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C - Um Estudo Sobre o Monaquismo - Gustavo Corção
C - Um Estudo Sobre o Monaquismo - Gustavo Corção
I – A FISIONOMIA DO MONGE
Em Mateus (XIX, 16-22), lemos a primeira definição do monge: “E eis que alguém,
abordando-o, disse: Mestre, que devo eu fazer de bom para ter a vida eterna? E ele lhe diz: Por que
me interrogas sobre o que é bom? Um só é bom. Se queres entrar na vida, observa os mandamentos.
E ele lhe diz: Quais? Jesus responde: São estes: não matarás, não cometerás adultério, não furtarás,
não pronunciarás falso testemunho, honrarás pai e mãe, e amarás o próximo como a ti mesmo. Diz-
lhe o moço: Observei-os todos, que me falta ainda? Jesus lhe diz: Se queres ser perfeito, vai, vende
o que possuis, dá tudo aos pobres, e terás um tesouro nos céus: depois vem, e segue-me. Quando
ouviu estas palavras, o moço afastou-se contristado porque era muito rico”.
E aí está uma primeira definição ligada a uma primeira recusa. O moço que Jesus
amou, conforme está escrito em Marcos (X, 17-22) recuava diante do chamado mais premente,
porque era muito rico. Foi por isso que Nosso Senhor, logo a seguir, acrescentou que era mais difícil
um rico entrar no reino dos céus do que um camelo passar pelo buraco de uma agulha. Cumpre
notar, entretanto, que o moço rico do evangelho não se negava à perfeição. Ele mesmo dissera, com
impulsiva generosidade, que vinha cumprindo os preceitos desde a juventude, o que se explica,
segundo o Pe. Lagrange, pela tendência enfática que os moços têm de falar no seu passado recente.
Desde a juventude, quer dizer desde sempre. Ou desde os dias em que havia despertado no moço
uma consciência moral. Desejara e procurara a perfeição, quisera sempre orientar-se para um
verdadeiro fim, mas assustou-se e fugiu quando o Senhor lhe apontou o caminho mais curto que lhe
pareceu difícil demais. Como dirá depois o teólogo, o moço rico do evangelho cumprira o preceito,
mas recuara diante do conselho.
Ora, duzentos e cinqüenta anos mais tarde, um outro moço, nobre e rico, ouvindo
numa igreja a leitura do mesmo texto evangélico: “si vis perfectus esse...”, tomou para si o convite
de Deus, saiu a vender suas terras e seus bois, distribuindo tudo pelos pobres, e foi viver no deserto
da Tebaida, o mais pobre dos pobres, entre orações, jejuns e espantosas mortificações. Esse moço
foi Antão, o monge.
2 . Preceito e conselho
Não devo, entretanto, dizer que o monge se define simplesmente pela escolha da
perfeição. “Diz-se de uma coisa que ela é perfeita quando atinge seu próprio fim, que é a sua última
perfeição”. (Suma Teo. II-II, Qu. 184, art. 1). Ora, a beatitude eterna é o fim último do homem.
Logo, não somente os monges, mas todos os cristãos procuram a mesma perfeição. Explica Santo
Tomás (Qu. 184, art. 3) que a perfeição consiste essencialmente no preceito e “secundariamente, a
título de meio, no conselho”. Assim, o que caracteriza o monge, por enquanto, não é a escolha do
fim, mas a dos meios; é a coragem de tomar o caminho mais curto e mais difícil; é a aventura de
levar a obediência até os extremos do conselho. Não se contenta em evitar o que contraria a
caridade, mas em evitar também o que não a acrescenta. Mas escolhe os meios de um modo
especial, isto é, por já ver neles o fim, e faz dessa escolha um estado. Não foi o gosto de se desfazer
dos deleites da fortuna e dos regalos da vida, mesmo os legítimos, que lhe pesaram no espírito. Não
por estoicismo que vendeu suas terras e seus bois. Antes daquelas palavras sobre os meios disse
Jesus: “um só é bom”. Depois delas, acrescentou: “segue-me”. Tudo o mais então se torna acessório
– rebanhos e vinhas – se um só é bom. Todas as coisas da terra serão reflexos de uma só bondade; e,
assim sendo, mais vale seguir a luz do que demorar-se nos reflexos ou correr no encalço das
sombras.
O moço rico do evangelho, cuja franqueza foi amada pelo Senhor, não seguiu a
superabundância do conselho, mas tendo amado o preceito está certamente no céu. O bom Mestre,
segundo Marcos, fixou seus olhos nos dele, e amou-o. Está escrito. O que absolutamente não está
escrito é que Jesus tenha amado naquele moço rico todos os moços ricos que, pelos séculos afora,
irão pensar que o preceito consiste na magra pontualidade, e na mesquinha observância das
condições mínimas exigidas pela Igreja. Cumpre lembrar que a alma do preceito é a caridade. Amar
a Deus e ao próximo, eis os principais mandamentos.
Lendo as distinções de Santo Tomás, poderíamos acha-las murchas e sem vida
(porque são sóbrias e discretas), sobretudo se não lhe apreendermos o sentido completo. Preceito,
no vocabulário corrente, tornou-se uma coisa seca, estrita, suficiente, parcimoniosa, como um
negócio que se regateia. Ir à missa aos Domingos e comungar uma vez por ano: eis um preceito da
Igreja. Mas é bom saber que esse mínimo, oferecido por Deus, será inútil e vão se faltar aquele
máximo que é a caridade. Admite-se a liberdade de não usar a abundância dos meios santificantes;
mas o que não se admite dentro da Igreja é o desprezo pelo fim. E é deste que cuida o preceito.
Há enormes mistérios dentro da Igreja. Um deles, e dos mais terríveis, a meu ver, é o
preceito do mínimo. O homem do mundo, vendo a Igreja por fora, aprecia a enorme sabedoria de
sua tolerância no que concerne à prática, mas acha esquisitíssima a vida dos monges. Ora, um
pouco de convívio na Igreja, modifica radicalmente essa apreciação, mostrando-nos que
esquisitíssima é a vida de quem crê e não usa aquilo em que crê senão uma vez por ano.
Na verdade, a Igreja concede que pratiquemos essa singular economia de meios; mas
não transige quanto ao fim. Exige o máximo, mas tem a imensa e maternal paciência de levar a
sério a presunção dos que se julgam suficientemente aparelhados para dispensar o quotidiano
auxílio de sua maternidade. Diria até que ela sorri de nós, com essa história de comungar uma vez
por ano, reservando seu riso franco e desvendado para o dia de suas núpcias.
