rias pessoais quanto ao que chamei de uma anterior formagao e participagio em “espacos de sociabilidade do movimento negro carioca”. Antes de formar e integrar 0 GCAR, alguns de seus membros tiveram contatos com grupos e entidades, que ndo resultaram em nenhum tipo de militancia mais sistematica. As narrativas sobre esse periodo pré-formativo do grupo, de certa forma, recuperam o status da escolha que efetuaram frente ao que identificavam como “equivoco”. Mais ainda, localizavam as escolhas acerca dos possiveis vinculos politico-institucionais com seus prdéprios projetos pessoais. Nas varias estérias narradas acerca do surgimento do grupo, h4 referéncias a variados encontros, de carater mais pessoal, onde, sem diivida, 0 contato com militantes ou instituigdes do movimento negro aparece ora como paradigma do que se recusa, ora do que se deseja. Se no primeiro caso as criticas se dirigem a um possivel erro na compreensao e condugio das propostas, no segundo, sio os acertos de determinados grupos, no sentido de ampliarem suas parcerias, que sdo enaltecidos. Nesse sentido, o que poderia explicitar-se apenas como uma critica a um ethos essencialista do que entao se concebia como “identidade negra” se apresenta como uma estratégia de legitimar outros tipos de. aproximagao em nivel institucional. A citagio a seguir, retirada de um contexto singular no. qual a relagio do grupo com os movimentos negros estava 360

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