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ATO II - DO ARTESANATO RÚSTICO DA CENA

Um estudo ao enveredar por cenas desaparecidas no esquecimento, indo ao encontro


do que se tornou invisível pelas camadas depositadas pelo tempo, como os fragmentos a
serem recolhidos e dispostos num mosaico, ou como relíquias a serem colecionadas para
quebrar com a dispersão, dando-lhes uma nova função. Agora emergem os seus rastros, como
pontos faiscantes saltando através do tempo. É no presente o desafio de se operar com tais
elementos, tecendo-os, em um labor paciente, por meio do qual a inventividade se manifesta
no próprio tecer artesanal1, aquela tessitura exigente na paciência, e é no presente essa
inquietude diante do caos e da fragmentação de suas partes constituintes. Seria possível
ordenar o que é feroz e indomável pela força dionisíaca 2 nele contida? Como lidar com os
rastros deixados pelos artistas que produziram uma arte caracterizada pelo dinamismo, por um
movimento eletrizante de vida capturado em fugazes momentos da cena?
Neste ato descrevo como a cena cabocla teve seu processo singular de elaboração.
Tal processo é resultado de uma investigação calcada nas experiências reveladas nas
narrativas de artistas de Abaetetuba. Como caracterizar a cena cabocla? O termo rústico é
utilizado no sentido de dar conta dos aspectos singulares e muitas vezes contraditórios da
feitura artesanal das cenas, especificamente as caracterizações do personagem caboclo com
suas inúmeras facetas. Desse modo o personagem é colocado como um arquétipo
aglutinando várias elaborações imagéticas na cena articuladas à narrativa.
A expressão “rústico” usada para se referir tanto à arte quanto aos artistas
categorizadas comumente como “populares”, envereda por outros caminhos usados na própria
tradição destas criações. A recorrência à “tiração” mostra como essa cena cabocla era
interpretada pelos seus fazedores como uma operação de extrair da natureza aquilo que ela

1
A insistência no caráter artesanal na arte da cena cabocla, tem relação com as reflexões benjaminianas sobre a
narrativa das sociedades tradicionais. Conforme a análise deste pensador, há uma relação entre a narrativa, o
tempo e o ritmo de vida nas comunidades pré-capitalistas, isto é, artesanais: “A narrativa floresceu num meio de
artesão, (...) é ela própria, num certo sentido, uma forma artesanal de comunicação (...) como a mão do oleiro na
argila do vaso” (BENJAMIN, 1987, p. 205). Aqui por extensão tomei o sentido proposto relativo ao trabalho
manual, à formação social e à narrativa, para os aspectos da constituição de um fazer artístico. (Nota do autor)
2
Dionísíaco associa-se ao deus da mitologia grega cujas características podem ser identificadas nas artes da cena
como a capacidade de se transformar, ele é o deus da metamorfose (Conf Junito de Souza Brandão, vol. 2) a
partir dessa caracterização associo com a noção extraída do pensamento do filósofo Nietzsche, cujo sentido é
bem mais abrangente. Apolo, seu par antitético, representa a razão e Dionísio, a descarga emocional, a
criatividade. Em obras como A origem da tragédia no espírito da música, o dionisíaco refere-se ao caráter
trágico da existência e sua expressão nas artes “da embriaguez”, associa-se a uma arte visceral “interpretando o
seu aspecto efêmero” e por isso aproxima-se da natureza e do instintivo. Dionisíaco também está associado à
máscara do ator, à sua metamorfose: “Dessa forma, a vida se torna possível ao considerarmos sua finitude, ao
consideramos que as inúmeras possibilidades nos exigem diferentes posturas, diferentes “máscaras”.” (PAES,
2013, p. 150).
oferece, com a ressalva que para tal ação seria necessário um saber apropriado, isto é, há
sempre um saber intermediando o processo de criação e o artesanato da cena exige este saber.
O trajeto nos conduz para além desta percepção do “artista popular” 3, evitando
prender-se a esta classificação, possivelmente limitadora do seu entendimento, pois os rastros
demonstram uma força de criação ancorada na relação com a natureza, na relação com a
comunidade, no diálogo com ela e com as experiências dos artistas de outras gerações,
recriando as práticas herdadas e não somente reproduzindo-o. Desse modo, das narrativas
ouvidas neste percurso da pesquisa saltaram os elementos da comicidade, a sensualidade, o
lado pândego e a religiosidade do caboclo analisados através das cenas nas quais o
personagem se manifesta. Os traços do arquétipo caboclo podem servir como subsídio para
uma possível reconstituição de uma cena, e inspirados em tais traços outras narrativas se
enriquecem e tomam forma teatral.
Refkalefsky (2001) faz uma tipologia dos personagens dos cordões, constatando a
constância no aparecimento deles nas encenações montadas desse teatro popular paraense,
para esta autora “a um personagem-tipo é indispensável existir uma oposição binária para
revelar ou pôr em evidência seu traço fundamental de caráter”(REFKALEFSKY, 2001, p.
87). Seriam os traços percebidos da persona do caboclo oposições a um outro tipo já revelado
em outros contextos? Em outro item esboço essas sutilezas da construção desse arquétipo.
Outro tema deste ato se refere à técnica já bastante explorado nas pesquisas em arte,
toma aqui o caminho da multiplicidade e da espontaneidade, seguindo um processo
desenvolvido no contexto de ausência dos meios convencionais de desenvolvimento de uma
técnica formal ligada a uma escola. E assim surge um saber na modelagem, na observação, na
reinvenção do natural, espontânea ou alicerçada “indiretamente” numa escola, e daí deriva
uma reflexão sobre a técnica, de como pensar esta forma do fazer artístico no qual os meios
da aquisição de uma experiência pelo artista e a noção de espontaneísmo permeiam o
processo de composição da cena? Evidente que todos os artistas intuitivos, os que aprenderam
“por orelha”, como denomina o Sr. Benigno Silva, narrador nesta pesquisa, tiveram suas
referências, tiveram seus modelos, e desenvolveram qualidades como a paciência para o labor
artesanal, a curiosidade e a criatividade.
Trago ainda neste item certas hesitações no momento da nomeação, na categorização
da prática em artes da cena, pois certas palavras adquiriram um sentido fechado em demasia,

3
A idéia aqui é dignificar o artista da cena indo além desta noção de popular, buscando uma quebra com a
fronteiras entre o popular e o acadêmico: “Quando a arte é seguida de uma denominação, como por exemplo,
arte tribal, arte primitiva, arte da criança, arte do louco, arte popular, ela sofre uma discriminação, uma
diminuição no seu estatuto de arte.” (CAMPOS, 2012, p. 216)
sendo necessário recorrer a muitas mediações para transpor essa carga semântica. Outro ponto
são as mutações ocorridas nas práticas artísticas e no modo como o artista é percebido na
comunidade, o meio social em que o artista se insere constituindo um fator determinante para
o reconhecimento por parte do público, gerando sempre desafios ou obstáculos que se
colocam no seu trajeto criativo.
Este capítulo centra-se na descrição e análise reflexiva do processo de criar para um
público, mediante uma perspectiva, através da qual se procura entender o artista da cena
cabocla numa condição temporal, contextualizada, comumente designado como comediante
ou “brincante” ou “dançante” – A brincadeira e o jogo 4 profundamente imbricados no
conceito de performance, demonstram aqui suas inúmeras possibilidades. Juntamente com as
cenas descritas e das imagens às quais recorri para tentar mostrar o que assimilei no trajeto,
apresento trechos do diário de bordo constituído durante as entrevistas. O motivo para
apresentar todos estes recursos são decorrentes de certas situações nas quais a análise parece
insuficiente para dar conta do emocional resultante do impacto da estranheza e do contato
com as narrativas e seus narradores.
Ao lado desta dignificação do artista caboclo, do sujeito criador da cena cabocla há
uma situação da qual não se pode omitir neste texto: a luta árdua pela sobrevivência travada
cotidianamente. Além deste esforço há uma situação de exploração histórica, de aviltamento
pesando sobre esta população habitante da zona ribeirinha e das margens das estradas e
ramais e a exclusão política e social, Neste aspecto a arte aparece como forma de resistência
contra estas duras condições de existência do caboclo amazônico, a permanência de formas de
expressão cultural pode ser interpretado como o seu “véu de maia’, permitindo-lhe celebrar a
vida ainda que esta seja de sacrifício e opressão, o caboclo encontra brechas para o devaneio
poético, para cantar uma natureza, sobre a qual inúmeras ameaças pairam no ar.
Como “Mephisto sussurrando na orelha de Fausto”, em vários momentos surge a
cisma acerca da sustentação desta tese: “o que sustenta os teus argumentos? As vozes dos
narradores e suas experiências coletivas evidenciam o que proclamas?” Na condição de
“catador destes fragmentos” cabendo à escrita, reordená-las para dar sentido ao texto, enfrento
a questão esfingiana do pesquisador por meio das sutilezas do mundo da arte, compreendidas
no terreno da sensibilidade.
Neste sentido, ao longo desta investigação, a palavra artista será empregada para
designar diferentes formas de manifestação culturais, nas quais o sujeito é percebido como
criador, liderança e envolvimento em sua comunidade. Envolvimento com sua cultura,
4
Conferir Schechner (2013, p. 91).
identificando-se com ela. A reflexão sobre o artista e a cena cabocla deixa aqui sempre uma
interrogação sobre a prática, constantemente alvo de equívocos e a síntese da tensão é
revelada no termo “tiração”. O segredo da prática é saber “tirar” o que a natureza oferece, seja
isto, o “tirar” sonoridade, metáforas, rimas, cores e formas de materiais tirados da mata, tirar
movimentos corporais e assim se constitui a poética do espetáculo.

CENA 1
Figura 12 - O cordão da bailarina da Vila de Beja. Desenho do acervo do autor. 2022

Um animado grupo de 30 jovens ansiavam pela chegada dos festejos dos “santos da
fogueira”. Muitos haviam “apanhado” cachos de açaí para a venda e com isso conseguiram
algum dinheiro para os perfumes e para os sapatos. Estavam nos preparativos para o mês de
junho quando iriam levar às ruas, o Cordão da bailarina, na vila de Beja, dirigidos pelos
senhores Belmiro Campos e Arlindo Teixeira. Belmiro Campos havia escrito o texto em
versos, que serve de argumento para aquele cordão. Pelo 3º ano, o cordão seria apresentado,
chegando o espetáculo até o distante Rio Paruru, tendo o elenco atravessado a baía do Capim
para chegar naquela localidade. Os músicos eram os mais velhos do grupo, tocavam viola,
tambores, cuícas e flautas e desses instrumentos “tiravam” os sons para acompanhar o coro de
vozes. Os trajes estavam sendo confeccionados em oicima, uma relva da qual se extraia uma
fibra a ser trabalhada num laborioso e paciente cuidado. O processo consistia em extrair suas
hastes ainda verdes, revirando suas entranhas e deixando-as de molho na água de um riacho
durante 8 dias para que ficassem macias, depois retirando seus resíduos, ali ficavam como um
tecido e assim colocavam sobre um quarador de folhas de açaizeiro, para retirar toda a
umidade, em seguida eram costuradas e pintadas com tintura de caju-açu e flor de jenipapo.
Os colares estavam sendo confeccionados do fruto da saboneteira, uma árvore da mata cujo
fruto tem o formato dos grãos do café e expele uma espuma, razão de seu nome. Esta fruta
tem uma semente negra luzente, que Belmiro Campos furava uma a uma, com a ponta
aquecida da sovela (agulha usada para costurar as velas das embarcações). Ficavam belos,
assim como, os outros trajes, confeccionados do tururi da palheira, uma espécie de capa
vegetal que se forma sobre aquela planta denominada palheira além da palha do milho.
Outros adornos eram feitos em tento, uma semente vermelha e negra além das
lágrimas-de-nossa-senhora, outra semente com matizes brancas e cinzas. Os ensaios estavam
acontecendo no salão de uma casa grande de madeira que ocasionalmente era usada para
festas. Belmiro Campos dirige tudo com paciência, senso de ordem e uma visão do conjunto.
E agora, ritmados pela batida de tambores confeccionados com couro de preguiça e a melodia
das violas e das flautas de bambu, o coro entoava a cantiga singela do final da peça:
“Bailarina desapareceu,/ de dentro deste salão, /oh volta minha doce bailarina/ vem, vem/
acomodar o meu pobre coração!” Quando chegou o dia tão esperado da apresentação
estavam com o peito arfante e os olhos brilhantes, e o público que os esperava amontoados
nas ruas empoeiradas estavam ainda mais ansiosos, afinal esse era o cordão do qual tanto se
falara nos anos anteriores. Em meio aos aplausos e assobios, ao som da marchinha na cena
final, a bailarina desaparece do salão de festas e assim reapareceria mais uma vez no ano
seguinte, para nunca mais retornar. (Recriação da narrativa da Sra. Cleonice Campos, filha de
Belmiro Campos).