O monge, nessa ordem de idéias, é o homem que entendeu por meias palavras o
conselho do evangelho, e que decifrou o misterioso sorriso de sua mãe. Por isso vai muito além do
preceito. Ou melhor, adivinha a verdadeira profundidade do preceito.
3. O máximo e o mínimo
Vimos atrás que está armado o problema de saber o que é o mínimo e o que é o
máximo. O moço rico que veio ao encontro do Senhor queria a perfeição, a mesma a que Santo
Antão se oferece; mas desejava-se equilibrar entre a riqueza na terra e a riqueza no céu. Não digo
que ele fosse um calculador, dessa espécie ridícula que julga ser possível enganar a Deus. Lá diz S.
Marcos que Jesus o amou depois de o ter olhado dentro dos olhos. Enganar ele não quis. O que ele
vinha buscar era a mesma vida eterna dos santos. E certamente alcançou o que buscava, porque
Jesus o amou. Mas, naquele momento de sua vida terrena e carnal ele foi um calculador, sim, um
mau calculador, porque não soube distinguir a nova luz que subverte todos os valores,
transformando o mínimo em máximo, e o máximo em mínimo.
O monge, ao contrário, é o homem para quem começa, a partir de sua opção, a vida
subvertida das bem-aventuranças. Ouve e obedece. Vê o máximo no mínimo. Decifra a cruz. As
terríveis palavras cruzadas do evangelho. Segue a Cristo. Segue-o passo a passo, de perto, deixando
pai, mãe, terras, bois e vinhas, porque um só é bom.
4. Ida e volta
Aliás, nessa impetuosa partida, sob a claridade de um novo dia, o monge descobre
que está trilhando um caminho de volta. “Redire ad Deum”: eis aí um resumo da vida monástica. É
uma volta a Deus pelo caminho mais curto da forte obediência. É uma aventura, como aquela a que
o bom humorista alude muitas vezes, glosando a seu modo as palavras evangélicas.
E agora vejo que cometi uma imperdoável omissão. Lá no capitulo de um livro, em
que enumerei alguns dos oitenta volumes que era possível escrever sobre a simples idéia de volta,
não mencionei o “Redire ad Deum” do monge que, permitam-me a imagem, é rápida e fogosa como
a do cavalo que sente aproximar-se a paisagem familiar que circunda a casa do senhor.
5. As promessas de Deus
O que ficou dito até agora não basta para marcar uma diferença essencial entre o
estado do monge e o que a Igreja preceitua para todos os batizados. O moço do evangelho, fugindo
embora ao caminho do conselho, já escolhera o bom caminho. Não se pode dizer, creio eu, que
desobedecera ao Senhor, mas que não largara as rédeas ao ímpeto da forte obediência. E é em torno
deste ponto que se estabelece uma diferença entre ele e o monge. Antão, Paulo, Macário, foram
monges, porque ouviram melhor, descobriram a nova lei do máximo e do mínimo, levaram a sério
as promessas, viveram as bem-aventuranças e voltaram a brida solta para a casa de Deus.
É evidente pois que o monge, a partir de sua decisão, passará a viver uma vida nova.
Uma nova conversatio, como diz a Regra de São Bento. Seus costumes, suas atitudes, seus
julgamentos, sofrerão profundas modificações sob a nova luz que torna transparentes as coisas do
mundo para a expectação da última realidade. E, como o característico desse estado consiste mais
nos meios do que no fim, é fácil prever que as tentativas feitas através dos tempos, pelos eremitas e
cenobitas (não falando nos sarabaitas e nos girovagos), serão diversas e por vezes esquisitas. Este,
ouvindo dizer que tomasse sua cruz, vai corta duas traves, passando a andar pelos caminhos com
uma concreta cruz a lhe pesar nas costas. Aquele outro irá para o deserto. Muitos praticarão
macerações prodigiosas. Mas debaixo dessa variedade de métodos vê-se que a nova vida, a
conversatio dos monges, tem um centro bem marcado: um só é bom. A própria esquisitice dos
meios serve para realçar a constância do fim; e daí tiramos um traço a mais dizendo que o monge
procura, na confusão do mundo, aqui e agora, o que somente no céu se pode desfrutar de modo
perfeito: a unidade.
Etimologicamente monge vem de monos, um, no sentido de solitário. Podemos agora
tomar a raiz do vocábulo em sentido mais espiritual dizendo que monos é unidade, e que o monge,
como Maria, procura centrar a nova vida em torno do único necessário.
7. Integridade
Quem diz unidade diz não-divisão. Ora, o casamento é uma divisão (I Cor. VII, 33).
O homem casado é dividido, tendo de cuidar das coisas do mundo e de agradar a sua mulher. O
“único necessário” não pode pois ser realizado no casamento senão indiretamente, através de
recíprocas dificuldades e por meio da santificação mútua. Os cônjuges não podem sequer dispor dos
próprios corpos, nem estão livres de formular promessas porque, no vínculo que os prende, mesmo
um juramento a Deus seria um perjúrio. Ou, se liberta, por outro lado embaraça; se completa,
também divide; se satisfaz, também satura.
Mas não são essas desvantagens que impedem o casamento dos monges. Não se trata
aqui de uma questão de conveniência ou de legislação, como no caso do celibato dos padres. A
discussão sobre as vantagens ou desvantagens da divisão só tem algum valor nos momentos que
precedem a escolha. Depois, já não cabe dizer que o matrimonio é desvantajoso para o monge,
porque sua escolha exclui essa possibilidade. Há duas doações possíveis e uma exclui a outra, pois
de outro modo não seria uma doação.
8. Voto e consagração
Mas a idéia de nova vida sugere logo a de um novo nascimento. Haverá pois um ato,
um feito, um gesto, que marquem de modo inconfundível o momento dos primeiros passos. Volta
ou partida, ou um pouco ambas as coisas, o caminho do monge será marcado nitidamente em seu
início. Não podemos imaginar uma transformação gradativa. Se o moço do evangelho quisesse ser
monge aos poucos, vendendo um boi por semana, ou um alqueire de terra por mês, é pouco
provável que levasse a empresa a bom termo. Se é vida nova, novo é o nascimento. É preciso nascer
de novo, como disse Jesus a Nicodemus.
Mas o cristão já nasceu de novo, para a vida eterna, pela água do batismo, não
podendo assim a entrada na vida monástica ser um segundo batismo senão alegoricamente. O
batismo é um só.
