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Rodrigo Gurgel

ESQUECIDOS

&

SUPERESTIMADOS

Prefácio de Jessé Almeida Primo


SUMÁRIO

Capa
Folha de Rosto
Prefácio – Literatura e verdade
Epígrafe
Apresentação
Capítulo 1 – À espera de justiça
Figuras complexas
Diálogos e descrições
Problemas
Capítulo 2 – Escondido e desprezado
Teoria do engrossamento
Linguagem e primitivismo
Fantasmas
Resposta ao enigma
Capítulo 3 – Combate interminável
Misterioso defunto
“Celeiro agreste”
Síntese e ampliação
Vencer e não vencer
Capítulo 4 – Perseguido, mas brilhante
Ilusória liberdade
Torpezas e amor
Diálogos e oratória
Desafio à história
Excelência
Capítulo 5 – Perfumaria bilaquiana
Clichês e elogios
Hipérboles
Ritmo ternário
Pequenos escritores
Tédio
Capítulo 6 – A salvação pelo duplo
Contar ou mostrar
Artimanhas e personagens
Doppelgänger
Luta
Capítulo 7 – Retorno à querência
Alegoria e epizeuxe
Anáfora e humor
O narrador ideal
Capítulo 8 – Manual de literatice
Extravagâncias
Verborragia
Naturalismo
Pedido de desculpas
Capítulo 9 – Salvo da banalidade
Destemor e covardia
Linguagem
Apuro
Língua portuguesa
Capítulo 10 – Canalhice e afetação
Difamadores
Falsa elegância
“Espuma inconsistente”
Capítulo 11 – Salvo pela ironia
Ouro falso
Acidez
Capítulo 12 – Ideologia e azedume
Homem estéril
Morte e vida
Condenação
Naturalismo
Capítulo 13 – Psicopatia e racismo
Crítica involuntária
Miscigenação e decadência
Descrições
Diálogos e cantilena
Narciso e Don Juan
Capítulo 14 – Injustamente esquecido
Fisgar o leitor
O traçado
Desenlaces
Tempo e consciência
Capítulo 15 – Corrosivo e sempre contemporâneo
Audácia editorial
Sem artificialismos
Riso e desprezo
Retrato do Brasil
Literatura e demonologia
Fracos e fortes
Desequilíbrio
Gótico
Sarcasmo
Sintaxe e humor
Pré-modernista?
Capítulo 16 – O filho tardio de Alencar
Filas de adjetivos
Idealização e melodrama
Linguajar e esquematismo
Lacunas e romantismo
Bom humor e Iracema
Estilo bombástico
Dois gaúchos
Capítulo 17 – Sobriedade e sutileza
Papéis invertidos
Metáfora
Capítulo 18 – Equívocos e retórica
Escolhas repreensíveis
Debilidades
Sinceridade
Créditos
Sobre o Autor
Sobre a Obra
PREFÁCIO

Literatura e verdade

Não obstante a obviedade da afirmação, a forma


explicita o conteúdo. Claro está que isso não é uma
obrigação circunscrita a textos literários, mas a
qualquer outro que busque comunicar algo. Dessa
maneira, não é por acaso que o autor deste volume
também dedica sua crítica às obras de prosadores que
militaram em nome de alguma causa, como o pensador
católico Jackson de Figueiredo e o polemista anti-
republicano – e divertidíssimo – Carlos de Laet, e
escreve a sua “história da inteligência brasileira”.
É salutar, por sua vez, que numa nação haja um número
significante de indivíduos com inteligência ao menos
mediana, cuja formação dê estímulo ao que se produz,
ou o ecoe, e o que seja produzido venha acompanhado
de senso de dever, de prestação de contas ao leitor; que
seja algo feito para ser lido, entendido e apreciado, e
assim não se abram espaços largos aos narcisismos e
solipsismos literários de que fala o crítico Rodrigo
Gurgel nos textos que compõem seu primeiro livro,
Muita retórica – Pouca literatura (de Alencar a Graça
Aranha),
e nos espraiados em dezoito capítulos deste
que leva um título que por si mesmo é bem elucidativo,
Esquecidos
&
superestimados
.
Como esse é também um assunto de que se ocuparam
outros escritores, é inevitável que Gurgel tenha ou
antecessores ou companheiros de viagem com a mesma
percepção. Se este tem como interesse a prosa, a qual
não se restringe à de ficção, uma vez que abrange a
ensaística, a de reflexão, obras sobre história, de
filosofia etc. – mas que têm em comum o terem se
destacado bem ou mal estilisticamente –, outros há,
como Bruno Tolentino, que se dedicaram ao mesmo
assunto no exame da lírica: “De que modo dar um
sentido
mais
puro
à língua que um só homem, ou dois,
ou mesmo três, falam sozinhos?”.
[ 1 ]
Para quem acompanha os textos críticos de Gurgel,
essa é a pergunta inevitável. Em tempo, o alvo de
Tolentino foram os irmãos Campos, que, de tanto
radicalizar no que julgavam ser uma peculiaridade
literária,
não conseguiram senão eliminar “um padrão
comum de lucidez e participação”,
[ 2 ]
a cultivar assim,
em sua torre “verbicovisual”, o que “se passa por poesia
/ porque se afasta do chão...”.
[ 3 ]
Ocupando-se com
essa literatura de umbigo, afastaram-se de modo
prejudicial da tradição do verso e, ao mesmo tempo e
ironicamente, aproximaram-se dos vícios retóricos
comuns nessa mesma tradição. Ou seja, quem se volta
contra a tradição acaba de um modo ou de outro se
contaminando com o que dela há de pior, com a sua
caricatura.
[ 4 ]
E nesse complexo de Adão, os abusos
formalistas, mais a crescente desfiguração da
linguagem, com a posterior bênção acadêmica e sua
formulação em decretos educacionais, criaram o
isolamento do escritor que primeiro se ressentia de sua
marginalização e depois a tornou numa ética – com
licença da rima – de sua estética.
Contra uma prosa que se pretende literatura porque se
afasta do chão comum de cada dia é que se insurge, em
continuação ao
Muita retórica
, Rodrigo Gurgel, que
denunciou a cumplicidade da própria crítica literária
nesse vício:
O crítico e historiador [Sérgio Buarque de Holanda] lastima-se pelo
fato de Oswald de Andrade e Clarice Lispector não terem intensificado
seu experimentalismo nas obras que se seguiram a
Serafim Ponte
Grande
e
Perto do coração selvagem
– e, defendendo a prevalência da
técnica sobre a mensagem, aponta, em Coelho Neto, a falta de uma
“moldura adequada”.
Ora, idéias desse tipo deságuam em dois erros, faces da mesma moeda:
menosprezam-se grandes narradores que não optaram pelo
vanguardismo
tout court
– como Buarque de Holanda faz, no mesmo
ensaio, em relação à obra de José Lins do Rego – ou condena-se a
linguagem literária à ingrata tarefa de reinventar a si mesma
permanentemente, o que produz obras passíveis de serem
compreendidas apenas por seus próprios autores ou por um seleto grupo
de iluminados – beco do qual a literatura brasileira luta para sair.

Essa é uma passagem sobre Coelho Neto, um


romancista que, segundo é observado no mesmo texto, é
o “escritor mais detestado pela crítica brasileira” e
“atingido pela fúria modernista com os piores adjetivos,
os julgamentos mais levianos” – e sobre quem
“tripudiam, até hoje, os prosélitos de Lima Barreto e
Oswald de Andrade”. Se nesse trecho o crítico acusa as
manifestações de ódio contra qualquer escritor que
lembre o passado, nesta outra passagem, dessa vez
sobre Monteiro Lobato, vemos a denúncia do mais
idolátrico filofuturismo que anima o citado ódio:
A verdade é que o escritor [com o artigo “Paranóia ou mistificação”] se
mostrou lúcido o suficiente para, cinco anos antes
da Semana de 22,
colocar-se de prontidão contra a típica maneira de proceder dos
subdesenvolvidos: acatar modelos estéticos importados, já diluidíssimos,
desgastados de sua força original, como se fossem verdades atemporais;
e aceitar de forma acrítica o que aparenta ser novo, apenas por trazer o
rótulo de vanguarda ou escândalo. Não por outro motivo parte dos
jovens escritores nacionais – e também dos não tão jovens – insiste em
reescrever o
Finnegans Wake
...

O crítico Luís Augusto Fischer


[ 5 ]
critica o desejo que
os modernistas têm de apresentar-se como marco zero
da literatura, o começo de tudo no mundo da cultura.
Ainda de acordo com Fischer, o próprio termo “pré-
modernismo” é mais uma estratégia para os modernistas
se colocarem no centro, restando aos que os
antecederam o papel de meros “Joões Batistas”.
Acrescente-se que o comentário ao termo pré-
modernismo corrobora a desconfiança de Gurgel acerca
do assunto. Em seu blogue,
[ 6 ]
anunciando aos leitores
a conclusão deste presente volume, disse ter se
debruçado sobre “livros das duas décadas iniciais do
século
XX
, período que nossos estudiosos se
acostumaram a tratar como pré-modernismo, conceito
impregnado de confusão, que se liquefaz quanto mais
estudamos os escritores ali enfiados”.
Rodrigo Gurgel, diga-se, não escreveu esta obra com o
intuito ranzinza de resgatar autores desconhecidos
contra
os escritores que se tornaram celebridades, o que
seria outra forma de manifestar a sanha de originalidade
dos modernistas, sob disfarce de arqueologia crítica.
Está se falando, sim – pautado em princípios
pedagógicos e de independência crítica, sem as
comodidades ideológicas –, de ter curiosidade por saber
o que foi produzido, de querer
saber
o que realmente
diz
o texto, e dessa maneira, como está entendido no ensaio
sobre Coelho Neto, desfazer enganos ou confusões
causadas por maledicências:
Trata-se, portanto, de desprezar o
continuum
de erros e injustiças [...],
ignorar o vale-tudo em que nossos estudos se transformam quando se
trata de defender a Semana de 22 e seus herdeiros e dedicar-se à
releitura da ampla, multíplice bibliografia que Coelho Neto nos legou, ou
seja, deixar as obras falarem.

A não ser assim, cairia no erro, ainda segundo esse


ensaio, “de escolher, para justificar sua reabilitação –
como sugere Alfredo Bosi em
O pré-modernismo
–, entre
‘uma determinada doutrina estética’ ou ‘um pensamento
estreitamente casualista’” e, dessa maneira,
condenar o escritor a permanecer na camisa-de-força em que o enfiaram
o superficialismo e o preconceito de grande parcela da academia e da
crítica literária, satisfeita no seu exercício de papaguear o que aprendeu
neste ou naquele manual, mas raramente disposta a ler, com espírito
despojado de ideologias, a produção dos autores.

Com isso chegamos ao título deste volume,


Esquecidos
&
superestimados.
Como este sugere, há de fato o que
se chamaria de resgate, o fazer-se justiça. Por outro
lado, o “superestimados” não se limita, como veremos
agora, às celebridades. Afinal, desde algum tempo
difundiu-se o hábito de superestimar certos autores por
serem desconhecidos, o qual é muitas vezes motivado
pela vaidade de se ver como o primeiro que “percebeu”
enquanto os outros estavam “cegos”, na tentativa de
construir-se uma identidade “interessante” e, de algum
modo, valendo-se do privilégio da obscuridade do que se
descobre – e também criando um ambiente de tão
infernal quanto de interminável revisionismo reativo –,
legitimar procedimentos duvidosos. Recorrendo mais
uma vez a Bruno Tolentino, o poeta percebeu esse
mesmo ardil nos irmãos Campos que organizaram os
espólios dos poetas Kilkerry e Sousândrade:
A reunião dos contorcidos e “incompreendidos” espólios de Titio Kilroy
& Vovó Sousândrade – respectivamente o Homem Torso e a Mulher
Barbada das sub-letras tropicais – mais que um consolo à solidão da
Família Adams do Beletrismo Futurista, seria um modo a mais de
torpedear a idéia mesma de uma ordem possível no acervo cultural de
um povo, especialmente uma que unisse beleza e verdade como traços
da fisionomia nacional.
[ 7 ]

José Guilherme Merquior, por sua vez, disse que


Foucault, ao dedicar-se a autores obscuros da
Renascença em detrimento aos célebres do mesmo
período, como “Leonardo, Erasmo, Rabelais ou
Montaigne, emprestou à sua obra uma áurea de
erudição que, para muitos leitores, disfarçava a sua
principal fraqueza: a notória falta de intimidade com a
rica literatura sobre os temas tratados por esses
autores”.
[ 8 ]
O filósofo Olavo de Carvalho, no
Jardim
das aflições
, fizera observação semelhante a respeito
dos
philosophes
brasileiros que, parasitando o charme
da antiguidade grega, pretenderam resgatar Epicuro
para dar legitimidade à busca tão adolescente do
“prazer” e da liberdade total, justificar o falseamento da
realidade pelas ideologias e assim
criar
um mundo sem
culpas e cuja obra, força é dizer, tinha seu interesse
mais ou menos restrito a alguns poetas libertários ou a
desocupados da época. E quem passou pelo curso de
História deve lembrar-se do volume
O queijos e os
vermes
, uma bobagem sobre a criação do mundo
elaborada por um camponês obscuro, condenado e
morto pela Inquisição, o qual só
conseguiu reputação
por ter sido um mártir do “esclarecimento” perseguido
pela Igreja, uma espécie de Manuel de Barros da gnose.
O critério de Gurgel, portanto, não é o grau de
obscuridade de que determinado autor usufrui, como de
resto já foi notado. Mas o da relevância das obras. O que
elas têm para dizer e como o dizem. Seu temperamento
conservador, portanto, não o obriga a referendar obras
de outros autores com os quais compartilha valores
comuns, e assim, quando é justo fazê-lo, não os poupa de
censuras nem atenua os termos contundentes que lhes
são dirigidos. Atesta-o a avaliação dura ao pensamento
de Jackson de Figueiredo, que é também um autor
conservador e, em seu tempo, um dos notórios
militantes católicos:
À parte (...) [o] elogiável caráter anti-revolucionário de Jackson de
Figueiredo, que o impelia a lutar em favor da legalidade e da ordem
pública, os textos descambam, muitas vezes, para uma defesa acrítica do
fascismo italiano, da ditadura de Primo de Rivera e do Integralismo
Lusitano, na figura do poeta António Sardinha. Ao enaltecer a “Ordem” e
a “Hierarquia”, Jackson de Figueiredo chega a elogiar Augusto Comte –
“gênio realmente formidável” – e Charles Maurras, desconhecendo,
presumo, o tanto de pensamento agnóstico e anticatólico que havia na
obra do líder da
Action Française
. Conseqüência fatal dessas escolhas,
é possível entrever laivos de anti-semitismo ao menos em dois artigos.
[
9]

Essa contundência se prolonga em observações


negativas a respeito dos meios expressivos:
Há méritos, sem dúvida, em apresentar aos brasileiros, por exemplo, a
obra de Auguste Viatte, mas Jackson de Figueiredo o faz numa
linguagem que está sempre pronta a cair no elogio fácil e no
circunlóquio, tão caros à retórica nacional [...].
Venerador do advérbio “máxime”, repetido de forma cansativa, e de
longas citações em francês, típicas do eruditismo que até hoje nos
assedia, Jackson de Figueiredo não tem a vivacidade e a ironia do
católico e anti-republicano Carlos de Laet. Seu texto enfada [...].

E comungando com a escritora católica Flannery


O’Connor, por ele citada, que diz de certos escritores da
mesma religião serem “extasiados com sua condição
cristã, esquecem sua natureza de escritor”:
Jackson de Figueiredo defende uma idéia doutrinal de literatura: se
acerta ao dizer que “mais larga que a categoria do belo é a do bem”,
erra ao proclamar a “absoluta superioridade da obra de arte católica em
relação a qualquer outra obra de arte”.

O que está em perfeito acordo com o que Lúcia Miguel


Pereira escreveu em 1934:
Nada afasta mais a religião, nada dificulta mais o entendimento da
psicologia do crente do que os romances ditos de piedade: deveriam ser
proibidos às meninas sabidas dos colégios de freiras; essa humanidade
insossa, com bons sentimentos em lugar de sangue, é, do católico de
carne e osso, uma caricatura escandalosamente empobrecida, retocada,
adoçada, inconsistente. A encruzilhada sempre perigosa e sempre
renovada do bem e do mal – a grande tentação e a grande aventura
cristã – não é nos livros virtuosos que se encontra.
[ 10 ]

Com isso Rodrigo Gurgel não apenas mostra as


fragilidades também presentes nas produções de quem
batalha no mesmo lado, bem como sua obra é uma
advertência aos críticos conservadores – pelo bem da
causa que defendem – para não cometer os mesmos
erros dos adversários, i. e., corromper os meios sob
pretexto de construir um mundo melhor, posto que seja
um mundo onde todos são cristãos e conservadores.
E para terminar essas digressões, Rodrigo Gurgel
também avalia a qualidade das idéias e suas implicações
morais, e desse modo o crítico é temperado pelo
moralista, não um moralista segundo algumas definições
viciadas que aparecem em vários escritos mundo afora e
atingiram os dicionários, corrompendo o sentido original
da expressão, como o faz de forma tão primária Evanildo
Bechara no dicionário que leva seu nome: “Que ou quem
adota um critério moral rígido”[sic],
[ 11 ]
não
escapando certa insuficiência da edição brasileira de
Aulete: “Que ou o quem escreve sobre moral, que trata
de moral, que preconiza preceitos de moral”
[ 12 ]
e sim
mais de acordo ao
moraliste
do dicionário
Larousse
:
“autor que escreve sobre a moral, a natureza e sobre a
condição humana”
[ 13 ]
ou, como bem disse o editor
José Mário Pereira a respeito de Bruno Tolentino, “
moraliste
, na linhagem cristã de um Pascal, um
Kierkegaard, um Tolstoi”.
[ 14 ]
Mas por que deveria um
crítico literário se ocupar de assuntos morais? Antes
leiamos o que escreveu Merquior:
Nos parnasianos, nos narradores naturalistas, prevaleceu
constantemente o velho fundo pirotécnico, gratuitamente exibicionista,
da infância “gongórica” das letras ibero-americanas. Os primeiros fazem
espocar o verso opulento, mas oco; os segundos alardeiam sem maior
significação as teses científicas em voga. É que a ascensão da classe
média pela literatura parece ter-se inconscientemente pautado pelo
antigo
ethos
senhorial, antipragmático e ornamental. Ascendendo
socialmente pelo domínio das técnicas de expressão, o escritor esposava
sem saber
valores hidalguistas: valores de uma aristocracia ociosa,
estranha ao gesto funcional. Idéias e formas passaram então a ser
manipuladas por si, sem a preocupação de fazê-las ferramentas de uma
visão crítica do real.
[ 15 ]

Sem senso moral, sem conhecimento da natureza


humana, como seria possível fazer avaliação tão acurada
a respeito da doença retórica denunciada por Rodrigo
Gurgel em sua obra, apresentando-lhe a raiz? Não se
está falando afinal de questões morais que
determinaram de modo definitivo uma literatura e
pensamento? Quando Lúcia Miguel Pereira diz
“respeitamos demais a palavra, expressão da idéia, para
vê-la desperdiçada, arredondando períodos”
[ 16 ]
não
está a um só tempo fazendo crítica literária e assumindo
uma posição moral? O papel do crítico de separar o joio
do trigo, de descobrir e apontar qualidades ou defeitos
de obras e dizer por que tal livro deve ser lido, não
depende antes de um posicionamento moral que se
revela em qualidades igualmente morais como
honestidade e coragem? Os recursos retóricos de que se
valem certos autores para disfarçar o vazio das idéias
não são uma atitude moral, na qual se podem revelar o
medo, o senso de conveniência ou a vaidade, que
também são sentimentos morais? O retrato corrosivo
que Machado faz da humanidade é apenas uma atitude
literária? Será que ele gostaria que a filosofia subjacente
a suas narrativas fosse ignorada? Será que Aluísio de
Azevedo ou Eça de Queirós gostariam que fosse
ignorada para o bem da estética a visão determinista
que anima seus romances e muitas vezes exposta – vide
o final de
O cortiço
– com indisfarçável sadismo?
Não há, pois, como escapar ao fato de que o exercício
da crítica é, sim, uma escolha e uma atividade morais
que em nada atrapalham o juízo. Ao contrário, realçam-
no. Podemos incluir nesse realce o entusiasmo, a falta
dele e a contrariedade. Chega a ser tocante a
indisfarçável alegria com que nosso polêmico autor
procura – em aplicação impressionante da técnica do
close-reading –
convencer o leitor a perceber a
dignidade e força narrativa de Júlia Lopes de Almeida ou
“enfrentar as páginas iniciais de ‘A Terra’” do livro
Os
sertões
de Euclides da Cunha, a desejar que esse leitor
experimente as mesmas sensações que ele
experimentou, de fazer uma travessia deliciosamente
difícil e que é deliciosa, entre outras razões, justamente
pelas dificuldades:
[O leitor] encontra-se dividido entre abandonar o volume ou seguir em
frente. [...] Mas questiona-se se poderá suportar a descrição de “cristais
de feldspato”, “estratos de um talcoxisto”, “formações silurianas”,
“cachopos de quartzito” e quejandos. Nesse momento, quando suas
vísceras começam a gemer, salva-o da
escuridão o narrador, abraçado à
tarefa de explicar as características climáticas, mudando subitamente a
inflexão da voz para tornar-se íntimo, lírico...

Dito isso, o esforço de impessoalidade, pela qual se


aprecia uma obra com o ar de quem finge não ser tocado
emocionalmente por ela, é pura afetação. Corrobora o
que Tolentino disse do crítico que não tem “capacidade
de admiração” e assemelha-se a um pica-pau que
introduz o bico num picolé mas sem saboreá-lo. Não é
por outro motivo que Olavo de Carvalho disse que “uma
cultura em que as regras de bom-tom são mais
relevantes do que a veracidade intrínseca dos
argumentos é uma cultura moribunda”.
[ 17 ]
E se a
imprensa ficou assustada – e o público gratamente
surpreso – com o desembaraço com que Rodrigo Gurgel
mostra seu gosto, a alegria e as contrariedades que
algumas leituras lhe proporcionam, e sem abrir mão de
rara exposição pedagógica que se traduz numa
expressão de Schlegel que lhe é muito cara, “um leitor
que rumina”, e tornando assim o seu leitor algo como
um cúmplice de suas leituras, deve-se ao seguinte
fenômeno que Olavo de Carvalho mais uma vez explica:
Nas últimas décadas, como é público e notório, a crítica literária andou
desaparecida do nosso cenário cultural, e isto é provavelmente o motivo
pelo qual a linguagem pessoal e desabrida em que se escreveram
algumas das produções clássicas desse gênero se tornou destoante no
nosso ambiente jornalístico, onde as normas de impessoalidade e frieza
que devem imperar no noticiário acabaram alastrando sua jurisdição,
indevidamente, para as páginas culturais e literárias.
[ 18 ]

Diremos, portanto, com o Apocalipse de São João:


“Oxalá, fosses frio ou quente! Mas, como és morno, nem
frio nem quente, vou vomitar-te” (3, 15-17), que ilustra
com contundência a citação acima. Que Rodrigo Gurgel
com este livro, caro leitor, não apenas lhe proporcione
uma boa leitura, bem como tire a crítica literária da
tepidez infernal e não seja mais intimidada pela boa
educação luciferina.
Jessé de Almeida Primo
Ensaísta, autor de A natureza da poesia
(Editora Tulle),

colunista de poesia da revista Dicta & Contradicta


e da

revista eletrônica LeiaTom


[ 1 ]
Os sapos de ontem
, 1995, Editora Diadorim, p. 32.
[ 2 ]
Idem
, p. 31.
[ 3 ]
Idem
, p. 81.
[ 4 ]
Fenômeno esse também percebido por Bruno Tolentino ao declarar
que os irmãos
Campos fizeram, antes de qualquer coisa, poesia
subparnasiana e deram continuidade, ainda que pela negação, ao que já
estava sendo praticado pela Geração de 45: “O espantoso, o flagrantemente
artificial, pois, não era apenas que os gaguejos futuristóides de
Noigandres
nascessem dos ainda recentes bocejos parnasianísticos e abarrocados de
três autores [i.e., Haroldo e Augusto de Campos e Décio Pignatari] em nada
distintos da pior mediocridade morna da dita Geração de 45, à qual o trio
de fato pertence em estilo, mentalidade e fôlego... não havia como perceber
diferença alguma, fosse qualitativa, fosse de dicção, vocabulário, sintaxe ou
sensibilidade, entre a fraternidade de
Noigandres
e o resto que fumegava
então do pior calibre 45. Atestava-o o estilo penteadeira-de-velha do Sr.
Augusto de Campos por volta de 1953:
“em glaromas de Amil e penubis /
(...) / com estas mornas flores de oromãs / morigerantes ou cansadas
corças”
.... (in
Os sapos de ontem
, op. cit. p.14)
[ 5 ]
“Contra São Paulo” in
Para fazer a diferença
, Ed. Artes e Ofícios,
1998.
[ 6 ]
http://rodrigogurgel.blogspot.com.br/.
[ 7 ]
Op. cit.
, 31n.
[ 8 ]
“From the prose of the world to the death of man” in
Foucault
,
Fontana Press, Londres, 1991, p. 44 (segunda edição).
[ 9 ]
Termos esses que se afinam com a observação que Gustavo Corção
fizera contra o oficialismo da Igreja na Argentina: “Como católico, solidário
com todos os irmãos perseguidos, não posso alegrar-me com o fato de uma
perseguição; mas posso rejubilar-me com o epílogo de uma impostura, com
o termo de um equívoco que é certamente pior, mais danoso do que a
própria perseguição. E é isto, é sobretudo isto que vejo nas boas, nas
excelentes notícias que chegam da Argentina. Cai a máscara do tiranete
[refere-se a Perón], que se apresentava como protetor da Igreja, e assim é
de esperar que se abram os olhos daqueles que se deliciavam com a
proteção, com aquela proteção. Contestará alguém que a veracidade seja
um lucro? Por mais penosas que sejam as conseqüências para as igrejas na
Argentina, é melhor esse sofrimento que vem da liberdade essencial da
Igreja do que a cômoda continuação de um catolicismo oficial
fundamentado na momentânea conveniência de uma política maquiavélica”.
“Perón e a Igreja”, artigo de 1954, incluído no volume de crônicas
Dez anos
, Agir Editora, 1957, p. 224.
[ 10 ]
“Romance de tese e individualidade”, in
A leitora e seus
personagens
, Editora Graphia, 1992, RJ, p. 75.
[ 11 ]
Evanildo Bechara,
Dicionário da língua portuguesa
, Nova Fronteira,
2012.
[ 12 ]
Caldas Aulete,
Dicionário contemporâneo da língua portuguesa
(5
vols., Rio de Janeiro, Ed. Delta S.A, 1965).
[ 13 ]
Dictionnaire Larrousse maxi poche
, Ed. Larrousse, 2009.
[ 14 ]
Orelhas do livro
A balada do cárcere
, de Bruno Tolentino.
[ 15 ]
“O segundo oitocentos”,
De Anchieta a Euclides: breve história da
literatura brasileira
, I, Rio, José Olympio, 1977, cap. IV, p. 108.
[ 16 ]
“O ofício de compreender”,
in
op. cit., Editora. Graphia, 1992, p.
75.”
[ 17 ]
“Carta do filósofo Olavo de Carvalho ao Sr. Editor de Cultura”,
incluído em
Os Sapos de ontem
, de Bruno Tolentino, p. 66, op. cit.
[ 18 ]
Idem
, p. 67.
São dois os portões dos sonhos destituídos de vigor:

um é feito de chifres; o outro, de marfim.

Os sonhos que passam pelos portões de marfim talhado

são nocivos e trazem palavras que nunca se cumprem.

Mas os que saem cá para fora dos portões de chifre polido,

esses trazem coisas verdadeiras, quando um mortal os vê.


Homero, Odisséia
, Canto XIX

(Tradução de Frederico Lourenço)


APRESENTAÇÃO

Este livro é a continuação de


Muita Retórica – Pouca
Literatura (de Alencar a Graça Aranha)
e reúne ensaios
publicados, entre 2012 e 2013, no jornal
Rascunho
, na
série, ainda não terminada, em que releio os prosadores
da literatura brasileira.
Nada mudou em minha visão do papel da crítica
literária, no meu método de análise ou, como afirmei no
volume anterior, citando Friedrich Schlegel, na
necessidade de, enquanto crítico, ser um leitor que
rumina.
Ao contrário, a recepção de
Muita Retórica – Pouca
Literatura
reafirmou minha intuição de que número
considerável de leitores, estudantes de Letras,
escritores e membros da academia estão cansados da
crítica que há bom tempo viceja entre nós, sempre
pronta a papaguear, com nova camada de verniz, antigos
julgamentos – ou, igualmente desolador, apenas
referendar a produção literária atual.
Assim, minha leitura prossegue na contramão,
recusando, prazerosamente, formalismo, niilismo e
solipsismo – a tríade infernal denunciada por Tzvetan
Todorov.
Rodrigo Gurgel

Janeiro de 2014
CAPÍTULO 1

À espera de justiça
– Júlia Lopes de Almeida e A falência

No tecido da literatura brasileira há um vigor que não


cansa de pulsar. São os autores esquecidos,
sobranceados pelos que, injustamente, se tornaram
famosos. Traídos pelas convenções estéticas, pelas
panelinhas que controlam os cadernos culturais e pelos
críticos obedientes a modismos, esses menosprezados
cumprem, no entanto, digno papel: o de aguilhoar o
establishment
e comprovar que, andando na contramão,
também é possível produzir boa literatura. Silentes,
preenchendo as prateleiras dos sebos ou o canto úmido
das bibliotecas, tais obras sussurram aos novos
escritores: “Não receiem tomar emprestados meus
acertos e melhores lições”.
Incluo nesse rol de livros depreciados o romance
A
falência
, de Júlia Lopes de Almeida. Se alguns erram
por nem mesmo citá-lo, outros – entre eles, Lúcia
Miguel- Pereira
[ 19 ]
– falham ao classificar a autora
como “monótona” ou destituída de estilo pessoal. Nada
pode ser mais falso em relação à escritora que nos
deixou vasta obra e teve a alegria de conhecer o sucesso
em vida.
Figuras complexas
Poucos autores nacionais conseguiram criar tramas que
se impusessem como panoramas de uma época ou de
determinado contexto social. E um número ainda menor
mostrou habilidade para dar vida a personagens
variados, que não representassem existências isoladas,
mas interagissem de forma dramática. Júlia Lopes de
Almeida alcançou essas qualidades e concedeu a
algumas de suas obras a perfeita característica do
romanesco, ou seja, um conjunto ficcional harmonioso,
em que se somam, à diversidade de tipos, peripécias,
anseios e decepções pessoais, personalidades
contraditórias e, no caso de
A falência
, o cenário da
nascente República e do Encilhamento.
Francisco Teodoro, protagonista da história, é o
imigrante português de
origem humilde que enriqueceu
graças ao esforço pessoal. Proprietário de um armazém
exportador de café, vive a euforia econômica do início da
República Velha. Critica as inovações do novo regime,
resiste à investida dos especuladores, mas, afligido pelo
enriquecimento frenético do rival Gama Torres, deixa-se
engolfar na promessa de lucros fáceis. A luta para
emergir da pobreza concedeu-lhe não apenas o gosto da
pompa, mas também um leve traço de distúrbio
obsessivo-compulsivo, o cacoete de “remexer com a mão
curta e gorda o dinheiro e as chaves guardadas no bolso
direito das calças”. Esse homem de bom coração – que
sustenta inclusive pais e irmãos da esposa, cujas cartas,
pedindo sempre mais dinheiro, não param de chegar do
Sergipe –, capaz de defender a Monarquia sem
dissimulações, é o centro em torno do qual gravitam as
demais personagens: Mário, o primogênito, esbanjador e
boêmio; Nina, a sobrinha pobre, abandonada pelo pai,
que adora Mário e cujo amor não será correspondido;
Ruth, a filha sensível, imaginosa, hábil violinista; Noca, a
mulata agregada, contadora de histórias, supersticiosa,
intérprete de sonhos; as pequenas Raquel e Lia, filhas
caçulas e gêmeas, sempre prontas a fazer estripulias;
Camila, a esposa egocêntrica e adúltera, que finge estar
resignada ao casamento sem amor; as tias de Camila,
Itelvina, avarenta e rancorosa, e Joana, devota e
bonachona; Gervásio, médico da família e amante de
Camila; Rino, tímido rival de Gervásio; e a corte formada
por amigos, conhecidos, empregados.
Cada um desses personagens possui idiossincrasias que
não surgem de forma esquemática, mas
contextualizadas, respondendo à dinâmica da trama. A
avareza de Itelvina, por exemplo, não é mero
penduricalho, mas uma compulsão que a leva a roubar
as esmolas que Joana consegue para a Igreja e, na
ausência da irmã, até mesmo apagar, por economia, a
lamparina do oratório. Bisbilhoteira, fria e arrogante,
chega ao extremo de surrar a empregada Sancha por
motivos que não passam de invenções da sua
imaginação doentia. Mas cada um dos seus gestos e
falas jamais é gratuito – ao contrário, corresponde a
determinada situação e provoca alguma conseqüência,
ainda que insignificante. Assim, no Capítulo
III
, o ótimo
diálogo entre Itelvina e Noca revela a memória
autocomplacente da primeira, que não enxerga a própria
sovinice, a ponto de transferir o drama ocorrido em sua
casa a outras circunstâncias, irreais.
A capacidade de criar pormenores reveladores,
impregnados de psicologia, é, sem dúvida, uma das
qualidades de Júlia Lopes de Almeida. Camila, salva da
pobreza graças ao casamento com Francisco Teodoro,
revela-se por inteiro nos breves comentários de
insatisfação que verbaliza, no Capítulo
II
, ao entrar,
recém-casada, no lar decorado pelo marido:
A sua maior comoção fora ao entrar em casa, na rua da Candelária.
Supusera sempre que ela apalpasse, com sofreguidão, todo o seu ninho,
na alegria de ser a dona, a senhora de tantas coisas compradas para o
agasalho do seu amor. Mas não: em vez de ir para o interior, Camila fora
para a sacada. Ele acompanhou-a.
Em frente, os telhados mais baixos sucediam-se irregulares, cortando-
se em linhas angulosas de um vermelho sujo; as casas, desiguais,
acumulavam-se, paredes ameaçando paredes, janelinhas de sótãos
espiando as telhas estriadas de limo, de onde emergiam chaminés
negras e curtas, baforando fumo.
Camila murmurava, como quem fala só:
– Se ao menos se visse o mar...
Disse; e curvava-se para a rua quando a badalada de um sino reboou
perto, formidável, prolongando-se num som que era como um gemido da
cidade inteira. Mila ergueu-se com um estremeção e voltou para o perfil
da igreja o olhar estático.
Ele sorrira do susto, enquanto ela dizia:
– Como é alto!

Tal descompasso de sentimentos só aumentará – e anos


depois, residindo no palacete de Botafogo, em que
grande parte do romance transcorre, enquanto
Francisco dorme na cadeira de balanço e a casa oscila
entre as histórias de Noca, a partida de Mário para mais
uma noitada, a brincadeira das crianças e a solidão de
Nina, a autora fecha o Capítulo
II
de maneira a
confirmar nossas suspeitas: “[...] Lá em cima, no terraço,
ao lado do marido adormecido, Camila curvou-se para o
dr. Gervásio e beijou-o na boca”.
Submissa apenas na aparência, Camila justifica o
adultério como uma resposta às traições de Francisco
Teodoro, quando recém-casado. Mas a verdade é que o
fato de sentir-se desejada por Gervásio e Rino alimenta
seu amor-próprio, sentimento ao qual se abandona com
evidente luxúria. Ser infiel, contudo, ganha outros
contornos e transborda para a forma como acoberta os
erros de Mário, mente sobre questões insignificantes e
age de maneira perdulária. Seu apego ao caso de amor é
maior, inclusive, do que a vergonha de ser desmascarada
pelo filho. E quando o amante, a pedido de Francisco
Teodoro, lhe comunica a falência, suas reações passam
por diferentes estágios: da crítica ultrajante às
acusações infundadas, da revolta ao desejo de proteger
o marido. Camila, portanto, não está condenada pela
autora a ser apenas uma esposa volúvel. Depois do
suicídio do marido, parte de sua complexidade mostra-se
na cena em que, vestida de luto, recebe de Gervásio a
chave do esquife: “[...] sentia na palma da mão a friagem
daquela chave pequenina e pesada sem saber
onde
guardá-la, com medo de a pôr no seio, achando
irreverente guardá-la no bolso”. São as dúvidas de uma
viúva fútil, mas que demonstra saber o preço que deve
pagar à opinião alheia. Meses mais tarde, quando ainda
reluta em aceitar a pobreza, após se decepcionar com
Gervásio ela enfim abraçará o real sem teatralismos,
demonstrando maturidade e resiliência.
O hipócrita e falante Gervásio Gomes impõe-se
gradativamente à família, ocupando o vazio deixado por
Francisco Teodoro, mais preocupado com os negócios.
Sob o olhar ciumento de Rino, ele não passa de um “tipo
escanifrado”, com “ar de ironia, às vezes perversa, às
vezes insulsa”. Na verdade, por trás das frases prontas e
dos rasgos de ácido humor há o homem cético, o esnobe
que também foi traído pela esposa. Gervásio nos provoca
repulsa, mas é impossível não rir dos seus comentários
cheios de afetação, como este, quando pretende
redirecionar os interesses musicais de Ruth: “Chopin é
um músico perigoso, minha filha; é um torturador, um
excitador de almas. Contente-se com os seus clássicos,
mais sadios e mais frescos”. Ele incorpora, de maneira
crescente, a tarefa de refinar os gostos da família de
Camila – e suas intromissões não conhecem limite:
Ele agora demorava-se no palacete dias inteiros. Fora ele quem
determinara a transformação de duas alcovas inúteis em uma sala de
música, em que essa aplicação fosse indicada por pinturas a fresco: foi
ele quem contratou artistas, quem escolheu mobílias novas e
harmonizou o conjunto em todas as peças. Tudo que saía das suas mãos
parecia a Camila perfeito.

A família vive, assim, de forma promíscua, aceitando a


autoridade do amante, cujas ordens podem descer a
detalhes:
Entretanto, o dr. Gervásio perguntou a Mila:
– Seu marido está melhor?
– Não sei; anda amofinado... Sentiu muito o casamento de Mário. Ele
não quer que se diga que está doente. E efetivamente não está. Não sei
o que é aquilo.
Gervásio calou-se, pensativo. As gêmeas começaram a rir, uma da
outra.
– Viu que bonito cróton está no vaso da entrada, doutor? – perguntou
Ruth ao médico.
– Vi. O cróton é bonito, o vaso é que é medonho. Tirem aquele vaso de
alabastro dali, ou eu não volto cá.
– Acha feio?
– Horrível.

Joana será a única a enfrentá-lo, quando o encontra,


por acaso, num bairro da periferia. Depois de ouvir as
censuras, o amante se revolta:
[...] Sentia-se colado de espanto àquele chão poeirento. Os seus
amores, que ele julgava bem ocultos, tinham varado as sacristias e ido
do Botafogo elegante até aos casebres do Castelo e da Conceição! Quis
desmentir a velha; mas os seus olhos claros, de um castanho louro, não o
deixaram falar, cortando-lhe pela raiz qualquer protesto. Ela não falara
só pela boca, que a tinha sincera; mas também pelos olhos, em cuja
limpidez aparecera toda a verdade.
O médico viu-a, com ódio, ir arrastando, na sua peregrinação de fé, as
pernas inchadas, rebolando os quadris largos, bem fornidos e que ainda
os franzidos da saia exageravam.
Apressou-se em voltar-lhe as costas, com medo que ela tornasse, para
lhe dizer ainda alguma coisa do pecado.

Mas, tão fútil quanto Camila, sua indignação é falsa,


pouco resiste:
Cansado, nervoso, picado pelo sol, o dr. Gervásio seguiu à toa, desceu o
morro, andou pelas ruas, mal respondendo aos cumprimentos dos
conhecidos, que ia encontrando à proporção que se aproximava do seu
centro habitual. Já nada do que vira e o impressionara naquele giro, se
lhe esboçava na lembrança. Aquelas riquezas, aquele movimento,
aquelas casas, aquele rumor de população atarefada, baixa e mesclada,
aquelas altas ruas despenhadas em escadarias imundas e barrancos,
tudo se dissipava e se fundia numa impressão de mar e de lixo, de onde
surgia a voz melada, untuosa da tia Joana, oferecendo promessas,
confidenciando com estranhos sobre os seus amores e os seus adorados
segredos.
Uma raiva surda roncava-lhe no peito, quando chegou à rua do
Ouvidor.
Veio-lhe então em cheio o aroma das flores frescas, à venda na esquina;
e a graça de uma mulher que passava com um chapéu atrevido e um
vestido bem feito, distraíram-no um pouco...

Não há, portanto, em


A falência
, nenhuma personagem
destituída de variado conjunto de atributos. Até mesmo
o secundário Negreiros é presenteado com momentos
em que pode revelar seu caráter. Já decretada a falência,
ele e Francisco Teodoro se encontram. Enquanto o
segundo aguarda o bonde, um cupê passa, levando
Inocêncio, o banqueiro que arruinara o exportador de
café. Há um rápido diálogo:
Francisco Teodoro nem tocou no chapéu e murmurou com ódio:
– Cão!
– Vai para a Europa... segue diretamente para Londres, num paquete
da Nova Zelândia, amanhã.
– Com o meu dinheiro...
Negreiros engoliu uma palavra qualquer, afagou o nariz e depois,
corando um pouco, aproximou-se mais de Teodoro e murmurou:
– Se precisar de mim... os amigos são para as ocasiões...
Francisco Teodoro estremeceu e apertou-lhe a mão com força; houve
nos olhos de ambos como que o brilho passageiro e eloqüente de uma
lágrima. Vinha um bonde; o negociante tornou a sacudir em silêncio a
mão de Negreiros e partiu.

O narrador não deixará de observar que, dias depois,


antes de seguir para o velório, “Negreiros levou a
carteira cheia, pensando em fazer o enterro”.
Diálogos e descrições
Os aspectos positivos de
A falência
não se esgotam na
psicologia dos personagens – da qual, aliás, demos
poucos exemplos. Há ótimos diálogos, plenos de fluidez
e naturalidade; e descrições abrangentes – que não
negligenciam nenhum aspecto do real –, nas quais há
espaço para cores, movimentos, aromas, sensações. A
abertura do Capítulo
I
é clássica:
O Rio de Janeiro ardia sob o sol de dezembro, que escaldava as pedras,
bafejando um ar de fornalha na atmosfera. Toda a rua de S. Bento,
atravancada por veículos pesadões e estrepitosos, cheirava a café cru.
Era hora de trabalho.
Entre o fragor das ferragens sacudidas, o giro ameaçador das rodas e
os corcovos de animais contidos por mãos brutas, o povo negrejava
suando, compacto e esbaforido.
[...] Um carroceiro, em pé dentro do caminhão, onde ajeitava as sacas,
gritava zangado, voltando-se para o fundo negro da casa:
– Andem com isso, que às onze horas tenho de estar nas Docas!
E os carregadores vinham, sucedendo-se com uma pressa fantástica,
atirar as sacas para o fundo do caminhão, levantando no baque nuvens
de pó que os envolvia. Uns eram brancos, de peitos cabeludos mal
cobertos pela camisa de meia enrugada de algodão sujo: outros negros,
nus da cintura para cima, reluzentes de suor, com olhos esbugalhados.
Ao cheiro do café misturava-se o do suor daqueles corpos agitados,
cujo sangue se via palpitar nas veias entumescidas do pescoço e dos
braços.

Da balbúrdia que se desenrola na rua, o narrador nos


leva ao interior do armazém, chegando ao “extenso
porão”,
sem janelas, ladeado de sacos sobrepostos e adornado nas vigas sujas do
teto por infinita quantidade de teias de aranha, enredadas, como longas
sanefas viscosas de crepe russo.
Para depois subir ao escritório, onde encontramos o
proprietário, Francisco Teodoro:
Toda a sua pessoa ressumava fartura e a altivez de quem sai vitorioso
de teimosa luta.
Gordo, calvo, de barba grisalha rente ao rosto claro, com os olhos
garços tranqüilos e os dentes brancos e pequeninos, tinha um belo ar de
burguês satisfeito.
Não era alto e quando andava fazia tremer a casa, tal a firmeza dos
seus passos pesados.

