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Esquecidos e Superestimados - Rodrigo Gurgel
Esquecidos e Superestimados - Rodrigo Gurgel
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Rodrigo Gurgel
ESQUECIDOS
&
SUPERESTIMADOS
Capa
Folha de Rosto
Prefácio – Literatura e verdade
Epígrafe
Apresentação
Capítulo 1 – À espera de justiça
Figuras complexas
Diálogos e descrições
Problemas
Capítulo 2 – Escondido e desprezado
Teoria do engrossamento
Linguagem e primitivismo
Fantasmas
Resposta ao enigma
Capítulo 3 – Combate interminável
Misterioso defunto
“Celeiro agreste”
Síntese e ampliação
Vencer e não vencer
Capítulo 4 – Perseguido, mas brilhante
Ilusória liberdade
Torpezas e amor
Diálogos e oratória
Desafio à história
Excelência
Capítulo 5 – Perfumaria bilaquiana
Clichês e elogios
Hipérboles
Ritmo ternário
Pequenos escritores
Tédio
Capítulo 6 – A salvação pelo duplo
Contar ou mostrar
Artimanhas e personagens
Doppelgänger
Luta
Capítulo 7 – Retorno à querência
Alegoria e epizeuxe
Anáfora e humor
O narrador ideal
Capítulo 8 – Manual de literatice
Extravagâncias
Verborragia
Naturalismo
Pedido de desculpas
Capítulo 9 – Salvo da banalidade
Destemor e covardia
Linguagem
Apuro
Língua portuguesa
Capítulo 10 – Canalhice e afetação
Difamadores
Falsa elegância
“Espuma inconsistente”
Capítulo 11 – Salvo pela ironia
Ouro falso
Acidez
Capítulo 12 – Ideologia e azedume
Homem estéril
Morte e vida
Condenação
Naturalismo
Capítulo 13 – Psicopatia e racismo
Crítica involuntária
Miscigenação e decadência
Descrições
Diálogos e cantilena
Narciso e Don Juan
Capítulo 14 – Injustamente esquecido
Fisgar o leitor
O traçado
Desenlaces
Tempo e consciência
Capítulo 15 – Corrosivo e sempre contemporâneo
Audácia editorial
Sem artificialismos
Riso e desprezo
Retrato do Brasil
Literatura e demonologia
Fracos e fortes
Desequilíbrio
Gótico
Sarcasmo
Sintaxe e humor
Pré-modernista?
Capítulo 16 – O filho tardio de Alencar
Filas de adjetivos
Idealização e melodrama
Linguajar e esquematismo
Lacunas e romantismo
Bom humor e Iracema
Estilo bombástico
Dois gaúchos
Capítulo 17 – Sobriedade e sutileza
Papéis invertidos
Metáfora
Capítulo 18 – Equívocos e retórica
Escolhas repreensíveis
Debilidades
Sinceridade
Créditos
Sobre o Autor
Sobre a Obra
PREFÁCIO
Literatura e verdade
Janeiro de 2014
CAPÍTULO 1
À espera de justiça
– Júlia Lopes de Almeida e A falência
Problemas
A falência
, contudo, apresenta alguns traços
naturalistas e muitas vezes resvala para um romantismo
sentimentalóide – a pior escolha talvez seja comparar os
olhos de Camila a “duas nascentes de agonia, choravam
sem cessar”.
Mas há outros elementos que destoam do conjunto. Em
certos trechos, o tema do feminismo se desvincula da
narração, ganha vida própria, e torna-se mero discurso
panfletário. Em outros, o narrador exagera no
cromatismo e acaba por criar pinturas de mau gosto:
Ao longe, a Serra dos Órgãos desenhava no céu os seus contornos de
um azul de ardósia. Para os lados da barra havia montes de prata fosca
em que o sol, cintilando nas pedras, escorria laivos de prata polida, e
rochedos cor de violeta espelhavam-se nágua; entre montanhas de um
verdor intensíssimo.
[ 19 ]
Em
Prosa de Ficção (De 1870 a 1920)
, 2ª edição, revista, Livraria
José Olympio Editora, Rio de Janeiro, 1957.
[ 20 ]
Escritores analisados em
Muita Retórica — Pouca Literatura (de
Alencar a Graça Aranha)
, Vide Editorial, 2012.
CAPÍTULO 2
Escondido e desprezado
– Emanuel Guimarães e A todo transe!...
A todo transe!...
é um tipo peculiar de
roman à clef
: à
parte o fato de pertencer a certo elogiável grupo – no
qual encontramos, por exemplo,
Os Buddenbrooks
ou
O
sol também se levanta
–, a obra de Emanuel Guimarães,
publicada em 1902, permanece atual não apenas graças
às qualidades literárias, mas porque sua “chave”,
passados mais de cem anos, pode ser encontrada em
Brasília ou nas assembléias estaduais, como se os
políticos encobertos pelas personagens ainda estivessem
vivos, cadáveres embalsamados por meio de alguma
técnica miraculosa, capaz de mantê-los respirando e,
principalmente, cometendo os mesmos delitos.
De fato, a semelhança entre o romance e as piores
páginas do noticiário político chega a ser assustadora,
mas não devemos nos prender a tal característica, pois
ela apequena as virtudes desse livro injustamente
esquecido, que nos ensina como a ficção pode descrever
não só uma época, mas, partindo de fatos mesquinhos,
retratar a índole duradoura da classe dirigente e a feliz
alienação do povo.
Não por outro motivo, aliás,
A todo transe!...
foi expulso
das nossas histórias literárias, escorraçado das
antologias e banido das livrarias: o brasileiro é
condicionado, sempre e cada vez mais, a enganar-se
quanto a seus defeitos e qualidades, travestindo-os por
meio do sentimentalismo, da farra, da autocomiseração
ou do comportamento ufanista. O que é o Carnaval,
senão a exasperação da tristeza e da derrota? E a
crescente hegemonia do marxismo – inclusive, é claro,
na crítica literária – só agravou o problema: para a
esquerda, o brasileiro, olhando-se ao espelho, deve ver
não a realidade, mas a utopia – a idéia benévola que faz
de si mesmo.
O romance de Emanuel Guimarães vai na contramão
dessa cultura. Se há idealismo, está somente nas falas
de Andrade e Melo, o deputado monarquista – o último
deles; ou o último que tem coragem de se afirmar como
tal. Desviando-se do óbvio e da ilusão,
A todo transe!...