Que caráter terá então esse limiar que o monge atravessa para a sua nova
conversatio? Entre Antão e o moço que voltou contristado não pode existir a mesma diferença que
separa um pagão de um batizado, um sacerdote de um leigo. Os sacramentos são sete. Não há outro
sinal, que opere o que significa, e que sirva para marcar a transição para a vida monástica. Não há
diferença de caráter entre um secular e um monge.
Por outro lado, porém, o estado do monge difere profundamente da atitude de um
cristão que formula bons propósitos. E difere, justamente porque é um estado. Para Santo Tomás, o
que marca esta transição é a solenidade dos votos, pela qual se distingue o simples voto (que é uma
promessa, isto é, qualquer coisa de potencial) do voto solenizado que é uma entrega total (II-II, Qu.
88, art. 7). E esta solenidade não consiste somente nos gestos visíveis dos homens, mas em “algo de
espiritual em que Deus mesmo se empenha, isto é, numa benção ou numa consagração espiritual”.
Dir-se-ia que o voto solene é maior e mais decisivo do que a simples promessa pelo fato de ser, não
apenas um compromisso a ser cumprido um dia (como um noivado), mas uma atual e plena doação
(como um casamento) que a Igreja recebe e em que ela mesma determina as condições. Para Santo
Tomás a consagração ou a benção solene não é a causa do estabelecimento no estado monástico. É o
sinal. Mas um sinal espiritual com que a Igreja designa aquele que, por ela, se entrega a Deus
definitivamente.
Este problema está longe de ser uma questão encerrada. Disputa-se ainda em torno
do conceito de voto, solenidade e consagração, não estando ao meu alcance desenvolver agora as
sutilíssimas dificuldades em jogo.
Seja porém qual for o constituinte formal do estado religioso, resulta sempre que o
monge, a partir da profissão solene e da consagração, está totalmente entregue a Deus. E cumpre
notar aqui, para bem apreendermos a importância desta doação, que o monge, de tal modo crê nas
promessas de Deus que se antecipa a elas, digamos assim, atualizando suas próprias promessas,
trocando o invisível pelo visível, e o prometido pelo possuído. Por outro lado, porém, Deus não se
deixa vencer em generosidade por ninguém. Se o monge avança é porque a graça de Deus o move,
sendo sempre do Espírito Santo a primeira moção; e também, se o monge abandona o possuído,
recebe no mesmo momento, não o cêntuplo que o espera no céu, mas as abundantes bênçãos que o
amparam na terra.
II – INTERMEZZO ANGUSTIOSO
Nas linhas que ficaram para trás andamos a perseguir uma definição. Sentindo que
ela ficou imperfeita, discutível e abstrata, e que nem de longe recobre o mistério da vida monástica,
debruçamo-nos agora sobre os textos que contam as histórias extraordinárias dos monges antigos.
Corremos os olhos pelos feitos de um Basílio ou de um Macário; pasmamos diante de um Simeão
Stilita no alto de sua coluna; detemo-nos a considerar a luta de um Hilário que durante vinte e tantos
anos fustiga as paixões de sua mocidade. Acompanhamos Crisóstomo na sua caverna; Atanásio, no
seu exílio; e Marcela, e Paula, e Fabíola as grandes matronas de Cristo; e Jerônimo que impressiona
tanto pelo que faz quanto pelo que conta; e tantos outros cujas histórias nos empolgam, nos
espantam e – por que não dizer? – nos assustam e nos entristecem. Se muitas vezes essa leitura
revigora a alma, noutras vezes, quando menos se espera, por causa de nossa fadiga, ou por termos
apostado demais nos recursos da imaginação, sentimos que nos invade uma sufocante tristeza.
A julgar por aqueles exemplos, a separação entre o conselho e o preceito nos parece
um abismo. O evangelho se parte em dois, como se aqueles loucos tivessem esgotado toda a seiva
deixando-nos a palha. O fio da tradição parece partido, pela falta de nexo entre a vida extraordinária
dos Padres do Deserto e a vida ordinária que vivemos.
Tão grande é a diferença dos meios que nos assalta a desesperada idéia de uma
profunda diferença entre os fins. “Muitos serão chamados e poucos os escolhidos”. Como poderá
um de nós, na vida familiar, na profissão, na política, - na vida quotidiana apagada e monótona –
correr na mesma pista daqueles atletas? Como poderemos aspirar ao mesmo prêmio? Como poderá
a mãe de família desejar a mesma coroa de uma Paula, que deixa pátria, família e filhos, para
procurar o chão da Terra Santa os traços da passagem de Deus? Como poderá ser medida a
perfeição, isto é, o fim, com o mesmo côvado, se é tão desigual a medida dos meios?
O monge, a bem dizer, nos assusta ainda mais do que o mártir. O extraordinário deste
está na morte; o daquele na vida. O martírio violento e rubro dos perseguidos se nos afigura mais
razoável, mais acessível, mais possível, do que o martírio lento e incolor dos solitários. Um circo
com leões é mais compreensível do que uma caverna sem leões. Os apupos de uma platéia
selvagem, mais suportáveis do que a acabrunhante ausência do contato humano, que até mesmo no
ódio nos ampara.
Essas reflexões são insensatas. Os evangelhos têm respostas para cada situação da
vida; o preceito é santo; os caminhos são vários; as moradas são muitas na casa do Senhor. Mas o
fato de lá nos evangelhos estar escrito o convite premente ao caminho mais curto, e o fato histórico
e incrível de muitos o terem palmilhado, deixa-nos n’alma uma pesada angústia. Que? Não
estaremos nós aqui, com essa escolástica distinção entre preceito e conselho, tecendo sofismas para
fugir ao chamado de Deus? Não estaremos nós aqui, como os moços ricos de todas as épocas, a
imaginar uma desmesurada agulha ou um microscópico camelo?
Ademais, a Igreja instituída por Deus estava completa com os bispos e o povo. Onde
inserir o monge na escada de Jacob? Há os pastores e as ovelhas; a hierarquia e os fiéis. Onde meter
o monge? De que lado? Em que linhas? Se não têm ordens, é conosco, com os leigos, que estão.
Mas, logo reaparece a dificuldade quando observamos que a vida extraordinária dos Padres do
Deserto tem tudo, dir-se-ia intencionalmente, para nos separar. O caminho deles nos assusta, não
somente por ser íngreme e rápido, mas por sugerir – tamanha é a diferença – um termo diferente. A
violência do conselho ataca a essência do preceito, e tudo se afigura como se a perfeição, a
caridade, Deus, só pudessem ser atingidos pelas cinzas e pelas macerações e pelas santas
extravagâncias dos eremitas.