2.1.A tiração poética e o arquétipo caboclo em cena

Situado diante de uma natureza magnífica, de proporções monumentais, o


caboclo como homem amazônico, o nativo da terra, além de ter criado
processos altamente criativos e eficazes de relação com essa natureza,
construiu um processo cultural dissonante dos cânones dominantes. O
caboclo humanizou e pôs a natureza na sua medida. (LOUREIRO, p. 56).
Há muitos adjetivos usados para caracterizar as artes da cena realizadas por artistas
interioranos, ou daquelas artes feitas por pessoas que as recriaram a partir de uma tradição
cultural, cujas fontes tenham referências rurais, ou mesmo, aquelas manifestações surgidas
entre pessoas dos estratos sociais marginalizados da zona rural ou de cidades do interior da
Amazônia, quer sejam lavradores, pescadores ou fabricantes de farinha de mandioca. Dentre
as denominações encontradas, arte popular, cultura popular, primitiva, rústica, folclórica, arte
regional, em todas estas denominações se encerra uma diferença com aquela arte
convencional, acadêmica, erudita, aceita com seus princípios e regras. As denominações aqui
mencionadas como :cultura cabocla e cena cabocla na Amazônia, tomam como referência o
universo desta cultura, cujos meandros foram tão bem delineados por João de Jesus Paes
Loureiro em sua obra. Cultura Amazônica, uma poética do imaginário, descrevendo seus
símbolos, suas expressões e relações estéticas. Jones Gomes, em Cidade da arte, uma poética
da resistência nas margens de Abaetetuba abordando especificamente o universo da arte
abaetetubense. Tais obras serviram como referência para este itinerário e percepção cuidadosa
nestas caracterizações das expressões artísticas descritas neste estudo.

2.2. O rústico (em)cena

O termo rústico tem sua origem na palavra latina rus, campo e rusticus, adjetivo
relativo ao que vive no campo, isto é, rural5. Nas artes, o termo rústico está associado a um
determinado estilo desprovido de muitos adornos, isto é, aquela forma de arte aproximada ao
mais natural possível, bruta, sem uma técnica, sem um acabamento ou sem muita elaboração,
havendo também um sentido depreciativo: como uma produção deficiente de técnica. Porém
ao adentrarmos na cena descrita, seria possível negarmos a existência de uma técnica no
processo criativo do Cordão da Bailarina da vila de Beja? Embora seus fazedores não
tivessem um conhecimento acadêmico, formal, possuíam os saberes dos segredos da mata e
seus recursos, onde encontrá-los, como os manipular de modo a criar e atender suas
necessidades, além disso, os seus talentos estavam amalgamados na coletividade, há que se
reconhecer também o necessário domínio de técnicas derivadas de um saber da tradição,
devidamente recriados para a produção e encenação do cordão.

5
https://michaelis.uol.com.br/moderno-portugues/busca/portugues-brasileiro/r%C3%BAstico. Acesso em
02/2022.
Poderíamos tomar de empréstimo um termo oriundo das artes visuais, possivelmente
aproximado a esta caracterização da cena cabocla, trata-se de naif, um gênero definido por
D’Ambrosio (2015) como a libertação dos padrões e critérios de uma arte institucionalizada:

também denominados de ingênuos, primitivos modernos, ou neoprimitivos,


populares, além de várias outras designações, que vêm sendo empregadas ao
longo dos anos os artistas naifs são autodidatas,que se expressam
plasticamente de maneira instintiva, espontânea e original. Em sua
esmagadora maioria, não tiveram uma aprendizagem artística formal, e
assim, podem criar suas obras com a mais ampla liberdade de expressão,
desobrigados que estão de seguir os padrões ou rigores de qualquer “escola
de arte” que seja (D’ AMBROSIO, 2015, p. 12)

Em se tratando de uma arte da cena cabocla seria adequado dizer que é uma arte
talhada na plenitude da natureza, ela se caracteriza também por ser coletiva, por responder a
uma necessidade vital de expressão daqueles grupos de moradores de comunidades
tradicionais, cuja vida rústica é expressa em suas performances de canto e poesia. O rústico
também em se tratando de um produto artístico, pode estar se referindo ao conteúdo ou a sua
forma. Um conteúdo rústico pode ser expresso num formato não-rústico, e a forma rústica
estaria ligada ao seu invólucro ao aspecto externo da manifestação.
Um dos termos utilizados nas várias narrativas da cena cabocla é o verbo tirar,
“tiravam” para se referir ao ato de tocar um instrumento. Esta expressão é comum na cultura
cabocla abaetetubense, tal qual a denominação de “Tiração de reis”, para a manifestação
cultural onde os cantores saem pelas ruas na noite dos Reis magos, parando nas residências
para cantar. Este uso do verbo tirar, pode ser uma das pistas para pensarmos nos traços da
cena cabocla e sua constituição. Tirar é um verbo de ação, aproximado a “extrair”, “arrancar”,
"puxar''. Ora o trabalho desenvolvido historicamente pelos caboclos da Amazônia sempre teve
relação com estas ações, o trabalho de coleta das drogas do sertão, tirando da floresta diversos
produtos como a tiragem do azeite de andiroba, ucuuba ou patauá. A tiragem das fibras
usadas na confecção de utensílios como paneiros, cestos e matapis, assim como sementes
usadas para fazerem adornos como as lágrimas-de-nossa-senhora, o tento vermelho, o galá-
galá, a semente-sabonete, a oicima e o tururi usados para criarem tecidos para os trajes. A
floresta e os rios quando fartos. davam aos seus moradores a matéria-prima para muitas
criações.
Da mesma forma, a música tocada num instrumento ou um verso criado para fofoia ou
para a folia dos santos, era interpretado como uma tiração, era algo tirado da natureza pelo
ser humano, no contato com ela, inspirava-o, criava o que Paes Loureiro denomina de
esteticidade e devaneio poético, o primeiro vem da relação do caboclo com a natureza e o
devanear e o imaginar seriam como tirações da natureza, extraindo dela o seu fruto poético. A
relação é estetizante, criar , dar forma, e no processo de tirar dela criando símbolos artísticos.
O tirador de versos da fofoia é um artesão, que brinca com as palavras rimando-as fazendo sua
cantoria enversando seu cotidiano. Artistas como Belmiro Campos, Nina Abreu, Nazaré
Lobato ou Pombo da Maroca Lima tinham em seus repertórios cantigas associadas a este
universo da tiração.
Em todos os casos, as reações à menção ao caráter rústico de uma cena, toma aqui o
sentido de algo ligado ao universo das comunidades tradicionais e suas formas de expressão,
aqui interpretadas como artes. Dois episódios ligados à fofoia, descrito na cena seguinte, pode
nos dar pistas interessantes para pensarmos nesta questão.

CENA 2

Corria o ano de 1985, no palco em frente à praça da matriz, acontecia a Semana de


Arte de Abaetetuba6, um grupo de senhores idosos, vindos da Vila de Beja, se apresentavam e
“tiravam” um som estranho de rabecas, requexés e pandeiros, e em coro entoavam uma
estranha canção que parecia, na minha interpretação, uma mistura de “ladainha de santos”
com música caipira. Estava eu do outro lado da praça, ao lado de uma amiga. Hoje sei que
muitos daqueles versos eram improvisados e faziam referências aos trabalhadores da roça que
tiravam um som de um “fiti”, espécie de apito feito de folhas de palmeira e da batida dos
terçados, e mais adiante cantavam o santo padroeiro dos samaúmas,os indígenas daquele
povoado e em certo momento estariam embriagados de cachaça, uma das canções dizia : “Ó
meu São Miguel (uma segunda voz sempre repetia o final)Ó meu são Salvador/ Salvai as
nossas almas que eu já não sei aonde estou.”. Embasbacada , a amiga ao meu lado exclamou:
“Que coisa horrível!”. Aquela cena causou-me estranhamento e minha curiosidade por aquela
demonstração de uma tradição cabocla não parou ali, e até hoje guardo aquela lembrança,
como o meu primeiro contato com a Fofoia.

6
Evento artístico anual que se realiza por ocasião dos festejos de aniversário da cidade e o dia nacional do
folclore, constituído de apresentações musicais, performances de dança e teatro.(Nota do autor)
Figura 13 - Igreja e praça de São Miguel de Beja – Fotografia do acervo do autor – 2022

Ali mesmo na Vila de Beja no final da década de 70, quando a tradição dos
“versejadores da fofoia” já havia entrado em declínio, foi designado Diego Arroyo, um padre
espanhol, para assumir a igreja de São Miguel de Beja. No momento no qual o padre tomou
conhecimento da diversidade cultural que havia naquele lugar, e quando muitas daquelas
manifestações artísticas, estavam em desaparição, convidou a comunidade para revivê-las
num evento anual, com uma programação que trazia danças e músicas. E foi numa certa noite
deste evento, que os derradeiros cantadores da fofoia de Beja, se apresentaram e causaram um
certo transtorno. Ali naquele momento, já haviam se passado muitos anos que estes
versejadores não mais se apresentavam, e havia se perdido o elo entre as gerações, e a
juventude não se identificava mais com aqueles desafios de versos, a voz anasalada
acompanhada por uma viola e rabeca cujos tons eram para eles “estranhos ruídos”. E quando
a apresentação já durava mais de 40 minutos e parecia interminável ao público dos jovens,
enfarados com os “ruídos”, protestaram em conjunto, vaiando e pedindo o término da
cantoria. O padre interveio e tomou a palavra, e enfático, exigiu que se não terminassem os
protestos, pediria ao grupo de cantadores da fofoia para recomeçarem tudo novamente. E
assim temporariamente deu-se a solução para aquela contenda. (Recriado da narrativa da Sra.
Cleonice Campos).
A reação dos jovens no evento citado da Vila de Beja e da moça que estava ao meu
lado na exibição dos tiradores da fofoia no palco da Semana de Arte Abaetetubense, pode ser
compreendida no contexto das rápidas transformações pelas quais passava o município de
Abaetetuba, área de fronteira na implantação dos grandes projetos na Amazônia, a forma
agressiva na qual é submetida essa população vai gerando uma clivagem geracional: a geração
mais nova já não se reconhece, aliena-se de um mundo que já não compreende, perdendo seus
laços culturais com sua ancestralidade, conjuntamente houve o avanço da indústria cultural
pelos mais diversos meios. A cena caracterizada pela rusticidade quando comparada a uma
outra produção oriunda de um outro código artístico, ou associada às modas engendradas pela
indústria cultural fomentadora de “gostos”, tomada como padrão estético, pode gerar a
adjetivação de “feio”.
Como lidar com o “feio” na arte, e com tudo aquilo que possui essa qualificação?
Humberto Eco (2007) em sua História da feiura, mostra uma distinção na percepção do feio
pelas pessoas comuns e a sua representação nas obras de arte, assinala também como a
definição de feio muda constantemente em diferentes épocas e culturas. De um modo geral o
“feio” é sempre associado ao que é estranho, ao que não é ou deixou de ser familiar. O “feio”
pode inspirar medo, terror ou enfaramento. No terreno da arte há possibilidades de se abarcar
o feio, tratá-lo e trazê-lo à cena invertendo a maneira como se dará essa recepção por um
público ignorante de suas referências. No caso da contenda em torno na fofoia da Vila de Beja
pode ser interpretada como desconhecimento da história cultural, fruto de uma identidade
cultural esfacelada pela ausência de diálogo entre jovens e velhos, a perda dos vínculos, “o elo
perdido” entre as gerações. A experiência da geração anterior já não podia mais ser partilhada,
havia se quebrado o ‘espelho mágico”, que refletia esta experiência. E agora, na “pobreza da
experiência” como reflete Walter Benjamin, só nos resta reconhecer a perda, a fim de libertar-
se dela7.
As duas posturas trazem questões importantes para o pesquisador das artes da cena.
Ao refletir sobre as duas posições na contenda de Beja. De um lado o papel do padre
caracterizado pelo saudosismo, pela tentativa de reviver o passado reconhecendo seu valor.
No outro polo, os jovens que vaiaram a apresentação dos poetas da fofoia caracterizando o
papel de quem nega o passado, desconhece a sua herança cultural. Ambos estavam em pólos
extremos. Por um lado, é louvável a posição de quem deseja reativar as tradições artísticas,
mas há um problema em reviver o passado, prendendo-se a um saudosismo, sem atinar para o
presente e suas emergências, para o modo como hoje se configura esse mundo que irá receber
esse “pedaço de um outro tempo”, considerando o choque inevitável ao trazê-lo à luz.

7
A nostalgia do passado pode significar uma atitude paralisante diante do reconhecimento da perda das
tradições culturais porém para Benjamin, como nos faz compreender Gagnebin, é necessário “reconhecer
a perda dolorosa de certos ideais estéticos ... mas o reconhecimento lúcido da perda leva a que se lancem
as bases de uma outra prática estética” (GAGNEBIN, 1987, p. 12)
Ao associar o termo rústico, como um dos traços da cena cabocla, estou me reportando
ao seu caráter rural, específico de sua relação com a natureza, o caboclo aqui se constitui num
arquétipo cuja montagem é resultado de um processo que tem suas raízes na história. Na
arquitetura, o estilo rústico é aquele que utiliza materiais mais próximos do natural, evitando a
artificialidade daqueles, visivelmente modificados pela indústria. Em se tratando das artes da
cena a valorização da cultura rústica deu-se em diversos contextos como por exemplo no
teatro português quinhentista de Gil Vicente8 ou no ballet francês, no período da Revolução
Francesa, como nos conta Maribel Portinari (1989):

Ali no tormentoso verão de 1789, ele criou La fille mal gardée, cujo tema
revelava um olho de longo alcance. Os personagens todos camponeses, eram
astutos, engraçados, humanos … não era uma novidade colocar camponeses
em cena (... A Inovação de Dauberval consistiu na forma de abordar o tema.
Seus personagens primavam pela autenticidade rustica e exuberância,
agradando plenamente um publico já imbuido pelos ideais de liberdade,
igualdade e fraternidade. A coreografia valorizava danças, trajes, tarefas e
costumes camponeses, sem tentar-lhes imprimir um postiço maneirismo
aristocrático. (PORTINARI, 1989, p. 75).