é
um panorama dos bastidores da política e das regiões
mais escuras do coração humano. Um romance sem
ideais, mas que recusa o sarcasmo machadiano, pois seu
narrador sabe diferenciar o certo do errado, o bem do
mal.
Teoria do engrossamento
A perfeita definição da política, o narrador a coloca na
boca do velho deputado Soares, experiente mas de
poucas luzes, que assim explica ao novato Júlio César
Betarry, protagonista do romance:
Isto de política é um ofício como outro qualquer: um homem, como o
visconde de Mauá, que tem idéias grandes de progresso, é um perfeito
imbecil ao lado de um lorpa como o Jotajota, que ganha dinheiro em jogo
de câmbio e de bichos; aos olhos do mundo este vale muito mais que
aquele. Na política é a mesma cousa: quem tem idéias, quem quer ser
estadista cai no ridículo e na miséria; político é o Juca Lima [líder do
governo na Câmara Federal]: é o rei do Brasil, nem sabe ler, não sabe
nem quer saber senão de bobagens.
Combate interminável
– Euclides da Cunha e Os Sertões
Excêntrico e híbrido,
Os Sertões
, de Euclides da
Cunha, assemelha-se ao mostrengo de Fernando Pessoa,
que se ergue a voar na “noite de breu”, em pleno
oceano, e circunda a nau do explorador, interrogando-o:
“Quem é que ousou entrar / Nas minhas cavernas que
não desvendo, / Meus tectos negros do fim do mundo?”.
E a reação do leitor, ao se deparar com o grosso volume
e seu texto muitas vezes excessivamente rebuscado,
quase sempre não corresponde à do navegante que
enfrenta a terrível criatura – “Aqui ao leme sou mais do
que eu: / Sou um povo que quer o mar que é teu [...]” –,
pois tornou-se comum a desistência logo às primeiras
páginas, quando o inexperto marinheiro se depara com
descrições topográficas e geológicas que parecem
conduzi-lo ao abismo; e não à passagem do Bojador.
O desejo euclidiano de erigir uma obra total pagou o
preço da desmesura, semelhante aos personagens
mitológicos julgados por sua
hybris
. Mas o livro, que
veio à luz em 1902, continua a merecer atenção –
cuidadosa e necessária. Em relação a
Os Sertões
é
preciso distanciar-se das leituras fossilizadas, pois
excessivamente laudativas, capazes somente de coroar a
obra com jaculatórias, segundo o feliz ensinamento do
seu principal estudioso contemporâneo, Leopoldo
Bernucci, no evento
Euclides da Cunha 360º
, realizado
em 2009. O pesquisador, aliás, salientava o fato de, no
Brasil, cultuar-se esse autor controverso que, ao invés
de ser endeusado, deveria ser debatido. Prática,
completa Bernucci, fruto de uma cultura em que não se
aprende a ler de maneira compenetrada e crítica, na
qual o fascínio pela palavra escrita se sobrepõe à sua
compreensão.
Tais cuidados fazem-se ainda mais necessários quando
recordamos a melhor biografia de Euclides da Cunha,
escrita pelo norte-americano Frederic Amory.
[ 21 ]
Para
o autor de
Euclides da Cunha: uma Odisséia nos
Trópicos
, a leitura proveitosa de
Os Sertões
exige isolar
o valor
estilístico dos erros geográficos e das análises
deterministas e racistas. A força da narrativa supera, é
verdade, em inúmeros trechos, o conteúdo analítico
datado; mas não podemos esquecer as sábias
observações de Gilberto Freyre, para quem Euclides
está
perigosamente próximo do precioso, do pedante, do bombástico, do
oratório, do retórico, do gongórico, sem afundar-se em nenhum desses
perigos: deixando-o apenas tocar por eles; roçando por vezes pelos seus
excessos; salvando-se como um bailarino perito em saltos-mortais, de
extremos de má eloqüência que o teriam levado à desgraça literária ou
ao fracasso artístico.
[ 22 ]
Síntese e ampliação
Os Sertões
também está polvilhado de personagens
que, apesar de serem reais, ganham contornos próximos
do fantástico. Na terceira parte do livro, “A Luta”,
encontramos o coronel Moreira César, cuja “legenda de
bravura” Euclides desmonta com perfeita ironia,
primeiro inserindo-o no quadro maior da história do
país, cuja “sentimentalidade suspeita” está – até hoje –
pronta a criar “heróis de quarto de hora destinados à
suprema consagração de uma placa à esquina das ruas”.
Tão lunático quanto Antônio Conselheiro, Moreira César,
servil à pior face do ditador Floriano Peixoto, é
apresentado como criminoso contumaz, responsável,
durante a Revolução Federalista, por um dos mais
sangrentos episódios, no qual ordenou prisões e
fuzilamentos sumários. Não por outro motivo o coronel é
escolhido para comandar a primeira tentativa séria de
debelar Canudos:
Ora, entre nós, se exercitava o domínio do
caput mortuum
das
sociedades. Despontavam, efêmeras, individualidades singulares; e
entre elas o coronel César destacava-se em relevo forte, como se a
niilidade do seu passado salientasse melhor a energia feroz que
desdobrara nos últimos tempos.
[ 21 ]
Ver minha análise em “Trágica ingenuidade”,
Jornal Rascunho
,
junho de 2011.
[ 22 ]
Em “Euclides da Cunha, revelador da realidade brasileira”:
http://bvgf.fgf.org.br/frances/obra/pref_p_tercei/euclides.htm
[ 23 ]
“Dialética envenenada – Duas meninas na periferia do capitalismo”,
Folha de S. Paulo
, Caderno Mais, 1º de junho de 1997.
[ 24 ]
Editora Paz e Terra, São Paulo, 1983.
[ 25 ]
Rimbaud, Arthur.
Poesia Completa
, 2ª edição revista, Rio de
Janeiro, Editora Topbooks, 1995.
[ 26 ]
Ver
A Imitação dos Sentidos – prógonos, contemporâneos e epígonos
de Euclides da Cunha
, Edusp/University of Colorado at Boulder, São Paulo,
1995.
[ 27 ]
L. Genonceaux, Paris, 1891; prefácio de Rodolphe Darzens.
[ 28 ]
L. Vanier, 1895; prefácio de Paul Verlaine.
[ 29 ]
No ensaio “Transertões”, em
Os sertões dos Campos – duas vezes
Euclides da Cunha
, Editora 7Letras, Rio de Janeiro, 1997.