A palavra dos evangelhos, insistentemente gravada em Mateus, em Marcos e em
Lucas, soa em nossos ouvidos distantes e vaga como as vozes em sonhos: “si vis perfectus esse...”.
E nós – que temos casa, família, filhos, livros, vitrola, etc. – nós voltamos
contristados.
1. Fulgens radiatur
Ora, em meio dessa angústia, obscura, fulge radiosa a obra conciliadora de São
Bento. Antes de Santo Tomás, o mais tomista e sensato dos santos vem mostrar praticamente a
firme conexão entre o extraordinário e ordinário, entre a aventura e a estabilidade, entre os
horizontes do deserto e as paredes do mosteiro. E essa paradoxal proporção do que parecia
desproporcionado, essa audaciosa analogia ele a realiza em sua própria vida. Entre a caverna de
Subiaco e o mosteiro de Monte Cassino, São Bento traça com mão robusta a linha da tradição. Entre
os espinheiros do monte e a Santa Regra, São Bento liga numa só linha o caminho da perfeição. A
violência torna-se discreta; os instrumentos adaptam-se ao homem; o mosteiro, sem nenhuma
diminuição de sua austeridade, reconcilia-se com a cidade cristã.
Foi por ouvir os homens que Bento desceu de sua solidão, e Deus quis provar a
caridade do eremita consentindo na dura decepção de sua primeira experiência entre os homens. No
dia em que os maus filhos de Vicovaro planejaram o parricídio, e concertaram os detalhes, e
deitaram veneno no vinho que ofereceriam ao pai, houve certamente, como na história de Job, um
tremendo diálogo entre Deus e o Príncipe das trevas. Uma aposta entre os céus e os infernos. E
Deus aceitou o desafio.
E agora ali está o Judas tonsurado, que se curva pedindo a benção, e que oferece ao
abade a bilha de vinho envenenado. A história é conhecida: o sinal da cruz vence as forças do
inferno e, diante dos lívidos assassinos, a bilha se quebra.
Mas o desejo de Satã não visava simplesmente a morte de Bento. Que lucraria ele
com a morte de um santo? Que parte poderia ter o condenado nas alegrias do céu? Outro era seu
plano. Outro era o objetivo de seu desafio. A dúzia de almas que já colhia naquele motim de monges
era um detalhe, um nada, um palito para a sua insensata fome de almas. O que ele queria, creio eu,
era que Bento descresse definitivamente dos homens. Não de Deus. Isto, eu penso que ele não
ousava esperar. Mas que desanimasse do homem, por causa dos homens; que desprezasse a
condição humana, a essência do homem, a humanidade do homem que o Cristo aceitara e com seu
sangue resgatara. Este era o plano do Demônio.
Em outras palavras, ele queria destruir no germe a obra que já farejava. Queria
destruir Monte Cassino. Planejou adiantado; mas chegou atrasado. Gastou mil e quatrocentos anos.
Teve de mobilizar todos os seus grandes recursos: animando Lutero, inspirando Hitler, inventando a
cruz quebrada (em desforra da bilha quebrada pela cruz), propagando no mundo uma filosofia que
descrê do homem, em nome do super-homem, endurecendo com o ruído das metralhas os ouvidos
dos soldados, que vinham de outras terras, arrancar a swastica das terras da Itália, arregimentando
as traições, as insatisfações, os recalques e todas as muitas espécies da imbecilidade e da felonia.
Conseguiu derrubar as paredes do mosteiro. Monte Cassino já não existe. Monte
Cassino foi reduzido a escombros. Mas duas coisas sobraram: a cripta onde os despojos do santo
esperam a ressurreição; e a obra imorredoura que, mais do que nunca, fulge radiosa.
2. A obra civilizadora
Chamado novamente por outros discípulos, depois da sombria experiência de Vicovaro, São Bento
torna a obedecer à voz de Deus pronunciada pela penúria dos homens. E com o claro gênio,
somente igualado por seu filho adotivo Tomás, que ele cede a Domingos e retoma na hora da morte,
Bento traça as bases singelas e robustas do monaquismo estável sem imaginar talvez que, na
superabundância de sua abadia, estava incluído o que hoje chamamos civilização ocidental. O que
ele fundava era uma casa de família, ou uma escola do serviço de Deus. O que ele fundamentava era
um estado de perfeição em que a ousadia e a discrição se adaptavam aos arroubos do espírito e às
fraquezas do corpo. Mas indiretamente, sem o querer, pela difusiva força do que é bom, São Bento
amarrava fortemente as duas pontas quase partidas da tradição, ligando a vida prodigiosa dos santos
do deserto às capacidades de nossa vida quotidiana. E, em conseqüência disto, sua obra foi
fortemente civilizadora.
Pela simples presença, mais do que por uma série de operações calculadas, o
mosteiro fertilizava e civilizava. Como o cristal de arestas rígidas e faces límpidas faz com que
tudo, dentro da água salgada, se ordene e cristalize, assim também, pelo exemplo da forma, pela
dureza das arestas perdidas, o cristal de Monte Cassino precipitou as salinas do mundo ocidental.
Por acidente, evangeliza enormes regiões. Batiza os anglos. Converte os germânicos. Enche o
mundo de heróis. Povoa a Igreja de santos. Pela simples presença, sendo o que é, uma abadia, casa
de orações, statio de perfeição, família, escola de serviço de Deus, sem planos de conquista e sem
planos de expansão, sendo o que é, Monte Cassino acende um farol que orienta as hordas bárbaras,
mostrando àqueles violentos o caminho da menos defendida das fortalezas: a casa de Deus. E os
bárbaros se tornam monges, mansos como cordeiros. E os romanos de fina estirpe ombreiam na
salmodia com os hirsutos e rudes germanos, cujo olho azul viera buscar, através de léguas e léguas
de caminho, por florestas e montes, por travessias de torrentes furiosas, por neves e calmarias, a luz
de uma vela sobre o altar.
Se alguém tivesse dito a Bento, no dia em que ele tomou o caminho de Monte
Cassino, para fugir com seus filhos à inveja de Florêncio, que sua obra se destinava a salvar a
cultura clássica e a fundamentar uma nova civilização, o santo ficaria muito espantado. E assustado.