Como o rústico era tratado nas peças dos cordões é um caso interessante. Nas
narrativas do músico abaetetubense, Luís do Nilamon, ele conta como era em meio ao drama,
no qual se estruturam os cordões, os personagens caboclos, os matutos e palhaços, sempre
atraíam mais a atenção do público, "roubando a cena” perante outras partes do elenco em
atuação: “Só me lembro que tinha dois que eu não esqueço, que eram dois brincantes que faziam o
caboclo e palhaço, no Cordão do Anambé e no Cordão do Papagaio … engraçadíssimos, se
apresentaram aqui em Abaeté nos anos 40. Eles eram tão engraçados que fariam até defunto achar
graça (risos)”
Mais adiante trataremos do caráter cômico no arquétipo caboclo e as demandas do riso
na cena cabocla, o recurso ao clownesco na rusticidade trazendo uma espécie de alívio para o
espectador dos cordões em seus dramas encenados.

CENA 3

8
Jamyle Rocha Ferreira Souza (2015) faz uma análise do rústico em cena, a partir da obra de dramaturgos
ibéricos como Gil Vicente.Segundo esta autora o rústico em cena “cumpre um fim imediato de divertir a
nobreza ociosa” demonstrando uma nova mentalidade que se desenvolvia a partir do contexto cultural do
medievo, no qual o personagem “baixo” ganha uma nova conotação. A dignificação do rústico na cena ibérica
dos séculos XV e XVI tem também o papel de enfatizar: cortesania e rusticidade como “ polos sociais
opostos que, ao mesmo tempo, se complementam entre si e acabam por favorecer na construção do nó da
ação dramática que reside na composição dos universos rústico e cortesão.” (SOUZA, 2015, p. 194)
De longe se ouvia um ecoar de vozes, eram quatro vozes dividindo o coro, e tão penetrante
que de longe se podia reconhecer o que era. Um grande reboque ia beirando o Rio Urubueua
na região das ilhas de Abaetetuba, nele vinham os noivos Maria das Graças e Argemiro, para
a cerimônia do casamento na cidade. além de dois remeiros, as testemunhas, os convidados, e
os cantadores. Era a tradição dos ribeirinhos dos cantadores de fofoia nos casamentos. Os
moradores do lugar ao ouvirem de longe aquela cantiga já sabiam que era um casamento. Nos
anos 60 muitos cantadores de fofoia já não somente improvisavam seus versos mas
acrescentaram nas suas cantigas músicas que ouviam das bandas abaetetubenses do jazze.
Opa, opa / se eu soubesse que tu vinha, /fazer o dia maior/ Dava um nó na fita verde, / prendia
o raio do sol, /Óóó se eu soubesse que tu vinha/fazer o dia maior , meu bem/ôôô.
Era uma letra do repertório do conhecido Mestre Lucindo 9 do Carimbó, mas adaptada para o
característico andamento lento de fofoia e com as devidas entonações e interjeições . E outro
homem sentado no banco do reboque levanta e entoa outro verso acompanhado pela cadência
do remo nas águas esverdeadas do rio . (Recriação da narrativa da Senhora Nilacila Sena
Costa, 2022)

Figura 14 - Reboque e Fofoia de um casamento - Desenho do acervo do autor. 2022

Diário de bordo 2:
9
Lucindo Rabelo da Costa (1908- 1988), conhecido como Mestre Lucindo, nasceu em Água Boa Rio -
Cujutuba, vila que pertence a Marapanim. Mestre Lucindo foi pescador, tornou-se compositor "auto
didata" e Rezador de Ladainha em latim. Foi o primeiro artista organizador do Grupo de Carimbó "Os
Canarinhos" a gravar um disco em vinil, para orgulho do povo de Marapanim.
Segundo semestre do ano de 2021, após um período amedrontador, a pandemia
recrudesceu. As atividades presenciais retornaram a acontecer. Na noite do dia 22 de agosto,
realizado pela produtora independente Crônicas do Norte, aconteceu a exibição do curta, O
mistério do Poço da moça, sobre o universo lendário de Abaetetuba. Neste mesmo ano, no dia
16 de outubro, em Abaetetuba, é exibido um filme experimental do bailarino e ator Tiago
Farias, “Encanto que vem das águas”, 1º episódio do projeto “Contos de um povo
amazônico”. A cultura cabocla reaparece em seu movimento dialético e reacende a questão
do não esgotamento das formas estéticas extraídas dessa fricção com os elementos naturais
deste locus silvestre.
Em fevereiro de 2022 um grupo de artistas abaetetubenses criou o coletivo Aninga, referência
à cultura cabocla e suas expressões artísticas em Abaetetuba. O coletivo se propôs discutir e
encaminhar propostas para a classe artística local. A pandemia trouxe efeitos devastadores
para os profissionais da área. é preciso reagir. O propósito é continuar, insistir, permanecer,
recriar, retomar um caminho, encontrar pegadas e refazer o trajeto
No dia 23 de setembro de 2021 apresentei no evento comemorativo ao 3º aniversário do
Museu do Baixo Tocantins da UFPA e 15ª Primavera dos museus, uma parte desta pesquisa
sobre o tema da Fofoia de Abaetetuba. Desde o princípio, o tom dado à minha participação,
divulgado como palestra, foi tomar o caminho da informalidade. Refiz o trajeto da pesquisa
narrando desde as influências familiares, até os contatos com pesquisadores e pessoas que me
transmitiram as experiências daquele fenômeno cujas características ainda me são
inquietantes e com certo mistério em seus rastros.
O título da palestra, Fofoi ou fofoia? Uma poética cabocla, causou admiração em
muitos jovens que ali estavam na sala do campus onde funciona o museu. O título sugeria
uma polêmica colocada em certo momento pela artista professora Nazaré Lobato, a respeito
do nome correto deste evento ritual da zona rural de Abaetetuba: seria fofoi ou fofoia? A
resolução era justamente a forma diferenciada que em cada comunidade essa denominação
assumiu. Do público presente na palestra surgiram comparações, “uma espécie de rap do
passado?” Uma toada feita como uma ladainha de ribeirinhos com os adornos de vozes? A
apresentação do tema nesta palestra resultou numa integração das questões trazidas na tese: a
relação entre o ritual ancestral da fofoia e as narrativas de artistas da cena de Abaetetuba,
como um elo possível de forças presentes nas entranhas destas ações estéticas embebidas na
cultura cabocla das matas e dos rios.
Figura 15 - No museu do Baixo Tocantins - UFPA Abaetetuba, por ocasião da palestra Fofoi ou fofoia? Uma
poética cabocla. Nesta foto da esquerda para a direita: eu, Jones Gomes,João Fran, Aurea Cardoso , Marcel
Lobato e Kelson Lobato

Durante o evento no museu foi apresentado pelo músico e cantor João Fran, a canção
do “fofoi”, da artista Nazaré Lobato. Criada na década de 90, na denominação que ela
considerava adequada para esta expressão cultural:
Eu sou filho de uma rosa,
Aê fofoi
Nascido de uma roseira,
Aê fofoi
Eu não posso desprezar,
Aê fofoi,
Uma flor que tanto cheira,
Aê fofoi,
Canto fofoi em toda ocasião,
Que existe pandeiro e um bom violão,
Fofoi tou cantando pra homenagear,
O casório do Pedro com a prima sinhá (Nazaré Lobato,1990, p. 44).

Nas narrativas do músico Luís do Nilamon, ele descreve uma cena na qual quatro
homens precisam montar um mutã (um tipo de armadilha para a caça ) e extrair madeira de
um “piquiazeiro”, uma árvore de enorme porte, e logo em seguida à montagem do mutã
fizeram uma espécie de picada na mata para poderem ir se afastando, à medida que a árvore
fosse sendo derrubada. “Ficavam dois de cada lado e iam usando o machado e assim que ela
começava a cair e fazer aquele ruído dos galhos e das folhas, aí a “fofoia comia”, e eles
cantavam “Êôôô” e daí virava uma cantiga de vozes que parecia um grande coro. Aí vinha
verso que não parava mais”
Cenas rústicas, cenas caboclas atravessadas por uma esteticidade próprias daquelas
comunidades tradicionais da Amazônia. É comum se pensar no dinamismo cultural e suas
implicações no campo da arte, parodiando Marx poderíamos dizer que esta forma de
conhecimento, não nasce da terra como os cogumelos, ela também é filha do seu tempo. e
poderíamos acrescentar que em cada contexto histórico e cultural há um gosto dominante,
constituindo uma forma estética dominante, e se já houve um tempo de harmoniosa relação do
caboclo amazônida com a natureza ao seu redor, esse encanto, durou um certo tempo até onde
as transformações culturais permitiram. Seria esta perspectiva apenas uma romantização de
um fenômeno desaparecido? Qual sentido fariam estes “ruidos” nos nossos tempos?
Provavelmente só no terreno da arte poderemos encontrar as respostas, mas antes disso é
necessário perscrutar outros elementos da cena, outras partes do mosaico do colecionador de
sonhos.

CENA 3

Figura 16 - Engenho em Abaetetuba na década de 50. foto do acervo do Sr. Raimundo Erogildo Passos Lima –
2022

Engenho São José. a música do vento na sinfônica de flautas do canavial. A


angústia da cana em feixes de moenda. A cuia de garapa adociando o paladar
da infância.E o mel? O solapo do mel no lábio ébrio dos tachos. A cana
fermentando. O bagaço humilde da cana. A cachaça azulando ébria nas
dornas. O resplendor de moscas no cocar de bagaços no barranco. (J. J Paes
Loureiro, 2008, p. 57)

Abaetetuba ficou conhecida durante muito tempo como a “terra da cachaça”. Dezenas
de engenhos espalhavam-se pela área ribeirinha, e naquelas terras os canavieiros no meio dos
turnos do trabalho, encontravam alguma folga para “tirar versos”, eram as cantigas do fofoi
ou fofoia. As cantigas da fofoia eram ouvidas nas terras onde aqueles trabalhadores faziam o
roçado, derrubando a capoeira para o plantio da cana. Recriei esta cena a partir de um trecho
de conto do escritor abaetetubense, Jorge Machado.
Nessas horas em que o tempo permitia, debaixo de um arvoredo, usando chapéus de palha e
com rotas camisas feitas de saco de açúcar e com mangas compridas para se protegerem das
folhas da cana que pareciam navalhas naquele sol escaldante. Ali começava o desafio, os
homens criavam versos e se desafiavam como uma “purrinha”10 de rimas:

Tu passa na minha porta,


nem teu chapéu tu me tira
Sinal de que te contaram
De mim alguma mentira
(e o outro respondia, com um gracejo)
Mentira não me contaram
Nem isso consentirei
Uma coisa puxa a outra
Por isso me arretirei (extraido do romance Deolinda de Jorge
Machado, 2017, p. 5)

E naquela mesma paisagem recortada de rios e com as margens nas quais brotavam
numerosos engenhos, onde a garapa era o líquido precioso…”havia um engenho na “boca” do
Guajarazinho pertencente ao Sr Didi Solano, e foi sobre este personagem da vida política
abaetetubense, que o grande artista dos cordões e das peças cômicas, Pombo da Maroca Lima
criou estes versos cantados numa marchinha para o candidato opositor ao Sr. Didi:

O bode berrou / na boca do Guajará,


O Didi Solano disse/ bode aqui não pode entrar,
O bode berrou/ foi porque sentiu saudade, / das cabritas do
tenente que ficaram na cidade. (da narrativa da Sra Florzinha
Paes)

Logo ali adiante, no Rio Belchior, um grupo de rezadores da ladainha de São


Benedito, haviam percorrido inúmeras casas através de vários afluentes, em tempo da
piracema do mapará. Durante seis meses haviam percorrido os rios de Cametá. E assim

10
Purrinha se refere a uma espécie de disputa.
haviam se fartado do cardápio à base deste peixe típico daquele lugar, durante o mês inteiro,
não tinha outra comida que não fosse o mapará. E agora no resto do ano vinham rezar
ladainha nos rios de Abaetetuba, e ao chegarem numa casa no Rio Belchior, onde o dono,
muito hospitaleiro, ofereceu um quarto para ficarem. Veio repentinamente, a curiosidade,
sobre qual comida seria servida durante a estadia?. Um deles, o mais “abelhudo”, olhou pela
brecha da parede de tábuas e enxergou num barracão, dispostos num varal, dezenas de
maparás lanhados e salgados. Os rostos se entediaram com aquela salmoura exagerada do
peixe pelo qual já estavam fartos do repetido cardápio a base do mapará. Astuciosamente,
criaram um verso naquele mesmo instante, de improviso, pegaram seus instrumentos musicais
e entoaram a cantiga:

Nesta casa cheira a rosa,


cheira a flor do miriti,
Se você não matar um porquinho,
São Benedito não fica aqui. (Da narrativa do Sr. Benigno Silva)

E assim imediatamente o dono da casa providenciou de matar um porco “capado” e


roliço para servir de refeição para os tiradores da ladainha.