CAPÍTULO 4
Excelência
Desconheço se as escolhas estéticas de Coelho Neto
foram conscientes, mas sua obra nos afirma que ele
recusou seguir a via aberta por Machado de Assis com
Memórias póstumas de Brás Cubas
, publicado em 1880,
mais de duas décadas antes do romance que aqui
analisamos – e nem por isso deixou de escrever “uma
obra-prima indiscutível”, como Wilson Martins
[ 35 ]
classifica, acertadamente,
Turbilhão
.
Entre minhas certezas, só posso repetir o que o
poetastro Aurélio afirma no Capítulo 14 de
Turbilhão
,
vociferando, exaltado, em favor da “Arte Nova” que
estaria a caminho, “sonora e rica, luminosa e forte”,
anunciando ter ele mesmo no fundo da gaveta “dois
poemas e um romance [...] cuja tese era a emancipação
da mulher, com um surdo protesto contra o celibato
clerical”. Por meio de Aurélio, Coelho Neto ironiza o
futuro, sem saber que tal predição se realizaria da pior
forma: numa tentativa de estraçalhar sua obra. Mas,
apesar das conseqüências nada desprezíveis,
comemoremos: o futuro não se realizou plenamente.
[ 30 ]
Volume V de
A Literatura Brasileira
, 5ª edição, Editora Cultrix.
[ 31 ]
2ª edição, revista, Livraria José Olympio Editora, Rio de Janeiro,
1957.
[ 32 ]
Ver
O Espírito e a Letra
, volume 2, Editora Cia. das Letras, São
Paulo, 1996.
[ 33 ]
Editora Perspectiva, São Paulo, 1994.
[ 34 ]
Em
Os testamentos traídos
, 2ª edição, Editora Nova Fronteira, Rio
de Janeiro, 1994.
[ 35 ]
História da Inteligência do Brasil
, Volume V (1897-1914), 2ª edição,
T. A. Queiroz Editor, São Paulo, 1996.
CAPÍTULO 5
Perfumaria bilaquiana
– Olavo Bilac e suas crônicas
Ritmo ternário
A fraseologia bilaquiana guarda outra particularidade
maçante: a tríade de palavras encadeadas – esquemática
forma de acumulação. Certo jornalista é “o mais
completo, o mais brilhante e o mais popular”. Depois de
ir aos cinematógrafos, o autor se diz “derreado, tonto,
moído”; e afirma, sem perceber a importuna cacofonia,
que seu acompanhante “olhava, mirava, admirava,
embevecido, deliciado, enlevado”. O texto ganha ritmo
de modinhas e o leitor segue um bando de crianças,
“lenta e ruidosa maré de frescura, de mocidade, de
animação”. Surge, de repente, o perfil gerenciador de
Bilac: “Administrar não é somente gerir: é também, e
principalmente, assistir, acudir, prover”. Falando sobre a
Revolta da Vacina, o cronista se transforma num
militante ecológico: “[...] a alcatéia arrancara, torcera,
espezinhara, destruíra todas as pobres árvores
pequenas, que, ainda fracas e humildes, dentro de suas
frágeis grades de ferro, só pediam, para crescer e dar
sombra, um pouco de sol ao céu, um pouco de umidade à
terra e um pouco de carinho aos homens”. O povo
brasileiro, eis a irretorquível certeza do cronista, “tem
uma inteligência nativa, exuberante, pronta”. E o
ecologista retorna, agora para somar obviedade ao
discurso monótono: “Aves e borboletas são felizes: em
tendo um pedaço de céu azul, um bocado de jardim
verde, um raio tépido de sol, não pedem mais nada”.
Aferrado à receita medíocre, Bilac não descansa: “que
vida agoniada, inquieta, sobressaltada” exclama, nesse
estilo saltitante, referindo-se a Carlos Gomes; e conclui,
decidido a romper drasticamente o ritmo da frase, mas
preservando as rimas: “[...] numa perpétua luta com os
editores, com os empresários, com os cantores, e com os
credores!”.
Em certa crônica, Bilac reclama, de forma
surpreendente, da “retórica que se encarrega de
estragar tudo”. Concluímos, então, que ele de fato não
tinha consciência da própria inabilidade.
Pequenos escritores
Canhestro no estilo, às vezes o cronista oferece
informações jocosas. Sua visão do sistema literário em
1905, por exemplo, repete-se, sem grandes
modificações, atualmente. Para ele, o Rio de Janeiro era
a capital de uma nação que, sobre todas as outras do continente,
sempre teve a primazia em cousas da Inteligência. [...] É ela que possui
a literatura mais vibrante, mais original, e mais forte.
[ 36 ]
3 volumes, Edusp / Imprensa Oficial do Estado de São Paulo /
Editora da Unicamp, 2006.
[ 37 ]
Editora Cia. das Letras, 1996.
CAPÍTULO 6
Pode-se definir
Maria Dusá
, de Lindolfo Rocha, como
um romance no qual certa ótima idéia é constrangida
pela linguagem claudicante. No afã de apresentar
múltiplos pormenores, incluindo-se as características
climáticas e sociológicas da Chapada Diamantina, região
em que a maior parte do enredo transcorre, o autor não
se satisfaz com escrever uma boa história, mas perde-se
em trechos retóricos ou de teor ensaístico. O próprio
subtítulo de
Maria Dusá
, suprimido nas edições
contemporâneas, revela parte da intenção do autor:
Garimpeiros (romance de costumes sertanejos e
chapadistas)
.
Logo na abertura do Capítulo
III
, de maneira a reforçar
a descrição da seca de 1860, cujas conseqüências foram
perfeitamente expostas no início do livro – não por meio
de digressões cansativas, mas de fatos dramáticos, sobre
os quais falaremos adiante –, o narrador insiste:
Nesse ano de tristíssimas recordações a zona ubertosa do interior da
província da Bahia transformou-se em terra sáfara, imprestável; de
nutriz fecunda e dadivosa, que era, mudou-se em madrasta irritadiça e
ilacrimável; de liberal e opulenta, em mendicante e miseranda.
Em grandes extensões de terreno não se vislumbrava sinal de clorofila
senão no Icó, a planta que resiste a todas as secas, e nas diversas
espécies de cactos, entre as quais sobressaíam o mandacaru, a
palmatória e o xiquexique formando este sempre e em grande cópia os
grandes e bizarros candelabros de Humboldt.