O que ele tinha em mente era uma obra simples que se destinava primordialmente a
ser o que era. Das operações e das aplicações extrínsecas desse patrimônio, que assim formava, o
patriarca certamente não cuidava. E foi justamente por isso, pela solidez de sua própria natureza, e
pela ausência de qualquer programa prévio de apostolado e civilização, que as abadias beneditinas
tiveram sempre disponíveis enormes forças de fecundação para cada época. Quando um grande
papa, filho de Monte Cassino, planeja e organiza nos mínimos detalhes a expedição evangélica à
terra dos anglos, lá estavam os monges para servi-lo, menos por alguma aptidão especial às viagens
do que pelo simples fato de lá estarem.
E não terá sido por mera coincidência que Tomás saiu de Monte Cassino, para buscar
no itinerário traçado por Domingos, uma prodigiosa aplicação do patrimônio beneditino. O ser que
o monge é, Santo Tomás o aplicará, suberabundantemente, mugindo através dos séculos; e quando
tiver espalhado todas as sementes recebidas, voltará ao ponto de partida, ao monte santo, e morrerá
como uma criança de quatro anos no regaço duma abadia.
E não será também por mera coincidência que Francisco, o mais atraente e
convincente doido de Nosso Senhor, foi procurar nos espinheiros do Subiaco o antigo segredo para
vencer a rebeldia da carne.
E hoje, graças a obra de São Bento, que continua, e que se articula na multiplicidade
de outras obras, tendo atravessado a obscuridade medieval, e a claridade medieval, sob o agudo
olhar de Santo Tomás, e sob o ardente olhar de São Francisco, continuando sempre, transbordando
sempre, com fortes oscilações de nave que atravessa mar grosso, jogando nas ondas, entre Cluny e
Clairvaux – hoje, graças a essa obra continuada e mantida, nós podemos ler sem sustos as vidas dos
padres do deserto, porque está aberto e desbastado o imenso campo das analogias, que veio
enriquecer a obediência ao conselho evangélico.
São Bento, com seu incomparável exemplo prático, libertou-nos do univocismo,
aproximando o que parecia distante e irreconciliável. O extraordinário é inserido no ordinário. Ao
quotidiano monástico, substancia da nova conversatio beneditina, corresponde o nosso quotidiano
na vida familiar e profissional. A “petite voie” do grande monge refloresce na santidade moderna de
Santa Teresinha; e a pedra transforma-se em rosas.
E nestes tempos angustiados, em que todos procuram o segredo do homem no ter e
no fazer, volta São Bento a ensinar nos seus montes santos multiplicados pelo mundo, que o
segredo fundamental do homem está no ser e no estar. O grande problema do trabalho, em torno do
qual se enrola hoje um torvelinho de falsas doutrinas, como assinalou o Santo Padre em sua
encíclica, em nenhuma obra humana está mais dignificado do que na legislação beneditina. E creio
não me enganar dizendo também que a Ação Católica só poderá produzir bons frutos na medida em
que a participação no apostolado da hierarquia imitar a grande linha tradicional dos monges. Penso,
em suma, que o mundo cristão de nossos dias, se não compreender o que é o monaquismo, ou não
apreender o sentido do ser e do estar, perder-se-á num ativismo insensato. Já pairam sombrias
dúvidas acerca do que o homem é, tornando-se dia a dia o que tem e o que faz, como se essa infeliz
criatura se tivesse tornado tão excêntrica que andasse a correr no encalço do próprio coração.
4. O exemplo do abade
5. O oblato
IV - MILES STATARIUS
1. A Regra
Não foi São Bento o inventor do cenobitismo. Muito antes dele, no tempo de Santo
Antão, já era costume reunirem-se os discípulos em torno de um mestre a fim de procurarem o
caminho da perfeição na vida comum. Nos Atos dos Apóstolos encontramos um quadro de singelo
cenobitismo: “Todos os que tinham fé viviam juntos e possuíam tudo em comum; vendiam seus
bens partilhando (o produto) entre todos conforme a necessidade de cada um. Todos os dias, com o
mesmo fervor, assíduos no templo, e partindo o pão em casa tomavam o alimento com alegria e
simplicidade de coração, louvando a Deus e tendo o agrado de todo o povo. E o Senhor
acrescentava à massa, cada dia, aqueles que estavam salvos” (Atos, II, 45-47).
Não foi também São Bento o primeiro a escrever uma Regra para os monges. Antes
dele, São Pacômio e São Basílio já haviam legislado para comunidades religiosas.
Mas foi São Bento, certamente, que firmou o cenobitismo nas bases em que até hoje
se mantém. O comentário da Regra Beneditina publicado sob os auspícios da abadia de Maredsous
assinala três elementos que para o comentador são características da obra de São Bento. O primeiro
é a precisão. Sua regra é clara e nítida. O postulante, desde os primeiros dias, conhece “sob que lei
vai militar”, e sabe muito exatamente que compromissos toma a fazer a profissão. O segundo
elemento é a discreção. São Bento, com efeito, não exige nenhuma austeridade extraordinária, prevê
o alimento e sono suficientes, divide as horas entre a oração, o trabalho manual e a leitura, não
sendo sua Regra concebida, nem para os heróis da penitência, como a de São Columbano, nem para
uma elite intelectual, como a de Cassiadoro. Em suma, ele espera não prescrever nada de rude nem
de penoso em demasia. O abade deve levar em conta a fragilidade terrestre, dispondo as coisas e
distribuindo os trabalhos com moderação e discernimento, de modo que as almas se salvem, que os
fortes desejem fazer mais do que se lhes pede, e que os fracos não desanimem.
Mas é o terceiro elemento assinalado por aquele comentador, a estabilidade, que
marca de modo decisivo a obra de São Bento. Logo no primeiro capitulo da Regra, ele analisa as
quatro espécies de monge e faz o elogio da forte raça dos cenobitas, isto é, dos que vivem em um
mosteiro, militando sob uma regra e um abade. E nesta definição já estão contidos os elementos que
constituirão os objetos de voto: estabilidade (no mosteiro): conversatio morum (regra); obediência
(abade). Pode-se entretanto dizer que é no voto de estabilidade que está a chave do monaquismo
ocidental.
É mais que provável que, no tempo de São Bento, a palavra stabilitas tivesse ainda
vivas todas essas ressonâncias que lembram a contradição do homem e da cruz. E, se estou certo, o
voto de estabilidade, ao mesmo tempo que significava a permanência física no mosteiro, abrangia
também o forte sentido da atitude escatológica pela qual a vida monástica era um estar de pé diante
de Deus como se lê em Jeremias (XXXV, I-10): “Porque guardaste os mandamentos de Jonadab,
vosso pai, a raça de Rechab não cessará de produzir homens que permanecerão sempre diante de pé
de mim, disse o Senhor”.