CENA 4

A comicidade do artista Pombo da Maroca Lima era aliada a um atrevimento, digno dos
grandes artistas, pois como profetizou em uma certa ocasião uma famosa atriz brasileira :
“para ser um ator, o sujeito precisa também de uma certa dose de “cara de pau”. A cena
aconteceu na comemoração do Dia das mães no auditório lotado do conceituado colégio das
freiras da cidade, houve inclusive o concurso para a mãe que tivesse mais filhos, e foi naquela
ocasião que o Pombo da Maroca Lima pediu para declamar suas trovas que ele criara para
provocar o riso:
Vinha uma pomba voando,
e entrou em um convento (bis)
As freiras ficaram alegres.
quando viram a pomba dentro (bis)

Primeiro vieram as risadas desproporcionais, mas logo que se recompôs, a platéia


ficou em alvoroço e enfurecida com aquele disparate. Muitos gritaram por uma punição
severa ao jovem cômico, mas este com a “cara cínica” de sempre, manteve no rosto uma
fingida ingenuidade. E quando a platéia indignada com a trova insultuosa, gritou para lhe
retirarem, ele saiu desfilando garbosamente por entre as cadeiras, sorrindo satisfeito pelo
acontecido. (Recriado da narrativa da Sra Florzinha Paes).

2.3. A comicidade na composição do personagem caboclo

Os personagens cômicos eram os mais esperados nas apresentações dos cordões


durante várias décadas do século XX como conta a cronista Maria do Monte-Serrat:

…este foi um novo cordão inventado por estas bandas em tempos de São
João. mas esse [o cordão do papagaio] voava mesmo, era percorrendo as
ruas, dançando de casa em casa, e alegrando a meninada que o acompanhava
nos cantos e nas danças pelas ruas que passava. Uma das figuras centrais era
outro gênio da arte popular, carinhosamente apelidado de Pombo da Maroca
Lima. Era assim chamado por ser filho único de uma conhecida parteira da
localidade, dotado de um fino espírito de humor, não só se destacou por
inventar ou criar cordão de pássaro, mas por neles atuar como excelente ator.
Muito procurado, todas as vezes que se queria fazer qualquer tipo de teatro.
tipo cômico engraçadíssimo, era um dos principais comediantes das festas de
São Raimundo. (MONTE SERRAT, 1990, p. 84)

Como entender a inventividade daquele artista? A partir das cenas citadas é possível
afirmar que ele deu continuidade a uma tradição que já existia nos versejadores de fofoia, nos
rezadores de ladainha e nas disputas dos cordões de bois, nos quais havia improvisação de
versos para colocarem em suas cantorias. Era comum esse jogo de rimas simples, como vimos
anteriormente nos intervalos dos trabalhos da lavoura, como no cortejo de canoas no
casamento. Dessa forma para se compreender este elo, trago novamente o relato de Seu
Benigno Silva sobre um dos primeiros cordões de pássaro da cidade, o cordão da Pomba o
qual ganhou fama pela hilariedade da apresentação na casa de uma mulher cujo marido não
estava naquele momento, quando os componentes do coro entoaram : “Senhora dona de casa,
dê licença da pomba entrar/ quando a pomba tiver dentro, a senhora há de gostar.”
A inventividade e o alcance que tinha um artista da cena na comunidade abaetetubense
naquela época, poder ser associado à figura icônica de Pombo da Maroca Lima. Sobre este
artista, Marléa de Nazaré Sobrinho Costa (2022), conta como ele se tornou um grandes nomes
do teatro abaetetubense criando o Grupo Scênico de Abaeté, encenando o Cordão do
Papagaio, em apresentações aclamadas na antiga Igreja do Divino para angariar fundos para a
construção da nova Igreja da Conceição. E assim, o Pombo da Maroca Lima tornou-se uma
figura lendária e sobre ele até hoje contam-se muitas histórias como as peripécias para
conseguir folga do serviço militar na Marinha que cumpria na capital, até inventando a morte
do pai diversas vezes, ou de quando ameaçou se jogar do alto de uma mangueira pra fazer
com que sua mãe lhe comprasse um fato para poder ir em um baile animado pela orquestra do
Jazze Margalho. A comédia saltava da vida para a cena e vice-versa.
Vicente Salles (1994) menciona em sua obra Páginas do Teatro no Grão Pará, o
desempenho marcante que tinham os comediantes nas apresentações dos Bois bumbás e
Cordões de Pássaros em Belém do Pará: “Outra observação válida tanto para os Pássaros
como para os Bumbás: a participação de comediantes bem conhecidos do público” (SALLES,
p. 355). Este autor assinala como até mesmo atores profissionais se imiscuíram nestas
manifestações populares visto que isto dava-lhes o prazer de ganharem o prestígio de um
grande público. Naquele contexto das artes da cena, encenar aquele tipo cômico representava
um fascínio a ser exercido perante uma platéia, dando o seu retorno com as gargalhadas e
aplausos causando um estremecimento nas pessoas.
Um estudioso da comicidade no teatro paraense é Marton Maués11, reunindo o saber
sobre as artes da cena oriundo das tradições do circo àquelas originadas dos “folguedos
populares” como ele denomina os cordões de bois e pássaros (MAUÉS, 2004, 2010 e 2012).
Produzindo inúmeros trabalhos acadêmicos, entre estes, uma dissertação e uma tese com um
laborioso trabalho de pesquisa sobre o cômico no teatro, mais especificamente o clown
enquanto uma categoria ligada à sua experiência com a Companhia Palhaços Trovadores a
qual dirige desde 1998. Segundo este pesquisador as origens remotas da matutagem, elemento
cômico dos cordões estariam nas comédias populares medievais e renascentistas, abarcando
diferentes tempos e lugares nos quais a arte do clown e suas manifestações se tornaram
presentes na cultura. O aspecto cômico é assim produto da pesquisa que abarca o universo
cultural das tradições populares paraenses aliada a uma busca por referências do fazer teatral
de outras matrizes sintetizadas numa técnica apurada em pesquisa.
Este autor argumenta sobre a “dilatação das potencialidades do cômico em cada ator”
e “o cômico surge de uma fragilidade ou do ridículo assumido: o clown se expõe e ri de seu
próprio ridículo” (MAUÉS, 2004, p. 84). Neste sentido, o cômico criado para a cena teatral
pode ser interpretado como o fenômeno produzido pelo improviso, cujos fundamentos vem da
própria cultura dos folguedos e pelo uso de certas técnicas desenvolvidas no trabalho em
grupo.

11
Marton Maués é professor Doutor atuante na Escola de Teatro e Dança da UFPA. Tive oportunidade de
ser aluno de Marton Maués durante a Especialização em Estudos Contemporâneos do corpo na
ETDUFPA e com ele aprendi como o cômico tem uma técnica apropriada resultante de uma
contextualização cultural somada às influências de técnicas diversificadas aprimoradas em pesquisa.
Marléa de N. S Costa (2022) afirma que para desempenhar os papéis cômicos nos
cordões havia uma exigência: “Na matutagem, os personagens [ou os atores que irão executá-
los] são escolhidos por sua destreza, porte físico e desenvoltura verbal.”(p. 54). Eram portanto
a “prova de fogo” para testar um talento equivalente a um Pombo da Maroca Lima ou Nina
Abreu.
Como entender o cômico enquanto um elemento constante nas criações da cena
cabocla? qual o lugar do cômico no universo da arte? Uma das maneiras de conceber esta
persona do caboclo seria como um arquétipo, uma construção coletiva presente na cultura
amazônica agregadora de referências diversas e já exploradas em inúmeras criações da cena
teatral. Nesse sentido o cômico é um dos elementos marcantes deste arquétipo caboclo. Sob
certo ângulo, o caboclo em sua comicidade é associado ao ridículo e ao grotesco de sua
condição social. Afinal são moradores do mundo rural, onde a grande maioria trabalha e é
explorada. A reprodução do caráter “baixo”12 dessa persona não invalida o seu saber, pois o
caboclo é o detentor dos segredos da mata, do conhecimento das plantas, das técnicas de
pesca e de caça, é um sábio do modus vivendi do rio e da floresta. Há, portanto, uma
dualidade nessa persona, por um lado é a personificação da ignorância e do ridículo e no polo
oposto, um sujeito sábio, guardião da floresta e do imaginário com suas lendas.
Há assim na construção cênica desta persona, enquanto faceta do arquétipo caboclo,
manifesta-se uma ambiguidade constante, sua identidade se faz na diferença: ele é ao mesmo
tempo o sujeito ignorante e rude mas é também o que tem astúcia, sagacidade como
qualidades desenvolvidas para sobreviver num meio hostil, é também aquele que sabe fazer
instrumentos do artesanato local , conhece as técnicas de preparo dos alimentos, de remédios
de plantas, além de possuir laços com os moradores ancestrais da região, e embora em certas
circunstâncias esteja ligado ao lavrador ou qualquer outro trabalhador rural, estende-se esta
denominação para qualquer outro sujeito proveniente do mundo rural ou de um cidade do
interior.
A transposição do caboclo do seu habitat para a cena teatral tem sido realizada de
inúmeras formas, provocando reações distintas. Para enveredarmos por estas formas torna-se
necessário rever suas matrizes. Caboclo é um termo com uma grande diversidade semântica
no contexto da cultura amazônica, podendo se referir a um morador da zona rural, das
comunidades ribeirinhas como pode significar “interiorano” estendendo o sentido do termo

12
Na tradição estilística que vem de Aristóteles havia uma separação entre personagens “elevados” com
sua respectiva linguagem apropriada (sermo gravis ou sublimes), típicos da tragédia antiga e os
personagens “baixos” das comédias, nas quais era típico o “sermo remissus ou humilis; ambos deviam
permanecer severamente separados “ (AUERBACH, 1976, p. 129)
aos habitantes de regiões fora da capital. Caboclo também pode significar na religião da
Pajelança amazônica, um ser invisível, incorporado por médiuns e pajés.
Nas narrativas recriadas neste texto há uma intenção de revelar as diferentes facetas
deste arquétipo. O caboclo revisitado no tempo e lugar das fofoias, nos permite pensar como
aquele universo era eivado pela comicidade. Conforme o narrador daqueles tempos o Seu
Benigno Silva, morador do Rio Belchior na sua juventude, contou-me que a Fofoia era
desprovida de formalidade, era baseada no improviso e no escárnio, naquilo que ele chama de
”pissimidade”, como uma virtude de fazer gracejos, rir da vida, a quebra das interdições
sociais, a anti-estrutura de Victor Turner 13.O riso possui também, em certas circunstâncias, o
caráter de resistência contra várias formas de opressão. Considerando a realidade, do
cotidiano árduo da vida cabocla, na zona rural da Amazônia, de luta extrema pela
sobrevivência aqueles momentos de riso podem ser interpretados como um enfrentamento ao
peso de um sistema social extremamente rígido, impenetrável à mobilidade social.
Aristóteles14 diz na sua Poética que os comediantes eram mais tolerados no campo do
que na cidade. O mundo urbano com suas regras e seu estilo de vida mais propenso ao
controle institucional torna o cômico restrito a certas condições delimitadas pelos códigos de
conduta. Dionisio, o deus do teatro era um deus campestre, e a Fofoia de Abaetetuba
sobreviveu por muito tempo na zona ribeirinha e nos ramais. Nos fragmentos da vida cabocla
reveladas nas cenas citadas, procurei rastrear aqueles tempos ouvindo narrativas de antigos
moradores daquelas paragens. E assim a Fofoia era ouvida entre risadas dos convidados de
um casamento, embora provocasse também reações de xingamento pelos que se sentiam
ofendidos pelas piadas. Os gracejos das fofoias do século XX, divertiam ou amedrontavam os
noivos. pois envolviam diversos temas do cotidiano e do mundo lendário que cercava a vida
dos ribeirinhos, até mesmo a morte e outros elementos extraídos de lendas, assustavam a
noiva: “Moça bonita que vai se casar,/ Matinta-Perera vai te pegar”. Aprender a conviver com
o medo era necessário naquele cenário de árvores imensas, a força das correntezas podia virar
uma canoa, havia ainda o medo das doenças, como as febres e as pantaminas15. Desse modo,
a cantiga de fofoia expiava esses medos, recriando o sentido catártico do canto ritual ou
simplesmente para rir da situação depois que o perigo é superado. Rir até mesmo da morte

13
A antiestrutura é uma noção elaborada por Victor Turner, estudioso dos rituais, e é ligada à quebra dos
interditos sociais, à libertação das demandas do cotidiano (SCHECHNER, 2012, p. 68).
14
Aristoteles, Poética, p. 243
15
Pantamina era um termo usado para se referir a uma doença mental, espécie de neurose, como
denominava minha avó materna moradora da zona ribeirinha. (Nota do autor)
poderia significar a expiação desse medo: “Ora ora, cadê meu amigo Belchior ô ô ô/ Não sei
se morto ou se vivo/ Ou se o jacaré já comeu ooooô.” .
Porém se a exploração desse aspecto cômico nas caricaturizações do caboclo na cena
teatral significou uma certa notoriedade dessa faceta do personagem, por outro lado limitou
sua caracterização, prendendo-se insistentemente nessa comicidade que não deixa de ser
interessante e de certa forma aproximada de um elemento constante em seu arquétipo. Temos,
portanto, que investigar quais outras facetas escondem esta persona16 tão entranhada em nossa
cultura e tão evidenciada nas criações artísticas.
Carlos Eugênio Marcondes de Moura (1997), assinala o papel do cômico nos cordões
de pássaro: “outro personagem presente no melodrama clássico, é o cômico, cuja função é
intervir antes ou após as cenas mais patéticas. Esses personagens são os matutos paraenses”
(MOURA, 1997, p.152). Como explica este autor em sua tese: sem essa “matutagem”, o
público não suportaria a “densa carga dramática” dessas tramas encenadas. Cabe assim ao
personagem caboclo aliviar essa tensão causando o riso.
Marcondes de Moura deixa neste trecho outras possíveis nuances deste tipo matuto
dos cordões, equivalente ao caboclo paraense como enfatiza este mesmo autor:

No plano psicológico o matuto paraense caracteriza-se pela esperteza,


astúcia, agilidade de raciocínio, profundo senso de ironia e do ridículo, pela
capacidade de zombar dos outros e de si mesmo. Seu perfil é construido a
partir de um modelo existente: o caboclo paraense, devidamente transposto
para uma realidade teatral. (MOURA , idem, p.223).