[ 38 ]
História da Inteligência do Brasil
, Volume V (1897-1914), 2ª edição,
T. A. Queiroz Editor, São Paulo, 1996.
CAPÍTULO 7
Retorno à querência
– Simões Lopes Neto e Lendas do Sul
O narrador ideal
“A Mboitatá”, contudo, é a narrativa mais admirável.
Simões Lopes Neto conseguiu criar um exemplo perfeito
de sintetismo, construindo-o por meio de elementos que,
de forma reiterada, transportam-nos ao universo mítico.
Numa cosmologia primitiva, a longa noite está
instaurada – e o que veio antes dela permanecerá
incógnito. O homem, anulado diante do cosmo que se
desorganizou, encontra-se no anti-gênesis. Estamos
in
illo tempore
: um passado indefinido, em meio ao caos. A
desordem absoluta, que enche de pavor homens e
animais, favorece o surgimento do prodígio maléfico: a
serpente que devora olhos.
O narrador assume o papel de quem detém uma
verdade ancestral. Há austeridade no narrar. E ele não
permite dúvidas ao dizer que “os homens viveram
abichornados, na tristeza dura”, usando o verbo no
pretérito perfeito, de maneira a salientar, semelhante a
uma testemunha, os fatos que se desenrolaram num
tempo indeterminado.
Vejam com que habilidade o narrador rejeita, no início
de diferentes trechos, partes do seu próprio testemunho
– “Minto”, ele diz –, de maneira a intensificar a
dramaticidade do relato e inserir novos elementos, que
desequilibram as poucas certezas do leitor: por exemplo,
na Parte II, o canto do pássaro que “agüenta a
esperança dos homens” – bela figura, construída graças
à acepção inusual do verbo.
A reflexão moral da Parte IV pausa a narrativa e
enfatiza seu caráter universal, destruindo a
possibilidade de os leitores reduzirem o impacto da
mensagem ao microcosmo rio-grandense. E, logo a
seguir, ao retomar a linha mestra do relato, o discurso se
hiperboliza, a fim de materializar ainda mais a cobra-
grande e sua fome descomunal. Na Parte VI, o “vai”
anafórico cria o
continuum
, trecho síntese que faz
nascer a cobra, “uma luzerna, um clarão sem chamas,
[...] um fogaréu azulado, de luz amarela e triste e fria,
saída dos olhos, que fora guardada neles, quando ainda
estavam vivos...”. Encontramo-nos, assim, em plena
“persuasão da continuidade”, para recordar a feliz
expressão de Northrop Frye.
A morte do ser mítico não diminui a intensidade do
relato. Ao
contrário, é a conseqüência esperada, pois
não há outro destino possível a quem se alimenta do que
está morto, ainda que lhe reste alguma frágil luz. O sol
renasce, então, tímido, e lentamente a natureza
recupera sua ordem. Mas a luz da boitatá permanece
como fantasmagoria ou malefício. No entanto, aquilo
que ainda causa medo serve também à coragem:
Quem encontra a boitatá pode até ficar cego... Quando alguém topa
com ela só tem dois meios de se livrar: ou ficar parado, muito quieto, de
olhos fechados apertados e sem respirar, até ir-se ela embora, ou, se
anda a cavalo, desenrodilhar o laço, fazer uma armada grande e atirar-
lha em cima, e tocar a galope, trazendo o laço de arrasto, todo solto, até
a ilhapa!
A boitatá vem acompanhando o ferro da argola... mas de repente,
batendo numa macega, toda se desmancha, e vai esfarinhando a luz,
para emulitar-se de novo, com vagar, na aragem que ajuda.
[ 39 ]
Livraria São José, Rio de Janeiro, 1960.
CAPÍTULO 8
Manual de literatice
– Antônio Sales e Aves de arribação
Se existe mérito em
Aves de arribação
, do cearense
Antônio Sales, é o de concentrar, em quase duas
centenas de páginas, os defeitos da literatura brasileira,
mostrar que eles conseguiram vencer, incólumes, o
século
XIX
e ressurgir nesse romance anacrônico, repleto
da ornamentação piegas que polui os livros de José de
Alencar, do naturalismo exacerbado de Aluísio de
Azevedo e da retórica afetada de Raul Pompéia. Obra
que Lúcia Miguel-Pereira não leu ou leu mal, a ponto de
não explicar o que tentou dizer, em
Prosa de ficção
,
[ 40
]
ao chamá-lo de “livro de qualidades”. Elogio impreciso,
de certa forma repetido por Alfredo Bosi, para quem
Aves de arribação
“se lê ainda hoje com agrado”.
[ 41 ]
Ninguém, contudo, foi tão enfático quanto Massaud
Moisés:
Tudo bem ponderado, parecendo acima ou à margem das ortodoxias
estéticas, colhendo na realidade o assunto galante e transfundindo-o em
arte com “sensação e força”, fundando-se na observação do cotidiano,
mas sem apelo aos maniqueísmos patológicos ou sentimentais,
Aves de
arribação
pode bem situar-se na ficção que prenuncia o romance
nordestino dos anos 30.
[ 42 ]
Pedido de desculpas
Nada se sustenta nesse livro. Devemos, portanto, à
conterraneidade ou a algum tipo especial de febre os
elogios que Rachel de Queiroz fez ao romance. Quanto a
Tristão de Athayde, ao festejar a reedição da obra, em
1929, soube escrever um desses textos, tão comuns
ainda hoje, em que a falsa cordialidade brasileira
sobrepuja a necessária independência da crítica. Resta a
Wilson Martins o papel de única voz lúcida, por ter
salientado o caráter menor livro – “quanto ao estilo
romanesco e à técnica narrativa” – e o fato de Antônio
Sales “não ter sabido escrever o romance que soubera
imaginar”.
Na verdade, o próprio autor tinha consciência de sua
imperícia. Publicado na forma de folhetim, no jornal
Correio da Manhã
, do Rio de Janeiro, em 1902,
Aves de
arribação
ganhou o formato de livro em 1913, com uma
“Nota ao Leitor” algo melancólica:
Escrevi há muitos anos esta novela [...].
Desde então nunca mais a reli senão agora quando, animado por
alguns amigos, resolvi editá-la em volume.