Problemas
A falência
, contudo, apresenta alguns traços
naturalistas e muitas vezes resvala para um romantismo
sentimentalóide – a pior escolha talvez seja comparar os
olhos de Camila a “duas nascentes de agonia, choravam
sem cessar”.
Mas há outros elementos que destoam do conjunto. Em
certos trechos, o tema do feminismo se desvincula da
narração, ganha vida própria, e torna-se mero discurso
panfletário. Em outros, o narrador exagera no
cromatismo e acaba por criar pinturas de mau gosto:
Ao longe, a Serra dos Órgãos desenhava no céu os seus contornos de
um azul de ardósia. Para os lados da barra havia montes de prata fosca
em que o sol, cintilando nas pedras, escorria laivos de prata polida, e
rochedos cor de violeta espelhavam-se nágua; entre montanhas de um
verdor intensíssimo.

Júlia Lopes de Almeida chega, inclusive, a repetir


algumas figuras, insistindo na presença dourada do sol,
no azul de tons variados, na vespa solitária que, perdida
no aposento, ressalta o silêncio, nas cigarras a cantar
enquanto a ruína se instala, no personagem que
caminha e aproveita para refletir... É como se, de
repente, ela esquecesse os múltiplos recursos de que
provou ter domínio. E se tivesse controlado um pouco o
seu narrador, principalmente quando ele desanda em
divagações infantis ou sente-se obrigado a bordar com
razões e filigranas tudo que vê, teria feito um benefício
ainda maior à nossa literatura.
De qualquer modo, quando terminamos o livro torna- se
ainda mais inacreditável que péssimos autores – como
Franklin Távora, Adolfo Caminha ou Afonso Arinos
[ 20 ]
– continuem recebendo elogios,
enquanto Júlia Lopes de
Almeida, passado mais de um século da publicação de
A
falência
, ainda não mereceu profunda e extensa
releitura.

[ 19 ]
Em
Prosa de Ficção (De 1870 a 1920)
, 2ª edição, revista, Livraria
José Olympio Editora, Rio de Janeiro, 1957.
[ 20 ]
Escritores analisados em
Muita Retórica — Pouca Literatura (de
Alencar a Graça Aranha)
, Vide Editorial, 2012.
CAPÍTULO 2

Escondido e desprezado
– Emanuel Guimarães e A todo transe!...

A todo transe!...
é um tipo peculiar de
roman à clef
: à
parte o fato de pertencer a certo elogiável grupo – no
qual encontramos, por exemplo,
Os Buddenbrooks
ou
O
sol também se levanta
–, a obra de Emanuel Guimarães,
publicada em 1902, permanece atual não apenas graças
às qualidades literárias, mas porque sua “chave”,
passados mais de cem anos, pode ser encontrada em
Brasília ou nas assembléias estaduais, como se os
políticos encobertos pelas personagens ainda estivessem
vivos, cadáveres embalsamados por meio de alguma
técnica miraculosa, capaz de mantê-los respirando e,
principalmente, cometendo os mesmos delitos.
De fato, a semelhança entre o romance e as piores
páginas do noticiário político chega a ser assustadora,
mas não devemos nos prender a tal característica, pois
ela apequena as virtudes desse livro injustamente
esquecido, que nos ensina como a ficção pode descrever
não só uma época, mas, partindo de fatos mesquinhos,
retratar a índole duradoura da classe dirigente e a feliz
alienação do povo.
Não por outro motivo, aliás,
A todo transe!...
foi expulso
das nossas histórias literárias, escorraçado das
antologias e banido das livrarias: o brasileiro é
condicionado, sempre e cada vez mais, a enganar-se
quanto a seus defeitos e qualidades, travestindo-os por
meio do sentimentalismo, da farra, da autocomiseração
ou do comportamento ufanista. O que é o Carnaval,
senão a exasperação da tristeza e da derrota? E a
crescente hegemonia do marxismo – inclusive, é claro,
na crítica literária – só agravou o problema: para a
esquerda, o brasileiro, olhando-se ao espelho, deve ver
não a realidade, mas a utopia – a idéia benévola que faz
de si mesmo.
O romance de Emanuel Guimarães vai na contramão
dessa cultura. Se há idealismo, está somente nas falas
de Andrade e Melo, o deputado monarquista – o último
deles; ou o último que tem coragem de se afirmar como
tal. Desviando-se do óbvio e da ilusão,
A todo transe!...
é
um panorama dos bastidores da política e das regiões
mais escuras do coração humano. Um romance sem
ideais, mas que recusa o sarcasmo machadiano, pois seu
narrador sabe diferenciar o certo do errado, o bem do
mal.
Teoria do engrossamento
A perfeita definição da política, o narrador a coloca na
boca do velho deputado Soares, experiente mas de
poucas luzes, que assim explica ao novato Júlio César
Betarry, protagonista do romance:
Isto de política é um ofício como outro qualquer: um homem, como o
visconde de Mauá, que tem idéias grandes de progresso, é um perfeito
imbecil ao lado de um lorpa como o Jotajota, que ganha dinheiro em jogo
de câmbio e de bichos; aos olhos do mundo este vale muito mais que
aquele. Na política é a mesma cousa: quem tem idéias, quem quer ser
estadista cai no ridículo e na miséria; político é o Juca Lima [líder do
governo na Câmara Federal]: é o rei do Brasil, nem sabe ler, não sabe
nem quer saber senão de bobagens.

Ao que Betarry, rindo, pergunta o motivo de manterem


Juca Lima na liderança, se realmente todos pensam
assim. Impassível, Soares responde: “[...] Ora, porque
ele é o ideal do político, nulo de inteligência, fácil de
moral e prático de eleições”.
A visão crua de Soares voltará logo a seguir, quando
Betarry, inebriado pela vida no Rio de Janeiro (até então
era um obscuro representante na assembléia estadual
mineira), percebe que os deputados, diferente do que
sempre imaginara, “apenas saíam do parlamento
procuravam afugentar todas as idéias que dissessem
respeito à sua profissão”. Surpreso com os temas dos
diálogos – “mulheres, o escândalo do dia, o pagode de
amanhã” –, com as rápidas sessões da Câmara, em que
nunca se discutia realmente, e com a visita diária a
teatros, clubes e prostíbulos, Betarry questiona o velho
deputado, que lhe responde na voz do narrador:
[...] O governo era o governo, a ele é que incumbia de trabalhar;
quando surgia uma questão qualquer, o partido, o
leader
os convocava
para uma reunião onde se dava a cada qual o papel a representar;
quanto a ele, era apenas um número, um voto; não tinha outro mister:
sim ou não, conforme lhe diziam. Muita vez discordava do que se fazia:
mas para que buscar embaraços e maçadas quando as tinha já tantas
involuntariamente? Aquilo tudo era uma pachouchada: eles entendem lá
de governo? Mas estão de cima, são quem manda: querem assim? Sua
alma, sua palma! Se essa bambochata desse em droga, ao menos ele não
teria remorsos
de haver sido o causador, nenhuma responsabilidade lhe
poderia caber nos acontecimentos, eram todas dos que mandavam.

Loureiro, outro deputado, da mesma roda, apresenta


justificativas mais elaboradas – e não menos cínicas –,
para assim concluir:
[...] Ajunta que a vida é curta, o voto popular incerto quanto o bel-
prazer do governo. Ora, hei de eu perder meu tempo de deputado eleito,
com alfarrábios e estatísticas, trocar pela eloqüência dos algarismos,
muito cacete, muito trabalhosa, muito falsa e muito pouco eficaz nos
ânimos, a minha bela e fácil eloqüência, do verbo agradável, oco, de
inevitável efeito, e de absoluta inanidade, em vez de aproveitar
enquanto o Brás é o tesoureiro? E sacrificar-me estupidamente, à toa,
porque o meu embrutecimento não redundaria em benefício nem meu
nem de ninguém? Então pensas que nós é que fazemos a política? A
política é que nos faz a nós, quem a faz é a arca onipotente da rua do
Sacramento [à época, endereço do Tesouro Nacional], quem faz a esta é
o café e a borracha, que são as duas tetas do Estado [...].

A essas explicações, destituídas de eufemismo, o


próprio Betarry, depois de eleito à Câmara, somará
outras, adquiridas em rápido aprendizado. Na carta que
escreve ao cunhado – Fabiano de Alencar, fazendeiro e
chefe político em Juiz de Fora –, responsável por seu
ingresso na vida política, o novo deputado federal
comemora o resultado das urnas e desculpa-se por não
ter visitado a cidade nem mesmo durante a campanha:
[...] Para que iria eu lá? Tinha-te a ti como patrono, e sobretudo, não
me queiras mal, tinha a promessa do ministro: ainda quando eu fora
nascituro, com tal garantia sairia eleito; para que deixar isto aqui, este
Rio de Janeiro onde me prendi douda, doudamente?...

A essa lição – sucinta e esclarecedora – a respeito do


sistema eleitoral da República Velha, Betarry adicionará
outra, na qual elucida a técnica para se criar
notabilidades, aperfeiçoamento do puxa-saquismo:
[...] A palavra
engrossamento
, hoje em moda, é característica da
época. Hoje não se adula, não se lisonjeia, nem mesmo se bajula: hoje
engrossa-se
: aqueles vocábulos eram mais finos, aplicavam-se a um
certo ato, no fundo ignóbil, mas que se praticava como que envolvido em
panos quentes, às ocultas: hoje o ato é o mesmo mas sem cobertas, às
escâncaras, tão ignóbil no fundo como na aparência, e por isso a gíria
popular criou o
engrossa
, palavra indecente, obscena, como a cousa que
representa [grifos do autor].

Didático, Betarry esmiúça o tema, usando como


exemplo o ministro da
Indústria, Viação e Obras
Públicas, o médico Jerônimo Moreira, seu protetor, a
quem chama de “nulidade” por ter produzido um “plano
geral de viação para o Brasil” capaz de estupidificar
seus leitores:
[...] Ele quer ser engrossado, exige o engrossamento constante, perene,
criou o engrossamento para uso próprio, hoje vive dele. [...] O tal plano
de viação geral do Brasil foi levado aos cornos da lua: o Clube
Politécnico não hesitou em declarar que a salvação do país está na
realização daquela monstruosidade. Não te assustes: ninguém acredita
nisso; os membros do Clube são os primeiros a se admirar de como um
homem pôde imaginar tanta asneira; mas houve engrossamento

Ite,
missa est
. Tenho refletido muito neste fenômeno: um homem galga por
acaso uma posição social: os competentes, que precisam dele, começam
a engrossá-lo, aos poucos o povo se capacita que o engrossamento é a
verdade, e o cujo passa a notabilidade; depois os acontecimentos entram
a demonstrar-lhe a ignorância palpável, os engrossadores lhe a revelam,
o povo lhe ri às barbas; o engrossado tornou-se sabedor. Ninguém mais
persuadirá ao país que o Dr. Jerônimo Moreira, ministro da Viação, é o
que ele é, uma ignorância forrada de presunção catedrática: está
consagrado. [...]

São os fatos que prevalecem até hoje, caso acreditemos


nas informações da mídia, em certas pessoas escolhidas
para cargos de confiança e no perfil desolador dos
eleitos, com os agravantes típicos das democracias
representativas, cujos vícios não enumeraremos aqui.
Linguagem e primitivismo
Mas se desconsiderarmos o contagiante pessimismo
que brota dessas linhas, veremos, a sustentar o enredo,
a linguagem fluida, espontânea, em grande parte
coloquial – que se submete, infelizmente, à retórica em
alguns trechos –, capaz de recriar, além das falcatruas,
dos bastidores do jogo político, a vida social carioca do
início do século
XX
, o crescente desenvolvimento da
cidade. Linguagem hábil em descrever o comportamento
da massa ou a vida íntima das classes sociais que tinham
acesso ao poder, com seus dramas, traições,
imoralidades.
Aos 31 anos, quando publicou
A todo transe!...
,
Emanuel Guimarães tinha absoluto controle da sintaxe,
dos meios de expressão oferecidos pela língua,
construindo um estilo muito distante dos períodos quase
telegráficos que encontramos na literatura
contemporânea, reflexos não de uma opção estética
consciente, mas, em grande parte, da nítida insegurança
dos escritores. Um breve parágrafo, simples descrição
do
hall
da residência de Joca, a amante do ministro
Moreira, mostra como a estrutura frasal pode refletir a
emoção intensa, a confusão que o
reencontro de Betarry
– por quem permanece apaixonada, passados vários anos
– provoca nessa mulher; e também a perfeita idéia de
movimento, dos personagens que se deslocam para o
interior da casa:
Um vestíbulo pequeno, com um cabide esguio, do espelho estreito e
comprido de cristal grosso, onde ela dependurava o chapéu de Júlio
César e depunha-lhe a bengala, flanqueado de três portas, das quais
uma fronteira à da entrada, abria-se, por trás de um reposteiro espesso
de seda desmaiada, dum tom brando de folhagem seca, para a sala de
visitas, onde Joca ia fazendo-o entrar, quase arrastando-o.

Emanuel Guimarães mostra-se igualmente feliz na


descrição das personalidades, às vezes estendendo-se
em demasia, mas sempre conseguindo uma frase que
sintetiza o personagem. De Jerônimo Moreira, ressaltará
sua “nulidade empertigada”. Sobre Juca Lima: “Sua
própria nulidade fora seu melhor título: sem passado,
sem opiniões divulgadas, era o tipo por excelência do
constituinte desejado”. Pimenta, um intendente
municipal, promotor de festas quase diárias em sua casa
– em relação às quais Soares dirá estarem “num ponto
em que ninguém sabe onde começa a prostituição e
acaba a honestidade” –, surge como um tipo hediondo:
Crivado de cicatrizes de bexigas, o bigode falhado, as faces
rechonchudas, ele tinha o aspecto dos sórdidos gozadores, desses
rebotalhos sociais que em épocas críticas sobrenadam, mancos de senso
moral, legião torpe que devora a cousa pública sem rebuço e clamam
com um muxoxo cínico: depois de mim o dilúvio.

E o narrador se mantém inflexível ao apresentar o falso


luxo da residência que Pimenta divide com as filhas:
[...] Tudo aquilo pequenino, guarnecido de uns móveis efeminados,
bonitinhos, móveis de fancaria, casquilhos, de uma graça luxenta de
quem quer e não pode. [...] Em tudo transluzia a dificuldade que
atribulava constantemente a existência daquela gente, curta de
recursos, larga de usanças.
Os diálogos merecem especial atenção, pois estão
repletos de indiretas e ironias, ferinas ou não, trocadas
entre companheiros de partido e suborno ou inimigos
que se suportam em nome da convivência quiçá
democrática. Uma seqüência de falas entre personagens
pode ser construída utilizando-se o coloquialismo típico
dos rápidos encontros entre conhecidos, plenos de
comentários airosos ou divertidos, entremeados por
rápidas cenas urbanas, que dão vida e autenticidade à
história. Veja-se, por exemplo, no Capítulo
V
, o longo
trecho em que os personagens se deslocam pelas ruas
centrais do Rio de Janeiro, encontrando-se e despedindo-
se, interrompidos pelos bondes, pela massa que se
desloca, por figuras que se aproximam, agregando-se
temporariamente ao grupo, enquanto o narrador capta
os gestos, as expressões, o burburinho. Então, quando
percebemos, estamos no centro dessas conversas
ligeiras, ouvindo vozes dessemelhantes, tomando
consciência de suas peculiaridades; entramos com eles
numa joalheria e assistimos ao fútil quinteto operístico
expor sentimentos diversos, mas formando um todo
harmônico, coerente. Mais que o perfeito controle dos
elementos da frase, construir cenas desse tipo requer
sensibilidade, vivência, argúcia.
Observem como Emanuel Guimarães, indo além do
diálogo, acrescenta verossimilhança à descrição da rua
do Ouvidor – encaixa um incidente curioso, que reforça o
descompasso entre a paisagem urbana rústica e o
aparente progresso, salientando a conhecida negligência
brasileira:
O sol caindo sob a Cidade Nova deitava os raios oblíquos, e as casas
altas sobre a estreiteza da rua banhavam-na em sombra amena,
bruscamente cortada, nas esquinas das ruas transversais, com uma
mancha dura de claridade. As bandeiras, permanentes nas sacadas dos
prédios, ondulavam com a viração agradável que soprava do mar, e no
movimento daquelas fraldas largas dos pavilhões desbotados, de cores
mortas pela exposição constante à atmosfera, roçando penosamente nos
arcos de bicos de gás de lado a lado na rua, desprendia-se um
característico ar de rudez primitiva, como que prolongando e
acentuando o contraste estranho entre as edificações da rua e as
vitrinas, do povo imenso grulhando e o exíguo espaço da calçada,
estrambótica com os esgotos em meio, a mescla indizível de civilização e
barbaria que ressumbra da rua do Ouvidor.
De súbito, a gente toda que acercava a esquina da rua da Quitanda,
alvoroçou-se, e uma nuvem densa de poeira levantou-se.
– Que diabo! Exclamou Garcia tapando o nariz com o lenço e atirando-
se para o lado oposto. Isto é um desaforo! Em plena rua do Ouvidor, a
estas horas.
Era uma carrocinha cheia de terra, puxada à mão, que dous
trabalhadores tinham naquele instante virado à entrada do andaime de
uma reedificação ali, na esquina. A terra fina produzira um pó alvacento
que toldava o ar, sufocando. [...] Andrade e Melo puxou do lenço e
espanou a poeira que lhe enxovalhara a roupa.

Essa crítica de Guimarães ao progresso destituído de


civilização retorna em diferentes momentos. O narrador
faz Júlio César Betarry ver a rua do
Ouvidor como um
símbolo da “aversão hedionda e indomável” que o país
tem “pela beleza, pelo conforto, pelo polimento”,
observando, com repulsa,
a rua abjeta com as vitrines repletas dos mais requintados lavores da
indústria moderna, no contrassenso dos luxuosos vestuários, roçando
podridões amontoadas pelas sarjetas, na imoralidade das fachadas
ornamentadas com os fundos internos pestilentos, na tristeza da
aparência civilizada com a realidade selvagem e primitiva, símbolo
mordaz do povo todo pompeando com a fama de suas grandezas e
esbofado de miséria íntima, encurralado nos costumes grosseiros,
lembrando o caipira de pé descalço e enfiados no varapau os sapatos
que calça à entrada da vila, para assistir à festa!

Se essa visão das contradições do Brasil urbano não


fosse assumida pelo narrador, não poderíamos confiar
nas impressões de Betarry, pois ele é o protótipo do
político desleal e fingido – e não é minha culpa que esta
última expressão tenha se tornado um pleonasmo.
Fantasmas
A construção psicológica do protagonista – e dos
demais personagens – é outro mérito de Emanuel
Guimarães. Fazendo perfeito corte na narrativa, ele
abandona o Betarry que acabara de chegar à capital e
volta no tempo, a fim de mostrar a formação, no
Capítulo
II
, desse jovem interiorano que olha todos com
arrogância e compara os políticos a prostitutas. Filho de
um descendente de ciganos que se torna criador de
porcos, Júlio César forma-se, com brilhantismo, na
antiga Escola de Minas, em Ouro Preto. O prenúncio de
sua ambição já se encontra no universitário que “não
estudava por amor ao estudo, mas pela satisfação de
orgulho que o estudo lhe proporcionava”. Isolado, sem
amigos, mantendo “apenas as relações de camaradagem
forçada pela pequenez do meio social”, logo percebe que
apenas a política lhe permitiria erguer a cabeça acima
da pobreza:
Viu que ela dá tudo: por ela, salientando o indivíduo, galgam-se as
posições iminentes e dominadoras, e a importância que se adquire ou os
proventos que se pode auferir dela, abrem de par em par todas as portas
de todas as satisfações.

Escolhido orador da turma, os temas do discurso


formam a síntese do pensamento que norteará sua
carreira: Darwin, Nietzsche e um visceral anti-
cristianismo. Para nossa surpresa, contudo, os sonhos
morrem ao primeiro golpe da realidade – e ele se
transforma num funcionário público medíocre.
Apaixonado pela trapezista do circo que se instala na
cidade – a mesma Joca que o reencontrará no Rio de
Janeiro –, seu pai o impede de fugir com a jovem. O
cunhado leva-o, então, para sua fazenda, onde Betarry
rapidamente esquece a aventura. Sob circunstâncias
favoráveis, acaba escolhido pelo parente para derrotar,
no interior do partido, um representante da oposição. É
o primeiro passo para ser eleito deputado estadual. A
partir desse ponto, o que vemos é sua crescente e
insaciável ambição. Famoso e respeitado na província,
sonha com mulheres fantasiosas: “[...] Ele aspirava
acorrentar após si, como uma teoria de lânguidas
vitórias, inúmeras amadas umas após outras, suplicantes
em torno dele, impávido, coroado de glória e amor”.
Este é Betarry, pronto a ser objeto de adoração, mas
jamais disposto a amar verdadeiramente. E, na política,
suas posições se definem não segundo princípios ou
certezas, mas por obediência à cupidez:
A única possibilidade que ele entrevia eram as futuras eleições
federais. Mas três longos anos ainda o separavam daquele prazo fatal e
o ardor que lhe fervia no peito não se padecia com tal demora. Do
estado d’alma que lhe formou aquele desequilíbrio entre o que possuía e
o que almejava, resultou-lhe uma aspereza no trato que inflamou a
campanha de oposição que combatia contra o governo.
Um azedume o enfebreceu contra tudo e contra todos.

Inseguro, imaturo, Betarry avança às apalpadelas. Na


capital da República, seduzido pelas festas e pelo
meretrício, continua, no fundo, o envergonhado mineiro.
Ganha importância, sim, não pelas qualidades de
articulador, mas por servir às pessoas certas, estar à
mão, com sua vibrante oratória, pronto a agir enquanto
marionete. Durante a madrugada em que caminha ao
lado de Andrade e Melo, ouve a fala repleta de
indignação do ético deputado monarquista – mas recebe-
a como estímulo para sua própria desonestidade. E ao
reencontrar Joca, aceita possuí-la não em nome dos
sentimentos passados, mas, obedecendo ao desejo de
grandeza, por ela ser amante do ministro – de quem,
aliás, corromperá a esposa. Assim, finalmente alcança
fama e conquista mulheres. Mas ainda lhe falta riqueza.
Na manhã seguinte à de sua primeira noite com a
esposa do ministro, só consegue ver o quanto outros são
mais ricos que ele:
E enquanto ele ia-se vestindo às pressas, seus olhos erravam da cama
de ferro, com lençóis de cretone, à colcha grosseira de algodão branco,
para o lavatório de vinhático com o espelho já todo sarapintado, o aço
desfeito pelo ar salitrado do mar, as duas cadeiras de palha velhas, o
sofá de
reps
safado, e suas roupas dependuradas em pregos pelas
paredes, e o baú de couro peludo com as tachas de
metal, tudo pobre,
pobre, pobre, pobre! Em vez disso, o ministro, lá nas Laranjeiras ou na
praia de Botafogo, nadava em luxo; o Jotajota, boçal e torpe, fruía
palacete pomposo; o Barão da Concórdia rolava em vitória macia com
bestas ajaezadas de prata; o Pimenta indecente tinha dinheiro a rodo
para pagar-se
cocottes
de preço [...].

Em seu delírio, Betarry obedece à frase síntese do livro:


“O que se procura é o dinheiro, venha como vier, donde
vier, o dinheiro a todo transe...”. Fiel à desmesurada
ambição, aceita se casar com a filha natural do Barão da
Concórdia, feia, quase disforme, mas dona de incrível
dote.
A segunda carta que escreve ao cunhado, no Capítulo
XII
, é o resumo do que há de mais sórdido na política.
Por um momento, Betarry ensaia questionar-se acerca
de sua própria identidade:
O que me atormenta ligeiramente é apenas isto: para quê? Sim, para
que sou eu o que sou, que fim demando, de que serve toda esta força
que me está nas mãos? A inanidade do poder está-me agora ante os
olhos, clara como um período do Padre Vieira.

Mas não tem fibra moral para ir adiante; e as linhas


seguintes, gasta-as em generalizações, pretendendo
defender sua perversidade, até chegar ao lugar-comum
citado por todos os corruptos: “O mal, o mal político, a
nulidade prática do governo, dos homens públicos, faz
parte da organização brasileira: se o governo deixasse
de ser inútil e pernicioso, o Brasil deixaria de ser
Brasil”.
À fácil desculpa do atavismo político, Betarry
acrescenta galhofas a respeito do seu próprio
comportamento, cada vez mais laxo:
E sobretudo te peço que não tires do fundo do teu arsenal de mineiro,
reprovações à minha conduta como costumas fazer. Não penses em
casamento interesseiro nem glorifiques o amor ao lar, dignidade da
família, como não penses em honra, em pátria, bem da nação e todas as
suas usuais mineiradas. São cousas passadas, só em Minas, lá no fundo
dos sertões e das fazendas, é que se sonha ainda com esses fantasmas.

O livro termina com terrível metáfora: a massa


espremendo-se contra os portões da igreja, ensandecida
para assistir ao casamento de Betarry – o povo reduzido
a insignificante, mas satisfeito espectador da festança
alheia.
Resposta ao enigma
O leitor que chegou até aqui certamente se pergunta
por qual motivo nossos peritos em literatura fazem
questão de esconder e desprezar
A todo transe!...
Parte
da resposta está no próprio livro; parte nas linhas acima.
Mas aos que desejarem se aprofundar no enigma,
proponho um salutar exercício: leiam a educadíssima
carta que Elio Vittorini – cujo projeto era o da suposta
“renovação moderna da literatura” – enviou, em julho de
1957, a Giuseppe Tomasi di Lampedusa, explicando por
qual motivo se recusava a publicar
O Leopardo
. Ali, nas
entrelinhas, nas razões ideológicas que Vittorini
dissimula, encontrarão o fragmento fundamental da
resposta.
CAPÍTULO 3

Combate interminável
– Euclides da Cunha e Os Sertões

Excêntrico e híbrido,
Os Sertões
, de Euclides da
Cunha, assemelha-se ao mostrengo de Fernando Pessoa,
que se ergue a voar na “noite de breu”, em pleno
oceano, e circunda a nau do explorador, interrogando-o:
“Quem é que ousou entrar / Nas minhas cavernas que
não desvendo, / Meus tectos negros do fim do mundo?”.
E a reação do leitor, ao se deparar com o grosso volume
e seu texto muitas vezes excessivamente rebuscado,
quase sempre não corresponde à do navegante que
enfrenta a terrível criatura – “Aqui ao leme sou mais do
que eu: / Sou um povo que quer o mar que é teu [...]” –,
pois tornou-se comum a desistência logo às primeiras
páginas, quando o inexperto marinheiro se depara com
descrições topográficas e geológicas que parecem
conduzi-lo ao abismo; e não à passagem do Bojador.
O desejo euclidiano de erigir uma obra total pagou o
preço da desmesura, semelhante aos personagens
mitológicos julgados por sua
hybris
. Mas o livro, que
veio à luz em 1902, continua a merecer atenção –
cuidadosa e necessária. Em relação a
Os Sertões
é
preciso distanciar-se das leituras fossilizadas, pois
excessivamente laudativas, capazes somente de coroar a
obra com jaculatórias, segundo o feliz ensinamento do
seu principal estudioso contemporâneo, Leopoldo
Bernucci, no evento
Euclides da Cunha 360º
, realizado
em 2009. O pesquisador, aliás, salientava o fato de, no
Brasil, cultuar-se esse autor controverso que, ao invés
de ser endeusado, deveria ser debatido. Prática,
completa Bernucci, fruto de uma cultura em que não se
aprende a ler de maneira compenetrada e crítica, na
qual o fascínio pela palavra escrita se sobrepõe à sua
compreensão.
Tais cuidados fazem-se ainda mais necessários quando
recordamos a melhor biografia de Euclides da Cunha,
escrita pelo norte-americano Frederic Amory.
[ 21 ]
Para
o autor de
Euclides da Cunha: uma Odisséia nos
Trópicos
, a leitura proveitosa de
Os Sertões
exige isolar
o valor
estilístico dos erros geográficos e das análises
deterministas e racistas. A força da narrativa supera, é
verdade, em inúmeros trechos, o conteúdo analítico
datado; mas não podemos esquecer as sábias
observações de Gilberto Freyre, para quem Euclides
está
perigosamente próximo do precioso, do pedante, do bombástico, do
oratório, do retórico, do gongórico, sem afundar-se em nenhum desses
perigos: deixando-o apenas tocar por eles; roçando por vezes pelos seus
excessos; salvando-se como um bailarino perito em saltos-mortais, de
extremos de má eloqüência que o teriam levado à desgraça literária ou
ao fracasso artístico.
[ 22 ]

Há quem prefira alimentar opinião mais radical, como


Roberto Schwarz, que critica, ao falar de Euclides e Raul
Pompéia, a “monstruosa salada que junta naturalismo e
parnasianismo,
écriture artistique
e racismo científico,
eloqüência épica e terminologia técnica”. Para Schwarz,
a “prosa franca e espirituosa” de Helena Morley (em
Minha vida de menina
), “inimiga de afetações de
superioridade” e livre das “alienações ideológicas e
artísticas”, encontra-se num patamar superior ao de
Os
Sertões
. Trata-se, sem dúvida, no que se refere a
Euclides, de uma “dialética envenenada”, mera
provocação, como aliás anunciava o próprio título da
entrevista.
[ 23 ]
Na verdade, guarda mais razão Franklin de Oliveira, no
ensaio “Um problema de ontologia literária”, presente
em
Euclydes: a espada e a letra
.
[ 24 ]
Ao recuperar o
histórico dos termos
phantasia
e
imaginatio
, passando
por Leonardo da Vinci – para quem a ciência era “uma
segunda criação realizada pela fantasia”, pois “a criação
artística contém todas as formas que estão na natureza e
as que não estão” –, o estudioso maranhense demonstra
que, para Euclides, “a fantasia é o fermento, a levedura
das criações artísticas e científicas”. Ainda que, páginas
depois, Franklin acabe por acorrentar
Os Sertões
à
categoria de “ensaio de crítica histórica”, comparando-o,
de forma absurdamente exagerada, a Johan Huizinga (
O
outono da Idade Média
) e Jacob Burckhardt (
A cultura
do Renascimento na Itália
), a intuição do ensaísta
plantou boa semente: a base de
Os Sertões
é a fantasia –
e o livro, de fato, está recheado de ficção.
Misterioso defunto
Um dos trechos mais belos e instigantes de
Os Sertões
é “Higrômetros singulares”, no qual Euclides apresenta
a “secura da atmosfera”, na região de Canudos, por
meio de uma cena perturbadora. O leitor acaba de
enfrentar as páginas iniciais de “A Terra”, primeira parte
do livro, e encontra-se dividido entre abandonar o
volume ou seguir em frente. É a reação natural de quem,
não sendo geólogo, pergunta-se o que significam,
por
exemplo, “assomadas gnáissicas caprichosamente
cindidas em planos quase geométricos, à maneira de
silhares”. Ele percebe, graças a seu instinto
panglossiano e à eufonia, a relativa beleza de dizer que
Pelas abas dos cerros, que tumultuam em roda – restos de velhíssimas
chapadas corroídas – se derramam ora em alinhamentos relembrando
velhos caminhos de geleiras, ora esparsos a esmo, espessos lastros de
seixos e lajes fraturadas, delatando idênticas violências.

Mas questiona-se se poderá suportar a descrição de


“cristais de feldspato”, “estratos de um talcoxisto”,
“formações silurianas”, “cachopos de quartzito” e
quejandos. Nesse momento, quando suas vísceras
começam a gemer, salva-o da escuridão o narrador,
abraçado à tarefa de explicar as características
climáticas, mudando subitamente a inflexão da voz para
torna-se íntimo, lírico:
Percorrendo certa vez, nos fins de setembro, as cercanias de Canudos,
fugindo à monotonia de um canhoneiro frouxo de tiros espaçados e
soturnos, encontramos, no descer de uma encosta, anfiteatro irregular,
onde as colinas se dispunham circulando um vale único. Pequenos
arbustos, icozeiros virentes viçando em tufos intermeados de
palmatórias de flores rutilantes, davam ao lugar a aparência exata de
algum velho jardim em abandono. Ao lado uma árvore única, uma
quixabeira alta, sobranceando a vegetação franzina.

Nesse cenário idílico, no qual “icozeiros virentes


viçando em tufos intermeados de palmatórias de flores
rutilantes” explodem não só graças ao brilho que ofusca,
mas à aliteração da frase, um soldado “descansava...
havia três meses”. A antinomia dos elementos seduz.
Passadas dezenas de páginas em que o linguajar técnico
enfastiava, no centro do jardim luxuriante surge o
morto:
Morrera no assalto de 18 de julho. A coronha da Mannlicher
estrondada, o cinturão e o boné jogados a uma banda, e a farda em tiras,
diziam que sucumbira em luta corpo a corpo com adversário possante.
Caíra, certo, derreando-se à violenta pancada que lhe sulcara a fronte,
manchada de uma escara preta. E ao enterrar-se, dias depois, os mortos,
não fora percebido.

A cena, trágica, tem uma beleza que atordoa. Ali está o


defunto, protegido pela longa sombra do sol poente,
“braços largamente abertos, face volvida para os céus”.
Euclides acrescenta o comentário enternecedor: “O
destino que o removera do lar desprotegido fizera-lhe
afinal uma concessão: livrara-o da promiscuidade
lúgubre de um fosso repugnante [...]”. E prolonga nossa
pena por meio de uma sugestiva amplificação: “[...] e
deixara-o ali há três meses – braços largamente abertos,
rosto voltado para os céus, para os sóis ardentes, para
os luares claros, para as estrelas fulgurantes...”.
As linhas finais servem não só à comprovação científica
da “secura extrema dos ares”, mas acrescentam caráter
filosófico ao texto. O narrador contrapõe uma nota de
enlevo à sua constatação, lacônica e aguda, colocada
entre travessões, sobre o fim da matéria, como se a
degradação invulgar daquele corpo pudesse fugir à lei
universal:
E estava intacto. Murchara apenas. Mumificara conservando os traços
fisionômicos, de modo a incutir a ilusão exata de um lutador cansado,
retemperando-se em tranqüilo sono, à sombra daquela árvore benfazeja.
Nem um verme – o mais vulgar dos trágicos analistas da matéria – lhe
maculara os tecidos. Volvia ao turbilhão da vida sem decomposição
repugnante, numa exaustão imperceptível.

São trechos desse tipo, nos quais a fantasia estraçalha


o ensaio histórico, que justificam a leitura de
Os Sertões
. E o colocam bem acima do livro pueril de Helena
Morley – e de grande parte da literatura produzida no
Brasil até o início do século
XX
.
Esse trecho encerra também uma característica
misteriosa. Como afirmei em meu
blog
, em 2006,
considero “Higrômetros singulares” uma espécie de
paráfrase do poema “Le dormeur du val”, de Arthur
Rimbaud. A semelhança entre os textos é fascinante,
inclusive se utilizarmos a tradução impecável de Ivo
Barroso.
[ 25 ]
Em Euclides, “um velho jardim em
abandono”, com uma “árvore única, uma quixabeira alta,
sobranceando a vegetação franzina”; em Rimbaud, “um
recanto verde onde um regato canta / doidamente a
enredar nas ervas seus pendões / De prata”. No
brasileiro, “o sol poente desatava, longa, a sua sombra
pelo chão”; no francês, “o sol, no monte que suplanta, /
Brilha: um pequeno vale a espumejar clarões”. Se o
soldado, em
Os Sertões
, tem “os braços largamente
abertos, rosto voltado para os céus, para os sóis
ardentes, para os luares claros, para as estrelas
fulgurantes...”, no poema ele apresenta a “boca aberta,
fronte ao vento, / [...] estendido sobre as relvas, ao
relento, / Branco em seu leito verde onde chovia luz”.
Luz que fulge na “flores rutilantes” de Euclides. Este
fala da “ilusão exata de um lutador cansado,
retemperando-se em tranqüilo sono”; no poema, o verbo
dormir surge duas vezes.
A transposição é clara. Euclides tirou o soldado do vale
verdejante de
Rimbaud e colocou-o entre seus “icozeiros
virentes”, também num vale, descrito no seu estilo algo
hiperbólico.
A similaridade me encanta. Leopoldo Bernucci já
demonstrou as relações intertextuais que
Os sertões
mantém com, entre outros, Victor Hugo e Domingo
Sarmiento.
[ 26 ]
E há um dado, de ordem biográfica,
que corrobora minha hipótese: sabe-se da influência que
teve – não só no que se refere a sugestões de leitura,
mas, de maneira indireta, na própria elaboração de
Os
sertões
– o intendente de São José do Rio Pardo,
Francisco Escobar. Entre 1898 e 1901, período durante
o qual Euclides viveu na cidade do interior paulista,
ocupando-se da reconstrução da ponte que ruíra, os dois
estabeleceram profunda relação de amizade, prolongada
depois em razoável número de cartas. Ora, Escobar foi
um autodidata culto, além de bibliófilo, dono de farta
biblioteca, que deve ter representado universo sem
precedentes para Euclides. Há quem afirme, inclusive,
que Escobar apresentou ao amigo os clássicos
portugueses, como Alexandre Herculano, além de
inúmeros escritores, exercendo, assim, influência sobre
o estilo do autor.
Dessas constatações surgem várias perguntas: Escobar
teria apresentado Rimbaud a Euclides? “Le dormeur du
val” aparece em duas edições:
Reliquaire, poésies
[ 27 ]
e
Poésies completes
.
[ 28 ]
Um desses livros faria parte
da biblioteca do intendente? Teria importado o volume?
Acompanhava os lançamentos editoriais franceses,
hábito comum entre os brasileiros cultos da época? Ou
trata-se apenas de um tema recorrente na literatura,
mera coincidência? Mas se Euclides da Cunha leu o
poeta Maurice Rollinat, como afirma Frederic Amory,
por que não conheceria Rimbaud? Se existir um catálogo
ou lista dos livros de Francisco Escobar, ali poderemos
descobrir parte das respostas.
“Celeiro agreste”
Não é preciso sair de “A Terra” para encontrar mais
páginas memoráveis. Veja-se, por exemplo, a descrição
da seca. Euclides interrompe a narração de algumas
tradições locais, como os desafios, para descrever a
estiagem prolongada que susta a vida e a esperança
simples do sertanejo:
De repente, uma variante trágica.
Aproxima-se a seca.
O sertanejo adivinha-a e prefixa-a graças ao ritmo singular com que se
desencadeia o flagelo.
Entretanto não foge logo, abandonando a terra a pouco e pouco
invadida pelo limbo candente que irradia do Ceará.
As frases bruscas introduzem o fenômeno de maneira
cortante, pois o autor sabe que este é o centro da
tragédia – parte fundamental das causas que
desencadearão a guerra. Podemos lastimar o discurso
que idealiza o sertanejo, transformado num estóico
quando, na verdade, age não por opção consciente,
heróica, mas porque só tem duas escolhas, submeter-se
ou fugir. E há trechos de exagerada retórica, como ao
qualificar a seca de “sezão assombradora da Terra”. No
entanto, o crescendo que Euclides descreve está além da
épica; marcado por extremo realismo, evidencia cada
gesto da luta pela sobrevivência – e o malogro que se
renova:
Passam as “chuvas do caju” em outubro, rápidas, em chuvisqueiros
prestes delidos nos ares ardentes, sem deixarem traços; e pintam as
caatingas, aqui, ali, por toda a parte, mosqueadas de tufos pardos de
árvores marcescentes, cada vez mais numerosos e maiores, lembrando
cinzeiros de uma combustão abafada, sem chamas; e greta-se o chão; e
abaixa-se vagarosamente o nível das cacimbas... Do mesmo passo nota
que os dias, estuando logo ao alvorecer, transcorrem abrasantes, à
medida que as noites se vão tornando cada vez mais frias. A atmosfera
absorve-lhe, com avidez de esponja, o suor na fronte, enquanto a
armadura de couro, sem mais a flexibilidade primitiva, se lhe endurece
aos ombros, esturrada, rígida, feito uma couraça de bronze. E ao descer
das tardes, dia a dia menores e sem crepúsculos, considera,
entristecido, nos ares, em bandos, as primeiras aves emigrantes,
transvoando a outros climas...

O ritmo da frase alcança, muitas vezes, musicalidade


poética. Tal afirmação, repetida por dezenas de autores,
recebeu atenção criteriosa de Augusto de Campos,
[ 29 ]
que dissecou o texto, demonstrando, com inúmeros
exemplos, a ocorrência da métrica clássica na prosa
euclidiana e como ela constrói uma estrutura em tudo
oposta à mera “caricatura do parnasianismo”. Poesia
encontrada na descrição das manifestações de
religiosidade que acompanham “a insurreição da terra
contra o homem”:
Ecoam largos dias, monótonas, pelos ermos, por onde passam as lentas
procissões propiciatórias, as ladainhas tristes. Rebrilham longas noites
nas chapadas, pervagantes, as velas dos penitentes...

A caatinga transforma-se, então, num “celeiro agreste”,


oximoro que sintetiza a busca por alimento, cada vez
mais desesperada, na qual parcela da fauna volta-se
contra o gado e contra o homem. No fim, os próprios
urubus rejeitam a carne dos “bois mortos há dias e
intactos”, pois “não rompem a bicadas as suas peles
esturradas”. Banido pela seca, o sertanejo migra. E
mesmo sabendo que o final feliz da narrativa,
contestado
pela realidade, nem sempre é verdadeiro, não podemos
negar-lhe o acerto dos termos, a simetria dos períodos, a
harmonia à qual colabora perfeita pontuação:
Passa certo dia, à sua porta, a primeira turma de “retirantes”. Vê-a,
assombrado, atravessar o terreiro, miseranda, desaparecendo adiante,
numa nuvem de poeira, na curva do caminho... No outro dia, outra. E
outras. É o sertão que se esvazia.
Não resiste mais. Amatula-se num daqueles bandos, que lá se vão
caminho em fora, debruando de ossadas as veredas, e lá se vai ele no
êxodo penosíssimo para a costa, para as serras distantes, para quaisquer
lugares onde o não mate o elemento primordial da vida.
Atinge-os. Salva-se.
Passam-se meses. Acaba-se o flagelo. Ei-lo de volta. Vence-o saudade do
sertão. Remigra. E torna feliz, revigorado, cantando; esquecido de
infortúnios, buscando as mesmas horas passageiras da ventura
perdidiça e instável, os mesmos dias longos de transes e provações
demorados.

Síntese e ampliação
Os Sertões
também está polvilhado de personagens
que, apesar de serem reais, ganham contornos próximos
do fantástico. Na terceira parte do livro, “A Luta”,
encontramos o coronel Moreira César, cuja “legenda de
bravura” Euclides desmonta com perfeita ironia,
primeiro inserindo-o no quadro maior da história do
país, cuja “sentimentalidade suspeita” está – até hoje –
pronta a criar “heróis de quarto de hora destinados à
suprema consagração de uma placa à esquina das ruas”.
Tão lunático quanto Antônio Conselheiro, Moreira César,
servil à pior face do ditador Floriano Peixoto, é
apresentado como criminoso contumaz, responsável,
durante a Revolução Federalista, por um dos mais
sangrentos episódios, no qual ordenou prisões e
fuzilamentos sumários. Não por outro motivo o coronel é
escolhido para comandar a primeira tentativa séria de
debelar Canudos:
Ora, entre nós, se exercitava o domínio do
caput mortuum
das
sociedades. Despontavam, efêmeras, individualidades singulares; e
entre elas o coronel César destacava-se em relevo forte, como se a
niilidade do seu passado salientasse melhor a energia feroz que
desdobrara nos últimos tempos.

A expedição é descrita pormenorizadamente, incluindo-


se os erros táticos, a arrogância do comandante que se
considerava imbatível e o absoluto despreparo da tropa.
No fim, em plena debandada do exército, até o corpo de
Moreira César é atirado “à beira do caminho”. Na última
cena, os jagunços decapitam os cadáveres:
Alinharam, depois, nas duas bordas da estrada as cabeças,
regularmente espaçadas, fronteando-se, faces volvidas para o caminho.
Por cima, nos arbustos marginais mais altos, dependuraram os restos de
fardas, calças e dólmãs multicores, selins, cinturões, quepes de listras
rubras, capotes, mantas, cantis e mochilas...

E ao perverso estetismo do sertanejo, Euclides adiciona


o seu comentário, não menos mórbido:
A caatinga, mirrada e nua, apareceu repentinamente desabrochando
numa florescência extravagantemente colorida no vermelho forte das
divisas, no azul desmaiado dos dólmãs e nos brilhos vivos das chapas
dos talins e estribos oscilantes...

Euclides da Cunha também se mostra hábil nas cenas


breves, capazes de sintetizar todo o horror da guerra:
Numa das refregas subsequentes ao assalto, ficara prisioneiro um
curiboca ainda moço que a todas as perguntas respondia
automaticamente, com indiferença altiva:
“Sei não!”
Perguntaram-lhe por fim como queria morrer.
“De tiro!”
“Pois há de ser a faca!”, contraveio, terrivelmente, o soldado.
Assim foi. E quando o ferro embotado lhe rangia nas cartilagens da
glote, a primeira onda de sangue borbulhou, escumando, à passagem do
último grito gargarejando na boca ensanguentada:
“Viva o Bom Jesus!...”