Alguns traços ressaltados neste trecho combinam-se com alguns elementos já


colocados nas narrativas da fofoia: o senso de ironia, capacidade de zombar e a esperteza,
características percebidas nas disputas em versos, estas disputas exigiam essa agilidade de
raciocinio. A agilidade de fazer versos era uma constante nas diversas narrativas. Em uma
delas contada por Seu Benigno sobre a vida de seu pai:

Me Lembro que meu pai era filho de escravo, e o meu avô comprou a carta de alforria
da minha vò que se chamava Maximiliana e já tava no navio pra ir embora como
escrava foi ai que ele veio se estabelecer ai no birigó que faz foguete. Meu pai
gostava de assobiar quando chegava de viagem e minha mãe se apaixonou por ele.
Quando certa vez, ela o ouviu assobiando, desmaiou. Depois o meu pai foi tocar na

16
Persona é um termo cuja referência é a psicologia de Jung porém aqui tem o sentido da face que se
mostra numa determinada cena, isto é, o ator assume dentro das circunstâncias que seu personagem
“pede” uma face a ser revelada diante do público. Enquanto a noção de arquétipo agrega vários
elementos, a persona é um destes elementos em destaque, o qual é demostrado a partir das caracterização
que o compõe. (Nota do autor)
banda carlos gomes. Mas uma parte da familia da minha mãe não gostava porque ele
tinha feição de negro e então eles criaram uma ´música pra chatear ele:
Não dança assim charuto, não dança assim de banda, não assim Nicolau da perna de
pau, tenho uma dor no meu peito, outra no meu coração/branco de pé no sapato,
tapuio de pé no chão”. Quando ele ouviu a troça cantada, não se chateou e pegou essa
música pra ele. (risos).

Um verso com certo ranço racista, mas impressiona por ter sido improvisada numa
mesa de jantar e é mais um exemplo dessa habilidade para o improviso, fato constante nas
narrativas da cena cabocla.

2.4. O personagem caboclo e a sexualidade

Ao sondarmos este universo no qual se configura o arquétipo caboclo, através das


narrativas, revelando suas facetas, algo inusitado vem à tona contrariando o estereótipo que
se construiu desta persona tão carregada de uma imagem calcada no patriarcalismo. Como em
todo fenômeno a ser capturado pelas falhas e desvios do óbvio, é sempre com cuidado que
tentamos enveredar por outros caminhos. Foi desta forma, que na “coleção 17”, aparece uma
narrativa não exatamente cômica, mas complexa, e apresenta relação com o mito do boto.
Considerando o mito como uma narrativa aberta a muitas versões e interpretações, cabe
colocar tal versão conforme um caso contado por Seu Benigno Silva. Como todo caso contado
pelos caboclos, há sempre uma verossimilhança com fatos acontecidos. Esta surgiu
entremeada na descrição das fofoias de casamento, que aconteciam na zona ribeirinha de
Abaetetuba. Atravessa inúmeros rios, ensinando a geografia do lugar, para melhor situar as
ações que se desenrolam na descrição abundante de detalhes, no qual apareem botos,”
labizonhos”, matintas e pajés, permitindo uma pintura da cena do Amarelão recriada nesta
cena:

CENA 6

Era um rapaz estranho e quieto, vivia pelos cantos encurvado, amarelo que dava dó,
era ajudante de um homem que vendia café na cabeceira da ponte na qual muitas embarcações
aportavam, A amarelidão do rapazinho deixava a todos preocupado até o momento que seu tio
decidiu leva-lo ao maior curador daqueles tempos, o Seu Inácio do Rio Piramanha. Muita
gente ia consultar com esse pajé adivinhador dos males que afligiam os ribeirinhos.

17
Coleção conforme mencionado é um procedimento metodológico inspirado no colecionador de Walter
Benjamin
E assim numa noite levaram o rapaz amarelão até o Seu Inacio cuja casa ficava bem
perto de um biribazeiro, seu Inácio pôs as mãos sobre a cabeça do rapaz e falou alto: “Isto é
coisa do boto!” Todos ficaram espantados com aquela afirmação: “Mas como o boto? Como
estaria fazendo aquele rapaz não querer mais comer, nem dormir?”
Voltaram para a casa, cansados, mas o rapaz de palidez espantosa não quiz comer,
nem dormir. ficou na cabeça da ponte pensativo olhando a lua cheia que parecia beijar as
águas douradas do rio. Mas naquela noite o mistério seria desvendado, um primo resolveu
ficar à espreita, para descobrir o que se passava com o rapaz. Até que certa hora no silêncio da
noite o boto apareceu e de repente estava se “servindo’ [afetivamente] do rapaz”. O susto
gerou uma gritaria enorme e todos correram para agarrar o boto que sumiu antes que pudesse
pegar uma sova.

Figura 17 - O boto e o amarelão - Desenho do acervo do autor

Para não cairmos no psicologismo ao interpretarmos esta variação do arquétipo


caboclo articulamos ao universo dos mitos enquanto narrativas alicerçadas no sobrenatural.
Na cultura amazônica o boto é um encantado, um ser vivendo no limiar entre o homem e o
animal, capaz de realizar a metamorfose, ora a metamorfose é um dos aspectos ligados às
artes da cena, o ator refaz a metamorfose do ritual. Nos rituais da pajelança os encantados
incorporam, emprestam o corpo-cavalo dos seus filhos para dançar, metamorfoseiam-se
mudando a voz e os trejeitos.
O boto em diversas narrativas é dançarino. Nesta narrativa ele é sedutor, ele é
carregado de um erotismo plural, rompendo com o estereótipo do caboclo assexuado e sem
atrativos. Em algumas interpretações o boto é visto como o homem branco, mas nesta versão
o boto é parte do mundo caboclo sendo ele um dos seus habitantes e por isso não convém
diferenciá-lo, pois ele encarna uma das suas faces nem sempre explorada. Como criatura das
águas, o boto compõe o universo ribeirinho estando acoplado a ele, morando nos rios ele vem
à tona para interagir com humanos, gerando um fascínio que nesta interpretação seria o
fascínio de sua proximidade com o mundo natural, incorporando-a. Ao mesmo tempo que os
botos fascinam, eles podem causar medo, pois são criaturas do fundo, na Umbanda
denominados como encantados
O outro personagem, desta narrativa, caracterizado como “amarelão” representa uma paixão
devoradora, desmedida, causando um adoecimento, o pathos gerador de uma patologia, um
medo de se entregar a uma criatura do fundo, o medo de se perder no abismo do inconsciente.
O personagem é silencioso e demonstra uma faceta diferente do costumaz caboclo falastrão
que estamos acostumados a ver nas encenações. O caboclo personificado no boto ou o rapaz
por ele apaixonado resvala de uma moral tradicional daquele contexto da narrativa
(aproximadamente os anos 40), mas aproxima-se do sobrenatural, penetrando numa seara do
sagrado para entender o que poderia parecer ilógico dando-lhe um sentido dentro da
linguagem mitológica, na qual não há fronteiras entre o mundo humano e o sobrenatural, na
qual as metamorfoses são constantes e as personas não são tão fixas. E é neste universo que
se encaixa melhor o boto e sua relação com o humano, e quando transposto para o terreno da
arte cênica ganha sentido pela corporificação. O boto enquanto ser em trânsito, em uma
fronteira semelhante ao ator em cena, entre a consciência e o olhar do outro, o boto é o que
resta para pensarmos no “estranho”, que é natural e ao mesmo tempo, se sobrepuja ao
civilizado.
Numa outra perspectiva é também o aspecto da sexualidade que salta em sua
ancestralidade, do universo cultural de uma sexualidade não domesticada, não enquadrada no
convencional e por isso não se explica, apenas se conta, se narra. O boto é assim uma das
metamorfoses da persona caboclo, que se revela em sua sensualidade, numa sexualidade
polimorfa sem amarras convencionais, o caboclo possuidor de uma sensualidade, uma
sexualidade ancorada em sua ancestralidade, se revelando numa narrativa contada como um
“caso” na região das ilhas nas primeiras décadas do século XX.
O boto enquanto uma faceta do caboclo é também articulada ao universo das festas.
Era assim representado, no Cordão do boto, montado por Belmiro Campos na vila de Beja
dos anos 60, aparecendo num baile onde casais dançavam quadrilha. No boto da narrativa de
Dona Dulcelina Farias, o boto é versátil nos passos da dança aparecendo numa Mucura, a
tradicional festa das ilhas de Abaetetuba.

2.5. O caboclo dança


Era uma festa no interior como muitas que os caboclos chamavam de Mucuras, e em
outras regiões próximas à Abaetetuba denominavam de banguês. Nelas havia sempre uma
sequência “ritual”: uma ladainha a um santo, a folia do santo e a Mucura. Estas partes
estavam integradas e compunham uma quebra no cotidiano de trabalho compulsório. Nos
primeiros dias de ladainha, havia a levantada do mastro e da ramada, uma espécie de
decoração com bandeirolas de papel de seda coloridos. Descrevo estas cenas no pretérito,
embora ainda na atualidade resistam elementos destas tradições, adaptadas ao contexto da
modernidade. Na narrativa do músico Luís do Nilamon, ele conta como eram essas mucuras:
Antes das festas animadas pelo jazze, havia a moponga, fazendo a parte musical de
qualquer festejo. Na moponga era a trompa que marcava o tempo da música, a requinta, um
tipo de clarinete pequenino veio depois e fazia o “fuxico” na música, Bernardo Rebolada era o
grande músico que tocava a requinta
A minha viola é boa,
A minha viola é de pinho,
A minha viola parece com o cantar dos
passarinhos (bis),
eu nasci às duas horas
As três horas eu te namorei,
As quatro eu fiquei noivo e
As cinco eu me casei
A minha viola é boa….

No conto O artesão de sonhos de Neuza Rodrigues (2002), uma das referências para
seus personagens caboclos levados aos palcos na época em que dirigia o grupo teatral Viva
Voz, foi a vida dos caboclos ribeirinhos. Ali a trama se passa no decurso de uma festa na
região das ilhas de Abaetetuba, mais precisamente no Rio Campompema. Eram os festejos de
São Benedito:

Quando um som de um retumbão ecoou, fazendo dançar os mangues e as


mamoranas da beira do barranco. Era o jaze do maestro Agenor…:”Saracura
está cantando, no galinho do cipó/ Canta, canta, meu bem saracura/ Quicó,
quiricó, quiricó” (...)
A cabocla amarrou a canoa no porto…a mente foi-se a buscar recordações.
Aquela música era a preferida do Cazuza. A voz dele soava nítida em seu
ouvido: "vamos dançar esta parte, minha flor?” (RODRIGUES, 2002, p. 45)

Nesta e em outras narrativas como a de Seu Benigno Silva, nos dá conta da importância do
caboclo saber dançar,
Naquele tempo nas ilhas , era pobre mas tinha sempre a Mucura
improvisada, tudo era festa, ia até de madrugada, uma vez nós fomo quatro
hora da tarde do Belchior fomos a remo pra casa do Capitão Suplício, perto
da Concórdia pra chegar sete hora da noite e voltemo quatro horas da
madrugada,nossa mãe tava nos esperando e disse olha o pai de vocês vai pro
roçado agora e vocês vãotomar o café e se arrumar . ai denós que não fosse.É
madrugada meu bem,/ o galo já cantou/ co, co , có. E ai o caboco dançava, a
dança você cria mas tem caboco que não vai nem a pau, e quando nós , meus
irmãos ia na festa nós dizia: “deixa pra nós”, e aí tinha a quadrilha que não é
essa que tem hoje, era demorada, e aí tinha o bolero, o samba, o xote.