Desta leitura verifiquei que muita coisa teria nela a modificar; mas
preferi deixar que apareça tal como saiu no jornal, salvo ligeiras
correções.
A crítica encontrará, por certo, neste trabalho, muitas falhas e
inexperiências, que já são sensíveis para mim agora [...].
Podemos, é claro, acatar este pedido de desculpas,
compreender o embaraço do autor, a difícil decisão de,
consciente dos problemas, aceitar a publicação do
romance. Mas nada justifica os elogios irrefletidos que
Aves de arribação
tem merecido, obra massacrante à
qual podemos conceder, sem injustiça, o título de vade-
mécum da literatagem nacional.
[ 40 ]
2ª edição, revista, Livraria José Olympio Editora, Rio de Janeiro,
1957.
[ 41 ]
Histórica Concisa da Literatura Brasileira
, 34ª edição, São Paulo,
Editora Cultrix.
[ 42 ]
História da Literatura Brasileira
, volume
II
– Realismo e
Simbolismo, edição revista e atualizada, São Paulo, Editora Cultrix.
[ 43 ]
Ver, a respeito de Raul Pompéia, o Capítulo 14 de
Muita Retórica –
Pouca Literatura (de Alencar a Graça Aranha)
.
CAPÍTULO 9
Salvo da banalidade
– Hugo de Carvalho Ramos e Tropas e boiadas
Língua portuguesa
Encontram-se, claro, problemas no livro. Mas um conto
péssimo, “A bruxa dos marinhos” – de que se salva
apenas o diálogo final –, as irregularidades de
“Nostalgias” – principalmente o último parágrafo, de
excessiva adjetivação, preso ao desgastado tema do
contraste entre campo e cidade –, as longas e
desnecessárias digressões de “Gente da gleba” – que só
confirmam a vocação do autor para a narrativa curta – e
a insipidez de “A madre de ouro” não diminuem o vigor
de
Tropas e boiadas
, não maculam os trechos que
assomam como inesperadas descobertas.
Saborosas expressões locais podem iluminar certas
passagens: “– Homem, a modo que já vão andando... Ah,
meu tempo, agüentava firme no sapateio até pegar o sol
com a mão!...” ou “– Qual, isso é ainda efeito da beijoca
que dei ali atrás ao frasco de cachaça [...]”. A breve
frase consegue recriar um galope: “Engolimos num
trago aquele chão”. A correta inserção de um detalhe
concede nova perspectiva à cena: o fim iminente da
festa, em “Mágoa de vaqueiro”, é anunciado, no
primeiro parágrafo, pela mesa em que se encontram os
“sobejos da ceia – frascos de licor e o doce de buriti
esparramando-se na toalha besuntada [...]”; no conto
“Gente da gleba”, “as botas esturradas de mormaço
ringindo ásperas no assoalho desigual, rumo à cozinha”
revelam o vaqueiro que, apesar de livre para entrar na
casa-grande, baralha no seu íntimo dedicação e
subserviência. E não poderia faltar o perfeito sentido do
riso e da ironia, presente no conto “O Saci”.
A última narrativa, “Dias de chuva”, surge plena de
saudosismo. Não chega a ser um conto, mas destila
linguagem extraordinária, às vezes lírica: “A chuvarada
continuava aberta, naquele seu grande choro de
desconforto, ensopando os campos”. Aqui, estamos
muito além do que Wilson Martins chamou, ao se referir
a
Tropas e boiadas
, de “implicações apotegmáticas”.
[
45 ]
O que temos diante de nós é a língua portuguesa em
seus momentos límpidos. Inculta, talvez – e também por
isso capaz de produzir coisas belas.
[ 44 ]
Capítulo 18 de
Muita Retórica – Pouca Literatura (de Alencar a
Graça Aranha)
.
[ 45 ]
História da Inteligência Brasileira
, volume
VI
(1915-1933), 2ª
edição, T. A. Queiroz Editor, São Paulo, 1996.
CAPÍTULO 10
Canalhice e afetação
– João do Rio e
[ 46 ]
“Atualidade de um romance inatual”, em
A correspondência de uma
estação de cura
, Editora Scipione / Fundação Casa de Rui Barbosa /
Instituto Moreira Salles, 1992.
[ 47 ]
Cambridge Journal
4, 1950-1951.
[ 48 ]
Cinematógrafo: crônicas cariocas
, João do Rio, Rio de Janeiro,
Academia Brasileira de Letras, 2009.
[ 49 ]
“A forma do romance”, em
A correspondência de uma estação de
cura
, op. cit.
[ 50 ]
Editora Globo, Rio de Janeiro, 2009.
[ 51 ]
Prosa de Ficção (De 1870 a 1920)
, 2ª edição, revista, Livraria José
Olympio Editora, Rio de Janeiro, 1957.
CAPÍTULO 11
Imaginando os ensinamentos de um
Catecismo
revolucionário
, Carlos de Laet cria definições perfeitas,
sábias, adequadas a todos os tempos – e segue a forma
clássica dos antigos catecismos católicos, com perguntas
e respostas. Questionado sobre o que é a igualdade, o
revolucionário responde:
O nivelamento de todas as condições sociais. Nosso ideal em fisiografia
seria uma planície. Detestamos as colinas pretensiosas e os cabeços das
montanhas coroados de nuvens. Em geometria suprimiríamos uma das
três dimensões. Adoramos o largo e o chato.
[ 52 ]
Obras seletas de Carlos de Laet — Crônicas
(Volume I), Editora Agir
/ Instituto Nacional do Livro / Fundação Casa de Rui Barbosa, 1983.
[ 53 ]
Obra que analisei no ensaio “O anti-revolucionário”, Capítulo 17 de
Muita Retórica — Pouca Literatura (de Alencar a Graça Aranha)
.
[ 54 ]
Obras seletas de Carlos de Laet — Polêmicas
(Volume II), Editora
Agir / Instituto Nacional do Livro / Fundação Casa de Rui Barbosa, 1983.