Mas é nos longos períodos, perfeitamente encadeados,


que o escritor revela suas melhores qualidades. Perto do
fim da guerra, antes que a solução definitiva – o uso da
dinamite – seja colocada em prática, a insânia do
combate surge reconstruída num parágrafo do qual
transbordam, em iguais proporções, armamentos e força
abusiva, vitória e devastação:
E volvendo de improviso às trincheiras, volvendo em corridas para os
pontos abrigados, agachados em todos os anteparos, esgueirando-se
cosidos às barrancas protetoras do rio, retransidos de espanto, tragando
amargos desapontamentos, singularmente menoscabados na iminência
do triunfo, chasqueados em pleno agonizar dos vencidos – os
triunfadores, aqueles triunfadores, os
mais originais entre todos os
triunfadores memorados pela história, compreenderam que naquele
andar acabaria por devorá-los, um a um, o último reduto combatido. Não
lhes bastavam 6 mil mannlichers e 6 mil sabres; e o golpear de 12 mil
braços, e o acalcanhar de 12 mil coturnos; e 6 mil revólveres; e vinte
canhões, e milhares de granadas, e milhares de schrapnels; e os
degolamentos, e os incêndios, e a fome, e a sede; e dez meses de
combates, e cem dias de canhoneio contínuo; e o esmagamento das
ruínas; e o quadro indefinível dos templos derrocados; e, por fim, na
ciscalhagem das imagens rotas, dos altares abatidos, dos santos em
pedaços – sob a impassibilidade dos céus tranqüilos e claros – a queda
de um ideal ardente, a extinção absoluta de uma crença consoladora e
forte...

Vencer e não vencer


Retomando os primeiros parágrafos deste ensaio,
poderíamos tê-lo escrito de modo diverso, salientando o
que é afetado, grandiloqüente e pleno de preciosismo
em
Os Sertões
. Ou, tarefa ainda mais fácil, detalhando
equívocos e impropriedades nascidos do olhar
determinista e de tantas outras influências, mais que
datadas. No entanto, mal começa-se a reler esse livro,
contaminado de idéias envelhecidas, ressurge o
mostrengo indomável, que nos condena a repetir a luta
do sertanejo, “recontro que não vence e em que se não
deixa vencer”. Não é outra a tarefa – interminável – do
leitor que se dispõe a abrir
Os Sertões
.

[ 21 ]
Ver minha análise em “Trágica ingenuidade”,
Jornal Rascunho
,
junho de 2011.
[ 22 ]
Em “Euclides da Cunha, revelador da realidade brasileira”:
http://bvgf.fgf.org.br/frances/obra/pref_p_tercei/euclides.htm
[ 23 ]
“Dialética envenenada – Duas meninas na periferia do capitalismo”,
Folha de S. Paulo
, Caderno Mais, 1º de junho de 1997.
[ 24 ]
Editora Paz e Terra, São Paulo, 1983.
[ 25 ]
Rimbaud, Arthur.
Poesia Completa
, 2ª edição revista, Rio de
Janeiro, Editora Topbooks, 1995.
[ 26 ]
Ver
A Imitação dos Sentidos – prógonos, contemporâneos e epígonos
de Euclides da Cunha
, Edusp/University of Colorado at Boulder, São Paulo,
1995.
[ 27 ]
L. Genonceaux, Paris, 1891; prefácio de Rodolphe Darzens.
[ 28 ]
L. Vanier, 1895; prefácio de Paul Verlaine.
[ 29 ]
No ensaio “Transertões”, em
Os sertões dos Campos – duas vezes
Euclides da Cunha
, Editora 7Letras, Rio de Janeiro, 1997.
CAPÍTULO 4

Perseguido, mas brilhante


– Coelho Neto e Turbilhão

O escritor mais detestado pela crítica brasileira, Coelho


Neto, atingido pela fúria modernista com os piores
adjetivos, os julgamentos mais levianos – sobre ele
tripudiam, até hoje, os prosélitos de Lima Barreto e
Oswald de Andrade –, merece, inclusive por esse motivo,
cuidadoso estudo. Não se trata de escolher, para
justificar sua reabilitação – como sugere Alfredo Bosi em
O pré- modernismo
[ 30 ]
–, entre “uma determinada
doutrina estética” ou “um pensamento estreitamente
casualista”. Optar por um desses atalhos seria condenar
o escritor a permanecer na camisa-de-força em que o
enfiaram o superficialismo e o preconceito de grande
parcela da academia e da crítica literária, satisfeita no
seu exercício de papaguear o que aprendeu neste ou
naquele manual, mas raramente disposta a ler, com
espírito despojado de ideologias, a produção dos
autores.
Trata-se, portanto, de desprezar o
continuum
de erros e
injustiças – no qual até mesmo a sensata Lúcia Miguel-
Pereira caiu, escorando-se, em
Prosa de ficção
,
[ 31 ]
no
juízo, dentre outros, de Adolfo Caminha, um ninguém da
literatura brasileira –, ignorar o vale-tudo em que nossos
estudos se transformam quando se trata de defender a
Semana de 22 e seus herdeiros e dedicar-se à releitura
da ampla, multíplice bibliografia que Coelho Neto nos
legou, ou seja, deixar as obras falarem.
Ilusória liberdade
Publicado em 1906,
Turbilhão
é um dos vários
romances que poderiam ser escolhidos para apresentar
os méritos de Coelho Neto. A fim de melhor aproveitá-
los, o leitor deve estar aberto ao vocabulário cujas
acepções nem sempre são corriqueiras, e exatamente
por isso acrescentam rigor e força à narrativa. O que
parte da crítica chama de “parnasianismo” é, na
verdade, destemor para utilizar os recursos que o
português oferece, busca apaixonada, flaubertiana, do
termo justo – sem descuidar do
emprego da linguagem
coloquial, quando ela se faz necessária. Veja-se, por
exemplo, este parágrafo do Capítulo
1
:
Subitamente um bufo, como da expansão de uma válvula, subiu das
oficinas, e foi depois um chiado e logo um silvo de jato, e, lentamente,
com rumor de ferragens, como à partida de um comboio, as máquinas
moveram-se, abalando o soalho em trepidações contínuas.

O período coeso – que muitos escritores


contemporâneos transformariam, por imperícia, numa
sucessão de frases independentes – recria com exatidão
os movimentos iniciais de uma impressora de jornal do
início do século
XX
. Logo a seguir, o tipógrafo começa
seu trabalho:
Parado, coçando a barba, como em grande cuidado, um velho olhava
para uma das marinônis, em cujos cilindros já reluziam as matrizes. De
repente afastou-se, tomou várias folhas de papel tisnadas, andou com
elas em volta do “Monstro” vendo, revendo, curvado, de cócoras. Meteu
o papel entre os cilindros, ergueu-se, deu um puxão à alavanca e a
máquina moveu-se com rapidez trepidando, a espichar aquelas folhas de
papel que os rolos apertavam e impeliam manchadas de tachas sórdidas,
como as primeiras vasas anunciadoras do parto.

Perceba-se não só a precisão das palavras, a descrição


que nos permite visualizar a cena, a analogia inusitada
entre os primeiros resultados da impressão e um parto,
mas também o julgamento feito pelo narrador, ao usar o
substantivo “tacha”, referindo-se às manchas de tinta,
cujo sentido comporta uma alusão a defeitos ou máculas
morais propagados pelas notícias – idéia reforçada pelo
adjetivo “sórdidas”.
A história da pequena família suburbana – formada por
uma viúva, D.ª Júlia, e seus filhos, Paulo e Violante – é
perturbada de maneira dramática, logo no Capítulo 2,
pela fuga da jovem. A descrição do quarto da irmã, em
plena madrugada, depois de Paulo ter enfrentado, para
encontrá-la, a chuva e também o descaso da polícia,
reflete o sentimento de abandono:
Deteve-se um momento, limpou os olhos e, tomando da mesa uma caixa
de fósforos, fez luz e entrou. Sobre o lavatório de vinhático, numa
palmatória de cristal, havia um coto de vela; acendeu-o.
À luz, que se foi, aos poucos, difundindo, lançou os olhos pelo interior
desolado e, cruzando os braços, ficou a olhar como se estivesse diante
dum cadáver.
A cama estreita, alva, com um fino cortinado enastrado de fitas,
tinha
uma ligeira depressão; o travesseiro macio, de paina, com a fronha de
crivo, estava machucado. Um lenço jazia aos pés da cama, amarfanhado
e odorante.
[...]
Voltou-se: o lavatório estava em ordem, com os vidrinhos de essências,
os vasos de flores, as escovas, os pentes. Sobre a cômoda o retrato do
pai, fardado, em grande gala, de pé junto a um rochedo; e outros
retratos de moças, de crianças; e cromos e a cestinha que ele lhe dera
pelo Natal com amêndoas.
No fundo, o guarda-vestidos entreaberto. Puxou a porta, que rangeu,
emperrada, e viu, a um canto, sobre a caixa de chapéu, a boneca, muito
loura, com os braços abertos, rindo, toda de azul; e os vestidos
escorridos nos cabides, a sombrinha, caixas, embrulhos. Afastou as
saias, sentindo um perfume morno e sensual de essência e de carne –
faltava a de seda preta, a mais nova. Fora com ela, a linda saia que ele
lhe havia dado meses antes, no dia em que ela completara dezoito anos,
e que a mãe cortara e cosera, cantarolando as suas modinhas tristes.

Coisas insignificantes adquirem relevo extraordinário.


E Coelho Neto nos leva, de pormenor em pormenor, a
um dos elementos que ganham importância crescente na
história, sobre o qual falarei adiante.
O narrador apresenta igual vigor quando abandona a
intimidade do lar e descreve cenas urbanas, com seus
personagens anônimos flagrados, de maneira
cinematográfica, em meio aos hábitos do cotidiano, aos
gestos reveladores de sua condição social:
À porta de uma casinha robusta mulher, encostada ao umbral, uma das
mãos engastando o queixo, olhava, com melancolia, o céu carregado,
cinzento, sem esperança de sol. Adiante, em outra casinha, a família
jantava. O homem, já grisalho, em mangas de camisa, à cabeceira da
mesa, os braços muito abertos, as bochechas cheias, todo derreado
sobre o prato, devorava. Um pequenote, balançando as perninhas
escalavradas, esmagava o bolo de feijão; a mulher, magra, triste, comia
lentamente, com ar enfastiado. De pé, na penumbra, ao fundo, uma
rapariga ruiva, com um prato sob o queixo, chupava talhadas de laranja,
chuchurreando tão alto que se ouvia de fora, e um cão negro, sentado,
com as orelhas atentamente fincadas, olhava o homem, à espera de
algum bocado.
Meninos, com as calças arregaçadas, chapinhavam sordidamente na
lama, aos gritos. Entrava gente – um velho mascate, curvado ao peso da
grande caixa; um vendedor de fósforos, com o tabuleiro suspenso à
altura do ventre, coberto por um encerado; operários, com as
ferramentas, e, à porta da venda, que comunicava com a
larga entrada
da estalagem, em túnel, havia um ajuntamento: homens de pé, outros
sentados em pedras, fumando, conversando.
Fora, ao portão, um garoto apregoava os jornais da tarde. Cães
morrinhentos dormitavam pelos cantos e, defronte, num sobradinho
amarelo, uma mulher gorda, com fofos de renda à volta do pescoço,
chupava roletes de cana, atirando o bagaço à rua.

Mas Coelho Neto pode passar da exposição


descomprometida, leve, ainda que detalhista, desses
cenários da vida social a certo momento dramático,
tenso, no interior de um cômodo lúgubre:
Quando Paulo tornou ao quarto a moribunda arquejava em agonia
maior, respirando a espaços, ficava longo tempo imóvel, como se já
houvesse acabado; de repente, porém, abria-se-lhe a boca imensa e o ar
entrava de raspão como se fosse rompendo passagem. Ritinha chegou-se
ao leito e ficou contemplando a velha, cuja fisionomia cavava-se com a
angústia.
Apalpou-a, sentiu-a fria até o ventre – era a morte que começava a
subir. Súbito, abriram-se-lhe dilatadamente os olhos vítreos,
assombrados e fitos. Os dois recuaram, um estremecimento sacudiu-a
toda. Os braços enrijaram-se, a cabeça soergueu-se de leve, um
gargarejo rolou no fundo da garganta, as pálpebras tremeram.
Ritinha pôs-lhe a vela na mão. Paulo ajoelhou-se soluçando. Fecharam-
se-lhe os olhos e ficou imóvel. Ele ainda esperou ouvir o estertor
angustioso, mas a morte passara [...].
Ênclises e mesóclises incomodam o leitor que se viciou
no folgado predomínio das próclises, mas, superando-se
tal estranhamento, o trecho se revigora, livre das
conhecidas e cansativas reflexões naturalistas sobre o
caráter irremediável do processo biológico que comanda
nossa espécie, etc. ou do olhar romântico, que buscaria
idealizar o fato e incluir na cena algum elemento
edulcorante. Aqui, o narrador está livre de qualquer
imposição – e um personagem, a fim de completar essa
ilusória liberdade, pode apalpar de maneira
desrespeitosa, quase promíscua, a pobre moribunda.
Torpezas e amor
O fim indigno de D.ª Júlia, contudo, não se resume a
esse pequeno trecho. Na verdade, o romance enfoca o
ápice da desagregação familiar, o breve período no qual
essa derrocada, até então mero anúncio, finalmente se
materializa, condenando a idosa à decepção e à morte,
expressão concreta de sua impotência diante da ruína
moral.
Perfeito corte no tempo, a narrativa nos informa sobre
o passado não
por meio do narrador onisciente, mas,
sugestivo recurso, de um personagem secundário, Fábio,
compadre da pobre matriarca: suas censuras a Paulo e
Violante revelam a verdade suavizada, até aquele
momento, pelo excessivo amor de D.ª Júlia. Desse ponto
em diante, o comportamento, as decisões dos
personagens só confirmarão as palavras do velho Fábio,
de início aparentemente severas.
Paulo, que nas primeiras páginas do romance surge
como revisor de jornal cansado das longas horas de
trabalho e crítico implacável da irmã, mostra-se
egocêntrico, sensual, ciclotímico, supersticioso,
desfibrado. O jovem que bravateia, como se fosse a
palmatória do mundo, revolta-se com a fuga de Violante
– mas não demonstra preocupação. Ao contrário, sua
inquietude concentra-se no que pensarão dele os
vizinhos, os amigos, os colegas de trabalho e da
faculdade. Em nenhum instante ele se questiona
seriamente sobre a repentina decisão da irmã, chegando
a assobiar enquanto a mãe chora e reza, destruída pela
angústia. Para sua mente perturbada, as pessoas que o
observam na rua ou riem num restaurante na verdade
zombam dele. É também um hipócrita, a quem notícias
da fugitiva, se estampadas num jornal, serviriam para
enaltecer sua própria moralidade. Ele engana D.ª Júlia
repetidas vezes, gasta na roleta o dinheiro de uma jóia
penhorada para pagar o aluguel e introduzirá na casa a
própria amante, a volúvel Ritinha, que finge ser a
caridosa esposa de um amigo, disposta a cuidar da
doente.
Paulo, no entanto, revela mais que inversão de valores.
Na sua completa desorientação, a realidade não é um
dado nítido, palpável, mas o cenário onírico que se
modifica conforme as variações do seu humor: impedido,
pela chuva, de ir à jogatina, entende o aguaceiro como
castigo divino, e imediatamente passa a murmurar
desculpas estapafúrdias...
O romance é construído de maneira a nos surpreender
sempre. Ultrapassada a primeira metade, quando
imaginamos que todas as cartas foram distribuídas,
Coelho Neto oferece novos elementos para compor a
personalidade de Paulo: a compulsão em fazer cálculos,
distribuindo o que sonha ganhar no jogo em listas de
compras mirabolantes – e sua atração sexual pela irmã.
O jovem que abre o armário e sente o “perfume morno e
sensual de essência e de carne”, pouco antes descrevia
Violante, ao delegado, ressaltando não os traços
principais, mas aqueles que o encantam. Quando os
irmãos se reencontram por acaso e Paulo descobre que a
fugitiva tornou-se uma prostituta de luxo, o moralista
desaparece, restando o homem dividido entre a beleza
da irmã e a possibilidade de ela o proteger, fazê-lo
participar de sua fortuna. O desejo incestuoso atinge o
clímax na visita que Paulo faz a Violante horas depois. O
ato não se consuma, mas o cenário destila volúpia:
Cortinas escuras temperavam a luz, quebrando a violência do sol que
entrava por quatro janelas abertas sobre balcões. Na mesa do centro,
incrustada de marfim, dentro duma linda jarra de porcelana, morriam
rosas. Aroma tépido e voluptuoso impregnava o recinto. Os rumores da
rua chegavam abafados, ensurdecidos, como se viessem de muito longe.
[...]
E, de pé, os braços cruzados, pôs-se a examinar os quadros, as
estatuetas das peanhas. Uma sandália cor-de-rosa jazia no meio do salão
embarcada. Sobre um dos divãs uma saia de rendas amarrotada parecia
uma grande e estranha flor, murchando em abandono.

Da depravação ao cinismo salta-se com extrema


facilidade. Assim, Paulo e Ritinha copulam na sala
enquanto D.ª Júlia agoniza. Poucas horas depois, o corpo
da boa mulher é esquecido – e a família obscena senta-
se à mesa para jantar, rindo e travando saborosa
discussão a respeito das características da comida
francesa.
Cabe a D.ª Júlia o papel de contraponto em meio a tanta
torpeza. E ela o desempenha com humildade e brandura,
sob a pressão do desespero e da doença, amando os
filhos – mas, ainda que eles não percebam, sem se deixar
enganar, sem perder a lucidez, conhecendo seus defeitos
e momentâneas qualidades.
Diálogos e oratória
Merecem estudo à parte os diálogos de
Turbilhão
.
Paulo e D.ª Júlia estão inteiramente personificados
nestas breves falas:
Soprou uma baforada e, vendo a mãe curvar-se a esfregar a perna,
gemendo, quis saber se estava sentindo alguma coisa.
– Tenho sofrido muito nestes últimos dias. É da umidade... E hoje andei
tanto!
– Eu também não tenho passado bem: dores de cabeça, fastio... É
fadiga. Também, com a vida que levo não é para admirar: não paro.
– É, precisas ficar um dia em casa descansando.
– Pudesse eu! – suspirou encaminhando-se para o quarto. – Mamãe
pode arranjar-me uma xícara de café?
– Sim.
A velha levantou-se pesadamente e foi devagar, claudicando, a
amparar-se pelas paredes do corredor. [...]

O jovem que passou dois dias na jogatina, abandonando


a mãe às
grosserias do cobrador do aluguel, obrigando-a
a caminhar pela cidade em busca de uma casa de
penhores, retorna com o dinheiro que conseguiu e finge
ter perdido horas em algum trabalho cansativo. As
mentiras brotam de Paulo com tal naturalidade que, a
partir de certo ponto, percebemos sua mitomania. O
desmesurado egotismo torna-o indiferente à condição
em que a mãe se encontra há semanas – e pede-lhe o
café como se estivesse diante de uma mulher saudável,
lépida. A mãe amorosa se enternece pelo filho que só
consegue enxergar a si mesmo, despreza suas próprias
dores e levanta-se para servi-lo. A viciosa
intencionalidade das falas de Paulo nos revoltam, mas é
admirável como o autor une as palavras à personagem
delirante. Não há exagero nos termos utilizados,
naturalidade e fluidez ampliam a verossimilhança e
nenhum dos dois expressa sentimentos ou reações
imprevistos. O diálogo contribui para desenhar a cena e
reforça no leitor suas certezas em relação aos
personagens, impulsionando-o a seguir na leitura, ao
menos para descobrir quão pernicioso Paulo pode ser ou
quanto de bondade D.ª Júlia ainda guarda em sua alma.
Outro exemplo, distinto mas de igual qualidade,
encontra-se no Capítulo 4, quando Paulo procura
Mamede, o ex-policial, para que o ajude a encontrar
Violante. A linguagem, aqui, sofre adequada
transformação. As falas do mulato, repletas de
coloquialismo, expressam, primeiro, falsa humildade,
para, a seguir, transbordarem de jactância, pois suas
promessas não se realizam, ele não localiza a jovem e
todas as pistas que apresenta são apenas desculpas para
extorquir alguns trocados de Paulo. O discurso
malandro, contudo, anuncia o que saberemos mais
tarde: o suposto amigo foi expulso da polícia, não passa
de um larápio, ágil no uso da navalha, expedito para o
jogo e o crime.
Há, no entanto, alguns problemas no texto. É uma pena
que Coelho Neto às vezes abuse dos gerúndios:
[...] Frias lufadas balançavam as lanternas, enfunavam as bandeiras,
retorciam as flâmulas que faziam uma aleia triunfal à entrada e
circulavam o pátio, subindo às negras folhagens das árvores raquíticas
como estranhos frutos d’oiro e farrapos espadanando, alongando-se no
ar, coleando, tufando.

Em raros momentos, o escritor cede à tentação da


retórica, não consegue se libertar do incontrolável amor
que muitos escritores brasileiros, ontem e hoje, têm pela
própria voz. E acaba cometendo parágrafos assim:
Era a hora maior do sol, a hora do esplendor máximo. Como que a
natureza quedava em humilhação estática, adorando
silenciosamente o
grande astro a pino, na glória de toda a sua magnitude, dominando
d’alto a terra que se prostrava como uma fêmea que se agacha sentindo
o peso do macho sobre o seu corpo vibrante de emoção lúbrica.
O silêncio dilatava-se abafando todos os rumores como se a vida fosse,
aos poucos, parando – só um piano, na vizinhança, zaragalhava em notas
fanhas, que discordavam do grande e solene arroubo daquele luminoso
espasmo.

Esse tipo de orgiástica grandiloqüência – que faz


também alguns autores repetirem sempre o mesmo
narrador, com os mesmos cacoetes, certos de estarem
escrevendo um novo livro, defeito a que dão o nome de
“estilo” – é um índice de como permanecemos nos
estágios iniciais das culturas escritas: neles, recordando
a lição de Northrop Frye, o mais importante porta-voz é
o orador.
Desafio à história
Mas coloquemos de lado essas imperfeições, superadas
pelas características exemplares que apontei, e
retomemos o início deste ensaio. Na verdade, esconde-
se, sob o preconceito que há contra Coelho Neto, uma
visão deformada de literatura. Faz tempo, a maioria dos
críticos insiste que a arte literária deve expressar,
necessariamente, não as experiências ou a maneira de
ver o mundo de cada escritor, mas, sim, o
modus vivendi
de sua época – e precisa fazê-lo não só em termos de
conteúdo, mas principalmente de forma. Leiam, por
exemplo, o ensaio “Tema e técnica”, de Sérgio Buarque
de Hollanda.
[ 32 ]
Escrito em 1950, as idéias ali
presentes se repetem, com palavras diversas, até hoje. O
crítico e historiador lastima-se pelo fato de Oswald de
Andrade e Clarice Lispector não terem intensificado seu
experimentalismo nas obras que se seguiram a
Serafim
Ponte Grande
e
Perto do coração selvagem
– e,
defendendo a prevalência da técnica sobre a mensagem,
aponta, em Coelho Neto, a falta de uma “moldura
adequada”.
Ora, idéias desse tipo deságuam em dois erros, faces da
mesma moeda: menosprezam-se grandes narradores que
não optaram pelo vanguardismo
tout court
– como
Buarque de Hollanda faz, no mesmo ensaio, em relação
à obra de José Lins do Rego – ou condena-se a
linguagem literária à ingrata tarefa de reinventar a si
mesma permanentemente, o que produz obras passíveis
de serem compreendidas apenas por seus próprios
autores ou por um seleto grupo de iluminados – beco do
qual a literatura brasileira luta para sair.
Sim, é verdade que a literatura está parcialmente
condicionada pela história – mas é verdade também,
como afirma Northrop Frye, que ela
forja a sua própria
história. Ela “responde a um processo histórico
externo”, sustenta o estudioso canadense em
O caminho
crítico
,
[ 33 ]
“mas não é determinada por ele no que diz
respeito à sua forma”. E, completo, pode se contrapor ao
seu tempo também no que se refere ao conteúdo.
Deste modo, se queremos analisar um escritor, não
devemos investigar se ele representa ou não sua época,
mas, antes, ver seus livros, ainda citando Frye, como
“estruturas coerentes”. Nossa difícil tarefa, portanto, é
“permanecer a meia distância dos dois extremos não
críticos”: a tese de que “a literatura necessita de uma
referência social, sob pena de sua estrutura ser ignorada
e seu conteúdo associado a alguma coisa não literária”;
e a “crítica avaliadora que impõe os valores pessoais do
crítico, decorrentes dos preconceitos e ansiedades de
sua própria época, a toda a literatura do passado”.
Enquanto não nos libertarmos desses “extremos não
críticos” ou “sofismas”, como Northrop Frye os
denomina – em minha opinião, degenerescências das
propostas que defendiam uma literatura
engagée
–,
continuaremos desprezando obras que,
intencionalmente ou não, negam-se a ser um eco do seu
tempo. Exemplo elucidativo sobre essa questão
encontra-se no ensaio “Improviso em homenagem a
Stravinski”, de Milan Kundera,
[ 34 ]
mas referindo-se à
música. Ali, o romancista tcheco mostra como a escolha
de Bach pela polifonia pura significou, na prática, um
“gesto de desafio para com a História, uma recusa tácita
do futuro”. A mais radical escolha de Bach, portanto,
denuncia o que muitos de nós esqueceram, que
a História não é necessariamente um caminho ascendente (em direção
ao mais rico, ao mais culto), que as exigências da arte podem estar em
contradição com as exigências do dia (dessa ou daquela modernidade) e
que o novo (o único, o inimitável, o que nunca foi dito) pode ser
encontrado numa direção diferente daquela traçada por aquilo que todo
mundo sente como progresso. Com efeito, Bach pôde ler na arte dos
seus contemporâneos e dos mais jovens do que ele um futuro que
deveria parecer, a seus olhos, uma queda.

Excelência
Desconheço se as escolhas estéticas de Coelho Neto
foram conscientes, mas sua obra nos afirma que ele
recusou seguir a via aberta por Machado de Assis com
Memórias póstumas de Brás Cubas
, publicado em 1880,
mais de duas décadas antes do romance que aqui
analisamos – e nem por isso deixou de escrever “uma
obra-prima indiscutível”, como Wilson Martins
[ 35 ]
classifica, acertadamente,
Turbilhão
.
Entre minhas certezas, só posso repetir o que o
poetastro Aurélio afirma no Capítulo 14 de
Turbilhão
,
vociferando, exaltado, em favor da “Arte Nova” que
estaria a caminho, “sonora e rica, luminosa e forte”,
anunciando ter ele mesmo no fundo da gaveta “dois
poemas e um romance [...] cuja tese era a emancipação
da mulher, com um surdo protesto contra o celibato
clerical”. Por meio de Aurélio, Coelho Neto ironiza o
futuro, sem saber que tal predição se realizaria da pior
forma: numa tentativa de estraçalhar sua obra. Mas,
apesar das conseqüências nada desprezíveis,
comemoremos: o futuro não se realizou plenamente.

[ 30 ]
Volume V de
A Literatura Brasileira
, 5ª edição, Editora Cultrix.
[ 31 ]
2ª edição, revista, Livraria José Olympio Editora, Rio de Janeiro,
1957.
[ 32 ]
Ver
O Espírito e a Letra
, volume 2, Editora Cia. das Letras, São
Paulo, 1996.
[ 33 ]
Editora Perspectiva, São Paulo, 1994.
[ 34 ]
Em
Os testamentos traídos
, 2ª edição, Editora Nova Fronteira, Rio
de Janeiro, 1994.
[ 35 ]
História da Inteligência do Brasil
, Volume V (1897-1914), 2ª edição,
T. A. Queiroz Editor, São Paulo, 1996.
CAPÍTULO 5

Perfumaria bilaquiana
– Olavo Bilac e suas crônicas

Dentre os gêneros literários, a crônica é o mais ingrato.


Servos do transitório, são raríssimos os cronistas que
conseguem impregnar seus textos com elementos
capazes de extrapolar o banal, conceder ao corriqueiro
uma perspectiva inusitada. Esses – como Rubem Braga,
de quem comemoramos o centenário de nascimento
quando escrevo este ensaio – conquistam sobrevida; a
maioria, no entanto, está condenada ao esquecimento ou
a ter suas produções lidas não pelo valor literário, mas
por serem documentos curiosos, úteis a sociólogos,
historiadores e quejandos.
O poeta Olavo Bilac, que produziu crônicas, com maior
ou menor intermitência, de 1883 a 1908, escrevendo, em
períodos diferentes, para quase três dezenas de revistas
e jornais, situa-se no grupo maior. É o que pode ser
verificado ao lermos o criterioso trabalho de Antonio
Dimas,
Bilac, o jornalista
.
[ 36 ]
Uma crestomatia
anterior –
Vossa insolência
,
[ 37 ]
também organizada
por Antonio Dimas – serve ao leitor interessado em
conhecer, de forma não extensiva, a prosa de Bilac.
Clichês e elogios
A pobreza da imagística bilaquiana aproxima-se do
vexaminoso. Seus textos são escritos sob a autoridade
do lugar-comum. O “lento evoluir da aldeia em cidade” é
definido como “lenta passagem do estado de lagarta ao
estado de borboleta”, no qual o substantivo masculino
repete-se de forma desnecessária e desagradável. Dizer
que o “desejo andava, tonto e ansioso, rodando em torno
dela como um animal faminto em torno de uma presa
cobiçada” é utilizar a comparação mais previsível. A
mesma observação serve para “alegre como um canário,
fresca como uma madrugada”, “ardendo no fogo de
todas as paixões” e “lareira em que um lume alegre
crepitava”. Espera-se, a cada crônica, uma figura que
fuja à banalidade, mas o clichê predomina: “Tudo se
renova, tudo progride, e nada morre.
Morremos nós, que
nada somos. Mas as cidades ficam e perduram,
devoradoras de gerações”. Ou: “A primavera simboliza a
mocidade das cousas e das almas”. E ainda: as palavras
que “entram como cunhas de aço na alma de quem as
lê”; a terra que “somente se abre em verduras de
primavera e em frutos do outono depois de ter o seio
dolorosamente rasgado pelo arado”.
Por mais que se esforce – e prefiro imaginar que se
esforçava –, Bilac não consegue fugir da expansão dos
sentimentos melosos. Ao relembrar a juventude,
exclama:
[...] Doce e clara manhã! talvez fosse, realmente, uma agreste manhã,
feia e chuvosa; mas a minha alegria, o meu orgulho de rimador novato, a
minha vaidade de poeta “impresso” eram capazes de acender um sol de
verão na mais nevoenta alvorada de inverno.

Referindo-se à casa de Eça de Queirós em Paris, define-


a: “[...] um encantado recanto de paz e trabalho no meio
da tumultuosa agitação da grande cidade”. E utiliza os
mesmos artifícios, que cansei de ler nos almanaques
farmacêuticos da minha infância, para qualificar o
trabalho do romancista português: “paciente e sublime
ofício de corporificador de idéias e de desbastador de
palavras”.
São raras as crônicas em que Bilac não paga alto preço
à eloqüência vazia – no Brasil, a maior destruidora de
talentos, depois da idealização romântica:
[...] Ao cair da tarde, esgotada a sua provisão cotidiana, o semeador dá
um último olhar à terra palpitante, mira-lhe com amor o seio fecundo
preparador para a glória da messe futura, e já pensa no trabalho do dia
seguinte, na continuação do labor sagrado, que é a única preocupação e
o único orgulho de sua existência...

Na mesma crônica, dedicada a Émile Zola, as


conseqüências da adjetivação incontrolável voltam a se
mostrar, nefastas:
[...] De pedra em pedra, o edifício da sua obra hercúlea crescia e subia.
Nascido do lodo, com a base no fundo asqueroso do pântano humano,
esse edifício demandava o céu, a claridade serena, a alta glória da luz.

Peço ao leitor que tire o sorriso do rosto. O caso é


dramático. Esse tipo de estilística piegas fez escola no
Brasil – e sofremos suas conseqüências até hoje. Há,
acreditem, acadêmicos que têm a mesma poética
avaliação da obra de Aluísio Azevedo, ainda que,
mutatis
mutandis,
tomem o cuidado de
esconder um pouco os
adjetivos...
Mas voltemos ao rol de elogios a Zola. Não satisfeito,
Bilac ainda pespega:
[...] – era apenas um poeta, um grande poeta, cuja alma de criança
sonhara pôr o céu ao alcance da terra, e que, dia e noite, via sorrir sobre
as tristezas da vida contemporânea o prenúncio de uma vida melhor, o
primeiro rubor de uma aurora fecunda, toda de paz e igualdade, toda de
amor e de fartura.

E já que recordamos o autor de


O Cortiço
, Bilac
pertence, sim, ao grupo dos admiradores de Azevedo.
Chama o amigo de “vigoroso operário das nossas letras”,
cujo “estilo freme e fulgura com as palpitações do ideal
que as inflama” – mero circunlóquio para construir a
discutível glorificação.
Como percebemos, não faltam elogios fáceis à
imaginação do nosso cronista. Referindo-se a
O Defunto
, de Eça de Queirós, chama o conto de “obra-prima”,
“novela admirável [...] animada de um vasto sopro de
gênio”, “a mais notável, talvez, das criações de Eça”. De
Artur Azevedo, dirá que “foi artista em todas as
manifestações da existência, no escrever, no pensar, no
falar, no viver”. E termina o necrológio, incansável, com
este período manco: “[...] Não desaparece
verdadeiramente o Artista, que ficará vivendo na
história deste país, quando a Morte também já tiver
consumido todos os corações e todas as inteligências
que admiram a sua inteligência”. José Carlos Rodrigues,
diretor do
Jornal do Comércio
, tem não apenas “tato”,
mas “prudência” e “atilado espírito”; seu jornal é “grave,
pesada, seriíssima e formidável folha”, ainda que no
passado tenha apresentado “enorme face impassível de
paquiderme monstruoso” – deplorável conjunto de
adjetivos. Outro jornalista, Ferreira de Araújo, “viveu
servindo à Arte e à Poesia, e alimentando com o seu
talento e a sua dedicação esta atmosfera moral de
sentimento e inteligência, que é o nosso maior orgulho
de povo”; “aliavam-se no seu estilo a força e a graça, a
impetuosidade e a leveza, a solidez e a malícia”. Um
gênio, felizmente desconhecido.
Hipérboles
O exagero permeia grande parte dos exemplos acima,
afinal, o que seria da eloqüência sem a hipérbole?
Ambas trabalham juntas para criar os balões de gás que
encantam leitores ineptos. O mero projeto de colocar
bustos de escritores no Passeio Público transformará o
local no “templo umbroso e perfumado dos numes
tutelares da nossa Inteligência”. Mas Bilac esquece que
o enaltecimento despropositado pode tornar certas
virtudes irreais:
[...] Émile Zola não conheceu nunca os desfalecimentos que
desmoralizam o trabalhador, as dúvidas, as hesitações, as síncopes da
vontade, as fases de trágico e tremendo desespero em que o espírito a si
mesmo pergunta se não é uma loucura perder as forças num trabalho
vão. Zola não duvidou nunca da nobreza e da utilidade de sua tarefa.

Muito além do razoável e do bom senso, Bilac exalta e


dramatiza, criando efeito diverso do pretendido também
nestas linhas dedicadas a José do Patrocínio e sua
tentativa de construir um dirigível que cruzasse o
Atlântico:
Ali dentro, o gênio humano está armazenando forças para alcançar
uma nova conquista; ali fermenta e ferve uma idéia imensa, ali cresce e
se empluma, para a grande viagem da luz, um sonho radiante. E quem
vê o pesado bonachão, que parece calmamente dormir, sob a soalheira
ardente do dia ou sob a paz estrelada da noite, não pode imaginar que
assombroso e misturado mundo de esperanças, de desesperos, de
desenganos, de surtos de fé, de assomos de coragem, de sacrifícios, de
desilusões, de milagres de pertinácia e de prodígios de trabalho está
vivendo e palpitando entre aquelas quatro paredes mudas...

Destrambelhado, o cronista substitui “cama” por um


ridículo “vale dos lençóis” e transforma certo bonde em
alucinação:
Haja sol ou chuva, labute ou durma a cidade, o trabalho metódico do
bonde não cessa: à alta noite, ou alta madrugada, quando já os mais
terríveis noctívagos se meteram no vale dos lençóis, ainda ele está
cumprindo o seu fadário, deslizando sobre os trilhos, abrindo clareiras
na treva com as suas lanternas vermelhas ou azuis, acordando o eco das
ruas desertas, velando incansável pela comodidade, pelo conforto, pelo
serviço da população.

E a cascata de gerúndios, anunciada no trecho acima,


finalmente surge:
Mas que te importa que digamos mal de ti, condescendente e
impassível bonde? Tu não dás ouvido às nossas recriminações, e vais
largando o teu domínio, dilatando o teu aranhol, suprimindo as
distâncias, confraternizando pela aproximação o Saco do Alferes com
Botafogo e a Vila Guarani com o Cosme Velho, e reinando como senhor
absoluto e indispensável sobre a nossa vida.

Ritmo ternário
A fraseologia bilaquiana guarda outra particularidade
maçante: a tríade de palavras encadeadas – esquemática
forma de acumulação. Certo jornalista é “o mais
completo, o mais brilhante e o mais popular”. Depois de
ir aos cinematógrafos, o autor se diz “derreado, tonto,
moído”; e afirma, sem perceber a importuna cacofonia,
que seu acompanhante “olhava, mirava, admirava,
embevecido, deliciado, enlevado”. O texto ganha ritmo
de modinhas e o leitor segue um bando de crianças,
“lenta e ruidosa maré de frescura, de mocidade, de
animação”. Surge, de repente, o perfil gerenciador de
Bilac: “Administrar não é somente gerir: é também, e
principalmente, assistir, acudir, prover”. Falando sobre a
Revolta da Vacina, o cronista se transforma num
militante ecológico: “[...] a alcatéia arrancara, torcera,
espezinhara, destruíra todas as pobres árvores
pequenas, que, ainda fracas e humildes, dentro de suas
frágeis grades de ferro, só pediam, para crescer e dar
sombra, um pouco de sol ao céu, um pouco de umidade à
terra e um pouco de carinho aos homens”. O povo
brasileiro, eis a irretorquível certeza do cronista, “tem
uma inteligência nativa, exuberante, pronta”. E o
ecologista retorna, agora para somar obviedade ao
discurso monótono: “Aves e borboletas são felizes: em
tendo um pedaço de céu azul, um bocado de jardim
verde, um raio tépido de sol, não pedem mais nada”.
Aferrado à receita medíocre, Bilac não descansa: “que
vida agoniada, inquieta, sobressaltada” exclama, nesse
estilo saltitante, referindo-se a Carlos Gomes; e conclui,
decidido a romper drasticamente o ritmo da frase, mas
preservando as rimas: “[...] numa perpétua luta com os
editores, com os empresários, com os cantores, e com os
credores!”.
Em certa crônica, Bilac reclama, de forma
surpreendente, da “retórica que se encarrega de
estragar tudo”. Concluímos, então, que ele de fato não
tinha consciência da própria inabilidade.
Pequenos escritores
Canhestro no estilo, às vezes o cronista oferece
informações jocosas. Sua visão do sistema literário em
1905, por exemplo, repete-se, sem grandes
modificações, atualmente. Para ele, o Rio de Janeiro era
a capital de uma nação que, sobre todas as outras do continente,
sempre teve a primazia em cousas da Inteligência. [...] É ela que possui
a literatura mais vibrante, mais original, e mais forte.

E conclui, depois desse jato de otimismo carioca, sem


atinar com o absurdo:
Uma só cousa tem prejudicado essa literatura: é o círculo restrito, em
que se expande acanhadamente a língua que falamos e
escrevemos...
Se os nossos escritores ainda não têm trabalho fácil e vida folgada, é
porque ainda não existe no país uma grande massa de leitores.

Termina o raciocínio voltando ao júbilo infundado, à


comemoração dessa literatura sem leitores:
É forçoso reconhecer que só nos falta isso: expansão literária. A
matéria-prima já a possuímos: temos literatura nossa, como temos arte
nossa – e esta supremacia intelectual e artística, ainda não a perdemos
(graças a todos os deuses!) no continente sul-americano.

Na crônica “Flaubert”, ao recordar viagem feita à


França, em 1890, para assistir, na cidade de Rouen, à
inauguração de um singelo busto do autor de
Madame
Bovary
, Bilac revela a faceta suburbana dos nossos
escritores. De Paris a Rouen, ele, Eduardo Prado, Paulo
Prado e Domício da Gama ocupam quatro lugares num
vagão de primeira classe com apenas oito poltronas. Nas
quatro restantes, Émile Zola, Edmond de Goncourt, Guy
de Maupassant e o editor Georges Charpentier. Mais
presumidos que acanhados, os brasileiros só conseguem
rir dos franceses. A descrição que Bilac faz é patética –
ou melhor, vergonhosa, tamanha a pequenez.
Tédio
No entanto, se os textos de Bilac estão recheados de
pompa pretensiosa, isto não se deve apenas ao estilo
maljeitoso, mas também ao narcisismo do autor:
O noticiarista retira da mina a ganga de quartzo em que o ouro dorme,
sem brilho e sem préstimo; o cronista separa o metal precioso da
matéria bruta que o abriga, e faz esplender ao sol a pepita rutilante.

Entre as “pepitas”, cuja prolixidade destila enfado e


bolor, há críticas e elogios à imprensa e aos políticos,
ditos irônicos, traços de humor, trechos autobiográficos,
descrições das causas e conseqüências da febre amarela
etc. E discurso ornamentado. Muita, muita perfumaria.

[ 36 ]
3 volumes, Edusp / Imprensa Oficial do Estado de São Paulo /
Editora da Unicamp, 2006.
[ 37 ]
Editora Cia. das Letras, 1996.
CAPÍTULO 6

A salvação pelo duplo


– Lindolfo Rocha e Maria Dusá

Pode-se definir
Maria Dusá
, de Lindolfo Rocha, como
um romance no qual certa ótima idéia é constrangida
pela linguagem claudicante. No afã de apresentar
múltiplos pormenores, incluindo-se as características
climáticas e sociológicas da Chapada Diamantina, região
em que a maior parte do enredo transcorre, o autor não
se satisfaz com escrever uma boa história, mas perde-se
em trechos retóricos ou de teor ensaístico. O próprio
subtítulo de
Maria Dusá
, suprimido nas edições
contemporâneas, revela parte da intenção do autor:
Garimpeiros (romance de costumes sertanejos e
chapadistas)
.
Logo na abertura do Capítulo
III
, de maneira a reforçar
a descrição da seca de 1860, cujas conseqüências foram
perfeitamente expostas no início do livro – não por meio
de digressões cansativas, mas de fatos dramáticos, sobre
os quais falaremos adiante –, o narrador insiste:
Nesse ano de tristíssimas recordações a zona ubertosa do interior da
província da Bahia transformou-se em terra sáfara, imprestável; de
nutriz fecunda e dadivosa, que era, mudou-se em madrasta irritadiça e
ilacrimável; de liberal e opulenta, em mendicante e miseranda.
Em grandes extensões de terreno não se vislumbrava sinal de clorofila
senão no Icó, a planta que resiste a todas as secas, e nas diversas
espécies de cactos, entre as quais sobressaíam o mandacaru, a
palmatória e o xiquexique formando este sempre e em grande cópia os
grandes e bizarros candelabros de Humboldt.

Poucos parágrafos à frente, do relatório climático


passamos à verborragia sentimentalóide:
Nas estradas, de espaço a espaço, encontravam-se quadros vivos da
mais completa consternação. Aqui, um velho, cercado de filhos e netos
famintos, num cirro interminável de durar dias e dias; ali,
um
desventurado pedindo pelo amor de Deus um punhado de farinha para
que o filho pudesse morrer; adiante a figura esquelética doutra
mater
dolorosa
, na última agonia, deixando que o filhinho lhe sugasse a
derradeira gota de leite sanguinoso; além, orlando a estrada,
arranchamentos provisórios, retirantes famintos, movendo-se
lentamente, em busca d’água ou de raízes, extremamente magros,
cheios de escaras, de doenças, de achaques, ou aniquilados de anemia
profunda, e dentre os quais partiam gritos que aterravam, gemidos que
cortavam o coração, e, de envolta com esses, imprecações dos
desesperados, pragas dos cínicos, gargalhadas dos desalmados, choro
de crianças, tudo isso lembrando alguma coisa daquele choro e ranger
de dentes do Juízo Final.