Os cordões criados por Belmiro Campos na Vila de Beja, exaltavam a dança como
ocorre também nos ballets de repertório, nos quais esta forma de expressão artística,
acompanha o desenrolar de uma narrativa. No Cordão do Boto e no Cordão da bailarina, os
acontecimentos envolviam a dança, em meio aos dramas e outras partes cômicas,
entremeando-os,
No Cordão do Boto, a cena inicial aparecia um grupo dançando uma quadrilha, na
qual uma das moças estava sem o par e ficava tristonha durante o baile. Em certo momento
aparece o boto e a “tira” para essa contradança. Depois os casais dançam uma valsa e o boto
sai com a moça, simbolizando o rapto dela para o fundo do rio. O personagem do boto devia
demonstrar ser um exímio dançarino, se destacando entre os rapazes pelo seu volteio, pela
postura que muda de posição indo de um nível médio para um nível alto18.
A imagem de um caboclo dançando pode ser inspiradora na composição do
personagem do boto quando assume a condição humana, sem no entanto, abandonar a sua
natureza animal, revelando na dança o seu hibridismo existencial.
Nas diversas narrativas colhidas entre artistas e seus relatores a dança é inseparável da
encenação. Quando se referem aos cordões eles dizem: “eu dancei nesse cordão”, mesmo
considerando a história a ser contada na apresentação, o que se sobressai é o caráter dançante
dos cordões.
Dona Orfila Soares Chagas participou como dançarina em inúmeros cordões nos anos
50 e 60 e em sua memória vivaz ela lembra até dos passos da coreografia das coristas do
cordão da Borboleta: “a gente entrava e fazia um volteio pelo espaço da apresentação e
depois em fileira dançávamos quatro passos para a direita e palmas e depois giro e quatro
passos para a esquerda palma e giro”,
É possível buscar uma ancestralidade nessa ênfase dançante das manifestações da arte
cabocla, encontrando nas culturas indígenas e africanas uma elevada estima pela dança
enquanto uma arte vital na experiência humana. Embora não se despreze que os europeus

18
Rudolf Laban em sua obra Dança educativa moderna (1990) o conceito de nível do movimento,
relacionando o movimento do corpo em relação ao espaço. No nível alto o movimento concentra-se mais
próximo da cabeça e longe do chão. No nível baixo, concentra-se nos pés e o mais próximo do chão e no
nível médio o ponto de apoio devem ser os joelhos dobrados assumindo uma posição intermediária entre
os níveis alto e baixo.
enquanto colonizadores trouxeram as suas danças, nos tempos que se seguiram à colonização
da Amazônia, houve sempre uma limitação no desenvolvimento da cultura dançante, devido a
economia mercantilista ser exploradora do corpo enquanto um instrumento de trabalho
compulsório. Havia um controle do tempo, impondo limitações às atividades de dança. Por
outro lado, a doutrinação dos padres da igreja através da catequese reprimiu certas formas de
dança consideradas lascivas ou inadequadas ao sentimento de pureza imputados aos povos
colonizados. Dessa forma é possível compreender a desaparição de diversas expressões de
dança das comunidades tradicionais nas quais a catequese agiu de modo mais intenso.
Como mencionei no capítulo anterior, na entrevista com Belmiro Campos feita pelo
professor Albertino Lobato, na década de 80, ele relatou que havia uma fofoia dançada entre
as comunidades indígenas que existiam na Vila Samaúma, mas que depois desapareceram
restando somente o aspecto do canto.
Apesar dessas repressões históricas às manifestações dançantes, o ímpeto por essa arte
permaneceu até hoje, e na minha memória ainda encontram-se guardadas as palavras do
Professor Ernani Chaves19 quando presenciou um evento cultural em uma escola de
Abaetetuba: “aqui parece que em tudo eles colocam a dança”. A bailarina Valéria Spinelli 20
que esteve como jurada do concurso municipal de quadrilhas em Abaetetuba, diversas vezes
afirmou que ficava impressionada com a criação coreográfica abundante nas apresentações
que aconteciam no evento. Podem ser meros exemplos de um certo ponto de vista, porém são
pistas para podermos levantar a suspeita de que nas artes da cena embora calcadas na
efemeridade apresentam uma capacidade de resistir aos abalos dos ventos das mudanças
culturais.

2.6. Artistas, brincantes e dançarinos

CENA 7

Estava chegando a época da semana santa em Abaetetuba, era início da década de 70,
o jovem Adenaldo Cardoso, preparava-se pelo quarto ano, para a encenação da Paixão de
Cristo, em um espetáculo nas ruas da cidade. Organizado por várias lideranças do movimento
católico abaetetubense, envolvia um enorme contingente de pessoas. Até os moradores do

19
Ernani Chaves é professor doutor em Filosofia e atua na UFPA. As referências a essa lembrança são do
período em que atuou no Campus do Baixo Tocantins em Abaetetuba nos anos 90.(Nota do autor)
20
Valéria Spinelli é bailarina atuante na cena artística em Belém do Pará, atualmente está residindo em
Portugal. (Nota do autor)
bairro do Algodoal, nas ruas por onde seria encenado este auto, atuaram como figurantes.
Cada detalhe da composição do personagem protagonista precisava ser cuidado, até mesmo
um jejum no qual somente um copo de leite era permitido no dia do espetáculo ao sangue
recolhido no matadouro da cidade, a coroa feita de galhos de laranjeira, as túnicas brancas
devidamente costuradas pelas senhoras da igreja. O texto já estava decorado após muitos
meses de ensaios exaustivos. O motivo de Adenaldo ter sido convidado para fazer aquele
personagem, pareceu-lhe a princípio, que eram os seus cabelos compridos.

Figura 18 - O ator e cantor abaetetubense Adenaldo Cardoso, encenando a Paixão de Cristo no início dos anos 70
- Fotografia do acervo de Adenaldo Cardoso -

Com o passar dos anos o talento para o teatro aflorava e se intensificou, grudou-lhe na
pele e assim adquiriu o savoir para a performance que seria usado posteriormente para a
carreira de cantor pela qual ficaria reconhecido. E assim chegando o grande dia do espetáculo
da Paixão, o personagem principal na cena da crucificação deveria cair por três vezes, de
acordo com a marcação. E foi numa dessas quedas, que ele ficou ali parado no chão de cabeça
abaixada e do meio da multidão que lotava as ruas, veio uma senhora, aproximou-se, e
ajoelhou, de mão em prece, contrita ficou como se tivesse realmente diante de Jesus Cristo e
de repente olha fixamente para o rosto do ator e exclama: “Mas este não é então o filho do
compadre Alexandre?” (narrativa do artista Adenaldo Cardoso).
A narrativa de Adenaldo Cardoso mostra um período das artes da cena em Abaetetuba
no momento que entrava em declínio o impulso dos cordões do século XX, impulso este que
havia iniciado nos primeiros anos daquele século como nos informa Jones Gomes:

A citação de 1906, referente aos cordões, também confirmam essas


manifestações: “Os cordões de bois de Abaeté saíam pelas trilhas e pelas
casas do lugarejo”. Esse trajeto centenário do folguedo popular na cidade
tem suas origens desde os primeiros anos do século 20, quando já se
identificavam os cordões juninos na pequena Abaeté, que, na época, era uma
cidade com pouco mais de 3.000 habitantes78. O cearense Manoel Antônio
de Souza, a partir de 1915, foi um dos que ajudou na manutenção do rico
folclore junino de Abaeté, por meio dos cordões de pássaros, bois e insetos,
sendo desse mesmo período os cordões de Abaeté. (GOMES, 2013. p. 185)

No intercurso entre os cordões e o advento do teatro engajado, tivemos um período do


teatro ligado à igreja ou que surgiu desse movimento em torno de suas atividades. Este foi o
caso do teatro da montagem da Paixão de Cristo e também do surgimento do Gruta (Grupo
de teatro de Abaetetuba), nos quais atuou Adenaldo Cardoso. Da narrativa deste artista
abaetetubense saltam as referências aos outros talentos da cena aqui mencionados como
recriadores da poética cabocla:

Minha mãe Angela Joana dos Santos Cardoso, participou desse grupo de
artistas como Nazaré Lobato, Nina Abreu...Nessa época passei a tomar
conhecimento do teatro da Nina Abreu. E naquela época, a política, eles
faziam era diferente de hoje, não era na porrada, não havia ódio, eles faziam
músicas e saiam na rua cantando criticando o outro candidato. Teve até uma
vez que o grupo da minha mãe foi “fazer pouco” da cara do meu tio que era
de outro partido, aí ele baixou a calça e ficou nu ... Essa era a disputa política
com os versos e eles faziam paródias e músicas mesmo que eles criavam... E
tinha um que ela falava muito, era o Pombo da Maroca Lima e tenho até uma
foto que ele aparece com a minha família. Ele criava muitas músicas.

Este artista refaz o seu trajeto traçando nesse percurso os elos com artistas da cena nos anos
60 e na primeira metade dos anos 70. Reafirma um aspecto dessa criatividade com a palavra e
o diálogo com o grupo social no qual estava inserido. Naquela época ainda era comum o
desafio através de versos cantados, os “xavecos”, entre os grupos políticos e entre os cordões.
No artesanato rústico da cena é necessário mostrar os sujeitos deste processo. Alguns
deles somente, pois seria impossível, dadas as limitações de uma pesquisa, alcançar a todos.
Nesse sentido apresento as narrativas e comentários sobre os artistas da cena de Abaetetuba,
perfilando alguns elementos para introduzir apontamentos sobre formação de um talento.

CENA 8
Aquela seria a primeira vez na qual ele iria assistir a um cordão, estava ansioso para
ver esse espetáculo tão comentado por todos que o cercavam. Seus pais o acompanhariam no
trajeto de sua casa até a casa grande de madeira onde seria apresentado o cordão da
borboleta, montado pela famosa artista Nina Abreu. O “caminho” cercado de mato, passava
por trás da igreja matriz e lhe causava um medo forte porque diziam ser cheio de visagens,
ainda mais naqueles tempos com a iluminação precária das ruas da cidade. O elenco do
espetáculo naquela noite estava impecável, os músicos sob o comando de Miguel Loureiro
brilharam dando o som para as canções e no destaque a bela jovem que fazia a “borboleta”. E
foi esse primeiro contato com a arte da cena abaetetubense que influiu mais tarde nas
experiências artísticas às quais se dedicaria o jovem Ataide Feio Neves. nos depois ele estava
envolvido com o grupo Neófitos, ligado à igreja orientados por um padre e uma freira
italianos. Nesse grupo participou de inúmeras produções de música e teatro: Uma noite
européia, A vida de Santa Maria Goretti e A muralha. Quando o grupo se desfez os jovens
criaram o Gruta, Grupo teatral amador de Abaetetuba, as peças passaram a enfocar temas
políticos, em plena ditadura. Montaram O milagre na cela e Oração por um pé de chinelo de
Plínio Marcos. Os textos saíram de visitas à Livraria Jinkings em Belém do Pará.

CENA 9

Era uma noite de verão paraense, no barracão do Templo Oxossi de Urucaia os filhos
de santo dispostos em fila se revezavam para cantar a sua “doutrina”. Nina Abreu que havia
sido uma das primeiras yaôs daquele terreiro, trajava-se com um vestido de cetim verde com
um grande turbante. Era o festejo da “dona do terreiro”, a cabocla Baiana de miçangas.
quando chegou a vez de Nina cantar, fez um gesto de mão para os abatazeiros pedindo uma
mudança no ritmo dos atabaques, e ela majestosa então entoou a sua doutrina:

Ela traz em seu tabuleiro, muitas flores de amor,


Ela é baiana de miçangas, filha de São Salvador (bis),
Traz a flor do dendê, traz a flor do mar, o lírio de Oxalá, e a rosa de
Yemanjá
Pra se fazer canjerê, só é a baiana que sabe fazer,
Tem doce, tem dendê é so a baiana que sabe fazer, (bis)
Dona Baiana de Miçanga

Nina Abreu a artista versada nas várias atividades que compõe este universo das artes era
também “do santo”, filha de Xangô e Yansã, seus encantados eram o índio Rompe Mato e a
cabocla Baiana de Miçangas, mas a entidade com a qual se identificava era o Erê Pedrinho, e
em homenagem a ele criou um clube educativo para crianças. Desse modo, a religiosidade
afro estava de algum modo no cruzamento de sua vida como artista. e assim nos vários
momentos que pude entabular uma conversa com ela, ficava pensando o quanto daquele
talento desenvolvido, se devia a essa identificação com suas raízes afro descendentes.