CAPÍTULO 12
Ideologia e azedume
– Lima Barreto e
No Capítulo
IX
, esse narrador nos oferece longo trecho
dedicado às mulheres, no qual o bordão de Gonzaga de
Sá – “A dama fácil é o eixo da vida” – repercute,
influencia, confunde. As páginas estão entre as mais
bem escritas da literatura brasileira, apesar de algumas
cacofonias – semelhante ao que Lima Barreto executa no
início do Capítulo
XI
, quando Machado penetra na
multidão para esquecer de si mesmo. As prostitutas de
origem estrangeira, “cheias de jóias, com espaventosos
chapéus de altas plumas”, surgem semelhantes a “velas
enfunadas ao vento, impelindo grandes cascos [...],
transtornando tudo pelas ruas em fora”:
Elas seguem... É a Rua do Ouvidor. Então é a vertigem; todas as almas
e corpos são arrebatados e sacudidos pelo vórtice. Há uma energia
poderosíssima nelas todas e nas coisas de que se vestem; há atração,
fascinação para esquecimento de nós mesmos e apagamento da nossa
personalidade na luminosidade dos seus olhos. É mágico e sobrenatural.
No Capítulo
IX
, a ótima descrição dos trabalhadores
que retornam ao lar acaba corrompida pelo
determinismo, pela necessidade de encontrar
condicionamentos biológicos que justifiquem a
existência do mal, louvando-o como elemento purificador
da realidade:
Operários e pequenos burgueses, eram eles que formavam a trama da
nossa vida social, trama imortal, depósito sagrado, fonte de onde saem e
sairão os grandes exemplares da Pátria, e também os ruins para excitar
e fermentar a vida do nosso agrupamento e não deixá-lo enlanguescer...
Quiçá não soubessem disso e, se o soubessem não se consolariam do
duro fardo de viver... Viviam, sob o aguilhão dos deveres e com a vaga
esperança consoladora da afeição eterna dos filhos.
[ 55 ]
Em
A Literatura no Brasil
, direção de Afrânio Coutinho, volume 4,
Capítulo 39 (Global Editora, 7ª edição, São Paulo, 2004).
CAPÍTULO 13
Psicopatia e racismo
– Afrânio Peixoto e Fruta do mato
[ 56 ]
Ver, em
Muita Retórica — Pouca Literatura (de Alencar a Graça
Aranha)
, o Capítulo 9, “O preço do naturalismo”, em que analiso
O Cortiço
.
[ 57 ]
Ver minha análise de
Lucíola
no Capítulo 1 de
Muita Retórica —
Pouca Literatura (de Alencar a Graça Aranha)
.
[ 58 ]
Minha análise de
Canaã
pode ser encontrada no ensaio “Puro
pedantismo”, Capítulo 20 de
Muita Retórica — Pouca Literatura (de Alencar
a Graça Aranha)
.
CAPÍTULO 14
Injustamente esquecido
– Valdomiro Silveira e Os caboclos
O traçado
Esses começos, capazes de prender nossa atenção,
anunciam outra das qualidades de Valdomiro Silveira: a
de criar narradores que se expressam com
desembaraço, colocando o leitor diante da cena viva,
nítida. Como em “Por mexericos”:
O Fernando, enlevado no trabalho, não viu quando lhe chegou à porta o
Chico Ferro: corria a plaina por um toro de peroba e, rasgando fitas e
fitas cor-de-rosa, punha gosto em ver que se
enrolavam como uma
trança desfeita, pendiam para a banda e caíam no chão, entre os
sarrafos e a serragem [...].
Desenlaces
Valdomiro Silveira tinha a exata noção de como os
finais podem ser impactantes num conto, sejam eles o
desfecho clássico que Edgar Allan Poe advogava, com
sua tese de que o
dénouement
deve ser escrito antes de
tudo,
[ 60 ]
ou apresentem a perturbadora sensação de
permanência – e muitas vezes de irresolução – da
narrativa tchekhoviana.
Em “Por mexericos”, Nhô Fernando, interrompido no
trabalho, ouve as reclamações de Chico Ferro com
aparente paciência – até correr o falastrão de sua
oficina, confirmando o velho ditado: “Cão que ladra não
morde”. A história do topetudo que se acovarda retorna
no conto “Valentia”, mais cômico, com Ana Triste –
“pixaim repuxado para as orelhas, à força de pente,
remexido em caracóis e todo besuntado de banha com
essência de rosa” – enfrentando o brigão Imbuava. No
conto “Missa da Páscoa”, a alegria antecipada, os
cuidados da vaidade, os sonhos do amor correspondido –
maiores do que os da paixão impossível – são destruídos
de repente, restando apenas o vazio num final em que a
protagonista sequer tem a chance de reagir. “Pinhã
refugada” termina com o golpe de insolência e desprezo
sobre a prostituta que começa a envelhecer, mas cuja
inabalável dignidade se revela, em meio a soluços, na
última frase. Em “Desespero de amor”, a confirmação do
adultério é anunciada de forma sutil mas inquestionável,
também por meio de breve sentença.
Mas os
causos
de Valdomiro Silveira podem terminar
sem surpresa, ratificando a expectativa do leitor, que se
vê, contudo, cingido por uma nota lírica ou comovente:
em “Cena de Amor”, Chico Luís e Candoca, ambos feios,
se apaixonam, mas o gesto involuntário do final, da mão
que toca a trança da mulher – trança, aliás, sutilmente
anunciada parágrafos antes –, sintetiza a narrativa; o
fecho de “Hora quieta” chega a ser pueril, mas, graças à
espirituosa exclamação da jovem apaixonada, o leitor é
transferido a delicioso universo, no qual não há espaço
para angústias ou dúvidas existenciais – sentimento que
se repete em “Salvação”, por meio do saudosismo feliz
do velho e bom Albino. Em “Mamãe”, ao contrário, a dor
materna, subitamente revelada, expõe ao filho doente a
dimensão do seu próprio drama. De nada adianta a
Chiquinha Sabiá, protagonista do “Faiscador de
Carumbé”, sua devoção ao galanteador Zé Saúva;
previsto, o desgosto permite-lhe apenas aflitiva reação:
“Agora (ela gaguejou um tempinho), agora (e pôs-se a
tremer os lábios), agora (e desatou a chorar), agora só
morrendo!”. O choro convulso e o arrependimento
dominam Lainha, em “Constância”, quando esta
percebe, tarde demais, que não fora fiel ao próprio
coração.
Tempo e consciência
O talento desse contista pode se revelar, ainda, na
composição dos diálogos. Em “Saudades do Natal”, as
memórias de Valério e Doninha se
alternam – uma
verbalizada pelo apaixonado, outra, puro assentimento,
desfiando-se nas lembranças da silenciosa ouvinte.
Compõe-se, assim, o dueto no qual o amor, sobressaindo
da festa familiar, realimenta-se em emocionado
continuum
.