A imperiosa necessidade que o autor se impõe, de


desenhar um retrato social, quebra, em inúmeros
trechos, a espontaneidade da narrativa. Assim, por
exemplo, nada acrescenta à trama a notícia, no início do
Capítulo
V
, de que Mucujê chama-se, desde 1847, Vila
de Santa Isabel. Ou a informação, no mesmo capítulo,
que certo personagem, anos depois, teria um filho
governador do Estado. Ao descrever as conseqüências
do tiro dado contra um arruaceiro, o narrador torna-se
perito em anatomia: “Apenas quatro caroços de chumbo
empregaram-se na omoplata direita, interessando
somente o tecido celular subcutâneo”. Da mesma forma,
no Capítulo
VI
, assume a personalidade de um topógrafo
e fala sobre as “anfractuosidades do terreno”. Mais à
frente, no Capítulo
VII
, a fim de detalhar o sentimento
de saudade, transforma-se em psicólogo, explicando
como, “por um fenômeno de autopersuasão, mui
freqüente nas pessoas predispostas ao histerismo, a
gratidão [...] transformava-se em benquerer”. Na
seqüência, uma personagem não sente fome, mas
procura “não sucumbir à dor que lhe torturava a
principal fonte de renovação da vida animal”. Suposto
bioquímico, o narrador nos explica também os efeitos do
“cloreto de sódio em organismos desacostumados e
enfraquecidos”. Ainda preso a teses naturalistas,
justifica, utilizando-se de um biologismo rasteiro, a
independência financeira que algumas prostitutas
conquistavam à época:
Na Chapada Nova, como na Chapada Velha, era coisa vulgar verem-se
mulheres de vida livre, no auge da influência, transformadas
repentinamente em negociantes, capitalistas, garimpeiras, hoteleiras, e
até alquiladoras, abandonando dessarte, sem confissão nem penitência a
poliandria do tom. Era isso efeito de intuitiva previdência, reunida ao
instinto monogâmico, ou da conservação da espécie, que mui alto fala,
exatamente entre as mais baixas classes dos sertões brasileiros.

Não satisfeito, o narrador assume papel de geólogo,


fornecendo, no Capítulo
XIX
, longa e fastidiosa
explicação sobre o processo de formação do diamante,
bem como das técnicas de garimpagem.
Quanto à maldita retórica, renasce sempre. Recurso
nefasto, pronto a poluir e desequilibrar a narrativa,
como neste trecho:
Águas e serras! Que filho, que habitante destas regiões criadoras do
“diamante e do gênio”, não sentiu alguma vez toda a grandiosa poesia
dessas paisagens alpestres, que, se desnutrem ambições evangélicas, de
pobreza e santidade, tonificam o caráter para as mais rudes conquistas
da vida!
Águas e serras! Que desventurado, ausente, ou que feliz, mas ao
entardecer da existência, não rememora, saudoso, os dias idos, de
sonhadora contemplação das altas serranias, que dilaceram as nuvens
com o itacolumito de seus visos, ouvindo o escachoar das águas
límpidas, por entre as arestas do granito de seus flancos!
Águas e serras! Que filho ou ádvena não traz de memória o selo de
grandeza dessas altanadas serras, e o cunho fisiológico dessas águas
salubérrimas!

Suportamos parágrafos assim, de arrebatamento


meloso, apenas para nos deparar, no Capítulo
XXXIX
, com
outros ainda piores, aos quais se acrescenta patriotismo
avassalador.
Contar ou mostrar
Penso que uma das grandes dificuldades de Lindolfo
Rocha é a de efetivamente crer na sua capacidade de
narrar. Durante a leitura, lembrei-me do sábio conselho
de Anton Tchekhov: “Não diga que a lua está brilhando;
mostre o brilho da luz num copo quebrado”. Chega a ser
dramático perceber como o autor cumpre perfeitamente
a recomendação do escritor russo, caindo, logo a seguir,
no erro apontado na primeira parte da citação.
Vejamos um exemplo da insegurança de Lindolfo
Rocha. No início da história, na Fazenda Lagoa Seca,
devastada pela estiagem prolongada, encontramos a
família de Raimundo e Maria Rosa Alves, destruída
também por “incurável preguiça”. A desolação do
cenário impressiona – e o narrador nos fornece detalhes
iluminadores da pobreza, como o das filhas do casal, que
utilizam, na confecção das rendas de bilro, não alfinetes,
mas espinhos de mandacaru. Quando chega a
inesperada tropa, sob o comando de Ricardo Brandão,
temos a cena de terrível aviltamento, em que a velha
Maria Rosa não só desnuda as filhas diante do tropeiro,
a fim de ressaltar sua pobreza, como as oferece em troca
de um celamim de sal. A reação de Ricardo expressa
toda a sua personalidade: circunspecto,
ele analisa o
quadro jamais imaginado; aceita comprar a filha mais
velha, Maria; entrega aos pais não só sal, mas toucinho e
carne; e aproxima-se da jovem:
– Não chore, não, moça; seus pais venderam a filha, mas a filha não foi
comprada: fica aí, com eles; somente lembre-se que o mineiro se chama
Ricardo Brandão. Aqui está mais uma lembrança, que eu destinava a
uma irmã.
E assim dizendo, tirou da escarcela uma pequena medalha de prata e a
entregou com mão trêmula.

Ora, a configuração ética do personagem está dada.


Quando o jovem monta seu cavalo, já não é um tropeiro
qualquer, mas o herói, verdadeiro ginete do sertão. A luz
brilhou no copo quebrado. Lindolfo Rocha conseguiu o
que todo escritor deseja: mostrar algo – e não apenas
contá-lo. Qualquer outra informação que possa ser
adicionada deve cumprir, a partir desse ponto, duas
funções: reafirmar tais virtudes ou, a fim de desenvolver
a trama, negá-las, momentaneamente ou não.
O problema é que nosso autor parece, muitas vezes,
não ter consciência da técnica que utiliza. Assemelha-se
a um intuitivo cujos acertos nascem do acaso. Assim, ao
longo do texto, Lindolfo Rocha sente-se obrigado a
ressaltar as qualidades e defeitos de Ricardo, às vezes
por meio de novos fatos, bem narrados, mas
desgraçadamente repetindo, em inúmeros trechos, que
“a lua está brilhando”. Perde-se, então, nos insistentes
adjetivos ou nas longas, enfadonhas digressões.
Artimanhas e personagens
Todavia, é inacreditável que tal somatório de
truculências textuais não consiga destruir
Maria Dusá
.
E se a obra ainda é legível, deve isso, em parte, ao
enredo nem um pouco esquemático.
A imagem de Maria permanecerá, na mente de Ricardo,
como a da mulher idealizada. Depois de fugir da
perseguição policial, devido ao tiro que poderia ter
matado um arruaceiro, Ricardo volta a Minas Gerais,
para vender a tropa e rever a mãe. Ao mesmo tempo,
morrem Raimundo, Maria Rosa e o único filho homem.
Decidida a encontrar o tropeiro, cansada da pobreza,
Maria foge para a Chapada Diamantina. Na fuga,
inocente, une-se a um grupo de meretrizes. Recusando-
se a se prostituir, acaba sendo protegida, em Mucugê,
por D.ª Rosária. Aprende a ler e escrever; e começa a
fazer flores artesanais. Ricardo, que sonha com os
diamantes, volta à Bahia, acompanhado de um fiel
tropeiro, João Felipe, e de um cão, Amigo, que
desempenha papel importante na história. Ao chegar a
Xiquexique, é hospedado por um sertanejo, que a
princípio não
reconhece, a quem matara a fome depois
de abandonar Lagoa Seca. Os dois saem, certa noite, e
são atraídos pela festa que se realiza na casa de uma
famosa prostituta, Maria Dusá. Quando Ricardo vê a
mulher, acredita ser a Maria que se recusara a comprar,
tamanha a semelhança entre as duas. Invade a casa e,
para sua surpresa, é ridicularizado pela mulher e seus
convidados.
Pari passu
, D.ª Rosária e Maria,
pressionadas por mexericos, já haviam se transferido
também para Xiquexique; e, certa noite, durante uma
novena, Maria vê Ricardo na igreja. Tímida, pede que
sua protetora fale com ele. Contudo, quando a mulher se
aproxima, a confusão está formada: Ricardo acredita
que Maria Dusá é Maria – e vê em D.ª Rosária a
portadora do recado de uma pessoa ingrata, que,
esquecida do passado recente, agora o humilha. Com
seu insultuoso revide, o protagonista afasta de si, sem
saber, a Maria com que ainda sonha. Por outro lado,
Dusá não consegue tirar o mineiro voluntarioso de seus
pensamentos. A partir daí, os destinos dessas três
pessoas se entrecruzarão cada vez mais. Ricardo
progride com os diamantes, mas logo conhece a ruína,
embriagado pelo dinheiro fácil, por falsos amigos e
prostitutas. Dusá toma consciência do vazio de sua vida
e decide mudá-la radicalmente. Instigada por sua
semelhança com outra mulher – fato que,
gradativamente, torna-se público –, aproxima-se de
Maria e coloca-a sob sua proteção. Da mesma forma
que, a princípio sem o conhecimento do garimpeiro,
ajuda Ricardo em seus reveses.
A trama também ganha complexidade graças ao
recurso de retardar o esclarecimento de dúvidas e
confusões. No Capítulo
X
, a estranheza de Ricardo em
relação à forma exageradamente atenciosa com que é
tratado por seu anfitrião contamina o leitor, e passamos
a desconfiar do personagem. Só parágrafos à frente
descobrimos, junto com Ricardo, que se trata do
sertanejo a quem dera de comer capítulos antes.
A mesma técnica de retardamento é utilizada depois
que Ricardo invade a casa de Maria Dusá, certo de ter
sob os olhos a
sua
Maria. Somos iludidos por várias
páginas. O leitor acredita que o narrador exagera e não
sabe concatenar os fatos com a passagem do tempo. No
entanto, o que parecia uma falha – responsável por
transformar Maria, de maneira assaz rápida, numa
prostituta famosa – torna-se efeito elogiável, sedutora
artimanha.
O romance apresenta outras características relevantes.
Há maravilhoso grupo de personagens secundários, para
os quais o autor construiu cenas antológicas. Veja-se, no
Capítulo
XXI
, o trecho em que Antônio Roxo – honesto,
fiel a Maria Dusá, sonhador inveterado – vinga sua
amiga e patroa, submetendo o malevolente Aristo
Alfaiate a sábia punição, obrigando-o a comer o pasquim
anônimo que publicara para
caluniar Dusá. Ao final, um
elemento inesperado completa a vingança:
Em poucos minutos tinha engolido todo o pasquim. No último, Antônio
voltou ao tom zombeteiro, e ria.
– Agora, sim, disse ele, podemos ser camaradas. Com essa cura você
ainda pode fazer boa figura na sociedade, porque inteligência tem.
Assim não lhe dê ela pra aperrear os outros... Sim, já comeu tudo...
agora só bebendo um pouquinho do azeite da candeia, que eu acho que
papel comido assim faz um mal danado à barriga da gente.
E assim falando, procurava uma vasilha para tirar azeite.
– Tira aqui, Manuel Pedro.
O camarada assomou à porta.
[...]
Manuel Pedro apanhou uma xícara na saleta que servia de cozinha e
trouxe.
– Ah! Sô Antônio! O azeite da candeia está quente! olhe ali no canto
uma garrafa!
– Como é sabido! chasqueou o garimpeiro. Não gosta de azeite quente
pela boca! Porém no inferno você há de tomar fervendo por outros
lugares!
A garrafa estava cheia de azeite de mamona, retinto; o garimpeiro
encheu a xícara, e o Alfaiate bebeu-a de um fôlego.
– Bem, agora estamos de pazes. Adeusinho, e queira-me bem que não
custa dinheiro, disse Antônio, saindo adiante do camarada.
O alfaiate chorava debruçado sobre a mesa do quarto.
Pela porta da rua, que ficara aberta, entrou apressado um vulto de
mulher. Na porta do quarto, apostrofou:
– Mas isso é que é miséria no mundo! Toma estas saias e dá cá essas
calças, peste!
Disse e fez meia volta, retirando-se. Era a vizinha predileta do Aristo.

Outro personagem cativante é Amigo, perdigueiro que


não tem os dotes quase humanos da Baleia de Graciliano
Ramos, mas cujas inteligência e afeição pelo dono
empolgam, enternecem. Ocupa papel crucial na terrível
luta do Capítulo
XXIII
, ao defender Ricardo de seus
captores. O trecho, aliás, termina com duas cenas de
grande humanidade: o divertido diálogo entre o inspetor
de polícia e sua esposa, quando esta o censura pela
covardia; e o encontro de dois apenados com um
terceiro, que fora atacado por Amigo e morria: os
personagens demonstram ternura pelo agonizante,
cumprem as ordens do inspetor, de se desfazer dos
outros corpos, e ainda têm a esperteza de fugir.
Humor, perfeito coloquialismo, respeito, benevolência e
maternal fidelidade estão presentes em todos os
diálogos que Dusá mantém com Rita, a escrava à qual,
no fim da trama, dará carta de alforria. Mas é uma pena
que o narrador mostre-se vacilante em sua maneira de
retratar as mulheres: ao mesmo tempo que compõe
Dusá, protagonista capaz de altruísmo e
autoconhecimento, às vezes assume certa posição
preconceituosa, como no Capítulo
XIV
, em que
generaliza, acusando todas de serem supersticiosas.
Doppelgänger
É curioso que parcela da crítica insista em permanecer
cega às qualidades de
Maria Dusá
. Alfredo Bosi
restringe-se a recomendar sua leitura, não sem alguma
ironia, aos “críticos que, por gosto ou convicção
doutrinária, amam a projeção romanesca do trabalho
humano, com toda a fadiga e a esperança que implica”.
Massaud Moisés explicita, em duas páginas, o que
define como “luz dissonante imprevista”; e, seguindo os
passos de Lúcia Miguel-Pereira, chama de “solução
primária ou de mau gosto” a semelhança entre Maria e
Maria Dusá.
Penso de maneira oposta. Na verdade, o tema do
doppelgänger
– do
duplo
– é dos mais recorrentes na
literatura: de Plauto, e sua
Menaechmi
, a Shakespeare
e
A comédia dos erros
, chegando, apenas para citar dois
exemplos, aos contos
O parceiro secreto
, de Joseph
Conrad, e
O outro
, de Jorge Luis Borges. São inúmeros
os desdobramentos do tema, demonstrando a
indiscutível riqueza que oferece à arquitetura narrativa,
romanesca ou não.
À parte a confusão que permite – nos personagens que
vêem a duplicidade ou a experimentam em suas próprias
vidas –, o duplo surge, também, como ensejo à mudança
ou à reafirmação da própria identidade. No caso de
Maria Dusá, a insatisfação com sua vida e a decisão de
mudar são anteriores à descoberta de Maria, mas o
encontro com a igual reforça a urgência de ser
diferente. Colocada diante de Maria – virgem, pobre,
abandonada –, Dusá vê com maior nitidez sua condição:
é rica e famosa; mas riqueza e fama que durarão, bem
sabe, apenas enquanto for atraente.
Neste romance, ver o duplo não é enlouquecer, como
ocorre em parte das narrativas que utilizam o
doppelgänger
. Ao contrário, a solução de Lindolfo
Rocha mostra-se agradavelmente complexa, pois
constrói dois destinos opostos: Maria Dusá recusa o
presente vivido enquanto ilusão, abandona as fantasias
da vida depravada e abraça o real; não se definirá mais
pelo que sonha ser, mas pela realidade; sua lucidez
cresce – e mesmo que, de início, sofra com a
maledicência das pessoas ou com a dúvida em
relação
aos sentimentos de Ricardo, seu prêmio, no fim, será a
felicidade. Ocorre o inverso com Maria. Deixando-se
levar pelos acontecimentos, inclusive por certo
incontrolável sensualismo, assume, a princípio, uma
posição leviana, depois cínica, finalmente diabólica.
Veja-se o perturbador Capítulo
XXVI
, em que a
transformação de Maria se consuma diante de Dusá: a
jovem parece incorporar a personalidade da prostituta e
de sua pior inimiga, tentando, inclusive, seduzir a
protetora. Mais tarde, chega, por acidente, a casar-se,
mas a viuvez – provocada pela semelhança que tem com
Dusá – leva-a, finalmente, à prostituição e à morte.
Em
Maria Dusá
, o encontro com o duplo não oblitera o
eu, mas, ao contrário, afirma-o. Permite às personagens
fugir da ambivalência – para o bem e para o mal. Há no
romance, portanto, instigadora dimensão ética, na qual
a escolha entre objetividade e sonho, realidade e
fantasia, impõe, como na própria vida, conseqüências.
No caso específico de Dusá, o encontro com sua mítica
metade significa uma salvadora reintegração ao real.
Luta
O romance que Wilson Martins chamou de
“superestimado [...], ficção folhetinesca e
melodramática”,
[ 38 ]
tem, portanto, qualidades que
não podem ser desprezadas. E o que menos importa em
Maria Dusá
é exatamente o seu regionalismo, apesar de
ter servido, segundo informações de Múcio Leão, à
Comissão de Filologia da Academia Brasileira de Letras
“como uma das suas fontes de abonação de
brasileirismos”. Na verdade, os aspectos positivos do
livro revelam a luta do escritor, consciente ou não, para
libertar-se da retórica oitocentista e buscar o que, até
aquele princípio do século
XX
, poucos autores nacionais
tinham encontrado: a literatura.

[ 38 ]
História da Inteligência do Brasil
, Volume V (1897-1914), 2ª edição,
T. A. Queiroz Editor, São Paulo, 1996.
CAPÍTULO 7

Retorno à querência
– Simões Lopes Neto e Lendas do Sul

Vem de longe minha admiração pelo gaúcho João


Simões Lopes Neto. Na biblioteca de meu pai havia um
exemplar ricamente ilustrado do
Lendas do Sul
. Ainda
menino, eu tinha certeza de que, aberto o volume, o
sortilégio mais uma vez me atingiria – mas recalcitrava
contra o medo e retornava às gravuras, àquele início
perturbador de “A Mboitatá”:
Foi assim:
num tempo muito antigo, muito, houve uma noite tão comprida que
pareceu que nunca mais haveria luz do dia.
Noite escura como breu, sem lume no céu, sem vento, sem serenada e
sem rumores, sem cheiro dos pastos maduros nem das flores da mataria.

Lá estava eu novamente, cego imerso no caos, tocando


às apalpadelas o vazio que me circundava, temendo que
a cobra-grande aparecesse. Depois, à noite, como cruzar
o corredor – pequeno trecho do conto, pleno de
escuridão – que levava do meu quarto ao banheiro?
Hoje, quando me disponho a escrever sobre
Lendas do
Sul
, há, no entanto, outro obstáculo. É difícil tratar de
aspectos que não tenham sido analisados por Augusto
Meyer, um dos poucos mestres da crítica literária
nacional, que em três ensaios – presentes no volume
Prosa dos Pagos (1941-1959)
[ 39 ]
– praticamente
esgotou os elogios, os estudos pormenorizados e o
levantamento histórico dos temas e das fontes de Simões
Lopes Neto. E o fez com seu estilo nobre, inconfundível.
Na verdade, qualquer análise da obra do escritor
pelotense guarda uma dívida com esse crítico, ainda que
prefira escondê-lo na bibliografia...
Alegoria e epizeuxe
A lenda do Negrinho do Pastoreio, que Simões Lopes
Neto reconta, nasce, como bem definiu Augusto Meyer,
do “estrume da escravidão”.
Saliente-se, aliás, a
sugestiva analogia que o crítico estabelece entre a
narrativa e a descrição do naturalista e viajante Auguste
de Saint-Hilaire, que tivera a oportunidade de encontrar
– e deixou gravado em seu
Notícia descritiva da
Província do Rio Grande de S. Pedro do Sul
– um dos
possíveis arquétipos que inspiraram a tradição popular:
Há sempre na sala um negrinho de dez a doze anos que permanece de
pé, pronto a ir chamar os outros escravos, a trazer um copo d’água e a
fazer todos os pequenos recados necessários ao serviço interior da casa.
Não conheço criatura mais desgraçada que esta criança. Não se assenta,
nunca ninguém lhe sorri, nunca se diverte, passa a vida tristemente
apoiado à parede e é muitas vezes martirizado pelos filhos de seu
senhor.

Voltemos à lenda. Depois de nos remeter a um tempo


imemorial, o narrador apresenta o estancieiro “muito
mau, muito”. Vilão da história, ele perseguirá, com a
ajuda do filho – “menino maleva” e “cargoso” –, o pobre
Negrinho, ginete numa corrida de cavalos da qual sai,
desgraçadamente, derrotado. O estancieiro, apesar de
ter o melhor animal, não vence a disputa, talvez por
causa de sua ganância: ao combinar a corrida com o
vizinho, não aceita a proposta do oponente, de doar o
prêmio de mil onças de ouro aos pobres. Na volta para
casa, a descrição do perdedor deixa antever a maldade
que recairá sobre o escravo:
O estancieiro [...] veio pensando, pensando, calado, em todo o caminho.
A cara dele vinha lisa, mas o coração vinha corcoveando como touro de
banhado laçado meia espalda. O trompaço das mil onças tinha-lhe
arrebentado a alma.

A frustração do personagem atinge o protagonista,


elemento mais fraco, indefeso, que se torna, portanto,
bode expiatório. De surra em surra, o drama do
Negrinho se agiganta graças à diligente maldade do
filho do estancieiro, sempre pronto a criar novas
dificuldades quando a solução se avizinha e o escravo
está a um passo de retomar seu cotidiano. Bem e mal se
enfrentam numa cena evangélica: o Negrinho é a vítima
sem palavras – o narrador permite-lhe apenas gemer ou
sorrir –, enquanto estancieiro e filho tripudiam,
entregam-se ao sadismo incontrolável. No derradeiro
castigo, quando o corpo do cândido escravo é lançado às
formigas, o narrador prenuncia: “pareceu que morreu”.
Seguem-se noites e dias estranhos, de cerração forte,
durante os quais o estancieiro sonha
que ele era ele mesmo, mil vezes e que tinha mil filhos e mil
negrinhos,
mil cavalos baios e mil vezes mil onças de ouro… e que tudo isto cabia
folgado dentro de um formigueiro pequeno...

Poder, riqueza e maldade transformam-se, assim, no


que realmente são: desprezível, impotente formigueiro.
Trata-se de sonho profético, cuja chave o truculento
latifundiário só perceberá na terceira e alegórica manhã,
quando, dirigindo-se à boca do formigueiro, encontra o
Negrinho “de pé, com a pele lisa, perfeita, sacudindo de
si as formigas que o cobriam ainda” – e a seu lado, “a
Virgem, Nossa Senhora, tão serena, pousada na terra,
mas mostrando que estava no céu”. Montado no baio e
comandando a tropilha do senhor, o Negrinho parte a
galope, agora transformado em milagre, pronto a repetir
na vida dos fiéis o que tentou fazer desesperadamente
por seu torturador: encontrar-lhe os cavalos perdidos e
trazê-los com segurança à fazenda.
De fato, em nosso imaginário, só a alegoria – e não
apenas o símbolo – pode explicar, dado o seu sentido
moral, o sofrimento absurdo e despropositado, a
“infância triturada na engrenagem da estrutura
colonial”, como afirmou, com agudeza, Augusto Meyer.
Mas a técnica de Simões Lopes Neto não se revela
apenas na imagística. “Onde o modelo rasteja, ele voa”,
diz Meyer. Vejam, por exemplo, a habilidade do autor ao
retardar a informação de que é o Negrinho quem,
durante a corrida, cavalga o baio do estancieiro, o que
lança o personagem no centro de seu drama de forma
abrupta, com ele em plena disputa, a pedir auxílio à
“Virgem Madrinha”. E, melhor, sempre reencontro com
prazer o uso que ele faz da epizeuxe, enfatizando, por
meio de certas repetições, as experiências dramáticas
do protagonista. Tais construções pleonásticas amoldam-
se bem ao modelo dessa legenda típica de alguns
martirológios, ampliando nossa compaixão.
Anáfora e humor
A “Salamanca do Jarau” é narrativa mais complexa. O
protagonista, o vaqueiro pobre Blau Nunes, típico anti-
herói, já inicia a história sob o feitiço do Caipora, que,
encontrado em certo campo, trouxera-lhe má sorte:
“Gaúcho valente que era dantes, ainda era valente,
agora; mas, quando cruzava o facão com qualquer
paisano, o ferro da sua mão ia mermando e o do
contrário o lanhava...”. É nesse estado frágil que se
deparará, enquanto busca um boi barroso, com a figura
mítica do “santão da salamanca do cerro”. Instigado por
este, repetirá a lenda que a avó lhe contava, sobre como
o Anhangá-pitã, o demônio, encontra-se, na América,
com os mouros fugidos da Guerra da Reconquista, seus
servos na Península Ibérica. Vinham em busca de
riquezas, a fim de “alçar de novo a Meia-Lua sobre a
Estrela de Belém”. Anhangá-pitã os recebe com
alegria,
pois introduzirão, finalmente, a ganância numa “gente
sem cobiça de riquezas”.
Trata-se, percebemos, do reconto da introdução do Mal
no Jardim do Éden. Ocorre, a seguir, dupla
transformação: o demônio segura o “condão mágico”
que eles traziam e transforma-o numa “pedra
transparente”. Quanto à fada moura que também os
acompanhava, “demudou-a em teiniaguá, sem cabeça. E
por cabeça encravou então no novo corpo da encantada
a pedra, aquela, que era condão, aquele”. A essa híbrida
lagartixa o demônio ensina os caminhos secretos que
levam a cavernas repletas de tesouros.
Conclui-se, assim, a primeira parte da história. A
segunda, o narrador deixa a cargo do santão “de face
branca e tristonha”, que passa a completar o que Blau
Nunes lhe contara. A narrativa torna-se, então,
autobiográfica – e descobrimos que o velho fora, na
longínqua juventude, em tempos que remontam à
primeira presença jesuítica no Sul, um sacristão
devotado. Ele encontra, certo dia, a teiniaguá, “a
lagartixa engraçada e buliçosa”, prende-a num chifre e
leva-a consigo, escondendo-a numa canastra, certo de
que as promessas de riqueza que a lenda contava se
realizariam em sua vida. Essa história é, portanto, a
concretização do relato maravilhoso que Blau Nunes
narrara. O sacristão delira em seu sonho de fortuna. E
quando abre, à noite, a canastra, para, em sua
inocência, alimentar a lagartixa, esta se transforma na
princesa moura – será ela, mulher de esplêndida beleza,
que esconde, entretanto, essência rasteira, quem lhe
proporá o pacto fáustico. A dívida contraída deverá ser
paga da pior forma, a do ser destruído em sua unidade,
obrigado a servir a dois senhores:
Cada noite era meu ninho o regaço da moura; mas, quando batia a alva,
ela desaparecia ante a minha face cavada de olheiras...
E crivado de pecados mortais, no adjutório da missa trocava os amém,
e todo me estortegava e doía quando o padre lançava a bênção sobre a
gente ajoelhada, que rezava para alívio dos seus pobres pecados, que
nem pecados eram, comparados com os meus...

Antagonismo que o sacristão experimentará de forma


paroxística, quase livre da prisão a que os padres o
condenam quando descobrem seus crimes, mas
definitivamente acorrentado ao Mal. Vejam como Simões
Lopes Neto constrói o quadro, compondo um texto
sedutoramente anafórico:
Fiquei sozinho, ouvindo com os ouvidos da minha cabeça as ladainhas
que iam minguando, em retirada… mas também ouvindo com os ouvidos
do pensamento o chamado carinhoso da teiniaguá;
os olhos do meu rosto
viam a consolação da graça de Maria Puríssima que se alonjava... mas os
olhos do pensamento viam a tentação do riso mimoso da teiniaguá; o
nariz do meu rosto tomava o faro do incenso que fugia, ardendo e
perfumando as santidades… mas o faro do pensamento sorvia a essência
das flores do mel fino de que a teiniaguá tanto gostava; a língua da
minha boca estava seca, de agonia, dura de terror, amarga de doença…
mas a língua do pensamento saboreava os beijos da teiniaguá, doces e
macios, frescos e sumarentos como polpa de guabiju colhido ao nascer
do sol; o tato das minhas mãos tocava manilhas de ferro, que me
prendiam por braços e pernas… mas o tato do pensamento roçava
sôfrego pelo corpo da encantada, torneado e rijo, que se encolhia em
ânsias, arrepiado como um lombo de jaguar no cio, que se estendia
planchado como um corpo de cascavel em fúria...

Agora, passados duzentos anos, o sacristão lamenta-se


ao paciente vaqueiro: tem todas as riquezas escondidas
nas cavernas cujos caminhos o demônio ensinou à
lagartixa-princesa, mas é como se não as possuísse:
E eu olho para tudo, enfarado de ter tanto e de não poder gozar nada
entre os homens, como quando era como eles e como eles gemia
necessidades e cuspia invejas, tendo horas de bom coração por dias de
maldade e sempre aborrecimento do que possuía, ambicionando o que
não possuía...

É o preço a pagar pela


hybris
, pela ambição
desmedida.
Inicia-se, então, a terceira história dentro da narrativa,
com o comando de volta ao narrador onisciente. Como o
vaqueiro, ao chegar, saudou o velho usando uma fórmula
cristã – e foi o primeiro a fazê-lo em tantos anos –, tem
direito a entrar na caverna do Jarau, passar por sete
provas e, se não for vencido, encontrar-se com a
princesa e ver seus sonhos realizados. Blau aceita, vence
as provas e recusa os favores que a moura, agora uma
“velha carquincha e curvada, tremendo de caduca”, lhe
oferece. Mas não age assim por ser bom ou honesto; ao
contrário, diz não a cada um dos favores apresentados
apenas por querer todos. Na verdade, repete a ganância
do sacristão, revelando sua frágil condição humana. O
resultado é ver-se expulso da caverna. Monta seu cavalo,
cheio de desânimo, mas o sacristão reaparece,
oferecendo-lhe consolo: uma onça de ouro que lhe “dará
tantas outras quantas quiseres, mas sempre de uma em
uma e nunca mais que uma por vez”.
Começa assim a verdadeira prova moral do vaqueiro
Blau Nunes. A princípio, tudo corre bem. A cada onça de
ouro retirada do cinto sob o poncho, nova onça surge.
Simões Lopes Neto insere, então, um quadro
agradavelmente jocoso: ao comprar certo campo e dez
mil cabeças de gado, o vaqueiro precisa desembolsar
três mil onças, o que leva um dia inteiro:
Cansou-lhe o braço; cansou-lhe o corpo; não falhava golpe, mas tinha
de ser como martelada, que não se dá duas ao mesmo tempo...
O vendedor, à espera que Blau completasse a soma, saiu, mateou,
sesteou; e quando, sobre a tarde, voltou à ramada, lá estava ele ainda
aparando onça trás onça!...
Ao escurecer estava completo o ajuste.

A fama do vaqueiro se alastra. Mas tudo que recebe em


seus negócios evapora-se “como água em tijolo quente”.
E quem aceita negociar com ele, a seguir perde as onças
que recebe. Blau Nunes, abandonado por todos,
condenado ao isolamento, toma sua primeira decisão
realmente heróica: volta ao cerro do Jarau para devolver
a onça ao velho. Sua resolução resgata-o para a verdade,
transformando-o, novamente, no vaqueiro destemido e
simples – mas salva também seu interlocutor. Este, ao
receber de Blau, na chegada e na despedida,
cumprimentos cristãos, alcança o número cabalístico
exigido para se ver livre da lagartixa-princesa. Nesse
mesmo instante, como prometia a lenda, a caverna
explode e os tesouros do demônio transformam-se em
fumaça:
Blau Nunes também não quis mais ver; traçou sobre o seu peito uma
cruz larga, de defesa, na testa do seu cavalo outra, e deu de rédea e
despacito foi baixando a encosta do cerro, com o coração aliviado e
retinindo como se dentro dele cantasse o passarinho verde...
E agora, estava certo de que era pobre como dantes, porém que
comeria em paz o seu churrasco...; e em paz o seu chimarrão, em paz a
sua sesta, em paz a sua vida!...

Ao recusar a quimera demoníaca, Blau Nunes não salva


apenas a si mesmo, mas quebra a corrente de uma
história de sujeição ao Mal.
No ensaio em que analisa o conto, Augusto Meyer
recupera as tradições que formaram essa lenda hoje
politicamente incorreta, que coloca os muçulmanos
como sócios do demônio – o que certamente levará
algum esquerdista membro do Conselho Nacional de
Educação a, em breve, propor a censura de Simões
Lopes Neto... E ao analisar as linhas que abrem a
narrativa, plenas do que ele chama de “boleio de frase”,
Meyer sintetiza as qualidades estilísticas:
Escolhi esta nesga de exemplo porque, ao primeiro relance, não há
nada mais banal; é o tom da própria banalidade. Bem
examinada a
construção, todavia, nada mais sutil; as freqüentes pausas respiratórias,
o descosido e alinhavado no modo de contar, a habilidade na repetição –
a meu ver proposital – das preposições, que nesse caso logo sugerem a
pronúncia da nossa gente da campanha, tudo se acha amalgamado com
arte perfeita, que não poderia ter sido simples intuição, mas fruto de
longo amadurecimento. Como esse, há outros exemplos, noutro registro
de expressão, todos passíveis do mesmo reparo.

O narrador ideal
“A Mboitatá”, contudo, é a narrativa mais admirável.
Simões Lopes Neto conseguiu criar um exemplo perfeito
de sintetismo, construindo-o por meio de elementos que,
de forma reiterada, transportam-nos ao universo mítico.
Numa cosmologia primitiva, a longa noite está
instaurada – e o que veio antes dela permanecerá
incógnito. O homem, anulado diante do cosmo que se
desorganizou, encontra-se no anti-gênesis. Estamos
in
illo tempore
: um passado indefinido, em meio ao caos. A
desordem absoluta, que enche de pavor homens e
animais, favorece o surgimento do prodígio maléfico: a
serpente que devora olhos.
O narrador assume o papel de quem detém uma
verdade ancestral. Há austeridade no narrar. E ele não
permite dúvidas ao dizer que “os homens viveram
abichornados, na tristeza dura”, usando o verbo no
pretérito perfeito, de maneira a salientar, semelhante a
uma testemunha, os fatos que se desenrolaram num
tempo indeterminado.
Vejam com que habilidade o narrador rejeita, no início
de diferentes trechos, partes do seu próprio testemunho
– “Minto”, ele diz –, de maneira a intensificar a
dramaticidade do relato e inserir novos elementos, que
desequilibram as poucas certezas do leitor: por exemplo,
na Parte II, o canto do pássaro que “agüenta a
esperança dos homens” – bela figura, construída graças
à acepção inusual do verbo.
A reflexão moral da Parte IV pausa a narrativa e
enfatiza seu caráter universal, destruindo a
possibilidade de os leitores reduzirem o impacto da
mensagem ao microcosmo rio-grandense. E, logo a
seguir, ao retomar a linha mestra do relato, o discurso se
hiperboliza, a fim de materializar ainda mais a cobra-
grande e sua fome descomunal. Na Parte VI, o “vai”
anafórico cria o
continuum
, trecho síntese que faz
nascer a cobra, “uma luzerna, um clarão sem chamas,
[...] um fogaréu azulado, de luz amarela e triste e fria,
saída dos olhos, que fora guardada neles, quando ainda
estavam vivos...”. Encontramo-nos, assim, em plena
“persuasão da continuidade”, para recordar a feliz
expressão de Northrop Frye.
A morte do ser mítico não diminui a intensidade do
relato. Ao
contrário, é a conseqüência esperada, pois
não há outro destino possível a quem se alimenta do que
está morto, ainda que lhe reste alguma frágil luz. O sol
renasce, então, tímido, e lentamente a natureza
recupera sua ordem. Mas a luz da boitatá permanece
como fantasmagoria ou malefício. No entanto, aquilo
que ainda causa medo serve também à coragem:
Quem encontra a boitatá pode até ficar cego... Quando alguém topa
com ela só tem dois meios de se livrar: ou ficar parado, muito quieto, de
olhos fechados apertados e sem respirar, até ir-se ela embora, ou, se
anda a cavalo, desenrodilhar o laço, fazer uma armada grande e atirar-
lha em cima, e tocar a galope, trazendo o laço de arrasto, todo solto, até
a ilhapa!
A boitatá vem acompanhando o ferro da argola... mas de repente,
batendo numa macega, toda se desmancha, e vai esfarinhando a luz,
para emulitar-se de novo, com vagar, na aragem que ajuda.

Simões Lopes Neto é o mestre e sábio de que nos fala


Walter Benjamin em seu “O narrador – Considerações
sobre a obra de Nikolai Leskov”: ele sabe,
intuitivamente, que os relatos sobre nossos medos
primevos ensinam os homens a “enfrentar as forças do
mundo mítico com astúcia e arrogância”.
A prova de destreza à qual o gaúcho é chamado,
venceu-a Simões Lopes Neto, ao não se render às
fórmulas regionalistas fáceis, que, edificando um
monumento ao localismo, acreditam ter encontrado
receita infalível de originalidade. Ele é o narrador ideal
de Benjamin, “que poderia deixar a luz tênue de sua
narração consumir completamente a mecha de sua
vida”. Superou o mero registro da oralidade e soube
controlar, com perfeição, os elementos da sintaxe, da
riqueza vocabular – e também da imagística, da
simbólica. Em “A Mboitatá”, experimentamos, sim, o
horror – mas hoje, ao abrir a porta do quarto e deparar-
me com a escuridão, cruzo-a sem me dar ao trabalho de
acender a luz, pois o narrador conduziu-me de volta à
sonhada querência.

[ 39 ]
Livraria São José, Rio de Janeiro, 1960.
CAPÍTULO 8

Manual de literatice
– Antônio Sales e Aves de arribação

Se existe mérito em
Aves de arribação
, do cearense
Antônio Sales, é o de concentrar, em quase duas
centenas de páginas, os defeitos da literatura brasileira,
mostrar que eles conseguiram vencer, incólumes, o
século
XIX
e ressurgir nesse romance anacrônico, repleto
da ornamentação piegas que polui os livros de José de
Alencar, do naturalismo exacerbado de Aluísio de
Azevedo e da retórica afetada de Raul Pompéia. Obra
que Lúcia Miguel-Pereira não leu ou leu mal, a ponto de
não explicar o que tentou dizer, em
Prosa de ficção
,
[ 40
]
ao chamá-lo de “livro de qualidades”. Elogio impreciso,
de certa forma repetido por Alfredo Bosi, para quem
Aves de arribação
“se lê ainda hoje com agrado”.
[ 41 ]
Ninguém, contudo, foi tão enfático quanto Massaud
Moisés:
Tudo bem ponderado, parecendo acima ou à margem das ortodoxias
estéticas, colhendo na realidade o assunto galante e transfundindo-o em
arte com “sensação e força”, fundando-se na observação do cotidiano,
mas sem apelo aos maniqueísmos patológicos ou sentimentais,
Aves de
arribação
pode bem situar-se na ficção que prenuncia o romance
nordestino dos anos 30.
[ 42 ]

Não é, decididamente, o que encontrei nesse romance


verboso, no qual o talento escasseia.
Extravagâncias
Os perfis e rascunhos de trama apresentados no
Capítulo
I
morrem ali mesmo, pouco restando das
diferenças políticas tão salientadas, que acabam
servindo apenas como tênue pano de fundo para uma
história de mexericos, sentimentalismo provinciano e
dramas mesquinhos. Subtraídas as incongruências, resta
o parágrafo que fecha o capítulo, síntese dos problemas
repetidos até o final:
Por todas as abertas do templo se escapavam morcegos para a
razia
noturna, tomando rumos diversos, num vôo trôpego, a que faltava a
flutuação serena da plumagem. Nos tamarindeiros do quintal as graúnas
faziam as despedidas ao sol, desferindo as notas agudas e limpas do seu
canto, a estalarem cristalinamente na calma religiosa do ar.

A plumagem que falta aos morcegos sobrará, logo a


seguir, nos galos cujos cantos “se repetiam de quintal
em quintal num concertante wagneriano”. Não bastasse
o despropósito da imagem, o narrador a esmiúça, por
masoquismo ou sadismo, salientando as “notas grossas e
arrastadas de galos velhos, outras limpas e retinidas de
galos novos, tudo entremeado dos falsetes dos
franguinhos pretensiosos e dominado pelas fanfarras
intermitentes das galinhas-d’angola”. Trata-se de
verdadeira banda marcial, reveladora da fixação
ornitológica desse antipatizante de Wagner. Apenas
anunciada no Capítulo
II
, alcançará o clímax no Capítulo
VII
, quando uma epidemia de pássaros ataca o leitor,
precedida deste parágrafo, outro resumo do estrago
causado pela eloqüência:
Já saturado d’água, o solo não emitia esse calor de cio que lhe irradia
das entranhas ao contato das primeiras chuvas. Os rios corriam
túrgidos, na majestade soberana das grandes forças, atingindo a orla
das altas ribanceiras, de onde se debruçavam os mofumbos folhudos e
os canoés alongavam as raízes longas e retilíneas como os tubos de um
órgão. O marulho surdo das águas, rolando sobre as lajes do leito,
acompanhava o grande coro das aves, cujas vozes, diferentes de som e
expressão, se harmonizavam no mesmo hosana festivo em honra da
estação bendita.

Na seqüência, insistindo na metáfora sinfônica, o autor


nos oferece aborrecida “confusão maviosa de uma Babel
musical”, com nada menos que onze parágrafos
dedicados, cada um, a um pássaro diferente: exercício
artificial de estilo, perfeito talvez num livro de zoologia,
mas que, no romance, além de descontextualizado, serve
apenas para comprovar o demérito do escritor, cuja
incansável atração pelo tema ainda produz, no final do
capítulo, terrível paralelo: “E, tomando o pé da rapariga
na mão direita e segurando-lhe a cinta com a esquerda,
guindou-a até a altura da sela, onde ela se sentou com
um donaire de ave que pousa num ramo”.
Outra excentricidade do narrador é composta pelas
paisagens evocativas – nas quais é necessário sempre
inserir um elemento dourado. As nuvens, no final da
tarde, podem ser – não obstante a cacofonia – “pardas
oureladas de ouro”. Mais à frente, também o sol matinal
“redourava magnificamente” as “ruas mesquinhas”; e o
próprio capim
mostra-se “salpicado aqui e ali de
pequeninas flores de ouro”. A cor retorna neste trecho
de tom horrivelmente hiperbólico:
De volta, encontraram toda a família, que saíra ao encontro deles, a
passear pelo pátio, todo fulgurante de uma póstuma claridade solar, que
projetava em todas as superfícies fronteiras uma ardente coloração de
incêndio. Os morcegos surpreendidos doidejavam no espaço e
mergulhavam no estendal das frondes em busca da escuridão foragida.
Florzinha, de branco, rutilava naquele fundo incandescente como uma
estátua de ouro; e naquele instante Alípio sentiu que, com o seu vestido
de cambraia e ao clarão daquele pôr do sol fantástico, ela era mais
formosa que se estivesse coberta de seda num salão flamejante de luz.

As nuvens “oureladas de ouro” voltarão no início do


Capítulo
XVIII
, agora aguardando “o carro ígneo do
estio”. E adivinhamos a mesma repetida imagem no
último capítulo, no poente “todo em fogo” que “corroía
os contornos caprichosos dos formidáveis torrões de
nuvens por cujas seteiras se derramava a luz como
jorros de metal em fusão”.
Verborragia
A tediosa predileção de Sales pelo adjetivo produz
aberrações diversas. Não há dificuldade em imaginar
“pintinhos gritadores”, mas que eles sejam inclusive
“flocosos”, bem, certamente há formas melhores de
descrevê-los. A desmedida pode criar monstros: a
personagem que apresenta “brilho úmido dos olhos a
arderem inquietos sob o velário negro das pestanas
palpitantes” ou esta, que, ao discursar, atinge “o delírio
lúcido dos oradores da raça”. Após farto almoço, os
personagens fumam e conversam, “enquanto passava a
crise da digestão”, talvez pontuada de algumas cólicas.
E muito pode ser subtraído destes pobres cavalos de
feira, perdidos numa cidadezinha do interior do Ceará,
mas transformados em seres mitológicos:
[...] nédios animais de sela, tratados com esmero, gordos de se “poder
lavá-los com uma bochecha d’água”, aprendidos em todas as marchas,
quer na estrada, quer na meia marcha, quer por cima, na alta
esquipação, em que desfilam vertiginosamente, de pescoço encapotado,
a tocar com o beiço inferior no largo peito branco de espuma, as fartas
crinas agitadas ao vento e a cauda longa e crespa desfraldada e soberba
como um pavilhão triunfante.

O mesmo hiperbolismo agiganta “uma sensação de


deslumbramento produzida pela visão fulgurante de um
vestido branco ao sol e de uns cabelos soltos que o vento
repuxava num feixe luminoso, como a cauda de
um
cometa”. E Alencar, esteja onde estiver, com certeza
alegra-se ao ver o conterrâneo passarinheiro aprimorar,
até o paroxismo, suas lições:
A emoção só não atingira às graúnas, que, do alto dos tamarindeiros,
garganteavam ao cair da tarde notas sublimes ressoando
cristalinamente sob um céu purpureado que se arqueava sobre a cidade
com uma majestade feita de serenidade e de mistério.