As narrativas aqui descritas neste texto resultam de um exercício de reativação da


memória, ao mesmo tempo é uma busca por experiências que continuem a fazer sentido,
atravessando o tempo. A marcha da história não interrompe o seu percurso. Desse modo,
convém suscitar a questão de como “aparece” este artista da cena na comunidade? Qual o
significado de fazer uma arte caracterizada por uma encenação pública?
De acordo com Jones Gomes (2013), as experiências estéticas em torno da cena em
Abaetetuba, envolveram diversos eventos festivos como as fofoias e os cordões de pássaros.
Notícias de experiências do teatro convencional em Abaetetuba, remontam ao início do século
XX:
os precursores do teatro datam de 1908, quando grupos como Odeom
Abaeteense, clube de música e teatro, encenou no pequeno teatro Nossa
Senhora da Conceição, anexo da antiga igreja do Divino Espírito Santo, a
peça nomeada “Órfã de Goiás”. Mas, o grande impulso dado às artes cênicas
na cidade foi motivado nas décadas de 1920 a 1940, quando essa arte serviu
de instrumento de arrecadação de benfeitorias, que eram destinados às obras
da igreja matriz. (GOMES, 2013, p.183).

Neste ínterim, focalizo um cruzamento entre as trajetórias dos artistas já citados. Mostrando
uma relação entre suas experiências, com a finalidade de estabelecer nexos nestas práticas
artísticas que se deram no cenário de uma paisagem amazônica, entre as setenta e duas ilhas e
a cidade provinciana, mas com ares de atrevimento, entre rios com nomes indígenas, praias de
água doce e caminhos abertos na mata. Para ilustrar uma destas experiências apresento um
fragmento de narrativa, fruto de minhas lembranças, condensando no trajeto de uma mulher
da cena abaetetubense:

CENA 8

Eu devia ter seis anos de idade quando presenciei uma interpretação impagável da
artista Nina Abreu no cordão da Arara, encenando o personagem Chico Lira, papel icônico
do caboclo ribeirinho, cheio de matreirices e sarcasmos. Não posso afirmar com certeza, mas
talvez este foi o momento que influiu no meu pendor para as artes da cena.

Figura 19 - Nina Abreu encenando o papel de Chico Lira, no cordão da Arara. Desenho do acervo do autor 2021

A grande folclorista, atriz, mulher negra e artesã de Abaetetuba, contou me certa vez,
um dilema por ela vivenciado, quando seu esposo deu-lhe um ultimato: não queria mais que
ela se envolvesse com as artes da cena, pois ela dedicava-se ao teatro naqueles tempos áureos
dos cordões, nos quais estava envolvida de corpo e alma. Como herança de sua mãe, ela havia
recriado, o Cordão da arara, o Cordão da borboleta e o Cordão da patativa e chegou o
momento de fazer uma escolha, pressionada pelo marido, teve de decidir entre o casamento
ou continuar a fazer as montagens dos cordões de bichos nos quais era dramaturga, atriz e
cantora. E assim, enfeitiçada como estava pelos palcos, escolheu permanecer no mundo das
artes da cena. selando o destino de mulher que dedicou o resto de sua vida para as artes.
Certa vez Nina Abreu relatou-me que na época de sua adolescência, sua casa dava
para os fundos de um salão de festas e à noite ficava ouvindo a orquestra do músico negro,
Bernardo Rebolada. Este, sempre tocava e cantava no encerramento, a canção da Saracura. A
história de Bernardo Rebolada, recontada por Luís de Nilamon e Benigno Silva, permitem ter
uma idéia do talento daquele músico e intérprete nos eventos festivos. O instrumento favorito
dele era a requinta, uma espécie de clarinete pequeno e suas performances eram recheadas de
versos improvisados e piadas que encantavam as platéias das festas na cidade e na zona rural.
Foi assim que ele improvisou uma canção para sua mãe que se chamava Floriana:

Minha mãe quando passar,


Lá pelo bazar,
Traga um cacho de banana, e açaí pra nós tomar/
Minha mãe Floriana, Minha mãe Floriana,
Açaí, miriti, cana (repete o coro três vezes).

Anos depois, Nina Abreu recriou e coreografou a dança da Saracura. Como muitas
danças surgidas em comunidades tradicionais esta coreografia buscava recriar os movimentos
de um animal, a saracura dos igapós, movimentando uma perna para frente num pulo,
enquanto a outra dobra atrás. Desse modo o mundo ribeirinho, em sua relação estetizante
com a natureza era recriado numa dança

Saracura está cantando, no galinho do cipó,


Canta, canta, meu bem saracura, quiricó, quiricó, quiricó
Segura a saia e vai dançando numa roda,
A dança da Saracura que agora está na moda.
É uma dança do tempo da minha avó,
Original de Abaetetuba a dança do quiricó
Saracura está cantando ..... (refrão)
Antigamente a festança era animada
Lá na casa do tio Pedro ia até de madrugada
A ¨muçarada¨ dançando com seu xodó,
Mas, de longe já se ouvia o cantar do quiricó.
Saracura está cantando ..... (refrão)
Ô Catarina vai chamar o Cipriano,
Vai na cabeça da ponte ver se a água tá vazando.
Puxa a canoa e vai chamar o Dodó
Pois de longe já se ouve o cantar do Quiricó.
Saracura está cantando ..... (refrão) (Letra de Nina Abreu e música
de Bernardo Rebolada)

Nas entrevistas que fiz com o Sr. Benigno Silva e Luís do Nilamon, ao perguntar sobre
as músicas cantadas e dançadas em seus anos de juventude em Abaetetuba, eles cantaram uma
versão da canção da Saracura. Desse modo, vale dizer que o universo caboclo, era
constantemente recriado ou ressignificado através das práticas de artistas da cena, cuja matriz
se localiza na própria cultura Amazônica e não somente, numa influência do colonizador
europeu.
Nina Abreu conhecia os desafios de fazer os versos na fofoia e segundo sua irmã Dona
Maria Esperança Abreu, ela criou inúmeros versos os quais posteriormente eram
musicalizados. Nestes versos a cena cabocla é vivenciada pela exaltação de um produto do
artesanato típico da zona rural.
Segura a cuia Maria, sacode bem
Pro mingau esfriar
Toma cachaça Mané
Segura bem para não derramar ( refrão)
Ô minha gente venha ver como é que é
Coisa bem original da cidade de Abaeté.
Temos a cuia que se manda preparar,
A cana que se faz cachaça
Pra na cuia se tomar
REFRÃO
Quando é a festa da Virgem da Conceição
A cachaça é proibida
Não se pode tomar não!
Conheço um velho que faz chopp de cachaça
Se toma ela na cuia por não se vender na
praça.
REFRÃO
Conheço um velho que mora no Guajará,
Que toma chibé na cuia
Quando não tem o jantar.
E a noitinha, quando o velho vai pra cama,
Leva uma cuia pitinga
Pra ele e a velha xixar.

Nina Abreu mostrava-me alguns textos escritos por ela para Cordões de pássaros, e
dizia que iria entregar-me, para que eu pudesse remontá-los e estilizar a coreografia com
elementos do ballet. A época em que estas conversas se deram, muito tempo já havia se
passado da época gloriosa dos cordões, agora estávamos no período do teatro engajado de
crítica política dos anos 90. E como citei em outra parte deste texto, foi ela quem cedeu o
espaço para ensaios e apresentações daquela nova geração de artistas. Criando ali um elo entre
duas gerações. O que permitiu a Nina Abreu não se prender ao saudosismo dos cordões e
manter-se aberta àquelas novas experiências da cena? Seria somente uma qualidade pessoal
que a fez encarar as novidades do teatro ou havia outros aspectos mais sutis a explicar aquela
adesão ao universo de Boal se configurando na “cidade da arte”? Antes de adentrarmos nesta
questão, façamos uma digressão pelo trajeto da artista, numa pintura poética de Neuza
Rodrigues:

Nos cordões de pássaros, toda Amazônia emplumada já lançou vôo ao sabor


da criação da artesã, pigmentando seus enredos de mil cores festivas que se
cruzavam ao bater das asas da imaginação criativa. Araras, periquito,
papagaios e borboletas ninavam os olhares das plateias extasiadas por seus
enredos sortidos de cores e tradições. (Neuza Rodrigues, Portfolio Nina
Abreu, 2018)

O professor e poeta abaetetubense, Garibaldi Parente criou também um verso para


homenagear Nina Abreu:
Nina Abreu abriu a mina,
O povo não sabe o que tem.
Nina Abreu abriu a mina
Da menina de ninguém,
Nina Abreu abriu a mina,
Da menina de ninar.
A menina se amofina. Se ninguém a cultivar
É preciso que se lavre, É preciso que se ame
A riqueza que se tem Nina Abreu abriu a mina
Pôs rodos no vai -vem. Nina, mina, menina
Pra ninguém ser ¨teitê,” A mina ser mais mina
O povo ser mais terra Nas terras de Abaeté.

Como afirma Jones Gomes, Abaetetuba, como muitas cidades da Amazônia,


estabeleceu em sua história cultural, uma relação muito forte entre o mundo urbano e o
ribeirinho, fenômeno que aparece em muitas manifestações artísticas como as fofoias, as
músicas cantadas nos jazzes e nos cordões de pássaros. Este fator provavelmente pode
explicar em parte o pendor dos artistas no passado para esse veio cultural. Esse élan com o
mato e suas criaturas, tem atuado em toda sua potência sobre os artistas da cena
abaetetubense. Na década de 90, a escritora, compositora e dramaturga Neusa Rodrigues,
criou o grupo teatral Viva Voz revitalizando nas encenações o mundo dos caboclos, seus rios e
matas, trazendo na sua dramaturgia a resistência e a preocupação ambiental, considerando o
contexto da instalação dos grandes projetos na região. Na narrativa de Neusa Rodrigues ficou
marcado o seu pendor para os povos da água, como demonstra no relato poético da Lenda do
Poço da Moça, inspiração para uma cena na conhecida canção que conta as disputas entre a
tribo dos Abaetés e os Samaúmas, tendo como pano de fundo os amores de Suí e Taianá, além
da Lenda do Cavalo encantado, da “Cidade que aparece no fundo do poço” e a dos “Peixes
coloridos”:

Guerreiros de caras pintadas,


Na dança da lança, Guinambi voou,
No bico tinto de sangue, a mensagem sinistra à índia levou,
Suí tombou,
Jeguerê Suí matou!
Tayaná baixou o rosto e chorou desgosto,
O sofrido amor,
Na fúria da dor fere o peito
A Tupã pede um jeito d’ amado encontrar
O deus respondeu: Oito sóis , oitos luas, terás Tayaná que chorar
Sentou-se numa sapopema e pelo amado chorou
Seu pranto foi tanto
que um poço no seio da mata por fora jorrou,
um rosto sorrindo, retorcido nas lágrimas, Aguaçaba encantou...
E um grito feliz... Feliz! na mata ecoou,
Suí voltou, Suí voltou!
Foi Tayaná que chorou um poço,
Só pra ver o rosto do seu amor (Neuza Rodrigues, 2021)

Este poema musicado gerou muitas performances coreográficas em Abaetetuba e seu


processo criativo foi descrito pela autora na entrevista que realizei em sua residência no início
de 2020. A entrevista com a artista Neusa Rodrigues, numa manhã ensolarada de março
daquele ano, conteve muitos momentos de riso e de emoção. Ela falou do seu encanto pela
cultura ribeirinha, de sua infância na casa de sua avó no Rio Campompema, de sua luta pelo
teatro com seu grupo Viva Voz, do amor pela poesia e pela música e mostrou-me um grande
acervo de pinturas e poemas impressos e declamou vários deles e cantou. Nesse mesmo ano a
artista faleceu. No decurso da pesquisa obtive o conto de sua autoria Artesão de sonhos,
inserido numa coletânea do IX concurso de contos da Região Norte da Ed Universitária em
2002 Esta obra foi grande fonte de inspiração para uma articulação com o universo caboclo
que eu estava explorando.
Ao nos distanciarmos das tramas, da exegese em torno dos elementos levados à cena,
temos agora o artista, aquele que suporta todo o jogo da performance e alcança o público com
sua atuação. A maior parte deles não consta nos livros de artistas, não ficaram famosos por se
projetarem economicamente. à revelia dessa situação houve sempre um reconhecimento social
do talento, uma habilidade incontestável daqueles sujeitos que permitiu tal configuração das
artes da cena. Jones Gomes percebe no artista uma personalidade marcante para afirmar uma
identidade em constante embate com os estigmas sociais e os preconceitos.
“Puxando” pela memória, lembro de uma narrativa de minha mãe sobre os reveses
sofridos por Nina Abreu, em um destes, ocorreu uma perseguição por parte de um padre, cuja
alcunha era “Chumbinho”. Este ameaçou com um rifle, impedir os eventos festivos já
tradicionais de sua família na época dos festejos da padroeira.
Naqueles anos dos Cordões do século XX, até os anos 60, a produção cultural era
comunitária, era organizada por famílias, não era algo planejado e executado verticalmente
por algum órgão governamental. Posteriormente esta produção declinou por diversos fatores
históricos.
Em 2010, uma iniciativa da Secretaria de Assistência Social, órgão vinculado à
prefeitura municipal, através do Serviço de Convivência e Fortalecimento de Vínculos -
SCFV, recriou os Cordões juninos, “apresentando em seu palco “velhos” problemas sociais: a
desigualdade social refletida no trabalho infantil, a sociedade machista e preconceituosa
afetando violentamente a questão de gênero, enfim, um rol de violações naturalizadas.”
(COSTA, 2022, p. 81). O projeto aglutinou pesquisa e envolvimento das comunidades
ribeirinhas, ramais e da periferia da zona urbana. E assim durante oito anos seguidos, crianças
e adolescentes apresentaram-se no Festival de Cordões juninos. Marléa Costa descreve os
objetivos deste projeto:

O projeto do Festival traz como objetivos analisar as expressões das


questões sociais relacionadas à cultura de paz, ao trabalho infantil, à
violência doméstica, às drogas, ao meio ambiente, entre outras, e
refletir sobre elas, bem como promover o protagonismo dos usuários
dos serviços socioassistenciais através do resgate cultural, da produção
e apresentação de peças teatrais (COSTA, 2022, p. 85)

Aqui fica explícita a relação da arte com as políticas públicas. Nenhum projeto
artístico ou interdisciplinar envolvendo as linguagens artísticas, se desenvolve de forma
adequada sem investimento, entretanto esta condição não vem sendo devidamente tratada na
grande maioria das cidades do interior da Amazônia nas quais nem espaços culturais existem
e as produções só acontecem pelo trabalho incansável de artistas cuja tendência ao anonimato
só pode ser superada pela constante pesquisa e divulgação de suas experiências. Outro aspecto
é o esforço que aparece em muitas narrativas, permitindo perceber, como os artista da cena,
deram respostas aos desafios de seu tempo, provavelmente a personalidade influiu nesta
questão, mas indo além, é preciso que se considere determinadas condições muito particulares
do contexto cultural em que se deu sua formação como artista.