A fim de marcar o progresso da morféia, o tempo ganha
relevância em “Camunhengue”, mas avança segundo os
ciclos da natureza: ainda cai “uma neblina muito fria,
embora fosse tempo de milho verde”, quando Zeca
Estevo sai em busca do curandeiro; ao chegar “o tempo
das águas, com uma ventania nunca vista e um poder de
tempestade todo santo dia”, a esposa já se recusa a
dormir com ele na mesma cama; na estiagem, numa
manhã de dezembro, Zeca parte definitivamente,
rejeitado por todos.
Narrativa concisa, “Cena de amor” revela, sob a trama
em que alguns encontraram apenas ingenuidade, a
plena abertura de Nhá Candoca à vida – apesar da
feiúra, esta mulher não se permite a mínima
autocomiseração. Semelhante força moral está presente
em “Na tapera de Nhô Tido”: Chico Pica-pau, o
protagonista, passa da inquietação e do desejo de
vingança ao estupor que lhe permite reencontrar o
sentido da própria consciência.
Não há banalidade, portanto, em Valdomiro Silveira.
Abandonado por certos críticos num limbo nada
honroso, ele merece leitura atenta – inclusive para
lembrarmos que a literatura não deve espelhar apenas
derrotismo, misantropia e tédio.
[ 59 ]
Em
Literatura Européia e Idade Média Latina
,
MEC
— Instituto
Nacional do Livro, Rio de Janeiro, 1957.
[ 60 ]
Em “A Filosofia da Composição”,
Poemas e ensaios
, Editora Globo,
Rio de Janeiro, 1987.
CAPÍTULO 15
[ 61 ]
História concisa da literatura brasileira
, 34ª edição, revista e
aumentada, Editora Cultrix.
[ 62 ]
O Estado de S. Paulo
, 20 de dezembro de 1917.
[ 63 ]
A literatura brasileira – origens e unidade
, volume
II
, Edusp, 1999.
[ 64 ]
História da Literatura Brasileira
, Editora Nova Aguillar, 1997.
[ 65 ]
O livro no Brasil (sua história)
, T. A. Queiroz Editor / Edusp, 1985.
[ 66 ]
Ver o depoimento de Paulo Dantas em seu livro
Presença de Lobato
,
RG Editores, 1973.
[ 67 ]
Texto publicado no jornal
Correio da Manhã
, em 19 de novembro de
1944. Pode ser lido em
Escritos da maturidade
, Graphia Editorial, 1994.
[ 68 ]
Apud
José Aderaldo Castello.
Op. cit
.
[ 69 ]
Em
Os testamentos traídos
, Editora Nova Fronteira, 2ª edição,
1994.
[ 70 ]
Ver “Ciclo Paulista”, Capítulo 40 de
A literatura no Brasil
, volume 4,
direção de Afrânio Coutinho, Global Editora, 7ª edição, São Paulo, 2004.
CAPÍTULO 16
[ 71 ]
Livraria São José, Rio de Janeiro, 1960.
CAPÍTULO 17
Sobriedade e sutileza
– Amadeu Amaral e A pulseira de ferro
Metáfora
Esses comentários, no Capítulo
X
, representam apenas
um dos inúmeros trechos que contribuem para
transformar Veloso no personagem central da narrativa.
Página a página, o narrador torce com habilidade a
trama, passa a segundo plano o vigário, utiliza as
calúnias sofridas pelo padre para provocar no advogado
a recordação pungente do próprio passado – e Veloso,
por sua personalidade diligente e solícita, seu
poder de
análise, assume o protagonismo da história.
O núcleo dessa mutação encontra-se no Capítulo
IX
, no
qual o advogado relata ao padre, para que lhe sirva de
exemplo, a história do ferreiro Manuel da Costa,
morador de Candeias, durante longos cinco anos
dedicado a moldar, nas horas de lazer, a delicada
“pulseira de ferro”, presente que dará a Raquel, sua
jovem filha, por quem Veloso, já homem maduro, se
apaixona. A família, contudo, é destruída pelas intrigas
da população – e Veloso partilha da violência das
calúnias, responsáveis inclusive pelo suicídio de Raquel.
Essa experiência anterior é o drama que permite ao
advogado ironizar a indignação do padre, correta, sem
dúvida, mas desproporcional.
Pouco antes, depois de salientar que o vigário vive
apenas a “estréia de caluniado”, Veloso expusera, num
diálogo central, no Capítulo
VIII
, sua teoria sobre como a
índole violenta do homem depurou-se até se transformar
em difamação:
[...] O bruto ganhou em peçonha, em perversidade recolhida e
fedorenta o que perdeu em brutalidade esbarrondante e sadia: já não
assalta nem esquarteja o inimigo, amargura-lhe, comodamente, a
existência; envenena-lhe os prazeres, se os têm; agrava-lhe as dores e as
melancolias, que as têm pela certa; põe-lhe um sabor de lama na água
que ele bebe, um cheiro excrementício nos perfumes que ele respira;
entra-lhe pelo corpo com o pão que ele come, tornando-lho duro e
dissaborido; precipita-se-lhe na torrente do sangue, e queima-o em
febre; fustiga-lhe as fibras recônditas dos nervos, e chama-se insônia;
põe-lhe nos olhos as lágrimas que ele deve estilar em silêncio, às
escondidas, e é então a amargura que mata. E ninguém escapa!
ninguém! [...]
A pulseira de ferro
não é, contudo, ficção de tese; não
está presa aos esquematismos darwinistas do nosso
naturalismo e o advogado não busca nenhuma suposta
verdade científica. Não. Mais que a história de um padre
destituído de firmeza, a novela retrata os infortúnios de
Veloso, homem sensível, íntegro, sagaz, obrigado a ser
vítima indireta dos mexericos, devido aos quais perde,
primeiro, o grande amor, e depois, o melhor amigo. A
pulseira de ferro torna-se, assim, metáfora dos
sentimentos que alimentamos, durante longo tempo,
com empenho sincero, mas que são destruídos,
aniquilados pela malevolência de outrem.
O narrador completa, dessa forma, a inversão – e o que
prometia ser uma história óbvia ganha agradável,
inesperada sutileza. Sua sensibilidade aguda completa o
trabalho revelando, no final, não os
caluniadores, mas os
artífices do plano de abandonar a criança à porta da
igreja. Tratados, no início da narrativa, como parvos,
eram, na verdade, dissimulados, conhecedores da índole
do vigário.