E aí está uma bela definição para o monge, trazendo-nos à mente o nome daqueles
soldados que combatiam de pé, e não arredavam de seus postos: o “miles statarius”.
Voltando ainda uma vez à Suma descobrimos que as lições de Bento e Tomás se
harmonizam perfeitamente; e ainda uma vez verificamos que esses dois santos possuíram a virtude
do bom senso em grau heróico. De fato, se Bento, na ordem prática, propõem como primeiro objeto
de voto a estabilidade, Tomás, na ordem especulativa, começa o estudo do monaquismo pela
consideração “De officiis et statibus hominum in generali”. (II-II, Qu. 183, art. 1-4); e começa por
dizer que status evoca a idéia de estar de pé, citando Ezequiel: “Fili hominis, sta super pedes tuos”.
E logo acrescenta que dessa noção deriva a de retidão e elevação. Mais adiante ensina: “Estado, no
sentido próprio, é uma posição particular, não qualquer, mas conforme a natureza do homem”.
Deste modo a escolástica, mostrando que a vida do monge é um estado de perfeição,
confirma este sentido do voto de estabilidade da Regra de São Bento, que se refere não somente às
pedras do mosteiro, como também à vigilância e à prontidão.
Mas, a atitude de vigília não é própria do monge. Não é exclusiva dos mosteiros;
sendo, antes a clássica atitude de todo o cristão. No caso do monge, porém, ela se constitui em
estado, tendo sido solenemente prometida e solenemente aceita pela benção consagratória da Igreja.
E é neste ponto que o monge se separa de nós para melhor guardar o tesouro da estabilidade e seus
derivados. Adaptada e aplicada à cidade, a lição beneditina e tomista é esta: o homem não pode
descuidar-se de seu prumo, não lhe convindo adormecer nos sarcófagos das fórmulas de equilíbrio
mecânico que são o ópio do povo. O regime do direito e da justiça, a eqüitativa distribuição de
riquezas, isto enfim que chamamos democracia de inspiração evangélica, é uma situação que deve
procurar constantemente o antigo stô da verticalidade humana, e aferir todos os seus valores pelo
prumo da cruz.
5. A sonolência
“Devemos notar particularmente este ‘dormiunda’ – diz ainda Belloc – com suas
lúgubres vocais. O grito é de Catulo. A sociedade greco-romana agonizava. Mas isto é a metade, e a
menos importante metade da verdade, pois é preciso acrescentar que ela morria de desesperança. E
foi então que apareceu no mundo uma força que teve a virtude de transforma-la”.
Esta esplendida passagem de Belloc tem entretanto um defeito, a meu ver: o de
sugerir, pelo menos assim isolada do contexto, a falsa idéia de que o cristianismo venceu
definitivamente a sonolência do espírito humano, ou melhor, a funesta idéia de que a ação
civilizadora do cristianismo tem uma eficácia própria, necessária, mecânica, que dispensa nossa
vigilância. O homem continua sob o peso do pecado original, e continua a encher os séculos com
seus bocejos, e às vezes com os estertores de seus pesadelos.
Não é em Catulo, nem em outro poeta pagão, mas num moderno que encontramos
esta pequena quadra citada por Unamuno:
Cada vez que considero
Que me tengo de morir
Tiendo la capa al suelo
Y no me harto de dormir.
7. Sentinelas do Cristo
Ora, o monge, no seu estado, na sua estabilidade, é aquele que ouve o conselho de
Deus Homem na súplica do Homem Deus. Sentinela do Cristo, propõe-se suprir e resgatar a
sonolência dos outros, velando e orando. No voto de estabilidade física no mosteiro está portanto
incluída a idéia central de estabilidade no coro, em pé, atento, expectante, pronto para correr ao
encontro do esposo que tarda, e que virá em meio da noite.
O Ofício Divino é portanto o centro da vida do monge, pois é aí, nesse momento e
nessa atitude, que ele melhor realiza seu estado. O sentido da vigília transcende agora, no coro, o
ascético cuidado de não cair em tentação, e desabrocha, para além da paixão, no louvor que à glória
de Deus é devido. Entre o horto e as núpcias, entre os terríveis jejuns de Clairvaux e o laus-perenne
de Cluny, o monge paga uma dívida e canta. Ele é o “amigo do esposo, que fica em pé” na
estabilidade da vigília e do louvor.
8. A civilização
Disse atrás, a propósito do radical stô, que o homem viu sempre na sua vertical um
símbolo de dignidade. Os diferentes fenômenos lingüísticos – que apenas esbocei por me faltar o
hábito do ofício – mostram singular concordância com os sentimentos de exaltação e angustia que,
em todos os tempos, preocuparam o homem a respeito de sua condição. Disse também, se não me
engano, que a vida moral é vigilância contínua, não havendo nunca, enquanto há vida, um termo
perfeito, uma conclusão, um arremate, um repouso. Cada problema resolvido é um novo problema
aberto; cada situação atingida é uma nova situação iniciada; cada fim é um principio.
Freqüentemente, fatigados, mortalmente fatigados desse rosário ininterrupto de problemas, atitudes
e situações que só acabam para começar, e recomeçar, e continuar, como as águas de um rio –
freqüentemente tentamos trazer para a vida, isto é, para esse plano dos atos morais, o critério e os
métodos próprios dos atos artísticos ou técnicos. Metemos as mãos nessa massa espalhada e fluida
numa insensata tentativa de esculpir momentos de vida, que se imobilizem num termo, como se
quiséssemos erguer uma encruzilhada dos tempos a nossa própria estátua. Ou tentamos trazer para
os minutos da alma os ritmos da poesia e da música.
E esse esforço, que parece provir de uma transbordante vivência, porém, na verdade,
de uma sonolência.
A vida conjugal, por exemplo, começou numa festa que marcava o termo de uma
vida e o começo de outra. A festa é um patamar da vida. É uma estação. Mas a vida continua e a
festa fica para trás, num álbum, num véu guardado, numa flor murcha. E a vida continua, com seu
desafio quotidiano, fastidioso, minucioso, num desgaste terrível das reservas de amor que o noivado
acumulou. Ou, pelo menos, das reservas desse amor que parece tecido de poesia e de música. E a
fatigada impaciência procura substituir a ininterrupta vida conjugal por uma série de romances, inda
que esses volumes formem as obras completas da infidelidade. E, se ainda maior é a impaciência,
não possuindo sequer capacidade para a literatura de fôlego, será a vida conjugal substituída por
uma série de anedotas.