O rebuscamento não conhece limites, a lista de


horrores é infindável, os lugares-comuns se repetem e o
resultado cria, inúmeras vezes, efeito cômico, diverso do
pretendido pelo autor: certa personagem tem as
palavras “cortadas freqüentemente pelos ecos dos
soluços extintos, como lufadas de um temporal que se
afastava”; outra “praticara em seu eu a mutilação da
consciência, e adquirira por isso a indiferença feroz de
um eunuco moral” – descrição no mínimo grotesca.
Não bastam “sonhos epitalâmicos” – e é preciso repetir
as lições de eloqüência forense aprendidas com Raul
Pompéia,
[ 43 ]
como neste trecho em que a humilde
professorinha tem de enfrentar seu primeiro amanhecer
sem hímen:
A certeza do desastre era nítida fisicamente; mas havia ainda uma
porção de sombra do extinto e agitado sono a povoar-lhe o espírito, a
envolver, como no aconchego protetor de um nimbo escuro, os
pensamentos alucinados com que adormecera morbidamente ao tombar
despojada de suas asas, numa queda rápida e brutal, com todo o peso
inerte de sua carne maculada para sempre.

Asas que voltarão na ênfase desmesurada, cheia de


lugares-comuns, por meio da qual o narrador descreve o
resultado de um emotivo mas fortuito diálogo entre mãe
e filha:
A
conversação tinha girado indiferentemente à superfície da alma, cada
uma das duas mulheres evitando descer ao âmago do sentimento, onde a
dor latente latejava, pronta a sangrar ao primeiro contato da realidade.
Foi refletindo mudamente, sem o derivativo nervoso da palavra,
enquanto ambas aprofundavam com o pensamento os sítios dolorosos de
seus corações, que se romperam os diques das lágrimas. Os braços se
entrelaçaram com ímpeto, as faces se procuraram com frenesi, os peitos
unidos bateram no descompasso da aflição. Elas eram como duas aves
de asas feridas que se juntassem para voar ainda, ou como duas naves
em perigo que se unissem para flutuar ou soçobrar juntas. Os seus
soluços valiam por juramentos de um pacto de vida e morte, contra o
qual nada pode uma vontade estranha.

É o que, linhas à frente, o autor chamará, acreditem, de


“correlação magnética das duas almas”.
Tal narrador verborrágico e de ferozes tendências
ornitológicas perde páginas e páginas esmiuçando os
sentimentos dos personagens ao invés de fazê-los
interagir. Ele realmente acredita que pode sustentar
frágeis personalidades utilizando apenas discursos
melodramáticos. Prolixo, transforma um rapaz tímido e
uma jovem que apenas se ressente de não ser amada em
excrescências da imaginação:
Entre Matias e Luizinha, ao contrário, o namoro se delineava
claramente, e a lembrança de seu antigo afeto a Florzinha começava a
tomar na alma do rapaz o feitio apagado e disforme de um sonho
distante e que já começava a parecer absurdo. E assim essa paixão,
nunca traduzida por uma palavra, existindo embora latente nessas duas
almas, ia morrer, agonizava já dentro do berço a que faltou o calor
fecundo e ativo da coragem animal do homem; tivesse-a Matias e
encontraria em Florzinha a força passiva que recebe, concentra e
assimila essa coragem em prodígios de resistência contra os obstáculos
opostos pelas vontades estranhas. Morria a larva no casulo; mas
Florzinha pensava naquele momento que em toda a sua vida havia de
sentir o corpo estranho daquele esquifezinho a pesar-lhe dolorosamente
num ponto do coração. [...]

Terminado o trecho, devemos agradecer ao autor por


não ter oferecido mais detalhes sobre o pequeno caixão
de defunto.
Naturalismo
Esse tal “calor fecundo e ativo da coragem animal do
homem” faz parte das influências naturalistas de
Antônio Sales, principalmente quando se trata de expor
o drama de Bilinha, professora seduzida pelo promotor
Alípio, a fim de cumprir o que sua própria mãe, velha
prostituta, chama de “fado ruim”, marca de todas as
mulheres de sua família, “funesto desenlace” que a
velha espera com “indiferença budista” e chega até a
comemorar. Conclusão à qual a própria Bilinha desperta,
enquanto observa suas alunas, não sem antes – sim, o
narrador abusa da nossa paciência – compará-las a
pássaros:
Lá estavam as inocentes a grazinarem baixinho, descuidosas como um
bando de aves pousadas sobre o lamaçal de um caminho. Nascer para
ser mulher... Qual seria o destino de cada uma dessas criaturinhas?
Umas casariam, estas bem, aquelas mal; outras morreriam sem ter
conhecido os mistérios do amor com seus gozos e suplícios; outras... Não
haveria entre elas algumas, ao menos uma, fadada para o infortúnio que
a ferira de maneira tão desastrosa?
Alguma devia ter vindo ao mundo
eivada do vírus maléfico que mais cedo ou mais tarde destrói uma
existência, como acontece aos herdeiros dos morbos implacáveis. [...]
Bolorentas teses naturalistas, que permeiam todo o
romance, como no encontro casual de Alípio com um
estrangeiro:
Logo adiante deu de cara com um sujeito vermelho, cara raspada,
vestido de brim branco, chapéu de chile, desabado, sem fita, perneiras
de couro amarelo: era um moço americano, comprador de peles de
cabra. E Alípio sentiu o forte contraste daquela atividade enérgica e
vencedora com a moleza enervada de um rapaz da terra, que, em
mangas de camisa, derreado de uma janela olhava basbaque o
estrangeiro mover-se direito e rápido na faina do seu negócio.

Pedido de desculpas
Nada se sustenta nesse livro. Devemos, portanto, à
conterraneidade ou a algum tipo especial de febre os
elogios que Rachel de Queiroz fez ao romance. Quanto a
Tristão de Athayde, ao festejar a reedição da obra, em
1929, soube escrever um desses textos, tão comuns
ainda hoje, em que a falsa cordialidade brasileira
sobrepuja a necessária independência da crítica. Resta a
Wilson Martins o papel de única voz lúcida, por ter
salientado o caráter menor livro – “quanto ao estilo
romanesco e à técnica narrativa” – e o fato de Antônio
Sales “não ter sabido escrever o romance que soubera
imaginar”.
Na verdade, o próprio autor tinha consciência de sua
imperícia. Publicado na forma de folhetim, no jornal
Correio da Manhã
, do Rio de Janeiro, em 1902,
Aves de
arribação
ganhou o formato de livro em 1913, com uma
“Nota ao Leitor” algo melancólica:
Escrevi há muitos anos esta novela [...].
Desde então nunca mais a reli senão agora quando, animado por
alguns amigos, resolvi editá-la em volume.
Desta leitura verifiquei que muita coisa teria nela a modificar; mas
preferi deixar que apareça tal como saiu no jornal, salvo ligeiras
correções.
A crítica encontrará, por certo, neste trabalho, muitas falhas e
inexperiências, que já são sensíveis para mim agora [...].
Podemos, é claro, acatar este pedido de desculpas,
compreender o embaraço do autor, a difícil decisão de,
consciente dos problemas, aceitar a publicação do
romance. Mas nada justifica os elogios irrefletidos que
Aves de arribação
tem merecido, obra massacrante à
qual podemos conceder, sem injustiça, o título de vade-
mécum da literatagem nacional.

[ 40 ]
2ª edição, revista, Livraria José Olympio Editora, Rio de Janeiro,
1957.
[ 41 ]
Histórica Concisa da Literatura Brasileira
, 34ª edição, São Paulo,
Editora Cultrix.
[ 42 ]
História da Literatura Brasileira
, volume
II
– Realismo e
Simbolismo, edição revista e atualizada, São Paulo, Editora Cultrix.
[ 43 ]
Ver, a respeito de Raul Pompéia, o Capítulo 14 de
Muita Retórica –
Pouca Literatura (de Alencar a Graça Aranha)
.
CAPÍTULO 9

Salvo da banalidade
– Hugo de Carvalho Ramos e Tropas e boiadas

Hugo de Carvalho Ramos sofre, desde 1917, as


avaliações errôneas e injustas que cansamos de
descobrir no substrato do nosso cânone. A recepção
superficial dos contos de
Tropas e boiadas
torna ainda
mais indecoroso o derramamento de elogios a, por
exemplo, Afonso Arinos, cujas lenga-lengas medíocres
analisei no ensaio “Arenga sertanista”.
[ 44 ]
As
sementes desse incompreensível desdém, bem como da
exagerada preferência que a academia reserva ao
beletrismo de Arinos, talvez possam ser encontradas em
nossa devoção – tão apaixonada quanto inconsciente – à
eloqüência. Ou talvez a injustiça nasça apenas de um
erro de reiteração, no qual muitos estudiosos incorrem
por absoluta preguiça.
A verdade, entretanto, é que as narrativas do goiano
Hugo de Carvalho Ramos estão acima do que se
costumou chamar, entre nós, de regionalismo, termo
dúbio e sempre aberto a revisões. Impregnados de tom
épico, alguns contos parecem nascer de episódios da
Chanson de Roland
e outras canções de gesta, com seus
personagens heróicos, reticentes no que se refere a
introspecções, mas sempre prontos à presteza e à
coragem, aceitando com naturalidade a vida sob
permanente tensão. Tal influência, aliás, é apresentada
de forma clara no transcorrer do livro, em que as
histórias dos doze pares da França e do imperador
Carlos Magno são recordadas mais de uma vez. O autor
ultrapassa, assim, a mera recopilação de costumes ou
vocábulos dos tropeiros do Centro-Oeste, nega à
linguagem típica o papel de protagonista e,
desobrigando o leitor de visitas freqüentes ao dicionário,
prefere seduzi-lo com a trama instigante.
Destemor e covardia
O elogio do destemor nasce logo no início do volume,
no conto “Caminho das tropas”, em que um dos
tropeiros define, orgulhoso, seu desprezo pela
covardia:
“Assombramento, tenho ouvido casos, verdade seja, mas
as mais das vezes falta de coragem, turvação do medo e
da bebida”. A própria narrativa é construída de forma a
enaltecer a ousadia: o pavor, crescente, acaba reforçado
pela pausa do arreeiro, que saboreia a expectativa dos
que o escutam; a seguir, o anticlímax fecha a história
com o ensinamento moral: “Enfim, creiam mecês, é ter
sempre desapego ao perigo”.
A perfeita cena de luta – em “Nostalgias” – não é
apenas um modelo de descrição:
O crioulo marrou-lhe, a bem dizer, uma pontada direita ao coração; ele
torceu e deixou-o passar. De novo, frechou-lhe em cima a anspeçada,
faca a prumo, num bote curto, procurando aberta; novamente ele furtou
o corpo, mas esperava-o dessa vez na ponta do ferro, onde o cabra veio
espetar-se, bruscamente, o sangue esguichando com fartura para os
lados, aos borbotões.

A febre do instinto jorra semelhante às golfadas que o


vencedor comemora: “– Ah, como que ainda sentia pelas
mãos, na cara – vão quarenta e cinco anos – o sangue do
Minguinhos salpicando-o d’alto abaixo, todo fumegante,
como brasa!”.
O conto “Ninho de periquitos” apresenta outra face da
coragem, desta vez contra a natureza, e mostra-nos
como, muitas vezes, a bravura precisa vir acompanhada
de agilidade: no meio da mata, o roceiro não hesita em,
depois de arrancar a cabeça da serpente, decepar a
própria mão, a fim de impedir os efeitos do veneno. Não
há espaço para a dor, mas apenas o saborear da vitória:
E enrolando o punho mutilado na camisola de algodão, que foi
rasgando entre os dentes, saiu do cerrado, calcando duro, sobranceiro e
altivo, rumo de casa, como um deus selvagem e triunfante apontando da
mata companheira [...].

“Peru de roda” abre com a figura solar e excêntrica do


Coronel Pedrinho, desde menino percorrendo as
estradas de Goiás. Seu arreeiro, Joaquim Percevejo,
descrito de forma impressionante, é, no entanto, o falso
corajoso, cujo destino moral encontra-se anunciado no
título da história. Parágrafo a parágrafo, o narrador
desmonta os estereótipos e chega ao fim surpreendente,
em que a intrepidez do coronel vence seu empregado e
paralisa enorme grupo de homens armados, reunidos na
propriedade de um rival. O estilo conciso ressalta os
gestos, a firmeza:
Bateu violentamente a cancela, entrou montado no terreiro, saltou da
sela; e, a corda na mão, caminhou direito sobre Percevejo.
Nem um único olhar lançara ao fazendeiro. Pegou o arrieiro pela barba,
atou-a num ápice, em nó-de-porco, à embira; prendeu a ponta desta ao
rabo da mula e achou-se montado de novo.
O coronel encarava-o aparvalhado, os olhos remelentos, rindo
constrangido. Nem um gesto sequer. E ninguém se movera naquele
rápido segundo. Olhavam, estarrecidos.
Viram-no ferrar esporas, a besta arrancar num trote largo. E, ao
primeiro puxão, Percevejo se pusera também a trotar atrás,
desesperadamente. Sumiram-se na quebra do cerrado. E nenhum tiro se
ouviu.

Mais tarde, antes de ser despedido pelo Coronel


Pedrinho, Joaquim Percevejo é obrigado a escutar a
sentença: “– Vai-te perrengue! Um homem que se deixa
amarrar pela barba, não é homem, não é homem! [...]”.
E a decisão posterior do tropeiro só confirma sua
covardia: não muda de comportamento, mas prefere,
apenas, cortar a barba...
Benedito dos Dourados, protagonista do desigual
“Gente da gleba”, será derrotado por sua audácia
irrefletida, mas a cena da captura de Malaquias poderia
estar num
western
de Howard Hawks:
Mas alguém batera à porta. A festeira foi abrir. Montado, o pala
escorrendo água, as abas do chapéu dobradas sobre o rosto, o forasteiro
num relance varejou aquela cena. Descobriu Malaquias agachado sobre
o garrafão de cachaça, a despejar o seu conteúdo no prato de açúcar, e
berrou:
– Negro! Vim buscar-te!
Ele olhou, turvo, e apanhando sobre a mesa um facão amolado com que
raspara a rapadura, saiu ao terreiro.

Da luta, em que o fugitivo sairá perdedor, a dupla passa


a uma relação de companheirismo, na qual a honradez
prevalecerá até o terrível, injusto fim de Benedito.
Quanto à narrativa “Alma das aves”, poderia inspirar
Horacio Quiroga, que deixou vários contos
protagonizados por animais. O que Hugo de Carvalho
Ramos chama de “minúscula tragédia” é o embate
desproporcional entre uma galinha e certa
inconveniente cascavel. A valentia da ave tem arroubo
humano – e contrapõe-se a outro famoso galináceo da
nossa literatura, pertencente a Clarice Lispector: no
interior do Centro-Oeste, as galinhas não podem ser
“estúpidas, tímidas e livres”, mas apenas entregam-se ao
instinto, dormindo para sempre depois, intoxicadas pela
peçonha.
São histórias sem as soluções fáceis de enaltecimento
ou idealização da vida sertaneja. A realidade pulsa,
inquestionável, observada por um
narrador que às vezes
se permite momentos de lirismo – realidade em cujo
centro encontra-se o homem, pronto a viver com
desassombro e, se possível, alegria. E se há melancolia
ou angústia, permanecem reservadas às poucas
personagens femininas.
Linguagem
Em termos estilísticos, Hugo de Carvalho Ramos
consegue criar trechos antológicos, nos quais ao
encadeamento das frases corresponde plena
visualização dos gestos:
O tropeiro empilhou a carregação fronteira aos fardos do dianteiro, e
recolheu depois uma a uma as cangalhas suadas ao alpendre. Abriu após
um couro largo no terreiro, despejou por cima meia quarta de milho, ao
tempo que o resto da tropa ruminava em embornais a ração daquela
tarde. O cabra, atentando na lombeira da burrada, tirou dum surrãozito
de ferramentas, metido nas bruacas da cozinha, o chifre de tutano de
boi, e armado duma dedada percorreu todo o lote, curando aqui uma
pisadura antiga, ali raspando, com a aspereza dum sabuco, o dolorido
dum inchaço em princípio, aparando além com o gume do freme os
rebordos das feridas de mau caráter.

Em “Mágoa de vaqueiro”, a cena da fuga de Maria, filha


única que abandona o pai, ergue-se diante do leitor
como um exemplo de síntese, no qual verbos, adjetivos e
substantivos harmonizam-se graças também à
pontuação perfeita, formando o período em que nenhum
elemento é excessivo:
Em pontas de pé, dissimulando o tilintar das rosetas no cachorro das
esporas, Zeca Menino alcançou o alpendre à banda, desamarrou a mula
estradeira e voltou montado ao oitão da casa, raspando-se no peitoril
duma janela, que arranhou suavemente com o cabo da açoiteira. Os
tampos descerraram-se sem rumor; um vulto esquivo deixou-se
escorregar para a garupa roliça da besta, e o estrépito abafado do
animal, que ganhara a porteira e se afastava na cerração, misturou-se
perdido aos zangarreios da sanfona, reavivando dentro a animação dos
comparsas.

No final, vencido pela tristeza, o pai entrega-se à morte.


A dramaticidade é intensificada não só pela seqüência
de verbos construída em crescente sinonímia, mas
graças à oposição entre, de um lado, a roupa humilde e
a carne morta, e, de outro, a voracidade dos insetos:
Ao pé, na roupeta singela de algodão em que se enfatiotara, nas axilas,
nos braços, pela boca e orelhas, ia cerce a faina das térmitas
em rasgar,
picar, cortar e estraçalhar aquele estorvo molengo que se lhes abatera
desde cedo por cima da casa...

Em “Alma das aves”, o mero gesto de alimentar o


galinhame no terreiro alcança novas dimensões e
cumpre o esperado da literatura, isto é, que salve da
banalidade inclusive as mínimas coisas:
E eram punhadas sábias para um lado, para o outro, de grãos
saltitados, rápido estrelando o solo com o seu brilho alegre de ouro
novo, mais depressa subvertendo-se naquela multidão de mendigos,
cada qual apostado em exceder o vizinho em gula e solércia; o cuidado
da mulher em ter uns dos outros afastados os galos de rinha, de
aculeado esporão, ciosos e espancadores; e depois, tufada a paparia
fulva, o pedinchar de quem ainda atende e a sua dispersão final – a custo
resolvida – pelo cerrado dos arredores.

Há grandes cenas, em que a paisagem se mescla ao


movimento dos tropeiros, às cores e ao brilho das
vestimentas e dos arreios:
Ao longe, os peões bracejavam e sacudiam a taca, achegados à
retranca dos lotes; e nos volteios do caminho, as suas cabeças
amarradas em lenço de alcobaça – as pontas sarapintadas voltadas para
trás – passavam como asas de borboletas, adejando num vôo indolente
rasteiras ao solo, uma azul, outra amarela, outra encarnada, por sobre o
verde-pálido indefinível da campina. Faiscavam às vezes, num
movimento involuntário do pescoço, os metais das cabeçadas de prata;
subia a toada contínua dos guizos e cincerros; e, a perder de vista, a
terra estuava e desdobrava-se uniforme, na mesma e epitalâmica
pujança de arruídos e de vida.

Sim, o período verga-se, principalmente no final, à


eloqüência, pois “epitalâmica pujança” é nítido exagero.
Mas o resultado cria um conjunto intenso, vivo.
Apuro
O autor também nos mostra como é possível, usando
inteligência, sensibilidade e apuro lingüístico, fugir dos
lugares-comuns. A lua, uma das mais batidas referências
da literatura universal, surge renovada nestes breves
trechos:
A noite descia mansa e silenciosa, perturbada apenas pelo clamor
longínquo das seriemas da campina no fundo dos vargedos, e a lua
assomava como uma grande moeda de cobre novo por sobre os
descampados, em vago nevoeiro. [“Caminho das tropas”]
Parei o pingo. Os pretos, imitando, pararam. Fiquei ali imóvel
longo
tempo, os olhos neles grudados, sem tino, enquanto que o minguante
principiava a tingir de açafrão a copa folhuda das árvores, e lentamente
ia abaixando a sua luz amarelada sobre o carreiro. [“À beira do pouso”]
E como a lua surdia no horizonte, como uma enorme roda de carro,
avermelhada e triste dentre os vapores das derradeiras queimadas,
alumiando ao longe os carreiros cor de barro e inundando o rosto pálido
de Nhá Lica... [“Gente da gleba”]

Há o mesmo cuidado em relação ao sol, que, após


sucessivos dias de queimada,
semelha de eito a eito um enorme carvão aceso e sangra pelos flancos
a sua luz avermelhada e mortiça, numa atmosfera de forja, que nenhum
sopro de aragem alenta.

Língua portuguesa
Encontram-se, claro, problemas no livro. Mas um conto
péssimo, “A bruxa dos marinhos” – de que se salva
apenas o diálogo final –, as irregularidades de
“Nostalgias” – principalmente o último parágrafo, de
excessiva adjetivação, preso ao desgastado tema do
contraste entre campo e cidade –, as longas e
desnecessárias digressões de “Gente da gleba” – que só
confirmam a vocação do autor para a narrativa curta – e
a insipidez de “A madre de ouro” não diminuem o vigor
de
Tropas e boiadas
, não maculam os trechos que
assomam como inesperadas descobertas.
Saborosas expressões locais podem iluminar certas
passagens: “– Homem, a modo que já vão andando... Ah,
meu tempo, agüentava firme no sapateio até pegar o sol
com a mão!...” ou “– Qual, isso é ainda efeito da beijoca
que dei ali atrás ao frasco de cachaça [...]”. A breve
frase consegue recriar um galope: “Engolimos num
trago aquele chão”. A correta inserção de um detalhe
concede nova perspectiva à cena: o fim iminente da
festa, em “Mágoa de vaqueiro”, é anunciado, no
primeiro parágrafo, pela mesa em que se encontram os
“sobejos da ceia – frascos de licor e o doce de buriti
esparramando-se na toalha besuntada [...]”; no conto
“Gente da gleba”, “as botas esturradas de mormaço
ringindo ásperas no assoalho desigual, rumo à cozinha”
revelam o vaqueiro que, apesar de livre para entrar na
casa-grande, baralha no seu íntimo dedicação e
subserviência. E não poderia faltar o perfeito sentido do
riso e da ironia, presente no conto “O Saci”.
A última narrativa, “Dias de chuva”, surge plena de
saudosismo. Não chega a ser um conto, mas destila
linguagem extraordinária, às vezes lírica: “A chuvarada
continuava aberta, naquele seu grande choro de
desconforto, ensopando os campos”. Aqui, estamos
muito além do que Wilson Martins chamou, ao se referir
a
Tropas e boiadas
, de “implicações apotegmáticas”.
[
45 ]
O que temos diante de nós é a língua portuguesa em
seus momentos límpidos. Inculta, talvez – e também por
isso capaz de produzir coisas belas.

[ 44 ]
Capítulo 18 de
Muita Retórica – Pouca Literatura (de Alencar a
Graça Aranha)
.
[ 45 ]
História da Inteligência Brasileira
, volume
VI
(1915-1933), 2ª
edição, T. A. Queiroz Editor, São Paulo, 1996.
CAPÍTULO 10

Canalhice e afetação
– João do Rio e

A correspondência de uma estação de cura

A correspondência de uma estação de cura


, de João do
Rio (pseudônimo de Paulo Barreto), obra publicada em
1918, pertence a um gênero praticamente desconhecido
em nosso país, o das narrativas epistolares. Tratada
como “romance” pela crítica, não passa, entretanto, de
um conjunto de crônicas travestidas em cartas, o que fez
surgir uma noveleta na qual, segundo Antonio Candido,
“a felicidade do método é superior à relativa banalidade
do tom e da visão de mundo”.
[ 46 ]
A história desse gênero pouco valorizado no Brasil
confunde-se, na Inglaterra, com o surgimento do próprio
romance. Quando o impressor Samuel Richardson
aceitou, em 1739, a encomenda dos livreiros Rivington e
Osborn de escrever um volume de cartas que servisse
como modelo a leitores sem grande preparo para a
escrita, não previa o resultado da sua concordância. A
concepção da obra obrigou-o a elaborar contextos
inusitados, a fim de diversificar os modelos e criar um
manual o mais completo possível. Esses exercícios de
estilo estimularam sua imaginação, a ponto de fazê-lo
escrever o romance epistolar
Pamela
, que se tornou
uma das obras mais influentes do século 18 (também
produziria, seguindo o mesmo gênero, dois outros
romances de sucesso:
Clarissa
e
The History of Sir
Charles Grandison
).
A importância do romance persiste até hoje. O crítico
Frank Kermode mostra, no ensaio “Richardson and
Fielding”,
[ 47 ]
que a prosa epistolar em geral e a obra
de Richardson anteciparam questões colocadas, séculos
mais tarde, por Joseph Conrad e Henry James, como a
do desaparecimento do autor, pois a técnica de escrever
por meio de cartas permite às personagens que falem
com suas vozes características, sem a intermediação de
narradores. Não por outro motivo, estudiosos
consideram Richardson um dos criadores do romance
psicológico, já que as cartas e o diário de Pamela
apresentam os complexos sentimentos e
reflexões de
uma jovem de quinze anos.
O que foi grandioso nas mãos de um impressor inglês –
e se aperfeiçoou com Rousseau (
Julie ou la Nouvelle
Héloïse
, 1761), Goethe (
Os sofrimentos do jovem
Werther
, 1774), Chordelos de Laclos (
As ligações
perigosas
, 1782) e Ugo Foscolo (
Ultime lettere di
Jacopo Ortis
, 1802) – tornou-se, contudo, medíocre sob
a pena de João do Rio.
Difamadores
As cartas que compõem
A correspondência de uma
estação de cura
pertencem a diversos missivistas
instalados em Poços de Caldas, famosa estância
hidromineral na primeira metade do século
XX
. A elite
carioca e paulista, impedida de ir à Europa pela Guerra
de 1914, ocupa o melhor hotel do município mineiro e
entrega-se aos divertimentos possíveis: jogatina, banhos
sulfurosos, shows noturnos, cavalgadas – e mexericos,
intrigas, a nobilíssima arte de falar mal uns dos outros.
De carta a carta, das fofocas irônicas do dândi Antero
Pedreira às lamúrias de José Bento, misto de empresário
artístico e reclamador profissional, passando pelas teses
naturalistas do neurastênico Teodomiro Pacheco, os
narradores repetem o mesmo exercício: caluniar e rir, à
socapa, das pessoas com as quais convivem diariamente.
Se confiarmos no que diz Lêdo Ivo na “Apresentação”
de
Cinematógrafo (Crônicas cariocas)
,
[ 48 ]
o cronista
conhecia bem a classe que descreveu:
o gordo e triunfante e bebedor de
champagne
João do Rio transitava
nos salões mundanos e nas embaixadas, com os seus ternos de fazenda
inglesa, o seu monóculo, e a sua frase cintilante. E, em grandes e
demoradas viagens, respirava a brisa dos transatlânticos.

Além de, completa Ivo, posicionar-se “ostensivamente


ao lado dos ricos e bem-nascidos” e cortejar
“desembaraçadamente os comendadores portugueses
que costumavam abastecer-lhe os bolsos sempre furados
de dissipador incorrigível”.
Infiel ou não à classe que o sustentava, João do Rio
alinhavou essas crônicas em que o exagero, as repetidas
maledicências e o tom monocórdio da correspondência
ativa dos difamadores destroem qualquer possibilidade
de verossimilhança.
No que se refere à psicologia dos personagens, não há
conflito entre o papel que desempenham em sociedade e
o que realmente pensam, pois são incapazes de realizar
qualquer mínima autoanálise. Com exceção de algumas
das cartas de Teodomiro Pacheco e das escritas pela
jovem Olga da Luz, o olhar dos narradores está sempre
voltado aos supostos defeitos de
outrem.
A obstinação para descrever casos frívolos concede à
narrativa irrefreável tendência ao episódico, o que faz a
noveleta se dissolver numa clara falta de unidade
estrutural. A única trama curiosa, citada em algumas
cartas, é a sedução da inocente Olga da Luz, dona de
imensa fortuna, pelo imoral Olivério Gomes – e a
tentativa, dos outros pretendentes, de atrapalhar o
possível noivado, trazendo a Poços a amante de Olivério,
uma prostituta. Tudo transcorre, no entanto, em clima
de
vaudeville
.
Ou seja, se o tema é ordinário, o método, diferente do
que argumentou Antonio Candido, mostra-se frouxo,
debilitado. Mais razão tem Lúcia Miguel-Pereira (em
Prosa de ficção
), para quem o livrinho “nem chega a
merecer o título de novela”.
Falsa elegância
Em meio à coleção de pedantismos e ao persistente tom
de zombaria, surgem ilhas de curiosidade, como a carta
do Capítulo
XIII
, na qual Teodomiro narra a história bem-
humorada do caboclo que se alimenta apenas de café –
um faquir do interior mineiro. No entanto, a maior parte
dos capítulos pouco acrescenta para formar um eixo
consistente.
O lugar-comum predomina, como no Capítulo
XXXV
,
assinado pela casamenteira Maria de Albuquerque, em
que João do Rio plagia, sem pudor, certo episódio de
A
Dama das Camélias
. Além dos chavões, não faltam
figuras melosas, pois os narradores escrevem mal; e se
repetem, tamanha a semelhança de sentimentos ou,
quem sabe, a falta de criatividade do autor: o luar tem a
“doçura de lírios diluídos” numa carta de Antero
Pedreira, que completa: “[...] Sobre as árvores,
recamando as colinas, abrindo no espaço o êxtase azul
da luz, ligando céu e terra no mesmo espasmo, o luar
esplendia”; imagem que surge, sob o mesmo véu de
preciosismo, na carta seguinte, assinada por Olga da
Luz: “[...] Faz um esplêndido luar, desses luares que
choram sobre a terra”.
O máximo de reflexão que essa manada de pulhas
alcança – sem nunca revelar a menor chama de
integridade – é dizer, num rompante:
[...] A esposa deve ser inteligentíssima sempre. As amantes, pouco
importa.
Ça ne compte pas
... Para que o amor não fosse uma cacetada
seria preciso que as esposas fossem a tal ponto inteligentes que
deixassem o ciúme para diversão das amantes estúpidas... [...]

Dos ricos aos falidos, dos aristocratas aos


sanguessugas, todos usam linguagem semelhante – nos
discursos da elite há mais anglicismos e galicismos,
recurso que o autor utiliza para demonstrar a elegância
de
certos personagens. E todos são vis, mesquinhos,
afetados.
“Espuma inconsistente”
Na resposta que escreveu à crítica de Viriato Correia,
[
49 ]
em julho de 1918, João do Rio diz que
o romance em língua portuguesa, depois de Eça e de Aluísio de Azevedo
[...] chegou à indigência impossível de leitura. Total ausência de idéias,
uma história qualquer dividida em capítulos e nesses capítulos o que
eles chamam de observação natural. Coisas enfim que não interessam a
ninguém.
E defendia – depois de afirmar que Machado de Assis
era “autor de volumes que poderiam ter todos o título
geral de
Memórias
” – a tese de que,
artisticamente, a individualidade é tudo. A individualidade começa pela
técnica. Há mil modos de fazer uma jarra. Criar o seu modo e pôr-lhe o
sangue das suas idéias é sempre fazer jarras – mas de outra maneira.

Tais superficialidades demonstram como a avaliação


errônea e a incompetência podem levar um escritor a
resultados grosseiros.
Monteiro Lobato, nos comentários que fez sobre o livro
– e que podem ser lidos no volume
Crítica e outras notas
[ 50 ]
–, aponta o “linguajar cambaio”, a “charrice” das
“idéias simiescas” e a “pretensa elegância canalha”.
Lúcia Miguel-Pereira classifica o texto do cronista como
“espuma inconsistente”.
[ 51 ]
Ambos estão certos.
Errados são aqueles que elogiam tais coisas.

[ 46 ]
“Atualidade de um romance inatual”, em
A correspondência de uma
estação de cura
, Editora Scipione / Fundação Casa de Rui Barbosa /
Instituto Moreira Salles, 1992.
[ 47 ]
Cambridge Journal
4, 1950-1951.
[ 48 ]
Cinematógrafo: crônicas cariocas
, João do Rio, Rio de Janeiro,
Academia Brasileira de Letras, 2009.
[ 49 ]
“A forma do romance”, em
A correspondência de uma estação de
cura
, op. cit.
[ 50 ]
Editora Globo, Rio de Janeiro, 2009.
[ 51 ]
Prosa de Ficção (De 1870 a 1920)
, 2ª edição, revista, Livraria José
Olympio Editora, Rio de Janeiro, 1957.
CAPÍTULO 11

Salvo pela ironia


– Carlos de Laet e suas crônicas

Meio século escrevendo ininterruptamente na


imprensa, assim pode-se resumir a carreira do polígrafo
Carlos de Laet. Mas não seria inadequado completar:
exercitando fina ironia, segunda pele desse polemista
que, consciente do seu papel, afirmava estar “sempre
em divergência com alguém, o que muito me apraz,
porque é sinal de que agito idéias”. Ironia, contudo,
jamais presa aos artigos e às crônicas, mas pronta a
temperar o cotidiano. Derrubada a monarquia, certa
manhã, caminhando para o trabalho numa das escolas
do Rio de Janeiro, Laet vê que trocam o nome do Campo
de Santana pelo de Praça da República; minutos depois,
ao entrar na classe, diz aos alunos: “Não posso explicar
o ponto marcado, porque ia falar sobre sintaxe da
regência, e o novo governo é capaz de mandar que se
fale sobre sintaxe da república”. Comentando o Hino da
Proclamação da República, afirma que a letra tem
apenas uma coisa certa: os pontos de exclamação. Certa
vez, um aluno retruca diante das críticas que o professor
faz ao evolucionismo: “– Mas papai disse que nós
descendemos do macaco”. Ao que Laet responde: “– Não
me interessam questões particulares de sua família...”.
No ensaio biográfico que escreveu sobre nosso escritor,
do qual retiramos estes casos, o jesuíta Francisco Leme
Lopes assevera que, segundo depoimento de Mário de
Alencar, amigo íntimo de Machado de Assis, este, no fim
da vida, só lia o
Jornal do Brasil
das quintas-feiras,
quando podia encontrar o texto de Laet.
Mas, nos dias de hoje, quem se lembra de Laet? Pouco
sobrou dos cinqüenta anos de colaboração na imprensa
e do ácido humor. A culpa não é da ironia, figura que
está longe de ser efêmera ou superficial, mas cabe,
parcialmente, aos modernistas, que talvez até pudessem
fazer vista grossa ao catolicismo de Laet, mas jamais
aceitaram suas críticas – ele já troçava do futurismo em
1910, antes mesmo que Oswald de Andrade (Oswald
Júnior, à época) e seu pai criassem
O Pirralho
– e seu
conservadorismo, em tudo oposto à idéia central do
movimento,
sintetizada no conhecido trecho da
conferência de Graça Aranha, “A emoção estética na arte
moderna”, que inaugura a Semana de 22:
o que hoje fixamos não é a renascença de uma arte que não existe. É o
próprio comovente nascimento da arte no Brasil, e como não temos
felizmente a pérfida sombra do passado para matar a germinação, tudo
promete uma admirável florada artística.
Essa presunção de iniciar uma nova era, típica das
vanguardas e das ideologias revolucionárias, contagiou
não apenas a Semana, mas grande parte do que se
produziu depois dela; e nos casos radicais – ou seja,
patológicos –, continua a impossibilitar que o artista
entenda a história e, pior, veja a realidade.
Ouro falso
Mas parte da culpa de que falávamos acima cabe ao
próprio Laet. Incansável em sua defesa da monarquia,
acabou se tornando repetitivo. Ler a coletânea de suas
crônicas,
[ 52 ]
pequena amostra de tudo que ainda não
foi coligido, torna-se experiência às vezes tediosa, ainda
que o escritor possua méritos indiscutíveis: rompe com a
visão histórica dos golpistas – que se tornou
hegemônica, pronta a detratar a monarquia e endeusar
a república, escondendo a vocação despótica que esta
forma de governo assumiu entre nós – e reapresenta,
aos leitores modernos, figuras cruciais, diminuídas ou
menosprezadas nos livros didáticos. Vejam-se, por
exemplo, as crônicas sobre o marechal Osório – herói da
Guerra do Paraguai, personagem só recentemente
recuperada, graças ao historiador Francisco Doratioto –
e o barão de Rio Branco: elogiosas, sim, mas sóbrias, em
tudo diferentes do tom encomiástico que utilizou para
retratar, anos mais tarde, o pintor Victor Meirelles. Laet
também testemunhou momentos que, passado mais de
um século, a historiografia marxista deseja transformar
em meros acidentes ou pérfidas manipulações
oligárquicas, mas aos quais o cronista concede emoção
genuína, ainda que possamos criticar seu estilo, como o
da votação, no Senado, do projeto que se transformou na
Lei Áurea. Descontada a irrestrita defesa da monarquia,
o perfil que desenha de Benjamin Constant serve para
mostrar a ascensão da ideologia positivista no Brasil e
suas conseqüências até hoje mal estudadas – o que só
reafirma a coragem de Laet, pronto a contrariar os
militares e denunciar seus crimes, incluindo os de
Floriano Peixoto, outro capítulo ditatorial esquecido da
nossa história.
Sofrendo do mal típico dos escritores brasileiros, Laet
confunde retórica com magniloqüência. Critica o vício
dos “pedantes sequiosos de tropos” que povoam este
“país de advogados”, mas não consegue se livrar da
doença.
E reza o Evangelho narrando a história daquela miraculosa alvorada
em que, junto ao sepulcro do Grande Mártir, se quedava um celeste
mensageiro anunciando a estupenda nova da ressurreição,

diz ele, por exemplo, colando adjetivos desnecessários,


certo de que compõe um período harmônico, elegante.
A tese da crônica “Ela”, dedicada à Princesa Isabel, é
justa, mas a linguagem mata a boa intenção. O mesmo
desequilíbrio ocorre no texto dedicado a Machado de
Assis: Laet percebe, com agudeza, o que chama de
“eurritmia estética” – “incapaz de censurar com
veemência um abuso, ele também o era de baixar à
lisonja” –, mas perde-se em procedimentos enfáticos,
vazios. A crônica salva-se, no fim, graças ao diálogo
revelador, em que Machado demonstra seu horror às
polêmicas, e à narração dos encontros nos quais o
romancista sofre um ataque epiléptico ou chora,
lamentando a morte da esposa, Carolina.
O problema não é a sintaxe de Laet, que apresenta
agradável anacronismo, principalmente hoje, quando a
maioria escreve como se telegrafasse ou preenchesse
um formulário. A agrura surge do discurso que
circunvaga e demora a chegar ao porto, do preciosismo,
das citações em latim – esnobismo igual ao dos críticos
que, atualmente, abusam dos termos estruturalistas e da
linguagem hermética –, dos lugares-comuns, da
verbosidade estafante:
Rebrilhava o sol em uma apoteose tropical. Um dilúvio de luz inundava
as alamedas por onde escoava o fúnebre préstito, espelhava-se nas
folhas lisas, nas arestas dos túmulos, nos doirados dos ataúdes... Por
cima deste havia, concitando atenções, um pano colorido, uma bandeira,
a bandeira do Império, a que flutuou no mastro do Amazonas quando se
ganhou Riachuelo, a que seguiam nossos bravos quando se pelejava em
Tuiuti, aquela que também na terra do exílio cobriu o féretro de Pedro
II... E o sol, dardejante, em uma ardente carícia de amor e entusiasmo
envolvia todo aquele cenário – fagulhando nas folhas e nos túmulos,
naquela bandeira que parecia evocada por hipogeus da História, e
naquele féretro que, de coração apertado e olhos turvados de lágrimas,
silencioso eu acompanhava à derradeira estância.

Semelhante terror ressurge na crônica, gordurenta de


palavrório, dedicada à memória de Euclides da Cunha:
Todo túmulo é digno de lágrimas. Em todo féretro vão a esconder-se
mundos de afeto. Não há tumba, por mais humilde que seja, onde não
chore uma saudade ou não se lamente uma esperança. Mas
quando o
morto tem vivido dessa larga vida da publicidade em que comungam
milhares de inteligências, há nas tristezas que o acompanham ao
cemitério, alguma cousa mais solene que os lutos da família. Chora
também essa grande e pujante mãe, que todos amamos e tanto que por
ela daríamos a vida, chora Pátria, orfanada de mais um filho que a
ilustrava e que dos resplendores de seu nome lhe entretecia um trecho
da formosa auréola.
Lamuriento em sua defesa saudosista da monarquia,
Laet raramente apresenta o ímpeto, o apelo, o ataque
preciso à república que Eduardo Prado compôs em
Fastos da ditadura militar no Brasil
.
[ 53 ]
E quando
digressiona, oferece, principalmente ao elogiar, um ouro
falso, pedante, exagerado, como neste trecho, em que
analisa os artigos de certo jornalista:
[...] Não são tímidas aves a tomarem o primeiro vôo, incertas do
destino que as aguarda: são hostes que retornam do combate, e que,
frementes ainda com a febre da pugna, vitoriosas demandam os quartéis
da História. [...].

Há também crônicas dedicadas a arengas chatíssimas,


como “Com a Academia”, na qual, para justificar a
suposta tolerância da Academia Brasileira de Letras,
perde-se explicando as linhas ideológicas dos seus
membros. Infelizmente, nesses textos, Laet exclui-se da
minoria que ele mesmo define: “O jornal é um edifício,
uma estátua, uma tela, um livro feito para apenas durar
um dia, e no qual só por exceção se inscreve o nome do
artífice”.
Acidez
Todos esses problemas desaparecem quando surge a
ironia – e o estilo de Laet se transfigura.
A sanha adesista que toma conta da sociedade, assim
que os republicanos dão o golpe, é sintetizada neste
episódio:
[...] Existiam no estabelecimento umas talhas da Bahia, nas quais
ostentosamente se viam as armas imperiais, como então muito se usava.
De ordem superior infalivelmente haviam de ser retiradas. Água bebida
em talhas tão sediciosas até poderia fazer mal à saúde... [...] Eu o vi, o
pretinho incumbido da espinhosa tarefa de tirar as coroas. Com uma
faquinha ele procurava raspar o barro em que se modelara o nefando
símbolo, e ao mesmo tempo, e com máximo cuidado, evitar o estrago
total daqueles produtos cerâmicos.
Mas era impossível...
– Perdes tempo, meu velho, disse eu ao servente da República... A
coroa sai, mas a talha fica furada!
Meu dito, meu feito. Instantes depois abria-se um furo medonho, por
onde despejava grosso jorro de água.
Desconfio que nunca mais se consertou a talha republicana.

Que a república continue a fazer água, isso só


demonstra a qualidade profética – e metafórica – da
ironia de Laet.
A compulsão por reformas ortográficas vem de longe
em nosso país. Em 1907, a chamada reforma Medeiros e
Albuquerque recebe crítica sarcástica, publicada no
Jornal do Brasil
, na forma de uma carta a Machado de
Assis:
Meu karu Maxadu Dasis.
Não temus estado juntus, á muintus meses, i konpletamente ignoru
kual a tua maneira de pensar a respeitu da nova reforma ortografica, de
invenção du Medeiros Albukerke. Não axas tu ke para uma revolusão é
muito pôku, i para uma desorden já é demais?
Á, nu ke vai fazendu a Akademia, grande falta de lojica. Vêjase, por
exenplu, akilu du agá! Não u admite nu meiu das palavras, i todavia u
tolera nu principiu dalgumas. Ô u agá é bom, ô é mau. Si é bon, kontinúe
a viver onde ker ke seja; si é mau, suprima-se de todu.

Era o que Laet chamava, com seu espírito debochado,


de “fonetismo jacobino”. Graças à sua lucidez – e à de
vários outros –, a reforma não vingou.
Ao criticar o futurismo de Marinetti, faz não só
exercício de futurologia, mas de perfeita vidência:
Eu não conheço o Sr. Marinetti; mas entendo que, se leva a peito a sua
propaganda, só tem um caminho a seguir: tome um transatlântico e
venha cá ao Brasil fazer conferências. Este conselho de um
desconhecido poderá parecer exorbitante das boas normas: mas eu lho
dou, ao já ilustre propagandista, com espírito de simpatia e para o bem
dele e da sua novidade.
Realmente, não conheço país em que mais probabilidades de ótimo
êxito se lhe possam deparar. Direi mais, sem contudo, nem de leve,
apoucar a originalidade do Sr. Marinetti: nós, os brasileiros, somos os
genuínos precursores de sua filosofia.
Há vinte anos, seguramente, não fazemos senão rasgar e queimar a
História. Pode-se dizer que os anais destes últimos quatro lustros nada
mais são do que um imenso auto-de-fé, em que arde a tradição.
Venha
para cá o Sr. Marinetti e, em vez de recalcitrantes discutidores, achará
cordatos discípulos e talvez mesmo provados mestres.
Dezesseis anos depois, em 1926, o fascista Filippo
Tommaso Marinetti chegava ao Brasil, aclamado por um
séquito de intelectuais babões e triunfalmente
apresentado por Graça Aranha no Teatro Lírico do Rio
de Janeiro. Laet estava certo: “[...] O marinetismo já
entre nós tinha adeptos antes de brotar o Sr. Marinetti”.
A relação de Carlos de Laet com Graça Aranha foi
marcada por zombarias. Em 1924, o autor de
Canaã
envia um telegrama cifrado, anunciando o início da
Revolução Paulista: “Tumor mole virá a furo esta noite”.
A polícia, no entanto, não tem dificuldade para decifrar a
mensagem explícita e prende o escritor. É a inspiração
perfeita para Laet, que destila acidez:
O Aranha publicou um livro simbólico, Canaã, que ninguém
compreendeu... Agora faz um telegrama secreto, que todo o mundo
decifrou. Obscuro, quando quer a claridade; diáfano, quando busca o
mistério. Que estilista!