A essas qualidades somam-se outros personagens – o
ferino boticário Felisberto; o barbeiro Nicola; Camacho,
“polimórfico sábio” – e diálogos reveladores, que
impulsionam a história e substituem possíveis cansativas
descrições do narrador, como este, entre Veloso e
Felisberto, quando se anuncia a difamação em curso:
– Olá! Sirva-se de um cafezinho, descanse um pouco. Diga-me! como
vai o filho do padre?
Veloso estacou intrigado. E Felisberto explicou, passando-lhe uma
xícara:
– Aquele mulatinho achado ali na igreja, outro dia, não sabe? que caiu
do céu por obra do Espírito Santo...
Ouviu-se uma risada geral. Veloso riu-se com os mais, sem exagero e
sem ruído, mas também sem constrangimento aparente, e informou:
– O pequeno vai bem.
– Saiu parecido com o pai?
Veloso, sem se desconsertar, tomando o seu café:
– Mas quem é o pai?
– Ora, ora, doutor Veloso...
– Quem é?
– Sou eu. Está ouvindo? Eu! Fui eu quem mandou largar o bodinho, de
manhã muito cedo, ali na porta da igreja; por uns excomungados de uns
pretos que ninguém viu, de quem ninguém dá notícia... Qual, “seu” dr.
Veloso, nisso tudo há grosso... milagre! Quem não vê que aí anda dedo...
de Deus!
Veloso sorriu, abanou a cabeça, olhou para o ar, tornou a sorrir, e saiu
da botica aterrado.
[ 72 ]
11 volumes, Editora Hucitec / Secretaria de Cultura e Tecnologia do
Estado de São Paulo, 1976.
CAPÍTULO 18
Equívocos e retórica
– Jackson de Figueiredo e Literatura reacionária
Debilidades
Jackson de Figueiredo defende uma idéia doutrinal de
literatura: se acerta ao dizer que “mais larga que a
categoria do belo é a do bem”, erra ao proclamar a
“absoluta superioridade da obra de arte católica em
relação a qualquer outra obra de arte”, como afirma no
texto dedicado a Henri Massis.
De fato, tem razão quando salienta que “o artista é um
ser moral”, que “o produto da sua atividade tem de
refletir a ordem da sua consciência” e que a arte precisa
ser julgada inclusive sob o aspecto ético – exercício que
a crítica literária contemporânea pretende esquecer
quando desvincula a obra literária da vida real, como se
fosse apenas híbrido conjunto de signos, produto de
geração espontânea. Mas nenhum desses acertos
garante ao escritor católico qualquer tipo de
superioridade estética. Na verdade, Jackson de
Figueiredo mostra-se contraditório, pois, semanas
antes
de fazer esses comentários, escreve a respeito do jesuíta
Leonel Franca e denuncia a “formidável afirmação de
mau gosto” da literatura católica brasileira...
De qualquer forma, não viveu o suficiente para ler a
crítica de Flannery O’Connor – no ensaio “Os
romancistas católicos e seus leitores” (
Mistery and
Manners; occasional prose
)
[ 75 ]
– àqueles que,
“extasiados com sua condição cristã, esquecem sua
natureza de escritor”. Flannery recorda a tais autores a
história do lobo de Gubbio: convencido por São
Francisco de Assis a se tornar um lobo bom, nem por
isso muda sua natureza e passa a andar sobre duas
patas. Mas Jackson de Figueiredo poderia ter lido o
ensaio “The Morality of the Profession of Letters”,
[ 76 ]
de Robert Louis Stevenson, para quem “algo ruim
pobremente executado é algo ruim do princípio ao fim”,
não importando a religião ou a teoria estética que o
escritor segue.
Encontramos superficialidade e contradições também
nos artigos dedicados a contestar Ronald de Carvalho,
como se nosso ensaísta experimentasse algum tipo de
dissociação. Em 30 de janeiro de 1924, numa resposta
cheia de dedos ao autor de
Pequena História da
Literatura Brasileira
, afirma não querer
provocar polêmicas com ninguém desse nosso (quero dizer: brasileiro)
inquieto campo de letras, do qual, por muitos motivos, como já te tenho
dito, me julgo afastado.
Sinceridade
Se lermos Jackson de Figueiredo com uma pinça, ainda
é possível colher seus acertos. Sua crítica ao
romantismo – “cuja característica é a exaltação, até
quando essa exaltação seja a da mais depressiva
melancolia, o que é fácil apreender do mais ou menos
ridículo profetismo de todos os chefes românticos” –
permanece instigante. No artigo “Problemas de
educação nacional e de instrução pública”, publicado em
maio de 1924, arremete contra inominados intelectuais,
denunciando o que sempre foi e continua a ser regra
entre nós:
A coisa que já parece a mais natural deste mesmo mundo [...] é alçar o
colo à petulância de um gaguejador de alguns nomes difíceis, roubados à
técnica de um forjador de novidades pedagógicas, e com armas tão
fracas atirar-se em cheio contra verdades que têm resistido ao arrojo de
homens mais prudentes e mais entendidos do que falam. Não raro esses
pobres espíritos são incapazes de filiarem no sistema filosófico
originário as meias idéias que agitam e os agitam. Não raro são
absolutamente ignorantes do
que representam na história do
pensamento humano as idéias que neles se fizeram preconceitos.
[ 73 ]
Editora Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 2006.
[ 74 ]
Ver, neste
Esquecidos
&
superestimados
, o Capítulo 11, “Salvo pela
ironia”.
[ 75 ]
Seleção e edição de Sally e Robert Fitzgerald, Editora Farrar, Straus
and Giroux, 1969.
[ 76 ]
Em
The Art of Writing
: http://classiclit.about.com/library/bl-
etexts/rlstevenson/bl-rlst-wri-2.htm.
[ 77 ]
História da Inteligência Brasileira
, volume
VI
(1915-1933), 2ª
edição, T. A. Queiroz Editor, São Paulo, 1996.
Esquecidos & superestimados
Telefone: 19-3249-0580
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Editor:
Diogo Chiuso
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eISBN: 978-85-67394-25-1
1. Literatura Brasileira – Ensaios I. Rodrigo Gurgel II. Título
CDD – B869.45
Índice para Catálogo Sistemático
1. Literatura Brasileira – Ensaios – B869.45
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