O que é difícil, na vida, é não substitui-la por coisa nenhuma. O que é difícil, na vida,
é manter-se o homem de pé, consciente sempre de seu estado, atento sempre aos ventos do mundo
que tentam verga-lo, esse pobre junco.
Na política, que também exige do homem a mesma verticalidade vigilante, e
fatigante, quando o sono pesa nas pálpebras, procura-se uma solução técnica e cômoda, uma nova
estrutura que funcione, desde que se lhe dê corda, como um maquinismo fabricante de bem-estar.
Projeta-se na prancheta de desenha a épura de uma sociedade humana ou pensa-se transformar a
confusa massa de atores indisciplinados numa apoteose wagneriana. Ou então, passa-se quinze anos
a fazer da vida política uma série de anedotas.
Muita gente tem a ingenuidade de crer que a civilização é uma inabalável conquista
garantida pelas invenções da mecânica. Temos, por exemplo, o automóvel, logo estamos
definitivamente senhores das distâncias. Temos a geladeira elétrica, logo estamos definitivamente
senhores do calor. Temos o radar, logo não haverá mais trevas para nossos olhos. E assim por
diante.
Ora, Civilização é uma coisa muito menos garantida do que parece. O que
possuímos, podemos perder. O que sabemos, podemos esquecer. E, se estamos de pé, podemos cair.
Nossos sucessos são precários e constantemente disputados pelo Príncipe que tenta impor ao mundo
um direito de conquista. Revendo os últimos acontecimentos salta aos olhos a fragilidade da
civilização. Bastou um cochilo, para transformar o mundo num monte de escombros; bastou, entre
nós, um colapso de vigilância política, para que a vida pública de nossa terra se transformasse num
prolongado Joujoux et Balangandans, em que nos furtaram o que nós e nossos pais havíamos
conquistado: o pão, a carne, o açúcar, e o direito de voltar para casa dignamente. Bastou para isso
que altiva a raça dos batizados se curvasse muito baixo diante daquilo que o homem de Deus
aprendeu, com a igreja de Cristo e dos santos, a sempre considerar com desconfiança: o Estado.
Porque essa entidade, como seu nome indica, facilmente se torna monstruosa, e dificilmente resiste
à tentação de absorver em si toda a capacidade humana de stare, isto é, de ser vertical e digna.
Civilização, na verdade, é estar em pé. Em cada momento histórico o futuro do
gênero humano depende da atenção vigilante e consciente de cada homem. E por aí se vê que o
monge é um elemento civilizador sendo um campeão de vigília. Transferindo analogicamente a
estabilidade beneditina para o domínio da vida política, teremos a força indispensável a esse regime
que chamamos democracia cristã, e que se caracteriza por uma viva consciência da realidade moral
e do primado da justiça.
O mundo moderno padece de um singular escurecimento. Já o disse, diversas vezes,
e torno a dizê-lo. O homem não se lembra mui exatamente o que é. Não se lembra sempre, como o
recomenda a Santa Regra beneditina, o nome que tem. E é por isso, principalmente por isso, que
nossa civilização corre um grave perigo. Estamos ainda dormindo tendo apenas passado, no fragor
das batalhas, da modorra tranqüila para um sobressaltado pesadelo.
A ciência que o homem tem de si mesmo está em crise. A pergunta da esfinge é
respondida com uma coleção de disparates. O homem não sabe mais o que é.
Ora, entre outras coisas surpreendentes, e diria até chocantes, que nossa fé nos
ensina, temos esta: se quisermos saber mais exatamente o que é um homem, devemos erguer os
olhos para uma mulher.
Em verdade, a Virgem Santíssima, em cujos pés deponho este pequeno trabalho, que
andei compondo e escrevendo durante o mês de maio, o seu mês, é a coroa da criação. Primeira
remida, e mais perfeitamente remida, ela abriu com seu assentimento os caminhos do preceito e do
conselho. Foi ela, a bem dizer, a primeira virgem consagrada e o primeiro monge. E é nela que
encontramos realizada de modo perfeito a estabilidade monástica.
Para nos convencermos disto, basta abrir o missal na Festa das Sete Dores de Nossa
Senhora. Logo no Intróito, a primeira palavra que nos salta diante dos olhos é esta: “Stabant...”.
Estavam em pé junto da cruz, sua mãe, a irmã de sua mãe, etc. Vejam bem o diálogo tremendo
destas duas atitudes: o filho da cruz, de pé, pregado no madeiro que tem aquele mesmo radical
misterioso, a raiz do homem, da sua vertical; e a mãe, e mais as outras três mulheres, de pé,
formando por assim dizer o primeiro coro, diante da cruz.
Na coleta, a palavra reaparece para designar os santos que se mantém de pé, ao lado
da cruz:...“e pelas preces de todos os santos que estavam fielmente em pé junto da cruz”. Fideliter
astantium. No Gradual, com uma nota de dor, pela terceira vez encontramos: “Dolorosa et
lacrimabilis es, Virgo Maria, stans juzta crucem Domini Jesu, Filii tui Redemptoris”. No Tractus:
“Stabat Mater dolorosa...”. No Evangelho, novamente, a primeira palavra que lemos é: “Stabant...”.
E no Ofertório: “Recordare, Virgo Mater Dei, dum stéteris in conspectu Domini...”.
Vê-se assim que as Sete Dores de Nossa Senhora aparecem no Missal sete vezes
ligadas aos derivados do vocábulo que se encontra nos mais remotos documentos do mundo,
sempre que está em jogo um problema fundamental do homem.
Há, porém, nas Dores de Nossa Senhora, uma atitude especial que merece muita
atenção. Passa-nos despercebida primeiro; espanta-nos depois. E é esta: a mais dócil e obediente das
criaturas humanas não deu um só passo e não pronunciou uma só palavra no sentido de interceder
por seu filho junto ao poder de Roma. Quem intercedeu foi a mulher de Pilatos, por causa de um
sonho. Não a Mãe de Deus. Dócil e obediente à vontade do Pai, a mulher forte, a criatura erecta por
excelência, o cedro do Líbano, não quis nunca submeter o sacrifício de seu Filho aos decretos do
Estado. Em cada statio da via-crucis a Virgem Santíssima afirmou a isenção da Igreja e a primazia
espiritual. Sua atitude vale um tratado.