Não satisfeito, ainda compõe um soneto em que faz


dupla crítica, pois aproveita o telegrama funesto para
ridicularizar o estilo telegráfico de Marinetti, então já
imitado pelos modernistas:
Noite. Calor. Concerto nos telhados.

Cubos esferoidais. Gatas e gatos.

Vênus. Graças. Aranhas. Carrapatos.

Melindrosas. Poetas assanhados.


Rabanetes azuis. Sóis encarnados.

Comida no alguidar. Cuspo nos pratos.

Três rondas a cavalo. Mil boatos.

Prosa sesquipedal. Tropos safados.


Avenida deserta. Bondes. Grama.

Chopes Fidalga. Leite. Pão de ló.

Carros de irrigação. Salpicos. Lama.


Vacas magras. Esfinge. Triste. Só.

Tumor mole. São Paulo. Telegrama.

Dois secretas. Cubismo. Xilindró.


Em 1926, numa crônica publicada em
O Jornal
, Laet
ataca novamente. Relembra o telegrama e usa rimas, a
fim de criticar a poesia modernista, que “planeia o
verso” e, na verdade, escreve prosa:
Meu querido Graça Aranha – Para mitigar saudades, traço esta carta
poética. Não é potoca ou patranha: são velhuscas novidades, sem
respeito à tua estética.
Grafo seguido o meu verso; mas, lido com certo jeito, canta a rima
sonorosa. Tua escola faz o inverso: calcando norma e preceito, planeia o
verso e sai prosa.
[...]
Tudo, Aranha, aqui te chama. Ingratos os que se ausentam! Volta,
surge sem detença. (Não te espeço telegrama, porque os tumores
rebentam quando a gente menos pensa.)
Mando um abraço apertado à tua grei futurista. Beija a mão do
Marinetti, que deve andar espantado. Teu confrade passadista, e sempre
amigo, Laet.

Imaginando os ensinamentos de um
Catecismo
revolucionário
, Carlos de Laet cria definições perfeitas,
sábias, adequadas a todos os tempos – e segue a forma
clássica dos antigos catecismos católicos, com perguntas
e respostas. Questionado sobre o que é a igualdade, o
revolucionário responde:
O nivelamento de todas as condições sociais. Nosso ideal em fisiografia
seria uma planície. Detestamos as colinas pretensiosas e os cabeços das
montanhas coroados de nuvens. Em geometria suprimiríamos uma das
três dimensões. Adoramos o largo e o chato.

Quanto à liberdade, depois de muito hesitar, o


personagem conclui:
É a licença de fazer cada qual o que bem lhe pareça, contanto que não
vá contra o que instituímos.

Mas a melhor resposta – resumo do que são revoluções,


golpes e governos que se autoproclamam renovadores –
irrompe quando o interlocutor sugere a possibilidade de
ocorrer relutância em alguns setores da sociedade:
Em verdade assim pode acontecer; mas para que tal não suceda, deve-
se proceder com a devida cautela. Sonda-se a opinião; contra os
cobardes, que são a maioria, emprega-se o terror; dão-se gorjetas aos
venais, acena-se aos ávidos com o quinhão do confisco.

Agripino Grieco estava certo quando definiu Laet como


o “‘não’ eterno” que “nunca se deixou açaimar pelas
cédulas do tesouro”. Suas polêmicas – com Camilo
Castelo Branco, João Ribeiro, Jackson de Figueiredo e
outros –, também reunidas em volume publicado pela
Fundação Casa de Rui Barbosa,
[ 54 ]
estão repletas de
inteligência e liberdade incomparáveis,
difíceis de
encontrar neste reinado do populismo em que se
transformou o Brasil. Laet tem o dom raro de condensar,
por meio do gracejo ou do deboche, as diversas formas
do ridículo. Ao ler seus textos, rimos ou choramos, dos
outros ou de nós mesmos – e só ignorantes ou
deslumbrados insistem na indiferença.

[ 52 ]
Obras seletas de Carlos de Laet — Crônicas
(Volume I), Editora Agir
/ Instituto Nacional do Livro / Fundação Casa de Rui Barbosa, 1983.
[ 53 ]
Obra que analisei no ensaio “O anti-revolucionário”, Capítulo 17 de
Muita Retórica — Pouca Literatura (de Alencar a Graça Aranha)
.
[ 54 ]
Obras seletas de Carlos de Laet — Polêmicas
(Volume II), Editora
Agir / Instituto Nacional do Livro / Fundação Casa de Rui Barbosa, 1983.
CAPÍTULO 12

Ideologia e azedume
– Lima Barreto e

Vida e morte de M. J. Gonzaga de Sá

A definição de “literatura militante” elaborada por Lima


Barreto, à sombra de Jean-Marie Guyau – pensador que
foi lido atentamente por Kropotkin e Nietzsche –, impõe
à obra literária “o destino de revelar umas almas às
outras, de restabelecer entre elas uma ligação
necessária ao mútuo entendimento dos homens”. Em
nosso país, onde, segundo Barreto, não há passado, mas
só futuro, “nós nos precisamos ligar; precisamos nos
compreender uns aos outros; precisamos dizer as
qualidades que cada um de nós tem, para bem
suportarmos o fardo da vida e dos nossos destinos”,
dizia o romancista. E completava, depois de excluir do
seu sonho os “cavalheiros de fidalguia suspeita” e as
“damas de uma aristocracia de armazém por atacado”:
“[...] Devemos mostrar nas nossas obras que um negro,
um índio, um português ou um italiano se podem
entender e se podem amar, no interesse comum de todos
nós”.
Esse anseio de solidariedade utópica – e, portanto,
excludente – surgiria em outras crônicas do autor,
incluindo o “Manifesto Maximalista”, de apoio à
Revolução Russa – encerrado com o grito “Ave Rússia!”
–, sempre voltando ao desejo de tornar “os homens mais
capazes para a conquista do planeta e se entenderem
melhor, no único intuito de sua felicidade”.
Para Lima Barreto, o dever dos “escritores sinceros e
honestos” é o de
tentar reformar certas usanças, sugerir dúvidas, levantar julgamentos
adormecidos, difundir as nossas grandes e altas emoções em face do
mundo e do sofrimento dos homens, para soldar, ligar a humanidade em
uma maior, em que caibam todas, pela revelação das almas individuais e
do que elas têm de comum e dependente entre si.
Tais esboços de espírito revolucionário, esses lampejos
de fraternidade
universal, não se concretizaram, no
entanto, na ficção de Lima Barreto, marcada, desde
Recordações do Escrivão Isaías Caminha
(1909), pelo
sentimento de derrota:
Lembrava-me de que deixara toda a minha vida ao acaso e que a não
pusera ao estudo e ao trabalho com a força de que era capaz. Sentia-me
repelente, repelente de fraqueza, de decisão e mais amolecido agora
com o álcool e os prazeres... Sentia-me parasita, adulando o diretor para
obter dinheiro... Às minhas aspirações, àquele forte sonhar da minha
meninice eu não tinha dado as satisfações devidas. A má vontade geral,
a excomunhão dos outros tinham-me amedrontado, atemorizado, feito
adormecer em mim o Orgulho, com seu cortejo de grandeza e de força.
Rebaixara-me, tendo medo de fantasmas e não obedecera ao seu
império.

Não é outra a conclusão que explode no final de


Clara
dos Anjos
(publicado postumamente, em 1948), quando
a jovem sentencia à mãe: “– Nós não somos nada nesta
vida”; ou nas reflexões sobre o conceito de “pátria” que
o narrador de
Triste fim de Policarpo Quaresma
(1915)
coloca na mente do major, pouco antes de sua morte:
Mas, como é que ele, tão sereno, tão lúcido, empregara sua vida,
gastara o seu tempo, envelhecera atrás de tal quimera? Como é que não
viu nitidamente a realidade, não a pressentiu logo e se deixou enganar
por um falaz ídolo, absorver-se nele, dar-lhe em holocausto toda a sua
existência? Foi o seu isolamento, o seu esquecimento de si mesmo; e
assim é que ia para a cova, sem deixar traço seu, sem um filho, sem um
amor, sem um beijo mais quente, sem nenhum mesmo, e sem sequer
uma asneira!
Nada deixava que afirmasse a sua passagem e a terra não lhe dera
nada de saboroso.

Não importa se essas vítimas da ingenuidade, do ideal,


de uma visão fatalista da existência e, principalmente,
do auto-engano, refletem as características pessoais do
autor, ainda que seja possível estabelecermos inúmeros
paralelos. O que ressalta é o abismo a separar a vontade
da ação, o projeto de “literatura militante” das obras em
que amor, compreensão entre os homens e felicidade
nunca se concretizam. O que sobressai é o iniludível
vitimismo, no qual as personagens às vezes até
conseguem captar a medida de responsabilidade que
tiveram em seus destinos, mas sem jamais lograr
verdadeiras mudanças.
Homem estéril
O problema se repete em
Vida e morte de M. J. Gonzaga
de Sá
(1919). Logo no Capítulo
I
, o narrador, o jovem
Augusto Machado, anuncia que
contará as “cousas
íntimas” da “bela obscuridade” de seu amigo, Gonzaga
de Sá, funcionário da inútil Secretaria dos Cultos; e o
primeiro documento que nos oferece é o breve texto
descoberto entre papéis e livros do burocrata: a história
de um inventor derrotado, metáfora, logo percebemos,
da existência de Gonzaga.
O próprio narrador, aliás, já anunciara, nas
justificativas apresentadas antes de iniciar a biografia,
que as possíveis críticas lhe darão “alento para viver,
cousa que me vai faltando dentro de mim mesmo”. E as
conclusões que Machado extrai do relato sobre o
inventor antecipam muito de sua cosmovisão: “[...] o
Acaso, mais que qualquer outro Deus, é capaz de
perturbar imprevistamente os mais sábios planos que
tenhamos traçado e zombar da nossa ciência e da nossa
vontade”.
O livro nasce, assim, do encontro desses dois homens,
prontos a revelar, em diferentes momentos, sua
inadequação à vida.
Às reflexões que Machado tece, no Capítulo
II
, acerca
da burocracia – à qual aderem os intelectuais
independentes, mas que ali acabam soterrados pelo
“enfado”, pela “depressão mental”, perdendo o “viço, a
coragem e mesmo o ânimo de estudar” – correspondem
os estudos e leituras de Gonzaga, “sem filhos, membro
de família a extinguir-se”, condenado à “obscuridade a
que se havia voluntariamente imposto”; situação que o
narrador definirá, páginas depois, no Capítulo
VII
,
tentando criar certo duvidoso elogio, como uma
“fraqueza de gênio prático”.
O vencido Gonzaga está sempre propenso, portanto, a
fazer o discurso dos ressentidos: sua crítica ao Barão de
Rio Branco – tema caro a Lima Barreto – é impiedosa,
parcial, injusta. Lastima não ter mantido relações
amorosas duradouras; confessa, de forma digressiva e
indireta, ser virgem; e acaba por revelar sua misoginia,
camuflada quando diz sentir pelas mulheres “uma
grande afeição de ordem puramente intelectual”. Tenta
envernizar seus pensamentos, mostra-se capaz de gestos
solidários em relação a algumas raras pessoas, mas o
que prevalece é o ceticismo carregado de ironia:
– Levamos a procurar as causas [...] da civilização para reverenciá-las
como se fossem deuses... Engraçado! É como se a civilização tivesse sido
boa e nos tivesse dado a felicidade!

Augusto Machado chega a tocar a superfície da


personalidade do amigo, mas não consegue ir além de
uma interrogação:
Gonzaga de Sá seria um apaixonado que não conseguira a tempo
encaminhar o seu temperamento para um objeto qualquer, ficara
de
parte, guardando suas paixões, escondendo seus estos, tanto por timidez
como por orgulho?
A pergunta ecoa as questões do narrador de
Policarpo
Quaresma
, citadas acima. Quanto às respostas,
Gonzaga de Sá não deixa espaço a dúvidas. Para ele, “a
morte tem sido útil, e será sempre [...]. Não é só a
sabedoria que é uma meditação sobre ela – toda a
civilização resultou da morte”. Mais à frente, diz: “Eu
julgo [...] que os desgraçados se deviam matar em massa
a um só tempo”. E logo depois ilustra sua reprovável
tese com uma história:
[...] Recordo-me que, uma vez, por acaso, entrei numa pretoria e assisti
um casamento de duas pessoas pobres... Creio que até eram de cor... Em
face de todas as teorias do Estado, era uma coisa justa e louvável; pois
bem, juízes, escrivães, rábulas enchiam de chacotas, de deboches aquele
pobre par que se fiara nas declamações governamentais.

Ao fim desse relato, quando esperamos que ele, numa


reviravolta da consciência, se transforme no porta-voz
do “mútuo entendimento dos homens” defendido por
Lima Barreto, sua fala descamba para o niilismo feroz:
Não sei porque essa gente vive, ou antes, porque teima em viver! O
melhor seria matarem-se, ao menos os princípios químicos, dos seus
corpos, logo às toneladas, iriam fertilizar as terras pobres. Não seria
melhor?

Por um momento, Gonzaga de Sá parece reencontrar a


bondade; interrompe sua fala e conclui: “Não; a maior
força do mundo é a doçura. Deixemo-nos de barulhos...”.
Esse pensamento, entretanto, será corroído pela
frustração que se revela no penúltimo capítulo, em tudo
semelhante à de Isaías Caminha: “[...] As noções que
acumulei, não as soube empregar nem para a minha
glória, nem para a minha fortuna... Não saíram de mim
mesmo... Sou estéril e morro estéril...”. E o burocrata
destrambelha, lançando a culpa do seu desgosto sobre
os que não o compreenderam:
[...] A burrice humana é insondável! Tenho desgosto de mim, da minha
covardia... Tenho desgosto de não ter procurado a luz, as alturas, de me
ter deixado covardemente entre patos, entre tais perus, burros e maus,
agaloados ou não, ignorantes e sórdidos, incapazes de simpatia, de
gratidão e de respeito pelo valor dos outros... [...] Que bestas! O que
mais me aborrece é ter chegado a esta idade vazio de tudo, vazio de
glória, de amizade, só, e quase
isolado dos meus e dos que me podiam
entender. [...] Fugi das posições, do amor, do casamento, para viver mais
independente... Arrependo-me!... Vênus é uma deusa vingativa!
De fato, é alto o preço de não viver, de dar as costas à
realidade, procurando apenas certo mundo ideal.
Morte e vida
De igual patologia sofre Augusto Machado – o
“interlocutor indulgente” de Gonzaga de Sá, segundo a
perfeita definição de Eugênio Gomes
[ 55 ]
–, que,
também insignificante funcionário público, imaturo,
quase despersonalizado, incorpora, sem crítica, as
conclusões dos amigos. Se Gonzaga demonstra
misoginia, logo no capítulo seguinte Machado amplifica,
de maneira pueril, o sentimento:
[...] Basta que as mulheres, sejam quais forem as condições delas, não
pensem em outra coisa, e queiram-na de qualquer modo até o ponto de
fazer a raça humana a mais perfeitamente desgraçada de todas as raças,
espécies, gêneros e variedades animais e vegetais do planeta. Eu as
acuso!

No Capítulo
IX
, esse narrador nos oferece longo trecho
dedicado às mulheres, no qual o bordão de Gonzaga de
Sá – “A dama fácil é o eixo da vida” – repercute,
influencia, confunde. As páginas estão entre as mais
bem escritas da literatura brasileira, apesar de algumas
cacofonias – semelhante ao que Lima Barreto executa no
início do Capítulo
XI
, quando Machado penetra na
multidão para esquecer de si mesmo. As prostitutas de
origem estrangeira, “cheias de jóias, com espaventosos
chapéus de altas plumas”, surgem semelhantes a “velas
enfunadas ao vento, impelindo grandes cascos [...],
transtornando tudo pelas ruas em fora”:
Elas seguem... É a Rua do Ouvidor. Então é a vertigem; todas as almas
e corpos são arrebatados e sacudidos pelo vórtice. Há uma energia
poderosíssima nelas todas e nas coisas de que se vestem; há atração,
fascinação para esquecimento de nós mesmos e apagamento da nossa
personalidade na luminosidade dos seus olhos. É mágico e sobrenatural.

Tudo se perde sob o fascínio que elas impõem, tudo se


anula:
Esvaziam-se os pecúlios pacientemente acumulados; vão-se as
heranças que tantas dores resumem, e os cofres das repartições e dos
bancos sangram... As inteligências trabalham, as imaginações associam
elementos para estelionatos, peculatos e concessões... E tudo acaba
nelas; é a elas que se encaminham as riquezas
ancestrais, em terras
longínquas, em gado nédio e plantações virentes. São para elas que se
drenam os ordenados, os subsídios; é a elas também que vão ter os
frutos dos roubos e os ganhos das tavolagens. É uma população, um país
inteiro que converge para aqueles seres de corpos lassos.

Machado recorda outra afirmação de Gonzaga, para


quem essas mulheres “estão se dando ao trabalho de nos
polir”, e suas impressões enveredam por um infame
utilitarismo, em que as prostitutas são vistas como peças
do que ele entende ser a máquina civilizadora:
[...] A sua missão era afinar a nossa sociedade, tirar as asperezas que
tinham ficado da gente dada à chatinagem e à veniaga dos escravos
soturnos que nos formaram; era trazer aos intelectuais as emoções dos
traços corretos apesar de tudo, das fisionomias regulares e clássicas
daquela Grécia de receita com que eles sonham. [...] Os maridos que as
freqüentassem, levariam aos lares, ao conselho daquelas estrangeiras, o
sainete mais moderno, o
bibelot
última moda, e o móvel, e o tecido, e o
chapéu, e a renda. Assim, ateariam o comércio e estimulariam o contato
entre a nossa terra e os grandes centros do mundo, requintando o gosto
e o luxo.

Vê-se que nem Gonzaga nem Machado vão além de suas


teses naturalistas. E a única definição de amor presente
no livro é a que o narrador plagia de seu colega Rangel.
Este afirma: “Em meu parecer, nesse negócio de amor o
que vale são os preliminares, os estados d’alma
preambulares, a agonia da esperança de obter ou não o
objeto amado. Mas, quando se toca...”. E Machado,
incapaz de ter idéias próprias, resume, respondendo ao
conselho de Gonzaga para que namore: “Qual! O namoro
é a negação do amor...”.
Mas a realidade se encarregará de perturbar, ainda que
momentaneamente, suas falsas certezas. No velório do
compadre de Gonzaga de Sá, sentado na sala de jantar,
enquanto admira o crepúsculo, a idéia da morte o
obseda:
[...] Tinha pensado muito – é verdade; mas sem ter concluído coisa
alguma. Nada me ficou palpável na inteligência; tudo era fugidio,
escapava-me como se tivesse a cabeça furada. Evaporou-se tudo e eu só
sabia dizer: a Morte! a Morte! [...]

Poucos minutos depois, ainda no velório, conhece


Alcmena, a jovem que o desequilibrará ainda mais. Ela
não só discorda, com desembaraço, das suas teorias
socialistas e de outras falsas certezas, típicas da
juventude, mas o aniquila com sua beleza, lançando-o
num
estranhamento em que ele, desorientado, se
surpreende por estar longe da Rua do Ouvidor.
Esses extremos de morte e vida o impulsionam a sair do
mundo cerebral a que se aferra:
[...] era o cadáver que me impelia, que me empurrava para a moça; era
sua mudez de fim que me ditava o único ato da minha vida capaz de
fugir à lei a que ele se curvara. Vivente, tinha vivido, pois tanto é forte
em nós o viver, que só em nós mesmos encontramos a razão e o fim da
vida, sabendo todos nós que devemos continuá-la a todo o transe, custe
o que custar, em nós mesmos e nos nossos descendentes.

A mulher talvez pudesse libertá-lo. Seu nome guarda


essa promessa: na mitologia grega, Alcmena, possuída
por Zeus, dá à luz o poderoso Héracles. Mas Augusto
Machado é um cerebrino incorrigível; e deixa as
emoções serem sufocadas pelo idílio que só consegue
manter – e o faz cansativas vezes no decorrer da história
– com a natureza.
Condenação
Decorridos alguns dias, após “uma noite má, povoada
de recordações amargas”, o narrador, “covardemente
desejoso de fugir para lugares longínquos”, pretende
desaparecer entre o povo que assiste a um desfile
militar. Mas a cena de dois populares orgulhosos dos
batalhões, dos regimentos, das bandeiras, desencadeia
seu amargor, seu espírito destrutivo. Evidente
ressentimento o faz questionar:
Por que aqueles homens maltratados pela vida, pela engrenagem
social, cheios de necessidades, excomungados falariam tão santamente
entusiasmados pelas coisas de uma sociedade em que sofriam? Por que
a queriam de pé, vitoriosa – eles que nada recebiam dela, eles que
seriam espezinhados pela mais alta ou pela mais baixa das autoridades,
se alguma vez caíssem na asneira de ter negócios a liquidar com alguma
delas?

Para Augusto Machado, todos os males, incluindo sua


própria insignificância, seus próprios limites, têm um só
culpado: o “corpo social em que vivemos”. Dessa forma,
resta-lhe apenas a batida oratória revolucionária:
E eu ascendi a todas as injustiças da nossa vida; eu colhi num momento
todos os males com que nos cobriam os conceitos e preconceitos, as
organizações e as disciplinas. Quis ali, em segundos, organizar a minha
República, erguer a minha Utopia, e, por instantes, vi resplandecer
sobre a terra dias de Bem, de Satisfação e
Contentamento. Vi todas as
faces humanas sem angústia, felizes, num baile!

Logo a seguir, o fatalismo assoma. Suas frustrações não


só o isolam da realidade, mas lançam-no de miragem a
miragem, de um extremo a outro:
Não sei que diabólica lógica me dominava; não sei que inveterados
hábitos de reflexão vieram derrubar meus sonhos: eu abanei a cabeça
desalentado. Tudo isto era sem remédio. Morto um preconceito ou uma
superstição, nasciam outros. Tudo na terra concorre para criá-los: a
Arte, a Ciência e a Religião são as suas fontes, são as matrizes de onde
saem, e só a morte dessas ilusões, só o esquecimento dos seus cânones,
dos seus delírios e dos seus preceitos trariam à humanidade o reino feliz
da perfeita ausência de todas as noções entibiadoras.

A conseqüência de tal raciocínio é a pulsão de morte,


de assassinato, chave das mentes revolucionárias:
Tive um louco desejo de acabar com tudo; queria aquelas casas abaixo,
aqueles jardins e aqueles veículos, queria a terra sem o homem, sem a
humanidade, já que eu não era feliz e sentia que ninguém o era... Nada!
Nada!

Essa antiética, essa pseudofilosofia acabam por se


expressar, de forma mais concreta, no microcosmo da
vida familiar de Gonzaga de Sá. Este decidira, após a
morte do compadre, garantir os estudos do órfão,
menino inteligente, aplicado. Machado louva a “missão
educadora” que a tia de Gonzaga, depois que seu amigo
falece, leva adiante, mas não deixa de destilar o fel do
pessimismo nos parágrafos que fecham a obra. Segundo
ele, Gonzaga e sua tia contribuíam apenas
para ampliar, com o hábito de análise e reflexão que o estudo traz, a
consciência da criança que devia ficar restrita aos dados elementares
para o uso do viver comum, sem que viessem surgir nela uma mágoa
constante e um fatal princípio permanente de inadaptação ao meio,
criando-lhe um mal-estar irremediável e, conseqüentemente, um
desgosto da Vida mais atroz do que o pensamento sempre presente da
Morte!
Para nossa surpresa, as idéias que Lima Barreto
propugnava, de “difundir as nossas grandes e altas
emoções em face do mundo e do sofrimento dos
homens”, transformam-se na disposição de condenar a
criança à total inconsciência.
Naturalismo
Há, como vimos, predominância do naturalismo na
obra. Teses infectadas de biologismo surgem logo no
primeiro capítulo, em um dos insistentes idílios do
narrador com a natureza:
Façam como eu: sofram durante quatro séculos, em vidas separadas, o
clima e o eito, para que possam sentir nas mais baixas células do
organismo a beleza da senhora – a desordenada e delirante natureza do
trópico de Capricórnio!...

No Capítulo
IX
, a ótima descrição dos trabalhadores
que retornam ao lar acaba corrompida pelo
determinismo, pela necessidade de encontrar
condicionamentos biológicos que justifiquem a
existência do mal, louvando-o como elemento purificador
da realidade:
Operários e pequenos burgueses, eram eles que formavam a trama da
nossa vida social, trama imortal, depósito sagrado, fonte de onde saem e
sairão os grandes exemplares da Pátria, e também os ruins para excitar
e fermentar a vida do nosso agrupamento e não deixá-lo enlanguescer...
Quiçá não soubessem disso e, se o soubessem não se consolariam do
duro fardo de viver... Viviam, sob o aguilhão dos deveres e com a vaga
esperança consoladora da afeição eterna dos filhos.

Não deixa de ser curioso esse tom de superioridade que


perpassa o livro. O narrador quer nos fazer acreditar
que só ele detém a verdade – mas o que vibra sob cada
ironia, sob cada comentário ferino, é a inadaptação de
Augusto Machado e, tal como Gonzaga de Sá, a
personalidade fatalista, o medo de viver, seu complexo
de inferioridade, os inconfessáveis ressentimentos que o
condenam a emoções e comportamentos distorcidos, a
fraqueza moral. Esses venenos sangram inclusive os
melhores trechos, como a descrição do subúrbio, nesse
mesmo capítulo: em meio ao “arruamento delirante”, o
narrador não deixa de lembrar que a “casinha
acaçapada” mostra-se “saudosa da toca troglodita”.
Ao tentar romper a retórica ornamentada e vazia da
“língua da Bruzundanga”, Lima Barreto não conseguiu
dar vida a seu projeto utópico, o de criar a almejada
literatura de comunhão entre os homens. Abatido pelo
azedume – seu e de suas personagens –, submeteu-se
aos discursinhos ideológicos que tencionam, ontem e
sempre, comprimir a realidade em poucos, estreitos
padrões.

[ 55 ]
Em
A Literatura no Brasil
, direção de Afrânio Coutinho, volume 4,
Capítulo 39 (Global Editora, 7ª edição, São Paulo, 2004).
CAPÍTULO 13

Psicopatia e racismo
– Afrânio Peixoto e Fruta do mato

O médico Afrânio Peixoto, eleito, a 7 de maio de 1910,


para a Academia Brasileira de Letras, publicou seu
primeiro romance apenas no ano seguinte, quando
tomou posse na instituição. Discípulo do lombrosiano
Nina Rodrigues, divulgou o darwinismo social e a
eugenia típicos do seu tempo. Não foi, entre nossos
escritores, o primeiro a fazê-lo. Graça Aranha e Euclides
da Cunha já haviam se espojado na arrogância
positivista – de nefasta influência no Brasil – e
repetiriam, com maior ou menor intensidade, as idéias
que, durante largo tempo, dominaram inclusive a
literatura. Basta pensar, por exemplo, no romancista
Aluísio Azevedo e seu naturalismo, em que degradação e
promiscuidade se tornam a lei à qual todos estão
definitivamente submetidos.
[ 56 ]
No âmbito da ciência,
alguns estudiosos apontam Afrânio Peixoto como
responsável por uma campanha de difamação realizada
contra seu rival, Carlos Chagas, fato que teria impedido
o descobridor do protozoário
Trypanosoma cruzi
de
receber o Nobel de Medicina.
À parte essa vergonhosa questão ética, é curioso
verificar que o romantismo alencariano se agrega, no
romance
Fruta do mato
, de 1920, às influências
apresentadas acima. As ficções de Afrânio Peixoto são
bons exemplos de como a tradição formada por Manuel
Antônio de Almeida e Machado de Assis – ou seja, o que
de melhor se produziu em nossa literatura durante
quase um século – demorou a vingar ou produziu frutos
esparsos, às vezes esquecidos. Afrânio Peixoto e a
maioria dos escritores nacionais sofreram a pior
influência ao escolherem os modelos mais fáceis,
prenhes de cientificismo ou retórica – e por isso mesmo
desbotados de literatura.
Crítica involuntária
O narrador e protagonista de
Fruta do mato
, o jovem
Vergílio de Aguiar, declara-se, cheio de orgulho, leitor de
Auguste Comte e Herbert
Spencer. Tais leituras o
impediriam de acreditar nas superstições que rondam a
fazenda do Corre-Costa, cujos proprietários, um
traficante de escravos e a esposa sádica, seriam
demoníacos. É o que demonstra, logo no início do livro,
ao debater, com os colegas Zoroastro e Espiridião, sobre
a possível compra da propriedade, oferecida a preço
irrisório. Forasteiro na cidadezinha de Canavieiras, no
sul da Bahia, em busca de fortuna fácil, Vergílio sente-se
superior a todos, mostra-se arrogante inclusive na forma
de se referir à região, tratando-a como se não fizesse
parte da Bahia – ou como se apenas a capital do estado
representasse a verdadeira cultura baiana.
Vergílio esconde, no entanto, uma contradição: é tão
imaturo e frágil quanto o narrador de
Lucíola
, que, se
recordarmos o enredo desse romance alencariano,
acaba submetido à morbidez da protagonista.
[ 57 ]
No
caso de Vergílio, ele vence, graças às certezas que a
ciência lhe infunde, as assombrações, mas termina
derrotado pela sedução de Joaninha, neta do Corre-
Costa, ela própria sádica desde a infância, personagem
estereotipada, presuntivo símbolo do feminino, no qual
se concentram manipulação e melifluidade. Afrânio
Peixoto não busca construir, como ocorre em
Lucíola
,
um arquétipo que passa, abruptamente, do extremo
pecado à exaltada santidade, mas personificar o mal,
retratá-lo em minúcias, desenhá-lo numa personagem
plana, destituída de contrastes – e exatamente por isso
inconvincente. No que se refere ao narrador, as certezas
antimetafísicas só ressaltam seu infantilismo, sua
fragilidade moral: ele descobre as tramóias de Joaninha,
seus deletérios jogos de sedução; o que, de início, é
dúvida em que se mesclam arroubo romântico, atração
sexual e credulidade, torna-se certeza; nas páginas
finais, o positivista obtém o testemunho, a prova
almejada, que desnuda a mulher-demônio – mas termina
seu relato infenso à verdade. Assim, de forma
involuntária, a obra, apesar das poucas qualidades
estéticas, torna-se risonha crítica ao cientificismo.
Miscigenação e decadência
Às teses caras ao naturalismo – o homem escravo da
hereditariedade e o preconceito racial –, Peixoto
acrescenta sua visão deturpada das relações entre
homem e mulher, criando um protagonista que vê a si
mesmo como eterno dependente do sexo feminino:
“Parece que é da natureza do homem ter uma mulher no
sentido”, conclui Vergílio, a princípio dividido entre
Gracinha, jovem que disputa com Zoroastro e Espiridião,
e Joaninha. Os diminutivos, aliás, não expressam
valorização afetiva ou carinho, mas julgamento moral,
que se revela logo às primeiras páginas: “Sexo
prevenido, desconfiado, desunido!”.
As bobagens racistas espraiam-se por todo o romance.
Onofre, mulato e feitor da fazenda do Corre-Costa,
também apaixonado por Joaninha,
é mestiço, ser ambíguo, transitório, em que duas raças ainda se
digladiam num homem, quase um híbrido: resulta que despreza o negro,
que já não é, mas cuja inferioridade ainda o envergonha, e inveja o
branco, que não chegou a ser, e de cuja superioridade se vinga,
detraindo, rebaixando-o à própria condição...
Não satisfeito com a breve e pseudocientífica descrição,
o narrador prossegue:
Lembraram-me os infinitos mestiços que andam por aí além, por este
Brasil, e cuja psicologia só pode ser esta: rancor mais ou menos
declarado a todas as virtudes, méritos, talentos, instituições, costumes
dos brancos, ainda hoje em dia, como outrora o votaram aos outros seus
parentes os pretos, esses bons, humildes, pacientes, serviçais, afetuosos,
que, com o seu sangue, o seu braço e o seu coração, do mato grosso de
nossa terra fizeram o Brasil colonial.

A benevolência do narrador em relação aos negros só


esclarece e sublinha seu racismo e sua interpretação da
mestiçagem. Partindo dessas avaliações, Vergílio cria um
excêntrico, bárbaro tribunal antropológico-histórico, no
qual os mulatos seriam a pena que os brancos devem
suportar:
A civilização branca tem no Brasil, ainda por trezentos anos, seus
inimigos latentes na mestiçagem em que vamos purgando os milhões de
africanos do tráfico. É a desforra de Cam.

Já não é mais o narrador quem fala no trecho a seguir,


mas, sim, o médico Afrânio Peixoto, professor e escritor
na área de Medicina Legal, cuja tese, depois de formado,
intitulava-se
Epilepsia e crime
:
[...] O que o Brasil sofre, de degradação familiar, social, cívica,
religiosa, moral, política, por influxo da escravidão africana, vinga o
martírio de uma raça nos quatro séculos em que ajudou a criar nossa
nacionalidade. A escravatura forra em 88 nos terá, sob a vergonha das
suas presas, durante ainda quanto tempo? Havemos de purgar
lentamente essa corrupção, o nosso castigo... se não morrermos de
infecção...

O próprio Onofre, mulato responsável por castigar os


escravos da fazenda, incorpora as idéias do autor e
revela, em seu longo depoimento, no final do romance:
[...] Eu vingava neles toda a minha raiva e meu
arrependimento, e,
quanto mais sofria, mais era ruim. Também não me arrependo, porque
essa raça amaldiçoada nasceu para o açoite... ruins, falsos, perversos,
não veio outra assim no mundo.
Há teses análogas em
Canaã
, publicado dezoito anos
antes. Surpreendentemente, contudo, o pernóstico
romance de Graça Aranha foi enaltecido pelos
modernistas e, até hoje, tem fervorosos admiradores,
enquanto Afrânio Peixoto permanece esquecido.
[ 58 ]
O
critério seletivo, portanto, não é estético ou ideológico,
mas partidário, fazendo-nos pensar se o lema dos
modernistas de 22 não era o mesmo que Sébastien-
Roch-Nicolas de Chamfort descobriu, a duras penas,
entre os radicais franceses de 1789: “Seja meu amigo –
ou eu te matarei”.
Descrições
Como afirmei acima, o romantismo piegas de Alencar
contamina
Fruta do mato
desde as primeiras páginas.
Está presente no narrador que, caminhando solitário à
noite, fala: “Sob meus pés incendiavam-se, como
estrelas perdidas na grama, os clarões efêmeros dos
vaga-lumes”. O mesmo narrador que, logo a seguir,
anseia que Gracinha estivesse com ele,
mirando estrelas e vaga-lumes, eu a aspirar, com o das boas-noites, o
cheiro das suas pesadas e lustrosas tranças; e, além da palpitação dos
mundos, sentindo bater, junto ao dela, meu coração desejoso e
indeciso...
Ao encontrar Joaninha a primeira vez, voltam imagens
semelhantes, idealizadas, melosas, comuns:
Quis rapidamente analisá-lo [refere-se ao suposto feitiço da mulher],
mas não consegui. Seria de cabelos pretos, profusos, lustrosos, pesados,
que se derramavam encaracolados pelas fontes e pelas espáduas? Seria
da face pálida, cor de marfim antigo, que dois olhos negros, redondos,
polidos e grandes como jaboticabas, iluminavam como faróis obscuros?
Seria do corpo todo, esbelto, gracioso, torneado, que as vestes sem-
cerimônia, roceiras e domésticas, nem encobriam nem dissimulavam?
Seria do prestígio que realçava essa realidade confirmada? Não sei; tudo
isso talvez...

Não satisfeito, o narrador retoma a descrição páginas à


frente:
[...] Os cabelos fartos que choviam encaracolados pelas espáduas até a
pala da blusa, às oscilações da marcha, se afastavam às vezes,
entremostrando a nuca morena, roliça, como um torso de mármore
antigo, penugenta e provocante como de mulher moça e faceira, porque
oculta e esquiva, atrás da sua móvel cortina de seda preta...
O tronco
bem feito, a cintura fina, as ancas ondeadas, que o ritmo do andar fazia
alternativamente menear, num gesto impudico.
É uma das características de Afrânio Peixoto: pouco
acrescentar de uma descrição a outra – ou apenas
repetir. A confirmar essa observação, veja-se o que ele
escreve dez páginas depois:
Abria a porta do meu quarto para sair à sala, quando dei com ela,
Joaninha, que entrava na varanda. Tinha ainda roupa de manhã, um
roupão alvo, amplo, rendado, que não a vestia, ajustado, mas no qual se
movia, solta, livre, independente, como um fruto raro ou um diamante
lapidado, que se tivesse deposto na sua coifa de algodão. [...] Os cabelos
negros e anelados caíam em rolos e cachos sobre as fontes e escorriam
retorcidos, pesados e lustrosos, pelas espáduas. [...]

Não bastasse repisar imagens, o autor esbanja lugares-


comuns e apenas rodeia sua personagem, incapaz de
descrevê-la, a não ser enfileirando adjetivos. Trinta anos
antes, no conto “Missa do Galo”, presente na coletânea
Páginas recolhidas
, Machado de Assis já descrevera o
roupão mais famoso da literatura brasileira, que dava a
Conceição um “desalinho honesto”, despindo-a sem
desvesti-la. E o fez com economia de recursos até hoje
invejável – lição que Afrânio Peixoto desconhecia ou
recusou.
Diálogos e cantilena
Se desconsiderarmos as interferências enfadonhas do
narrador, há alguns diálogos razoáveis em
Fruta do mato
, como este, no Capítulo
IX
:
– Vergílio?
Tomou-me um arrepio de frio ou de excitação. Quis volver para prendê-
la nos meus braços, mas seu corpo me pesou com mais lassidão,
forçando a manter-me na mesma atitude, docemente coacto. Ela
continuava:
– Você acha que gosta de mim... Eu só desejo crer. Você vai me dar a
prova...
– ...
– Vamos fugir...
Parece-me que o mundo desabava sobre mim... Num instante tomou-me
uma perplexidade, diante do abismo que via se me cavar aos pés... Não
achei movimento nem resposta. Depois, uma onda de sangue me cobriu
a face de uma quentura. Ela me sacudiu:
– Responda... quer?
A muito custo, pude dizer:
– E o Américo?
– Se o abandono, é porque não gosto dele... Não o posso mais
suportar...
– E eu... seu amigo de infância... seu hóspede?
– Você não se lembrou disso, para me cobiçar...
Como eu não respondesse, a voz lhe tomou uma entonação de ironia:
– Compreendo... Para você não lhe sirvo. Uma mulher é muito para um
homem... é demais! Preferiria dividida pelos dois, o outro com a
responsabilidade, você com a distração... Que belo passeio pelo rio da
Salsa!... Enganou-se, meu amigo, eu não sou destas...
[...]
– Pois sim! fujamos... Quando?
[...]
– Qual! Você não é dos que roubam, nem dos que matam...
[...]
– Sou dos que são tentados e atormentados... Por que você me
aborrece?
– Porque ainda não gosta de mim, como eu quero que goste... Como eu
queria ser amada... Está escrito talvez que não acharei o meu, um
“homem” na vida... Vivo a procurá-lo, e a me enganar...

Mal terminada a conversa, no entanto, retorna o


narrador com sua cantilena, seu psicologismo, pronto a
explicar o que o leitor já compreendeu e, dessa forma,
diluir a tensão, arruinar o efeito criado:
A provocação da faceirice, a maldade da zombaria, passariam... um véu
de tristeza, trágica e silenciosa, cobriu-a com seu manto grave de
sofrimento e de piedade. Talvez na vida lhe fosse a única palavra não
mentirosa, arrancada pela decepção à sinceridade. O coração se lhe
exibia nu, nessa revelação. Uma mulher nunca o revela, porque não tem
consciência dele, e se tem, porque lhe resta um pudor na alma, quando o
do corpo já não subsiste mais. Andam por isso tantas, de braços a
braços, errantes e envergonhadas, nas experiências e decepções,
procurando, sem achar o seu, o par, que deve haver para cada uma... A
essa, acudira a razão aos lábios...

Narciso e Don Juan


Da obra em que Alfredo Bosi encontrou “elegância
simples e corrente” salvam-se, com esforço, a longa
cena do desafio, no Capítulo
VII
– desde que eliminados
os trechos em que o narrador se intromete
desnecessariamente –, e, no Capítulo
XVII
, o diálogo
entre Joaninha e
Onofre, que este relata a Vergílio, no
qual vemos, com nitidez, a personalidade psicopática da
mulher. Afora esses trechos, Afrânio Peixoto antecipa-se
a Nelson Rodrigues. Depois da surra que leva do marido,
Joaninha comenta com sua fiel empregada: “– Umbelina,
nunca pensei que Américo me quisesse tanto bem...”. É
o que resta dessa doentia personagem, misto de Narciso
e Don Juan, e desse romance medíocre, de final
entanguido, filho tardio do romantismo e do naturalismo.

[ 56 ]
Ver, em
Muita Retórica — Pouca Literatura (de Alencar a Graça
Aranha)
, o Capítulo 9, “O preço do naturalismo”, em que analiso
O Cortiço
.
[ 57 ]
Ver minha análise de
Lucíola
no Capítulo 1 de
Muita Retórica —
Pouca Literatura (de Alencar a Graça Aranha)
.
[ 58 ]
Minha análise de
Canaã
pode ser encontrada no ensaio “Puro
pedantismo”, Capítulo 20 de
Muita Retórica — Pouca Literatura (de Alencar
a Graça Aranha)
.
CAPÍTULO 14

Injustamente esquecido
– Valdomiro Silveira e Os caboclos

O paulista Valdomiro Silveira – que passou a vida


publicando seus contos em jornais e revistas, reunindo-
os, de tempos em tempos, no formato de livro – sofre,
até hoje, a incompreensão de parte da crítica literária.
Mas não se pode esperar muito de alguns mandarins,
sempre prontos a enaltecer o beletrismo cabotino de
Afonso Arinos – como não me canso de dizer – e
desprezar, como vimos no Capítulo 8, a espontaneidade
e a tensão épica do goiano Hugo de Carvalho Ramos.
Aliás, este último forma, ao lado de Simões Lopes Neto e
do próprio Valdomiro Silveira, a tríade que não ergueu
suas preocupações regionalistas à condição de um
mausoléu da linguagem ou dos costumes locais.
Fisgar o leitor
Os caboclos
, primeiro livro de Valdomiro Silveira,
publicado em 1920, reúne 24 contos elaborados entre
1897 e 1906, com exceção da narrativa que fecha o
volume, “Desespero de amor”, escrita especialmente
para a
Revista do Brasil
, em 1915.
São histórias singelas ou dramáticas, de inícios
contagiantes, que quase sempre capturam o
protagonista num momento revelador. É o que ocorre
em “Esperando”:
A Maruca trepou ao lugar mais alto daquela pedra e pôs-se a olhar o
rio. O rio estava repontado de uma vez, e corria quase em silêncio:
tinham-se-lhe encoberto as rochas das corredeiras por sob as águas da
última chuvarada. Um martim-pescador, sentado no guatambu da
ribanceira, olhava para o largo, tocaiando os peixes. E o vulto do
martim-pescador, fazendo sombra no rio, depois da sombra da Maruca,
tinha jeito de lhe estar de pé na cabeça.

Perceba-se a forma algo simples de narrar, obediente à


tentativa de reconstituir a fala caipira – avessa,
certamente, à mesóclise –, claro
propósito do autor, que
sequer evita repetir certos vocábulos, o que não o
impede de descrever com habilidade a posição curiosa
assumida pelas sombras.
Iniciar bem é uma arte, ainda que os teóricos do conto
insistam na importância dos finais. Em “Na tapera de
Nhô Tico”, as exclamações que irrompem sob o sol
fisgam o leitor:
– Ota! Solama bruta! – ia dizendo Chico Pica-pau, sozinho, pela estrada
vermelha, ao pino do dia. O suor caía-lhe em grossas gotas pela testa e
rosto abaixo, banhando-lhe a camisa de algodão e um bentinho de baeta
azul que vestia a oração livradeira das cobras e dos outros bichos da
peçonha [...].