2.7. O artista, o talento e o envolvimento social

Uma dupla de artistas de Abaetetuba nos anos 60, Pombo da Maroca Lima e Bandute
Sena, membros da diretoria de um time de futebol, criaram uma performance teatral sobre o
poema O pássaro cativo, de Olavo Bilac porém fazendo jus à inventividade destes atores, a
montagem ampliava-se para uma perspectiva de defesa da natureza antecedendo o movimento
ambientalista. O público lotou nas inúmeras apresentações. Ataíde Neves que integrou o
Gruta, conta que a cena final arrebatava aplausos calorosos quando o Pombo declamava:
“Não me roubes a liberdade…/Quero voar! voar!…”
Em outro palco no Cine Imperador, uma bela moça, de nome Preciosa, fazia a Borboleta no
cordão de mesmo nome, dirigido por Nina Abreu. Em uma das canções o refrão dizia: “ Sou a
borboleta encantada, Que vivo vagando nos jardins. Beijando a branca açucena E beijando, O lindo
jasmim.”
Figura 20- Pombo da Maroca Lima

Naquela mesma época do ano ocorria a grande festa da Maria Farinha nas ilhas
juntamente com o festejo de N. Sra do Carmo, uma tradição dos negros moradores da Tauerá
Açu, na qual os cantadores de ladainha, os foliões do santo se misturam no festejo à banda de
jazzi entoando a canção Minha viola com a participação do Caboclo Picapau no cavaquinho e
do Caboclinho Almeida no clarinete. Na cidade, a “Borboleta” de Nina Abreu foi um sucesso
e depois levada aos quatro cantos da cidade. E enquanto aquela forma teatral decolava, os
engenhos de aguardente que haviam tornado a cachaça um símbolo da cidade,
experimentavam seus últimos momentos, pois em seguida viria a decadência dessa produção
econômica, contudo essa bebida marcou uma época, revelada na poesia de Adenaldo Cardoso:

DONA DA NOSSA CABEÇA


Da nossa marca registrada
Também temos “Seu Miriti”
Valha-nos Deus, Nossa Senhora!
“Dona Farinha” e “Seu Açai”
Mas a “mardita” cheia de graça!
Límpida, ardente de danar
Vivia na sociedade
Em Abaeté do Grão Pará
Dona da nossa cabeça
Prostituta dos Abaetés
Bailarina pé-de-cana
A beira de rios e igarapés
Parida no alambique
Do Engenho São José
Em meio as festas profanas
Alegravam a nossa história
Sepulcros caiados na lama
Saudades eternas demais!
Abaetetuba de outrora
Lembranças da puta do cais
(Adenaldo dos SC)

Neste ato as questões levantadas giram em torno da elaboração da imagem social do


artista abaetetubense, cujas narrativas descrevem seu talento e criatividade. Jean Duvignaud
(1972) na obra Sociologia do comediante, descreve a atuação do artista da cena como
elemento provocador de renovação social ao encarnar tipos sociais transpostos para os palcos,
mas para que isso ocorra, há sempre uma experiência coletiva interpenetrando-a. Haveria uma
soma de papéis se desenrolando na trama social e caberia ao artista da cena absorvê-la em seu
diálogo constante com ela. Haveria então uma sociabilidade inerente ao trabalho do artista
cuja perda descaracterizaria a sua atuação: o artista da cena é aquele que indica os “sinais e os
símbolos de participação (na vida social) (...) e estes indicam os obstáculos a superar e
sugerem a fusão intensa da consciência do público e isso é independente da qualidade de sua
obra”. (DUVIGNAUD, 1972, p. 20).
A visão corriqueira que se tem ou o modo como se concebe o artista é geralmente de
um sujeito solitário capaz de criar uma obra a partir de seu talento ou de sua genialidade. De
um outro ponto de vista, o artista é o sujeito que estabelece laços profícuos com sua
comunidade, sua vida está entrelaçada, marcada pela cultura de seu lugar, é o sujeito capaz de
exprimir os desejos e os sonhos coletivos. Uma artista como Nina Abreu estava ligada ao seu
mundo de forma a representar constantemente em seu trabalho artístico essa interação. Desde
suas comédias de seus cordões, ao seu artesanato havia um laço cultural com seu meio e foi
assim que era tão popular no município que em torno dela criaram muitas histórias, era
sempre procurada pelos estudantes, era entrevistada e foi tema de samba enredo numa escola
de samba abaetetubense. Do mesmo modo outros artistas aqui citados como Belmiro Campos,
Pombo da Maroca Lima, Nazaré Lobato ou Neusa Rodrigues, incluem-se neste mesmo rol, no
qual o talento é fruto de um intenso vínculo com a comunidade, e o produto artístico que
aparece em suas performances é algo articulado ao coletivo, à sociabilidade impregnada nas
suas ações.
O sujeito criador de obras de artes, o artista ou outro termo, o artesão, às vezes
polemizado, para distinguir do verdadeiro artista, possui uma maneira própria de lidar com o
mundo à sua volta e despertar para uma tradição. Para aqueles artistas que o antecederam, a
princípio estabelecendo referências com seus ídolos, uma identificação com um mestre, um
exemplo, o qual toma para si, tateando suas pegadas, experimentando a vivência do outro,
assemelhado. Em seguida começa a arriscar o seu “vôo de Ícaro”, libertando-se da
identificação pelo outro, para traçar seu próprio caminho, buscando respostas e maneiras
singulares de lidar com as inquietações que são peculiares ao artista. a partir daí, o seu
universo se amplia, busca nas múltiplas referências outras possibilidades de criação. Até aqui
vemos o artista estabelecendo um laço com a tradição, com o mestre, com outros artistas que
o antecederam, porém além desse fator que já representa uma quebra na idéia do sujeito
solitário, há também um segundo fator ligado à receptividade, isto é, o artista é sempre
alguém continuamente marcado por um diálogo com seu público, mesmo que este seja de uma
vanguarda contestadora, da qual se deduz possa esperar reações de oposição, ainda assim há
uma relação social, há uma espera por uma resposta mesmo que seja de contenda e polêmica,
então o artista está sempre em interação com seu mundo, com as pessoas e suas atitudes, seus
pensamentos, seja para concordar ou para criticar.
Um terceiro fator que contraria aquela visão do artista solitário, é a necessidade de
buscar referências para criação no mundo que o rodeia, nas pessoas que estejam a sua volta,
nas histórias de vida.
Neste universo no qual situo o artista não há separações rígidas entre o artista e o
artesão considerando este artista categorizado como “popular” não deixa de ser um artífice
contratado para determinada tarefa. Mesmo no tempo das fofoias, o versejador era alguém
convidado ou contratado para cantar, as pessoas daquele lugar sabiam que ele detinha aquela
experiência, acumulada em uma prática. Como em todas as áreas da arte o elemento afetivo
alia-se a uma prática, o envolvimento do artista no seu fazer parece ser um elemento
indispensável, estando aí, implícita, a ideia de um saber, de um saber-fazer transmitido e
recriado por gerações.
Entramos assim na questão do aprendizado, na formação do artista. Tal aspecto foi recorrente
nas conversas com os artistas aqui descritos em suas narrativas. Havendo assim vários
caminhos para essa formação. Existem artistas que frequentam escolas, conservatórios, nos
quais, através de um processo teórico-prático um saber vai sendo aprendido, absorvido,
desenvolvido e torna-se parte de seu ser, complementado pelo estilo pessoal, algo muito
ligado à criatividade, o avanço posterior a absorção, à acumulação de elementos. O estilo
surgirá de uma combinação de certos elementos, recombinação, reordenação a partir de uma
interação com seu meio, com o seu tempo, com a sua visão de mundo. Experimentações,
apresentações, apreciação por uma plateia e retorno. O experimento vai da criação até à
recepção.
Como os artistas de Abaetetuba desenvolveram seu aprendizado? Em quem se
inspiraram? Durante o percurso da pesquisa percebi nestes artistas dos quais recriei suas
trajetórias em narrativas, duas formas de transmissibilidade da experiência artística ou a
apropriação desse saber calcado na ação do corpo. Uma primeira leva de artistas enquadra-se
na apropriação familiar ou a transmissão que se dava em muitos casos de forma familiar, pela
observação, pela imitação, pela mútua projeção de personas, as camadas heterônimas que
cercam o artista. Nina Abreu inspirou-se em seus pais, Dona Joana Abreu e seu Raimundo
Abreu, Orfila Soares inspirou-se em seu pai, também criador dos cordões, Dona Neide
Peixoto inspirou no seu pai e Belmiro Campos inspirou-se nas tradições das cidades que
visitou no Baixo amazonas e de lá ele trouxe o cordão do Boi para a Vila de Beja.
Uma segunda geração surgida nos anos 80 já buscou uma outra forma de aquisição do
saber artístico da cena: o aparecimento do técnico, do artista preparado em uma técnica, em
um saber reconhecido como acadêmico, formal. Aqui já não há mais uma transmissão direta,
mas há outros elementos mediadores. Para ser bem claro trata-se de uma aprendizagem
através de um mestre que vem de fora.
No grupo de teatro Terra Chão foi desenvolvida uma técnica de teatro, baseada nos
ensinamentos de Augusto Boal, trazida pelo professor Antônio Carlos Martins Barros, que por
sua vez frequentou a Unipop21 de Belém. Os integrantes se apropriaram de um vocabulário de
termos de suas referências. Apesar de serem muitos jovens era comum falarem da “marcação
da cena”, de fazer “o espelho”, de empostar a voz, de exercícios de dicção ou expressão
corporal, entre outros. Da mesma forma o grupo Viva voz de Neusa Rodrigues, também já
trabalhava com técnicas teatrais oriundas de um saber elaborado em escola.
Os grupos de dança derivados de quadrilhas que se denominaram “modernas”
adquiriram um saber introduzido por coreógrafos de Belém do Pará. Algumas poses das
coreografias eram da dança clássica e muitos passos eram do jazz. Era uma nova era da arte
da cena que se formava e duas décadas alcançou um grande público que lotava o ginásio
municipal para ver as apresentações. Por recursos insuficientes essa experiência declinou
restando ainda um evento de quadrilhas que se denominam “tradicionais”, embora já tenham
21
Instituto Universidade Popular, foi criada em 1987 o Unipop é uma entidade de formação para a
cidadania ativa, ecumênica, de educação popular, cujo princípio metodológico básico está no pluralismo
político, de gênero, cultural e religioso. Nasceu da mobilização de um conjunto de entidades,
movimentos sociais e igrejas comprometidas com a teologia da libertação, para ser um espaço plural de
formação de lideranças populares, (https://pt-br.facebook.com/universidadepopular/Acesso em
11/09/2022)
incorporado em suas montagens outros elementos da cena, diferentes da tradição das
quadrilhas “caipiras”.
Ciclos terminam e outros começam. As técnicas se diversificam buscando a
renovação, e inovação dos meios de obter um resultado que surpreenda o público, cativando o
seu interesse pela obra. Assim tem sido nos últimos tempos à medida que, o acesso aos
instrumentos midiáticos se ampliaram. O globalismo deixa um rastro híbrido na cultura. O
artista e seu público como os elementos primordiais das artes da cena permanecem em
interatividade. As necessidades podem ser outras, mas há sentimentos pulsantes, há pessoas
ali com seus desejos, medos e suas esperanças as quais se articulam com uma história cultural,
sem a qual, essa arte não faz sentido.

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