Gostaria de abrir um largo capítulo para falar nas virgens consagradas ao serviço do
Senhor. Muita coisa do que já disse se aplica tanto aos monges como às virgens, na medida em que
ambos imitam a atitude de obediência da Virgem Santíssima. Mas a entrada da virgem no estado
religioso parece-nos conter um elemento a mais do que na profissão monástica dos homens. A
magnífica dramaturgia com que a Igreja cerca a consagração virginal, mais do que no caso dos
monges, se assemelha a uma festa de núpcias. Dir-se-ia – não sei – que a união mais forte, mais
íntima, mais livre de qualquer função, mais próxima do céu. O pontífice fala à monja com a voz do
esposo: “Veni, electa mea, et ponam in te thronum meum...”. E depois da imposição do véu insiste,
no tom premente dos noivos: “Desponsari dilecta veni...”. “Vem, ó bem amada, vem para a festa de
núpcias; já passou o inverno, a rola canta, recendem as vinhas em flor”.
Se o monge é “o amigo que fica em pé, ao lado do esposo”, a monja se apresenta
como a própria esposa: “Estou desposada com Aquele a quem os anjos servem, e cuja beleza o sol e
a lua admiram”.
Digo por isso que as virgens consagradas desfrutam já, aqui e agora, uma união mais
perfeita do que os monges. Mas digo-o sem provas. Não tenho certeza; e que Santa Escolástica me
perdoe se deixo tão mal esboçado o problema de suas filhas para voltar a São Bento, terminando
esta modesta homenagem que, a par a canseira e das decepções experimentadas pelos esbarros em
meus próprios limites, trouxe-me já a recompensa de um acréscimo de veneração.
11. Conclusão
Tentei mostrar nas páginas anteriores o sentido, a extensão, e o campo das aplicações
analógicas da estabilidade, que constitui o principal característico da Regra de São Bento.
Focalizado nos seus diferentes planos, explorando sob ângulos diversos, o conceito revela uma
riqueza enorme que se estende da fidelidade aos compromissos humanos à fidelidade dos votos
pronunciados diante de Deus; que diz respeito à abadia, à casa de família e à cidade; que vai do
homem à pedra e da pedra ao homem; que se refere à posição erecta de Nossa Senhora e à posição
vertical da cruz.
A figura do monge, nesta tentativa de um esboço, surge-nos como um marco. Vemo-
la como o profeta viu: aquele que fica em pé diante do Senhor. Apreciamos a profundidade e o
alcance do humanismo beneditino, tão semelhante ao humanismo tomista, compreendendo que a
atitude que verdadeiramente convém ao homem é aquela que o eleva. E aprendemos, com São
Paulo, que assim sendo não pode haver descuido, pois esta atitude por si mesma implica a idéia de
queda.
E a rigor, podemos dizer que a lição dos monges, não foi perdida. Apesar de tudo, a
estabilidade beneditina ajudou o mundo a se firmar, justamente nos momentos em que parecia
perdido. Compete-nos agora continuar. Exploremos e usemos o patrimônio de São Bento, para bem
servir à sociedade e à Igreja, nestes tempos perturbados em que os falsos salvadores nos querem
arrebatar o status para formar um monumental monólito, uma nova pirâmide egípcia que será, não o
túmulo de um rei, mas o sarcófago de um povo. Firmemos pois nossos pés; sejamos mastros de
vigilância; colunas de dignidade; torres de justiça. Contra o materialismo que nos quer prostrar, e
contra o falso espiritualismo que tem a pretensão insolente de interceder por nossa Igreja, saibamos
ser monges, firmes, inabaláveis, como os soldados romanos que combatiam de pé, sem arredar do
posto.
Mas vejo agora – um pouco tarde talvez – que posso ser acusado de ter andado a
fazer jogo de palavras. Dirão que tirei de um verbete de dicionário, e de uma mera coincidência de
palavras, abundantes conseqüências, emprestando aos vocábulos mais do que realmente contêm.
Bem sei que isto é perigoso, e que, mesmo em relação às Sagradas Escrituras, não convém fugir
demais do sentido literal para procurar sentidos ocultos e simbólicos.
No caso presente, porém, a abundancia de provas parece demonstrar que a idéia de
aproximar o voto da estabilidade do estar em pé, em coro e diante da cruz, é verdadeira; e que é
impossível supor que no espírito de São Bento não escoassem todas essas ressonâncias quando ele
fez da estabilidade o objeto de um voto.
Mas eu deixei para o fim dois argumentos que me parecem especialmente
convenientes. Alias, a verdade é que só agora me vieram elas à mente, quando no capítulo anterior –
como se vê pelo tom de peroração que lá ficou – tencionava encerrar este estudo. E não oculto que
tive uma grande alegria quando os encontrei.
O primeiro argumento é este: São Bento, ao sentir aproximar-se a hora de sua morte,
fez questão de ser levado para o Oratório, fez questão de ser sustido pelos braços de seus filhos, e
morreu em pé. Eis como São Gregório Magno, em seus Diálogos, narra os últimos dias do patriarca:
“Seis dias antes de sua morte mandou abrir a sepultura. Logo a seguir foi atacado de febres e
começou a sofrer de seus ardores violentos. Como a enfermidade se agravasse dia a dia, fez-se levar
no sexto dia por seus discípulos ao Oratório, onde se prevenia para sua partida deste mundo com o
Corpo e o Sangue do Senhor; depois, amparando seus débeis membros nos braços de seus
discípulos, ficou em pé, com as mãos levantadas para o céu, e exalou seu último suspiro
murmurando uma oração”.
Agora vejamos o segundo argumento. Este vem dos evangelhos e tem um certo
sabor, que nos faz pensar numa coisa que está constantemente e cuidadosamente velada nas
escrituras: o sorriso de Nosso Senhor. Voltemos ao texto de São Mateus que nos serviu para definir
a obediência do monge e que se refere mais diretamente à obediência dos apóstolos. Depois da
partida do moço rico, e das palavras de Deus sobre o camelo e a agulha, eis que Pedro (a quem
competia sempre fazer tais perguntas) interroga o Senhor: E nós? E Jesus lhes diz: “Em verdade vos
digo, quando o Filho do Homem se sentar no seu trono de glorias, vós também, vós que me haveis
seguido, vos sentareis em doze tronos e julgareis as doze tribos de Israel”.
E aqui está a chave final de nosso problema. O prêmio oferecido àqueles peregrinos,
àqueles vigilantes, que ficaram de pé no coro, ao lado do esposo, ao pé da cruz, nos caminhos da
vida e na hora da morte, o prêmio do cêntuplo e da vida eterna está ligado a essa atitude final, de
repouso, de termo atingido e de bem conquistado: os apóstolos e os monges, no fim dos tempos,
estarão sentados em torno do Rei.