No conto “Salvação”, os pássaros espocam, quase


antropomorfizados, numa barulheira tremenda:
Um gurundi pegara a chiar, muito aflito, no meio do cambuizal: e perto
dele, em gritaria alvoroçada, enrufando penas, iam pelo ar os bem-te-vis,
as cabeçudas e as sapucaias. Chegou a aparecer no tumulto, curiosa e
assustada, ua meia-pataca: mas, pousando em galho vizinho ao em que
estava o gurundi, tomou-se logo de tamanho terror, que abriu vôo,
desmanchado e cor de havana, entre os ramos povoados de frutinhas
vermelhas.

Não de forma tão abrupta, mas com desagradável


surpresa, começa a narrativa “Camunhengue”:
Um belo dia, sem mais esta nem aquela, pegaram a aparecer pelo rosto
do Zeca Estevo umas grossuras, uma vermelhidão, uma pressama que
ninguém sabia como explicar. Engrossavam-lhe as asas do nariz, iam-se-
lhe sumindo os olhos sob a carne tumefeita, que os vencia por todos os
lados, recrescente, e as pestanas principiaram a fazer-se-lhe ralas,
esfiapadas, ao mesmo tempo que a cabeça despovoava de cabelos e uma
quase contínua fraqueza lhe bambeava as pernas, para baixo dos
joelhos.

O traçado
Esses começos, capazes de prender nossa atenção,
anunciam outra das qualidades de Valdomiro Silveira: a
de criar narradores que se expressam com
desembaraço, colocando o leitor diante da cena viva,
nítida. Como em “Por mexericos”:
O Fernando, enlevado no trabalho, não viu quando lhe chegou à porta o
Chico Ferro: corria a plaina por um toro de peroba e, rasgando fitas e
fitas cor-de-rosa, punha gosto em ver que se
enrolavam como uma
trança desfeita, pendiam para a banda e caíam no chão, entre os
sarrafos e a serragem [...].

Sua técnica pode se revelar numa composição


metafórica que resume, de forma poética, certo estado
de espírito: “[...] Para quem trazia saudade velha, não
havia hora melhor: tudo em roda estava quieto, o sol
ardia, e a sombra dos arvoredos era boa e serena como
um perdão” (“Hora quieta”); ou pode se distender em
analogias aliciantes:
Mas a calma fugiu logo: o José começou a falar-lhe um dilúvio de
coisas, com a voz abafada como a dos urus na grota do ninho, e sempre
se lhe ia chegando mais para perto, a ponto de ser preciso que ela às
vezes recuasse para um lado e outro. A voz do José tinha o som de um
enxame de mirins fumegando à porta do mel: e o que a voz dizia,
naquele pouco som, tinha a mesma doçura que o mel dos mirins. (“As
fruitas”)

Nas mãos desse contista, as frases se encadeiam sem


adereços desnecessários, o ritmo torna-se leve – e a
paixão é descrita com perfeito toque de humor:
O carreiro levava uma carregação de sal para o Tibagi; mas ficou tão
enlevado na Vicença (agora, que ela era linda, isso era!), ficou tão
enlevado, que por um triz não se lhe derreteu o sal com os aguaceiros de
maio, caídos sem mais tirte, nem guarte, nem licença dos que andam
apaixonados. Estava quase aguando, o pobre! com sal e tudo, a boiada
engordando na grama larga, e o tempo dando trinta dias por mês: até
que enfim, ganhando coragem, pediu a moça, numa janta, em cima da
última colher de cocada preta e antes da tigela de café. (“Última vez”)

O inusitado dos verbos não recupera apenas a


linguagem típica do interior paulista, mas areja a frase e
soma-se aos adjetivos e ao advérbio para tornar a
personagem visível:
[...] O Valério machucava um parelho de brim de algodão trançado,
tinha um lenço de ramos atado à camisa de morim e quebrara à testa,
vitoriosamente, um chapéu cor de leite com café. [...] (“Saudade do
Natal”)

Em “Os curiangos”, desoladora história do coveiro


Pedro Mariano, a febre, talvez a gripe espanhola, se
instala na cidade. O estranho bater dos sinos e a
pobreza dos funerais ampliam a dor das sucessivas
mortes:
[...] Não acabava o sino de bater por um defunto, devagar,
devagarzinho, já pega a bater por outro, mais de pressa, até que o
toque
dos mortos já parecia repique de festa, credo em cruz! Os que tinham
alguma coisa de seu, lá iam meio arranjados p’r’o carro preto, depois de
um terno de homens de fora esborrifá-lo de quanta água esquisita há; os
outros, que morriam p’r’o hospital ou p’r esses ermos, a carrocinha de
pão vinha buscá-los, e, depois que os tais home’s os deixavam molhados
duma vez, lá iam p’r’o alto da estação, toca-que-toca, sofrendo a birra
dos cocheiros e o trote duro dos cavalos arrebentados.

A devastação irrompe diante da personagem que volta,


sem avisar, à cidade e, ao descer do trem, vê apenas
abandono, destruição. “É a viração do mundo”, sintetiza
o narrador, “o que onte’ era doce devera, amarga hoje; o
que fora bom, fica ruim”, recuperando a clássica figura
do “mundo às avessas”, tão bem descrita por Ernst
Robert Curtius.
[ 59 ]
Logo depois, quando o
protagonista se vê forçado a enterrar a mulher que
amava em segredo, o infortúnio leva-o à loucura.
Vagando enlouquecido, Mariano imagina sofrer o ataque
da natureza:
Chegou à porteira que dá p’r’a chacra do João Júlio, dobrou às canhas,
atormentado, sem tino e sem tento, e foi beirando os trilhos. Agora, a
barulhada não era só dos curiangos, em roda: lá dentro da cabeça
também a bicharia amotinada lhe fazia um guaiú de ensurdecer, como se
tivesse ânsia de voar, no mesmo auto, p’r’aquele milheiro de gargantas
despregadas. E sentiu recrescer a loucura dos curiangos, e a raiva,
enquanto os bitus e içás estalavam de leve as asas tremidas, e as
escumanas se lhe encaminhavam p’r’o meio dos miolos, campeando
saída a toda pressa.

Mas Valdomiro Silveira também sabe ser lírico, como


neste trecho de “Desespero de amor”, em que sol e lua
se alternam não só para reforçar a idéia da passagem do
tempo, mas também criar uma ilusão pictórica:
A paixão lavrou depressa: não podia passar muitas horas longe dele,
esperava-o à porta com flores no cabelo, no peito ou na cintura; e ficava
a acompanhá-lo com os olhos, tempo esquecido, até que o vulto
desaparecesse no caminho e sobre o caminho caísse toda a poeira que
aquele vulto erguera na passagem. Quantas vezes o sol a cobrira de
ouro, vendo ela o Chico Só a sumir na lonjura de um morro, e a lua viera
cobri-la de prata, sem que ela se afastasse ainda da porta, enamorada e
sonhadora!

Desenlaces
Valdomiro Silveira tinha a exata noção de como os
finais podem ser impactantes num conto, sejam eles o
desfecho clássico que Edgar Allan Poe advogava, com
sua tese de que o
dénouement
deve ser escrito antes de
tudo,
[ 60 ]
ou apresentem a perturbadora sensação de
permanência – e muitas vezes de irresolução – da
narrativa tchekhoviana.
Em “Por mexericos”, Nhô Fernando, interrompido no
trabalho, ouve as reclamações de Chico Ferro com
aparente paciência – até correr o falastrão de sua
oficina, confirmando o velho ditado: “Cão que ladra não
morde”. A história do topetudo que se acovarda retorna
no conto “Valentia”, mais cômico, com Ana Triste –
“pixaim repuxado para as orelhas, à força de pente,
remexido em caracóis e todo besuntado de banha com
essência de rosa” – enfrentando o brigão Imbuava. No
conto “Missa da Páscoa”, a alegria antecipada, os
cuidados da vaidade, os sonhos do amor correspondido –
maiores do que os da paixão impossível – são destruídos
de repente, restando apenas o vazio num final em que a
protagonista sequer tem a chance de reagir. “Pinhã
refugada” termina com o golpe de insolência e desprezo
sobre a prostituta que começa a envelhecer, mas cuja
inabalável dignidade se revela, em meio a soluços, na
última frase. Em “Desespero de amor”, a confirmação do
adultério é anunciada de forma sutil mas inquestionável,
também por meio de breve sentença.
Mas os
causos
de Valdomiro Silveira podem terminar
sem surpresa, ratificando a expectativa do leitor, que se
vê, contudo, cingido por uma nota lírica ou comovente:
em “Cena de Amor”, Chico Luís e Candoca, ambos feios,
se apaixonam, mas o gesto involuntário do final, da mão
que toca a trança da mulher – trança, aliás, sutilmente
anunciada parágrafos antes –, sintetiza a narrativa; o
fecho de “Hora quieta” chega a ser pueril, mas, graças à
espirituosa exclamação da jovem apaixonada, o leitor é
transferido a delicioso universo, no qual não há espaço
para angústias ou dúvidas existenciais – sentimento que
se repete em “Salvação”, por meio do saudosismo feliz
do velho e bom Albino. Em “Mamãe”, ao contrário, a dor
materna, subitamente revelada, expõe ao filho doente a
dimensão do seu próprio drama. De nada adianta a
Chiquinha Sabiá, protagonista do “Faiscador de
Carumbé”, sua devoção ao galanteador Zé Saúva;
previsto, o desgosto permite-lhe apenas aflitiva reação:
“Agora (ela gaguejou um tempinho), agora (e pôs-se a
tremer os lábios), agora (e desatou a chorar), agora só
morrendo!”. O choro convulso e o arrependimento
dominam Lainha, em “Constância”, quando esta
percebe, tarde demais, que não fora fiel ao próprio
coração.
Tempo e consciência
O talento desse contista pode se revelar, ainda, na
composição dos diálogos. Em “Saudades do Natal”, as
memórias de Valério e Doninha se
alternam – uma
verbalizada pelo apaixonado, outra, puro assentimento,
desfiando-se nas lembranças da silenciosa ouvinte.
Compõe-se, assim, o dueto no qual o amor, sobressaindo
da festa familiar, realimenta-se em emocionado
continuum
.
A fim de marcar o progresso da morféia, o tempo ganha
relevância em “Camunhengue”, mas avança segundo os
ciclos da natureza: ainda cai “uma neblina muito fria,
embora fosse tempo de milho verde”, quando Zeca
Estevo sai em busca do curandeiro; ao chegar “o tempo
das águas, com uma ventania nunca vista e um poder de
tempestade todo santo dia”, a esposa já se recusa a
dormir com ele na mesma cama; na estiagem, numa
manhã de dezembro, Zeca parte definitivamente,
rejeitado por todos.
Narrativa concisa, “Cena de amor” revela, sob a trama
em que alguns encontraram apenas ingenuidade, a
plena abertura de Nhá Candoca à vida – apesar da
feiúra, esta mulher não se permite a mínima
autocomiseração. Semelhante força moral está presente
em “Na tapera de Nhô Tido”: Chico Pica-pau, o
protagonista, passa da inquietação e do desejo de
vingança ao estupor que lhe permite reencontrar o
sentido da própria consciência.
Não há banalidade, portanto, em Valdomiro Silveira.
Abandonado por certos críticos num limbo nada
honroso, ele merece leitura atenta – inclusive para
lembrarmos que a literatura não deve espelhar apenas
derrotismo, misantropia e tédio.

[ 59 ]
Em
Literatura Européia e Idade Média Latina
,
MEC
— Instituto
Nacional do Livro, Rio de Janeiro, 1957.
[ 60 ]
Em “A Filosofia da Composição”,
Poemas e ensaios
, Editora Globo,
Rio de Janeiro, 1987.
CAPÍTULO 15

Corrosivo e sempre contemporâneo


– Monteiro Lobato, Urupês
e Negrinha

A reedição da obra completa de Monteiro Lobato pela


Editora Globo, após longo e controvertido litígio entre os
herdeiros e a Brasiliense, é um dos melhores
acontecimentos do mercado editorial na primeira década
do século
XXI
– principalmente àqueles leitores que
discordam de Alfredo Bosi, para quem o escritor – “um
intelectual participante que empunhou a bandeira do
progresso social e mental de nossa gente” – não passa
de um “medíocre paisagista acadêmico”.
[ 61 ]
Se considerar Lobato “acadêmico” é inaceitável – pois
não foi um seguidor rigoroso dos modelos consagrados
pela tradição nem se manteve infenso a inovações –,
chamá-lo de “medíocre” parece-me escolha, no mínimo,
inadequada.
Mas esse tipo de reação não é difícil de se encontrar
quando falamos de Lobato. Para a maioria dos seus
detratores, o artigo “Paranóia ou mistificação? – A
propósito da exposição Malfatti”
[ 62 ]
estigmatizou o
escritor, transformando-o em inimigo de tudo o que
significa avanço na arte brasileira. Lido com atenção, o
texto apresenta inclusive elogios à obra de Anita
Malfatti, porém, aos criadores do senso comum não
importa a verdade – interessa, sim, preservar certa
posição a qualquer custo. Passam a valer, dessa forma,
as versões que, reafirmando a voz geral, garantem aos
incansáveis repetidores a aprovação do partido, a
chancela dos iguais. O gregarismo cobra, sem dúvida,
alto preço da inteligência.
Mas, à parte os comentários de Lobato sobre a obra da
artista, sua crítica às vanguardas está lá, indefectível, no
famoso artigo:
Sejamos sinceros: futurismo, cubismo, impressionismo e
tutti quanti
não passam de outros ramos da arte caricatural. É a extensão da
caricatura a regiões onde não havia até agora penetrado. Caricatura da
cor, caricatura da forma – mas caricatura que não visa, como a
verdadeira, ressaltar uma idéia, mas sim desnortear,
aparvalhar,
atordoar a ingenuidade do espectador.
A fisionomia de quem sai de uma de tais exposições é das mais
sugestivas.
Nenhuma impressão de prazer ou de beleza denunciam as caras; em
todas se lê o desapontamento de quem está incerto, duvidoso de si
próprio e dos outros, incapaz de raciocinar e muito desconfiado de que o
mistificaram grosseiramente.
Outros, certos críticos sobretudo, aproveitam a vasa para
épater le
bourgeois
(chocar o burguês). Teorizam aquilo com grande dispêndio de
palavreado técnico, descobrem na tela intenções inacessíveis ao vulgo,
justificam-nas com a independência de interpretação do artista; a
conclusão é que o público é uma besta e eles, os entendidos, um grupo
genial de iniciados nas transcendências sublimes duma Estética
Superior.
No fundo, riem-se uns dos outros – o artista do crítico, o crítico do
pintor. É mister que o público se ria de ambos.

Que alguns ainda se condoam da crise emocional em


que Anita Malfatti teria imergido, supostamente por
causa das palavras de Lobato, bem, esse é um problema
de psicanalistas e biógrafos. A verdade é que o escritor
se mostrou lúcido o suficiente para, cinco anos antes da
Semana de 22, colocar-se de prontidão contra a típica
maneira de proceder dos subdesenvolvidos: acatar
modelos estéticos importados, já diluidíssimos,
desgastados de sua força original, como se fossem
verdades atemporais; e aceitar de forma acrítica o que
aparenta ser novo, apenas por trazer o rótulo de
vanguarda ou escândalo. Não por outro motivo parte dos
jovens escritores nacionais – e também dos não tão
jovens – insiste em reescrever o
Finnegans Wake
...
Um ano depois do polêmico artigo, a publicação de
Urupês
, contendo textos produzidos entre 1915 e 1917,
definiria o perfil não de um modernista, mas – como bem
sintetizou José Aderaldo Castello
[ 63 ]
– de um moderno
que, no papel de escritor e empresário, foi uma das
principais influências da Semana de 22.
Audácia editorial
De fato, não há melhor resposta ao comentário de
Luciana Stegagno Picchio – segundo a filóloga, “a
prepotente personalidade” de Lobato “cava um vazio”
em torno dele “nas batalhas cívico-literárias”
[ 64 ]
– do
que a coragem do autor de
Urupês
para, enquanto
editor, publicar tantos e tão jovens autores nacionais.
Sem a explosão do mercado editorial patrocinada por
ele, a Semana de Arte Moderna teria de esperar,
certamente, por José Olympio.
De promotor público no interior do Estado de São Paulo
e fazendeiro, Lobato passou, em 1918, a proprietário da
Revista do Brasil
. Além de revitalizar a publicação, deu
vida a uma editora. O panorama do mercado editorial e
a revolução empreendida pelo escritor foram delineados
por Laurence Hallewell:
[ 65 ]
em meio ao desalentador
comércio de livros do pós-guerra, as obras da maioria
dos autores nacionais eram importadas de Paris, onde a
Editora Garnier as produzia, ou de Portugal.
Inconformado, Monteiro Lobato sabe que, primeiro,
deve criar uma ampla rede de distribuidores. Escreve,
então, a todos os 1.300 agentes postais do país,
“solicitando nome e endereço de bancas de jornal,
papelarias, farmácias ou armazéns que pudessem estar
interessados em vender livros”. Quase todos
responderam. No final do processo, Lobato dispunha de
dois mil distribuidores. Ele diria: “Os únicos lugares em
que não vendi foi nos açougues, por temor de que os
livros ficassem sujos de sangue”. Também se mostrou
original na propaganda, fazendo publicidade em jornais,
coisa raríssima na época. Importou novos tipos, mais
modernos, e alterou os padrões de diagramação e
ilustração, não só para melhorar a aparência do produto,
mas preocupado com a legibilidade das obras. No início
de 1919, importava seu próprio papel e começou a
montar a oficina gráfica. Em 1923, tinha quase duzentos
títulos em catálogo e se tornara uma referência no
mercado.
O grande impulso à cultura, no entanto, o que Hallewell
chama de “pequeno renascimento literário”, centralizou-
se na publicação de novos autores. Seguindo seus
princípios – “Nada de medalhões, nada de acadêmicos
com farda de general de opereta do tempo de Luís XIV,
armado daquela espadinha de cortar-papel. Gente nova,
de paletó saco, humilde nas suas pretensões” –, Lobato
publicou, entre outros, Guilherme de Almeida, Amadeu
Amaral, Gilberto Amado e ao menos dois dos seus
“inimigos” modernistas: Oswald de Andrade e Menotti
del Picchia. Ainda segundo Hallewell, “a todos pagava
generosamente, e freqüentemente antes da publicação”.
O caso de Lima Barreto é exemplar: em novembro de
1918 ofereceu ao escritor “metade dos lucros de
Vida e
morte de M. J. Gonzaga de Sá
, com o que o autor não
concordou” – no fim, acabou oferecendo uma cifra que
representou “direitos de mais de 13% sobre toda a
edição de três mil exemplares”, assumindo possível
prejuízo.
Esse Lobato pronto a ajudar os escritores seguiu
atuante mesmo depois da falência do seu primeiro
projeto editorial, ocorrida em 1925. Vinte anos mais
tarde, o sergipano Paulo Dantas, depois de tentar a sorte
no Rio de Janeiro e em Belo Horizonte, chegou a São
Paulo. Já havia recebido o Prêmio Afonso Arinos, da
Academia Brasileira de Letras, pelo romance
Aquelas
muralhas cinzentas
, mas estava doente, desempregado
e sem economias. Além de pagar seu tratamento em um
sanatório de Campos do Jordão, o “prepotente” de
Luciana Stegagno Picchio abriu para ele as portas da
sua nova editora, a Brasiliense.
[ 66 ]
Sem artificialismos
Voltando ao ano de 1918, a publicação de
Urupês
trouxe a público não a linguagem de um vanguardista,
mas a de um escritor que, sem se render a modismos,
optando por escrever sobre a flora, a fauna e os habitantes do interior
do Brasil, e, acima de tudo, pelo seu constante uso do diálogo idiomático
natural, talvez tenha desempenhado papel tão importante quanto o de
qualquer outro escritor no abrasileiramento da linguagem literária.
O veredicto de Hallewell não é apenas equilibrado, mas
justo. Talvez, como também afirma o pesquisador, não
tenha existido, da parte de Lobato, “o desejo consciente
de inovar”, mas considero essa ausência um mérito,
qualidade que o distanciou dos artificialismos típicos da
vanguarda.
Ler
Urupês
nos dias de hoje não exige as sucessivas
consultas ao dicionário que são imprescindíveis, por
exemplo, em Euclides da Cunha. E se há um tom
coloquial, não é aquele utilizado nos grandes centros
urbanos da época, mas outro, próprio da zona rural
paulista. No conto “A vingança da peroba”, por exemplo,
duas famílias de sitiantes se enfrentam em rivalidades
mesquinhas:
Boa peça! Nunes gozava-se da picuinha, planeando derrubar a árvore à
noite, de modo que pela madrugada, quando os Porungas dessem pela
coisa, nem Santo Antônio remediaria o mal.
– Está resolvido: derrubo a peroba!
Dito e feito. Dois machados roncaram no pau alta noite, e ainda não
raiava a manhã quando a peroba estrondeou por terra, tombada do lado
do Nunes.
Mal rompeu o dia, os Porungas, advertidos pela ronqueira, saíram a
sondar o que fora. Deram logo com a marosca, e Pedro, à frente do
bando, interpelou:
– Com ordem de quem, seu...
– Com ordem da paca, ouviu? – revidou Nunes provocativamente.
– Mas paca é paca e essa peroba era o marco do rumo, meia minha,
meia sua.
– Pois eu quero gastar a minha parte. Deixo a sua pra aí!... – retrucou
Nunes apontando com o beiço a cavacaria cor-de-rosa.
Pedro continha-se a custo.
– Ah, cachorro! Não sei onde estou que não...
– Pois eu sei que estou em minha casa e que bato fogo na primeira
“cuia” que passar o rumo!...
Esquentou o bate-boca. Houve nome feio a valer. O mulherio interveio
com grande descabelamento de palavrões. De espingardinha na mão,
radiante no meio da barulhada, Nunes dizia ao Maneta:
– Vá lavrando, compadre, que eu sozinho escoro este cuiame!...
A Porungada, afinal, abandonou o campo – para não haver sangue.
– Você fica com o pau, cachaceiro à toa, mas inda há de chorar muita
lágrima por amor disso...
– Bééé!... – estrugiu Nunes triunfalmente.
Os Porungas desceram resmoneando em conciliábulo, seguidos do
olhar vitorioso de Nunes.
– Então, compadre, viu que cuiada choca? É só chá de língua, pé, pé,
pé; mas chegar mesmo, quando! O guampudo conheceu a arruda pelo
cheiro!
E assombrou o velho com muitos lances heróicos, quebramentos de
cara, escoras de três e quatro, o diabo.

A cena não é só divertida, mas tem agilidade incrível.


Lobato faz Nunes caçoar da família rival com um jogo de
palavras no qual troca o sobrenome “Porunga” pelo
substantivo “cuia”, praticamente sinônimos – sem
esquecer que “cuia”, em algumas regiões, significa
“meretriz”. E há outras boas escolhas: o “ronco” dos
machados, o uso das interjeições e o dito popular, chulo,
referindo-se a Pedro como “guampudo”, ou seja, corno.
Seria plausível dizer que o conto, por sua modernidade,
foi produzido em 1930 ou 1940, mas Lobato o escreveu
em 1915.
Em “O faroleiro”, do mesmo ano, o narrador, ávido pela
história que o amigo hesita em contar, diz-se “esporeado
na curiosidade” – invulgar, deliciosa expressão. E no
conto “Bucólica”, também de 1915, a contraposição –
clara desde o início da narrativa – entre a natureza
exuberante e a humanidade que só decepciona ganha
ainda maior evidência no diálogo entre patrão e
empregado:
– Então, meu velho, na mesma?
– Melhorzinho. A quina sempre é remédio.
– Isso mesmo, quina, quina.
– É... mas está cara, patrão! Um vidrinho assim, três cruzados. Estou
vendo que tenho de vender a paineira.
– ??
– Não vê que o Chico Bastião dá dezoito mil réis por ela – e inda um
capadinho de choro. Como este ano carregou demais, vem paina pra
arrobas. Ele quer aproveitar; derruba e...
– Derruba!...
– Derruba e...
– Por que não colhe a paina com vara, homem de Deus?
– Não vê que é mais fácil derrubar...
– Derruba!...
Fujo dali com este horrível som a azoinar-me a cabeça. Aquela maleita
ambulante é “dona” da árvore. Urunduva está classificado no gênero
“Homo”. Goza de direitos. É rei da criação e dizem que feito à imagem e
semelhança de Deus.

Essa, aliás, é outra das características presentes em


Urupês
: o pessimismo em relação à humanidade.
Empresário arrojado, cidadão idealista cujo espírito
cívico promoveu campanhas nacionais que se
transformaram em atos de resistência contra o governo
– chegando a ser silenciado com a prisão –, fundador da
literatura infantil brasileira, parece contraditório que
Lobato não tivesse, também no que se refere à sua
literatura adulta, um pó de pirlimpimpim mágico o
suficiente para transportá-lo a um universo em que os
aspectos negativos do homem não fossem plenamente
vitoriosos. No conto “Um suplício moderno”, por
exemplo, ele diz que “a humanidade é sempre a mesma
cruel chacinadora de si própria”. E em “Meu conto de
Maupassant”, a reflexão, acompanhada de fatalismo,
surge logo nos primeiros parágrafos: “A morte e o amor,
meu caro, são os dois únicos momentos em que a
jogralice da vida arranca a máscara e freme num delírio
trágico”. Aqui, estamos próximos de Schopenhauer – e a
anos-luz da sabedoria de D.ª Benta.
Essa inexorabilidade do destino, marcada, na maioria
das vezes, pela tragédia, é outro elemento essencial das
narrativas de Lobato. O piadista Francisco Teixeira de
Souza Prates, de “O engraçado arrependido”, termina
sua jornada tragicômica enforcando-se com a ceroula.
Da neta ingrata, em “A colcha de retalhos”, resta apenas
a colcha inutilmente costurada, que servirá de mortalha
à avó. Nunes sofre a maldição dos Porungas: a peroba,
transformada em monjolo, esmaga a cabeça de seu filho.
No tétrico “Bocatorta”, não basta que a heroína morra
sem conhecer o amor: deve ser condenada à necrofilia,
recebendo de um ser
hediondo “o único beijo de sua
vida”.
Riso e desprezo
Um só personagem livra-se do final terrível: Izé Biriba,
de “Um suplício moderno”, o melhor conto de
Urupês
. E
é sintomático que o escritor conceda a essa triste figura
um destino de liberdade: os inimigos de Biriba são o
Estado, os políticos e a burocracia – exatamente aqueles
que perseguirão Lobato por toda a vida.
Conto de tese, a história de Biriba apresenta o quadro
da política brasileira. As quatro páginas iniciais formam
um libelo sarcástico contra a burocracia, a “falange
gorda dos carrapatos orçamentívoros que pacientemente
devoram o país”, centralizando suas atenções no
estafetamento, “avatar moderno das antigas torturas”.
Izé Biriba, cabo eleitoral premiado com um cargo na
administração pública, torna-se estafeta. Mal sabe os
suplícios que o aguardam. No fim, cansado da
escravidão, vinga-se do chefe político local e desaparece
na estrada, pouco depois de dizer o seu último “Sim
senhor”. Lobato nada perdoa: critica os altos salários, o
nepotismo, a mediocridade das leis. E apresenta a
burocracia como o lugar dos falidos, dos incompetentes,
do restolho da nação. A narrativa provoca riso e
desprezo. Quanto a Biriba, o personagem mostra a
habilidade do escritor para construir tipos singulares:
por meio de um só gesto – erguer a mão esquerda à
altura da testa, arrumando o topete – temos o homem
inteiro diante de nós.
Retrato do Brasil
Além dos contos,
Urupês
traz dois artigos. “Velha
praga”, introduzido no volume apenas na segunda
edição e originalmente publicado em 1914, no jornal
O
Estado de S. Paulo
– “violenta diatribe”, na perfeita
definição de José Aderaldo Castello –, apresenta severas
críticas ao país: “Infelizmente, no Brasil subtrai-se;
somar ninguém soma...”. O discurso de Lobato lembra o
profético missionário frei Vicente do Salvador, em sua
pouco conhecida
História do Brasil
, na qual critica
brasileiros e portugueses que vivem na colônia:
Uns e outros usam da terra, não como senhores, mas como
usufrutuários, só para a desfrutarem e a deixarem destruída. Donde
nasce também que nem um homem nesta terra é repúblico, nem zela ou
trata do bem comum, senão cada um do bem particular.

Lobato investe também contra o método das


queimadas, até hoje comuns, criticando impiedosamente
o roceiro, o matuto paulista:
Tala cinqüenta alqueires de terra para extrair deles o com que
passar
fome e frio durante o ano. Calcula as sementeiras pelo máximo da sua
resistência às privações. Nem mais, nem menos. “Dando para passar
forme”, sem virem a morrer disso, ele, a mulher e o cachorro – está tudo
muito bem; assim fez o pai, o avô; assim fará a prole empanzinada que
naquele momento brinca nua no terreiro.

A mordacidade retornará no libelo que fecha o livro – e


que dá título à obra. Lobato nega-se a idealizar o homem
do campo. Não repetirá o erro cometido pelos
românticos, que criaram “aimorés sanhudos, com
virtudes romanas por dentro e penas de tucano por
fora”. Para certa antropologia contemporânea, que
costuma ser indulgente com o atraso e a ignorância, a
tudo desculpando em nome da infra-estrutura
econômica, a verve de Lobato continua a provocar
reações histéricas. O Jeca Tatu não é “um forte”:
[...] A verdade nua manda dizer que entre as raças de variado matiz,
formadoras da nacionalidade e metidas entre o estrangeiro recente e o
aborígine de tabuinha no beiço, uma existe a vegetar de cócoras,
incapaz de evolução, impenetrável ao progresso.
[...]
Pobre Jeca Tatu! Como é bonito no romance e feio na realidade!
[...]
Seu grande cuidado é espremer todas as conseqüências da lei do
menor esforço – e nisto vai longe.

De certa forma, o escritor se antecipa aos críticos do


regionalismo que romantiza o subdesenvolvimento e
tenta criar heróis onde só existem derrotados. “Urupês”
é a síntese do Brasil agrícola, primitivo, no qual a
boçalidade se irmana ao misticismo:
Na mansão do Jeca a parede dos fundos bojou para fora um ventre
empanzinado, ameaçando ruir; os barrotes, cortados pela umidade,
oscilam na podriqueira do baldrame. A fim de neutralizar o desaprumo e
prevenir suas conseqüências, ele grudou na parede uma Nossa Senhora
enquadrada em moldurinha amarela – santo de mascate.
– “Por que não remenda essa parede, homem de Deus?”
– “Ela não tem coragem de cair. Não vê a escora?”
Não obstante, “por via das dúvidas”, quando ronca a trovoada Jeca
abandona a toca e vai agachar-se no oco dum velho embiruçu do quintal
– para se saborear de longe com a eficácia da escora santa.
Um pedaço de pau dispensaria o milagre; mas entre pendurar o
santo e
tomar a foice, subir ao morro, cortar a madeira, atorá-la, baldeá-la e
especar a parede, o sacerdote da Grande Lei do Menor Esforço não
vacila. É coerente.

O artigo permanece como um repto ao país. É verdade


que, na quarta edição do livro, Lobato publicou um
pedido de desculpas ao Jeca, reconhecendo outras
causas, mais profundas, para o primitivismo do caboclo.
Mas a radiografia do Sudeste rural estava feita – e a
denúncia repercute até hoje.
Literatura e demonologia
Lúcia Miguel-Pereira, no artigo “De Peri a Jeca Tatu”,
[
67 ]
afirma, com acerto, que “Jeca Tatu é o único matuto
de ficção que tem nome e personalidade, que se tornou
um símbolo. O símbolo que Alencar tentou em vão fazer
de Peri”. Depois de analisar a “melancólica falta de
personalidade” de grande parte da ficção publicada até
aquele período, reconhece, na arte de Lobato, não só a
habilidade de criar um anti-herói, digamos, marcante.
Com sabedoria, a crítica resgata “Urupês” do âmbito da
mera denúncia e o insere no espaço da literatura:
E foi quando, no homem brasileiro, não procurou mais o herói, quando
não o quis mais exaltar, e sim quando nele viu um pobre coitado,
desamparado e humilde, que a literatura o logrou perpetuar como tipo.
A piedade humana foi mais criadora do que a imaginação.

A confirmar as conclusões de Lúcia Miguel-Pereira,


Edgar Cavalheiro afirma, em sua biografia de Lobato,
que Oswald de Andrade colocava Urupês “como o
autêntico ‘Marco Zero’ do movimento modernista”.
[ 68 ]
Por tudo o que vimos até aqui – pequena parcela do que
Lobato empreendeu durante seus 66 anos –, reconhecer
os méritos desse escritor não é apenas uma questão de
justiça, mas de respeito à verdade.
Antes de
Urupês
, Lobato publicou um longo estudo
etnográfico sobre o saci-pererê, assinando-o,
provocativo, com o pseudônimo “Demonólogo Amador”.
Talvez essa tenha sido, realmente, sua principal
vocação: estudar e combater as forças que intimidam e
corrompem o homem, impedindo-o de ser o protagonista
da sua breve existência. Não só demonólogo, portanto,
mas exorcista mordaz, que se empenhou na tarefa de
passar a limpo o Brasil. Acompanhando com rigor o país
e seus contemporâneos, foi em tudo semelhante à sua
adorável Emília: audacioso, moderno e corrosivo.
***
Não é diferente o que ocorre com
Negrinha
, cuja
primeira edição, publicada em 1920, apresentava seis
narrativas: além da que serve como título, “As fitas da
vida”, “O drama da geada”, “Bugio moqueado”, “O
jardineiro Timóteo” e, fechando a obra, “O colocador de
pronomes”. A escassez de histórias, contudo, não
diminui o valor da obra.
Na verdade, se uma hecatombe assolasse o país e
restassem apenas, no gigantesco monturo que
substituiria a Biblioteca Nacional, as 28 páginas finais
do livrinho, os raros sobreviventes, se alfabetizados,
poderiam revivificar nossa literatura, então libertada do
pessimismo machadiano, dos ressentimentos de Lima
Barreto, do pansexualismo de Aluísio Azevedo, do
romantismo sentimentalóide de Alencar e da retórica
enfadonha de Raul Pompéia. E começariam seu trabalho
fazendo o que há de mais prazeroso no destino da
humanidade: rir, pois “O colocador de pronomes” é
exemplo do melhor humor, dessa “centelha divina que
descobre o mundo na sua ambigüidade moral e o homem
em sua profunda incompetência para julgar os outros”,
como resumiu Milan Kundera no belo ensaio “O dia em
que Panurge não mais fará rir”.
[ 69 ]
A primeira frase de “O colocador de pronomes” já é um
encanto de insanidade: “Aldrovando Cantagalo veio ao
mundo em virtude dum erro de gramática”. Esse começo
inesperadíssimo captura o leitor – e o que vem a seguir o
acorrenta, obriga-o a se surpreender mais uma vez:
Havia em Itaoca um pobre moço que definhava de tédio no fundo de
um cartório. Escrevente. Vinte e três anos. Magro. Ar um tanto palerma.
Ledor de versos lacrimogêneos e pai duns acrósticos dados à luz no
Itaoquense
, com bastante sucesso.
Em poucas linhas, frases curtas, temos o tipo completo,
de espantosa mediocridade. E, logo a seguir, a descrição
de seu carrasco, o Coronel Triburtino. Neste caso, a
linguagem lobatiana trabalha, de forma irônica, com
lugares-comuns e expressões coloquiais. Estas, como
“tutu da terra”, utilizadas raramente na atualidade,
concedem tempero adicional à leitura:
Triburtino não era homem de brincadeiras. Esgoelara um vereador
oposicionista em plena sessão da Câmara e desde aí se transformou no
tutu da terra. Toda gente lhe tinha um vago medo; mas o amor, que é
mais forte que a morte, não receia sobrecenhos enfarruscados nem tufos
de cabelos no nariz.

“Sarna filológica”, “pronominúria”, “furúnculo


filológico”, “pronomorréia” – não há limites para
concretizar a loucura do personagem cuja vida “foi
sempre o mesmo poento idílio com as
veneráveis
costaneiras onde cabeceiam os clássicos lusitanos”,
estudioso que “escabichava belchiores na pista dos mais
esquecidos mestres da boa arte de narrar”. Lobato
abusa da linguagem ornamentada exatamente para
espicaçar a retórica, para denunciar a patologia dos
mestres da eloqüência nacional – no fim do conto,
inclusive, presta sutil e irônica homenagem a Rui
Barbosa.
A obsessão de Aldrovando – protagonista, não por
acaso, de nome bombástico – leva-o a se apartar da
realidade:
Aldrovando nada sabia do mundo atual. Desprezava a natureza, negava
o presente. Passarinho, conhecia um só: o rouxinol de Bernardim
Ribeiro. E se acaso o sabiá de Gonçalves Dias vinha bicar “pomos de
Hespérides” na laranjeira do seu quintal, Aldrovando esfogueteava-o
com apóstrofes:
– Salta fora, regionalismo de má sonância!

Panfletário, médico, engenheiro e, finalmente,


“apóstolo”, o amante dos pronomes vagueia, incapaz de
encontrar quem aceite suas críticas, seus conselhos. O
diálogo com o ferreiro da esquina é antológico; e a
justificativa do profissional para o erro da tabuleta que
anuncia seus serviços – “Ferra-se cavalos” – leva o
nonsense
ao paroxismo:
– Vossa senhoria me perdoe, mas o sujeito que ferra os cavalos sou eu,
e eu não sou plural. Aquele “se” da tabuleta refere-se cá a este seu
criado. É como quem diz: “Serafim ferra cavalos – Ferra Serafim
cavalos”. Para economizar tinta e tábua abreviaram o meu nome, e ficou
como está: “Ferra Se (rafim) cavalos”. – Isto me explicou o pintor, e
entendi-o muito bem.

O crescente desespero de Aldrovando desemboca no


capítulo central de seu livro, “Do método automático de
bem colocar os pronomes”, promessa não apenas de
solução gramatical, mas primeiro passo rumo ao
fármaco infalível, o “Pronominol Cantagalo”. É pena que
a utopia tenha tropeçado no tipógrafo que, certamente
movido por boas intenções, transforma o herói no
“primeiro santo da gramática, o mártir número 1 da
Colocação dos Pronomes”.
Fracos e fortes
Ainda que esse conto formidável diminua o brilho das
outras histórias, todas, em maior ou menor grau,
merecem elogios.
“Negrinha” tem uma de suas melhores partes na
quebra do estereótipo de maldade que Dona Inácia
representa: a matrona se torna verossímil quando
permite à órfã brincar com as sobrinhas. Até esse ponto,
a
narrativa, apesar de ser um libelo contra o racismo,
não convence. O segundo trecho importante é o final – e
não me refiro à morte da protagonista, mas aos dois
comentários insensíveis que formam a lápide da menina.
“O drama da geada” se desequilibra entre o beletrismo
de certos trechos, algumas boas descrições, o dom de
Lobato para captar falas coloquiais e um final trágico,
que faz a leitura valer a pena.
A estrutura de “Bugio moqueado” é perfeita. Depois de
um começo informal, carregado de gírias, o narrador vai
sobrepondo camadas de mistério, a fim de consolidar o
tom soturno. Há certo exagero, principalmente na
descrição da mulher, mas o desvio, pouco antes do fim, e
a conclusão repulsiva acabam submetendo o leitor.
Triste lição sobre a impermanência das coisas, “O
jardineiro Timóteo” é metáfora da tradição destruída por
modismos. Apesar do final óbvio, merece atenção a
semiótica das flores que o jardineiro elabora para
dialogar com a realidade e torná-la suportável. Quando
acreditamos que Lobato não conseguirá criar novos
devaneios, ele surpreende. O desabafo que antecede o
triste final serve com perfeição à estrutura da narrativa.
“As fitas da vida” apresenta um dos pontos fortes de
Lobato, os diálogos. Primeiro, entre o funcionário da
Hospedaria dos Imigrantes e o cego; a seguir, deste com
o major: as vozes intercalam-se de forma ágil; as falas do
ex-soldado constroem o núcleo da narrativa, pleno de
honradez e lealdade. Nenhum comportamento é
estereotipado – e temos certeza de estar frente a
emoções genuínas quando o pobre cego esmorece, fraco
e desprotegido, incapaz de reagir aos insistentes ultrajes
do major. Toda a trama se resolve com a revelação que
oferece esperança ao sofredor. Trata-se de um conto
moral, edificante mas sem pieguice, exemplo raro na
literatura brasileira.
Desequilíbrio
As narrativas incluídas nas edições posteriores de
Negrinha
criaram um todo mais desigual. Há historinhas
divertidas, como “A policitemia de Dona Lindoca” e
“Sorte grande”; uma tentativa frustrada de censura à
avareza (“Herdeiro de si mesmo”); duas narrativas
híbridas, que não se decidem entre o conto e a crônica
(“O fisco” e “Quero ajudar o Brasil”); o inocente “Uma
narrativa de mil anos”, espécie de
Un cœur simple
quase
esquemático, apesar do início sugestivo; “Barba Azul”,
de tema interessantíssimo mas sem dramaticidade; e
“Os pequeninos”, que soma duas histórias curiosas,
principalmente a segunda, em que o protagonista é
derrotado por inimigos insólitos.
Restam, no entanto, três ótimos contos.
Gótico
“Os negros” revisita o velho tema dos viajantes
obrigados a passar a noite numa casa mal-assombrada.
O que Afonso Arinos realizou, de forma capenga, em
“Assombramento”, Lobato eleva à condição de narrativa
gótica, com os elementos característicos: tempestade
inesperada, propriedade em decadência, ambiente
lúgubre, amor impossível e cena trágica – além, claro, da
alma penada.
Na dupla de viajantes, formada pelo narrador e seu
amigo, Jonas, será este – zombeteiro e racista – o alvo do
espírito de um subalterno da fazenda, jovem português
que cometera o erro de se apaixonar pela filha do
latifundiário, o capitão Aleixo. A história é
contextualizada por meio de diálogos desembaraçados,
nos quais ressalta a figura do hospitaleiro Tio Bento. Há
boas falas, em que Lobato transmite de maneira perfeita
as inflexões coloquiais, e esta figura impressionante,
síntese do horror do tráfico negreiro: “Aportamos em
África para recolher pretos de Angola, metidos nos
porões como fardos de couro suado com carne viva por
dentro. Pobres pretos!”.
Saliente-se o cuidado de Lobato ao criar uma voz
sobrenatural que, apesar de editada, como o próprio
narrador explica, ganha características peculiares.
Outro aspecto positivo é não se apelar ao grotesco no
final, mas oferecer rápida visão do local da morte, certa
parede sinistra.
Sarcasmo
Lobato exercita sua ironia em “A facada imortal”, cujo
título, escolhido com perspicácia, causa boa confusão no
leitor, intensificada pelos dois primeiros parágrafos, em
que se passa do enxadrismo ao faquista Indalício
Ararigbóia. Logo percebemos tratar-se de um compêndio
de escroqueria, técnica que o protagonista exerce com
refinado academicismo:
[...] O escultor nobilitará até um paralelepípedo de rua, se lhe der
forma estética. Por que não nobilitaria eu o deprimentíssimo ato de
pedir? Quando lanço a minha facada, sempre depois de sérios estudos, a
vítima não me dá o seu dinheiro, apenas paga a finíssima demonstração
técnica com que o tonteio. Paga-me a facada do mesmo modo que o
amador de pintura paga o arranjo de tintas que o pintor faz sobre uma
estopa, um quadrado de papelão, uma relíssima tábua. O faquista
comum, notem, nada dá em troca do miserável dinheirinho que tira. Eu
dou emoções gratíssimas à sensibilidade das criaturas finas. Minha
vítima tem de ser fina. O simples fato da minha escolha já é um honroso
diploma, porque nunca me desonrei em esfaquear criaturas vulgares, de
alma grosseira. Só procuro gente na altura de compreender as sutilezas

das paisagens de Corot ou dos versos de Verlaine.

Em suas reflexões, o delicado anti-herói tece, inclusive,


laivos de teoria literária:
– E eu, que caço? – perguntei.
– Antíteses – respondeu de pronto Indalício. – Fazes contos, e que é o
conto senão uma antítese estilizada?

A morte banal desse especialista em “caçar otários com


a espingarda da psicologia” arremata o exercício de
sarcasmo.
Sintaxe e humor
“Dona Expedita”, narrado com naturalidade e humor
impressionantes, demonstra também o controle de
Lobato sobre a sintaxe. Vejam como o narrador
apresenta, de forma oblíqua e irônica, a verdadeira
idade da protagonista:
E, como só tem 36 anos, veste-se à moda dessa idade, um pouco mais
vistosamente do que a justa medida aconselha. Erro grande! Se à força
de cores claras, ruges e batons, não mantivesse aos olhos do mundo os
seus famosos 36, era provável que desse a idéia duma bem aceitável
matrona de 60...
Autores contemporâneos optariam por um discurso sem
rodeios, destituído de sutilezas, para relatar o mesmo
fato – e justificariam a pobreza de seu estilo alegando
obediência a supostas teorias estéticas ou
sociolingüísticas...
O longo diálogo que encerra o conto – e,
gradativamente, inverte as expectativas das
interlocutoras – é peça sugestiva, tem humor, fluidez,
precisão.
Pré-modernista?
Referindo-se a
Urupês
, Edgard Cavalheiro resumiu as
qualidades da contística lobatiana: “Nada de falsa
literatice tão em moda, da superafetação bombástica, do
palavreado vazio, e sim literatura da boa, fonte não
somente de emoção e sabedoria, mas também de
humanidade [...]”.
[ 70 ]
O correto elogio pode se
estender a outros livros de Lobato – e bastam “Um
suplício moderno” e “O colocador de pronomes” para
implodir a esdrúxula periodização da nossa literatura.
Encarcerar Lobato num caótico e liquefeito pré-
modernismo ou condená-lo por meio de avaliações
preconceituosas e superficiais só diminui esse autor de
narrativas cáusticas, exemplares e sempre
contemporâneas.

[ 61 ]
História concisa da literatura brasileira
, 34ª edição, revista e
aumentada, Editora Cultrix.
[ 62 ]
O Estado de S. Paulo
, 20 de dezembro de 1917.
[ 63 ]
A literatura brasileira – origens e unidade
, volume
II
, Edusp, 1999.
[ 64 ]
História da Literatura Brasileira
, Editora Nova Aguillar, 1997.
[ 65 ]
O livro no Brasil (sua história)
, T. A. Queiroz Editor / Edusp, 1985.
[ 66 ]
Ver o depoimento de Paulo Dantas em seu livro
Presença de Lobato
,
RG Editores, 1973.
[ 67 ]
Texto publicado no jornal
Correio da Manhã
, em 19 de novembro de
1944. Pode ser lido em
Escritos da maturidade
, Graphia Editorial, 1994.
[ 68 ]
Apud
José Aderaldo Castello.
Op. cit
.
[ 69 ]
Em
Os testamentos traídos
, Editora Nova Fronteira, 2ª edição,
1994.
[ 70 ]
Ver “Ciclo Paulista”, Capítulo 40 de
A literatura no Brasil
, volume 4,
direção de Afrânio Coutinho, Global Editora, 7ª edição, São Paulo, 2004.
CAPÍTULO 16

O filho tardio de Alencar


– Alcides Maya e Alma bárbara

No ensaio que dedica a Alcides Maya em


Prosa dos
Pagos – 1941-1959
,
[ 71 ]
Augusto Meyer afirma, logo
no primeiro parágrafo, que “há um imperativo de
saudade e uma deleitação de fundo nostálgico na
leitura” da obra desse escritor, salientando, poucas
linhas depois, “a monotonia que transparece de suas
páginas”, característica analisada não como algo
negativo, mas como “um atestado de fidelidade” à
“constância”, ao apego do escritor às suas raízes. Para
dar vida a tal afeição, Maya, ainda segundo Augusto
Meyer, buscava “surpreender os vestígios de um estilo
de vida já em recuo para o passado, evanescente e
apenas sobrevivendo em crise”.
As observações de Meyer resumem, de maneira
fidedigna, a temática dos contos reunidos em
Alma
bárbara
, publicado em 1922, mas não abrangem a
forma escolhida por Alcides Maya para exteriorizar a
invariabilidade que, diferente do crítico otimista,
considero exemplo de mesmice. Assim, se as histórias
estão circunscritas à idealização do
gaucho
ou à
narração de causos cujo limite geográfico e cultural é a
vida pampiana, a linguagem utilizada mostra-se refém
de soluções monocórdias e retóricas.
Filas de adjetivos
“Água parada”, que abre o volume, anuncia o
saudosismo do autor e seu apego aos adjetivos. A
narrativa idílica, que não chega a criar um conto, fixa-se
no tema bucólico e aí permanece, definindo certa
idealizada lagoa como “profunda, singular, diferente de
todas”, com águas também “profundas”, novamente
“diferentes” e, por fim, “atraentes”. Vencidos poucos
parágrafos, a água torna-se “calada, solitária,
arrastadora”, mais uma vez “atraente” e, a seguir,
“indiferente”. Sob o domínio de tal adjetivação, o
discurso pernóstico, de nítida influência alencariana, é
conseqüência inevitável: “Lá embaixo, bem no fundo,
estremeceria
ainda, na algidez dos seus desejos
torpentes, alguma iara sonolenta, das que outrora
seduziam os guerreiros com seus olhos cerúleos e as
suas verdes madeixas?”, pergunta-se o narrador. Não
faltam, elementos indispensáveis nesse tipo de texto, os
lugares-comuns, na forma de “beijos de brisas
perfumadas pelas flores da encosta”.
O problema se agrava no relato seguinte, “Fábula de
hoje”, no qual temos a história do gato Mephisto e sua
fugaz amizade por um passarinho. Enumerar as
qualificações do felino pode ser um exercício divertido
para quem deseja conhecer este modelo de
antiliteratura, em que o enfileiramento de adjetivos
pretende definir tudo. O gato chega a ter “formosura
moral”, logo destruída pela fome, que o obriga a, num
desfecho previsível, devorar seu amigo.
Em “Monarcas”, descobrimos Neco Alves, o campeiro
que não consegue fazer jus plenamente à herança de
coragem dos antepassados. Além da cascata de
adjetivos, o narrador passa mais da metade da história
construindo um gaúcho idealizado, símbolo de bondade
e inocência, em perfeita harmonia com a natureza, mas
que, dado o excesso de qualidades, acaba se tornando
ridículo. No último terço da narrativa, quando pensamos
que surgirá alguma trama, o escritor opta pela solução
mais fácil, frouxa de tão resumida.
Idealização e melodrama
“Chica-Balaio (historieta de dragões)” nos oferece,
novamente, a linguagem empolada: em certo trecho, a
mendiga continua a bater na cobra que acaba de matar,
mas o autor prefere dizer que “a mulher continuava a
contundir a serpe, atingindo-lhe o dorso crispado e a
cauda açoitante”. Além disso, há um erro de composição
que torna a cena inverossímil: num momento, Chica-
Balaio está longe, concentrada em “ajuntar gravetos”;
no seguinte, consegue, graças à sua visão telescópica,
perceber a cobra pronta a atacar o menino e, o
principal, correr na incrível velocidade que lhe permite
impedir o ataque.
Depois de ultrapassarmos “China-Flor”, crônica ultra-
romântica, plena de soluções melodramáticas, chegamos
a “Alvos”, história do vaqueano Silvério Torres, obcecado
por atirar. O gaúcho sofre a transformação cara a
Alcides Maya, sempre movido por irrefreável ânsia de
idealização, e é descrito como um esteta, “amante do ser
em movimento”, capaz de, acreditem, entre
madressilvas, margaridas e outras florinhas, acertar
numa borboleta “mimosa, trêfega, pequenina”. Na
verdade, Torres não passa de um sádico que, em busca
de alvos humanos, favorecerá a traição da mulher. Dez
parágrafos antes do fim, já sabemos qual será o
desfecho.
“Lenda guerreira” é história sentimentalista, com
“arrebóis longínquos
do poente – mancha de frágua
entre o azul cerúleo e o verde-montanha dos campos” e
um beija-flor que morre e cai no colo da mãezinha
sofredora, anunciando-lhe a morte do filho na Guerra do
Paraguai. Nem Alfredo Le Pera e Horacio Pettorossi
conseguiram, na letra do famoso tango
Silencio
, ser tão
melodramáticos.
Linguajar e esquematismo
Às vezes, Alcides Maya dá a impressão de tatear em
busca do estilo ideal. No conto “História gaúcha”,
narrativa de ódio e vingança que transcorre em torno de
certa adaga satânica, o escritor tenta reproduzir o
linguajar dos Pampas:
A rapariga consentiu, dei-le umas boquinhas (ah! tempo!) e, à meia-
noite, atei o ca’alo na frente e empurrei na porta um manotaço. Um
aviso... Inda o bruto não tinha saltado do catre e já eu penetrava no
rancho. Derrubei a relho aquel’tebas! Quando o companheiro acudiu, já
eu fazia relampear a adaga do bugre, minha herança de fado, que outro
bem nunca tive, mas esse me apertencia. Lascou-me fogo e errou (havia
de ser!) e ali mesmo lo acuchilhei, como rês, no sangradouro... E nem
alimpei o ferro: de vereda, fui-me ao primeiro, que se boqueava no chão,
e le taquei um tiro no ouvido, mas bem dentro, bem no fundo... Não se
abichorne, moço, que a vida é assim... Vocemecê queria, ’tá ouvindo. E
dê-me no mais do seu místico, que o meu isqueiro se quebrou e este pito
está manheirando...

O principal limite de experiências desse tipo, sem


dúvida curiosas, é óbvio: a linguagem torna-se o
principal personagem – e ao assumir o protagonismo,
desbanca ou enfraquece o enredo.
Na seqüência, a brevidade de “Ritornelo romântico”
não permite nem mesmo que a trama se concretize –
tudo se resume a esquematismo, nada mais. Problema,
aliás, semelhante ao de “Supérstite”, conjunto de cenas
rápidas que se dividem entre a coragem e a morte.
Lacunas e romantismo
“Entre bandidos (do diário de um amigo)” é a tentativa
mais esforçada do autor para se aproximar do conto
clássico. O resultado, pífio, deve-se principalmente ao
entrecho repleto de lacunas. Dois amigos escutam a
história de um terceiro, Heitor Mendes, proprietário da
Estância dos Álamos, que relembra um inimigo “de
nascença”. Este é o primeiro problema: não há
justificativa para o ódio comum – o primeiro olhar foi de
“ódio profundo, inelutável, definitivo”. À força desses
adjetivos, o autor acredita ter materializado o
sentimento para os leitores e segue, decidido,
adiante.
Após alguns encontros, Heitor afirma que Padilha, o
adversário, “sustenta com a polícia uma luta desigual e
épica”, sem descrever, entretanto, o embate, certo de
que apenas o fato de mencioná-lo constitui literatura.
Mais tarde, reencontrará o inimigo, agora com a amante
– por coincidência, sua ex-namorada. Enciumado, decide
montar uma cilada para Padilha e capturar a jovem.
Quando a ação está prestes a ocorrer, o narrador inventa
esta desculpa:
Tentei reproduzir o diálogo em homenagem a vocês, e porque, além de
revelar o meu desvario, me dispensa de insistir sobre o que, em seguida,
aconteceu. Felizmente, não houve morte de homem... Arrebatada por
mim, pessoalmente, a rapariga esteve aqui, em segredo, três semanas,
três séculos do inferno... Não se rendeu: fugiu...

O autor nos rouba, assim, a melhor parte da narrativa –


e, no parágrafo seguinte, a jovem encontra-se na
estância. Incapaz de submetê-la, pois permanece
apaixonada por Padilha, Heitor a liberta. Os inimigos se
reencontram – mas apenas para que Padilha,
melancólico, relate a Heitor a morte e o enterro da sua
paixão. Novíssima histórica romântica, portanto.
No “Conto... realista”, é curioso perceber como o
narrador chega a abandonar a história, perdendo-se em
explicações pseudo-antropológicas sobre a religiosidade
e as superstições gaúchas. No fim, o elemento que
prometia desvendar a solidão e a estranha
personalidade do velho curandeiro – uma trança negra,
de cabelo crespo – permanece inexplícito.
Bom humor e Iracema
A melhor narrativa do livro, “Duas tragédias...”,
apresenta-se na forma de um diálogo repleto de bom
humor, no qual o linguajar gaúcho não pretende se
impor de maneira absoluta, mas apenas ser o veículo das
histórias contadas por Zeno, mentiroso e extrovertido
campeiro. O personagem pueril, interrompido, aqui e ali,
pelo patrão gozador, é mal aproveitado e o conjunto se
resume a dois causos sem nenhuma inter-relação.
Em “Caturrita”, o narrador se perde, logo no início,
numa cansativa digressão, romântica e pseudo-filosófica.
Estamos, então, de volta ao estilo pegajoso:
Malvina era de todos, espontânea e cantante, qual uma fonte à sombra,
nascente mansa de água múrmura, que desaltera e fica para trás,
esquecida, na verdura macia, aromática, hospitaleira
dos capões...

Quanto ao corpo dessa “femeazita”, como a denomina o


narrador, era
ágil e rijo, trigueiro e penugento, elástico e serpentino, cheirando a
araçá maduro, a trevo pisado, a flechilha e a espinilho, a todas as flores.
A todas as gemas silvestres reunidas na mesma adorável carnadura de
mulher.

Sem dúvida, trata-se da reencarnação sulista de


Iracema, que se sacrifica por “um amor imprevisto,
repelido, arrastador, aniquilador...”.
Estilo bombástico
Considero “Ceguinho de estrada”, que fecha o volume,
a narrativa mais dramática, exatamente por reunir os
defeitos de Maya. É surpreendente que Augusto Meyer
tenha considerado essa história
verdadeira obra-prima, em que a expressão da piedade se apresenta
nua, direta, simples na sua humilde franqueza, como se o autor, despido
de todos os preconceitos, deixasse falar pela sua voz a força de um
destino.

O pobre cego é destruído, parágrafo a parágrafo, pela


linguagem que, afetada, pretende criar um ser mirífico:
Não tivera mestre, não passava de um mísero ceguinho, e, contudo,
sentia ser o seu espírito um centro convergente e consciente de
vibrações. Falava-lhe à alma encarcerada a alma errante, envolvente,
arrastadora, dominadora das cousas, e eis porque entrevia, percebia,
completava os aspectos. [...]
Os outros eram instinto; ele, espírito e coração. Sofria por isso, por ser
assim, por ânsia de amar o desconhecido, que lhe povoava de longínquos
esplendores, fugazes, mas contínuos, a treva insondável do seu destino.
[...]
Ele amava a brisa, os sibilos do vento, o perfume das flores invisíveis, o
tatalar dos pássaros, as folhas cobertas de orvalho, a tépida carícia das
alvoradas [...].

Os derramamentos do autor enaltecem de maneira


cansativa o protagonista – semelhante ao que ocorrera
em “Monarcas” e “Alvos” – apenas para, no final,
condená-lo “às mágoas cruciantes do seu viver, de todo,
para sempre, desamparado, perdido...”. Mal contada e
sentimentalóide, a narrativa é ótimo exemplo do estilo
bombástico de Alcides Maya.
Dois gaúchos
A esgotante tarefa de ler
Alma bárbara
serviu para me
lembrar do argentino Ricardo Güiraldes (1886-1927) e
seu
Don Segundo Sombra
, publicado em 1926 – a
melhor contraposição à linguagem e aos gaúchos de
Alcides Maya.
Romance de formação, em que o jovem Fabio Cáceres
se relaciona com o vaqueiro que dá nome ao livro,
aprendendo com ele os valores, a ética da
gauchería
,
Don Segundo Sombra
é exemplo de sutileza, de lirismo
comedido, síntese do imaginário da
llanura pampeana
.
Esse mestre altivo, que leva Fabio às portas da
maturidade, percorre, cruzando os Pampas, o trajeto
inverso dos personagens de Maya: torna-se, página a
página, uma figura mítica – até o momento da
despedida, em que Cáceres afirma:
Aquello que se
alejaba era más una idea que un hombre
.
Trata-se de romance superior: nada de efusões
incontroláveis; a adjetivação, sóbria; as frases,
buriladas, muitas vezes lacônicas, reproduzem a
personalidade do
gaucho
altivo, de heroísmo ático.
Güiraldes produziu um clássico que, em inúmeros
trechos, nos transporta a certo universo épico, enquanto
Maya, romântico decadente, é apenas o filho tardio de
Alencar.

[ 71 ]
Livraria São José, Rio de Janeiro, 1960.
CAPÍTULO 17

Sobriedade e sutileza
– Amadeu Amaral e A pulseira de ferro

Amadeu Amaral permanece indispensável à cultura


brasileira graças a
O Dialeto Caipira
– estudo pioneiro
sobre as características da linguagem no interior do
Estado de São Paulo –, à permanente campanha em
defesa do folclore, cujas pesquisas nos permitiriam
alcançar o que ele chamava de “conhecimento exato da
nossa gente” e aos
insights
das análises literárias
reunidas em
O Elogio da Mediocridade
, incluindo o
ensaio que dá título ao livro, deliciosa peça de ironia
sobre o papel do crítico e dos escritores. Poeta menor,
deixou uma novela exemplar,
A pulseira de ferro
,
presente no volume
Novela e Conto
de suas
Obras
Completas
[ 72 ]
– publicadas sob a direção de Paulo
Duarte, intelectual paulista injustamente esquecido.
Papéis invertidos
O escritor não teme iniciar
A pulseira de ferro
utilizando a fórmula “Era uma vez um vigário da vila de
Candeias, chamado Guilherme de Meneses...” – assim o
narrador finaliza o Prólogo, em que também avisa o
leitor sobre suas opções lingüísticas, despojadas de
preocupações literárias regionalistas.
De fato, padre Guilherme assume, num primeiro
momento, o papel de protagonista. Na pacata vilazinha
começa a história desse vigário bonachão, dedicado, em
algum dia entre 1875 e 1880, ao seu almoço, “oloroso
assado” que pretende saborear. Interrompido por Chico,
o sacristão, que o chama para um batizado urgente, pois
a criança estaria à morte, segue para a igreja. Lá,
encontra o recém-nascido, mas abandonado pelos pais.
Decide, então, acolhê-lo em sua casa, confiando que a
cozinheira, Rosa, cuidará dele.
O que ressalta na personalidade do clérigo é o caráter
pueril, presente já nos seus primeiros comentários,
quando se mostra incomodado ao perceber a forma
como Chico o julga, pois este acredita que, entre o
almoço e o batismo, padre Guilherme prefere o primeiro.
Para um homem de quarenta anos, acostumado a
conviver com diferentes tipos de pessoas e a ouvir delas,
no confessionário, o que têm de pior, a insistência para
provar ao sacristão suas verdadeiras intenções fornece
os primeiros sinais da imaturidade que a trama
comprovará.
Ao decidir adotar a criança, o clérigo atesta, mais que
compaixão, nítida carência afetiva, necessidade de
conceder amor especial, particular, a uma única pessoa.
O diálogo do Capítulo
III
, em que troca idéias com a
cozinheira sobre o nome que dará à criança e sua dúvida
em relação aos padrinhos, confirma a personalidade de
um homem despreparado para seu ofício, tolo a ponto de
acreditar em superstições. O próprio narrador trata-o
com ironia, no Capítulo
VII
, descrevendo-o “quase como
uma senhora na doçura e na paz da maternidade
recente”.
Em pouco tempo, o vigário torna-se alvo de mexericos:
a adoção, apesar de informal, revelaria que ele é o
verdadeiro pai da criança. O diálogo que mantém com o
professor Camacho, único redator do jornal da vila,
desencadeia sua indignação:
Camacho abanou a cabeça e esboçou um sorrisinho indeciso. Depois,
levantando as sobrancelhas e apertando os beiços numa caramunha de
contrariedade, arrulhou:
– Eu julgava que vossa reverendíssima estava ao fato de tudo, e foi por
isso que me atrevi a falar...
– Desembuche.
– Referia-me ao pequeno, ao enjeitadinho, que as línguas perversas
deram agora para assoalhar que é filho do sr. vigário...
Padre Guilherme baixou as sobrancelhas híspidas sobre o olhar
coruscante, enquanto ouvia o professor, e assim se conservou por um
tempo.
– Então dizem isso de mim?
Camacho fungou um suspiro.
– Por toda a parte, sr. padre.
– Mas dá-se crédito a semelhante infâmia? Que caráter tem isso? De
notícia certa? De boato vago? De pilhéria? E quem é que o diz, sr.
Camacho? A quem é que o senhor já ouviu dizer isso, sr. Camacho?...
O mestre-escola gaguejou umas evasivas. E o padre, pegando-lhe na
manga e dando-lhe pequenos repelões:
– Dessas “minudências” o senhor não sabe, hem! sr. Camacho... O
senhor sabe que me caluniam, que me arrastam o nome por essas
sarjetas, mas não sabe mais nada, não viu, não percebeu... não quis

perceber mais nada!


À parte o diálogo perfeito, bem construído, as reações
do clérigo, que se intensificarão a partir desse ponto,
reafirmam sua total incapacidade para lidar com
questões controversas. Mesmo tentando fingir que nada
acontecera, ter consciência dos boatos é algo
insuportável para ele. E apesar do apoio que recebe do
único amigo, o advogado Veloso, sucumbe às
maledicências e decide partir da cidade. Seu rancor fica
claro nas palavras que, num rompante, diz a Veloso,
pouco antes de partir:
– Por ter a consciência limpa é que me revolto, Veloso (bradava o
padre). Não, não me posso conformar com esta idéia de que a “minha”
pessoa não é afinal “minha”, não me pertence, não é aquilo que eu quero
que ela seja, aquilo que eu tenho o direito de querer que ela seja, aquilo
que eu vivo a trabalhar toda a minha vida para que ela seja!... E essa
idéia estúpida, essa idéia trágica é a realidade, a realidade objetiva, a
realidade tangível! A “minha” pessoa é uma coisa como qualquer outra,
é um objeto, é um traste, é um punhado de matéria desprezível que o
primeiro ladrão apanha, desconjunta, torce e deforma à sua vontade, por
desfastio, por malvadez, por pilhéria, sei lá!...
De nada servem os argumentos de Veloso, que
confirmam os papéis invertidos desses personagens, pois
o advogado mostra-se mais próximo da firmeza de
caráter que o senso comum espera do sacerdote:
– Que culpa tem Deus de que você exagere a sua sensibilidade? Você é
que devia ter a força de desprezar o que é desprezível; mas não
desprezar de gesto e de palavra – desprezar de toda a vontade, de toda a
alma, num desprezo integral e sereno... Você não tem essa força, e
padece... Mas reconheça ao menos que também esse padecimento é
providencial. Nós nos orgulhamos facilmente das nossas boas partes; e
aquele que se compraz em reconhecê-las em si mesmo, já desmereceu
um pouco, só por isso. A má-língua chama-nos à realidade, força-nos a
ser modestos, a juntar ainda uma qualidade, preciosa entre as mais, às
qualidades que já possuímos...

Metáfora
Esses comentários, no Capítulo
X
, representam apenas
um dos inúmeros trechos que contribuem para
transformar Veloso no personagem central da narrativa.
Página a página, o narrador torce com habilidade a
trama, passa a segundo plano o vigário, utiliza as
calúnias sofridas pelo padre para provocar no advogado
a recordação pungente do próprio passado – e Veloso,
por sua personalidade diligente e solícita, seu
poder de
análise, assume o protagonismo da história.
O núcleo dessa mutação encontra-se no Capítulo
IX
, no
qual o advogado relata ao padre, para que lhe sirva de
exemplo, a história do ferreiro Manuel da Costa,
morador de Candeias, durante longos cinco anos
dedicado a moldar, nas horas de lazer, a delicada
“pulseira de ferro”, presente que dará a Raquel, sua
jovem filha, por quem Veloso, já homem maduro, se
apaixona. A família, contudo, é destruída pelas intrigas
da população – e Veloso partilha da violência das
calúnias, responsáveis inclusive pelo suicídio de Raquel.
Essa experiência anterior é o drama que permite ao
advogado ironizar a indignação do padre, correta, sem
dúvida, mas desproporcional.
Pouco antes, depois de salientar que o vigário vive
apenas a “estréia de caluniado”, Veloso expusera, num
diálogo central, no Capítulo
VIII
, sua teoria sobre como a
índole violenta do homem depurou-se até se transformar
em difamação:
[...] O bruto ganhou em peçonha, em perversidade recolhida e
fedorenta o que perdeu em brutalidade esbarrondante e sadia: já não
assalta nem esquarteja o inimigo, amargura-lhe, comodamente, a
existência; envenena-lhe os prazeres, se os têm; agrava-lhe as dores e as
melancolias, que as têm pela certa; põe-lhe um sabor de lama na água
que ele bebe, um cheiro excrementício nos perfumes que ele respira;
entra-lhe pelo corpo com o pão que ele come, tornando-lho duro e
dissaborido; precipita-se-lhe na torrente do sangue, e queima-o em
febre; fustiga-lhe as fibras recônditas dos nervos, e chama-se insônia;
põe-lhe nos olhos as lágrimas que ele deve estilar em silêncio, às
escondidas, e é então a amargura que mata. E ninguém escapa!
ninguém! [...]

A pulseira de ferro
não é, contudo, ficção de tese; não
está presa aos esquematismos darwinistas do nosso
naturalismo e o advogado não busca nenhuma suposta
verdade científica. Não. Mais que a história de um padre
destituído de firmeza, a novela retrata os infortúnios de
Veloso, homem sensível, íntegro, sagaz, obrigado a ser
vítima indireta dos mexericos, devido aos quais perde,
primeiro, o grande amor, e depois, o melhor amigo. A
pulseira de ferro torna-se, assim, metáfora dos
sentimentos que alimentamos, durante longo tempo,
com empenho sincero, mas que são destruídos,
aniquilados pela malevolência de outrem.
O narrador completa, dessa forma, a inversão – e o que
prometia ser uma história óbvia ganha agradável,
inesperada sutileza. Sua sensibilidade aguda completa o
trabalho revelando, no final, não os
caluniadores, mas os
artífices do plano de abandonar a criança à porta da
igreja. Tratados, no início da narrativa, como parvos,
eram, na verdade, dissimulados, conhecedores da índole
do vigário.
A essas qualidades somam-se outros personagens – o
ferino boticário Felisberto; o barbeiro Nicola; Camacho,
“polimórfico sábio” – e diálogos reveladores, que
impulsionam a história e substituem possíveis cansativas
descrições do narrador, como este, entre Veloso e
Felisberto, quando se anuncia a difamação em curso:
– Olá! Sirva-se de um cafezinho, descanse um pouco. Diga-me! como
vai o filho do padre?
Veloso estacou intrigado. E Felisberto explicou, passando-lhe uma
xícara:
– Aquele mulatinho achado ali na igreja, outro dia, não sabe? que caiu
do céu por obra do Espírito Santo...
Ouviu-se uma risada geral. Veloso riu-se com os mais, sem exagero e
sem ruído, mas também sem constrangimento aparente, e informou:
– O pequeno vai bem.
– Saiu parecido com o pai?
Veloso, sem se desconsertar, tomando o seu café:
– Mas quem é o pai?
– Ora, ora, doutor Veloso...
– Quem é?
– Sou eu. Está ouvindo? Eu! Fui eu quem mandou largar o bodinho, de
manhã muito cedo, ali na porta da igreja; por uns excomungados de uns
pretos que ninguém viu, de quem ninguém dá notícia... Qual, “seu” dr.
Veloso, nisso tudo há grosso... milagre! Quem não vê que aí anda dedo...
de Deus!
Veloso sorriu, abanou a cabeça, olhou para o ar, tornou a sorrir, e saiu
da botica aterrado.

O narrador cumpre, graças à sua habilidade, o que


prometera no Prólogo: “[...] Uns amam nas histórias as
próprias histórias, e não querem delas senão o que
pedem à música – um pouco de esquecimento e de
embriaguez”. É o que Amadeu Amaral nos oferece nessa
novela sóbria na extensão, mas de enredo penetrante,
pleno do que os leitores desejam – exatamente o que
muitos escritores de hoje nos recusam.

[ 72 ]
11 volumes, Editora Hucitec / Secretaria de Cultura e Tecnologia do
Estado de São Paulo, 1976.
CAPÍTULO 18

Equívocos e retórica
– Jackson de Figueiredo e Literatura reacionária

O início da década de 1920 necessita de um estudo


aprofundado e livre das imposições teóricas marxistas,
que se tornaram, desgraçadamente, hegemônicas entre
nós. Só um espírito que não esteja disposto a, de forma
cega, enaltecer a mentalidade revolucionária poderá
elaborar a análise que Antônio Carlos Villaça esboçou
em trechos d’
O Pensamento Católico no Brasil
,
[ 73 ]
ao
recordar a concomitância de fatos tão díspares quanto
relevantes: em meio às crises políticas dos governos
Epitácio Pessoa e Artur Bernardes, o surgimento da
revista
A Ordem
, a fundação do Partido Comunista
Brasileiro e do Centro Dom Vital, a Revolta dos 18 do
Forte, início do Tenentismo, a Semana de Arte Moderna,
a Revolução Paulista de 1924 e o princípio da Coluna
Prestes – sem nos esquecermos, é claro, das
comemorações do Centenário da Independência, que
podem ou não se encontrar no substrato desses
acontecimentos.
É nesse contexto que surge, em 1924,
Literatura
reacionária
, de Jackson de Figueiredo, ele próprio
fundador do Centro Dom Vital, sob influência direta do
então arcebispo-coadjutor do Rio de Janeiro, dom
Sebastião Leme da Silveira Cintra. Reunião de quinze
artigos publicados na imprensa carioca entre dezembro
de 1923 e maio de 1924, o livro sintetiza o pensamento
desse ensaísta que havia se contraposto ao Tenentismo –
em
A reação do bom senso; contra o demagogismo e a
anarquia militar
(1922) – e tornara pública, em
Pascal e
a inquietação moderna
(1922), sua conversão à Igreja
Católica.
Escolhas repreensíveis
Os artigos que compõem
Literatura reacionária
nascem
da oposição do autor ao que ele chama de “desmandos
de um romantismo político”; por meio desses textos,
Jackson de Figueiredo deseja apresentar a seus leitores
alguns aspectos dessa literatura de reação, anti-revolucionária, anti-
sentimental, anti-romântica, que vai, ora definidamente católica, ora
revestindo-se somente do senso prático social do catolicismo, não só
reduzindo a poeira dos abalados créditos das doutrinas individualistas e
materialistas, como, de alguns anos para cá, assentando já as bases de
uma remodelação social, consciente e positivamente inspirada nos
ensinamentos da Igreja.
À parte a índole onírica das afirmações – revelam o
ideal do autor, mas não a realidade – e do elogiável
caráter anti-revolucionário de Jackson de Figueiredo,
que o impelia a lutar em favor da legalidade e da ordem
pública, os textos descambam, muitas vezes, para uma
defesa acrítica do fascismo italiano, da ditadura de
Primo de Rivera e do Integralismo Lusitano, na figura do
poeta António Sardinha. Ao enaltecer a “Ordem” e a
“Hierarquia”, Jackson de Figueiredo chega a elogiar
Augusto Comte – “gênio realmente formidável” – e
Charles Maurras, desconhecendo, presumo, o tanto de
pensamento agnóstico e anticatólico que havia na obra
do líder da
Action Française
. Conseqüência fatal dessas
escolhas, é possível entrever laivos de anti-semitismo ao
menos em dois artigos.
Há méritos, sem dúvida, em apresentar aos brasileiros,
por exemplo, a obra de Auguste Viatte, mas Jackson de
Figueiredo o faz numa linguagem que está sempre
pronta a cair no elogio fácil e no circunlóquio, tão caros
à retórica nacional:
O homem que [...] possui [...] o gênio da língua francesa, não foge, não
pode fugir às leis mesmas do pensamento daquela pátria espiritual, onde
o próprio ceticismo e a própria revolta como que guardam da harmonia
de suas tradições, pelo menos o aspecto exterior, como são exemplos um
Saint-Beuve, um Renan, um Rivarol, um Paul Louis Courier ou um
Anatole.

Não bastasse a falsa correlação que abre o período –


como definir o “gênio da língua francesa”? E por qual
motivo quem o possui não pode fugir às imaginárias “leis
do pensamento” que a França supostamente detém? –, a
citação, num mesmo grupo, de Ernest Renan e Antoine
de Rivarol – o primeiro, reconhecido ateu, e o segundo,
famoso anti-revolucionário – demonstram, no mínimo,
alguma confusão.
No mesmo artigo, próximo do final, Jackson de
Figueiredo compõe uma sucessão de adjetivos inúteis,
fechando o trecho com nova generalização sobre o
“espírito francês”:
Uma coisa, porém, é indiscutivelmente admirável na obra do ilustre
crítico suíço, e essa é a demonstração da superior humanidade do
espírito tradicional ou clássico, só completado, no Ocidente, pela
magnitude do Cristianismo, e de quanto esse espírito se identifica com o
espírito francês.

Tal retórica dilui a força de uma idéia correta – a


importância do Cristianismo para a civilização.
Reutilizada em outro texto, transforma numa peça
encomiástica, simplesmente ilegível, o que poderia ser
um estudo provocativo sobre o padre Júlio Maria,
defensor da doutrina social de Leão XIII. Problema
semelhante ocorre nesta definição – mais vazia do que
superficial – do “verdadeiro poeta cristão”:
[...] Aquele em que realmente a poesia não é um acidente da
sensibilidade, mas um feliz resultado do contato de toda a totalidade
humana, do eu, em toda a sua complexidade, e o mundo.

Venerador do advérbio “máxime”, repetido de forma


cansativa, e de longas citações em francês, típicas do
eruditismo que até hoje nos assedia, Jackson de
Figueiredo não tem a vivacidade e a ironia do católico e
anti-republicano Carlos de Laet.
[ 74 ]
Seu texto enfada,
como nesta seqüência de elogios a Ronald de Carvalho:
[...] Tudo o mais já estava em “Luz Gloriosa”, como nos “Poemas e
Sonetos”: uma tranqüila exaltação diante de toda a beleza, assim do
mundo exterior como do interior, naquele, impressionando-te mais as
cores vivas, máxime o rubro e o amarelo, neste, que envolve aquele, uma
certa cinza de enfaro e desencanto, de que resulta que a tua obra se
mantém sempre como expressão da inquieta fortaleza de um mundo
coroado de luzes e cores de um crepúsculo matutino, que tanto evoca o
heroísmo como a renúncia, que tanto impele a amar a vida com ardor e
entusiasmo, como a lastimá-la e, por assim dizer, tangenciá-la nas asas
da mais delicada mas, ao mesmo tempo, da mais desoladora melancolia.

Debilidades
Jackson de Figueiredo defende uma idéia doutrinal de
literatura: se acerta ao dizer que “mais larga que a
categoria do belo é a do bem”, erra ao proclamar a
“absoluta superioridade da obra de arte católica em
relação a qualquer outra obra de arte”, como afirma no
texto dedicado a Henri Massis.
De fato, tem razão quando salienta que “o artista é um
ser moral”, que “o produto da sua atividade tem de
refletir a ordem da sua consciência” e que a arte precisa
ser julgada inclusive sob o aspecto ético – exercício que
a crítica literária contemporânea pretende esquecer
quando desvincula a obra literária da vida real, como se
fosse apenas híbrido conjunto de signos, produto de
geração espontânea. Mas nenhum desses acertos
garante ao escritor católico qualquer tipo de
superioridade estética. Na verdade, Jackson de
Figueiredo mostra-se contraditório, pois, semanas
antes
de fazer esses comentários, escreve a respeito do jesuíta
Leonel Franca e denuncia a “formidável afirmação de
mau gosto” da literatura católica brasileira...
De qualquer forma, não viveu o suficiente para ler a
crítica de Flannery O’Connor – no ensaio “Os
romancistas católicos e seus leitores” (
Mistery and
Manners; occasional prose
)
[ 75 ]
– àqueles que,
“extasiados com sua condição cristã, esquecem sua
natureza de escritor”. Flannery recorda a tais autores a
história do lobo de Gubbio: convencido por São
Francisco de Assis a se tornar um lobo bom, nem por
isso muda sua natureza e passa a andar sobre duas
patas. Mas Jackson de Figueiredo poderia ter lido o
ensaio “The Morality of the Profession of Letters”,
[ 76 ]
de Robert Louis Stevenson, para quem “algo ruim
pobremente executado é algo ruim do princípio ao fim”,
não importando a religião ou a teoria estética que o
escritor segue.
Encontramos superficialidade e contradições também
nos artigos dedicados a contestar Ronald de Carvalho,
como se nosso ensaísta experimentasse algum tipo de
dissociação. Em 30 de janeiro de 1924, numa resposta
cheia de dedos ao autor de
Pequena História da
Literatura Brasileira
, afirma não querer
provocar polêmicas com ninguém desse nosso (quero dizer: brasileiro)
inquieto campo de letras, do qual, por muitos motivos, como já te tenho
dito, me julgo afastado.

Logo a seguir, quase se desculpando pelas críticas


frouxas aos modernistas, repete a argumentação
insípida:
É claro que tudo isso faço “de fora”, como de um campo para outro,
isento de paixão propriamente estética, sem fazer, portanto,
concorrência a nenhuma espécie de homem de letras, nem ao crítico
literário, nem ao poeta, nem ao ficcionista, em geral.
Sou pura e exclusivamente um católico, que aliás só atua pela pena,
por falta de outras capacidades mais positivas de homem de ação.

Contudo, dias depois, em 6 de fevereiro, ao escrever


sobre Perillo Gomes, parece ter esquecido a ladainha
inconvincente e a autodefinição algo melíflua, pois, ao
dissertar sobre a relação entre escritores e críticos
literários, assume claramente outra posição:
Note-se que quem está falando não pode ser suspeito aos nossos
críticos, em primeiro lugar, porque também já tem sido classificado
entre eles, em segundo lugar, porque algumas das suas mais sérias
admirações, no meio literário brasileiro, é por alguns dos nobres

espíritos que, da minha geração e da imediatamente anterior, se têm


feito notáveis nessa lata missão intelectual.

Por vezes, tem-se a impressão de que o combatente


despertará, como no final do artigo dedicado a Auguste
Viatte, em que tece observações a respeito dos futuristas
– “sereias de indisciplina e fuliginosas imaginações” –,
criticando o movimento estético que vem “ao Brasil
cantar de galo, como se não os houvera no terreiro...”.
Mas Jackson de Figueiredo não enfrenta o mais
deslumbrado dos que aderiam a tais idéias e prefere
contemporizar: “Ninguém nega a sinceridade nem o
talento do Sr. Graça Aranha, que aparece como chefe
desses ‘envolvimentos’ futuristas”.
Em 2 de julho, no artigo “A lição de Paul Bureau”,
parece, por um momento, que finalmente abandonará o
tom impessoal, mas está acima de suas forças dar nome
aos bois:
E, ao contrário do que pensam muitos, julgo que chegou mesmo a hora
em que é necessário acabar, destruir, acabar de vez com umas certas
originalidades do nosso meio, que são piores que a pior imitação, e
redundam em incrível degradação da nossa vida social. Não se
compreende, realmente, que se arvorem em iracundos pedagogos, em
duros mestres de moral, em juízes de tudo quanto vive num dado meio,
justamente os indivíduos que nele nem se dão ao cuidado de fingir um
certo amor à virtude e algum horror ao vício. [...]

Sinceridade
Se lermos Jackson de Figueiredo com uma pinça, ainda
é possível colher seus acertos. Sua crítica ao
romantismo – “cuja característica é a exaltação, até
quando essa exaltação seja a da mais depressiva
melancolia, o que é fácil apreender do mais ou menos
ridículo profetismo de todos os chefes românticos” –
permanece instigante. No artigo “Problemas de
educação nacional e de instrução pública”, publicado em
maio de 1924, arremete contra inominados intelectuais,
denunciando o que sempre foi e continua a ser regra
entre nós:
A coisa que já parece a mais natural deste mesmo mundo [...] é alçar o
colo à petulância de um gaguejador de alguns nomes difíceis, roubados à
técnica de um forjador de novidades pedagógicas, e com armas tão
fracas atirar-se em cheio contra verdades que têm resistido ao arrojo de
homens mais prudentes e mais entendidos do que falam. Não raro esses
pobres espíritos são incapazes de filiarem no sistema filosófico
originário as meias idéias que agitam e os agitam. Não raro são
absolutamente ignorantes do
que representam na história do
pensamento humano as idéias que neles se fizeram preconceitos.

Descontados seus equívocos estéticos e políticos – estes


últimos o levaram, inclusive, segundo Wilson Martins,
[
77 ]
a trabalhar como chefe da censura no governo Artur
Bernardes –, Jackson de Figueiredo deixou ampla
correspondência, parte dela ainda inédita, cujo estudo
pode oferecer às novas gerações um perfil completo –
distante, em igual medida, do elogio desmesurado e da
aversão preconceituosa –, permitindo que surja o
homem sincero, que dizia só compreender plenamente o
seu cristianismo quando estava só.

[ 73 ]
Editora Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 2006.
[ 74 ]
Ver, neste
Esquecidos
&
superestimados
, o Capítulo 11, “Salvo pela
ironia”.
[ 75 ]
Seleção e edição de Sally e Robert Fitzgerald, Editora Farrar, Straus
and Giroux, 1969.
[ 76 ]
Em
The Art of Writing
: http://classiclit.about.com/library/bl-
etexts/rlstevenson/bl-rlst-wri-2.htm.
[ 77 ]
História da Inteligência Brasileira
, volume
VI
(1915-1933), 2ª
edição, T. A. Queiroz Editor, São Paulo, 1996.
Esquecidos & superestimados

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1ª edição – maio de 2014 – CEDET


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Gurgel, Rodrigo
Esquecidos e superestimados [recurso eletrônico]/ Rodrigo Gurgel –
Campinas, SP : Vide Editorial, 2014.
eISBN: 978-85-67394-25-1
1. Literatura Brasileira – Ensaios I. Rodrigo Gurgel II. Título
CDD – B869.45
Índice para Catálogo Sistemático
1. Literatura Brasileira – Ensaios – B869.45
Sobre o Autor

Crítico literário do jornal


Rascunho
, colaborador da
Folha de S. Paulo
e colunista do site
Mídia sem Máscara
, Rodrigo Gurgel é autor de
Muita Retórica – Pouca
Literatura (de Alencar a Graça Aranha)
, também
publicado pela Vide Editorial. Leitor crítico de editoras,
agências literárias e particulares, trabalha como
coach
literário, assessorando escritores. Jurado do Prêmio
Jabuti de 2009 a 2012, Gurgel foi um dos dez vencedores
do Concurso de Contos “Caderno 2”, do jornal
O Estado
de S. Paulo
, em 2004.
Sobre a Obra

Permitam-me, caros leitores, fazer desta orelha não


apenas um texto de apresentação, mas um
agradecimento
sincērus
, genuíno, ao autor. Rodrigo
Gurgel me fez voltar a ler crítica literária em português
brasileiro. Não é pouco.
Já havia reconhecido no seu
Muita Retórica, Pouca
Literatura – de Alencar a Graça Aranha
(Vide Editorial,
2012) a ambição de escrever sobre literatura com a dose
adequada de paixão e rigor, de amor e conhecimento, da
necessária frieza e abertura para a descoberta (e
redescoberta) das preciosidades da literatura e crítica
literária brasileiras.
Ler os ensaios críticos de Rodrigo Gurgel é ser
convidado para um clube privado de conversação
erudita e estimulante; para um debate entre adultos que
respeitam mutuamente a inteligência e, num sentido
mais amplo, respeitam o próprio fato de canalizar
adequadamente a bênção, a maravilha e as virtudes de
ser humano.
Neste
Esquecidos & superestimados,
Gurgel amplia a
sua ambição de, como ele mesmo afirmou ancorando-se
em Friedrich Schlegel, ser um leitor que rumina e que
recusa prazerosamente a tríade infernal apontada por
Tzvetan Todorov: formalismo, niilismo e solipsismo.
Consegue sê-lo e fazê-lo, para a nossa sorte.
Se há um elemento comum apontado por Gurgel nos
autores analisados nos 18 capítulos deste livro é o fato
de serem, positivamente, escritores de seu tempo, o que
significa dizer que são autores que refletem e trabalham
literariamente as virtudes e vicissitudes de sua época, e
que nos permitem não só conhecer e aprender com o
passado, mas compreender o legado benéfico e maléfico
da preservação e alteração de certos aspectos culturais,
considerando a cultura como o grande círculo dentro do
qual residem as dimensões literárias e políticas.
O doutor Samuel Johnson, ao falar sobre o grande John
Dryden, escreveu que “para julgar corretamente um
autor, devemos nos transportar para a sua época e
investigar o que eles esperavam de seus
contemporâneos e quais eram os instrumentos que
utilizavam para
criticá-los”. Gurgel o faz, mas também
tentando, como Edmund Wilson em
O Castelo de Axel
,
rastrear as origens de certas tendências da literatura do
passado – não apenas a da contemporânea – para
mostrar o seu desenvolvimento e legado, literário e
crítico, na literatura brasileira.
Graças à inteligência e ao trabalho de Gurgel, temos
aqui, pelas mãos da competente
Vide Editorial
, o
segundo livro desse intelectual que honra o legado e
certa tradição
highbrow
da crítica literária brasileira
representada por críticos como Álvaro Lins. Que vocês
tenham o mesmo prazer e aprendizado que eu tive, e
que se orgulhem também de o autor escrever de forma
correta, aguçada e bela no nosso tão vilipendiado idioma
pátrio.

Bruno Garschagen

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